Bogum VII
Bogum VII
Bogum VII
Ordep Serra
O Terreiro do Bogum, nome pelo qual este templo mais conhecido, situa-se no bairro soteropolitano do Engenho Velho da Federao, na Ladeira do Bogum, tambm designada, oficialmente, como Rua Manoel do Bonfim. Tem a completar seu endereo o nmero 35. A e a cifra do Cdigo de Endereamento Postal 40.320.220. Correspondelhe uma rea total de 1000 m, sendo 600m de rea construda. Na sua vizinhana, o dito templo tambm chamado simplesmente de o jeje (scilicet o terreiro jeje). Assim tambm costumam design-lo membros do povo-de-santo de outras naes do candombl de Salvador, principalmente dos egb instalados nas cercanias.
O Engenho Velho da Federao, com cerca de 80.000 habitantes, na maioria afrodescendentes, um dos maiores bairros negros da capital baiana (ver plantas nos Anexos). Em setembro de 2005, quando da celebrao de um convnio entre o Governo Federal e a Prefeitura Municipal do Salvador com vistas a sua requalificao urbana, este bairro foi classificado pelas autoridades envolvidas (o Secretrio Municipal da Reparao - SEMUR, o Presidente da Fundao Palmares e a titular da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial SEPPIR, ligada, esta, Presidncia da Repblica) como quilombo urbano, com base em interpretao do Decreto n. 4.887, de 20 de novembro de 2003, assinado pelo presidente Luiz Incio Lula da Silva, decreto este que faculta entender por caracterstica definitiva de um quilombo a resistncia cultural negra concentrada em um determinado espao, mesmo se a sua populao tiver experimentado mobilidade horizontal ao longo do tempo (A TARDE, 21/09/05). Um fator decisivo para classificar assim o Engenho Velho da Federao foi a elevada concentrao de terreiros de candombl na rea, constatada por levantamentos e estudos diversos. Acresce que a tradio atribui a origem do referido bairro a um quilombo formado por escravos fugitivos de um engenho com sede entre o bairro do Rio Vermelho e a atual Avenida Cardeal da Silva. Pesquisas historiogrficas
tendem a confirm-lo (cf. Rego, 1978; Pars 2006: 171 sq.). A conscincia do valor histrico do Bogum como testemunho da memria negra muito grande na rea onde este templo se localiza e em meio ao povo negro de Salvador. Seu prestgio e o papel proativo de lderes que pertencem a sua comunidade (associados a lideranas de outros terreiros e organizaes populares da rea) foram fatores importantes que levaram, na ocasio acima evocada, a SEMUR e a SEPPIR a empenhar-se em viabilizar, atravs de parceria entre a PMS e o governo federal, a destinao de investimentos significativos para a ensejada requalificao urbana do Engenho Velho da Federao. digno de nota tambm o fato de que grande parte das referncias positivas feitas a este bairro na imprensa soteropolitana tm como foco o Bogum: so sempre noticiadas nos peridicos locais suas festas e outros eventos que constituem marcos relevantes na vida da sua comunidade, tais como exquias de seus dirigentes, sucesso no posto mximo da Casa, visitas de dignitrios (ver, por exemplo, A TARDE, 30/12/1975. A TARDE, 6/10/ 1994. TRIBUNA DA BAHIA, 28/03/1987. A TARDE, 31/07/98).
Prximo Ladeira do Bogum, no topo da elevao a que ela conduz, encontra-se a Praa Me Runh, com a esttua de Maria Valentina dos Anjos Costa (1877 - 1975), uma famosa Don (me-de-santo, sacerdotisa suprema) do Terreiro do Bogum; trata-se de uma obra de autoria desconhecida, em fibra, medindo cerca de 1,70m, colocada sobre bloco de concreto revestido e pintado de branco
(http://www.cultura.salvador.ba.gov.br/sitios-esc-maerunho.php).
A rea da referida
praa antigamente integrava o Terreiro do Bogum. O monumento foi erigido por iniciativa do municpio.
Como se v, este estabelecimento religioso motivou a designao do local onde se situa e uma sua dirigente se tornou epnima de um logradouro nas suas cercanias. Tais dados j do testemunho do grande prestgio popular do dito templo, que constitui uma referncia local indiscutvel: trata-se de um verdadeiro marco urbano. Por outro lado, no h a menor dvida de que a instalao do Terreiro do Bogum teve um papel decisivo na configurao da localidade. , com certeza, um dos mais antigos estabelecimentos da rea e desempenhou um papel significativo na histria da sua ocupao, da formao do bairro.
Trecho de uma encosta paralela Ladeira do Bogum conhecido, ainda hoje, como Pau Zerrm, ou P Zerrm, nome derivado do hieronmico de terreiro de rito jeje (REGO 1993. PARS, 2006) que deixou de funcionar h muito tempo, mas, segundo os registros da tradio oral, exerceu grande influncia na comunidade negra dos arredores e teve relaes intensas com a Casa de que aqui se trata, embora nele se seguisse uma diferente variedade litrgica do rito jeje seguido no Bogum. Autoridades deste atestam que em assentamentos do antigo terreiro do P Zerrem (cujo nome reporta uma epiclese de uma divindade jeje, Po ou Kpo), a gente do Bogum realizava oferendas aos ancestrais.
J alm do Bairro da Federao, mas nas suas proximidades, um monumento natural viu-se tradicionalmente associado como o Bogum: a gameleira (Ficus doliaria) do Caminho de So Lzaro, rvore considerada uma hierofania do vodum Loko [ver fotos BL, BL.01- BL.07 (Regina Serra)]. A morte do espcime, na dcada de 1980,
ocasionou gestes que levaram a Prefeitura Municipal do Salvador a patrocinar o plantio de uma nova muda consagrada por sacerdotes do Bogum, sob a presidncia da sacerdotisa que ento detinha o mais alto posto no referido terreiro, a Venervel Don Evangelista dos Santos Costa, Me Nicinha e a edificar uma espcie de precinto, elevado e gradeado, para sua proteo. Uma placa hoje desaparecida por ao de vndalos assinalou o evento do replantio.
Lugares considerados sagrados pelo grupo de culto do Bogum, que os freqenta e neles celebra ritos, ou deposita oferendas, so, nas cercanias, o caminho e a Praa de So Lzaro, com seu cruzeiro e o templo catlico; a chamada gruta de Omolu, na praia de Ondina; a praia do Rio Vermelho, na altura da Casa do Peso e da famosa esttua da Sereia (Iemanj); o Dique do Toror. Embora fique muito distante, no subrbio ferrovirio, o Parque de So Bartolomeu um stio sagrado de grande importncia para este terreiro, espao historicamente ligado a liturgias que protagoniza [DUARTE, 1998].
So vizinhos prximos do Bogum terreiros muito conhecidos, embora de implantao mais recente neste espao. Pela proximidade (mas tambm por suas dimenses e prestgio) merecem referncia especial o Tanurijunara, de rito angola, fundado em meados do sculo passado pela Venervel Nengua Konderen, Elizabeth da Hora, e o
Il Ob do Cobre, de rito ketu, fundado na Barroquinha (possivelmente em fins do sculo XIX), mas transferido para o stio onde hoje se encontra na gesto da Ialorix Flaviana Bianchi na segunda dcada do sculo XX: trata-se do famoso Candombl de Flaviana, multicitado por Edson Carneiro, que assinalou sua grande influncia (SERRA, 1978. SERRA, s.d.a). Situam-se ambos esses terreiros Rua Apolinrio Santana, via principal do Engenho Velho da Federao, que conduz Praa Me Runh. As relaes do Bogum com o Terreiro do Cobre remontam aos tempos da Venervel Flaviana; quanto ao Tanurijunara, basta dizer que descende do clebre Tumbajunara, sediado na Vila Amrica, com que o Bogum sempre se relacionou de maneira muito positiva; a vicinalidade aproximou mais as comunidades do terreiro jeje e do citado templo angola do Engenho Velho.
Na prpria Ladeira do Bogum, onde tem o nmero 23, encontra-se um terreiro hoje pouco ativo (tornado, na prtica, um satlite da Casa Branca do Engenho Velho), mas de inegvel importncia por sua histria: seu fundador, Manoel do Bonfim, um renomado babala, desfrutou de tanto prestgio no bairro que se tornou epnimo da via onde tinha domiclio (a Rua Manoel do Bonfim, a Ladeira do Bogum). O Il Ax Ob Tad Patiti Ob, tambm chamado de Ipatiti Gallo, veio a ser popularmente conhecido como o terreiro de Manoel do Bonfim. (A frmula Ipatiti Gallo foi empregada para a designao deste templo na legislao municipal que converteu seu espao numa ASRE, junto com o Terreiro do Bogum). O egb do Patiti Ob reconhece uma ligao com o rito de candombl jeje: de acordo com sua Ialorix, a Venervel Nilza Dorotia de Souza, Manoel do Bonfim foi iniciado em uma casa jeje de Cachoeira, embora segundo o rito ketu. Explicou a referida sacerdotisa que antigamente jeje e ketu no era to separado como hoje, tinha uma ligao forte aqui (SERRA, s.d.b).
A Rua Apolinrio Santana transversal Avenida Cardeal da Silva, que, ao prolongarse no rumo das cumeadas da Federao, logo aps o viaduto antigamente conhecido como Segundo Arco, conecta-se Rua Caetano Moura; uma via transversal a esta conduz ao alto do Gantois, onde se acha o templo ketu Il Ax Ia Omin Iamass (o famoso Terreiro do Gantois), na Rua Me Menininha, 23. Com este, a comunidade do Bogum se relaciona desde muito: segundo a memria oral dos terreiros, a clebre Me Menininha, Maria Escolstica da Conceio Nazar, deu grande impulso s ligaes amistosas entre sua casa e o templo jeje que mais freqentava; todavia, essas ligaes
so reconhecidas pelo povo-de-santo de ambas as Casas como bem mais antigas e profundas: um av de Me Menininha, conhecido pelo epteto de Salak, teria plantado no Bogum a rvore consagrada a Azonod.
Na avenida rumo da qual desce a Ladeira do Bogum (a Avenida Vasco da Gama), acham-se o Il Oxumar e o Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho (Il Ax Iy Nass Ok), templos ketu com os quais o Bogum tem relaes muito prximas. Vale notar que autoridades do Il Oxumar lhe atribuem uma origem jeje (cf. Serra, s.d. 2). Este fato sem dvida o aproxima do terreiro que muitos conhecem, em Salvador, como o jeje por antonomsia.
Os laos de cooperao religiosa entre a Casa Branca e o Bogum so antigos e, segundo depoimentos de sacerdotes de ambos os templos, viram-se muito reforados no sculo passado graas atuao da famosa Ekede Jilu, Januria Maria da Conceio, filha de Omolu iniciada na Casa Branca, que teve significativa atuao no grande santurio jeje vizinho (ver tambm a propsito o verbete Jinu in LOPES, 2004. Cf. OLIVEIRA, 2005. SILVEIRA, 2006).
Outro templo afro-brasileiro famoso relativamente prximo ao Bogum vem a ser o Il Ax Ib Ogum, mais conhecido como Terreiro da Murioca, sito Rua Srgio de Carvalho, 39 E, Vale da Murioca, Avenida Vasco da Gama, onde pontificou o famoso sacerdote Luiz da Murioca (Sr. Luiz Alves de Assis, hieronmico Ogum Lad), em cuja formao religiosa a citada Ekede Jilu teve um papel muito importante.
Esses grandes terreiros constituem pontos de referncia ineludveis no mapa cultural da cidade e seus dirigentes e membros dispensam ao Bogum a mais alta considerao.
Em muitos outros terreiros de Salvador, mesmo em santurios distantes do Bogum em termos espaciais, este templo conhecido, prezado e celebrado. A propsito, cumpre citar no apenas outras Casas jejes da metrpole baiana como o Inleged Air Jigemin, mais conhecido pelo epteto de Vodunz e o Ax Jitolu (ambos situados bairro do Curuzu), ou o Il Om Ket Poo Bta, hoje implantado no bairro de Pau da Lima mas tambm templos de diferentes ritos de matriz africana desta capital. Entre outros, reconhecem a grandeza do Bogum, por exemplo, sacerdotes e devotos do Ax
Op Afonj (de rito ketu), do Il Maro Ialaj (nag vodum, na classificao que lhe deu sua clebre Ialorix Olga de Alaketu) e do Bate Folha (rito angola), para limitar-nos a referir trs santurios do candombl (situados, respectivamente, nos bairros soteropolitanos de Cabula, Matatu e Mata Escura) j tombados como patrimnio histrico nacional. Deve-se frisar ainda que o prestgio do Bogum transcende os limites de Salvador e da Bahia: atrai visitantes de todo o pas (principalmente religiosos ligados a candombls do Rio de Janeiro e de So Paulo), alm de turistas das mais diversas origens, que procuram desfrutar da beleza de seus rituais pblicos.
O Terreiro do Bogum tem registro na Federao Nacional dos Cultos Afro-Brasileiros FENACAB e no Instituto Nacional de Tradio e Cultura Afro-Brasileira INTECAB. , sem dvida, um dos mais famosos templos negros da Bahia; sua fama e sua influncia se difundem por todo o pas. Lderes religiosos que alcanaram grande celebridade se iniciaram neste templo, que assim deu origem a outros, muito respeitados: basta citar, a propsito, o venerado Hunkpme Ayiono Huntolji, templo cachoeirano fundado pela Gaiaku Lusa, e o carioca Podab, que, segundo Ney Lopes (2004, s. v. Zoogod Bogum Mal Rund), tambm deve sua fundao a uma sacerdotisa a Venervel Rozena de Bessm, Azinossibale iniciada no terreiro objeto do presente laudo. Jos Flvio Pessoa de Barros (2005:31-2) cita ainda como oriunda do Bogum a Venervel Margarida de Iemanj, com terreiro em Vilar dos Teles, So Joo do Meriti, Rio de Janeiro.
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No h registro histrico ou etnohistrico que reporte uma instalao do Terreiro do Bogum em outra rea, isto , que atribua a este grupo de culto uma sede fixa distinta, anterior atual, embora haja referncias realizao episdica de seus rituais em outros espaos (casas de sacerdotes eminentes do mesmo rito), como meio de eludir a perseguio religiosa (PARS, op. cit. especialmente p. 171-9). De acordo com os depoimentos de membros autorizados da comunidade do famoso templo jeje, sua sede permanece no stio onde teve implantao. Todavia, os testemunhos e documentos disponveis so unnimes em declarar que a roa do Bogum perdeu muito espao, reduziu-se a uma frao mnima da rea que antigamente ocupava, a qual se estenderia do alto da Federao, onde hoje fica a Praa Valmir Barreto, at a atual Avenida Vasco
da Gama (antigo Caminho do Rio Vermelho), onde, outrora, a roa do jeje segundo depoimento de autoridades de ambas as Casas confinava com a roa nag da Casa Branca, no trecho antigamente chamado de Joaquim dos Couros (CARNEIRO, 1985 (1948)). O crescimento urbano descontrolado, em bairros populares de ocupao intensa e no planificada, sem regulamentao adequada e efetiva do uso do solo, sem definio clara dos direitos das comunidades residentes, levou antigos terreiros que dispunham de extensas reas a reduzir-se muito, por fora, tambm, de presses da especulao imobiliria (REGO, 2003. SERRA ET ALII, 2002). O depoimento de uma famosa sacerdotisa iniciada no Bogum entre 1944 e 1945, uma vodunsi que se afastou deste terreiro e passou dcadas sem l ir (a Venervel Luiza Franquelina da Rocha, a famosa Gaiaku Lusa) d idia das transformaes sofridas pelo santurio, de sua reduo espacial e da perda de sua vasta rea verde (CARVALHO, 2006:100):
A roa do Bogum era toda cercada de pprgun, de forma que do lado de fora no se via nada dentro. Me lembro de que havia o assentamento de Aizan, de uma mata, de uma baixa enorme onde soltavam o Gr (...) Aquilo era enorme, era um mundo (...) Como que ficou to pequeno assim?
A abertura de uma via pblica, que se consumou com o asfaltamento da Ladeira Manuel do Bonfim (Ladeira do Bogum), no final da dcada de 1950, foi um dos fatores desta reduo: mutilou o terreiro, impondo a separao entre espaos que lhe pertenciam e precipitando, finalmente, a perda de uma importante parcela do mesmo. Antes disso, a progressiva ocupao da zona (outrora longnqua e isolada) da Federao imps limites grande roa. O desmatamento e a eliminao de cursos dgua finalmente aterrados nas imediaes desfiguraram a rea, impedindo manejos tradicionais. Um trfego intenso nas novas vias dificultou o reservado uso comunitrio de espaos que o grupo eclesial do Bogum antes controlava e com isso restringiu usos litrgicos. Calculam membros antigos da comunidade que o terreiro reduziu-se a menos de um quinto da rea que outrora compreendia.
Em trecho assim desmembrado, fronteiro sede hodierna do famoso templo jeje, situava-se um seu importante monumento: a rvore-sacrrio do vodum Azonod (Znod, Aznod), que ali recebia culto. Essa rvore centenria tombou em 1979,
conforme registro de Jehov de Carvalho (1978:53), que atribuiu sua morte a ao criminosa de vndalos.
A rea atual do templo jeje do Bogum compreende seis pequenos blocos de edificaes; um deles (indicado pelo nmero 23 em planta anexa) encerra a casa da Don, com dois pavimentos [ver foto 041 BOGUM (S. Pechin)]; no piso superior residem a me-desanto, seu atual esposo o Sr. Raimundo Bento Arajo da Paixo , o filho do primeiro casamento dela, Sr. Antonio Raimundo Melo Soares, e um filho deste ltimo, Kaike Santos Melo Soares (os dois ltimos iniciados no Bogum na qualidade de ogs); no piso trreo residem a genitora da Don e trs irmos desta, todos eles iniciados: o Sr. Ubiraci Ricardo de Melo como adoxo (preparado para o transe entusistico), os dois outros como ogs (Ubirat Jesus de Melo e Ernani ngelo de Melo). Outro bloco prximo (assinalado com a cifra 21 na referida planta) encerra a residncia da sacerdotisa Gildete de Oliveira Souza, a venervel Odessi (irm-de-santo da Don), que a mora com um filho, Luis de Oliveira Sousa, e um neto, Kain Vincius Santos, ambos iniciados como ogs. Um pequeno anexo a este bloco encerra sanitrios que so franqueados ao pblico durante as festas. Era-lhe contgua uma rvore (Ficus doliaria), consagrada ao vodun Loko, em um ngulo formado por muros erigidos para separar o terreiro da rua: o que encerra o porto de acesso e o que define o limite lateral direito do templo, na perspectiva de quem segue para o domiclio da Don. (Esta rvore tombou recentemente, com danos para as edificaes prximas). Pouco adiante, encostada a este muro, prxima ainda ao referido ngulo, encontra-se outra habitao (18), de uso residencial, abrigando um grupo domstico formado por cinco pessoas que no pertencem ao grupo de culto do Bogum, mas esto ligadas por laos de parentesco me-de-santo: a Sra. Luzia Maria Melo (irm da Don por parte de pai), seu filho, sua nora e seu neto. Progredindo um pouco no sentido em que desde a se avana rumo ao trecho mais posterior do conjunto, outro bloco, encostado ao muro, encerra quatro santurios contguos (17, 16, 15 A, 15 na planta de referncia) dedicados, respectivamente (na ordem da indicao evocada entre parnteses na linha acima), s divindades Agangatol, Agu, Nanan e Omolu, com divisrias em parede-meia. Junto ao santurio de Omolu encontra-se outra rvore Loko, objeto tambm de culto; entre esta e uma jaqueira (Artrocarpus integra), igualmente sagrada, fica o santurio de Aizan. Ao muro fronteiro a este se encosta mais um bloco de edificaes (4, 5, 6, 7, 8 e 9), que um bilreiro (Guarea trichilioides) separa de um pequeno santurio chamado
Cutito e dedicado ao culto dos antepassados. No referido bloco, trs dos seis cmodos (5, 6 e 9) so santurios, dedicados, respectivamente, ao vodum Bessm, a Tubans (aos Caboclos) e ao vodun Legba (chamado familiarmente de Compadre); duas unidades (7, 8) so reservadas a membros do terreiro que residem fora, mas a este acodem durante as principais obrigaes do calendrio litrgico. O cmodo mais prximo ao edifcio principal (4) o Quarto dos Ogs (ministros dos voduns, homens iniciados e impassveis de transe). Nesse conjunto maior se encontra o barraco [foto 037 BOGUM (S. Pechin)], salo consagrado s celebraes pblicas. No espao fronteiro ao barraco, no ngulo formado por muros que limitam, neste trecho, a rea do terreiro, encontra-se mais um pequeno santurio, dedicado a Legba. Bem prximo desta Casa de Exu pois ela tambm designada com este nome [ver foto 033 BOGUM (S. Pechin)] encontra-se uma rvore (accia) consagrada ao vodum Azonod. parte do bloco da edificao principal, h outro sanitrio externo, perto do cmodo que corresponde clausura inicitica (mas alm de suas paredes e junto ao muro que corresponde ao limite lateral esquerdo do terreiro, para quem ingressa no mencionado bloco). A partir do salo de festas, um corredor em cuja entrada, em curva, se acha representada em pintura parietal uma serpente [cf. foto 007 BOGUM (S. Pechin)] leva ao restante do corpo do edifcio principal do candombl do Bogum. direita de quem por ele ingressa, encontram-se dois dos principais sacrrios, de acesso interdito a profanos: o peji, que abriga os assentamentos dos patronos da comunidade e sacra de voduns de iniciados, mais o Quarto de Lissa (Olissassa), ou seja, o sacrrio da principal divindade do panteo jeje, fronteiro sala de jantar em que o corredor desemboca. Esta sala conduz cozinha; depois do santurio de Lissa, direita da sala de jantar, acha-se uma dispensa; direita da cozinha fica uma varanda. Importa observar que a realizao de oferendas alimentares cujo preparo requer obedincia a preceitos especficos torna essa cozinha um implemento religioso, investindo-a de sacralidade. Logo no incio do corredor, quem nele penetra desde o salo de festas v a sua direita o Quarto das Ekedes (sacerdotisas iniciadas, infensas ao transe, parte de cujo ministrio envolve a assistncia diretas aos iniciandos e a todos os que sofrem a possesso pelo vodun nos ritos pblicos); este seu cmodo protege o vestbulo da clausura, hundemi [nome grafado tambm rondeme na comunidade], por definio inacessvel a profanos. Quem avana mais pelo dito corredor passa em seguida por outro cmodo, que tambm confina com o hundemi: o aposento reservado, neste edifcio, Don, me-de-santo.
Tanto quanto os altares edificados, as rvores sagradas do terreiro so consideradas santurios e constituem hierofanias [ver fotos BOGUM 036 e 039 (S. Pechin)]. Pinturas que ornam as paredes do salo de festas, assim como o corredor de acesso [foto 025 BOGUM (S. Pechin)] ao interior do edifcio principal e a saleta que flanqueia esta passagem, direita de quem entra, so smbolos sagrados [ver fotos BOGUM 003, 005 (S. Pechin)]; destacam-se as representaes de serpentes que evocam a divindade Bessm e assinalam a eminncia do culto do vodum Bafono Deca no Terreiro do Bogum [ver fotos 003, 007 BOGUM (S. Pechin)]. Retratos da Don Runh e da atual Don so visveis tambm nas paredes deste edifcio (no salo principal e na saleta mais interior [ver fotos 001, 002, 004 BOGUM (S. Pechin)].). Logo entrada do barraco fica um assentamento de Legba, senhor dos limiares e passagens.
Alm das pilastras de sustentao do teto, h, no grande salo de festas, um poste central, sem funcionalidade arquitetnica, mas de grande relevncia simblica, religiosa [ver fotos 022, 027, 028, 029, 031 e 032 BOGUM (S. Pechin). Sua sacralidade evoca os ritos de fundao do templo e serve de referncia para o desenvolvimento da liturgia, como eixo das evolues dos vodunsis (iniciados suscetveis de transe) no rito entusistico (BASTIDE, 1973: III: 5).
A orquestra sagrada tem seu espao destacado. Na composio de seu instrumental, tm destaque mximo os tambores sagrados [ver foto 026 BOGUM (S. Pechin)], que merecem ser considerados como monumentos religiosos de per si, tal a sua importncia para o rito e seu valor religioso (HERSKOVITS, 1946. SIQUEIRA, 2004: 186. LODY, 1989).
Alm do trono da Don, outras sedes (cadeiras de alto espaldar, com decorao especial) servem de assento a autoridades religiosas da Casa ou a visitantes de grande prestgio. Estas cadeiras-tronos [ver fotos BOGUM 008, 009, 015, 016, 017, 018, 019, 020, 021 e 035 (S. Pechin)] integram a parafernlia posta em uso na investidura dos sacerdotes que ascendem a cargos importantes no terreiro: so inauguradas na confirmao dos ogs e ekedes ou nos ritos de sagrao dos mais altos hierarcas. Seus titulares podem ceder-lhes o uso a pessoas gradas.
O mobilirio efmero das festas tambm tem valor religioso e se inspira em smbolos sacros. Um constante indicador de sacralidade (sempre renovado, por ocasio das festas, como ornato das janelas e portas) so as pequenas cortinas de fios de palha de dend, chamadas mari (mariwo) e relacionadas com o vodum Gu (Ogum) [Cf. SANTOS, 1976]. Ver fotos 023, 024 030 BOGUM (S. Pechin).
Como se pde ver, no espao do Terreiro do Bogum reside uma frao importante do seu clero; mas a comunidade o grmio mstico do ZOOGOD BOGUM MAL RUND conta com muitos outros membros, residentes em diferentes pontos da Cidade do Salvador, ou no interior da Bahia, ou ainda em outros estados do Brasil; ficam reservados cmodos para acolher esses membros do grupo de culto durante as festas principais do calendrio litrgico (ou em outras cerimnias que requerem sua convocao).
Para todos os que nele foram iniciados, o templo do Bogum constitui uma referncia fundamental, definitiva de sua identidade tnico-religiosa; o espao deste santurio pode ser caracterizado como um territrio (SOUZA, 1995. SODR, 1988) cuja constituio significativa por um vasto segmento da sociedade: alm dos iniciados, iniciandos, clientes e freqentadores da Casa (alm, inclusive, do povo-de-santo em geral, que a respeita e venera como um monumento sagrado de seu culto), grande nmero de afrodescendentes sem ligao estabelecida com religies de matriz africana vem neste templo um smbolo das riquezas de uma civilizao do continente de onde se originaram seus ancestres; brasileiros de diferentes origens tambm valorizam assim o velho terreiro jeje, que notveis escritores e artistas celebraram, a exemplo de Jorge Amado (1969) e Nelson Pereira dos Santos (que mostra o famoso terreiro no filme premiado Tenda dos Milagres, produzido em 1977, baseado na obra homnima de Jorge Amado).
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O terreno do ZOOGOD BOGUM MAL RUND acha-se demarcado, com limites definidos, especificados em legislao que diz respeito ASRE onde se encerra, com plantas de localizao e situao, levantamento planialtimtrico, planta baixa de santurios destacados e de seu edifcio principal. Todo o stio acha-se marcado por
referncias simblicas. A reiterao de liturgias cclicas em torno a monumentos do terreiro assinala sua rea total como um templo.
conforme ao padro desse tipo de assentamento palavra que empregamos agora no sentido urbanstico do termo a existncia, na rea edificada, no s de residncias e santurios destacados como tambm de um edifcio nuclear no qual se encontram: (1) o salo de festas pblicas; (2) a clausura que abriga os nefitos em processo de iniciao (e serve, tambm, de vesturio onde os iniciados em transe se paramentam); (3) a cozinha sagrada; (4) alguns dos principais sacrrios; (5) cmodos onde se alojam membros do grupo de culto (hierarcas de alta posio), de maneira constante ou episdica; (6) sala-refeitrio onde so comungadas as oferendas alimentares, nas grandes festas pblicas. Este edifcio geralmente designado como barraco e tem uma estrutura de estabelecimento conventual (com um claustro provisrio e celas para sacerdotes graduados, alm de dependncias outras dedicadas a usos prtico-domsticos e religiosos). Arbustos e rvores sagradas compem tambm o conjunto de um terreiro, que pode (idealmente deve) incorporar fontes e manchas de vegetao. O modelo achase bem representado pelo templo em questo, cuja rea segue melhor descrita em memorial anexo.
Mudanas na configurao do Terreiro do Bogum sem dvida se verificaram ao longo do tempo. Conforme aqui j se observou, o espao consagrado sofreu srias mutilaes; estas afetaram principalmente a manuteno de rea verde e impossibilitaram o acesso a manancial prximo, importante para a realizao de ritos sacros. Presses econmicas e urbanizao imprpria, sem planejamento adequado, foram responsveis pelas redues que lesaram o templo, dificultando a coleta de plantas no cultivadas necessrias ao culto e criando embaraos outros para a comunidade, que teve limitada a privacidade requerida para o desempenho de diversos atos litrgicos. Estes problemas ocorreram com muitos terreiros baianos, e os danos que eles assim sofreram implicaram em empobrecimento do espao urbano, em prejuzo ecolgico para a cidade, em perdas para toda a populao (SERRA ET ALII, 2002).
Importantes reformas e reconstrues dos espaos edificados do Terreiro do Bogum tm registro na memria da comunidade. A Venervel Runh, em depoimento a tcnicos do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO, Ficha 01, 17/01/61. Cf. PARS, op. cit. cap.
6, nota 51 p. 263) mencionou uma reedificao significativa ocorrida em 1927, quando um novo barraco foi erguido; Correia Lopes (1943:559) assinalou a realizao de outra reforma do mesmo porte na dcada seguinte. Por iniciativa da prpria comunidade, para acomodar melhor os seus membros, novas edificaes foram feitas ou ampliadas ao longo do sculo passado. Em 1987, a Prefeitura Municipal do Salvador, atravs da Fundao Gregrio de Matos, fez executar, com recursos captados junto ao COFIC Comit de Fomento Industrial de Camaari, uma grande obra de reforma do barraco do Bogum, reconstituindo inteiramente o seu teto; em 1993 foi inaugurada a Praa Me Runh pela Prefeitura Municipal do Salvador, que a fez erigir a esttua da veneranda Don; em 2001, novas reformas foram realizadas no terreiro, com recursos da Fundao Palmares (MINC); em 2004, uma restaurao deste santurio foi tambm realizada pela Prefeitura Municipal do Salvador, compreendendo a ampliao do Barraco, a construo da residncia da atual Don, de trs sacrrios de vodus, dois banheiros e um cmodo com banheiro no barraco, alm da ampliao de uma saleta neste edifcio principal, onde foram ainda realizados, ento, servios de pintura, recomposio do piso, instalao eltrica e hidrulica. Malgrado as reformas, porm, a organizao espacial do terreiro tem um desenho constante, inspirado em um Kultbild que lhe garante a estrutura e o significado monumental.
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Embora tenha posse secular, mansa e pacfica, do terreno onde se erige seu templo, a comunidade do Bogum no detm sua propriedade; o proprietrio vem a ser o Sr. Hermgenes Prncipe de Oliveira, que desposou, em regime de comunho de bens, a Sra. Laura Martins Catarino, herdeira de terras que englobam todo o bairro e se estendem mais alm, legadas em testamento por seu pai, Eduardo Martins Catarino. Nas referidas terras, com a extenso de duzentos e vinte e seis mil, quinhentos e vinte e seis quilmetros quadrados, alm do Terreiro do Gantois, do antigo P-Zerrm, do Terreiro de Oxumar e muitos outros, encontrava-se o Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho; este, porm, foi desapropriado pelo municpio aps seu tombamento como patrimnio histrico e etnogrfico do Brasil, conforme recomendado pelo Projeto de Mapeamento de Stios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia MAMNBA, criado em 1982, atravs de convnio entre a Fundao Nacional Pr-Memria, a Prefeitura Municipal do Salvador e a Fundao Cultural do Estado da Bahia com a finalidade de
preservar o patrimnio monumental das reas sagradas das religies de matriz africana existentes na capital baiana (SALVADOR, 1982. SERRA, 2005). O Projeto MAMNBA tambm se empenhou em buscar a proteo das leis municipais para os terreiros; neste sentido, foi preparado por sua equipe projeto encaminhado pelo prefeito Manoel Castro e aprovado pela Cmara de Vereadores de Salvador, consubstanciando a Lei Municipal de 16/12/85, que tornou rea Sujeita a Regime Especfico, ASRE, na subcategoria REA DE PROTEO CULTURAL E PAISAGSTICA, APCP, os terreiros do Gantois, do Ipatiti Gallo e do ZOOGOD BOGUM MAL RUND; nesta ASRE, o Terreiro do Bogum corresponde APCP 03, de acordo com os artigos 22, 26, 29 e 37 da Lei n. 3.377/84. Por recomendao, tambm, do Projeto MAMNBA, na mesma altura o Terreiro deixou de pagar pelo arrendamento do terreno e passou a exercer seu direito a imunidade fiscal. Todavia, com o encerramento do MAMNBA o diploma da referida ASRE acabou olvidado, sem a devida regulamentao; no chegou a implantarse, pois, o procedimento de fiscalizao que lhe daria efetividade. Mas no ficaram esquecidas as recomendaes no sentido de que o municpio assumisse o nus de uma necessria reforma do edifcio principal do Terreiro do Bogum, cujo teto ameaava desabar. A obra foi executada em 1987, sob os auspcios da Fundao Gregrio de Matos, ento presidida por Gilberto Gil.
De qualquer modo, patente que o Terreiro do Bogum foi considerado um monumento digno de preservao tanto pelo governo do municpio de Salvador como pelo governo federal: foi objeto de significativas restauraes patrocinadas pelo municpio e pela Unio. Isso manifesta um reconhecimento pelos poderes pblicos da importncia deste famoso templo do rito jeje do candombl, na prtica j tratado como patrimnio cultural da Bahia e do Brasil. Isso se acha explcito no texto da lei que o tornou rea de Proteo Cultural e Paisagstica do municpio de Salvador.
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Embora identificado, quase sempre, to s pelo nome Bogum, este famoso templo tem por hieronmico ZOOGOD BOGUM MAL RUND, de interpretao controvertida. O nome Bogum geralmente dado como variante de vodun (divindade), mas h outras hipteses. Em seu livro Falares Africanos no Brasil, Yeda Pessoa de Castro (2001: 177, s.v.) liga a forma Bogum com Boalama e d-lhe por timo o termo fon
agbogun, designativo dos descendentes de Agbo, divindade protetora dos Gedevi (jeje) da cidade de Abom. Quanto a Boalama, segundo ela explica na glosa correspondente (op. cit., p. 176), seria um nome de nao jeje-mina.
A explicao mais popularizada associa o nome Bogum a outro termo presente na frmula hieronmica em apreo o nome mal, designativo genrico dos africanos islamizados e relaciona sua combinao com um sucesso histrico: a Revolta dos Mals, de 1835. De acordo com Monteiro (1987), seria Bogum o nome de uma casinha, prxima igreja dos Quinze Mistrios (Santo Antnio Alm do Carmo) onde os revoltosos esconderiam munies e dinheiro destinados ao fomento de sua rebelio; um deles, de nome Aprgio, teria logrado refugiar-se no terreiro jeje do Engenho Velho da Federao, que a acolhida deste negro do bogum acabaria por assim identificar. Jehov de Carvalho (1984) relaciona o nome Bogum com um termo fon homnimo, designativo de caixa, ba ou cofre; segundo sua hiptese, um ba com o ouro dos mals teria sido levado para o dito terreiro pelo rebelde fugitivo Joaquim Jeje, um iniciado no culto dos voduns, e a memria deste acontecimento determinaria a designao do templo. Embora tal explicao tenha conquistado adeptos entre os membros do grupo de culto a que a narrativa evocada se refere, outras autoridades desta mesma Casa interpretam Bogum como um tenimo: seria o nome de um vodun da famlia de Dan.
Estudiosos reportam tambm a um tenimo o nome Zoogod, que combinaria o designativo fon para fogo ao onomstico de uma divindade (do panteon ioruba) associada a este elemento, Ogod (PARS, 2006: 201-204); ou corresponderia a uma variante de Azonod (CARVALHO, 2006), nome gbe de um vodun. Do termo rund no foi proposta etimologia provvel. Em suma, o hieronmico do terreiro em foco ainda no foi plenamente explicado do ponto de vista lingstico, etimolgico; mas parece claro que ele encerra referncias a divindades e mostra o efeito de profundos contactos interculturais, alm de uma composio em que so detectveis termos de origem fon gbe.
O rito observado no dito terreiro bem caracterstico, claramente identificado pelos especialistas e pelo povo-de-santo como uma importante variedade litrgica do candombl; exprime-se este reconhecimento ao dizer que o referido terreiro da nao
jeje-marrim, ou jeje mahi. H nessa categorizao uma especificao que convm esclarecer. pertinente dizer que o Bogum um templo jeje, opondo-o assim a casas de candombl ketu ou angola, por exemplo; mas o povo-de-santo assinala a diferena entre as variantes jeje marrim, jeje mundubi, jeje dahom e jeje savalu, categorias que encerram referncias tnicas a subgrupos do mesmo conjunto e tm uma expresso litrgica. Falantes de lnguas ewe-fon da frica Ocidental transportados como escravos para nosso pas ficaram denominados pelo trfico de jejes, minas, ardras ou alads, uids, mahis, mundubis, savalus, anexs, peds, dos quais se tem notcia no Brasil j nos finais do sculo XVIII, conforme assinala Yeda Pessoa de Castro (obra citada, p. 39). Na glosa correspondente a jeje-mundubi, a referida antroploga explica o ltimo termo do composto como derivado do timo Xogbonuv, cujo significado seria filhos de Xogbonu, antigo nome de Porto Novo, capital do Benin, de maioria gun, falante de lngua do mesmo nome, pertencente ao grupo ewe e muito prxima do fon. J o gentlico marrim do composto jeje-marrim designa, segundo a mesma estudiosa, africanos procedentes do norte do Benin, da regio de Savalu, no pas Mahi, trazidos para o Brasil a partir da ltima dcada do sculo XVII; falantes de mahi, lngua do grupo ewe, muito prxima do fon (CASTRO, obra citada, p. 278, s.v. marrim).
Os membros da comunidade religiosa do Bogum reconhecem seu parentesco com o povo-de-santo jeje de diferentes denominaes, com os mals praticantes do rito mussurumim do Recncavo (rito este j desaparecido) e ainda com o grupo de culto da Casa das Minas, do Maranho, com quem j mantiveram contacto. Essa ligao de base tnica bem reconhecida na etnografia (VERGER 1987. FERRETI 1986). Tm conscincia de sua ligao com grupos tnicos africanos como os fon e os ewe: j puderam confraternizar com autoridades ewe da Repblica do Benin e com sacerdotes do vodu haitiano (A TARDE, 31/07/1988. PARS, 2006:241).
A origem do etnnimo jeje ainda muito discutida. J se fez referncia aqui a uma etimologia proposta por Castro (que o deriva de Agedevi); Matory (1999) cita com aprovao a hiptese de Suzanne Blier para quem o dito nome reporta-se ao de uma aldeia, Adjadji, situada nas cercanias de Allada. Segundo Maria Ins Cortes de Oliveira (1977), o termo jeje seria usado em frica para designar os gun de Porto Novo. Os estudiosos hoje descartam a aproximao lingstica de jeje e ewe, assim como a hiptese de Nina Rodrigues (1988) que relacionava aquele termo com o nome
designativo do dialeto gen. Tem ainda defensores a derivao de jeje a partir do ioruba jj (estrangeiro), proposta por Vivaldo Costa Lima (1977:14-15).
O etnnimo jeje tem registro documental no Brasil (j na primeira metade do sculo XVIII) enquanto que em frica o seu uso (nas formas djdji, djdj, gge) s se verifica em documentos a partir de 1864; Matory (op. cit. p. 63-4) acredita que o etnnimo foi difundido em frica por returnees brasileiros, ponderando que Desde o segundo tero do sculo XX, centenas e talvez milhares de jejes brasileiros regressaram ao golfo da Guin: a Lagos, Porto-Novo, Ouidah, Grand Popo, Petit Popo, Agou e Porto Seguro (o ltimo tendo sido fundado pelos retornados mesmos). Estes jejes brasileiros circulavam com regularidade, como frisa o citado antroplogo, entre a Bahia, o Golfo da Guin e Cuba; eles aplicaram o nome jeje a todos os africanos que consideravam seus parentes, apesar de ser pouco provvel que esses parentes assim se identificassem inicialmente. Uma observao se impe: a aceitao desta hiptese de Matory, que se afigura bem fundada, no obriga a descartar a etimologia africana do etnnimo nem o que ela implica: a referncia a um gentlico (ou topnimo) africano relativo a algum grupo (gbe falante) do antigo Daom, termo de alcance etnonmico posteriormente generalizado, mas de qualquer modo alusivo ao postulado de uma origem comum e ao entesouramento de tradies dinamicamente compartilhadas em um crculo cujo raio se podia expandir ao sabor da descoberta de afinidades e correspondncias diversas. Em suma, o fato que, no quadro de um intenso intercmbio cultural, de trocas e fuses intertnicas significativas, tanto em frica como no Brasil, constituiu-se um caracterstico repertrio jeje em cuja gnese a criatividade e o protagonismo da comunidade negra da dispora sem dvida se destacaram. O papel eminente que tiveram os jejes na formao do candombl (cf. PARS, op. cit.) d testemunho do dinamismo de seus sacerdotes e sacerdotisas, que enriqueceram o patrimnio cultural do Brasil.
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A comunidade do Bogum tem clara conscincia da ntima ligao entre seu templo e terreiros jeje-marrim da Cidade de Cachoeira, no Recncavo Baiano. Estudos etnogrficos realizados tanto na dita cidade como em Salvador recolheram depoimentos de antigos sacerdotes deste rito que atribuem aos mesmos personagens um papel proeminente, em seus primrdios, tanto no terreiro do Bogum quanto no que ficou
conhecido como Roa de Cima em Cachoeira (assim denominado por se ter instalado em uma elevao, na que viria a ser a Fazenda Altamira; segundo Nascimento (1999) e Marcos Carvalho (2006), a Roa de Cima seria continuao do Candombl do Bited, ou Oba Td, outrora localizado na rea cachoeirana da Recuada): so citados nesta condio um sacerdote chamado Kixareme, ou Tixarene (cf. CARVALHO, obra citada; ver em especial as pginas 31 e 32) e a venervel sacerdotisa Ludovina Pessoa, membro da Irmandade da Boa Morte, iniciadora de Maria Emiliana da Piedade (antiga dirigente do Bogum), me carnal de Maria Lusa Piedade, a famosa Maria Ogorensi, fundadora do Xw Seja Hund, terreiro que, por algum tempo, funcionou paralelamente Roa de Cima e passou a concentrar o jeje marrim cachoeirano depois da extino da dita Roa. Iniciada por Maria Ogorensi, a sacerdotisa Maria Romana Moreira a Venervel Possussi (Kpsusi) Romaninha, tambm conhecida como Romana de Possu Beta Poja teve papel importante tanto no templo cachoeirano quanto no Bogum, onde, juntamente com a Venervel Maria Valentina dos Anjos [a famosa Me Runh (Don Hunyo), veio a ser, antes da ascenso desta ltima ao supremo sacerdcio titular do alto posto de Der, que na hierarquia do culto jeje o segundo mais elevado, subordinando-se apenas ao de Don ou Gaiaku (me-de-santo).
Os etngrafos esto acordes, pois, em reconhecer a mesma origem ao Bogum e aos terreiros jeje-marrim de Cachoeira, embora haja controvrsias no que toca precedncia. tambm possvel que o antigo candombl da cachoeirana Roa de Cima e o Bogum tenham sido criados na mesma altura, com a participao de sacerdotes e sacerdotisas que mantinham relaes de amizade e colaborao religiosa fundada em sentimentos de co-pertinncia tnica e/ou em vnculos msticos, tornando assim aparentados esses grupos de culto. A tradio oral liga aos primrdios de ambos os terreiros os nomes de notveis sacerdotes: o caso dos citados Xareme (ou Kixarene) e Ludovina Pessoa, ditos colaboradores na obra mstica. Todavia, enquanto alguns afirmam que Ludovina Pessoa teria sido a primeira me-de-santo do jeje marrim, autoridades do Bogum o contestam, dando-a apenas como uma das mais antigas (AUADA, 1987: depoimento da Don Lokossi, Me Nicinha do Bogum; cf. PARS, 2006:186 e nota 57).
De qualquer modo, se faltam registros seguros sobre a fundao do Bogum e seus protagonistas, fora reconhecer-lhe antiguidade mais que secular. Ludovina Pessoa,
muito provavelmente a fundadora da cachoeirana Roa de Cima (instalada na dcada de 1860) tinha estreita ligao com o Bogum; h de ter sido, no mnimo, uma autoridade acatada neste terreiro, onde importantes sacerdotes da comunidade a disseram uma sua antiga me-de-santo. Prevalece no Terreiro do Bogum a tese de que ela no foi a primeira a exercer a o sacerdcio supremo, mas a memria da Casa no tem registro de nome de antecessores seus. Luis Nicolau Pars (op. cit. p. ) encontrou, em peridicos da dcada de 1870, notcia de autoridades do Bogum contemporneas de Ludovina Pessoa; mas essas autoridades no so lembradas na Casa e as notcias coligidas pelo pesquisador no permitem certeza quanto posio hierrquica dos personagens citados neste grmio religioso.
consenso que depois dos tempos de Ludovina houve um grande interregno. A mede-santo de que a comunidade do Bogum guarda lembrana situando-a depois de Ludovina Pessoa deixou-lhes na memria o prenome, Valentina, e a designao do seu orix patrono, seu dono de cabea, Adaen (depoimento da Venervel Runh a pesquisadores do CEAO, ficha 1, 1961). Ela teria pontificado entre a penltima dcada do sculo XIX e comeos da segunda dcada do sculo XX. Outro interregno, de quase duas dcadas, precede a regncia, entre 1937 e 1950, da Don Maria Emiliana da Piedade, dedicada ao vodun Agu; segundo os depoimentos colhidos, Maria Romana Moreira, a famosa Romaninha de Kpo, em seguida exerceu a liderana no Bogum, enquanto Der; teria, para alguns, assumido o posto supremo de Don por um breve perodo, pontificando no terreiro entre 1953 e 1956; mas quanto a isso no h unanimidade. A partir da me-de-santo seguinte, a linha de sucesso clara: Valentina Maria dos Anjos, Runh, consagrada a Sogbo Adan, de 1960 a 1975; Evangelista dos Anjos Costa, Lokossi, mais conhecida como Me Nicinha, consagrada a Loko (segundo indica seu hieronmico), com regncia de 1978 a 1994; e finalmente a atual Don, Zaildes Iracema de Mello, hieronmico Nandoji, consagrada a Azonsu, popularmente conhecida como Me ndia, neta da Venervel Runh. Me ndia foi iniciada pela Veneranda Lokossi, tendo como Pai Pequeno (co-iniciador) o Humbono (pai-de-santo, gro sacerdote no rito jeje) Vicente Paulo dos Santos, o famoso Pai Vicente do Matatu, iniciado pela Venervel Maria Romana Moreira. Nandeji veio a ser a dofona do seu barco (ou seja, a primignea, a primeira na ordem de iniciao, em um grupo de nefitos recolhidos simultaneamente clausura inicitica); desse barco, alm dela, fez parte ainda a sacerdotisa Kelba Carvalho, consagrada ao vodum Agontolu.
Me ndia, Nandeji, foi indicada para suceder sua tia (irm do pai) Nicinha, a Venervel Evangelista dos Santos Costa, Gamo Lokossi, atravs do rito divinatrio de If celebrado pelo Oluw Agenor Miranda Rocha no dia 30 de maio de 2002 e assumiu o cargo em 11 de agosto de 2003, quando contava trinta e seis anos de idade. natural de Salvador, filha carnal de Antnia Firmina de Melo e Amncio Melo, este ltimo um famoso og do Bogum. enfermeira de profisso, mas hoje dedica-se apenas a sua atividade sacerdotal.
Uma frao nuclear do grupo eclesial do Bogum parece ter-se configurado com base no desenho de uma parentela (no sentido estrito do termo), ou, pelo menos, tendido a apoiar-se no arranjo concreto de uma parentela, embora esta se tenha acomodado ao esquema de uma articulao de outro tipo, cifrada no cdigo do parentesco simblico que estrutura a famlia-de-santo; a regra deste segundo sistema, que institui a decalagem entre a linha de descendncia natural direta e a linha de transmisso inicitica permite uma diferenciao sutil, mas no impede a sucesso de consangneos em cargos sacerdotais, antes a viabiliza pelo recurso a iniciadores que, embora ascendentes de ego em termos msticos, no o so na ordem parental (pelo menos no tocante ao campo linear: colaterais podem funcionar neste papel mistaggico). O esquema viabiliza, tambm, alianas msticas entre os grupos eclesiais do mesmo rito, ou to somente do mesmo culto (embora de rito diferente), desde que os co-iniciadores eleitos entre nooriundos da Casa ou mesmo da nao sejam capacitados, pelo conhecimento dos preceitos adequados, ao exerccio da iniciao no cdigo litrgico do templo (a propsito deste tipo de ligao, ver OLIVEIRA, 2006). claro que essas ligaes iniciticas podem desenhar-se tambm no interior do grupo eclesial mais restrito do Terreiro, transcendidos os limites do campo linear da parentela de sangue (da parentela stricto sensu).
Em um terreiro como o do Bogum, o grupo de culto mais restrito formado por nefitos e iniciados na Casa. Estes podem ser tanto sacerdotes vodunsi (passveis de entusiasmo) como ministros religiosos infensos ao transe entusistico, com os papis de og (masculino) e ekede (feminino). Somam-se-lhes freqentadores habituais e clientes (pessoas que acorrem ao templo em busca de servios religiosos para remdio de suas aflies e/ou que participam das suas festas pblicas por devoo). O grupo eclesial conforma a famlia-de-santo; o parentesco simblico estruturador desta com freqncia
lhe estende os vnculos de modo a compor uma rede que transcende os limites do Terreiro. O princpio da senioridade tem aplicao no desenho da hierarquia em todo o conjunto eclesial, vigendo mesmo no interior dos grupos de nefitos recolhidos clausura, identificados segundo a ordem na qual surgem suas divindades nas manifestaes entusisticas do initium por ordinais em lngua fon, empregados nos terreiros de diversas naes do candombl. Mas h tambm uma estrutura de cargos que correspondem ao desempenho de papis litrgicos especficos, correspondente a funes rituais e postos de autoridade.
A Venervel Don Nandeji, Me ndia, tem hoje o comando supremo do Terreiro. O posto de Der (Derevitu) atualmente ocupado pela sacerdotisa Zildete Oliveira de Souza, Odesi, que foi iniciada pela falecida Maria Valentina dos Anjos (a clebre Don Runh de Sob); o reverendo sacerdote Ernane ngelo de Melo, irmo da Don, vem a ser o Runt (Hunt), secundado pelo filho carnal desta, Rundev (Hundev), Antonio Raimundo Melo Soares. O titular do primeiro desses cargos acumula funes de chefe da orquestra sagrada e sacrificador; o titular do segundo tem tambm posto de destaque na sagrada orquestra. Acha-se no posto de Pejigan (responsvel pelos altares e principal sacrificador) o venervel Everaldo Duarte, iniciado pela falecida Me Nicinha, a Don Lokossi (de quem vem a ser sobrinho). Detm o ttulo e os encargos de Obagig [Agbajign, segundo sacrificador (CARVALHO, 2006: 147)], o venervel Luis Carlos de Oliveira de Souza, tambm iniciado por Me Nicinha.
O grmio mstico do Bogum tambm confere ttulos honorficos a pessoas gradas iniciadas em outros terreiros: um seu famoso oloi o historiador Jaime Sodr, og de uma Casa de rito angola.
O grupo de culto do Bogum conta hoje com cerca de 150 (cento e cinqenta) membros e est a crescer. So incontveis os freqentadores deste templo nas grandes festas pblicas. Seus visitantes afluem de diversas regies do pas e tambm do exterior.
impossvel saber quantas pessoas j foram iniciadas neste terreiro secular, ou mesmo o nmero exato de barcos que a foram preparados. Pelos clculos de sua atual dirigente, entre a regncia da Venervel Valentina e os dias de hoje se contariam quase sessenta desses grupos iniciticos. Ela mesma produziu trs; sua antecessora (Me
Nicinha), quatro; a Don Runh somou quinze; a Venervel Emiliana de Agu, cerca de trinta; cerca de sete ou oito se distribuiriam entre a regncia da Venervel Romaninha de P e a da Venervel Valentina.
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O ZOOGOD BOGUM MAL RUND tem como patronos divinos os vodus Bafono Deca e Ajonsu (var. Azonsu), que lhe regem a cumeeira. A divindade suprema a cultuada com o nome de Mawu e se atribui grande eminncia ao vodun Lissa (Olissassa, Oliss). O calendrio das festas pblicas prescreve a abertura do terreiro, no incio de cada ano, com festa dedicada a Bafono Deca; nas vsperas do ano novo, tem lugar o Oss de Oliss, ritual preparatrio restrito comunidade dos iniciados. A primeira semana de janeiro dedicada ao culto de Bafono Deca, mas no sexto dia deste ms (o Dia dos Reis) celebra-se Azanod. Consagra-se a Loko a segunda semana do ano. Celebram-se em datas mveis festas dedicadas:
(1) aos vodus Gum (Gu), Agangatolu, Agu e Loguned; (2) aos vodus da linha ou famlia dos Kavion (Kavionus): Sob (Sogbo), P (Kp), Bad, Adaen (var. Adan), Ajiripap (Ajiribab), Afonj; (3) ao vodum Aziri (Aziritobossi); (4) ao vodum Hoho; (5) ao vodum Ajonsu (festa especialmente dedicada ao patrono da atual Don, o Ajonsu de Me ndia); (6) aos vodus Ajonsu e Nan.
Tem lugar em 31 de dezembro o rito propiciatrio chamado S (var. oss) de Lissa, que consiste basicamente na purificao dos altares e dos sacra do peji (ou assentamento) do vodum mximo, como uma liturgia preliminar que viabiliza a abertura do ano, assim inaugurado por Bafono Deca. Os ritos festivos regulares ou cannicos do Bogum transcorrem, quase todos, nos meses de janeiro e fevereiro; sempre em fevereiro celebrado o Ayixosu ou Olugbaj (a grande festa de Ajonsu / Omolu, com a comunho de um sacro banquete). A celebrao dos Caboclos tem lugar numa ocasio especial: o dia Dois de Julho, em que se festeja a independncia da Bahia a vitria na campanha que libertou definitivamente o Brasil de Portugal. Trata-se, pois, de uma data dedicada a
uma grande festa cvica, a qual tem uma dimenso religiosa para os adeptos do candombl da Bahia, pois estes consideram sagrados os Caboclos cujas esttuas so reverenciadas na efemride (SERRA, 1999: 123-266). A celebrao dos Caboclos no Bogum s no ocorre no Dois de Julho quando acontece de esta data recair numa segunda-feira, ou numa sexta-feira, dias da semana dedicados de forma exclusive ao vodum mximo Lissa e ao vodum Ajonsu, patrono do Bogum.
Essa liturgia tem uma face pblica, mas sempre envolve ritos de que apenas iniciados podem participar (com graus de participao diferentes conforme a seniority e a posio hierrquica do sujeito no grupo de culto).
Precede as festas em que so celebrados os vodus no templo do Bogum uma viglia sacra (o zandr). Tambm caracterstico da liturgia jeje a observada o rito que envolve a realizao de uma procisso interna com evolues e ofertrios feitos ao p de rvores sagradas, na rea do Terreiro (o boit). Um rito processional externo ocorre na abertura da festa de Bafono Deca, precedida por um rito catlico: a celebrao da missa em honra de So Bartolomeu, na Igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos. Da igreja, o grupo de fiis segue para o Terreiro de Jesus, de onde parte, em nibus fretados, at o sop da Ladeira do Bogum; a chegando, os fiis deixam os veculos e sobem a ladeira a p. frente do cortejo, iniciados seniores levam as imagens de So Bartolomeu e So Jernimo. A procisso saudada pelos moradores da rua, que para tanto se postam s portas e janelas de suas casas. Ao chegar ao barraco do Bogum, o cortejo saudado por toques de atabaque, sucedendo-se, geralmente, o transe de filhosde-santo.
O calendrio litrgico deste grande terreiro pode apresentar algumas variaes no curso dos anos, mas sua estrutura bsica constante (PARS, 2006). Os festivais assim programados constituem apenas uma parte da liturgia interna do templo. Celebram-se a outros ritos de que a ocasio no marcada no calendrio, a exemplo dos iniciticos e dos atos propiciatrios que assinalam a vida mstica dos sacerdotes da Casa (obrigaes peridicas ou eventuais), sem falar daqueles que so eventualmente celebrados por determinao dos voduns, em benefcio de toda a comunidade; neste caso, o prdromo regular vem a ser o jogo divinatrio. Este tambm oficiado pela Don para atender a demandas externas que podem originar a dedicao de oferendas e a realizao de
Oferendas especiais so feitas pela gente do Bogum em reas extra muros de seu templo consideradas sagradas por todo o povo-de-santo: presentes dedicados a divindades femininas no Dique de Toror e no mar, por exemplo, ou oferendas a vodus e caboclos em trechos de mato (como o Parque de So Bartolomeu, v. g.), ou ao p de rvores e fontes.
O grande rito fnebre da liturgia jeje, o zelim (ou sirrum) corresponde ao axex dos terreiros nags e ao macondo dos angolas (CACCIATORE, 1998, s. v. Sirrum. Cf. Lopes, 2004, s. v. Sirrum). Celebra-se por ocasio do falecimento de iniciados de elevada posio hierrquica e se acompanha de cuidados de luto cifrados em normas prescritivas e proscritivas rigorosamente observadas. Notabilizam-se os terreiros jejes por este rigor. Quando sucede o bito do sacerdote ou sacerdotisa que dirige a Casa, observa-se um longo intervalo de sete anos de luto em que so suspensas as principais atividades do grmio mstico, em particular seus ritos pblicos. O interdito pesa, fundamentalmente, sobre a liturgia mais ostensiva da comunidade; no perodo assim tabuado apenas se realizam do modo mais discreto possvel obrigaes consideradas indispensveis, exigidas pelos voduns. As complexas injunes que cercam a designao de um novo dirigente para o grupo de culto faz com que se intercalem regncias, por vezes longas, entre os pontificados dos titulares efetivos. A histria do Bogum bem o mostra.
A etnografia especializada reconhece caractersticas distintivas do rito jeje (e da variante jeje mahi) do candombl baiano, embora no haja estudos exaustivos sobre o assunto. Estudos etnolingsticos do idia do repertrio formular das verbalizaes rituais, mas o cdigo desse registro particular (da lngua de santo jeje) ainda no foi objeto de exame particularizado. O trabalho de estudiosos como Merriam (1967) Berrague (1976) e Vatin (2005) permite certa caracterizao do idioma musical do rito desta denominao. Faltam ainda abordagens etnolgicas da linguagem coreogrfica que lhe corresponde, mas ela facilmente identificada por sacerdotes peritos dos diversos ritos do candombl, que reconhecem e proclamam o valor do thesasurus litrgico do Bogum.
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Para represent-la civilmente, a comunidade do Bogum fundou, em 1937, a Sociedade Fiis de So Bartolomeu. Na dcada de 1970, sob a presidncia do Venervel Og Edvaldo dos Santos Costa, esta Sociedade passou por uma reestruturao, tendo seus estatutos publicados no Dirio Oficial (nmeros 10.777 e 10.778, de 16 de outubro de 1977); depois de um lapso em que ficou inativa, foi novamente reorganizada em 1983, quando assumiu sua presidncia o Venervel Og Ldio Pereira dos Santos, ento decano de seus pares. No presente momento, est em processo uma transformao maior da representao civil do terreiro do Bogum: seus membros decidiram em assemblia criar, para tanto, nova entidade, a Associao dos Fiis Jeje Mahin, cujos estatutos aguardam registro em cartrio.
Essas mudanas no significam que a comunidade tenha suspendido ou paralisado suas iniciativas no plano civil. Nas ltimas dcadas, ela protagonizou importantes seminrios e encontros (a exemplo da Primeira Semana de Palestras sobre o Povo Mal e suas Influncias, realizada em julho de 1986); tem participado combativamente de campanhas contra a intolerncia religiosa e o contra o racismo; tem marcado presena, de modo significativo, em atividades culturais diversas do povo-de-santo,
principalmente no INTECAB. Recentemente (em 2006), o Bogum estabeleceu parceria com a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), com a Fundao Palmares e com dois terreiros vizinhos (o Tanurijunara e o Il Ob do Cobre) para a realizao do Projeto Roda Baiana Um Intercmbio Africano no Engenho Velho: Tradio e Contemporaneidade, Trabalho e Cultura.
Sacerdotes e sacerdotisas do Bogum tm seus nomes consagrados entre os mais ilustres do povo-de-santo. So figuras legendrias suas Dons Me Emiliana, Me Runh, Me Nicinha, assim carinhosamente designadas e sempre lembradas neste meio, em que tambm continuam a ser celebradas a Der Romaninha de P, a ekede Santa e venerveis ogs como Manoel da Silva, Romo, Amncio de Melo, entre outros muitos cuja preciosa memria integra o patrimnio simblico da comunidade.
O Bogum e o rito jeje so citados em vrias obras significativas da etnografia dos cultos afro-brasileiros, v.g. nos estudos de Melville J. Herskovits (1937), Artur Ramos (1937), Aydano do Couto Ferraz (1941), Pierre Verger (1987, 1999), Roger Bastide (1971, 1974), Correia Lopes (1940), Vivaldo da Costa Lima (1976, 1977), Joo Jos Reis (1991, 2003), Yeda Pessoa de Castro (1981, 2002), Antonio Monteiro (1987) e vrios outros, sem falar na bibliografia sobre os povos africanos de que os jejes brasileiros herdaram tradies (ver, por exemplo, entre muitos outros, HERSKOVITS, 1938. AKINGJOBIN, 1967. MEDEIROS, 1984. BLIER, 1995) e sobre o dilogo atlntico entre eles e os afro-americanos (MATTORY, 1999a.). Mas s recentemente o Bogum, em particular, foi objeto de um estudo (aqui multicitado) que, embora sem cingir-se a este terreiro, o focalizou mais de perto, ao abordar a histria e ritual da nao jeje na Bahia (como reza seu subttulo). Trata-se da obra mais completa sobre seu assunto, de autoria do Professor Doutor Luis Nicolau Pars (2006).
A percia da qual deriva este laudo facilmente comprova que o templo ZOOGOD BOGUM MAL RUND sede de uma de uma instituio que goza de ricas tradies e detm uma memria histrica digna do mximo respeito; que educa seus membros com base em valores elevados e os difunde generosamente; que presta servios religiosos e outros populao e preserva bens culturais de elevada importncia. O valor monumental deste templo est ligado histria de um povo que teve destacada importncia na produo da riqueza do Brasil e crnica de grandes lutas pela liberdade. O presente laudo recomenda, pois, o tombamento do ZOOGOD BOGUM MAL RUND como patrimnio histrico e etnogrfico do Brasil.
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Obs. Colaboraram na pesquisa que instruiu o presente laudo a sociloga Maria Cristina Pechin, o antroplogo Serge Pechin e a arquiteta Regina Maria Nunes Martinelli Serra.