Felicidade
Felicidade
Felicidade
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando
por dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo
nvel."
Folha de rosto
D a d o s I n te r n a c io n a is d e Ca ta lo g a o n a P u b lic a o ( CI P )
W187f Wallace, B. Alan.
Felicidade genuna: meditao como o caminho para a
realizao/B. Alan Wallace; traduo Jeanne Pilli; prefcio Sua
Santidade o Dalai Lama; apresentao Lama Padma Samten
Terespolis, RJ: Lcida Letra, 2015.
208 p. ; 21 cm.
ISBN 978-85-66864-14-4
1. Meditao - Budismo. 2. Budismo. 3. Autorrealizao. 4.
Conscincia. I. Pilli, Jeanne. II. Bstan-dzin-rgy a-mtsho, Dalai
Lama XIV, 1935-. III. Samten, Lama Padma. IV. Ttulo.
CDU 294.3
CDD 294.34
n d ic e p a r a c a t lo g o s is te m tic o :
1. Meditao : Budismo
294.3
(Bibliotecria responsvel: Sabrina Leal Araujo CRB 10/1507)
Sumrio
Capa
Folha de rosto
Crditos
Prefcio de sua santidade o dalai lama
Prefcio edio brasileira
Agradecimentos
Introduo
Parte 1. Refinando a ateno
1 Ateno plena respirao
2 Estabelecer a mente em seu estado natural
3 A conscincia de estar consciente
Parte 2. Insight por meio da ateno plena
4 Ateno plena ao corpo
5 Ateno plena aos sentimentos
6 Ateno plena mente
7 Ateno plena aos fenmenos
Parte 3. Cultivando um bom corao
8 Bondade amorosa
9 Compaixo
10 Alegria emptica e equanimidade
Parte 4. Explorando a natureza da conscincia
11 Bodicita: o esprito do despertar
AGRADECIMENTOS
Este livro baseado em uma srie de palestras que proferi em Santa Brbara, ao
longo do outono de 2000 e da primavera de 2001. As palestras foram gravadas e
transcritas por muitos voluntrios, alunos meus, a quem sou profundamente grato.
A transcrio bruta foi editada na forma de livro por Brian Hodel e a seguir fiz
vrias alteraes, s quais ele mais uma vez deu polimento. Tem sido um prazer
trabalhar com Brian, e agradeo por seu entusiasmo incansvel e por sua
habilidade como editor. O manuscrito foi ento enviado para a minha agente,
Patricia van der Leun, que me orientou com enorme pacincia para escrever
uma primeira verso do livro e refinar o meu estilo de escrita. Foi graas a ela
que o manuscrito foi submetido John Wiley & Sons e, devido ao gentil interesse
por parte de Thomas Miller, editor executivo de livros de interesse geral, foi
aceito para publicao. Tive muito prazer em trabalhar com Tery n Johnson,
editora da John Wiley & Sons que revisou o manuscrito e fez outras sugestes
teis. Agradeo a todos aqueles que contriburam para este livro, especialmente
aos meus muitos mestres, incluindo Sua Santidade o Dalai Lama, Geshe Rabten e
Gy atrul Rinpoche, sem os quais a minha vida no Darma e este livro, que foi
resultado dela, teriam sido impossveis. Por fim, gostaria de expressar os meus
agradecimentos pelo apoio amoroso de minha esposa, Vesna A. Wallace, e de
minha enteada, Sara, que tm trazido tanta alegria minha vida.
Introduo
A O L O N G O D O S 3 4 A N O S E M Q U E T E N H O estudado e praticado o
budismo, fui treinado sob a orientao de 60 professores do Oriente e do
Ocidente. A maioria dos meus mentores espirituais tm sido tibetanos, mas
tambm estudei com mestres de meditao treinados nas tradies Teravada da
Birmnia, Tailndia e Sri Lanka. Entre a ampla gama de prticas meditativas a
que fui exposto, no encontrei nenhuma mais benfica do que essas cinco
meditaes budistas:
Quiescncia meditativa;
As quatro aplicaes da ateno plena (ao corpo, sensaes, mente e objetos
mentais);
As quatro qualidades incomensurveis (compaixo, bondade amorosa, alegria
emptica e equanimidade);
Ioga dos sonhos;
Dzogchen, a Grande Perfeio.
do corao.
Creio que todos os seres humanos anseiam pela felicidade genuna, uma
qualidade de bem-estar mais profundo do que o prazer, entretenimento ou
estmulo intelectual passageiros. No budismo, a fonte desse anseio profundo que
o grande mestre tibetano do sculo XIV Tsongkhapa chamou de nosso eterno
anseio est no nvel mais profundo de nosso ser, a natureza de Buda ou
conscincia primordial. Essa busca pela felicidade genuna contrasta fortemente
com a nossa atrao por prazeres fugazes. No h nada de errado em saborear
os prazeres da vida, os prazeres que experimentamos por estarmos com amigos
queridos e com pessoas que amamos, por desfrutarmos de uma refeio
deliciosa ou de um clima maravilhoso, prazeres que so despertados por
estmulos provenientes dos cinco sentidos fsicos. Podemos tambm
experimentar prazeres que no requerem estmulos sensoriais, como, por
exemplo, quando temos uma lembrana agradvel. Todavia, quando o estmulo
removido, o prazer desaparece. A felicidade genuna, por outro lado, no
acionada por estmulos.[2] Aristteles chamou essa felicidade de eudaimonia e a
comparou com a bondade humana, com a mente trabalhando de acordo com a
virtude, especialmente com a melhor e mais completa virtude. Santo Agostinho,
o grande filsofo e telogo cristo do sculo V, chamou a felicidade genuna de
alegria oferecida pela verdade, uma sensao de bem-estar que surge da
natureza da prpria verdade. No entendimento budista, essa no uma verdade
que aprendemos nem uma verdade que est fora de ns. a verdade que somos
em nossa natureza mais ntima.
Nas sociedades modernas, h uma fixao generalizada naquilo que os
budistas chamam de as oito preocupaes mundanas: (1) buscar a aquisio de
bens materiais; (2) tentar no perder aquilo que se tem; (3) esforar-se para
obter prazeres dependentes de estmulos; (4) fazer o seu melhor para evitar a dor
e desconforto; (5) buscar elogios; (6) evitar o abuso; (7) ansiar por uma boa
reputao; (8) temer a desonra. Esforamo-nos pelo que mundano, pelas coisas
boas da vida, no s porque trazem prazer, mas porque so smbolos do que
realmente queremos. No h nada intrinsecamente errado com esses estmulos
prazerosos, mas podemos ter tudo isso e ainda assim nos sentir insatisfeitos.
Ento, pelo que verdadeiramente ansiamos? O Buda sugeriu que o nosso mais
profundo desejo de felicidade genuna no se baseia em conseguir ajustar as
circunstncias externas, mas em algo que surge de dentro, livre dos efeitos da
boa sorte e da adversidade. Portanto, na prtica budista, em nossa busca pela
felicidade genuna, cultivamos o que s vezes chamado de renncia, embora
eu prefira o termo esprito de emerso, que a minha traduo do termo
tibetano ngejung. Parte da experincia desse esprito de emerso o
reconhecimento de que a felicidade genuna no encontrada em meros
estmulos prazerosos, mas na dissipao das causas internas de sofrimento e
mentor espiritual qualificado e pea que ele ou ela aponte a natureza de sua
prpria conscincia prstina, conhecida em tibetano como rigpa. Investigue e
identifique a essncia da prpria conscincia em seu estado natural, antes que ela
se torne conceitualmente estruturada, distorcida e obscurecida. Ento,
permanea nesse estado. Mantenha essa conscincia ao caminhar, falar, comer
ou dirigir sempre e em toda parte. Ao sustentar o reconhecimento da
conscincia prstina que nunca foi distorcida ou afligida de nenhuma forma, voc
descobre que ela primordialmente pura. Essa conscincia no algo a ser
desenvolvido ou alcanado. Ela est presente neste momento. Ento,
simplesmente apanhe o fio da pureza absoluta de sua prpria conscincia e
sustente-o ininterruptamente. Ao fazer isso, ela se tornar cada vez mais clara e o
caminho se abrir para voc por si mesmo. Os primeiros quatro tipos de
meditao apresentados neste livro so preparaes para esse estgio de
culminncia.
Em resumo, a parte I deste livro explica trs mtodos para o
desenvolvimento da quiescncia meditativa: ateno plena respirao;
estabelecer a mente em seu estado natural; cultivar a conscincia de
simplesmente estar consciente. A parte II aborda as quatro aplicaes da ateno
plena: ao corpo; s sensaes; mente; aos fenmenos em geral. Esses so os
ensinamentos budistas fundamentais sobre o cultivo do insight contemplativo. A
parte III discute as quatro incomensurveis: bondade amorosa; compaixo;
alegria emptica; equanimidade. Elas so o caminho do corao para a
felicidade genuna. A parte IV comea com uma explicao sobre o esprito do
despertar o anseio altrusta de alcanar a iluminao para beneficiar o mundo
, prosseguindo para as prticas diurnas e noturnas de ioga dos sonhos e,
finalmente, o Dzogchen.
Treinando a ateno no cultivo da quiescncia meditativa e explorando as
quatro aplicaes da ateno plena, as quatro incomensurveis, a ioga dos sonhos
e o Dzogchen, temos a oportunidade de liberar a conscincia absolutamente pura
do presente imediato e nela repousar. Essa a verso budista do ir em busca de
sua felicidade. No significa ir em busca de estmulos prazerosos. Pelo
contrrio, refere-se a algo que anterior a estmulos prazerosos, algo que supera
o agradvel e o desagradvel, algo mais profundo. Todos ns j o vislumbramos
e, portanto, no devemos pensar que seja algo misterioso e difcil de realizar.
Suspeito que no haja ningum que no tenha experimentado o seguinte: um
momento em que sentiu o seu corao pleno, em que esteve completamente
relaxado, com um sorriso no rosto e permeado por uma sensao de bem-estar
e sem ter a menor ideia do porqu. Nada especialmente bom havia acontecido
antes disso. Voc no estava pensando em nada de bom, no estava provando
nada de bom e no havia nenhum estmulo prazeroso. No entanto, ali estava: o
seu corao, o seu prprio ser, oferecendo-lhe a sua prpria alegria. Esse o
O S M T O D O S PA RA RE FI N A R A AT E N O j estavam
desenvolvidos em um grau muito sofisticado h 2.500 anos, na ndia, nos tempos
de Gautama, o Buda. Verificou-se que esses estados avanados de samadhi, ou
concentrao meditativa, produziam estados profundos de serenidade e bemaventurana, e muitos contemplativos cultivaram esses estados como fins em si
mesmos. A grande inovao de Gautama foi avanar no desenvolvimento desses
mtodos de samadhi, e ento aplicar essa ateno refinada e focada
investigao experimental direta da mente e sua relao com o resto do
mundo. Desse modo, o cultivo de shamatha, ou quiescncia meditativa, anlogo
ao desenvolvimento do telescpio para a observao precisa e contnua de
fenmenos celestes. O nico instrumento que temos para observar diretamente
os fenmenos mentais a conscincia mental, e ela aperfeioada para tornarse uma excelente ferramenta para o desenvolvimento de shamatha.
PRTICA
Em nossas prticas para refinar e equilibrar a ateno, comearemos com a
estratgia budista de passar do grosseiro para o sutil, do fcil para o mais difcil.
Essa abordagem se inicia com a ateno plena respirao, segue para
estabelecer a mente em seu estado natural e se conclui com a prtica de
simplesmente estar consciente de estar consciente. Em cada uma dessas prticas,
comeamos a sesso adotando uma postura corporal apropriada e cultivando trs
qualidades, medida que estabelecemos o corpo em seu estado natural:
relaxamento, quietude e vigilncia.
Relaxamento
H duas posturas que eu recomendaria para essa prtica: sentado ou deitado.
Em geral, a postura melhor e mais recomendada sentado sobre uma almofada,
de pernas cruzadas. Se essa postura for muito desconfortvel, voc pode se sentar
em uma cadeira, com os ps apoiados no cho. Uma outra postura menos
PRTICA
Repouse o corpo em seu estado natural, como descrito no captulo anterior.
Para essa prtica, importante deixar os olhos abertos, dirigindo o olhar
livremente ao espao sua frente. Pisque sempre que desejar e deixe que os
seus olhos permaneam relaxados. Embora deixar os olhos abertos possa parecer
um pouco estranho caso voc nunca tenha meditado assim antes, tente se
acostumar. No permita que os seus olhos se tornem tensos deixe-os como se
estivesse sonhando acordado. Nessa prtica, a sua cabea pode ficar
ligeiramente inclinada. A lngua pressiona suavemente o palato. Ao longo dos 24
minutos dessa sesso, o seu corpo deve permanecer vontade e sem nenhum
movimento alm dos movimentos naturais da respirao. Traga mente as trs
qualidades da postura: relaxamento, estabilidade e vigilncia.
Antes de aventurar-se na prtica principal, permanea por alguns instantes
em meditao discursiva, trazendo mente a sua motivao para a sesso. Qual
o seu anseio mais profundo e significativo no contexto mais amplo de sua
prtica espiritual ou de sua vida? Como voc poderia encontrar maior significado,
contentamento, satisfao e felicidade em sua vida? Essa aspirao pode se
referir no s ao seu bem-estar individual, mas pode incluir todos aqueles com
quem voc tem contato, todo o mundo. Encorajo voc a trazer mente a sua
motivao mais significativa. Isso enriquecer a sua prtica.
Vamos comear a estabilizar esse maravilhoso instrumento a mente ,
aperfeioar o seu foco e a sua ateno, contando 21 respiraes. Em um modo
de operao puramente observacional, foque a sua ateno mais uma vez nas
sensaes tteis produzidas pela entrada e sada do ar pelas narinas. Direcione
tambm a sua conscincia introspectiva para o estado de sua mente, observando
se est agitada, calma, sonolenta ou alerta. Deixe que a ateno plena
respirao e que a vigilncia introspectiva da mente sejam acompanhadas de
uma sensao de estar profundamente vontade e relaxado. Com essa tcnica
simples, no incio da prxima inspirao, conte um mentalmente, e a seguir
apenas observe as sensaes tteis da inspirao e da expirao. No incio da
prxima inspirao, conte dois. Desse modo, siga de um a 21 sem perder a
contagem. Quando os pensamentos surgirem, apenas deixe-os passar, libere-os a
cada expirao e direcione a ateno de volta para a respirao.
Agora destacaremos um segundo aspecto dessa prtica: aumentar a
vivacidade, estabelecendo a mente em seu estado natural. Temos seis portas de
percepo, incluindo os cinco sentidos fsicos de viso, audio, olfato, paladar e
tato. Mas ainda temos uma outra via, uma percepo direta de um outro reino da
24 minutos.
Para encerrar essa sesso, dedique qualquer benefcio o que quer que tenha
sido significativo nessa prtica para a realizao de suas aspiraes por seu
prprio bem-estar e felicidade, e pelo bem-estar e felicidade de todos aqueles
que o cercam. Que o maior bem possvel possa resultar dessa prtica.
usar um objeto claro para a mente, como a respirao. Mas nessa tcnica de
observar a mente voc passa para algo mais sutil, em que a estabilidade e
vivacidade da ateno no esto ligadas a um objeto especfico. Voc traz a
conscincia para o domnio da sua mente e ento a estabiliza vividamente,
claramente , e o que quer que aparea surge e passa de forma no obstruda.
Na cacofonia da mente, a conscincia em si permanece estvel. Usando uma
metfora citada por Sogy al Rinpoche, a sua conscincia como um anfitrio
gentil em meio a convidados indisciplinados. Os convidados vm e vo, podem s
vezes brincar de guerra de comida, mas o anfitrio permanece calmo e sereno.
Mesmo quando voc est observando o que surge no espao de sua mente,
ainda h objetos da conscincia. A dicotomia sujeito/objeto mudou da ateno
subjetiva respirao objetiva para uma conscincia subjetiva dos fenmenos
objetivos que surgem no domnio da mente. Portanto, voc est observando
pensamentos e lembranas dentro do domnio da mente como objetos da
conscincia. Assim como na ateno plena respirao, voc pode cultivar a
estabilidade e a vivacidade da ateno, mas sem controlar a sua mente como
estava fazendo quando praticava ateno plena respirao. Nessa prtica voc
no est tentando modificar, julgar ou se identificar com o contedo da mente. A
estabilidade e a vivacidade ainda esto presentes, mas elas so qualidades da
conscincia subjetiva e no dos contedos objetivos da mente, que vm e vo, s
vezes de forma catica. medida que a sua ateno se torna mais estvel, voc
vai se tornando mais familiarizado com essa estabilidade subjetiva mesmo em
meio agitao mental. Sem se identificar com os objetos, julgar, intervir,
suprimir ou dar poder s atividades mentais, apenas observe como a mente se
estabelece.
Ao observar o surgir e passar dos fenmenos mentais, voc j deve ter
percebido que h pouca estabilidade. A mente est totalmente preenchida por
pensamentos fugazes, imagens, memrias, e assim por diante. Voc pode se
perguntar como possvel atingir a estabilidade quando a mente est to
turbulenta. Lembre-se de que a estabilidade a ser cultivada aqui no ser
encontrada nos contedos objetivos da mente, mas na sua percepo subjetiva
acerca delas. Com isso, quero dizer que voc se estabelece na quietude do espao
da mente mesmo quando esse espao preenchido com movimento. Portanto,
isso requer uma estabilidade de no ser carregado por pensamentos e emoes.
Alm disso, pelo fato de a sua ateno no estar focada em um ponto fixo, a
estabilidade da conscincia tem uma qualidade de fluxo livre.
Lerab Lingpa, contemplativo tibetano do sculo XIX, resumiu a essncia
dessa prtica no conselho de estabelecer a mente sem distrao e sem fixao.
Por um lado, no deixe que a sua ateno seja arrastada por qualquer contedo
da mente, perdendo-se no passado, no futuro ou em elaboraes conceituais
sobre o presente. Por outro lado, surja o que surgir no campo da mente, no crie
pessoa e assim por diante, mas a sua reao no precisa ser automtica. No
existe essa correspondncia um para um entre os eventos externos e os nossos
estados emocionais internos.
Em 1971, fui morar com refugiados tibetanos que, arriscando as suas vidas,
haviam fugido de seu pas e se estabelecido na cidade indiana de Dharamsala h
apenas uma dcada. Para o meu espanto, eram as pessoas mais felizes que eu
havia conhecido na minha vida. Os fatores externos que poderiam sustentar a sua
felicidade eram poucos e esparsos. Eles eram pobres, tinham perdido a sua terra
natal, cada um deles havia passado por uma tragdia pessoal e muitos estavam
mal de sade. Por meio de uma busca inteligente e pragmtica para nos
libertarmos daquilo que nos impede, ns tambm podemos descobrir a fonte do
verdadeiro bem-estar.
PRTICA
Antes de comear a prxima meditao, vale a pena dedicar alguns minutos
ao cultivo da motivao mais significativa para se prosseguir com essa prtica.
Voc pode ampliar esse ponto da prtica. A qualidade da motivao que voc
leva ao trabalho, s frias, meditao ou a qualquer coisa infiltra-se na prpria
natureza da ao. Quanto mais significativa a motivao, mais profunda e mais
significativa ser a sua ao. Traga mente as suas mais altas aspiraes por seu
prprio bem-estar e realizao, por dar sentido sua prpria vida como um todo.
Inclua tambm o reconhecimento de que ningum est isolado. Estamos
interconectados e, portanto, em um sentido mais amplo, a nossa mais
significativa motivao deve abranger e incluir os outros. Assim, permita que a
sua mais elevada aspirao seja o seu incentivo para prosseguir nessa prtica.
Estabelea o corpo em seu estado natural, como fez nas meditaes
anteriores, produzindo as qualidades de relaxamento, quietude e vigilncia. Deixe
o seu corpo refletir a qualidade da sua mente. A qualidade da conscincia que
voc est cultivando aqui de tranquilidade, quietude e calma, e, ao mesmo
tempo, brilhante, vvida, aguada e clara.
Para ajudar a acalmar a mente, comece pela prtica de ateno plena
respirao, contando 21 respiraes como fez anteriormente. Agora, como na
prtica anterior de estabelecer a mente em seu estado natural, deixe os olhos ao
menos parcialmente abertos. Repouse o olhar sobre o espao que fica entre o
ponto para o qual tem a sensao de estar olhando e as formas e cores que
surgem em seu campo de viso. Descanse o seu olhar no prprio espao, sem
qualquer objeto visual. Continue respirando no abdmen de forma natural, no
que, quando voc inspira, ele se expande um pouco. medida que o abdmen se
expande durante a inspirao, ele assume uma forma levemente arredondada.
Quando expirar, procure manter esse arredondamento em algum grau, como se
fosse um vaso. Faa isso com suavidade, sem forar os msculos da barriga.
Mantenha um pouco da plenitude do abdmen durante a expirao, como se
estivesse espera da prxima inspirao. Ento, o abdmen se expande um
pouco quando voc inspira. Observe se isso tem algum efeito benfico em sua
prtica. Essa a chamada respirao suave do vaso, que muitos
contemplativos tibetanos consideram til para estabilizar a mente. Outro
experimento que voc pode fazer tentar respirar pela boca. Essas duas tcnicas
no so cruciais para a prtica, mas, se voc achar qualquer uma delas benfica,
utilize-a. No entanto, crucial manter os olhos abertos. Isso ajuda a desobstruir a
mente, aumenta a clareza da conscincia, e tambm comea a destruir a falsa
dualidade de que existe um lado de fora e um lado de dentro da mente.
Sejam quais forem os pensamentos que surjam na mente, eles no
obscurecem a natureza da conscincia. A conscincia est igualmente presente
durante e entre os pensamentos por isso, nessa prtica, no h razo para tentar
aquietar a mente. Examine o espao de conscincia que persiste entre os
pensamentos, de onde os pensamentos surgem e no qual desaparecem. Descanse
sem expectativa, sem desejo, sem esperana ou medo.
Embora no deva observar especificamente o contedo da mente, voc
tampouco deixa de not-lo. Repousando a conscincia em sua prpria natureza,
quaisquer constries ou perturbaes que surjam na mente se liberaro
naturalmente, sem a aplicao de qualquer antdoto. Continue a respirar
livremente. Esse um estado de profundo relaxamento da conscincia no h
constrio.
A qualidade do repouso to profunda e a mente est to relaxada que,
quando voc se tornar proficiente nessa prtica, sentir que poderia passar
diretamente para o sono. Todavia, se adormecesse, voc no abandonaria a clara
conscincia de sua conscincia, mas entraria em um estado lcido sem sonhos,
relaxado e sem referncias.
Voc iniciou essa prtica cultivando as suas aspiraes e motivaes mais
significativas. Ao terminar essa sesso de 24 minutos, reafirme que qualquer
benefcio, compreenso ou clareza que tenham surgido podem conduzi-lo
realizao de seus mais significativos anseios e aspiraes, ao seu bem-estar e ao
bem-estar dos outros.
Neste captulo, introduzi a tcnica de shamatha mais sutil que encontrei. Voc
pode perceber que estabelecer a mente em seu estado natural mais sutil do que
a ateno plena na respirao e que a prtica de shamatha de estar consciente
ainda mais sutil. Essa terceira tcnica de cultivo da quiescncia meditativa a
culminncia dessa linha especfica de treinamento meditativo. a mais simples
e, potencialmente, tambm a mais profunda e poderosa. Nessa tcnica, no h
nada para cultivar. No estamos desenvolvendo a estabilidade e a vivacidade da
ateno. Em vez disso, descobrimos por meio da nossa experincia se h algum
aspecto da prpria natureza da conscincia que seja inatamente estvel e claro.
Precisamente na prpria natureza da conscincia h luminosidade e claridade.
Podem estar obscurecidas ou encobertas como resultado da fixao conceitual,
mas so inatas prpria conscincia. A prtica de ser consciente consiste em
liberar aquilo que obscurece a quietude e a luminosidade intrnsecas da
conscincia. Essa uma abordagem de descoberta e no de desenvolvimento,
um processo de libertao e no de controle. Podemos verificar por ns mesmos
se a natureza da conscincia em si tem luminosidade, nitidez e clareza. Isso no
algo para ser aceito como dogma.
Na prtica anterior, partimos do ponto que Descartes considerou o nosso
conhecimento mais certo: ns somos conscientes. A sua afirmao
frequentemente citada cogito ergo sum geralmente traduzida como penso,
logo existo, mas o termo em latim cogito significa tanto pensar como ser
consciente. Assim, a declarao pode ser melhor traduzida como sou
consciente, logo existo. No budismo, reduziramos essa afirmao a existe a
conscincia dos eventos. Disso podemos estar absolutamente certos, mesmo que
no haja tal coisa como um eu ou um ego que exista separadamente da
conscincia e que seja o agente que est consciente. O lama tibetano Sogy al
Rinpoche chamou essa conscincia de estar consciente de o conhecimento do
conhecimento. Ns podemos ter mais certeza da presena da conscincia do
que de qualquer outra coisa. Esse um bom ponto para se comear a meditar.
A tcnica explorada neste captulo vai alm de controlar diretamente a mente
e de conhecer a si mesmo em termos especficos e pessoais. Em vez disso,
nessa prtica, perguntamos: conhecer a si mesmo como um indivduo, com uma
localizao especfica no tempo e no espao, tudo o que h para se conhecer de
si mesmo como um ser consciente neste universo? Somos definidos por
parmetros de gnero, idade, nacionalidade e histria pessoal? Ou existe um nvel
mais profundo, transpessoal de nossa existncia, que pode ser acessado quando a
mente condicionada por conceitos adormece?
Aqui, temos uma tcnica para remover os vus que obscurecem a base da
mente comum e a dimenso da conscincia primordial, esta que se encontra
alm e, todavia, permeia todos os estados de conscincia. Voc repousa naquilo
de que tem mais certeza. Mesmo antes do pensamento penso, logo existo, voc
Em vez de temer a morte, tome interesse pelos eventos que ocorrem no espao
da mente e pela natureza do prprio espao. A sua mente agora est prestes a
desaparecer, pois o crebro est sendo desligado, mas a conscincia substrato
permanecer. E possvel repousar nessa dimenso da conscincia com bemaventurana, luminosidade e no conceitualidade. Mesmo quando todas as
atividades mentais cessam, voc pode permanecer vividamente consciente do
espao vazio da conscincia, no qual todas essas atividades desaparecem. Esse
espao chamado de substrato (alay a) e a conscincia bsica desse domnio
a conscincia substrato (alay avijana).
A prtica de shamatha sem sinal, ou simplesmente de estar consciente de
estar consciente, resulta em uma experincia viva da conscincia substrato que
imbuda das qualidades de bem-aventurana, luminosidade e no
conceitualidade. Esse tambm o estado de conscincia que, ao final, emerge
por meio da prtica anterior de estabelecer a mente em seu estado natural.
Sogy al Rinpoche chama isso de base da mente comum e muito fcil
confundi-la com a natureza absoluta da conscincia, conhecida como
conscincia prstina (rigpa), conscincia primordial (y eshe) ou clara luz
(sel). Existem muitas diferenas sutis entre as duas, porm o mais importante
que simplesmente repousar na conscincia substrato no purifica ou libera a
mente de nenhuma aflio mental, enquanto que repousar na conscincia prstina
libera radicalmente a mente de seus obscurecimentos e permite acessar uma
fonte inesgotvel de virtudes espontneas. Ddjom Lingpa escreveu a esse
respeito:
Algum que experienciou a vacuidade e a luminosidade e que
dirige a sua ateno para dentro pode pr fim a todas as
aparncias externas e chegar a um estado em que acredita no
haver nem aparncias, nem pensamentos. Essa experincia de
brilho, a qual no se ousa abandonar, a conscincia substrato
alguns professores a confundem com a clara luz Na
realidade, a conscincia substrato por isso, se voc ficar
preso l, ser lanado no reino da no forma, sem nem sequer se
aproximar um pouco do estado de liberao.[12]
Quanto a repousar a mente em um estado de profunda inatividade como
descrito aqui, razovel perguntar se isso a culminao da prtica budista.
Acalmar toda a atividade e acabar sentado serenamente sob a sua prpria rvore
bodhi, com um sorriso feliz no rosto, sem fazer nada, o objetivo supremo?
Neste mundo com tanto sofrimento, injustias e conflitos, isso seria um
anticlmax. As atividades motivadas pelo ego e autocentradas so reduzidas ao
mnimo nesse tipo de meditao, mas voc no adormece e nem se torna
aptico. A conscincia luminosa permanece, sem atividade ou movimento. A
dominar voc. Vou aprender a cavalg-lo de um modo tal que voc no poder
me coicear nem me machucar. Sem isso, somos dominados por um esprito
rebelde que move o corpo, controla a boca e fere os outros com sarcasmo,
desonestidade, abuso, rispidez e escrnio.
A prtica de se soltar na estabilidade e vivacidade naturais da conscincia
pode ser realizada alm da meditao formal. Entre as sesses, se voc quer
manter essa qualidade de conscincia e ainda ser capaz de fazer o que precisa no
mundo, pode continuar a repousar a sua conscincia no espao frente, mesmo
em meio a uma conversa. Focar os olhos no espao intermedirio no o impede
de ver o que est l fora. Quando os eventos mentais surgirem, no se apegue a
eles. Deixe-os surgir e passar. Pode ser que voc no consiga fazer essa prtica
enquanto escreve ou executa um trabalho intelectual, mas isso pode ser praticado
em outras situaes, como enquanto anda pela rua ou espera em uma fila de
supermercado, ou em muitas outras situaes. Mantenha a continuidade tanto
quanto possvel. Essa uma abordagem direta para a explorao da natureza
fundamental da nossa existncia, nada menos do que isso.
Muitas pessoas confundem vipashy ana com shamatha, mas as duas diferem
qualitativamente e levam a resultados diferentes. A prtica de shamatha
desenvolve as faculdades da ateno plena e introspeco como um meio de
aumentar a estabilidade e a vivacidade da ateno. Isso implica simplesmente
focar a ateno sobre um objeto de escolha e sustentar a ateno, e essa a
essncia da prtica ensinada anteriormente neste livro. Por outro lado, a prtica
de vipashy ana (ou vipassana, como chamada em pli) uma investigao
atenta e inteligente das principais caractersticas da nossa existncia. Por
exemplo, a ateno plena respirao, como explicado no principal discurso
do Buda sobre esse treinamento, comea como uma prtica de shamatha, mas se
desenvolve a partir da para vipashy ana, pois acrescenta uma dimenso de
investigao crtica. A diferena entre as duas no o grau de concentrao ou
de ateno, mas sim o elemento de investigao que no est presente em
shamatha.
Este captulo inicia uma srie de quatro prticas compreendendo os mtodos
fundamentais da meditao budista de insight. As chamadas quatro aplicaes
da ateno plena so a ateno plena ao corpo, aos sentimentos, aos estados e
processos mentais e aos objetos mentais, incluindo todos os tipos de fenmenos.
O objetivo de aplicar a ateno plena a esses quatro domnios da experincia
obter insights sobre a natureza desses elementos da nossa existncia.
Especificamente, investigamos a natureza de cada um desses domnios para
verificar se quaisquer desses objetos da mente so imutveis, se so verdadeiras
fontes de felicidade, e se algum deles verdadeiramente eu ou meu por sua
prpria natureza, independentemente de nossas projees conceituais. Por meio
de tais insights, possvel erradicar as causas das aflies mentais e outras
perturbaes do corao e da mente que resultam em tanto sofrimento.
Ao longo de seus 45 anos de ensinamentos, o Buda enfatizou fortemente o
cultivo das quatro aplicaes da ateno plena como um caminho direto para o
insight contemplativo e a liberao. Diversas vezes, elogiou essa combinao de
prticas, dizendo: Esse o caminho direto, monges, para a purificao dos
seres, para a superao da tristeza e da lamentao, para a superao da dor e do
sofrimento, para se atingir o caminho autntico, para a realizao do nirvana, ou
seja, as quatro aplicaes da ateno plena.[14] A prtica comea com a
minuciosa aplicao da ateno plena que j foi aperfeioada atravs da
prtica de shamatha ao corpo, aos sentimentos, mente e a todos os outros
fenmenos. Comeamos com o corpo que, em muitos aspectos, o mais fcil de
examinar.
PRTICA
Por fim, observe apenas o sexto domnio, aquele das experincias puramente
mentais, no qual surgem as imagens mentais, a tagarelice interna, emoes,
desejos, impulsos, memrias e fantasias. Observe com ateno pura.
Encerre a sesso.
PRTICA
Comece estabelecendo uma postura relaxada, ainda que vigilante, e um grau
de quiescncia meditativa, da maneira como fizemos na prtica anterior. Depois
de contar 21 respiraes, deixe a sua conscincia permear todo o campo de
sensaes tteis, por todo o seu corpo. Agora, voc aplicar a ateno plena
discriminativa a cinco elementos especficos do corpo. No campo da experincia
PRTICA
dois aspectos. Se voc est meditando e ouve um som alto, voc experimenta no
apenas o som detectado pela sua conscincia auditiva, mas tambm experimenta
o som de uma forma desagradvel. Voc sente: Esse barulho irritante. Eu no
gosto disso. Na realidade, voc no gosta do sentimento, no do som. Se, por
exemplo, os seus vizinhos esto dando uma festa e fazendo barulho, pode ser que
voc ache isso irritante at que eles o convidem para a festa e voc passe a fazer
barulho junto com eles.
Voc tem sentimentos fsicos e sentimentos mentais, que no so a mesma
coisa. Embora sinta que o seu corpo est bem, voc pode sentir que sua mente
est infeliz, preocupada com algum problema, como um ente querido que esteja
doente ou qualquer outro problema que possa nos perturbar. Por outro lado, o seu
corpo pode estar terrivelmente mal, enquanto a sua mente est cheia de
coragem, alegre e otimista. Isso pode ocorrer em meio a uma doena. Pode
acontecer em esportes de contato em que o corpo ferido, mas, ainda assim, o
atleta se levanta e retorna com toda a vontade. A mente pode estar eufrica
enquanto o corpo est terrivelmente mal. s vezes, o corpo e a mente esto bem
simultaneamente ou mal simultaneamente, mas eles no so a mesma coisa.
Entre esses dois modos de sentimento, corpo e mente, temos trs categorias
formando um espectro: prazerosas, neutras ou indiferentes e dolorosas.
Ao observar os sentimentos no corpo, voc achou que eles se alteraram
apenas porque os estava observando com ateno? Ou eles permaneceram
exatamente como eram quando voc os notou inicialmente? Distinga
cuidadosamente os sentimentos no corpo das respostas mentais a esses
sentimentos, pois fazemos muitas superposies conceituais sobre as nossas
experincias. Essas superposies conceituais no so necessariamente falsas,
mas no so idnticas experincia perceptiva. Nessa meditao, buscamos
diferenciar a experincia perceptiva das projees conceituais.
Vamos revisar como os sentimentos se originam. Primeiramente, ocorre um
contato direto com o estmulo sensorial e isso serve de base para o sentimento
seguinte. Por exemplo, primeiro voc v uma pessoa passando pela porta e ento
a reconhece como um velho amigo ou talvez como uma ameaa isso traz um
sentimento como resposta. Uma vez que esse sentimento surge, ele pode, por sua
vez, dar origem a um desejo ou averso quanto ao objeto, o que no igual ao
sentimento original. Ento, a resposta de desejo ou averso pode levar inteno,
por exemplo. Muitos desejos no resultam em intenes. Quando sentar em
meditao, voc poder notar sensaes sutis e efmeras experimentadas com
um certo grau de sentimento. Isso pode levar atrao, averso ou
indiferena, e esses sentimentos podem ou no dar origem a uma inteno e uma
ao subsequente. Em geral, essa sequncia completa de eventos est unida
porque ns inconscientemente nos identificamos com ela, em vez de observ-la
com cuidado. Por meio da aplicao da ateno plena discriminativa e
tudo aquilo que um efeito tambm uma causa. Tudo aquilo que uma causa
tambm um efeito. Isso significa que todo evento est interagindo com outros
eventos anteriores e com eventos posteriores. Formam uma cadeia de originao
interdependente. No h becos sem sada na causalidade no h nada que seja
um efeito e no seja uma causa. Sentimentos no so uma exceo. Surgem a
partir de condies prvias. Preste ateno ao que os sentimentos conduzem. Eles
do origem a averso ou desejo? O que acontece ento? No h nada de errado
com o desejo em si, como desejar tomar gua. O desejo leva a uma inteno de
encontrar um pouco de gua, e ento tomamos um gole. No h nenhuma
confuso na mente. Nenhuma aflio mental entrou em jogo. Mas,
frequentemente, os nossos desejos no param por a e terminam por perturbar o
equilbrio mental.
No budismo, falamos sobre aflies mentais primrias, processos mentais
que resultam em sofrimento interior e conflitos nas relaes com os outros. Esses
processos incluem variaes do anseio obsesso, desejo e apego e variaes
da averso dio, agressividade, raiva e hostilidade. Esses processos mentais nos
lanam seguidamente ao desequilbrio. A medicina tradicional tibetana faz a
mesma afirmao. Essas aflies rompem o equilbrio no apenas da mente,
mas tambm do que constitui o corpo, trazendo a doenas. Isso tem sido cada vez
mais reconhecido na medicina moderna. As emoes negativas prejudicam a
nossa sade fsica e mental. O problema no apenas esses sentimentos, mas o
que flui a partir deles.
Anseio e averso so duas das trs aflies mentais primrias. A terceira a
ignorncia e deluso. A ignorncia se manifesta como desateno e letargia, e
comumente leva deluso, que implica uma compreenso errnea da realidade.
A nossa resposta a sentimentos indiferentes leva, em geral, a essas aflies
mentais. No sucumbimos letargia se a mente estimulada de forma prazerosa
ou dolorosa. Camos nesse estado quando no est acontecendo muita coisa. a
que uma espcie de ausncia mental ou ignorncia pode assumir o controle,
fazendo com que nos comportemos como se estivssemos no piloto automtico.
Em tal estado, muito fcil interpretar de maneira equivocada o que est
acontecendo conosco e dentro de ns. aqui que a deluso comea e nos
prepara para cair em todos os outros tipos de aflies mentais.
Fundamentalmente, a deluso suprime o sistema imune psicolgico, nos tornando
vulnerveis a desequilbrios mentais e infelicidade.
Agora, consideremos os estados mentais saudveis (pois os sentimentos no
nos conduzem apenas a estados mentais aflitivos). Todos ns compartilhamos
algo fundamental: estamos nos esforando na busca pela felicidade. Temos
diferentes motivaes e diferentes anseios e aspiraes, mas o sentido de desejar
a satisfao e mais felicidade, mais contentamento, comum a todos ns. A
aspirao de que os outros possam encontrar a felicidade e as causas da
PRTICA
Estabelea o corpo em seu estado natural e conte 21 respiraes. Agora,
traga a sua ateno ao domnio de experincias da mente pensamentos,
imagens, fantasias, memrias e sonhos. Como voc se sente mentalmente? As
sensaes mentais podem ser estimuladas pela experincia sensorial: voc pode
se sentir mentalmente bem quanto s sensaes e aparncia do seu corpo, mas
os sentimentos tambm podem ser catalisados por pensamentos.
V ao laboratrio da sua mente e realize alguns experimentos. Traga mente
uma lembrana muito agradvel de seu passado. Observe a natureza do
sentimento que surge enquanto experimenta essa lembrana. Esse sentimento
tem alguma localizao?
Agora, pense em uma experincia triste. Pode ser pessoal ou algo que viu nos
jornais. Observe o sentimento que surge com essa experincia. Quando o
observa, ele se modifica?
Solte agora a sua mente em livre associao. Permita o surgimento de
qualquer coisa, seja um som do trfego ou sua imaginao sobre eventos futuros.
Aplique cuidadosamente a ateno plena discriminativa aos seus sentimentos,
conforme a sua mente encontra casualmente um objeto ou um evento, uma
experincia aps a outra. Observe com ateno os prprios sentimentos
subjetivos, em vez de fixar-se nos fenmenos objetivos que os catalisam.
Voc deve se lembrar de que, em uma prtica anterior, ao estabelecer a
mente em seu estado natural, simplesmente observava os eventos com o mnimo
possvel de sobreposio de eu e meu, assistindo-os como meros eventos no
espao da mente. Veja agora se voc capaz de observar os sentimentos da
mesma maneira, sem a identificao de meu sentimento. Voc capaz de
ficar to tranquilo e em repouso interior to profundo a ponto de recolher os
tentculos da fixao e apenas observar os sentimentos surgindo e
desaparecendo?
est dizendo, bem como qualidade da sua voz, sua linguagem corporal e ao
ambiente. Voc poder captar isso apenas se sua mente estiver razoavelmente
quieta. Dessa forma, poder observar os sentimentos dentro de voc e no outro.
Estamos fazendo algo alm de supor como os outros podem estar se sentindo?
Podemos conhecer os sentimentos dos outros apenas por meio de inferncia
lgica, como inferir que onde h fumaa h fogo? Ou h algo mais instantneo,
mais intuitivo acontecendo algo no to cerebral como deduzir por inferncia?
Observe os sentimentos dentro de voc, observe os sentimentos no outro e ento
observe os sentimentos em ambos. Troque de perspectiva de vez em quando,
para que a sua mente se torne malevel e possa atentar aos sentimentos a partir
de vrias perspectivas. Em poucas palavras, essa a ateno plena aos
sentimentos.
PRTICA
Deixe o seu corpo repousar em uma postura adequada, imbudo das
qualidades de relaxamento, quietude e vigilncia, e permita que a sua mente
tambm repouse com esses mesmos trs atributos. Conte 24 respiraes como
um exerccio preliminar de shamatha. Repouse em modo no conceitual e no
discursivo no decorrer de todas as inspiraes e expiraes.
Quando a mente se tornar mais funcional, com algum grau de estabilidade e
vivacidade, passe ento prtica de quiescncia, ou calma simplesmente, em
busca de insight, especificamente sobre a natureza desse extraordinrio
fenmeno que chamamos de mente, ou chitta. Observe em particular qualquer
evento que surja no domnio da mente, em vez dos cinco sentidos fsicos. Pode
parecer um pouco estranho pensar em observar a mente. Mas, da mesma forma
que voc direciona a ateno aos cinco campos de experincias sensoriais, voc
pode tambm direcion-la a esse reino experiencial no qual ocorrem
pensamentos, sentimentos, memrias, fantasias e desejos todo um conjunto de
eventos mentais.
Primeiramente, dirija a sua ateno para o domnio de experincias mentais.
Sente-se calma e conscientemente e gere pensamentos como: O que a
mente? Gere o pensamento, mas, em vez de se identificar com ele ou tentar
respond-lo, observe o evento em si, o fenmeno do pensamento O que a
mente?. Gere outro pensamento conscientemente. Observe esse evento surgindo
no campo de experincias mentais. Assista-o surgindo, exibindo-se e
desaparecendo. Mantenha a sua ateno exatamente no local onde ela estava
antes de o pensamento desaparecer. Coloque novamente a sua ateno no
domnio da mente. Qual o prximo evento que ocorre nesse domnio de
experincia? Se voc se identifica com os eventos mentais que surgem, difcil
observ-los. Voc se funde com eles e, assim, passam a controlar voc. Veja se
possvel observar esses eventos sem interveno e sem julgamento. Sem
fixaes e sem identificao, examine o que quer que surja e observe-o
Por exemplo, que tipo de pessoa voc pensa que ? Uma pessoa gentil? Rude?
Paciente/impaciente? Esperta/estpida? Calma/agitada? Hiperativa/relaxada? Que
trabalha duro/letrgica? Amigvel/indiferente? Onde voc se encaixa? Se
escrevesse um breve sumrio sobre o tipo de pessoa que voc , essa seria uma
representao daquilo em que voc est prestando ateno, no necessariamente
daquilo que real. Mas ainda mais que isso. A ignorncia que repousa na raiz
do sofrimento vai alm do no prestar ateno. A ignorncia tambm sobrepor
as nossas construes conceituais e, ento, confundi-las com a realidade. Ao
final, agimos sobre essa base e a que as coisas comeam a dar realmente
errado.
Portanto, com discriminao inteligente, ao observarmos os fenmenos
mentais surgindo no decorrer do dia e no apenas em uma sesso de 24 minutos,
podemos formular importantes questes. Em meio ampla gama de eventos
mentais que emergem a cada momento, podemos comear a reconhecer
padres. Primeiro reconhea os momentos em que a mente est sob controle,
equilibrada. Veja por si mesmo como esse estado. Nesses momentos, podemos
dizer que a mente no est aflita. Conforme observa os eventos surgindo na
mente, note as ocasies em que esse equilbrio rompido e quando voc perde o
eixo. Em um momento, voc tem acesso inteligncia, imaginao,
criatividade e memria com clareza, mas, de repente, o equilbrio se perde e
h uma ruptura. Em seu livro Emotions Revealed, Paul Ekman chama esses
episdios de desequilbrio interno de perodo refratrio, durante o qual o nosso
raciocnio no capaz de incorporar informaes que no combinam, no
mantm ou no justificam a emoo que estamos sentindo, o que distorce a
forma como vemos o mundo e a ns mesmos.[21]
Esses momentos que rompem o nosso equilbrio so toxinas da mente, porque
nos afligem perturbando o corpo e a mente. Quando contaminam a nossa fala, as
nossas palavras se tornam instrumentos de dor, pois so usadas de forma abusiva,
cruel, enganosa, desonesta ou manipuladora. Quando as aflies mentais, ou
kleshas, poluem o nosso comportamento fsico, podemos fazer coisas com o
corpo que so destrutivas ou perigosas, a ns mesmos ou aos outros. Mas
devemos estar sempre conscientes de que esse dano se origina na mente.
Voc capaz de reconhecer tendncias mentais aflitivas e de observar por si
mesmo que elas so prejudiciais sua sade? Por outro lado, voc capaz de
encontrar qualidades que intensificam o bem-estar mental, que, quando
influenciam suas palavras, voc se expressa com clareza, gentileza e
inteligncia? Podemos tornar as pessoas bastante felizes com a nossa voz e
tambm com aes fsicas. Reconhea o que saudvel e o que no saudvel.
Fundamentalmente, no h nada de moralista nisso. Trata-se de uma questo
pragmtica.
PRTICA
Estabelea seu corpo e mente em um estado de tranquilidade, estabilidade e
vigilncia. Inspire profundamente pelas narinas, at o abdmen, expandindo
lentamente, relaxando o diafragma e, finalmente, respirando no trax. Ento,
relaxe, em uma expirao longa e suave. Faa isso trs vezes, percebendo as
sensaes das inspiraes e das expiraes por todo o corpo. A seguir, conte 21
respiraes, da forma como fizemos anteriormente.
Agora, aplique a ateno plena ao domnio da mente, gerando nova e
conscientemente o pensamento o que a mente? ou qualquer outro
pensamento. De onde esse pensamento emerge? Aguarde at que chegue o
prximo pensamento. Quando surgir um evento mental, emergindo novamente
por conta prpria, no o considere um obscurecimento. Em vez disso, examine:
de onde vem essa atividade mental? Dizemos que os pensamentos provm da
mente. O que essa mente de onde os pensamentos emergem? Quais so suas
qualidades? Ela esttica ou est em fluxo? H algo nela sugerindo que tem um
dono? Continue observando, de forma atenta, inteligente e inquisitiva, essa base
da mente que anterior a qualquer tipo de ativao, construes, imagens ou
impulsos mentais.
A seguir, uma vez que alguma atividade mental tenha ocorrido, observe onde
ela est acontecendo. Ela tem uma localizao? Observe no o plano frontal, a
atividade ou os atores no palco, mas o plano de fundo, o palco em si. Os
pensamentos agora surgem como um apoio prtica porque o ajudam a
identificar, uma vez mais, o domnio no qual os eventos mentais se exibem.
Observe atentamente. Dizemos que os pensamentos e os sentimentos ocorrem na
mente. O que a mente na qual os eventos mentais acontecem?
Se ocorrer alguma fixao, se perceber que se identificou com alguma
atividade mental em particular, apenas observe a prpria fixao. O espao
mental s vezes se contrai, gravitando em torno do objeto de fixao? A mente se
torna estreita, como se estivesse preenchida pelo objeto? Quando a fixao se
desfaz, o espao da mente permanece amplo, sem contrao, sem criar atrito
com os pensamentos que surgem e o atravessam? Observe o espao da mente.
Ele esttico ou h uma espcie de tecer de fios no espao da mente? Ela o seu
eu real ou ela verdadeiramente sua? Ou ela simplesmente um fenmeno
natural, como o espao fsico?
Por fim, quando o evento mental desaparecer, no se interesse muito pelo
evento em si, mas fique atento ao bhavanga no qual ele desaparece. Preste
ateno no ao processo de dissoluo do evento mental, mas quilo no qual o
evento mental desaparece.
Nessa prtica, os pensamentos errantes no so obstculos. Enquanto observa
PRTICA
Para iniciar essa sesso de um gathika, estabelea o seu corpo e a sua mente
tranquilamente, em quietude e em estado de vigilncia. Faa trs amplas
respiraes, lenta e profundamente, expandindo o abdmen, relaxando o
diafragma, inspirando at o trax e liberando o ar de maneira gentil e completa.
Retorne ao ritmo normal de respirao e, por alguns instantes, traga mente
a aspirao mais significativa possvel para essa sesso. Quais so seus objetivos
mais elevados como indivduo e tambm para a sua vida em relao queles a
sua volta? O que voc gostaria de alcanar, de experimentar, de se tornar? O que
voc gostaria de oferecer? Onde reside a sua maior felicidade? Deixe que a
realizao de sua aspirao seja o motivo para que voc continue.
Tendo cultivado uma motivao significativa, prepare a sua ateno e faa
com que sua mente se torne funcional, acalmando as tendncias agitao e
lassido. Traga a conscincia para o campo de sensaes tteis do seu corpo,
desde as plantas dos ps, coxas, quadril, at o tronco, braos e cabea. Mantendo
esse campo de conscincia dos fenmenos tteis, leve sua ateno respirao
Encerre a sesso.
mesmas e ao mundo que elas realmente existem, que de fato esto no controle.
Mas, quando voc aplica a ateno plena com discernimento a fenmenos
internos e externos, observando-os com o mnimo possvel de sobreposies,
nenhum desses objetos da mente se apresenta como eu nem como meu. De
acordo com a explorao experimental de contemplativos budistas, essa
tendncia profundamente arraigada de fixar-se a absolutamente qualquer coisa
como inerentemente eu ou meu deludida: coloca-nos em rota de coliso
com a realidade e, como resultado, mais uma vez sofremos.
Por exemplo, imagine que voc estabelea negcios com algum que, sem
voc saber, desonesto, manipulador e interesseiro e essa pessoa arruna seus
negcios. Voc perde dinheiro no apenas porque a pessoa trapaceira e
mentirosa, mas porque voc pensou que ela no fosse assim. Compare isso a
confundir aquilo que no eu ou meu com o que eu ou meu. Se voc
confundir um scio trapaceiro com uma pessoa honesta e fizer negcios com ele,
poder se prejudicar durante uma fase da sua vida. Mas isso passar e voc
poder se recuperar. Porm, se voc compreender de forma errnea a natureza
da sua prpria existncia, isso contaminar tudo o que fizer. Toda a sua vida
estar baseada nesse erro fundamental.
Um sutra Mahay ana, ou discurso atribudo ao Buda, aborda eloquentemente
esse ponto:
Os agregados (abrangendo o corpo e a mente) so
impermanentes, instveis, naturalmente frgeis como um vaso
no queimado, como um objeto emprestado, como uma cidade
construda no p, durando apenas algum tempo. Por natureza,
essas condies esto sujeitas destruio, so como o reboco
lavado pela estao das chuvas, como a areia margem de um
rio, dependentes das condies auxiliares, naturalmente fracas.
So como a chama de uma lamparina, a sua natureza ser
destruda to logo surjam, instveis como o vento, sem seiva e
frgeis como um grumo de espuma.[26]
A importncia de nomear coisas no se limita prpria identidade. Em um
discurso registrado no idioma pli, o Buda comenta: So meramente nomes,
expresses, maneiras de falar, designaes comumente usadas no mundo. Delas
aquele que alcanou a verdade de fato faz uso, mas no se deixa enganar.
Em outro discurso pli, ele declara:
Do mesmo modo que apenas quando as partes so reunidas
Surge a palavra carruagem,
Assim a noo de um ser
Quando os agregados esto presentes.[27]
PRTICA
Estabelea seu corpo e mente em uma postura confortvel, quieta e vigilante.
Relaxando os msculos dos ombros e da face, mantenha os olhos e a testa
relaxados. Tome trs inspiraes lentas e profundas pelas narinas. A seguir, conte
21 respiraes, cercando esse cavalo selvagem da mente para poder cavalg-lo
confortavelmente.
Vamos em busca de um tipo de verdade vlida para qualquer um em todos os
momentos. Essas so verdades em todas as estruturas de referncias cognitivas.
O que constante e invarivel? Primeiro repouse na conscincia sem
preferncias, na qual voc abre mo do controle completamente, d um
descanso ao seu senso de ego, de eu controlador, deixando-o dormente por uns
momentos. Deixe a mente seguir livre, porm no se permita ser controlado por
ela. No permita que seja carregado para longe ou oprimido pela mente. Deixea ir para onde quiser, deixe que as aparncias surjam vontade.
Essa uma magnfica preparao para morrer de maneira consciente,
quando formos obrigados a abandonar o controle e as faces enganosas do
controle, porm mantendo a opo de no sermos controlados pelas emoes de
medo, ansiedade ou pesar. Como diz o ditado: Esse um homem livre, senhor
de ningum, mas comandado por ningum. Seja livre aqui e agora, enquanto
repousa na natureza da conscincia, que luminosa e transparente. Repouse sem
preferncias, sem fixaes.
Em termos de ateno plena mente, voc se lembrar de que existem os
contedos, os eventos e os processos da mente. H ento a conscincia substrato,
a base a partir da qual as aparncias surgem. Voc pode repousar no substrato,
observando sem intervenes qualquer atividade que surja nesse espao da
viso de mundo centrada na famlia que verdadeira apenas para a sua famlia e
no para as outras famlias. Podemos avanar agora para uma mentalidade
centrada na cidade, na qual as verdades proclamadas se aplicam aos habitantes
de uma cidade, como Atenas ou Esparta, onde algumas reivindicaes so justas
para os espartanos, mas no necessariamente vlidas para os atenienses. Essa
anlise pode tambm ser aplicada de forma mais ampla ao etnocentrismo ou ao
nacionalismo. Pode haver verdades vlidas apenas para um nico grupo tnico.
Pode haver tambm estruturas de referncias centradas no idioma. As verdades
podem ser vlidas para o ingls, mas podem no s-lo para o alemo ou para o
snscrito.
O que quero dizer : h dimenses da nossa existncia, aqui e agora,
individualmente, que no esto restritas a uma personalidade especfica, o que
inclui gnero, idade, etnia, nacionalidade e espcie. E essas dimenses podem ser
experienciadas. disso que se trata a prtica. Independentemente de nossa
estrutura de referncia cognitiva, existem verdades universais no aquelas
puramente objetivas, mas as que so verdadeiras independentemente de sua
perspectiva. As trs marcas de existncia dessas verdades so:
1. todos os fenmenos condicionados, todos aqueles que surgem na
dependncia de causas e condies, esto sujeitos impermanncia, pois surgem
e desaparecem a cada momento;
2. enquanto nossa mente estiver sujeita a aflies mentais, todas as nossas
experincias sero insatisfatrias. Nenhum objeto da percepo ou pensamento
so fontes verdadeiras de felicidade;
3. nada do que experimentamos verdadeiramente eu ou meu por sua
prpria natureza. Esses conceitos so meramente sobrepostos aos fenmenos
mentais e fsicos, e nenhum deles um eu inerentemente existente.
Reconhecer essas caractersticas cruciais da existncia por meio da
experincia pessoal leva realizao do nirvana, a liberdade insupervel de
todas as aflies mentais e suas consequncias. O caminho para essa liberdade
consiste em prtica de tica, samadhi e cultivo da sabedoria. Dessa forma, as
buscas pela virtude, pela felicidade genuna e pela verdade esto inteiramente
integradas. Esse o caminho para a liberao.
8 Bondade amorosa
Q U A N D O CO M E A M O S A E X P E RI M E N TA R os benefcios da
meditao shamatha, com a serenidade e a clareza que ela traz mente, ficamos
tentados a focar exclusivamente essa prtica. Mas a tradio budista nos
encoraja a estender a prtica espiritual para alm dos limites da calma interior.
H alguns anos, quando era intrprete em uma das conferncias do instituto Mind
and Life com Sua Santidade o Dalai Lama e um grupo de cientistas da cognio,
Tsokny i Rinpoche, um mestre de meditao tibetano altamente respeitado, era
um dos convidados. Certa noite, ele e eu nos sentamos e discutimos a difuso do
budismo no Ocidente, e ele comentou sobre algumas das desvantagens de se
fixar prtica de shamatha. Alguns alunos, disse ele, ficavam to imersos nessa
prtica que acabavam por se desconectar de tudo a sua volta, pensando, me sinto
completamente desapegado dos problemas das outras pessoas! Eu mesmo estou
muito bem. O resultado de sua prtica era um tipo de indiferena desinteressada
condio dos outros, enquanto desfrutavam de uma relativa calma no santurio
interno de sua prpria mente. Ele via isso como um real impedimento ao
crescimento espiritual.
PRTICA
Primeiramente, vamos tornar a nossa mente funcional. Temos pouco
controle sobre o ambiente que nos cerca um aparente controle, que com
frequncia desaba sobre as nossas cabeas. E quando nos voltamos para dentro,
podemos verificar que a nossa mente tambm est frequentemente fora de
controle. Mas talvez possamos aprender a ter maior controle, maior domnio
sobre a nossa mente podemos tornar nossa mente mais funcional e transformla em nossa aliada.
Assuma uma postura que contribua com a prtica, com o corpo vontade,
imvel e vigilante. Relaxe os msculos dos ombros e da face, incluindo a
mandbula. Relaxe os olhos e os msculos ao redor dos olhos. E agora tome trs
inspiraes lentas, profundas, completas, respirando no abdmen, e, em seguida,
solte completamente o ar pelas narinas.
Busque, primeiramente, a sensao sutil de serenidade, de calma interior.
Libere as preocupaes do dia, as antecipaes do futuro e acomode-se na nica
realidade que existe agora: o presente. Relaxe a sua ateno em um modo de
simplesmente testemunhar, trazendo-a para o campo de sensaes tteis ao longo
de todo o corpo. Deixe a respirao seguir sem intervenes. No tente respirar
profundamente. Apenas deixe o seu abdmen solto, de modo que, ao voc
inspirar, ele se expanda com facilidade. Se a respirao estiver profunda, deixe-a
ser profunda; se estiver superficial, tudo bem.
Agora simplifique radicalmente a sua mente. Deixe seu corpo ser preenchido
pela ateno plena e mantenha sua mente presente no campo dessas sensaes
tteis da entrada e da sada do ar em todo o corpo. Se achar til, experimente
contar apenas 21 respiraes contando no incio de cada inspirao. Alm
dessa tarefa, d um descanso a essa mente incomodada por todas as
preocupaes, planos, memrias, esperanas e medos. Deixe-a simplesmente
repousar na conscincia do ritmo suave da sua respirao.
Passamos agora para um tipo de meditao na qual usamos todo o poder da
nossa imaginao, inteligncia e intuio. Esse tipo de prtica chamado de
meditao discursiva, e um importante complemento das prticas no
discursivas de shamatha e ateno pura.
Voc anseia pela felicidade? Provavelmente, voc est buscando algo alm
do mero desejo de sobreviver ou de alcanar fama e prosperidade material.
Caso contrrio, no estaria fazendo essa prtica. Ento, qual a fonte desse
anseio e o que poderia satisfaz-lo? O que voc de fato quer? Voc consegue
visualizar? Pode ser mais fcil comear pelo que voc no est buscando, aquilo
que no ser suficiente, aquilo que no trar a felicidade que voc busca.
Vasculhe a sua memria para encontrar exemplos de coisas que voc achou que
lhe trariam a genuna satisfao, mas que, ao final, lhe desapontaram. No deve
ser difcil encontr-los.
Por milnios, com suas vidas e suas palavras, os grandes mestres da tradio
budista tm nos encorajado a reconhecer que a busca pela felicidade genuna
no em vo. Voc consegue imaginar um modo de vida que seja realizvel,
que contribua com a busca por tal felicidade? Voc vive assim? Se no, o que
seria necessrio? Que mudanas seriam necessrias para que voc pudesse se
empenhar com afinco na busca pela felicidade genuna, rastreando-a at sua
origem?
Agora considere sua vida como ela . Voc est sobrevivendo e encontrou o
Darma. Talvez tenha amigos espirituais e mestres. A porta est aberta para seguir
esse caminho para a iluminao. Tais circunstncias raramente ocorrem. Uma
vida assim chamada de vida humana preciosa, com liberdades e
oportunidades. Oportunidades para fazer o qu? Para buscar a felicidade
genuna em sua origem. possvel dirigir todos os nossos esforos para encontrar
tal felicidade para ns mesmos e para os outros nossa volta? Essa seria uma
vida de bondade amorosa.
Ento, traga a bondade amorosa para si mesmo, desejando a realizao das
suas aspiraes mais profundas. Imagine um modo de vida que oferea a
mxima liberdade para voc buscar aquilo que tem mais valor. Observando
como o mundo est, assistindo s notcias, vendo o que acontece a cada dia, no
to bvio que a felicidade genuna seja, no mnimo, uma possibilidade. H tantas
causas de sofrimento, conflito, tristeza e dor. Mas a crena na nossa bondade
inata e na possibilidade de felicidade uma opo. E escolher essa opo abre as
portas para essa busca, nos traz de volta ao tema central. A tradio crist nos diz:
O reino dos cus est dentro de ns. O budismo diz: A natureza de buda a
essncia do seu ser. Aqui est a fonte da alegria, a fonte da compaixo, a fonte
da sabedoria a fonte de todo o bem. Aqui est a esperana e a plataforma para
cultivarmos a bondade amorosa por ns mesmos e pelos outros. Como podemos
nos nutrir e nos guiar de forma a levarmos as nossas vidas favorecendo a
manifestao, o florescimento, a realizao dessa natureza de buda, para que ela
se torne mais do que uma questo de f?
Imagine a sua natureza de buda a pureza essencial de sua prpria
conscincia simbolicamente como uma prola de luz branca radiante em seu
corao. E toda essa luz branca radiante e incandescente tem a natureza da
alegria e da bondade amorosa que sempre estiveram dentro de voc. Ento, a
cada inspirao, imagine-se extraindo luz dessa fonte inesgotvel do seu corao,
como se estivesse retirando gua de um poo. A cada inspirao, imagine que
voc extraia luz dessa fonte, uma fonte que pode ser facilmente obscurecida
quando se presta ateno a outras coisas, quando as nossas prioridades se perdem
nas distraes. A cada inspirao, imagine-se extraindo essa luz, como se
tambm est includa a sade. Certamente, esses so pontos bsicos para a nossa
busca pela felicidade.
Mas alm desses pontos essenciais, nos envolvemos frequentemente na busca
por prazeres mundanos em vez da felicidade genuna. Na tradio budista, h
muitas referncias s oito preocupaes mundanas. Revisando essa lista de
preocupaes, as duas primeiras so a aspirao por conseguir novas aquisies
materiais e evitar perder aquilo que j foi obtido. Algumas pessoas avaliam seu
prprio valor e seu grau de sucesso na vida em uma base puramente quantitativa:
quanto dinheiro e bens materiais foram capazes de adquirir. Essas pessoas
igualam a busca pela felicidade busca por riqueza. O segundo par de
preocupaes mundanas a busca por prazeres controlados por estmulos de
todos os tipos sensuais, intelectuais e estticos e o desejo de evitar qualquer
tipo de sofrimento ou dor. O terceiro par a preocupao em receber elogios dos
outros e evitar o menosprezo, o abuso e o ridculo. As ltimas duas preocupaes
relacionam-se a obter estima, afeto, aceitao e respeito de outros, e evitar o
desprezo, antipatia, rejeio e indiferena. Essas oito preocupaes podem
ocupar cada momento de nossas vidas em viglia e, portanto, vale a pena avalilas com cuidado para ver se justificam uma dedicao to determinada.
O neurocientista Richard Davidson, meu amigo e colega que iniciou a
conduo rigorosa de estudos cientficos sobre os efeitos da meditao no bemestar emocional, usa o termo esteira hednica para caracterizar uma vida
centrada nas oito preocupaes mundanas. A busca pela felicidade e pela sade
mental est recebendo mais e mais ateno dos cientistas cognitivos que esto
perguntando: o que de fato leva felicidade? Um dos livros mais notveis
recentemente publicados sobre esse assunto The High Price of Materialism, do
psiclogo Tim Kasser. Com respeito primeira das oito preocupaes mundanas,
a sua pesquisa concluiu que aqueles que valorizam fortemente a busca por posses
e riqueza relatam um menor bem-estar psicolgico do que aqueles que se
preocupam menos com esses objetivos. Essa fixao em aquisies materiais
no apenas prejudica a nossa prpria felicidade, como tambm distorce a
maneira pela qual nos envolvemos com os outros. Kasser comenta a esse
respeito: Quando as pessoas colocam forte nfase em consumir e comprar,
ganhar e gastar, pensar sobre o valor monetrio das coisas e pensar em coisas
durante grande parte do tempo, tambm se tornam mais propensas a tratar
pessoas como coisas.[30] A evidncia cientfica que ele reuniu sugere que, alm
de ter dinheiro suficiente para atender s necessidades bsicas de alimentao,
moradia e coisas desse tipo, conseguir riquezas, posses e status no resulta no
aumento de sua felicidade ou bem-estar a longo prazo. At mesmo a busca bemsucedida por ideais materialistas tipicamente acaba se tornando vazia e
insatisfatria. Ele resume esse ponto: Pessoas muito focadas em valores
materialistas tm menos bem-estar pessoal e sade psicolgica do que aquelas
PRTICA
A nossa primeira sesso de meditao foi uma busca por uma viso pessoal,
colocando a questo: onde reside a minha felicidade? Agora iremos nos estender
um pouco mais. Como preparao, estabelea seu corpo e sua mente em um
estado de relaxamento, quietude e clareza, e acompanhe contando 21
respiraes, mantendo seus olhos parcialmente abertos.
Mais uma vez, simbolicamente imagine a pureza de sua prpria conscincia
prstina, a sua prpria natureza de buda, como uma esfera de luz purificadora e
aljava, atirou no homem que havia estragado a sua caada, mas a flecha
misteriosamente se desviou. Aproximando-se para mirar melhor, lanou uma
segunda flecha, mas ela tambm errou o alvo. O caador ficou atnito. Por que
as suas flechas no atingiam aquele homem? Por fim, ele tambm se aproximou
e o seu furor cedeu. Ele experienciou a bondade amorosa do outro e, assim,
iniciou a sua prtica no Darma. Como declarou o Buda: A animosidade nunca
debelada com animosidade. A animosidade debelada apenas pela ausncia de
animosidade. Essa uma verdade antiga.[34] Isso pode parecer uma fbula,
mas eu conheci pessoas que eram capazes de transformar a vida dos outros com
o seu amor. Talvez voc tambm conhea pessoas assim. uma qualidade que
ns tambm podemos cultivar e no h ddiva maior que possamos oferecer ao
mundo.
Mas como determinar o que a genuna bondade amorosa em oposio a
meros fac-smiles ou falsificaes? Quer voc chame de bondade amorosa ou
de amor, aquele que for verdadeiro sempre surgir na relao entre seres,
sujeito-sujeito. Envolve o engajamento com a realidade subjetiva da outra
pessoa com suas alegrias e tristezas, esperanas e medos, semelhantes aos seus
e ento a aspirao: Que voc possa, assim como eu, ser feliz.
Contrariamente, a aflio mental do apego, conforme definido no budismo,
implica uma relao sujeito-objeto que o existencialista judeu Martin Buber
chamou de relao eu-isso. No budismo, apego tambm implica ver o outro
ser senciente como um meio de obter a sua prpria gratificao. Permita-me
definir mais precisamente: apego uma atrao por um objeto em que as
qualidades desejveis so conceitualmente sobrepostas ou exageradas, enquanto
as qualidades indesejveis so removidas. O apego pode ter vrias
manifestaes, incluindo o anseio, a obsesso, o vcio ou o desejo autocentrado.
importante reconhecer que a noo budista de apego difere da forma
como o termo usado na psicologia moderna, onde frequentemente tem
atributos positivos, como no sentido da conexo exemplificada pela relao
prxima e carinhosa entre pais e filhos. No contexto budista, o apego uma
imitao da bondade amorosa. Muitas vezes, assume a aparncia da bondade
amorosa e ir imitar o amor, ou se apresentar como se fosse real. Muitas vezes,
autodenomina-se amor e ir imit-lo. E podemos deludir a ns mesmos e aos
outros pensando que amor, quando na verdade est contaminado por uma
aflio mental: o nosso apego. Contrariamente, o amor genuno ou a bondade
amorosa explora a fonte da prpria felicidade.
Por dominar a mente, o apego um enfraquecimento radical do indivduo
que o experimenta. Se estamos sentindo apego por outra pessoa como um objeto,
estamos sobrepondo ou exagerando qualidades atraentes, e ento a desejando e
ansiando por ela, enquanto removemos as suas outras qualidades. Esse um
processo de desumanizao. Transformamos a pessoa em um objeto desejvel,
9 Compaixo
A CO M PA I X O A RA I Z D O BU D A D A RM A . Foi a fora
motivadora que fez com que o Buda se levantasse de sua meditao solitria sob
a rvore bodhi e que o inspirou a conduzir outros a um estado duradouro de
felicidade genuna. A compaixo incomensurvel a aspirao: Que todos os
seres possam ser livres do sofrimento e de suas causas. Com esse cultivo da
compaixo que chamada de karuna em snscrito , abordamos a segunda das
quatro qualidades incomensurveis. No mudra budista, ou gesto manual, que
representa a compaixo e simboliza o equilbrio meditativo, a mo esquerda com
a palma virada para cima, simbolizando a sabedoria, apoia a mo direita,
tambm com a palma virada para cima, representando a compaixo. As pontas
dos polegares das duas mos se unem, produzindo a unio entre sabedoria e
compaixo. Nesse mudra do equilbrio meditativo, a compaixo no apenas um
sentimento, uma sensao amigvel: ela a expresso natural da sabedoria.
PRTICA
Antes de meditar, traga mente a sua mais elevada motivao, suas metas e
aspiraes mais significativas. Estabelea o seu corpo em uma postura de
conforto, quietude e vigilncia. Lembre-se da sequncia. Para essa sesso, com
durao de um ghatika, deixe o seu corpo imvel. Voc trar imagens mente,
como reflexos em uma poa de gua. Os reflexos so claros somente quando a
gua est calma. Faa trs respiraes exuberantes, profundas e completas,
respirando pelas narinas, primeiro no abdmen, em seguida expandindo o
diafragma e, finalmente, no trax. Expire pelo nariz, de forma lenta, profunda e
completa, por trs vezes.
Ento, permita que essa mente que foi acionada de forma to dura durante o
dia descanse e se estabelea novamente em um modo de simples conscincia.
Perceba as sensaes tteis em todo o seu corpo. Se os pensamentos vierem,
deixe apenas que flutuem sem aderir, sem fixar-se a eles. Libere-os como se
estivesse aliviado, pensando: Eu no preciso embarcar nesse trem. Esteja
consciente de sua respirao. No incio da prxima inspirao, conte
mentalmente de forma breve: Um. Ento, em um estado de conscincia
simples, continue a prestar ateno na respirao, contando at 21.
Agora, vamos colocar em cena novamente o poder da imaginao. Passe
desse modo de simples conscincia, para longe da mente quieta, e acione os
poderes do pensamento criativo. Comearemos pelo corpo. Se preferir, afirme a
si mesmo como hiptese de trabalho, se no for algo que voc tenha
experimentado de forma direta a pureza essencial da sua conscincia. Essa
dimenso da conscincia livre de estruturas conceituais, primordialmente pura
localizado nas atitudes ou conduta das pessoas, mas em nosso corao e em nossa
mente. No somos capazes de ver os outros com compaixo porque nossa mente
est sob a influncia dos kleshas, as aflies mentais venenosas. Uma premissa
fundamental do budismo que o estado natural de nossa mente de pura
luminosidade. Porm, quando as aflies infectam a mente, ela se torna confusa
ou distorcida. O gatilho pode ser a lembrana de ter sido maltratado por algum.
Ou pode ser a ganncia ou o desejo. Muitas vezes, o medo desempenha algum
papel. Esses so os kleshas. A mente que de forma maldosa inflige sofrimento aos
outros est sempre sob o domnio dos kleshas. Sejamos ousados e vejamos se
somos capazes de cultivar a compaixo por aqueles que esto plantando as
sementes de sofrimento, e no apenas por aqueles que esto colhendo os frutos
do sofrimento.
PRTICA
Comece estabelecendo o corpo e a mente em seus estados naturais, e dirija a
sua ateno para a respirao, contando 21 respiraes a fim de que a mente se
torne funcional. Agora, simbolicamente, afirme a pureza essencial do seu prprio
corao, de sua prpria conscincia: tranquila, no contaminada por aflies
mentais, primordialmente pura, preenchida da alegria que se origina da verdade,
uma alegria enraizada na realidade. Mais uma vez, imagine essa essncia, de
forma simblica, como uma esfera de pura luz branca radiante e brilhante, uma
luz de pureza e de purificao, a luz da compaixo, a luz do perdo. Imagine essa
luz inundando o seu corpo e a sua mente. Imagine-a purificando, dissipando todas
as impurezas do corpo e todas as aflies e as distores da mente, da mesma
forma que a luz dissipa a escurido.
Pense em um indivduo ou grupo de indivduos que esto, neste momento,
sujeitos a aflies mentais, seja deluso, raiva, egosmo, ganncia ou estupidez.
Pense nas pessoas que possam estar empenhadas em agir a partir dessas aflies
mentais, achando que esto fazendo a coisa certa, embora estejam
completamente equivocadas. Em vez disso, esto ativamente prejudicando
aqueles ao seu redor, talvez at tendo prazer em faz-lo, pensando que, de
alguma forma, isso se justifica.
Imagine que voc mesmo seja essa pessoa ou grupo de pessoas. Coloque-se
na pele dessa pessoa e, em seguida, retorne sua. Imagine como estar sujeito
s mesmas aflies mentais que esto na origem desses fluxos de
comportamento prejudicial. Imagine ser uma pessoa que est plantando as
sementes da sua prpria dor e sofrimento na busca pela felicidade.
Agora, volte para o seu prprio corpo e retome o contato com esse outro ser
humano (ou grupo) que, como voc, est procura de felicidade e deseja se
livrar do sofrimento e do medo. Imagine que, a cada inspirao, voc absorva
essa nuvem de deluso, essa nuvem composta de tudo que possa haver de mal,
com todas as aflies que possam estar por trs. A cada inspirao e com o
desejo de que voc possa ser livre, pense: quer voc esteja se sentindo bem ou
angustiado neste momento, que voc possa se livrar da fonte do sofrimento.
Como voc, assim como eu, deseja ser livre, que voc possa ser livre.
A cada inspirao, como fez anteriormente, imagine-se trazendo essa
escurido para o seu corao. A cada inspirao, absorva-a e, ao expirar,
imagine que ela desaparea completamente, que se extinga, sendo consumida
como uma pena em uma fogueira. Imagine as fontes do sofrimento
desaparecendo. Imagine a nuvem sendo dissipada, a cada respirao. E imagine
o alvio dessa pessoa, tendo a sua mente curada, voltando a um estado de
equilbrio sereno, a um estado de tranquilidade e bem-estar.
Agora, expanda o escopo de sua conscincia para incluir cada ser deste
mundo, todos como voc mesmo, desejando a felicidade e liberao do
sofrimento. Pense em como voc muitas vezes errou na busca pela felicidade e
em como fcil se deludir na tentativa de se livrar do sofrimento e do medo.
Imagine a escurido, a ignorncia, a deluso e todas as outras aflies mentais s
quais todos sucumbem. A cada inspirao e com o desejo de que todos possam
ser livres, que todos os seres sencientes possam se livrar do sofrimento e das
fontes de sofrimento, tome para si e elimine essa escurido na insondvel luz da
pureza absoluta da conscincia. Imagine o fardo de todo o mundo sendo aliviado
e imagine todos os seres verdadeiramente livres, no s do sofrimento, mas de
todas as suas causas.
Agora, por um instante, libere o anseio, desprenda-se da imaginao, libere
sua mente e repouse no simples estado de estar consciente que anterior ao
surgimento da mente. Descanse profundamente na natureza de sua prpria
conscincia.
Encerre a meditao. Como voc a iniciou cultivando a motivao mais
significativa possvel, encerre a prtica com essa dedicao. Que qualquer
benefcio que tenha surgido por meio dessa prtica possa ser dedicado
realizao de suas aspiraes mais significativas, para si e para todos aqueles que
o rodeiam.
No sentiam que estivessem fazendo algo essencialmente mau. No, para eles
havia justificativa: Pode parecer ruim, mas voc no enxerga o cenrio mais
amplo. apenas um daqueles trabalhos duros que algum precisa fazer e este
coube a mim. Aqueles que cometem esse tipo de crueldade no tm
conhecimento das verdadeiras fontes de felicidade e das verdadeiras fontes de
angstia, sofrimento e conflito. Desse desconhecimento, dessa falta de clareza,
da falta de sabedoria, surge a deluso a compreenso equivocada da realidade
e todos os males do mundo se originam a partir da.
Embora no sejamos criminosos tnicos, h momentos em que ferimos
aqueles que nos rodeiam por meio de nossos pensamentos, nossa fala e nosso
comportamento fsico. Muitas vezes fazemos essas coisas a partir da deluso,
catalisada pelo medo medo de perder o nosso sustento, medo de perder o nosso
conforto, medo de perder as coisas que imaginamos nos dar segurana. Sentimos
medo e, a partir da deluso, revidamos. Ningum escolhe a deluso ou a
ignorncia. Ningum escolhe deliberadamente a estupidez ao invs da
inteligncia, a deluso ao invs da sabedoria. Quando algum pergunta voc
gostaria de ser destemido, corajoso e ousado, ou gostaria de ser tmido, cheio de
ansiedade e de medo?, ningum responde o medo me parece muito bom.
No escolhemos essas coisas sucumbimos a elas. Por isso, fundamental
distinguir as aflies mentais daquele que est mentalmente aflito, em vez de vlos como uma coisa s, identificando as pessoas com as suas aflies mentais.
Com empatia e compaixo, podemos ver como um mdico v: aqui est o
paciente, e aqui est a doena. Eles no so idnticos, caso contrrio, os pacientes
nunca poderiam ser curados, apenas poderiam ser colocados em quarentena.
Faa essa distino entre as aflies mentais e as pessoas mentalmente aflitas,
comeando por voc mesmo. Ao abrir mo de nossa tendncia de julgar e
condenar os outros e a ns mesmos por nossas limitaes e defeitos, acessamos a
nossa capacidade inata para a compaixo, que no exclui ningum. S ento o
nosso corao se torna incomensurvel.
P O U CO D E P O I S D E T E R M E M U D A D O PA RA Amherst,
Massachusetts, aps um perodo de quatro anos dedicado na maior parte
meditao solitria, tive o privilgio de servir como intrprete para Tara
Rinpoche, um lama tibetano snior que estava dando ensinamentos no Instituto
Americano de Estudos Budistas, fundado por Robert Thurman. Ele era um
homem sbio e amoroso, e foi de grande ajuda para mim quando comecei a
integrar os meus anos de estudo e prtica do budismo com a vida no Ocidente
moderno. Lembro-me em especial de seus comentrios sobre duas maneiras de
cultivar o amor incondicional e a compaixo, independentemente de as pessoas
serem prximas ou afastadas. A primeira maneira, segundo ele, foi
perfeitamente exemplificada no ideal monstico, em que o monge se desliga de
sua famlia biolgica e procura visualizar todos os seres da mesma forma, como
se fossem seus pais e mes, irmos e irms. Ele comea com a viso equnime
de tentar cuidar de todos da mesma maneira, abandonando o apego ao
pensamento de essas pessoas so a minha famlia e esses so os meus amigos
mais prximos, enquanto o restante est fora do meu crculo de entes queridos.
Partindo desse ponto de imparcialidade, o desafio do monge cuidar mais
profundamente de todos, vendo-os como seus parentes.
PRTICA
Vamos comear essa sesso seguindo a importante tradio de primeiro
trazer mente as nossas mais elevadas aspiraes. O que buscamos alcanar na
vida? O que buscamos por meio de nossa prtica espiritual, para ns mesmos e
para aqueles que nos rodeiam?
Em seguida, acomode o seu corpo e a sua mente como j fez vrias vezes
anteriormente, assumindo uma postura correta. Aprenda bem a rotina, encontre
uma postura em que possa se sentar calmamente e vontade. O seu peito deve
estar ligeiramente elevado, os ombros relaxados, os msculos do seu rosto e dos
seus olhos devem estar soltos. Para completar esse processo, tome trs
inspiraes lentas e profundas, respirando pelas narinas at o abdmen. Durante
a inspirao, expanda primeiramente o abdmen, em seguida o diafragma e
finalmente deixe o ar chegar ao trax. Quando atingir quase a capacidade total,
solte o ar atravs das narinas, soltando-o completamente e, junto com o ar,
liberando todas as tenses do corpo e da mente.
Nessa sesso, retomaremos os fundamentos, voltando ao cultivo da ateno
equilibrada, do equilbrio meditativo, da quietude. Desperte sua conscincia e
permita que sua ateno inunde todo o campo de sensaes tteis por todo o
corpo, desde o topo da cabea at as plantas dos ps. Esteja fisicamente presente.
Mas e se uma pessoa ocasionalmente se retirar por qualquer perodo que parea
significativo e adequado a fim de cultivar virtudes como o equilbrio da ateno,
a ateno plena discriminativa, o amor e a compaixo? A curto prazo, pode
parecer que essa pessoa no est fazendo nada pela sociedade. Mas essa prtica
leva ao equilbrio psicolgico e ao amadurecimento espiritual. claro que vale a
pena. Quando essas pessoas acessam os seus recursos internos de virtude mais
profundos e depois retornam ativa com maior bondade, clareza e
discernimento, elas nos demonstram, por exemplo, que agora mesmo temos
dentro de ns tudo de que precisamos para encontrar a felicidade que estamos
buscando.
Conheo vrios iogues tibetanos que passaram dcadas em retiro de
meditao solitria. No entanto, muitas pessoas na sociedade de hoje
desconfiariam desse estilo de vida recluso. Quando entrei no meu primeiro retiro
longo de shamatha, em 1980, o Dalai Lama me falou sobre um monge que vivia
em retiro no Buto e que havia realizado shamatha plenamente. A seguir, o
monge passou prtica de vipashy ana e um dos resultados de sua prtica foi que,
depois de algum tempo, descobriu que podia curar as pessoas de vrias doenas
por sua simples presena. Logo ele teve que interromper sua prtica meditativa,
porque as pessoas estavam fazendo fila do lado de fora de sua cabana para
serem curadas. Presumo que sua motivao original para a prtica era a de
curar sua mente de todas as aflies, mas vejam vocs ele descobriu que sua
presena poderia curar os outros de suas aflies fsicas espontaneamente.
Admiramos as pessoas que, a fim de curar os doentes, estudam medicina durante
anos a fio e podemos tambm nos alegrar quando, a fim de curar a mente de
todas as suas aflies, outros se dedicam a uma rigorosa prtica contemplativa.
Ao praticar as quatro qualidades incomensurveis, o foco no nem o eu,
nem os outros. Pelo contrrio, o tema recorrente tanto para ns mesmos
quanto para os outros. H aqui uma completa igualdade, uma total
uniformidade. O cultivo da alegria emptica uma prtica significativa, virtuosa
e que traz satisfao sem absolutamente nenhuma desvantagem. Quer
consideremos ns mesmos ou os outros, o que nos traz prazer a prpria ao
virtuosa. Portanto, a soluo para o problema do egosmo muito simples:
nenhuma das virtudes que ocasionalmente manifestamos e nem as atividades
virtuosas das quais participamos surgem de um ego autnomo e autossuficiente.
Em primeiro lugar, esse ego no existe. Todas essas virtudes surgem em
dependncia de causas e condies como eventos interdependentes.
Considere as suas prprias qualidades mais primorosas e se pergunte de onde
vieram. Elas surgiram em relao s pessoas que cuidaram de voc conforme
voc cultivava essas qualidades. O que estava apoiando voc em tudo isso? O que
estava impedindo essas qualidades de se perderem ou de serem suprimidas?
Quando comeamos a observar o que d origem s nossas virtudes de corpo, fala
PRTICA
Inicie essa sesso como anteriormente, estabelecendo primeiramente o
corpo, a fala e a mente em seus estados naturais, e, em seguida, contando 21
respiraes para ajudar a estabilizar a mente. Enquanto segue para o cultivo da
equanimidade, ou imparcialidade, traga mente o desejo natural de se livrar do
sofrimento e da dor e encontrar a felicidade. Todos ns nos importamos e
ansiamos pelo nosso prprio bem-estar, independentemente da forma como
conduzimos as nossas vidas. E, quando buscamos nossa prpria felicidade em
detrimento dos outros, isso se d, invariavelmente, devido s aflies mentais que
dominam temporariamente as nossas mentes. Prejudicamos os outros e, por fim,
prejudicamos a ns mesmos por ignorncia e por deluso.
Agora leve sua ateno a algum que conhece bem ou com quem se
encontra com frequncia, mas que tem pouca importncia para voc. Algum
cujo sucesso ou adversidade provavelmente no teriam muito efeito sobre voc.
Deixe esse sentimento de indiferena surgir. Experimente-o e reconhea-o.
Ento, preste bastante ateno a essa pessoa, no como um objeto, mas como
um sujeito, um ser senciente como voc. Imagine-se sendo essa pessoa e
experimentando as suas esperanas e temores, alegrias e tristezas. Sabendo que,
apesar de todas as diferenas superficiais, ele ou ela fundamentalmente como
voc, aspire que os desejos mais ntimos dessa pessoa se cumpram, com
empatia, como se fossem seus. Indo e vindo, veja essa pessoa como o outro a
partir de sua prpria perspectiva e, a partir da perspectiva dela, veja a si mesmo
como o outro, deseje que essa pessoa encontre a felicidade e se livre do
sofrimento e de suas causas.
Agora, traga mente uma pessoa por quem voc sente um forte apego.
Talvez algum que tenha provado ser um grande amigo, que o tenha apoiado, ou
ajudado a ter sucesso, ou trazido muita alegria e conforto. Talvez voc
simplesmente admire essa pessoa por suas prprias qualidades encantadoras,
fsicas ou mentais, e sinta alegria em estar com ela. Essa pessoa um objeto que
lhe traz felicidade, e voc reage com apego. Deixe surgir esse sentimento de
apego, esse desejo egocntrico, notando o quanto essa pessoa significa para voc
como um suporte para o seu prprio bem-estar. Agora, troque a sua perspectiva
pela perspectiva dessa pessoa: imagine-se sendo ela e experimentando as suas
esperanas e medos, sucessos e fracassos. Imagine o seu desejo por felicidade e
segurana, e empaticamente tome esse desejo como se fosse seu. Depois, volte
para a sua prpria perspectiva, vendo essa pessoa como um ser humano como
voc, e aspire que ela encontre bem-estar, independente de seus prprios desejos
autocentrados.
Por fim, leve sua ateno a algum que tenha prejudicado voc, que tenha
lhe desejado mal, ou que tenha qualidades que voc considera repugnantes. Essa
pessoa parece ser um impedimento para a sua prpria felicidade, e
desagradvel at mesmo estar em sua presena. Ela parece uma fonte da sua
infelicidade, e pode ser que voc sinta que o mundo como um todo seria melhor
sem ela. Deixe que o medo, a averso ou o dio por essa pessoa se manifestem
enquanto est silenciosamente sentado em meditao. Agora, troque a sua
perspectiva pela perspectiva dessa pessoa, imaginando ser como ela, com as suas
esperanas e medos e suas ideias sobre como encontrar felicidade e segurana.
Algumas dessas ideias podem ser deludidas, mas, se assim for, a pessoa ainda
no sabe e est convencida de que a melhor maneira de encontrar o que
procura, no importando quantas outras pessoas sejam prejudicadas nesse
processo. Sem concordar com as suas atitudes, comportamento ou ideias,
observe os seus anseios bsicos por felicidade e por se libertar do sofrimento.
Essencialmente, eles no so diferentes dos seus. Ento, experimente-os como se
fossem seus e deseje que ela possa ser feliz. Cultive o desejo de que ela alcance
a clareza quanto s verdadeiras causas da felicidade e do sofrimento e tenha uma
vida de acordo. Que ela fique bem e feliz, livre do medo e do sofrimento, assim
como deseja a si mesmo. Novamente, observe essa pessoa a partir de sua
prpria perspectiva, vendo-a agora no como um ser to desagradvel, um
objeto ameaador, mas como um ser senciente assim como voc, digno de
felicidade.
Agora, expanda o alcance da sua conscincia, incluindo todos os seres,
humanos ou no, que anseiam pela felicidade e pela liberao da dor e do
sofrimento. Como fez anteriormente, visualize a pureza essencial de sua prpria
conscincia na forma de uma esfera radiante de luz branca em seu corao.
Conforme inspira, imagine que ela remova todo o sofrimento do mundo,
juntamente com as suas causas subjacentes, e dissolva essa nuvem escura de
angstia em seu corao, onde ela se extingue sem deixar vestgios. E, conforme
expira, deixe que essa luz flua igualmente de seu corao em direo a todos os
seres, satisfazendo os seus desejos mais profundos, trazendo-lhes alegria e
felicidade medida que nutre as verdadeiras causas de seu prprio bem-estar.
Que todos os seres, assim como ns, possam ser livres do sofrimento e de suas
causas. Que cada ser encontre a felicidade e as causas da felicidade.
Ao encerrarmos essa sesso, dedicamos os benefcios da prtica: que
qualquer mrito que possa ter sido produzido por nos dedicarmos a essas prticas
possa levar ao florescimento da bondade amorosa e da compaixo, da alegria
emptica e da equanimidade em nossas prprias vidas. Que ns possamos nos
tornar um exemplo para os outros. Que ns possamos incorporar essas quatro
qualidades incomensurveis. Que ns possamos despertar essas mesmas
qualidades em outros. Que ns possamos ensin-las aos nossos filhos, e eles a
seus prprios filhos. Que ns possamos viver bem e felizes juntos. Antes de
veem como seu lder e sua fonte de inspirao. Ele sabe que essas pessoas o
veem de uma maneira especial. E assim, grande parte de sua agenda bastante
ocupada dedicada a trabalhar para o bem dos tibetanos e ensinar o Darma para
os tibetanos, sua famlia. Na verdade, ele usa seu tempo para viajar por todo o
mundo e encontrar-se com outras pessoas que querem sua ajuda. E ele reza por
todos os seres sencientes. Mas, em grande parte, ele trabalha para os tibetanos.
Ser que faz isso porque acha que os tibetanos so mais dignos de sua
preocupao do que os bolivianos, os australianos ou os etopes? No, ele se
dedica mais conscienciosamente e est mais disponvel para os tibetanos porque
eles o veem de uma forma diferente dos outros. Simples assim.
Por ter observado o Dalai Lama em muitas situaes, s vezes servindo
como seu intrprete, eu no acredito que ele ame os tibetanos mais do que as
outras pessoas. Eu tambm no acho que sinta mais compaixo pelos tibetanos
que sofreram com as violaes dos direitos humanos por comunistas chineses do
que por outras pessoas que sofreram genocdio sob outros regimes totalitrios.
Nem mesmo acredito que ele sinta mais compaixo pelos tibetanos do que pelos
chineses, que tm oprimido o seu povo. Me parece que a sua compaixo
verdadeiramente imparcial.
Por t-lo visto em ao, sei que tal compaixo possvel. Da mesma forma,
podemos ser bons pais e bons amigos, bons irmos e bons filhos para nossos pais
e ainda assim ter essa bondade amorosa imparcial e incondicional. O cultivo da
equanimidade possvel. E a ausncia de limites das quatro qualidades
incomensurveis depende inteiramente dela.
Antes de encerrarmos esta discusso, vamos revisar os falsos representantes
de cada uma das quatro qualidades incomensurveis e ver como cada prtica
equilibra a outra. Quando o cultivo da bondade no funciona, o resultado o
apego autocentrado, o que pode ser equilibrado pela meditao sobre a
equanimidade. Quando a compaixo sucumbe ao seu falso pretendente, o pesar,
podemos restaurar o equilbrio dos nossos coraes cultivando a alegria
emptica, observando as alegrias e as virtudes dos outros e de ns mesmos.
Quando a prtica da alegria emptica se transforma em frivolidade, possvel
superar isso cultivando a bondade amorosa, aspirando que todos os seres possam
experimentar a verdadeira felicidade e cultivar suas causas. Finalmente, quando
a equanimidade cede ao distanciamento indiferente, podemos reverter
meditando sobre a compaixo, nos concentrando no sofrimento dos seres
sencientes, em como sofrem e continuam a semear as causas de sua prpria
misria. Assim, cada uma das quatro qualidades incomensurveis ajuda a
equilibrar os desvios de outra. Aqui realmente temos um caminho para a
realizao de ns mesmos e de nossos companheiros humanos.
A P S O D E SE N V O LV I M E N T O D A S Q U AT RO qualidades
incomensurveis e antes do cultivo da sabedoria est a joia da coroa de todo o
budismo Mahay ana. Em snscrito, chamada de bodicita, que traduzo como o
esprito do despertar. Se voc pudesse ler e praticar apenas um captulo deste
livro, deveria ser este. Porque bodicita, o esprito do despertar, comea com
shamatha, que torna a sua mente funcional, segue com o cultivo da bondade
amorosa e da compaixo, e, em seguida, culmina no Dzogchen, a Grande
Perfeio. Abrange todo o Budadarma nada deixado de fora.
Entre todos os professores espirituais com quem tenho treinado ao longo dos
anos, nenhum incorpora de forma mais clara as qualidades de bodicita do que
Sua Santidade o Dalai Lama. Isso ficou evidente para mim em 1979, quando tive
o privilgio de servir como seu intrprete durante visitas Sua e Grcia. Ele
parecia irradiar um sentimento de bondade e humildade, e me senti inundado por
sua ternura. Em Atenas, nos foi oferecida hospedagem em uma residncia
privada. A porta da frente se abria para uma sala de estar que levava a um
corredor com todos os quartos da casa. Sua Santidade foi acomodado no quarto
ao final do corredor. Quando ia para o banho, tinha que atravessar o corredor at
o banheiro mais prximo. Em uma tarde quente, caminhando para seu banho,
enrolado apenas em uma toalha, ele olhou para a sala de estar onde estvamos
reunidos e nos cumprimentou com um aceno e um sorriso feliz.
Alguns dias mais tarde, visitamos um centro budista fundado por Kalu
Rinpoche, um lama altamente respeitado da ordem Kagy upa do budismo
tibetano. No passado, Kalu Rinpoche havia instrudo seus alunos novatos a se
dedicarem s tradicionais prticas preliminares em preparao para as
meditaes esotricas do budismo Vajray ana. Mas, depois de sua breve visita
Grcia, Kalu Rinpoche voltou para a ndia, deixando os seus alunos sem ningum
para orient-los na prtica diria. As preliminares que ele ensinou incluem a
recitao de mantras e muitas outras prticas devocionais, tais como a realizao
de 100.000 prostraes para os budas. Esses alunos iniciantes disseram ao Dalai
Lama que tinham muita resistncia para realizar essas prticas, apesar das
instrues de seu lama, a quem reverenciavam. Sua Santidade respondeu que
essas preliminares so destinadas especificamente a preparar o aluno para
prticas Vajray ana avanadas, mas no so fundamentais para o budismo como
um todo. Ele os encorajou a enfatizar sobretudo o cultivo da bodicita. Executar
at mesmo uma nica prostrao com a motivao de bodicita, ele lhes disse,
mais valioso do que fazer 100.000 prostraes com uma motivao egosta.
Ento, deixe que bodicita seja o corao da sua prtica.
PRTICA
Sente-se confortavelmente, repousando o corpo de uma maneira que facilite
a meditao. Para ajudar a manter a estabilidade da ateno, permanea to
imvel quanto possvel. Quer esteja em uma cadeira com os ps no cho ou
sentado de pernas cruzadas, assuma uma postura de vigilncia, com o esterno
ligeiramente elevado para que possa respirar no abdmen sem esforo.
Assegure-se de estar com o abdmen relaxado, para que possa se expandir
quando voc inspira. Os msculos do seu rosto esto relaxados e soltos,
Ao longo dos anos, desde que recebi esses ensinamentos sobre bodicita pela
primeira vez, foi ficando cada vez mais claro para mim que o cultivo da
compaixo sobretudo uma questo de prestarmos ateno aos outros em vez de
nos esforarmos para nos preocupar com eles. Como j discutimos antes, a
compaixo no sentir pena: em vez disso, ela ver o sofrimento e
automaticamente aspirar que possa ser aliviado. Por exemplo, se voc est
passando pela cena de um acidente, espera espontaneamente que ningum tenha
ficado ferido com gravidade. Esse tipo de compaixo no requer uma grande
prtica espiritual. o resultado natural de prestar ateno ao sofrimento dos
outros.
Quando observamos a magnitude do sofrimento no mundo e a maneira pela
qual tolamente perpetuamos as fontes do nosso sofrimento, a compaixo uma
resposta natural. Isso nos leva questo: como podemos estar a servio no
apenas para atenuar alguns dos sintomas, mas para eliminar as causas
fundamentais do sofrimento para todos? Para abordar essa questo a partir de
uma perspectiva prtica, faz sentido o fato de que, quanto mais nos curarmos das
aflies mentais e quanto mais desenvolvermos virtudes como a sabedoria e
compaixo, mais eficazes poderemos ser ao nos colocarmos a servio dos outros.
Nas palavras de Shantideva: Aqueles que anseiam superar as esmagadoras
angstias da existncia, aqueles que desejam dissipar as dificuldades do mundo e
aqueles que anseiam por experimentar uma mirade de alegrias nunca devem se
separar do esprito do despertar.[45]
Temos o desafio de descobrir a nossa natureza bdica e tambm o desafio de
despert-la. Esse no um estado passivo de conscincia. Pelo contrrio,
podemos dar alguns passos para despertar a nossa prpria natureza bdica, de
forma a torn-la ativa em nosso comportamento fsico, verbal e mental. A chave
o cultivo da grande compaixo, ou mahakaruna. Lembre-se do tpico da
compaixo ilimitada como a segunda das quatro qualidades incomensurveis.
Esse um tipo de compaixo que no se fixa nas demarcaes de amigo,
inimigo e pessoa neutra, mas abrange todos os seres, eu mesmo e os outros,
incondicionalmente. Todavia, mahakaruna vai um passo alm disso. Ela implica
tomarmos para ns a responsabilidade de aliviar o sofrimento dos outros e de
levar cada um deles, sem exceo, a um estado de alegria duradoura.
Quando Geshe Rabten explicou a diferena entre compaixo ilimitada e
grande compaixo a um pequeno grupo de estudantes em nosso monastrio na
Sua, ele fez uma analogia com as diferentes formas de reagir ao incidente de
uma vaca que ficou atolada em um buraco de esgoto. Uma pessoa que tenha
cultivado a compaixo ilimitada veria a vaca como um amigo querido, e tentaria
libert-la com cordas e com a ajuda de outras pessoas, puxando-a at a terra
firme, para fora da fossa. Mas um bodisatva que desenvolveu a grande
compaixo, assumindo a responsabilidade pessoal de resgatar a vaca, faria tudo
que fosse possvel para libert-la, inclusive pular para dentro da fossa. Quando
um de seus alunos perguntou se deveramos nos considerar como o bodisatva,
Geshe Rabten nos disse sem rodeios: Vocs so a vaca!
A grande compaixo a fora motivadora que inspira todo o modo de vida
do bodisatva. Com a grande compaixo assumimos responsabilidade pessoal pelo
bem-estar de todo o mundo. Ao cultivar essa dimenso da compaixo,
experimentamos um sentimento de profunda inter-relao, que torna o bemestar de cada pessoa to importante quanto o nosso. Assim, a grande compaixo
se expressa por meio dessa aspirao: Que todos os seres sencientes se livrem
do sofrimento e das fontes de sofrimento, e que eu seja capaz de ocasionar isso.
NO CAMINHO DO BODISATVA:
TRANSFORMANDO A ADVERSIDADE E A FELICIDADE
Na tradio budista tibetana, so apresentadas duas abordagens para explorar
e manifestar o poder da conscincia primordial. A primeira delas poderia ser
chamada de um modelo de desenvolvimento, no qual a natureza bdica
caracterizada como algo que ns j temos, um potencial que existe dentro de
cada um de ns para alcanar o perfeito despertar espiritual. Em outras palavras,
os obscurecimentos e as aflies de nossa mente no so intrnsecos nossa
prpria existncia. Podem ser irreversivelmente dissipados, permitindo que a
pureza inata de nossa mente se manifeste. A segunda abordagem pode ser vista
como um modelo de descoberta, no qual a natureza bdica apresentada no
como algo que temos, mas sim como algo que j somos ela no , portanto, um
potencial, mas sim uma realidade oculta. De acordo com esse ponto de vista, se
investigarmos quem realmente somos, se pudermos sondar a dimenso mais
profunda do nosso ser, reconheceremos que a natureza essencial de nossa prpria
mente a conscincia primordial que nunca foi contaminada por qualquer
aflio ou obscurecimento mental.
medida que nos aventurarmos no caminho da iluminao, certamente
enfrentaremos bons e maus momentos. Para que possamos florescer em nossa
prtica espiritual e no vacilar cada vez que nos depararmos com a adversidade,
devemos aprender a transformar momentos ruins em alimento para o nosso
amadurecimento espiritual. No sexto captulo de A Guide to the Bodhisattvas
Way of Life, so explicados vrios mtodos teis para transformar a adversidade
em lenha para a fogueira, para aprofundar nossa compaixo e outras qualidades
inatas prpria iluminao. Shantideva elimina uma grande dose de frustrao
desnecessria, depresso e desespero, ao colocar as seguintes questes: Se h
algo que voc possa fazer em relao a um problema, por que se sentir
frustrado? Se no h nada que voc possa fazer, por que se perturbar?[49]
Um mtodo para transformar a adversidade em uma habilidade ao longo do
caminho us-la como combustvel para intensificar o esprito do emergir, o
desejo de nos libertarmos do sofrimento e de suas causas internas. Queremos nos
curar da deluso, da carncia e da hostilidade. Muitas das dificuldades que
encontramos se originam, em parte, de nossas prprias aflies mentais e de
comportamentos prejudiciais nesta vida. Mas, em algumas ocasies, sofremos
mesmo sem termos cometido qualquer ao negativa. Nesses casos, se
estivermos dispostos a aceitar como hiptese de trabalho a teoria da
reencarnao, em que cada uma das nossas encarnaes condicionada por
nosso comportamento no passado, podemos considerar nossos sofrimentos atuais
como consequncias de nossas aflies mentais e m conduta em vidas
anteriores. No que estejamos sendo punidos por nossos pecados. Em vez disso,
CO M A P R T I CA D I U RN A D A I O G A D O S sonhos, iniciamos o
treinamento de bodicita absoluta o cultivo do insight contemplativo sobre a
natureza da realidade, com nfase especial na conscincia primordial. Gy atrul
Rinpoche, lama snior da ordem Ny ingma e um dos meus principais mentores,
foi quem me deu os meus primeiros ensinamentos sobre ioga dos sonhos, em
1990.
PRTICA
corpo e a nossa mente esto sob o nosso controle, vez aps vez isso se mostra
falso. O nosso corpo envelhece e adoece, quer gostemos ou no. As nossas
emoes, pensamentos e ateno muitas vezes parecem ter vontade prpria. E,
claro, o controle que temos sobre nossos bens pessoais, amigos, colegas e sobre o
ambiente em geral comprovadamente limitado, a ponto de s vezes parecer
que perdemos completamente o controle. Cada um de ns sonha noite os
sonhos so nossos e de ningum mais , mas repare como o controle que temos
sobre eles pequeno.
Isso implica que pode haver algo arbitrrio sobre a gama de coisas que
chamamos de nossas. Consideramos alguns eventos e qualidades como sendo
nossos simplesmente porque ns e mais ningum podemos experiment-los,
como nossos pensamentos, desejos e sonhos. Consideramos tambm outras
coisas como sendo nossas porque pensamos que vieram de ns e que podemos
control-las, como nossos pensamentos, emoes, filhos e realizaes. Alm
disso, h aquelas so nossas simplesmente porque nos identificamos com elas
como resultado de uma associao real ou imaginria, como o nosso time de
futebol, a nossa nao ou a nossa raa.
Mas experimentarmos algo no o torna inerentemente nosso. Muitas vezes, os
objetos e as pessoas que achamos que podemos controlar agem de forma
contrria aos nossos desejos, e o fato de algumas coisas serem nossas , muitas
vezes, uma questo de conveno social. Se algo fosse inerentemente nosso,
estaria sempre sob nossa posse e controle, mas isso no verdade nem mesmo
sobre a nossa prpria conscincia, quanto mais sobre outras coisas. Entretanto,
uma vez que tudo com o que nos identificamos impermanente e sujeito a
mudanas, ao final, isso no ser mais nosso, ou porque ter desaparecido, ou
porque ns teremos desaparecido. Em suma, a noo de de fato termos o que
quer que seja uma iluso. Os nossos atributos e posses no so inerentemente
mais nossos do que aqueles com os quais nos identificamos durante um sonho.
Agora, examinemos a natureza do eu que aparentemente tem todos esses
atributos e pertences. Pense em quem voc , no no que voc tem. muito
provvel que, o que vem mente so imagens mentais com as quais se
identificou. Mas nenhuma dessas imagens intrinsecamente sua e, como voc as
est percebendo enquanto objetos de sua mente, no parece plausvel que elas
sejam voc de verdade. So apenas coisas que voc vivencia e s quais se agarra
como se fossem eu ou meu.
Lembre-se de uma situao em que voc tenha sido elogiado ou maltratado.
No primeiro caso, voc pode ter se sentido lisonjeado, pois voc era a pessoa que
estava sendo elogiada. Mas, se analisar as palavras usadas, ver que o que a outra
pessoa estava exaltando no era voc, mas sim alguma qualidade, posse ou
realizao atribuda a voc. Mas nada disso realmente voc e, ento, a sua
resposta eufrica ao elogio foi baseada em uma iluso. O mesmo verdadeiro
no caso de voc ter sido insultado. Ningum nunca de fato o insultou, apenas se
referiram a aparncias que surgiram s suas prprias mentes, e nenhuma delas
inerentemente voc. Assim, no h necessidade de tomar como ofensa pessoal,
como ser ridicularizado em um sonho.
Quando examinamos cuidadosamente o que consideramos como sendo eu
e meu, no encontramos nada que seja intrinsecamente eu ou meu. No
budismo, dizemos que eles, eu e meu, so vazios de uma existncia
inerente. Mas isso no quer dizer que no existam ou que no tenhamos nenhuma
qualidade ou nenhum bem.
Ns com certeza existimos, bem como outras pessoas e nosso meio ambiente
natural. Mas como ns existimos? De acordo com a viso do Caminho do Meio
(Madhy amaka), tudo consiste em padres de eventos surgindo em um perptuo
estado de fluxo inter-relacionado com o ambiente nunca separado, nunca
isolado e nunca independente. Assim, qualquer noo de si mesmo ou de alguma
outra coisa como existindo de maneira independente ilusria.
Todos os fenmenos condicionados surgem como eventos dependentemente
relacionados, pois dependem de:
1. causas e condies anteriores;
2. componentes e atributos do prprio fenmeno;
3. designao conceitual que identifica o fenmeno que possui esses
componentes e atributos.
Poderamos analisar qualquer fenmeno natural com base nesses trs modos
de dependncia, mas vamos continuar a enfocar a natureza do eu. Afinal, cada
um de ns vive e age a partir do centro de nosso prprio mundo; sendo por isso
razovel partir do centro e, ento, passar para o mundo exterior.
Quanto ao primeiro modo de dependncia, todos passam a existir na
dependncia de causas e condies anteriores, como os pais. Em segundo lugar,
cada um de ns existe na dependncia de nosso corpo, mente e outras
caractersticas pessoais. Mas esses dois fatores causas anteriores e qualidades
atuais no so suficientes para constituir uma pessoa. Para que voc possa vir a
existir, algum tem que pensar voc. Esse o poder da designao conceitual.
Ao identific-lo como aquele que porta os seus atributos e possui o seu corpo e a
sua mente, voc trazido existncia. Voc e os outros pensam que voc e,
portanto, voc . Mas, se essa designao conceitual for removida, voc
desaparecer, deixando apenas os seus componentes e seus bens para trs, que j
no sero mais seus. Pelo simples fato de existir como uma sequncia de eventos
relacionados de maneira dependente, voc vazio de existncia inerente. O
significado disso que vivemos em um mundo participativo, no qual nossos
prprios pensamentos desempenham um papel fundamental na determinao do
que experimentamos como realidade. Acorde para esse fato e seja bem-vindo
trazer algo mente que ningum mais pode experimentar. Mas os neurocientistas
descobriram recentemente uma grande sobreposio entre os tipos de funes
cerebrais que correspondem ao sonho, imaginao e percepo de viglia. A
experincia de viglia tambm implica um tipo de imaginao ativa, moldando
um mundo sob a influncia da estimulao fsica externa do crebro, em
oposio estimulao apenas interna.
As cores que voc percebe ao percorrer o seu campo visual no so
qualidades intrnsecas dos objetos externos. Como ressalta o neurologista Antnio
Damsio: No h nenhuma imagem do objeto que esteja sendo transferida do
objeto para a retina e da retina para o crebro.[51] Em vez disso, essas imagens
so catalisadas por ftons que atingem a sua retina e produzem eventos
eletroqumicos ao longo do nervo ptico at o crtex visual, embora as formas e
cores que voc percebe paream ser qualidades inerentes dos objetos existentes
no mundo externo real. Alguns cientistas do crebro concluram que essas
formas e cores percebidas existem apenas dentro do crebro. Mas ningum de
fato viu o vermelho de uma rosa ou o azul do cu em meio s configuraes
neurais do crebro. Essa apenas uma concluso especulativa baseada no
pressuposto de que, uma vez que as imagens visuais no existem no mundo fsico
fora do crebro, devem ento existir dentro do crebro. Imagine s!
Essa natureza ilusria tambm verdadeira para os sons que ouvimos, para
os odores, os gostos e as sensaes tteis que sentimos. Todos eles consistem em
aparncias para a mente, aparncias que no tm existncia inerente no mundo
exterior ao crebro ou no interior do crebro. Mas eles parecem ser atributos de
objetos inerentemente existentes em um mundo real objetivo e, ao nos fixarmos
a eles dessa maneira, persistimos em nosso atual estado de devaneio no lcido.
Pelo menos desde o tempo de Descartes, os cientistas reconhecem a natureza
subjetiva do mundo dos sentidos e tm procurado compreender o mundo fsico
real, uma vez que ele existe independentemente dos nossos sentidos. O que vem
mente quando voc tenta conceber o universo como se ele realmente existisse
l fora? Pense, por exemplo, em um tomo. Voc talvez ir imaginar um
pequeno ncleo com eltrons circulando ao redor, dentro de um domnio muito
maior de espao vazio. Se voc pensar no ncleo, poder imaginar prtons e
nutrons. Se voc conhecer um pouco mais de fsica, poder imaginar partculas
ainda menores, como os quarks. Voc adquiriu essas imagens mentais dos fsicos,
que as apresentam como modelos dos constituintes fundamentais do mundo
fsico, que esto realmente no mundo externo, ainda que ningum esteja olhando.
Mas as imagens que vm mente quando pensamos em partculas elementares,
tomos, campos e energia so criaes livres da mente humana. Eles no so
fotografias instantneas dos componentes reais do mundo fsico, como se
existissem independentemente da conscincia. So modelos teis, com certeza,
mas s existem em relao mente que os concebeu, assim como as
sonho em que pareo estar preso terra para sempre. A moral dessa histria
que s porque podemos tocar alguma coisa no significa necessariamente que
ela exista independentemente da nossa experincia. A verificao do estado
proposto por LaBerge muito mais confivel do que o teste do belisco.
Com base em seu teste, voc pode chegar concluso de que agora est
acordado e no sonhando. Isso verdade: em relao ao seu estado de sonho
comum, voc agora est acordado. Contudo, em relao conscincia
primordial, o estado desperto da conscincia de um buda, neste momento, voc
est sonhando, vivenciando um eu ilusrio em um mundo ilusrio, ambos
fabricados pelo poder do pensamento. Em um texto clssico chamado Natural
Liberation,[53] sobre o qual recebi ensinamentos de Gy atrul Rinpoche, o
contemplativo indiano do sculo VIII Padmasambhava d o seguinte conselho
em relao prtica diurna da ioga dos sonhos: imagine continuamente que voc
esteja sonhando o seu ambiente e todos que nele se encontram, embora,
relativamente falando, voc saiba que est acordado.
Por outro lado, em um sonho noturno, o sonhador no idntico persona no
sonho, uma vez que o sonhador est dormindo na cama e a persona est se
movendo em meio ao sonho. Como sonhador, voc sonha ser um personagem
particular. Voc pode at sonhar que pertence a uma espcie ou gnero diferente,
ou como sendo mais velho ou mais novo do que no estado de viglia. Ou pode
assumir no sonho qualidades, padres de comportamento ou caractersticas que
voc em geral no apresenta no estado de viglia. Em um seminrio que LaBerge
e eu lideramos, uma das participantes, experiente nessa prtica, relatou um sonho
lcido em que se transformou em um disco de vitrola. Depois de ver o mundo
dos sonhos a partir dessa perspectiva vertiginosa por algum tempo, ela ento se
transformou em uma borboleta e voou janela afora. A persona sonhada uma
emanao, uma criao, um artefato do sonhador.
Vamos colocar essa mesma ideia no contexto do estado de viglia. Neste
momento, pense em si mesmo como uma persona no sonho. Quem o sonhador
que sonha voc? Um provvel candidato a sua prpria conscincia primordial,
a dimenso mais profunda do seu ser. Aqueles que vagam pela vida em um
sonho no lcido perderam o contato com a verdadeira identidade, com a
verdadeira natureza, e so aprisionados pela fixao em coisas que no so eu
ou meu como se fossem as nossas verdadeiras identidades e posses. Da
mesma forma, nos fixamos ao mundo que nos rodeia como se fosse
inerentemente real e objetivo, como em um sonho no lcido. O objetivo
principal da ioga dos sonhos diurna tornar-se lcido durante o estado de viglia
como uma preparao para tornar-se lcido quando estamos dormindo, abrindo
o caminho para a prtica noturna da ioga dos sonhos.
prprio despertar foi transitrio, ningum mais pode ter encontrado algo mais
duradouro.
Nenhuma tradio espiritual tem o monoplio da definio de iluminao,
mas, na tradio budista, essa realizao significa estar para sempre livre de
todas as aflies mentais e obscurecimentos, como egosmo, desejo, hostilidade,
inveja e arrogncia, bem como dos sintomas de tais aflies, incluindo
ansiedade, depresso e frustrao. O corao e a mente foram curados de suas
tendncias aflitivas de forma completa e irreversvel, e isso se reflete no
comportamento. Mas a ocorrncia dos falsos despertares est descrita at
mesmo na literatura budista tradicional. H um relato envolvendo um monge
mais velho e seu discpulo iniciante. Enquanto o mestre equivocadamente
pensava j estar iluminado, seu jovem discpulo tinha realmente atingido a
liberao, mas continuava o treinamento para adquirir mais conhecimentos e
virtudes. De maneira intuitiva reconhecendo que seu mestre havia avaliado mal
seu prprio grau de amadurecimento espiritual, o discpulo traou uma estratgia
para trazer o velho monge realidade. O discpulo criou mentalmente uma
apario de um elefante enfurecido e projetou essa iluso para que seu mestre
pudesse v-la. O mestre confundiu a iluso com um elefante real e, em pnico,
saiu correndo. Quando o discpulo o alcanou, aps a dissoluo da apario, ele
calmamente perguntou: Mestre, possvel para um ser iluminado sentir tanto
pnico frente a uma iluso? Esse foi o toque de despertar necessrio para o
mestre, que voltou para a sua prpria prtica com uma compreenso mais clara
do que ainda precisava ser realizado.
PRTICA
Deixe a sua conscincia repousar no corpo, no campo das sensaes tteis,
incluindo os seus ps, panturrilhas, coxas, ndegas, tronco, pescoo e cabea.
Sinta o ritmo, o fluxo da entrada e da sada do ar. Observe essas sensaes tteis e
observe como se deslocam durante cada respirao.
D um descanso sua mente, essa mente que est sempre pulando de um
estmulo para outro em busca das fontes de excitao. Opte por sair da agitao e
escolha a serenidade. Por puro hbito, certamente surgiro pensamentos
discursivos involuntrios e imagens mentais no espao da conscincia. A cada
expirao, como o soprar de uma brisa suave, deixe o contedo da mente ser
liberado e levado.
Mesmo que esteja ereto na posio sentada, a cada expirao, permita que o
corpo inteiro seja levado a um estado mais e mais profundo de repouso, de
profundo relaxamento. Deixe que a sua mente abandone todas as preocupaes
do dia, da noite e as preocupaes com o futuro. Deixe que ela venha a repousar
na quietude da entrada e da sada do ar. Relaxe profundamente o corpo e a
mente, a ponto de se sentir como se estivesse adormecendo conscientemente.
como se voc estivesse fechando as portas da casa para ir se deitar, apagando as
luzes de cada um dos sentidos. Mas deixe uma luz acesa a luz da mente. Deixe
a luz da percepo mental acesa.
A prtica dessa sesso pode ser feita durante o dia, quando estiver acordado,
e tambm noite, quando estiver no processo de adormecer. Esse um mtodo
prtico para adormecer de forma consciente, para observar as transies que
ocorrem conforme a mente passa do estado de viglia para o estado de sono sem
sonhos. Mantenha apenas uma luz acesa enquanto os seus sentidos fsicos forem
desligados. Adormea e sustente a conscincia mental nesse processo. Conforme
a sua conscincia se recolhe do mundo externo de vises, sons e sensaes tteis,
e conforme se retira do mundo interior de conceitos, memrias, desejos,
esperanas e medos, recue a essa quietude interior sem formas, na qual voc
est completamente acordado.
Agora, redirecione o seu foco como se estivesse dormindo. Posicione o feixe
luminoso de sua ateno sobre o domnio da experincia da mente, esse reino
onde surgem as imagens mentais, pensamentos, emoes e sonhos. E observe os
eventos da mente sem ser carregado por eles. Observe-os com clareza e lucidez,
sem interveno. Observe at mesmo os impulsos menos intensos e mais sutis
surgindo na conscincia, as imagens fugazes. Como se estivesse sonhando
lucidamente, lembre-se de que todos esses fenmenos nada mais so do que
manifestaes da conscincia, sendo que ela mesma no tem forma. Nenhum
desses fenmenos voc e nenhum deles existe independentemente da sua
prpria conscincia.
Num primeiro momento, voc recolheu a ateno do ambiente exterior para
o corpo, o campo de sensaes tteis, e em seguida a recolheu outra vez, mais
profundamente, para o campo da mente. Agora, recolha a ateno para o centro,
o centro em relao ao qual no existe periferia, o centro sem limites. Permita
que sua conscincia repouse em sua cognio mais ntima, na conscincia de
estar consciente. Repouse nessa simplicidade absoluta, consciente de estar
consciente, sem um objeto. Quando faz isso, voc repousa na prpria
luminosidade, a natureza clara e cognitiva da conscincia.
O que voc v? Em meio aos muitos estmulos para a mente, em meio ao
fluxo do ambiente do corpo e da mente, possvel discernir uma quietude
contnua? Se assim for, esse o estado inato da prpria quiescncia meditativa
que no precisa ser alcanada, que j est presente. Quando repousa na
conscincia, voc capaz de ver que no h um objeto especfico que seja a
conscincia? Ela no uma entidade real. No tem uma identidade inerente
prpria. to vazia e aberta quanto o prprio espao. Mas, alm dessa qualidade
Em algum momento na sua prtica de ioga dos sonhos, voc pode ficar
curioso para saber como seria experimentar a lucidez sem nenhum tipo de
contedo a experincia de lucidez em um sono profundo sem sonhos. Para
explorar isso, voc pode liberar o sonho e simplesmente estar consciente de estar
consciente. Voc no tem que se preocupar com os joelhos doloridos, com a sua
postura, com as pequenas coceiras aqui e ali ou com qualquer outra distrao
durante a meditao. Agora voc est dormindo, e, portanto, a sua mente est
naturalmente recolhida dos sentidos fsicos e do corpo. Voc j est em uma
arena de meditao, tudo que precisa fazer meditar. Ento, depois de o
crocodilo ter lhe devorado como um jantar de trs pratos, voc talvez possa
decidir que j suficiente e dissolv-lo. Em seguida, permita que a
conscincia repouse na prpria conscincia.
Quando voc acordar aps a prtica de ioga dos sonhos, Padmasambhava
aconselha o seguinte:
De manh, quando acordar, contemple com vigor e clareza: nem
um nico sonho de todos os que tive na noite passada permanece
quando eu acordo. Da mesma forma, nenhuma de todas essas
aparncias que surgirem durante o dia de hoje estar nos meus
sonhos noite.[55]
Os sonhos do dia no so fundamentalmente mais reais do que os sonhos da
noite. So igualmente ilusrios. Do ponto de vista do Desperto, estamos sonhando
neste exato instante. Ontologicamente falando, este reino de viglia no mais
real do que os sonhos que vivenciaremos noite. Ento, como seria estar lcido
durante o estado de viglia? Que tipo de liberdade, que tipo de alegria, que tipo de
escolhas poderiam ser feitas se entendssemos a natureza deste sonho desperto?
O que poderia ser mais fascinante? No sou capaz de imaginar aventura maior
do que essa.
14 A Grande Perfeio
D U RA N T E O S P RI M E I RO S 2 0 A N O S D O meu treinamento no
budismo, estudando e praticando sob a orientao de professores como Geshe
Ngawang Dhargy ey, Geshe Rabten, Gen Lamrimpa, Saky a Dagmola, Balangoda
Ananda Maitrey a e Sua Santidade o Dalai Lama, fui exposto principalmente
abordagem de desenvolvimento do amadurecimento e do despertar espiritual.
Mas, desde o incio da dcada de 1990, sob a orientao do Lama Ny ingmapa
Gy atrul Rinpoche, venho treinando a abordagem de descoberta da Grande
Perfeio ou Dzogchen. Durante esse tempo, tambm tive a sorte de receber
mais instrues sobre essa tradio contemplativa de outros lamas Ny ingmapa e
de Sua Santidade o Dalai Lama.
natureza bdica, mas que tambm envolve uma sequncia exigente de prticas
que fazem parte de uma viso sofisticada tanto da realidade relativa quanto da
realidade absoluta. A prtica autntica do Dzogchen resulta no despertar espiritual
perfeito de um buda, mas isso requer um alto grau de preparao. Sem atingir
shamatha, sem a realizao das quatro qualidades incomensurveis, de bodicita e
do insight direto sobre a ausncia da natureza inerente de todos os fenmenos, o
Dzogchen no ser completamente eficaz. No entanto, isso no quer dizer que o
Dzogchen precise ser adiado at que tenhamos compreendido bem esses estgios
de prtica mais elementares. Muitas pessoas acham que o Dzogchen til
mesmo nos estgios iniciais da prtica. Mas importante no reduzir esse sistema
profundo de teoria e prtica a apenas estar consciente. Esse tipo de
reducionismo comum na prtica moderna do Zen e do Vipassana, mas as
pessoas que fazem isso no devem esperar que tais prticas produzam os
mesmos benefcios que proporcionaram para as geraes de contemplativos
budistas que nos precederam.
uma questo de ponderao. Por um lado, os clssicos da Grande
Perfeio declaram que shamatha, bodicita e a realizao da vacuidade podem
surgir a partir da simples prtica de repousar no estado natural de conscincia
primordial, rigpa. Mas muito fcil confundir a conscincia substrato ou
simplesmente um estado de vazio mental com essa dimenso primordial de
conscincia pura, vazia e luminosa. Especialmente quando experimentamos um
sentimento de bem-aventurana, clareza e no conceitualidade em nossa
meditao, podemos nos agarrar a essas experincias e confundi-las com o
estado real de rigpa. Contudo, como o grande mestre Dzogchen do sculo XIX
Patrul Rinpoche adverte:
Um iniciante pode ser capaz de deixar a mente repousar
naturalmente em si mesma e tentar manter isso. No entanto,
impossvel para ele se livrar da fixao a muitas experincias,
como bem-aventurana, clareza e no conceitualidade,
que acompanham o estado de calma e quietude.[56]
Para elaborar a questo, possvel experimentar a conscincia substrato sem
insight sobre a natureza de qualquer outro fenmeno. Acessar a conscincia
substrato um resultado direto de shamatha, sem necessidade de vipashy ana. No
entanto, para realizar a conscincia primordial preciso reconhecer a natureza
vazia do samsara e do nirvana, e perceber todas as aparncias como
manifestaes da conscincia primordial. Para obter acesso conscincia do
substrato, voc remove a mente de sua prpria base individual. Por outro lado,
para realizar a conscincia primordial preciso abrir sua conscincia para o um
s sabor de todos os fenmenos como manifestaes da conscincia primordial.
Ento, como podemos evitar as armadilhas que nos levam a confundir as
PRTICA
Em seu livro A Spacious Path to Freedom,[57] Karma Chagm cita as
instrues em quatro etapas do contemplativo tibetano Siddha Orgy en, sobre a
unio de Dzogchen e Mahamudra:
1. repouse na conscincia no estruturada;
2. solte as memrias e os pensamentos;
3. transforme a adversidade em ajuda;
4. solte as aparncias.
O Mahamudra um sistema de prticas meditativas intimamente
relacionado com o Dzogchen. Nos trechos a seguir, esse sistema se refere
natureza ltima da conscincia, dharmakay a. As instrues so to profundas e
lcidas que eu as ofereo sem nenhum comentrio de minha parte:
1. Repouse na conscincia no estruturada
Fique vontade como um brmane contando histrias. Fique
solto como um feixe de palha cuja amarrao foi cortada. Seja
gentil como se pisasse em uma almofada macia. Caso contrrio,
voc se aprisionar como se tivesse cado em uma teia de
aranha. Mesmo contraindo todo o corpo e a mente como um
lenhador agarrado a um penhasco, a mente resiste quietude.
Em um estado livre de um objeto de meditao e de um
meditador, ponha-se em guarda, simplesmente recolhendo a
mente sem distrao, e ento deixe tudo ser como ,
calmamente. Assim, a conscincia retornar ao seu lugar de
descanso como um camelo me que havia sido separado de seu
filhote.
Portanto, o ponto crtico de sustentar a mente simplesmente
saber como relaxar em um estado livre de distraes e sem
meditar. Isso profundo. Mais uma vez, diz-se que relaxar a
conscincia no algo fcil.
2. Solte as memrias e os pensamentos
enfatizadas na tradio budista tibetana. Ento, qual a relao entre elas? dito
por muitos dos grandes praticantes, incluindo o atual Dalai Lama, que, a fim de
penetrar rigpa, voc deve realizar a vacuidade. O que isso significa?
Segundo os ensinamentos do Madhy amaka ou Caminho do Meio sobre a
vacuidade, ensinamentos que so fundamentais e completamente compatveis
com o Dzogchen, o mundo em que vivemos, aqui e agora, semelhante a um
sonho. Mas a noo de que os fenmenos que vivenciamos no estado de viglia
no tm uma existncia mais real, objetiva e inerente do que a de um sonho
parece ser contrria nossa experincia. Na verdade, os mestres Madhy amaka
dizem que h uma profunda incongruncia ou incompatibilidade entre a maneira
como os fenmenos parecem ser para ns e a forma como eles so. Se voc
estivesse em uma mesa de restaurante comendo com os amigos e observasse a
pessoa ao seu lado, ela pareceria ter uma existncia objetiva, independentemente
da sua prpria conscincia ou da conscincia de qualquer outra pessoa. Para
confirmar isso, voc poderia se aproximar e cutuc-la, e, para tornar isso mais
cientfico, poderia pedir que as outras pessoas mesa tambm a cutucassem.
Com esse contato fsico em primeira pessoa e com a corroborao de sua
prpria experincia por uma terceira pessoa, voc poderia concluir que essa
pessoa objetivamente real, independentemente das percepes ou concepes
de quem quer que seja. Mas lembre-se de que voc pode fazer a mesma coisa
quando est sonhando. As aparncias, incluindo as sensaes tteis, podem ser
enganosas. Assim, a filosofia budista do Caminho do Meio ensina que os
fenmenos, que parecem existir independentemente, no existem desse modo.
Para que passem a existir, eles devem ser conceitualmente designados. Os
fenmenos que experimentamos no existem independentemente de nossos
modos de percepo ou concepo portanto, dizemos que eles so vazios de
existncia inerente e objetiva, como os eventos em um sonho.
Essa realizao pode ser caracterizada como estar em um estado de viglia
lcido. Para investigar a relao entre a realizao da vacuidade e da
conscincia prstina, imagine que voc esteja sonhando. Nesse sonho, voc
decide que as preocupaes mundanas no esto trazendo a satisfao que
procura, e ento voc decide procurar outras coisas. Voc faz uma varredura na
lista telefnica, verifica com os amigos e, finalmente, encontra um professor
budista qualificado, digamos, um lama tibetano. Em seu sonho, voc se encontra
com o lama e pede orientao. Depois de lhe dar muitos dos ensinamentos
bsicos do budismo, o lama sente que chegou o momento de lhe dar instrues
sobre a meditao da vacuidade. Explicando que nada existe de forma inerente,
independente da designao conceitual, ele revela a voc a natureza de sonho de
todos os fenmenos. Ao investigar a natureza dos fenmenos por si mesmos,
quanto mais voc examina a natureza de sua prpria identidade, de sua mente e
de tudo ao seu redor, mais voc percebe que no h natureza inerente em coisa
alguma. Ento, voc acaba por reconhecer: Isso realmente como um sonho e
todos esses fenmenos so apenas objetos que passam a existir pelo poder da
designao conceitual, por meio da qual eu reifico o meu mundo. Eu
compartimento o meu mundo, separo o sujeito do objeto Sim, eu vejo que
realmente um sonho. Lembre-se: nesse cenrio, voc est de fato sonhando.
E agora, observando o seu progresso, o lama diz: Agora que voc j obteve
insights sobre a vacuidade, acho que est pronto para o Dzogchen. Ento, eu
tenho algumas notcias para voc. Voc no de forma alguma a pessoa que
pensa ser. Voc no essa persona de sonho com a qual se identifica. Na
verdade, tudo o que voc pensa ser apenas uma aparncia. Eu sou apenas uma
aparncia e tudo o que estamos vivendo aqui uma manifestao, uma exibio
da conscincia prstina. Voc no est nesse sonho. Na realidade, voc o
sonhador, o sonhador de mim, o sonhador de voc, voc o sonhador de todo o
ambiente. Isso no como um sonho, isso um sonho! Agora, desperte!
Portanto, enquanto estava sonhando, voc reconheceu a natureza no objetiva do
contedo do sonho. Alm disso, reconheceu que voc o sonhador e no o que
sonhado. Ento, despertando, tornando-se lcido em seu sonho, voc vivencia um
fac-smile de rigpa.
Agora, vamos aplicar isso ao estado de viglia. O Buda e os mestres
Madhy amaka posteriores, como Nagarjuna, Shantideva, Tsongkhapa e o Dalai
Lama, declaram que o estado de viglia como um sonho. E oferecem mtodos
de investigao contemplativa para realizarmos a ausncia de natureza inerente
destes fenmenos aqui e agora. Com base nisso, os mestres Dzogchen declaram:
isso no como um sonho, isso um sonho e estamos apenas sonhando que
somos seres sencientes, mas, na verdade, somos budas. Ns nunca fomos outra
coisa seno seres despertos. Tudo o que precisamos fazer reconhecer o que j
somos.
Se a viso Madky amaka da vacuidade afirma que todos os fenmenos, sem
exceo, so desprovidos de existncia inerente e que existem pelo poder da
designao conceitual, o que dizer da prpria natureza de rigpa? No Dzogchen,
rigpa descrito como a base do ser, como o um s sabor que abrange todo o
samsara e todo o nirvana. Em outras palavras, rigpa soa como algo real no
sentido absoluto. Alm disso, diz-se que rigpa transcende toda a elaborao
conceitual, toda a categorizao originao e cessao, sofrimento e alegria, eu
e no eu, bom e mau, sujeito e objeto, mente e matria, e at mesmo existncia
e no existncia. Rigpa est alm de tudo isso. Como Patrul Rinpoche diz:
Essa conscincia desimpedida e que tudo penetra o ponto
chave da sabedoria naturalmente inerente e inexprimvel, que
est alm de todos os extremos filosficos, como surgir e cessar,
existir e no existir, e, portanto, alm das palavras e dos
conceitos.[61]
Nesse caso, rigpa algo que passa a existir pelo poder da designao
conceitual? No, claro que no. Como poderia ser assim, se rigpa transcende a
prpria modalidade de designao conceitual, de construes conceituais? Est
alm de tudo isso e, portanto, no poderia vir a existir como resultado do pensar.
Mas os ensinamentos Madhy amaka sobre a vacuidade dizem que, se afirmar a
existncia de algo independente da designao conceitual, isso implica que esse
algo existe por sua prpria natureza inerente. Como resolver esse dilema?
A resposta se torna facilmente perceptvel se dermos um passo atrs.
Lembre-se de que o status de rigpa, de conscincia prstina, desafia as prprias
categorias de existncia e no existncia. Rigpa no intrinsecamente real e nem
inerentemente irreal. No isso, no aquilo, no se enquadra em nenhuma
das nossas categorias conceituais. Assim, estando alm da existncia e da no
existncia, no nem verdadeiramente existente, nem trazida existncia pelo
poder da designao conceitual.
Agora, imagine que voc oua ensinamentos e leia livros sobre o Dzogchen
e, por fim, faa alguma ideia ou obtenha alguma noo de rigpa. Voc ouve o
familiar refro de que rigpa a conscincia conceitualmente no estruturada, a
conscincia prstina, a base do samsara e do nirvana que se manifesta
espontaneamente como exibies de todo o mundo e que ainda desafia todas as
construes conceituais. Mas, conforme reflete sobre essas afirmaes, voc
gera construes conceituais sobre rigpa. O que voc est chamando de rigpa
est agora surgindo na sua mente como um objeto. No entanto, quando voc
realmente repousa a sua conscincia em rigpa, a prpria dicotomia entre sujeito
e objeto se dissolve, no h objetos da mente reificados, porque no h diviso
reificada entre sujeito e objeto. Essa a primeira das duas principais fases da
prtica do Dzogchen, conhecida como o Atravessar (Breakthrough). Quando a
mente est repousando em seu estado primordialmente desperto que permeia
toda a existncia, isso rigpa. Mas, ento, rigpa no de forma alguma um
objeto da mente. E a questo de saber se inerentemente existente nem sequer
se coloca.
A clara luz da morte
possvel que pessoas como ns alcancem esses estados elevados de
realizao espiritual, desafiando at mesmo a prpria morte? De uma forma
muito prtica, a resposta sim, mesmo se deixarmos um cadver para trs ao
final desta vida. Isso tem tudo a ver com o que pensamos que somos, com isso a
que estamos nos agarrando como eu e meu. Enquanto eu me agarrar a este
corpo, irei morrer, o meu corpo estar destinado a desaparecer de um jeito ou de
outro. Enquanto eu me agarrar minha mente, minha psique, minha
personalidade, minha histria pessoal, ao meu conhecimento, aos meus
interesses e a outras coisas que j adquiri, eu irei morrer. No processo de morte
rosada. Uma pessoa disse que o seu corpo ficou branco e radiante, e todos
disseram que comeou a brilhar. Por sugesto de um amigo, com o mesmo
nome, Lama Ach, o corpo de Khenpo Ach foi envolto em um manto amarelo
e, com o passar dos dias, testemunhas relataram que puderam ver atravs do
manto que os seus ossos e o seu corpo estavam encolhendo. Aps sete dias,
retiraram o pano amarelo e nada havia restado de seu corpo.
Na literatura Dzogchen, essa conquista conhecida como o pequeno corpo
de arco-ris. Muito mais rara do que ela a conquista do corpo de arco-ris da
grande transferncia. Com essa realizao, a transmutao alqumica completa
dos constituintes materiais do corpo em energia da conscincia primordial pode
ocorrer enquanto voc ainda est vivo e com boa sade. Eu encontrei poucos
relatos de realizaes como essas durante os ltimos 1.200 anos no Tibete,
embora elas possam ter ocorrido sem que eu tenha conhecimento. Um dos que a
realizou foi Padmasambhava, que viveu no sculo VIII. Outro foi seu
contemporneo, Vimalamitra, e um terceiro foi Chetsn Senge Wangchuk, que
viveu na virada do sculo XI para XII. Alm disso, ouvi dizer que dois outros
mestres tibetanos, Ny enwen Tingdzin Zangpo e Chetsn Senge Shora,
alcanaram esse estado. O que Jesus manifestou aps a sua morte uma questo
em aberto.
A transmutao de Padmasambhava foi concluda antes de ele ter morrido
no havia mais matria em seu corpo, nada para morrer, nem mesmo
fisicamente. Assim, se diz que ele no morreu. Aparentemente, ele dissolveu o
seu corpo em luz e partiu do Tibete para outro reino onde a sua presena era
mais urgentemente necessria. Mas a realidade mais profunda que o seu
prprio ser se expandiu infinitamente no espao que tudo permeia, o
dharmakay a, ou mente do Buda. Ddjom Lingpa apresenta essa viso geral dos
diferentes nveis de realizao do corpo de arco-ris:
Aqueles de faculdades mentais superiores so liberados como
uma corporificao da grande transferncia, expandindo-se
infinitamente no dharmakaya que tudo permeia, como a gua
fundindo-se com a gua ou o espao fundindo-se com o espao.
Aqueles de faculdades medianas atingem a iluminao como um
grande corpo de arco-ris, como um arco-ris desaparecendo no
cu. Para aqueles de faculdades inferiores, quando a clara luz da
base surge, as cores do arco-ris se estendem partindo do espao
absoluto e os seus corpos materiais diminuem de tamanho, at
que finalmente desaparecem como corpos de arco-ris, no
deixando para trs qualquer vestgio de seus agregados. Isso
chamado de pequeno corpo de arco-ris. Quando a clara luz
da base surge, os corpos materiais de algumas pessoas diminuem
de tamanho ao longo de um perodo de at sete dias e, em
[48] Citado em Peter Harvey, The Selfless Mind: Personality, Consciousness and
Nirvana in Early Buddhism, Surrey, Curzon Press, 1995, p.176.
[49] Shantideva, Op.cit., cap.6, verso 10.
[50] B. Alan Wallace e Gy atrul Rinpoche, Meditation, Transformation, and Dream
Yoga, Ithaca, Snow Lion Publications, 2002, p.23.
[51] Antnio Damsio, The Feeling of What Happens: Body and Emotion in the
Making of Consciousness, Nova Iorque, Harcourt, 1999, p.321. H uma edio
brasileira para o livro: O mistrio da conscincia: do corpo e das emoes ao
conhecimento de si, So Paulo, Companhia das Letras, 2000.
[52] Stephen LaBerge & Howard Rheingold, Exploring the World of Lucid
Dreaming, Nova Iorque, Ballantine Books, 1990.
[53] Padmasambhava, Op.cit.
[54] Stephen LaBerge, Lucid Dreaming: The Power of Being Awake and Aware in
your Dreams, Nova Iorque, Ballantine Press, 1985, p.129131.
[55] Padmasambhava, Op.cit.,
[56] Citado em Sua Santidade o Dalai Lama, Dzogchen: The Heart Essence of the
Great Perfection, Ithaca, Snow Lion Publications, 2000, p.66.
[57] Idem.
[58] Citado em Karma Chagm, A Spacious Path to Freedom: Practical
Instructions on the Union of Mahmudr and Atiy oga, Ithaca, Snow Lion
Publications, 1998, p.141144.
[59] Geshe Rabten, The Life and Teachings of Geshe Rabten: a Tibetan Lamas
Search for Truth, Londres, George Allen and Unwin, 1980, p.116.
[60] Lama Thubten Yeshe, Introduction to Tantra: The Transformation of Desire,
Sommerville, Wisdom Publications, 2014. H uma edio brasileira para o livro:
Introduo ao Tantra: a transformao do desejo, So Paulo, Gaia, 2007.
[61] Citado em Sua Santidade o Dalai Lama, Op.cit., p.68.
[62] Notcias do Monastrio Ka-Ny ing Shedrub Ling, Boudhanath, Nepal,
Boudha Sangha News, 16 abr 1998.
[63] Gail B. Holland, The rainbow body , IONS: Noetic Sciences Review,
nmero 59, mar/abr 2002, p.33.
[64] Ibidem, p.34.
[65] Ddjom Lingpa, Op.cit., p.464-465.
[66] John. R. Searle, The Rediscovery of the Mind, Cambridge, MIT Press, 1994,
p.247.