Felicidade

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com o objetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos
acadmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando
por dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo
nvel."

Folha de rosto

Copy right 2005 B. Alan Wallace


Direitos desta edio reservados a:
2015 2AB Editora Ltda. (Lcida Letra um selo editorial da 2AB Editora)
Ttulo original: Genuine Happiness: Meditation as the Path to Fulfillment
Editor: Vtor Barreto
Traduo: Jeanne Pilli
Reviso: Lcia Brito, Vincius Melo, dio Pullig
Capa: Aline Haluch | Studio Creamcrackers
Projeto grfico e diagramao: Aline Mendona (Bibi) | Studio Creamcrackers
Produo de ebook: S2 Books

D a d o s I n te r n a c io n a is d e Ca ta lo g a o n a P u b lic a o ( CI P )
W187f Wallace, B. Alan.
Felicidade genuna: meditao como o caminho para a
realizao/B. Alan Wallace; traduo Jeanne Pilli; prefcio Sua
Santidade o Dalai Lama; apresentao Lama Padma Samten
Terespolis, RJ: Lcida Letra, 2015.
208 p. ; 21 cm.
ISBN 978-85-66864-14-4
1. Meditao - Budismo. 2. Budismo. 3. Autorrealizao. 4.
Conscincia. I. Pilli, Jeanne. II. Bstan-dzin-rgy a-mtsho, Dalai
Lama XIV, 1935-. III. Samten, Lama Padma. IV. Ttulo.
CDU 294.3
CDD 294.34
n d ic e p a r a c a t lo g o s is te m tic o :
1. Meditao : Budismo
294.3
(Bibliotecria responsvel: Sabrina Leal Araujo CRB 10/1507)

Sumrio

Capa
Folha de rosto
Crditos
Prefcio de sua santidade o dalai lama
Prefcio edio brasileira
Agradecimentos
Introduo
Parte 1. Refinando a ateno
1 Ateno plena respirao
2 Estabelecer a mente em seu estado natural
3 A conscincia de estar consciente
Parte 2. Insight por meio da ateno plena
4 Ateno plena ao corpo
5 Ateno plena aos sentimentos
6 Ateno plena mente
7 Ateno plena aos fenmenos
Parte 3. Cultivando um bom corao
8 Bondade amorosa
9 Compaixo
10 Alegria emptica e equanimidade
Parte 4. Explorando a natureza da conscincia
11 Bodicita: o esprito do despertar

12 Prtica diurna de ioga dos sonhos


13 Prtica noturna de ioga dos sonhos
14 A Grande Perfeio
Para maiores informaes

PREFCIO DE SUA SANTIDADE O DALAI LAMA

A meditao um instrumento ou tcnica para moldar ou transformar a mente.


De acordo com a minha prpria e escassa experincia em meditao como um
simples monge budista, medida que envelheo, apesar de muitos dos problemas
que enfrento se tornarem mais srios e as minhas responsabilidades se tornarem
mais desafiadoras, a minha mente se torna mais calma. O resultado de uma
mente mais calma que sou mais feliz. Quando me deparo com problemas, a
minha paz mental em grande medida no se altera. Esse certamente o
resultado da meditao.
A meditao importante como uma ferramenta para transformar a mente.
No temos que a conceber como algo religioso. Assim como a compaixo e o
esprito do perdo, eu a incluiria entre as nossas boas qualidades humanas
bsicas. Quando nascemos, somos bastante livres de ideologia, mas no somos
livres da necessidade de afeto humano. Compaixo, amor e perdo, o esprito de
harmonia e um senso de fraternidade, todos so ensinados por nossas tradies
religiosas. E, ainda assim, isso no significa que, se voc aceitar o valor da
compaixo ou do perdo, ter que adotar a religio como um todo. Com a
meditao igual: podemos us-la como um meio de fortalecer as nossas boas
qualidades humanas bsicas.
De modo geral, a nossa ateno normalmente atrada em direo s
experincias sensoriais fsicas e aos conceitos mentais. Com a meditao,
aprendemos a recolher a nossa mente para o interior no permitimos que ela
persiga os objetos sensoriais. No entanto, no a recolhemos tanto a ponto de
embot-la. Precisamos manter um estado muito pleno de alerta e ateno, de
modo que a conscincia do nosso estado mental natural emerja. Esse um
estado mental no qual a conscincia no afligida por memrias e pensamentos
do passado nem por pensamentos do futuro, expectativas, medos e esperanas.
Em vez disso, a nossa mente permanece em um estado natural e neutro.
Quando recolhemos a nossa mente dos objetos externos, quase como se
no pudssemos mais reconhec-la como nossa mente. H uma espcie de
ausncia, uma espcie de vcuo. No entanto, medida que lentamente

progredimos e nos habituamos, comeamos a notar uma claridade, uma


luminosidade subjacente. E ento que comeamos a apreender e apreciar o
estado natural da mente.
A tradio de meditao budista inclui diversas tcnicas e prticas. Mas
muito importante ser hbil em como empreg-las. Precisamos de uma
abordagem equilibrada, combinando estudo e aprendizagem com prticas de
contemplao e meditao. Caso contrrio, existe o risco de a intelectualizao
demasiada destruir as prticas mais contemplativas. Por outro lado, uma nfase
demasiada na implementao prtica sem estudo pode destruir o entendimento.
Neste livro, Alan Wallace descreve uma srie de tcnicas meditativas, desde
a mais simples ateno plena respirao at os elevados mtodos do Dzogchen.
Partindo de uma perspectiva de longa experincia de estudo e prtica, ele
procurou apresentar essas tcnicas tendo como referncia as qualidades
universais da mente humana, livres dos adornos culturais que possam ter se
associado a elas, j que foram desenvolvidas na ndia, Tibete e outros lugares.
Acredito que isso seja inteiramente apropriado. Inicialmente, quando o Buda e
outros grandes mestres do passado deram essas instrues, eles no pretendiam
beneficiar apenas os indianos, tibetanos, ou os asiticos em geral, mas o fizeram
para que todos pudessem encontrar paz e felicidade. Rogo tambm para que todo
aquele que colocar essas instrues e aconselhamentos em prtica possa
encontrar tranquilidade e discernimento, que so seus frutos.
29 de setembro de 2003

PREFCIO EDIO BRASILEIRA

Ao longo do texto, o professor Alan Wallace constri um caminho muito


interessante, apresentando vrios mtodos, vises e passagens de sua prpria vida
e de sua interao com grandes mestres de diferentes tradies, cientistas
notveis e praticantes verdadeiros. Ele recebeu ensinamentos e treinou com 60
mestres do Oriente e do Ocidente, em sua maioria mestres tibetanos, mas
tambm mestres de meditao Teravada da Birmnia, da Tailndia e do Sri
Lanka, consolidando, assim, uma viso ampla e no sectria.
Aqui, o foco de seus ensinamentos atingir a felicidade genuna treinando a
ateno no cultivo da quiescncia meditativa, explorando as quatro aplicaes da
ateno plena, as quatro incomensurveis, a ioga dos sonhos e o Dzogchen,
culminando no repouso na conscincia absolutamente pura do presente imediato.
Baseado em sua prpria experincia, introduz tambm conselhos muito teis
para estabelecer o Darma do Buda no contexto da vida e estabilizar a lucidez pela
maturao progressiva da motivao correta e de bodicita. O seu conhecimento
profundo de cincia e da mente ocidental permite que esses ensinamentos
preciosos sejam apresentados com autoridade e preciso, em meio a um dilogo
intercultural muito rico, com paralelos e exemplos que nos tocam diretamente. O
autor fala transpirando a maturidade de sua prpria prtica, conectando-a com
fontes escriturais selecionadas.
Para as pessoas em geral interessadas no tema, bem como para praticantes
de abordagens especficas budistas e no budistas e os alunos do CEBB (Centro de
Estudos Budistas Bodisatva), o texto muito interessante pois a sua viso e sua
base de compreenso acerca das mltiplas abordagens da prtica de meditao.
Ele pode ser usado ainda como um programa progressivo e completo de
formao no tema. Trata-se de um precioso referencial para a observao
comparativa entre a presente prtica de cada um e as vrias descries aqui
contidas, a motivao adequada, o posicionamento adequado da mente e da
energia de ao e o foco em meio vida.
Temos hoje no Brasil uma diversidade de escolas tradicionais e muitos
professores independentes trazendo contribuies que, mesmo originando-se da

mesma raiz dos ensinamentos do Buda, muitas vezes parecem difceis de


harmonizar. Vejo o surgimento da presente publicao como uma abordagem
unificadora que traz uma linguagem comum a todas essas expresses.
A Sanga brasileira tem sido muito beneficiada pela presena regular do
professor Alan Wallace entre ns, que j percorreu o Brasil de norte a sul e tem
tambm dialogado com o nosso ambiente universitrio em diferentes capitais. A
sua abordagem, que especialmente hbil por conhecer em profundidade as
origens e os meandros da cultura contempornea, e por sua inteligncia brilhante
e compassiva, ajuda poderosamente a configurao da presena do Darma no
Brasil. Muitos agradecimentos!
Lama Padma Samten.
Centro de Retiros do CEBB Darmata,
20 de junho de 2014.

AGRADECIMENTOS
Este livro baseado em uma srie de palestras que proferi em Santa Brbara, ao
longo do outono de 2000 e da primavera de 2001. As palestras foram gravadas e
transcritas por muitos voluntrios, alunos meus, a quem sou profundamente grato.
A transcrio bruta foi editada na forma de livro por Brian Hodel e a seguir fiz
vrias alteraes, s quais ele mais uma vez deu polimento. Tem sido um prazer
trabalhar com Brian, e agradeo por seu entusiasmo incansvel e por sua
habilidade como editor. O manuscrito foi ento enviado para a minha agente,
Patricia van der Leun, que me orientou com enorme pacincia para escrever
uma primeira verso do livro e refinar o meu estilo de escrita. Foi graas a ela
que o manuscrito foi submetido John Wiley & Sons e, devido ao gentil interesse
por parte de Thomas Miller, editor executivo de livros de interesse geral, foi
aceito para publicao. Tive muito prazer em trabalhar com Tery n Johnson,
editora da John Wiley & Sons que revisou o manuscrito e fez outras sugestes
teis. Agradeo a todos aqueles que contriburam para este livro, especialmente
aos meus muitos mestres, incluindo Sua Santidade o Dalai Lama, Geshe Rabten e
Gy atrul Rinpoche, sem os quais a minha vida no Darma e este livro, que foi
resultado dela, teriam sido impossveis. Por fim, gostaria de expressar os meus
agradecimentos pelo apoio amoroso de minha esposa, Vesna A. Wallace, e de
minha enteada, Sara, que tm trazido tanta alegria minha vida.

Introduo

A O L O N G O D O S 3 4 A N O S E M Q U E T E N H O estudado e praticado o
budismo, fui treinado sob a orientao de 60 professores do Oriente e do
Ocidente. A maioria dos meus mentores espirituais tm sido tibetanos, mas
tambm estudei com mestres de meditao treinados nas tradies Teravada da
Birmnia, Tailndia e Sri Lanka. Entre a ampla gama de prticas meditativas a
que fui exposto, no encontrei nenhuma mais benfica do que essas cinco
meditaes budistas:
Quiescncia meditativa;
As quatro aplicaes da ateno plena (ao corpo, sensaes, mente e objetos
mentais);
As quatro qualidades incomensurveis (compaixo, bondade amorosa, alegria
emptica e equanimidade);
Ioga dos sonhos;
Dzogchen, a Grande Perfeio.

Na minha opinio, esses so os maiores sucessos da tradio meditativa


budista, porque apresentam um caminho direto que leva realizao da nossa
natureza mais profunda e dos potenciais de conscincia. Essas meditaes so as
prticas budistas essenciais para refinar a ateno, cultivar a ateno plena, abrir
o corao, investigar a natureza do estado de viglia e a sua relao com o
sonhar, e, finalmente, investigar a natureza da prpria conscincia. Cada uma
delas leva voc um passo adiante no caminho para a iluminao sem que voc
precise acreditar em nenhum credo especfico para pratic-las, sendo
rapidamente capaz de ver por si mesmo o quanto podem aliviar as aflies da
mente e trazer uma maior sensao de bem-estar e satisfao.
No dilu essas meditaes para o consumo popular, tampouco as misturei a
aditivos culturais das civilizaes asiticas tradicionais nas quais tm sido
preservadas h tempos. Mesmo admirando essas culturas, nasci e fui criado no
Ocidente, e importante reconhecer que essas prticas so to poderosas para o
mundo moderno como eram para os asiticos sculos atrs. Apesar de terem se
originado na ndia e no Tibete, essas prticas so de emprego universal. As
questes que abordam so fundamentais para a existncia humana em todo o
mundo e durante toda a histria da humanidade, e nunca foram to relevantes
quanto hoje.
Dei o ttulo Felicidade genuna a este livro porque as meditaes aqui contidas
apresentam um caminho para a realizao interior e para o florescimento
humano. Essa a felicidade obtida no por meio da conquista externa das
condies naturais ou da obteno de riqueza e fama, mas atravs da conquista
de nossos obscurecimentos internos e da realizao dos recursos naturais
inerentes ao nosso corao e mente.
Ao ser introduzido a esses meios de explorar e treinar a mente, voc vai
sondar estados de conscincia cada vez mais profundos para acessar os recursos
internos da conscincia. Em meio s atividades da vida diria, a nossa mente se
torna facilmente dispersa e a nossa ateno se torna disfuncional, oscilando entre
o embotamento e a agitao compulsiva. Os trs captulos iniciais apresentam
tcnicas para superar esses estados por meio do cultivo da quiescncia ou
tranquilizao meditativa shamatha, em snscrito. As prticas tm o propsito
de recompor e focar a mente por meio do cultivo da quietude, estabilidade e
vivacidade internas. Esse processo de refinar a ateno nos leva a um estado
chamado, em snscrito, de sukha, que significa felicidade genuna, um estado
que surge unicamente de uma mente saudvel e equilibrada.
Para auxiliar nesse processo, abri cada captulo com uma meditao
conduzida. Cada prtica dura 24 minutos, um perodo chamado, em snscrito, de
ghatika, frequentemente considerado de durao ideal para uma sesso de
meditao quando se est comeando a praticar. Juntamente a comentrios e
materiais introdutrios, algumas palavras no incio de cada meditao

estabelecero a sua motivao e sempre encerraremos com uma breve


dedicao de mritos. Sugiro que voc siga os captulos em ordem, dedicando
uma ou duas semanas a cada prtica antes de avanar para a prxima etapa do
desenvolvimento meditativo.
Conforme aperfeioa a sua mente por meio da meditao, voc pode
desejar saber como utilizar essa nova ferramenta uma mente funcional e
estvel para trazer cada vez mais riqueza e clareza, mais compreenso e
sabedoria sua vida. Voc pode comear com o que o prprio Buda descreveu
como o caminho veloz para a liberao, o ensinamento sobre o insight,
fundamento de todo o Darma budista: as quatro aplicaes da ateno plena. O
seu significado se resume recomendao familiar tanto ao Ocidente quanto ao
Oriente: Conhece-te a ti mesmo. Scrates expressou esse tema quando
comentou: Ainda sou incapaz de conhecer a mim mesmo e de fato me parece
ridculo examinar qualquer outra coisa antes que tenha compreendido isso.[1]
Na prtica budista das quatro aplicaes da ateno plena, comeamos
observando atentamente a natureza do corpo. Em seguida, mudamos o nosso
foco para as sensaes fsicas e mentais: prazer, dor e indiferena. Observando
de perto, como um cientista que nunca havia encontrado uma sensao antes,
examinamos a natureza do fenmeno sensaes, em vez de nos identificarmos
com elas. Como as sensaes surgem e desaparecem, qual a sua natureza e
como so influenciadas pela observao? A seguir, enfocamos outros processos
mentais e a prpria conscincia, e, finalmente, todos os diversos fenmenos que
surgem aos olhos da mente. Em que medida essa variedade de eventos mentais
imagens, sonhos e pensamentos pode ser observada? Qual a sua natureza? As
quatro aplicaes da ateno plena foram as primeiras formas de meditao
budista que descobri, e ainda me impressiono com a sua profundidade e eficcia.
Depois das quatro aplicaes da ateno plena, investigaremos um conjunto
de prticas que proporcionam uma base slida para a empatia: as quatro
incomensurveis bondade amorosa, compaixo, alegria emptica e
equanimidade. Esses meios hbeis so um complemento perfeito para as
prticas de sabedoria das quatro aplicaes da ateno plena. Voc descobrir
que a ateno plena e a bondade intensificam uma outra. A partir da, iremos
explorar as prticas diurna e noturna de ioga dos sonhos, antes de chegarmos
finalmente ao pinculo dos ensinamentos budistas, o Dzogchen, normalmente
traduzido como a Grande Perfeio. Aqui, movemo-nos para alm de
qualquer ismo, para um domnio de realizao que pode ser comparado s
prticas contemplativas encontradas nas tradies crist, judaica, taosta, sufista e
vedanta. Apesar das diferenas em termos de doutrina, ritual e prtica, estou
convencido de que existe uma ntima ligao entre as tradies contemplativas
em nveis mais profundos de realizao, uma base comum subjacente a todas
essas diferenas. Essa base comum a felicidade que todos almejamos do fundo

do corao.
Creio que todos os seres humanos anseiam pela felicidade genuna, uma
qualidade de bem-estar mais profundo do que o prazer, entretenimento ou
estmulo intelectual passageiros. No budismo, a fonte desse anseio profundo que
o grande mestre tibetano do sculo XIV Tsongkhapa chamou de nosso eterno
anseio est no nvel mais profundo de nosso ser, a natureza de Buda ou
conscincia primordial. Essa busca pela felicidade genuna contrasta fortemente
com a nossa atrao por prazeres fugazes. No h nada de errado em saborear
os prazeres da vida, os prazeres que experimentamos por estarmos com amigos
queridos e com pessoas que amamos, por desfrutarmos de uma refeio
deliciosa ou de um clima maravilhoso, prazeres que so despertados por
estmulos provenientes dos cinco sentidos fsicos. Podemos tambm
experimentar prazeres que no requerem estmulos sensoriais, como, por
exemplo, quando temos uma lembrana agradvel. Todavia, quando o estmulo
removido, o prazer desaparece. A felicidade genuna, por outro lado, no
acionada por estmulos.[2] Aristteles chamou essa felicidade de eudaimonia e a
comparou com a bondade humana, com a mente trabalhando de acordo com a
virtude, especialmente com a melhor e mais completa virtude. Santo Agostinho,
o grande filsofo e telogo cristo do sculo V, chamou a felicidade genuna de
alegria oferecida pela verdade, uma sensao de bem-estar que surge da
natureza da prpria verdade. No entendimento budista, essa no uma verdade
que aprendemos nem uma verdade que est fora de ns. a verdade que somos
em nossa natureza mais ntima.
Nas sociedades modernas, h uma fixao generalizada naquilo que os
budistas chamam de as oito preocupaes mundanas: (1) buscar a aquisio de
bens materiais; (2) tentar no perder aquilo que se tem; (3) esforar-se para
obter prazeres dependentes de estmulos; (4) fazer o seu melhor para evitar a dor
e desconforto; (5) buscar elogios; (6) evitar o abuso; (7) ansiar por uma boa
reputao; (8) temer a desonra. Esforamo-nos pelo que mundano, pelas coisas
boas da vida, no s porque trazem prazer, mas porque so smbolos do que
realmente queremos. No h nada intrinsecamente errado com esses estmulos
prazerosos, mas podemos ter tudo isso e ainda assim nos sentir insatisfeitos.
Ento, pelo que verdadeiramente ansiamos? O Buda sugeriu que o nosso mais
profundo desejo de felicidade genuna no se baseia em conseguir ajustar as
circunstncias externas, mas em algo que surge de dentro, livre dos efeitos da
boa sorte e da adversidade. Portanto, na prtica budista, em nossa busca pela
felicidade genuna, cultivamos o que s vezes chamado de renncia, embora
eu prefira o termo esprito de emerso, que a minha traduo do termo
tibetano ngejung. Parte da experincia desse esprito de emerso o
reconhecimento de que a felicidade genuna no encontrada em meros
estmulos prazerosos, mas na dissipao das causas internas de sofrimento e

descontentamento. Com essa motivao, busca-se emergir definitivamente, de


uma vez por todas, das verdadeiras causas do sofrimento e perceber a felicidade
inata da conscincia no contaminada pelas aflies da mente.
No Ocidente, existem hoje duas tendncias psicolgicas principais. A mais
antiga e at recentemente dominante a psicologia negativa. Baseia-se em
atacar um problema mental, como no caso de uma neurose ou psicose que tenha
chamado a sua ateno. Voc no iria ao psiclogo, a menos que tivesse cincia
do problema ento, o terapeuta buscaria uma soluo. Essa abordagem
tradicional agora est sendo complementada com a psicologia positiva, que
questiona: que qualidades saudveis podemos cultivar a fim de alcanar uma
sade mental acima do normal? Como podemos acentuar o que positivo?
O budismo utiliza ambas as abordagens. Determinar a natureza da frustrao,
da insatisfao, da ansiedade, da irritao e de outros males pertence primeira
das quatro nobres verdades a realidade do sofrimento. Aqui, o Buda disse:
Essa a realidade do sofrimento. Reconhea-o! No se mantenha na negao,
mova-se em direo compreenso. O Buda comeou a girar a roda do
Darma com os seus ensinamentos sobre as quatro nobres verdades. Desde
ento, os professores budistas tradicionais muitas vezes comeam a explicar o
Budadarma com uma discusso sobre a realidade do sofrimento e do oceano do
samsara o ciclo de existncia no qual compulsivamente renascemos sob a
influncia de nossas aflies mentais, especialmente da deluso. Uma vez que
comeamos a sondar a realidade do sofrimento, voltamo-nos para as outras
nobres verdades: a origem do sofrimento, a possibilidade de sua cessao e o
caminho que conduz ao fim do sofrimento. Esse o ensinamento inicial do Buda.
No entanto, muitos se perguntam se prejudicial observar atentamente a
realidade do sofrimento. Afinal, se voc atentar para a realidade do sofrimento
dentro de si mesmo e no mundo ao seu redor, logo isso pode parecer opressivo.
Voc comea a observar a si mesmo e comea a ver como a insatisfao, ou
duhkha, permeia a sua vida. Mesmo quando tudo est temporariamente indo
bem, difcil escapar do fato de que isso no ir durar, e esse reconhecimento
traz consigo ansiedade: O que ser de mim? Desde o incio, o budismo nos
encoraja a olhar o sofrimento nos olhos, e h muito a ser dito sobre isso. Mas
existe o perigo de fixao excessiva nos problemas da existncia. Voc quer
correr o risco de levar uma vida onde o sofrimento preencha o seu mundo em
razo de voc observ-lo muito atentamente? Existe mais alguma coisa
autenticamente budista que possa complementar essa abordagem?
Existe. A realidade do sofrimento equilibrada pela Grande Perfeio, o
Dzogchen. A premissa bsica da Grande Perfeio que a nossa natureza
fundamental sempre foi a perfeio primordial, a pureza e a bem-aventurana
inatas que esto ali s espera de serem descobertas. C est o mais simples
(mas de forma alguma o mais fcil!) de todos os caminhos budistas: procure um

mentor espiritual qualificado e pea que ele ou ela aponte a natureza de sua
prpria conscincia prstina, conhecida em tibetano como rigpa. Investigue e
identifique a essncia da prpria conscincia em seu estado natural, antes que ela
se torne conceitualmente estruturada, distorcida e obscurecida. Ento,
permanea nesse estado. Mantenha essa conscincia ao caminhar, falar, comer
ou dirigir sempre e em toda parte. Ao sustentar o reconhecimento da
conscincia prstina que nunca foi distorcida ou afligida de nenhuma forma, voc
descobre que ela primordialmente pura. Essa conscincia no algo a ser
desenvolvido ou alcanado. Ela est presente neste momento. Ento,
simplesmente apanhe o fio da pureza absoluta de sua prpria conscincia e
sustente-o ininterruptamente. Ao fazer isso, ela se tornar cada vez mais clara e o
caminho se abrir para voc por si mesmo. Os primeiros quatro tipos de
meditao apresentados neste livro so preparaes para esse estgio de
culminncia.
Em resumo, a parte I deste livro explica trs mtodos para o
desenvolvimento da quiescncia meditativa: ateno plena respirao;
estabelecer a mente em seu estado natural; cultivar a conscincia de
simplesmente estar consciente. A parte II aborda as quatro aplicaes da ateno
plena: ao corpo; s sensaes; mente; aos fenmenos em geral. Esses so os
ensinamentos budistas fundamentais sobre o cultivo do insight contemplativo. A
parte III discute as quatro incomensurveis: bondade amorosa; compaixo;
alegria emptica; equanimidade. Elas so o caminho do corao para a
felicidade genuna. A parte IV comea com uma explicao sobre o esprito do
despertar o anseio altrusta de alcanar a iluminao para beneficiar o mundo
, prosseguindo para as prticas diurnas e noturnas de ioga dos sonhos e,
finalmente, o Dzogchen.
Treinando a ateno no cultivo da quiescncia meditativa e explorando as
quatro aplicaes da ateno plena, as quatro incomensurveis, a ioga dos sonhos
e o Dzogchen, temos a oportunidade de liberar a conscincia absolutamente pura
do presente imediato e nela repousar. Essa a verso budista do ir em busca de
sua felicidade. No significa ir em busca de estmulos prazerosos. Pelo
contrrio, refere-se a algo que anterior a estmulos prazerosos, algo que supera
o agradvel e o desagradvel, algo mais profundo. Todos ns j o vislumbramos
e, portanto, no devemos pensar que seja algo misterioso e difcil de realizar.
Suspeito que no haja ningum que no tenha experimentado o seguinte: um
momento em que sentiu o seu corao pleno, em que esteve completamente
relaxado, com um sorriso no rosto e permeado por uma sensao de bem-estar
e sem ter a menor ideia do porqu. Nada especialmente bom havia acontecido
antes disso. Voc no estava pensando em nada de bom, no estava provando
nada de bom e no havia nenhum estmulo prazeroso. No entanto, ali estava: o
seu corao, o seu prprio ser, oferecendo-lhe a sua prpria alegria. Esse o

primeiro sinal de um sentimento de felicidade genuna que vem da natureza da


prpria conscincia. Portanto, disso que este livro trata: seguir os indcios da
felicidade genuna at a sua fonte, investigando a natureza da conscincia e
acessando os seus recursos naturais internos integralmente.

Parte 1. Refinando a ateno

1 Ateno plena respirao

O S M T O D O S PA RA RE FI N A R A AT E N O j estavam
desenvolvidos em um grau muito sofisticado h 2.500 anos, na ndia, nos tempos
de Gautama, o Buda. Verificou-se que esses estados avanados de samadhi, ou
concentrao meditativa, produziam estados profundos de serenidade e bemaventurana, e muitos contemplativos cultivaram esses estados como fins em si
mesmos. A grande inovao de Gautama foi avanar no desenvolvimento desses
mtodos de samadhi, e ento aplicar essa ateno refinada e focada
investigao experimental direta da mente e sua relao com o resto do
mundo. Desse modo, o cultivo de shamatha, ou quiescncia meditativa, anlogo
ao desenvolvimento do telescpio para a observao precisa e contnua de
fenmenos celestes. O nico instrumento que temos para observar diretamente
os fenmenos mentais a conscincia mental, e ela aperfeioada para tornarse uma excelente ferramenta para o desenvolvimento de shamatha.

O Buda ensinou dezenas de tcnicas para refinar, estabilizar e clarificar a


ateno. Uma em particular especialmente adequada para pessoas com
mentes muito discursivas, conceituais, imaginativas e falantes: a ateno plena
respirao. Segundo os registros mais antigos que temos da busca do prprio
Buda pela liberao, na noite de sua iluminao, primeiramente, ele estabilizou a
mente com a prtica de shamatha, aplicando-a a seguir prtica de vipashy ana,
o cultivo do insight contemplativo sobre a natureza da realidade.
A ateno plena respirao foi a primeira meditao budista que comecei a
praticar e, muitas vezes, eu a recomendo aos meus alunos como o primeiro passo
no caminho da meditao. Comecei aprendendo a partir de livros, em 1970,
especialmente a partir dos livros do monge tailands Buddhadasa. Eu levava uma
vida de estudante universitrio recluso naquele momento, passava muito tempo
lendo sobre as tradies contemplativas do mundo e comecei a estudar a lngua
tibetana. Alguns anos mais tarde, vivendo como monge nas montanhas acima de
Dharamsala, na ndia, recebi instruo pessoal sobre a tcnica de dois mestres de
meditao budista Theravada, Goenka e Kitti Subho, que haviam sido treinados
na Birmnia e Tailndia. Em 1980, viajei para o Sri Lanka unicamente para
meditar e, ento, tive a oportunidade de treinar essa prtica durante meses sob a
orientao do renomado estudioso e contemplativo Balangoda Ananda Maitrey a.
Ao longo dos anos, tambm recebi ensinamentos de vrios lamas tibetanos sobre
variaes dessa prtica, mas, para esse tipo de meditao, baseio-me
principalmente em meus professores de meditao Theravada.

PRTICA
Em nossas prticas para refinar e equilibrar a ateno, comearemos com a
estratgia budista de passar do grosseiro para o sutil, do fcil para o mais difcil.
Essa abordagem se inicia com a ateno plena respirao, segue para
estabelecer a mente em seu estado natural e se conclui com a prtica de
simplesmente estar consciente de estar consciente. Em cada uma dessas prticas,
comeamos a sesso adotando uma postura corporal apropriada e cultivando trs
qualidades, medida que estabelecemos o corpo em seu estado natural:
relaxamento, quietude e vigilncia.
Relaxamento
H duas posturas que eu recomendaria para essa prtica: sentado ou deitado.
Em geral, a postura melhor e mais recomendada sentado sobre uma almofada,
de pernas cruzadas. Se essa postura for muito desconfortvel, voc pode se sentar
em uma cadeira, com os ps apoiados no cho. Uma outra postura menos

utilizada deitado de costas, com os braos estendidos ao lado do corpo, com as


palmas para cima e a cabea apoiada em um travesseiro. Essa postura
especialmente til se voc estiver com algum problema nas costas, ou
fisicamente cansado ou doente.
Qualquer que seja a postura que voc adote, deixe o seu corpo repousar
vontade, com a coluna reta, mas no rgida. Relaxe os ombros, com os braos
caindo levemente para os lados. Permita que a gravidade assuma o controle.
Traga ento a sua conscincia para o rosto. melhor que os seus olhos estejam
semiabertos, no completamente cerrados. Suavize os msculos do seu rosto,
especialmente os msculos da mandbula, das tmporas e da testa. Suavize os
olhos. Deixe o seu rosto to relaxado quanto o de um beb dormindo. A seguir,
para completar esse relaxamento inicial, faa trs respiraes suaves, profundas
e lentas atravs das narinas. Para inalar, inspire suave e profundamente desde a
parte inferior do abdmen. Como se estivesse enchendo um copo com gua, sinta
o seu abdmen se expandindo e sendo preenchido lentamente, ento respire em
seu diafragma e, finalmente, na parte superior do trax. Em seguida, solte a
respirao totalmente, sem forar a sada do ar. Faa isso trs vezes, mantendo a
conscincia presente em seu corpo, observando especialmente as sensaes da
entrada e sada do ar. Depois dessas respiraes profundas, deixe a respirao
voltar ao normal sem control-la. Permita que essa qualidade de relaxamento
corporal seja a expresso externa de sua mente: deixe a sua conscincia
vontade, liberando todas as preocupaes; esteja simplesmente presente no aqui
e no agora.
medida que inspira e expira, direcione a sua ateno s sensaes tteis da
passagem do ar pelas aberturas das narinas ou acima de seu lbio superior. Tome
alguns instantes para localizar a sensao. Repouse a sua ateno exatamente
onde sente a entrada e a sada do ar. De vez em quando, verifique se ainda est
respirando desde a base do abdmen. Isso acontecer naturalmente se o seu
corpo estiver tranquilo, com as costas retas e com o abdmen relaxado e solto.
Quietude
Durante cada sesso de meditao, deixe o seu corpo o mais quieto possvel,
com o mnimo de movimentao permanea imvel como uma montanha.
Isso ajuda a produzir a mesma qualidade na mente, qualidade de quietude, em
que a sua ateno focada e contnua.
Vigilncia
Mesmo que esteja deitado, deixe a sua postura refletir um senso de
vigilncia, sem cair em sonolncia. Se estiver sentado sobre uma almofada ou
uma cadeira, eleve um pouco o esterno, mantendo o abdmen solto e relaxado.

Dessa forma, a respirao naturalmente iniciar no abdmen e, quando a


respirao se aprofundar, voc poder tambm sentir o diafragma e o trax se
expandindo. Sente-se atentamente, sem curvar-se para a frente ou inclinar-se
para os lados. Essa postura fsica tambm refora a mesma qualidade de
vigilncia da mente.
Ateno plena respirao
Manter a ateno focada vital para praticamente tudo o que fazemos ao
longo do dia, incluindo trabalhar, dirigir, relacionar-se com outras pessoas,
desfrutar de momentos de lazer e entretenimento, e engajar-se na prtica
espiritual. Por essa razo, o tema dessa sesso aprender a focar a ateno. Seja
qual for seu nvel normal de ateno quer esteja normalmente disperso ou
sereno , a qualidade de sua ateno pode ser melhorada, e isso traz benefcios
extraordinrios. Nessa prtica, passamos de um modo de operao da
conscincia compulsivamente conceitual e fragmentado para um modo mais
simples, um modo em que testemunhamos ou observamos. Alm de aperfeioar
a ateno, essa meditao ir melhorar a sua sade, ajustar o seu sistema
nervoso, permitir que voc durma melhor e melhorar o seu equilbrio emocional.
Trata-se de uma maneira diferente de empregar as nossas mentes, e que
melhora com a prtica. O mtodo especfico que seguiremos o cultivo da
ateno plena na respirao.
Devido ao hbito, seguramente os pensamentos invadiro a sua prtica.
Quando surgirem, apenas libere-os ao expirar, sem se identificar com eles, sem
responder emocionalmente a eles. Observe o pensamento emergir, passar diante
de voc e depois desaparecer. Ento, deixe que a sua ateno repouse, no
entorpecida e preguiosa, mas vontade. Por enquanto, se tudo o que conseguir
em um ghatika, ou 24 minutos, for uma sensao de relaxamento mental, est
timo. Mantenha a sua ateno exatamente onde sente as sensaes da
inspirao e da expirao.
Mantenha a ateno plena em sua respirao da forma mais contnua
possvel. Neste contexto, o termo ateno plena (mindfulness) refere-se
habilidade de focar continuamente um objeto familiar de sua escolha sem
distrao. Em tibetano e snscrito, a palavra traduzida como ateno plena
(mindfulness) tambm significa lembrar. Portanto, o cultivo da ateno plena
significa manter um fluxo ininterrupto de lembrar, lembrar e lembrar. No
envolve nenhum comentrio interno. Voc est simplesmente se lembrando de
observar o fluxo de sensaes tteis relacionadas entrada e sada do ar. A
qualidade da conscincia que voc est cultivando aqui um tipo de ateno
direta, um simples testemunho, sem anlise mental ou elaborao conceitual.
Alm de sustentar a ateno plena, crucial aplicar a introspeco
intermitentemente durante toda a sesso. Isso no significa pensar a respeito de si

mesmo. Pelo contrrio, o monitoramento interno de seu estado mental. Por


meio da introspeco, olhando para dentro, voc pode verificar se a sua ateno
se desengajou da respirao e desviou-se para sons, para outras sensaes em
seu corpo ou para devaneios, memrias e antecipaes do futuro. A introspeco
implica um controle de qualidade, um monitoramento dos processos da mente e
do corpo. De vez em quando, observe se alguma tenso se formou ao redor dos
seus olhos ou na testa. Se isso ocorrer, relaxe. Permita que a sua face relaxe e
suavize. Passe ainda alguns minutos observando se voc capaz de dividir a sua
ateno permanecendo tranquilo. Esteja plenamente consciente de sua
respirao, mas tambm ciente de como a sua mente est operando.
Gostaria de enfatizar que essa no uma tcnica de concentrao no sentido
ocidental. No estamos buscando vencer na marra, com esforo para manter o
foco. essencial manter uma sensao fsica e mental de relaxamento, e, com
base nisso, gradualmente aumentar a estabilidade e, a seguir, a vivacidade da
ateno. Isso implica uma qualidade ampla da conscincia e, dentro desse
espao, um senso de abertura e tranquilidade a ateno plena repousa sobre a
respirao, como uma mo que suavemente toca a cabea de uma criana.
Conforme a vivacidade da ateno for aumentando, voc notar sensaes at
mesmo entre as respiraes. medida que a turbulncia da mente for cedendo,
voc ver que pode simplesmente observar as sensaes tteis da respirao, em
vez de observar os seus pensamentos a respeito delas.
Agora, introduzirei uma tcnica que voc poder achar til em algumas
ocasies o simples recurso de contar, que, quando feito com preciso, poder
trazer maior estabilidade e continuidade sua ateno. Mais uma vez, com uma
luxuosa sensao de estar vontade e de descansar do trabalho excessivo e da
exagerada conceituao da mente, estabelea a sua ateno nas sensaes tteis
da respirao. Depois de expirar, bem no incio da prxima inspirao, conte
um mentalmente. Com o trax elevado, mantenha uma postura ereta para que
o ar flua sem esforo, inspire e observe as sensaes tteis da respirao,
permitindo que a sua mente conceitual repouse. Ento, experimente a
maravilhosa sensao revigorante conforme libera o ar, ao longo de todo o
caminho, at o ponto em que o ciclo seguinte se inicia. Cultive uma mente de
teflon uma mente na qual nada adere, que no se apega a pensamentos sobre o
presente, passado ou futuro. Dessa forma, conte de um a dez. Voc pode ento
repetir a contagem at dez ou continuar contando de dez para cima. Essa uma
prtica de simplificao e no de supresso de sua mente discursiva. Voc est
reduzindo a atividade mental a contar apenas, tirando frias do pensamento
compulsivo durante todo o ciclo da respirao. Pratique por vrios minutos, at
que a sesso termine.
Para encerrar qualquer prtica de uma forma significativa, os budistas
dedicam os mritos. Algo foi elaborado em nosso corao e em nossa mente ao

nos dedicarmos a essa atividade sadia. Depois de completar uma sesso de


meditao, voc pode desejar repousar por um minuto ou mais para dedicar os
mritos de sua prtica, para que esses mritos possam conduzir realizao de
tudo que considera mais significativo para si mesmo e para os outros. Com
inteno e ateno, essa bondade pode ser dirigida para onde desejarmos.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


O Buda louvava a prtica da ateno plena na respirao como uma forma
excepcionalmente eficaz de equilibrar e purificar a mente:
Como no ltimo ms da estao quente, quando uma massa de
poeira e sujeira forma um redemoinho, e uma nuvem grande de
chuva fora de poca o dispersa e domina imediatamente, da
mesma forma, a concentrao por meio da ateno plena
respirao, quando desenvolvida e cultivada, pacfica e
sublime, uma morada ambrosaca, e dispersa e domina
instantaneamente os estados insalubres sempre que surgem.[3]
Na prtica de shamatha, repousamos atentamente a nossa conscincia sobre
a respirao. A respirao como um garanho e a conscincia o seu
cavaleiro. improvvel que a observao da respirao desperte desejo ou
averso. Passando para essa neutralidade, no irritamos nem distorcemos a
mente. Portanto, de se esperar que essa prtica seja um pouco tediosa. O
objeto da ateno no parece muito interessante, apenas a velha respirao de
sempre. No entanto, uma vez que voc tenha desenvolvido alguma continuidade,
algumas surpresas o aguardam. Voc descobrir uma sensao de bem-estar e
equilbrio que surge de uma forma tranquila e serena, como se estivesse na praia
ouvindo as ondas do mar. Voc poder descansar em serenidade e repousar cada
vez mais profundamente. A sua mente como um riacho e voc simplesmente
no est poluindo-o com distraes. Aqueles que estudam ambientes naturais
sabem que, se voc parar de contaminar um rio poludo, a capacidade de
autopurificao desse rio vir tona. O mesmo verdadeiro para as
propriedades de cura natural da mente.
Todos ns sabemos algo a respeito dos recursos naturais da Terra e da
importncia de sua conservao mas no temos tambm recursos naturais
internos? No poderia a mente, de uma forma muito prtica e cotidiana, tornarse a sua prpria fonte de bem-estar? Sempre que vejo Sua Santidade o Dalai
Lama, sinto que ali est um homem cujo corao, mente e esprito esto
transbordando de boa vontade, compaixo e alegria naturais. Ele deve ter
explorado extraordinariamente os seus recursos internos para que se abrissem

como um manancial. Uma vez que todos ns temos um eterno anseio de


encontrar satisfao real que preencha o corao, um desejo que busca algo
mais do que um contnuo fluxo de estmulos prazerosos, algo mais profundo, algo
mais gratificante, como podemos acessar esse recurso? Shamatha como uma
plataforma de perfurao a partir da qual podemos comear a explorar nossos
recursos naturais internos.
Se voc atrado pela prtica da ateno respirao, faa pelo menos uma
sesso por dia, embora seja melhor fazer duas sesses, uma pela manh e uma
noite. Vinte e quatro minutos o tempo que os iogues indianos e chineses
escolheram independentemente. Na teoria chinesa antiga, diz-se que 24 minutos
o tempo necessrio para que o qi, ou energias vitais do corpo, passem por um
ciclo completo. Para os indianos, o mesmo perodo de tempo era considerado
ideal para as sesses de meditao, quando se comea a praticar. Mais tarde
voc pode desejar estender esse tempo. Tenha em mente que 24 minutos
apenas uma pequena frao das cerca de 16 horas dirias em que voc est
acordado. Se essa for a sua nica prtica espiritual, se ela no influenciar todo o
resto, ento, no importa o que acontea nesses 24 minutos, a prtica no ter um
efeito muito transformador sobre a sua vida como um todo. H competio
demais por parte das atividades das outras 15 horas e meia.

ATENO PLENA NA VIDA DIRIA


Aqui esto algumas orientaes retiradas dos ensinamentos de Asanga,[4]
grande praticante budista indiano do sculo V, que podem ajud-lo a estender a
sua prtica para a vida cotidiana.
Contenha os seus seis sentidos (conscincia mental, bem como os cinco
sentidos fsicos) frente a objetos que despertem desejo ou hostilidade. Isso no
significa que voc nunca deva pensar em nada agradvel ou desagradvel.
Apenas evite permanecer nessas coisas de uma forma que perturbe o equilbrio
de sua mente. Se voc quiser observ-las, faa-o, mas no alimente as aflies
mentais de apego e averso. Isso seria como poluir um crrego da montanha. Da
mesma maneira, se voc enfocar coisas decepcionantes em si mesmo ou nos
outros, elas se tornaro a sua realidade. Assim, evite dar importncia ao que
desperta hostilidade, irritao, negatividade, desejo, ansiedade e fixao.
Alm disso, no se apegue s informaes trazidas pelos sentidos. Quando
um monge caminha pela estrada, ele lana o olhar para baixo, de modo a no
focar coisas que possam catalisar desejo ou hostilidade. O ponto esse: no v a
lugares onde seja provvel que voc sucumba a desejos obsessivos. O anseio
sensual um dos cinco obstculos que o Buda apontou como obstrutivos ao

processo de refinamento da ateno. Outro obstculo a maldade. Quando


estiver perturbado pelo comportamento negativo de algum em relao a voc,
trate essa pessoa com compaixo. Ser dominado por pensamentos de raiva e dio
apenas envenena a mente. Proteja a sua mente da maldade como protegeria
uma criana de se ferir.
Durante as atividades normais, quando estiver andando, comendo ou fazendo
limpeza, traga uma maior ateno aos seus movimentos. Esteja atento sua
dieta. Consuma alimentos que no sejam de difcil digesto e em quantidades que
no sejam nem muito grandes, nem muito pequenas. Se quiser transformar o ato
de comer em uma atividade do Darma, alimente-se para que possa nutrir o seu
corpo e coloc-lo a servio do mundo. E durma o suficiente. Mesmo com a
melhor das intenes, a sua prtica ser prejudicada se voc no estiver
dormindo o suficiente. Tente adormecer com pensamentos sadios. Proporcione a
si mesmo um intervalo entre o sono e as suas atividades dirias, com todas as
suas preocupaes e responsabilidades. ideal meditar um pouco antes de se
recolher.
Costuma-se dizer que a prtica espiritual no ser produtiva a longo prazo a
menos que voc sinta satisfao ao praticar. claro que voc no ir apreciar
cada momento, porque s vezes o caminho se torna spero no porque o
Darma seja espinhoso, mas porque a nossa mente guiada pelos hbitos o . Em
geral, importante encontrar e seguir um caminho que faa o corao cantar.
Quando a conscincia da respirao comea a fluir, torna-se agradvel. Na
simplicidade, voc ver que o perfume do progresso espiritual forte e puro.
Mas voc tambm poder desenvolver um apego simplicidade. Pode comear
a desejar a solido e querer desligar-se do mundo, pensando: Isso me faz to
bem tudo de que necessito a respirao. Isso poder alien-lo, evitando que
se envolva com os outros, fazendo com que se torne menos disposto a oferecer o
que poderia para aqueles que o rodeiam. importante no desvalorizar o
envolvimento com os outros nem a realidade de nossa interconexo com eles.
Temos algo a oferecer aos outros e algo a ser recebido. Esse um elementochave no sentido da vida e voc no pode se desconectar disso por gostar tanto de
observar a respirao.
O budismo no apenas meditao alis, nenhum caminho contemplativo
apenas um conjunto de tcnicas, um livro de receitas para a alma. A meditao
se entremeia a todo o tecido da vida. E, de modo geral, a prtica espiritual traz
uma disposio em focarmos criticamente o modo como vivemos. Por que nos
envolvemos nos tipos de coisas que fazemos no dia a dia? Entre os muitos desejos
que vm mente e os muitos que podemos seguir, no existem aqueles nos quais
no vale a pena investir toda uma vida, coisas que fazemos apenas por fora do
hbito? Alguns desejos, tais como o desejo de ser um bom pai, irmo, me ou
irm, so aspiraes nobres. Em seu trabalho, voc deseja realizar as suas

tarefas de maneira benfeita e satisfatria. Assumindo que o trabalho seja sadio,


h um valor nisso. Mas no h alguns desejos que so mais importantes do que
outros, convidando-nos a prioriz-los e a fazer sacrifcios? Na prtica espiritual
em geral, a questo a simplificao e priorizao dos desejos. O que mais
queremos? Poderiam alguns dos nossos desejos representar meramente outra
coisa que de fato queremos? Voc j observou quantas pessoas, sobretudo as
muito conhecidas, chegaram ao pice de suas profisses e tornaram-se vtimas
do alcoolismo e das drogas? Recentemente fiquei impressionado quando ouvi a
atriz Gwy neth Paltrow comentar em uma entrevista que, ao se tornar uma
celebridade adorada por fs e muito rica, se isso tudo o que voc tem, voc
no tem muito. No possvel que alguns de ns estejamos nos esforando
diligentemente na direo errada, sem contato com as nossas verdadeiras
aspiraes?
No meu caso, quando tinha 20 anos, senti que ter uma namorada, um carro,
uma boa educao e excelentes perspectivas de uma carreira de sucesso no era
o suficiente. Descobri que a fixao ao mundano e ao transitrio, em ltima
anlise, no cumprem as promessas iniciais. Assim, enquanto estamos imersos
no fluxo contnuo de felicidade e dor da vida, o esprito de emerso pode nos
guiar na busca de um caminho de sanidade crescente. Manter os ps no cho,
tornando-nos psicologicamente mais saudveis e menos neurticos isso por si s
nos trar uma maior sensao de bem-estar. E h uma tnue linha que liga a
sade mental ao amadurecimento espiritual. Isso implica que mesmo os
primeiros passos em direo sade mental so parte da prtica espiritual.
Ir alm do desejo por coisas que so apenas smbolos da verdadeira
felicidade leva a uma compreenso mais profunda. Comeamos a ver que
estamos inter-relacionados com os nossos companheiros seres humanos, com
outros seres sencientes e com todo o ambiente. Estamos agora e sempre
estivemos inextricavelmente interligados com o que nos rodeia. No budismo, a
noo de um indivduo isolado e independente, de um ego autnomo, no est
fundamentada na realidade. Esse ego nunca existiu, nada mais do que uma
construo mental habitual e uma construo deludida. Essa afirmao mais do
que meramente uma crena: uma hiptese de trabalho que examinaremos
cuidadosamente conforme prosseguimos por meio dessas prticas, no
meramente aceitando qualquer coisa como dogma. Se estamos interrelacionados a partir de nossa essncia e nos voltamos para a questo de o que
buscamos?, a nossa busca no apenas por ns mesmos, mas por ns mesmos
em relao a todos os outros. As questes passam a ser: o que eu procuro em
relao a voc?, como podemos nos aventurar juntos?. Assim que possvel,
cultive uma motivao altrusta para a sua prtica de ateno plena na respirao
e para qualquer outra prtica que realizar. Aspire manifestar a capacidade total
de sua prpria natureza de buda. Manifeste-a completamente, no importando

em que isso possa implicar. Como resultado, voc experimentar uma


capacidade para a compaixo, a sabedoria e a energia ou o poder do prprio
esprito, o poder de curar e o poder de criar.
Como isso pode ser revelado? Simplificando e enfocando os nossos desejos
da mesma maneira que cultivamos a ateno. Ao final, alcana-se um ponto
onde todos os nossos desejos se tornam derivaes de uma nica aspirao: Que
eu possa realizar o perfeito despertar espiritual para o benefcio de todos os
seres. Esse o simples e nico desejo de bodicita, o esprito do despertar. Assim,
quando esse for o nico desejo remanescente, libere-o por um momento. Solte-o
e apenas esteja presente. Da mesma forma, quando enfocar a ateno, quando a
mente se acalmar e se tornar mais centrada na respirao, solte-a. Solte e
permanea presente no puro estado de estar consciente. Isso revelar a voc a
natureza da prpria conscincia.

2 Estabelecer a mente em seu estado natural

A G O RA PA SSA RE M O S D A P R T I CA D A ateno plena respirao


para a meditao mais sutil de estabelecer a mente em seu estado natural.
Depois de passar quatro anos na ndia estudando com muitos mestres budistas
tibetanos e theravadas, fui encorajado por Sua Santidade o Dalai Lama, que me
ordenou monge, a juntamente com o meu mestre Geshe Rabten estabelecer um
monastrio budista tibetano para ocidentais na Sua. Para mim, foi como
regressar ao lar, pois fui criado e vivi durante anos na Sua. Pouco depois de me
mudar para l, Geshe Rabten deu ensinamentos a seus alunos, monges e leigos
sobre a prtica de Mahamudra, cujo propsito levar compreenso da
natureza da conscincia. Essa prtica consiste em duas partes: shamatha e
vipashy ana. A tcnica de shamatha que ele ensinou idntica apresentada aqui.
Desde ento, recebi ensinamentos semelhantes do falecido contemplativo
tibetano Khenpo Jigm Phuntsok, talvez o mais conhecido iogue em todo o Tibete,
e de Gy atrul Rinpoche, cuja orientao e exemplo tm sido uma profunda fonte
de inspirao.

PRTICA
Repouse o corpo em seu estado natural, como descrito no captulo anterior.
Para essa prtica, importante deixar os olhos abertos, dirigindo o olhar
livremente ao espao sua frente. Pisque sempre que desejar e deixe que os
seus olhos permaneam relaxados. Embora deixar os olhos abertos possa parecer
um pouco estranho caso voc nunca tenha meditado assim antes, tente se
acostumar. No permita que os seus olhos se tornem tensos deixe-os como se
estivesse sonhando acordado. Nessa prtica, a sua cabea pode ficar
ligeiramente inclinada. A lngua pressiona suavemente o palato. Ao longo dos 24
minutos dessa sesso, o seu corpo deve permanecer vontade e sem nenhum
movimento alm dos movimentos naturais da respirao. Traga mente as trs
qualidades da postura: relaxamento, estabilidade e vigilncia.
Antes de aventurar-se na prtica principal, permanea por alguns instantes
em meditao discursiva, trazendo mente a sua motivao para a sesso. Qual
o seu anseio mais profundo e significativo no contexto mais amplo de sua
prtica espiritual ou de sua vida? Como voc poderia encontrar maior significado,
contentamento, satisfao e felicidade em sua vida? Essa aspirao pode se
referir no s ao seu bem-estar individual, mas pode incluir todos aqueles com
quem voc tem contato, todo o mundo. Encorajo voc a trazer mente a sua
motivao mais significativa. Isso enriquecer a sua prtica.
Vamos comear a estabilizar esse maravilhoso instrumento a mente ,
aperfeioar o seu foco e a sua ateno, contando 21 respiraes. Em um modo
de operao puramente observacional, foque a sua ateno mais uma vez nas
sensaes tteis produzidas pela entrada e sada do ar pelas narinas. Direcione
tambm a sua conscincia introspectiva para o estado de sua mente, observando
se est agitada, calma, sonolenta ou alerta. Deixe que a ateno plena
respirao e que a vigilncia introspectiva da mente sejam acompanhadas de
uma sensao de estar profundamente vontade e relaxado. Com essa tcnica
simples, no incio da prxima inspirao, conte um mentalmente, e a seguir
apenas observe as sensaes tteis da inspirao e da expirao. No incio da
prxima inspirao, conte dois. Desse modo, siga de um a 21 sem perder a
contagem. Quando os pensamentos surgirem, apenas deixe-os passar, libere-os a
cada expirao e direcione a ateno de volta para a respirao.
Agora destacaremos um segundo aspecto dessa prtica: aumentar a
vivacidade, estabelecendo a mente em seu estado natural. Temos seis portas de
percepo, incluindo os cinco sentidos fsicos de viso, audio, olfato, paladar e
tato. Mas ainda temos uma outra via, uma percepo direta de um outro reino da

realidade o sexto domnio, o da experincia mental. Assim, tome interesse


agora pelo domnio da mente, esse campo de experincia no qual ocorrem
pensamentos, imagens, sentimentos, emoes, memrias, desejos, medos e,
noite, os sonhos. Por enquanto, manteremos tambm uma ateno perifrica
respirao. Metaforicamente, manteremos uma das mos da ateno sobre a
boia da respirao. Para expandir a metfora, imagine que voc esteja no
oceano em um suave balano, subindo e descendo, com uma das mos sobre
uma boia que lhe d alguma estabilidade, um ponto de referncia. Agora, usando
uma mscara, voc mergulha a cabea a um nvel abaixo da superfcie das
ondas, consciente dos movimentos de seu corpo para cima e para baixo, mas
observando tudo o que jaz nas profundezas do oceano, na gua transparente e
lmpida.
Nesse estado de conscincia, observe o que quer que surja na mente, sem
qualquer preferncia quanto a pensamentos surgirem ou no, sem nenhuma
preferncia por pensamentos agradveis em oposio a pensamentos
desagradveis. Faa isso sem interveno nem manipulao, sem controle.
Deixe o pensamento surgir, passar diante de voc e em seguida desaparecer.
Enquanto isso, permita que a conscincia repouse, permanecendo em sua prpria
quietude, mesmo enquanto a mente est ativa. Desse modo, a mente
gradualmente se estabelecer em seu estado natural, que bastante diferente de
seu estado habitual. Em geral, a mente oscila entre a agitao e a lassido. Mas,
com essa prtica, a mente gradualmente acaba por repousar em sua prpria
base, calma e clara.
Por fim, da mesma forma, sem controle ou identificao, apenas descanse
no modo de observao, por vezes chamado de conscincia nua. Perceba, da
forma mais nua possvel, tudo o que surgir nesse espao, quer brote de dentro,
como uma emoo ou sentimento, quer parea ser um objeto da mente, como, a
tagarelice mental ou as memrias. Veja se possvel deixar a sua conscincia
profundamente relaxada, de modo que voc possa observar esses eventos
mentais sem interveno. Voc capaz de assistir passivamente a cada evento
mental seguindo a sua prpria vida surgindo, permanecendo por algum tempo e
partindo como se no fosse influenciado pelo fato de voc estar consciente
dele? Observe atentamente, mas permanea relaxado.
Nessa prtica, muito importante que no haja preferncia por ter uma
mente calma e tranquila em oposio a uma mente ativa e discursiva.
apropriado ter uma preferncia por no ser levado pelos eventos mentais e no
se agarrar a eles. Descubra se possvel permanecer calmo, mesmo quando os
pensamentos que passam por sua mente esto perturbados.
Continue respirando normalmente no abdmen. Se voc se sentir
desorientado, retorne respirao, estabilize um pouco e, em seguida, paire no
espao da mente uma vez mais. Tente manter esse estado meditativo durante os

24 minutos.
Para encerrar essa sesso, dedique qualquer benefcio o que quer que tenha
sido significativo nessa prtica para a realizao de suas aspiraes por seu
prprio bem-estar e felicidade, e pelo bem-estar e felicidade de todos aqueles
que o cercam. Que o maior bem possvel possa resultar dessa prtica.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


A fim de tornar a ateno malevel ou aproveitvel, comeamos com duas
prticas que treinam a ateno com shamatha, ou quiescncia meditativa. Essa
ateno tem duas qualidades: estabilidade e vivacidade, ambas alcanadas pelo
cultivo da ateno plena e da introspeco. O primeiro captulo enfocou a
ateno na respirao aqui, nos concentraremos na mente. Na antiga literatura
pli, o Buda se refere a essa prtica como o cultivo da ateno plena sem
fixaes. Podemos facilmente traar paralelos entre essa tcnica de shamatha e
a prtica do sentar do Soto Zen, bem como com a tradio Vipassana
contempornea. Na tradio budista tibetana, essa prtica pode ser chamada de
diferentes formas, como estabelecer a mente em seu estado natural,
quiescncia focada na conceituao e tomar a mente e as aparncias como
caminho. Embora essa prtica com certeza produza muitos insights sobre a
natureza da mente, ela corretamente classificada como uma prtica de
shamatha e no como vipashy ana, pois no implica qualquer investigao sobre
a natureza dos fenmenos. Esse mtodo de estabelecer a mente tem a grande
vantagem de conduzir ao insight sobre a natureza relativa da conscincia.
Praticar a ateno respirao fornece uma medida clara da estabilidade da
ateno. Ou voc est na respirao ou no est. Se voc escolhe ficar na
respirao, mas cinco segundos depois est distrado, voc sabe que sua
estabilidade precisa melhorar. Retorne sempre respirao, cultivando a
continuidade e estabilidade, mantendo-a como um ponto de referncia. Alm
disso, preste ateno vivacidade e clareza da percepo das sensaes tteis
da inspirao e da expirao. Voc consegue identificar sensaes mesmo entre
as respiraes ou elas desaparecem? Mesmo que as sensaes da respirao se
tornem tnues ou desapaream, mantenha a sua ateno na regio onde
surgiram pela ltima vez. Conforme a vivacidade aumentar, voc ver que o que
voc est sentindo tem maior riqueza. A tcnica simples e direta: mantenha a
ateno plena na respirao, buscando continuidade e monitorando a mente
durante todo o tempo quanto ocorrncia de agitao ou lassido por meio de
vigilncia introspectiva.
O primeiro passo para desenvolver a estabilidade e vivacidade da ateno

usar um objeto claro para a mente, como a respirao. Mas nessa tcnica de
observar a mente voc passa para algo mais sutil, em que a estabilidade e
vivacidade da ateno no esto ligadas a um objeto especfico. Voc traz a
conscincia para o domnio da sua mente e ento a estabiliza vividamente,
claramente , e o que quer que aparea surge e passa de forma no obstruda.
Na cacofonia da mente, a conscincia em si permanece estvel. Usando uma
metfora citada por Sogy al Rinpoche, a sua conscincia como um anfitrio
gentil em meio a convidados indisciplinados. Os convidados vm e vo, podem s
vezes brincar de guerra de comida, mas o anfitrio permanece calmo e sereno.
Mesmo quando voc est observando o que surge no espao de sua mente,
ainda h objetos da conscincia. A dicotomia sujeito/objeto mudou da ateno
subjetiva respirao objetiva para uma conscincia subjetiva dos fenmenos
objetivos que surgem no domnio da mente. Portanto, voc est observando
pensamentos e lembranas dentro do domnio da mente como objetos da
conscincia. Assim como na ateno plena respirao, voc pode cultivar a
estabilidade e a vivacidade da ateno, mas sem controlar a sua mente como
estava fazendo quando praticava ateno plena respirao. Nessa prtica voc
no est tentando modificar, julgar ou se identificar com o contedo da mente. A
estabilidade e a vivacidade ainda esto presentes, mas elas so qualidades da
conscincia subjetiva e no dos contedos objetivos da mente, que vm e vo, s
vezes de forma catica. medida que a sua ateno se torna mais estvel, voc
vai se tornando mais familiarizado com essa estabilidade subjetiva mesmo em
meio agitao mental. Sem se identificar com os objetos, julgar, intervir,
suprimir ou dar poder s atividades mentais, apenas observe como a mente se
estabelece.
Ao observar o surgir e passar dos fenmenos mentais, voc j deve ter
percebido que h pouca estabilidade. A mente est totalmente preenchida por
pensamentos fugazes, imagens, memrias, e assim por diante. Voc pode se
perguntar como possvel atingir a estabilidade quando a mente est to
turbulenta. Lembre-se de que a estabilidade a ser cultivada aqui no ser
encontrada nos contedos objetivos da mente, mas na sua percepo subjetiva
acerca delas. Com isso, quero dizer que voc se estabelece na quietude do espao
da mente mesmo quando esse espao preenchido com movimento. Portanto,
isso requer uma estabilidade de no ser carregado por pensamentos e emoes.
Alm disso, pelo fato de a sua ateno no estar focada em um ponto fixo, a
estabilidade da conscincia tem uma qualidade de fluxo livre.
Lerab Lingpa, contemplativo tibetano do sculo XIX, resumiu a essncia
dessa prtica no conselho de estabelecer a mente sem distrao e sem fixao.
Por um lado, no deixe que a sua ateno seja arrastada por qualquer contedo
da mente, perdendo-se no passado, no futuro ou em elaboraes conceituais
sobre o presente. Por outro lado, surja o que surgir no campo da mente, no crie

fixaes, no se identifique, no se agarre e nem afaste. Nem mesmo prefira


estar livre de pensamentos. Como Lerab Lingpa aconselhou:
Sejam quais forem os tipos de imagem mental que surjam
suaves ou violentas, sutis ou grosseiras, de longa ou curta
durao, fortes ou fracas, boas ou ms , observe a sua natureza
e evite qualquer avaliao obsessiva acerca delas como sendo
uma coisa e no outra. Deixe o corao de sua prtica ser a
conscincia em seu estado natural, lmpido e vvido.[5]
Voc alguma vez j viu um falco pairando no ar enquanto vasculha o solo
em busca de comida? No h nada em que esse pssaro possa se segurar, mas
com o monitoramento fino de suas asas e das correntes de ar, ele pode
permanecer imvel em relao ao cho enquanto se desloca pelo ar. Ele paira
por no se fixar e, ainda assim, h estabilidade. Voc tambm capaz de manter
a sua ateno sem se mover, em pleno ar, no espao de sua mente. Se deseja
aprofundar a sua meditao a investigao contemplativa sobre a natureza de
sua prpria existncia, a sua relao com o ambiente circundante e com os
outros seres , a habilidade de sustentar a ateno de forma contnua e clara
crucial. Nesse momento, estaremos apenas desenvolvendo um instrumento,
refinando a nossa ateno para obter um grau mais elevado de estabilidade e
vivacidade. Ddjom Lingpa, outro mestre tibetano de meditao do sculo XIX,
descreveu os resultados dessa prtica da seguinte forma:
Dedicando-se a essa prtica constantemente, em todos os
momentos, durante e entre as sesses de meditao, finalmente,
todos os pensamentos sutis e grosseiros se acalmaro na
expanso vazia da natureza essencial de sua mente. Voc se
aquietar em um estado sem flutuao, no qual experimentar
alegria como o calor de uma fogueira, clareza como o nascer do
Sol e ausncia de conceitos como um oceano sem ondas.[6]
Panchen Lozang Chky i Gy altsen, contemplativo do sculo XVII, tutor do
quinto Dalai Lama, resumiu os resultados:
Dessa forma, a realidade da mente percebida de forma clara e
profunda, e, ainda assim, no pode ser apreendida nem
demonstrada. O que quer que surja, observe de forma livre,
sem se fixar, esse o conselho quintessencial que passa adiante
a tocha do Buda Alm disso, sejam quais forem os objetos bons
e maus dos cinco sentidos que surjam, a conscincia assume
qualquer aparncia de forma clara e luminosa, como os reflexos
em um espelho lmpido. Voc tem a sensao de que ela no
pode ser reconhecida como sendo isso e no aquilo.[7]

No contexto mais amplo da cincia e do conhecimento acadmico, no


Ocidente, ns somos propensos viso muito restrita, preconceituosa e
essencialmente no cientfica do potencial da mente para observaes objetivas.
Consideramos que os cinco sentidos externos, com as suas extenses por meio de
instrumentos de tecnologia, nos fornecem informaes objetivas, enquanto a
mente, voltada para dentro, considerada subjetiva demais para fornecer
dados confiveis sobre o que quer que se esteja observando. De acordo com esse
ponto de vista, o empirismo a explorao da realidade por meio da observao
e da experincia (em oposio confiana no dogmatismo ou racionalismo
puro) deve ser focado no mundo fsico e no pode ser aplicado mente, que
responsvel apenas por pensar e lembrar. Mas a mente faz muito mais. Ao
observar a sua mente em meditao, voc no est simplesmente se lembrando
de algo do passado voc est observando eventos mentais no presente. Alm
disso, voc capaz de dizer, a cada momento, se a sua mente est agitada ou
calma, se est interessada ou entediada, feliz, triste ou indiferente. Voc sabe
disso por meio de observao direta, no indiretamente atravs de seus cinco
sentidos fsicos. Mas, infelizmente, na tradio ocidental moderna, tal
introspeco tem sido marginalizada, limitando a explorao cientfica.
O budismo sustenta que temos seis modos de observao, e apenas um deles,
a percepo mental, possibilita acesso direto a eventos mentais. Os cientistas do
crebro podem acess-los indiretamente, encontrando correlaes neurais com
estados e processos mentais, e os psiclogos comportamentais podem estud-los
indiretamente pela observao das relaes entre mente e comportamento. Mas
o nico acesso direto aos eventos mentais se d por meio da percepo mental.
Esse um ponto crucial, embora geralmente ignorado em nossa civilizao a
percepo mental tambm tem validade emprica.
claro que o ideal de objetividade central para as cincias humanas e para
a cincia em geral. Aquele que falha nesse teste considerado um cientista fraco
e um estudioso fraco. Mas ser que a objetividade possvel em uma rea que
parece ser um domnio inteiramente subjetivo: o reino privado e interno de
pensamentos, lembranas, sentimentos, desejos, imagens mentais e sonhos? Isso,
claro, depende de como se define objetivo. Permita-me oferecer duas
definies de objetividade. Uma a objetividade como uma forma de
engajamento com a realidade, buscando o entendimento, to livre quanto
possvel de qualquer tendncia individual. Nela, as preferncias pessoais devem
ser postas de lado. Contudo, uma mente aberta e uma disposio para ouvir vozes
diferentes, opostas ou desconhecidas, para reconsiderar ideias e dar-lhes uma
nova chance tambm um modelo de objetividade. No vejo nenhum aspecto
negativo nisso. No budismo, h trs critrios para se considerar um aluno como
adequado, um deles sendo a objetividade: apurar o que est sendo percebido, o
que oferecido a voc pela realidade, por assim dizer, sem distorcer, sobrepor

ou reduzir por meio de expectativas, preconceitos ou preferncias. Essa


objetividade to crucial para a investigao contemplativa quanto para a
investigao cientfica e acadmica.
Um outro tipo de objetividade frequentemente estipulado como ideal para a
cincia: o princpio de observar fenmenos que no esto relacionados com
qualquer observador individual. Quando voc olha para a Lua e fecha os seus
olhos, a Lua ainda permanece l. A Lua , portanto, considerada objetivamente
real e, por essa razo, um objeto apropriado para estudos cientficos. Cincia
no apenas tentar ser livre de preconceitos e inclinaes, mas tambm olhar
para o mundo objetivo que est l fora, independentemente de qualquer
observador. Entretanto, repare que, se voc comear a chamar aquela matriz de
objetos que existem independentemente de qualquer observador individual de
mundo objetivo ou mundo fsico e, em seguida, igual-lo a mundo natural,
algo deixado de fora da natureza: todos aqueles fenmenos reais e naturais que
no existem de forma independente do observador individual, como os seus
pensamentos, emoes, sonhos e todo o reino da sua vida subjetiva. Pensamentos
e afins so excludos por no terem existncia independente do observador. Isso
implica, erroneamente, que os pensamentos sejam menos reais e que no faam
parte do mundo natural por no serem pblicos. Mas isso nada mais do que
uma afirmao tendenciosa, uma excluso subjetivamente preconceituosa dos
fenmenos mentais do mundo natural.
No entanto, partindo de um ponto de vista pragmtico, alm do fascnio de
explorar a natureza da conscincia, os eventos mentais e a sua relao com a
realidade fsica, qual o valor desse tipo de investigao contemplativa para ns,
pessoalmente? A esse respeito, a minha sugesto de que a prtica em questo
a prpria busca pela felicidade genuna mencionada anteriormente: A verdade
vos libertar. Qualquer tradio budista fiel essncia dos ensinamentos do
prprio Buda nunca se afasta desse ideal pragmtico. O budismo parte da
realidade do sofrimento e segue rumo origem do sofrimento, do
descontentamento, da insatisfao, do mal-estar, da falta de sentido e realizao,
da tristeza, do desespero, e assim por diante. A seguir, indaga: o sofrimento tem
causas ou surge aleatoriamente? Se voc optar pela ltima alternativa, a sua
pergunta chegar a um beco sem sada. Todavia, se voc adotar a hiptese de
trabalho de que a felicidade e a tristeza tm causas, a investigao ser
significativa. Uma vez que enfocamos a natureza de nossos estados emocionais,
de nossos estados afetivos de alegria e tristeza em todas as suas gradaes,
podemos ento comear a explorar as suas causas.
Observe como o funcionamento interno da mente pode lev-lo insatisfao.
Por exemplo, ser menosprezado por algum pode lan-lo insegurana e
tristeza. Uma entre um milho de opinies precisa arruinar o seu dia? Voc desce
a ladeira escorregadia da negatividade, preocupa-se com o seu valor como

pessoa e assim por diante, mas a sua reao no precisa ser automtica. No
existe essa correspondncia um para um entre os eventos externos e os nossos
estados emocionais internos.
Em 1971, fui morar com refugiados tibetanos que, arriscando as suas vidas,
haviam fugido de seu pas e se estabelecido na cidade indiana de Dharamsala h
apenas uma dcada. Para o meu espanto, eram as pessoas mais felizes que eu
havia conhecido na minha vida. Os fatores externos que poderiam sustentar a sua
felicidade eram poucos e esparsos. Eles eram pobres, tinham perdido a sua terra
natal, cada um deles havia passado por uma tragdia pessoal e muitos estavam
mal de sade. Por meio de uma busca inteligente e pragmtica para nos
libertarmos daquilo que nos impede, ns tambm podemos descobrir a fonte do
verdadeiro bem-estar.

ESTILO DE VIDA FAVORVEL PRTICA


Para melhorarmos a nossa prtica, precisamos de um estilo de vida
favorvel a um maior equilbrio, serenidade e bem-estar no dia a dia, que
permita que a nossa prtica flua para a vida cotidiana, proporcionando mais
sentido e felicidade. Que sejamos guiados por essa muito citada afirmao de
Atisha, o reverenciado mestre indiano do sculo XI que desempenhou um papel
fundamental na revitalizao do budismo no Tibete:
Enquanto as condies para a quietude meditativa estiverem
incompletas, a concentrao meditativa no ser alcanada,
ainda que se medite diligentemente por mil anos.[8]
Atisha est dizendo que as tcnicas precisam ser colocadas no contexto de
um estilo de vida que oferea apoio. No suficiente ser habilidoso ou srio por
24 minutos. Habilidade e compromisso no iro funcionar nem mesmo em mil
anos, se o contexto adequado um estilo de vida favorvel e um ambiente
favorvel no estiver presente. No faz nenhum sentido nos aplicarmos
prtica espiritual e no recebermos nenhum benefcio. A vida muito curta.
Se voc tem a inteno de elevar a sua ateno a um grau excepcionalmente
alto de estabilidade e clareza, de modo a tornar sua mente o mais aproveitvel
possvel, o conselho geral da tradio budista simplificar radicalmente a sua
vida. Retire-se em isolamento para onde possa dedicar-se prtica
contemplativa com o mnimo possvel de distraes. Mas a maioria de ns
incapaz de fazer isso. Modifiquei as recomendaes de Asanga, que se destinam
especificamente queles que se dedicam inteiramente a uma vida de
contemplao, para que o seu conselho pudesse ser aplicado a uma vida ativa. E,
embora essas recomendaes sejam especficas para o desenvolvimento de

shamatha, tambm se aplicam de modo mais geral busca de aprofundamento


da prtica espiritual.
Os seis requisitos internos e externos para treinar a ateno comeam com
encontrar um ambiente adequado. O seu ambiente propcio para a prtica caso
apresente essas cinco qualidades:
1 . comida, abrigo, roupas e outros itens bsicos so facilmente obtidos;
2 . um local agradvel, onde voc no perturbado por pessoas, animais
carnvoros e assim por diante. Deve haver uma sensao de que o ambiente
relativamente seguro, para que voc possa ficar vontade;
3 . um bom lugar. Voc pode querer se afastar de uma rea onde no possa
respirar ar puro ou beber gua limpa, ou onde a doena prevalea. Se observar
os mosteiros no Tibete ou na Europa, voc notar que os monges em geral tm
um bom senso esttico. Eles constroem mosteiros em locais inspiradores. Se voc
conseguir uma vista que traga sua mente uma sensao de espao amplo e
relaxamento, est perfeito;
4 . tem bons companheiros. Certa vez, o Buda disse que ter amigos espirituais
a prtica espiritual inteira. A prtica flui muito melhor se voc puder contar
com companheiros que se apoiam mutuamente. A sensao de alienao das
pessoas ao seu redor causa dificuldades;
5 . por fim, certifique-se de que as pessoas no perturbem a sua mente
durante o dia e de que as noites sejam pacficas. Os budistas contemplativos
transmitiram o aforismo de que para a prtica meditativa profunda o som um
espinho. Voc pode fechar os olhos, mas no to fcil fechar os ouvidos. Se
tiver a chance, escolha bem onde ir morar.
A segunda recomendao ter poucos desejos. Liberte-se do anseio por
posses, tanto de alta qualidade quanto de grande quantidade, bem como de
entregar-se s outras preocupaes mundanas.
O contentamento o terceiro requisito. Olhe para o que voc tem e veja se
j est adequado. Se estiver, contente-se. Como algum j materialmente
abastado, mas ainda insatisfeito, pode ser chamado de rico em algum sentido
significativo? A pessoa apenas tem um monte de bagagem. Mas, quer tenha
muitas posses ou poucas, se voc tem contentamento, a verdadeira riqueza sua.
O quarto a simplicidade do estilo de vida. Uma vez, quando eu estava
coordenando um retiro de shamatha com cerca de 12 pessoas dedicadas
exclusivamente a essa prtica por um ano, o tibetano contemplativo Gen
Lamrimpa, que era o principal mestre nesse retiro, desencorajou-as at mesmo
de manter um dirio. No atravanquem a sua vida, disse ele. Ele queria que as
pessoas enfocassem a prtica com o mnimo possvel de distraes. Neste
momento, a simplicidade radical provavelmente no vivel para a maioria de
ns. Todavia, mesmo em meio complexidade, podemos conseguir algum grau
de simplicidade.

A quinta recomendao manter disciplina tica pura. A essncia da tica


budista evitar o envolvimento em aes que sejam prejudiciais ao seu prprio
bem-estar ou ao de outros. Nas grandes religies ocidentais judasmo,
cristianismo e islamismo a tica imposta humanidade por uma autoridade
divina externa. Esse no o esprito do budismo. A tica deriva naturalmente da
busca pela felicidade genuna, do treinamento e do aperfeioamento da mente, e
da explorao da realidade. semelhante tica cientfica, que implica
completa honestidade em relatar o que est sendo pesquisado, pois, se esse
princpio violado, a cincia como um todo deixa de funcionar. Uma das quatro
regras ticas mais importantes para os monges budistas : No forje os
resultados de sua prtica espiritual ou, em termos budistas, no minta sobre a
sua realizao. No distora nem exagere de modo algum o seu grau de
realizao espiritual. Se fizer isso, no ser mais considerado um monge.
A sexta e ltima advertncia : No fique preso a fantasias. Isso sugere que
a qualidade de presena que enfatizamos na prtica meditativa formal pode
ajudar a nos libertarmos de pensamentos obsessivos em nossas interaes com os
outros, com o ambiente, com o nosso trabalho e com a vida como um todo.

3 A conscincia de estar consciente

N A P R T I CA D E E STA BE L E CE R A M E N T E em seu estado natural,


observamos o contedo da mente, mas, na conscincia de estar consciente, no
dirigimos a nossa ateno para coisa alguma. Simplesmente permitimos que a
conscincia repouse em seu prprio lugar, consciente de si mesma.

Depois de 20 anos de treinamento em abordagens desenvolvimentistas do


despertar espiritual, como nos ensina o budismo Theravada e as ordens Gelukpa e
Saky apa do budismo tibetano, em 1990, passei a ser orientado por Gy atrul
Rinpoche, lama snior da ordem Ny ingmapa que tambm recebeu treinamento
intensivo na ordem Kagy pa. Essas so as quatro principais ordens do budismo
surgidas no Tibete nos ltimos 1.200 anos. Embora nas dcadas de 1970 e 1980
eu tivesse sido introduzido por dois mestres Gelukpa, Geshe Rabten e Gen
Lamrimpa, prtica de shamatha de estar consciente da natureza da
conscincia, foi Gy atrul Rinpoche quem primeiro me ofereceu essa prtica sutil.
Fiquei especialmente impressionado com as instrues sobre essa prtica,
chamada de quiescncia sem sinal,[9] conforme explicado por
Padmasambhava em seu livro Natural Liberation, que traduzi sob a orientao de
Gy atrul Rinpoche.

PRTICA
Antes de comear a prxima meditao, vale a pena dedicar alguns minutos
ao cultivo da motivao mais significativa para se prosseguir com essa prtica.
Voc pode ampliar esse ponto da prtica. A qualidade da motivao que voc
leva ao trabalho, s frias, meditao ou a qualquer coisa infiltra-se na prpria
natureza da ao. Quanto mais significativa a motivao, mais profunda e mais
significativa ser a sua ao. Traga mente as suas mais altas aspiraes por seu
prprio bem-estar e realizao, por dar sentido sua prpria vida como um todo.
Inclua tambm o reconhecimento de que ningum est isolado. Estamos
interconectados e, portanto, em um sentido mais amplo, a nossa mais
significativa motivao deve abranger e incluir os outros. Assim, permita que a
sua mais elevada aspirao seja o seu incentivo para prosseguir nessa prtica.
Estabelea o corpo em seu estado natural, como fez nas meditaes
anteriores, produzindo as qualidades de relaxamento, quietude e vigilncia. Deixe
o seu corpo refletir a qualidade da sua mente. A qualidade da conscincia que
voc est cultivando aqui de tranquilidade, quietude e calma, e, ao mesmo
tempo, brilhante, vvida, aguada e clara.
Para ajudar a acalmar a mente, comece pela prtica de ateno plena
respirao, contando 21 respiraes como fez anteriormente. Agora, como na
prtica anterior de estabelecer a mente em seu estado natural, deixe os olhos ao
menos parcialmente abertos. Repouse o olhar sobre o espao que fica entre o
ponto para o qual tem a sensao de estar olhando e as formas e cores que
surgem em seu campo de viso. Descanse o seu olhar no prprio espao, sem
qualquer objeto visual. Continue respirando no abdmen de forma natural, no

forada. Agora, simplifique radicalmente a sua conscincia, sem focar a


respirao e nem mesmo o contedo de sua mente. Estabelea a conscincia no
prprio estado de estar consciente. Talvez seja esse o seu conhecimento mais
primitivo e confivel, anterior e mais certo do que qualquer conhecimento que
voc tem do mundo externo, at mesmo de seu prprio corpo e do contedo da
sua prpria mente a conscincia do simples fato de estar consciente. Essa
prtica s vezes chamada de shamatha sem sinal. Nessa prtica, ao contrrio
das duas anteriores, voc no foca em nenhum objeto, nem mental, nem fsico.
Voc no dirige a conscincia nem para dentro, nem para fora: a conscincia
est uniformemente presente, tanto externa quanto internamente, e anterior a
essa diviso da experincia. Apenas permita que a conscincia se estabelea em
sua prpria natureza. Os pensamentos podem ir e vir, mas no obscurecem a
natureza da conscincia so expresses dela. Repouse nesse estado de
conscincia sem ser levado ou distrado por qualquer contedo e sem fixar-se em
absolutamente nada.
Em meio aos pensamentos que surgem compulsivamente e permeiam o
campo de sua conscincia, voc detecta algo imutvel, to imvel quanto o
prprio espao? Dizem que a conscincia pode se manifestar como todos os tipos
de representaes sensoriais e mentais. Essa qualidade da conscincia de revelar
a si prpria sob tais formas chamada de claridade ou luminosidade, sendo
uma das qualidades caractersticas da conscincia. como o espao radiante que
ilumina tudo o que nele surge e a sua radincia permanece mesmo nos
momentos em que a conscincia no tem nenhum objeto perceptvel. Em sua
experincia, voc capaz de detectar em meio s imagens mentais uma
luminosidade que persiste mesmo na ausncia dessas imagens, como a superfcie
de um espelho com ou sem reflexos?
Alm disso, a conscincia no simplesmente a claridade ou a luminosidade
das aparncias se manifestando. Ela tem uma segunda qualidade, que a
cognio. A conscincia imbuda de uma qualidade de apreenso. As
aparncias no apenas surgem conscincia, como a conscincia tambm
apreende essas aparncias, permitindo-nos a seguir relatar sobre elas. As
imagens surgem em um espelho, por exemplo, mas o espelho no sabe que elas
esto ali. No espao da mente, por outro lado, as aparncias surgem e sabemos
que esto presentes. Voc consegue discernir a ocorrncia da pura cognio?
No permita que a sua mente se torne to focada a ponto de impedir a sua
respirao. De vez em quando, monitore a sua respirao e veja se ela est
fluindo naturalmente, sem quaisquer limitaes resultantes da concentrao da
ateno. Deixe que a sua barriga permanea solta e continue respirando no
abdmen sem esforo.
Agora vamos tentar uma experincia dentro dessa prtica. Continue a
respirar no abdmen como tem feito, naturalmente e sem esforo, de tal forma

que, quando voc inspira, ele se expande um pouco. medida que o abdmen se
expande durante a inspirao, ele assume uma forma levemente arredondada.
Quando expirar, procure manter esse arredondamento em algum grau, como se
fosse um vaso. Faa isso com suavidade, sem forar os msculos da barriga.
Mantenha um pouco da plenitude do abdmen durante a expirao, como se
estivesse espera da prxima inspirao. Ento, o abdmen se expande um
pouco quando voc inspira. Observe se isso tem algum efeito benfico em sua
prtica. Essa a chamada respirao suave do vaso, que muitos
contemplativos tibetanos consideram til para estabilizar a mente. Outro
experimento que voc pode fazer tentar respirar pela boca. Essas duas tcnicas
no so cruciais para a prtica, mas, se voc achar qualquer uma delas benfica,
utilize-a. No entanto, crucial manter os olhos abertos. Isso ajuda a desobstruir a
mente, aumenta a clareza da conscincia, e tambm comea a destruir a falsa
dualidade de que existe um lado de fora e um lado de dentro da mente.
Sejam quais forem os pensamentos que surjam na mente, eles no
obscurecem a natureza da conscincia. A conscincia est igualmente presente
durante e entre os pensamentos por isso, nessa prtica, no h razo para tentar
aquietar a mente. Examine o espao de conscincia que persiste entre os
pensamentos, de onde os pensamentos surgem e no qual desaparecem. Descanse
sem expectativa, sem desejo, sem esperana ou medo.
Embora no deva observar especificamente o contedo da mente, voc
tampouco deixa de not-lo. Repousando a conscincia em sua prpria natureza,
quaisquer constries ou perturbaes que surjam na mente se liberaro
naturalmente, sem a aplicao de qualquer antdoto. Continue a respirar
livremente. Esse um estado de profundo relaxamento da conscincia no h
constrio.
A qualidade do repouso to profunda e a mente est to relaxada que,
quando voc se tornar proficiente nessa prtica, sentir que poderia passar
diretamente para o sono. Todavia, se adormecesse, voc no abandonaria a clara
conscincia de sua conscincia, mas entraria em um estado lcido sem sonhos,
relaxado e sem referncias.
Voc iniciou essa prtica cultivando as suas aspiraes e motivaes mais
significativas. Ao terminar essa sesso de 24 minutos, reafirme que qualquer
benefcio, compreenso ou clareza que tenham surgido podem conduzi-lo
realizao de seus mais significativos anseios e aspiraes, ao seu bem-estar e ao
bem-estar dos outros.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL

Neste captulo, introduzi a tcnica de shamatha mais sutil que encontrei. Voc
pode perceber que estabelecer a mente em seu estado natural mais sutil do que
a ateno plena na respirao e que a prtica de shamatha de estar consciente
ainda mais sutil. Essa terceira tcnica de cultivo da quiescncia meditativa a
culminncia dessa linha especfica de treinamento meditativo. a mais simples
e, potencialmente, tambm a mais profunda e poderosa. Nessa tcnica, no h
nada para cultivar. No estamos desenvolvendo a estabilidade e a vivacidade da
ateno. Em vez disso, descobrimos por meio da nossa experincia se h algum
aspecto da prpria natureza da conscincia que seja inatamente estvel e claro.
Precisamente na prpria natureza da conscincia h luminosidade e claridade.
Podem estar obscurecidas ou encobertas como resultado da fixao conceitual,
mas so inatas prpria conscincia. A prtica de ser consciente consiste em
liberar aquilo que obscurece a quietude e a luminosidade intrnsecas da
conscincia. Essa uma abordagem de descoberta e no de desenvolvimento,
um processo de libertao e no de controle. Podemos verificar por ns mesmos
se a natureza da conscincia em si tem luminosidade, nitidez e clareza. Isso no
algo para ser aceito como dogma.
Na prtica anterior, partimos do ponto que Descartes considerou o nosso
conhecimento mais certo: ns somos conscientes. A sua afirmao
frequentemente citada cogito ergo sum geralmente traduzida como penso,
logo existo, mas o termo em latim cogito significa tanto pensar como ser
consciente. Assim, a declarao pode ser melhor traduzida como sou
consciente, logo existo. No budismo, reduziramos essa afirmao a existe a
conscincia dos eventos. Disso podemos estar absolutamente certos, mesmo que
no haja tal coisa como um eu ou um ego que exista separadamente da
conscincia e que seja o agente que est consciente. O lama tibetano Sogy al
Rinpoche chamou essa conscincia de estar consciente de o conhecimento do
conhecimento. Ns podemos ter mais certeza da presena da conscincia do
que de qualquer outra coisa. Esse um bom ponto para se comear a meditar.
A tcnica explorada neste captulo vai alm de controlar diretamente a mente
e de conhecer a si mesmo em termos especficos e pessoais. Em vez disso,
nessa prtica, perguntamos: conhecer a si mesmo como um indivduo, com uma
localizao especfica no tempo e no espao, tudo o que h para se conhecer de
si mesmo como um ser consciente neste universo? Somos definidos por
parmetros de gnero, idade, nacionalidade e histria pessoal? Ou existe um nvel
mais profundo, transpessoal de nossa existncia, que pode ser acessado quando a
mente condicionada por conceitos adormece?
Aqui, temos uma tcnica para remover os vus que obscurecem a base da
mente comum e a dimenso da conscincia primordial, esta que se encontra
alm e, todavia, permeia todos os estados de conscincia. Voc repousa naquilo
de que tem mais certeza. Mesmo antes do pensamento penso, logo existo, voc

sabe que a conscincia est presente. Entre os pensamentos, voc no apaga, no


desliga. Antes dos pensamentos, entre os pensamentos e quando os pensamentos
desaparecem completamente como quando se est morrendo , voc pode
verificar aquilo que permanece. Nessa prtica, em vez de tentar cultivar a
estabilidade e a vivacidade da ateno, solte aquilo que obscurece a quietude, a
estabilidade e a vivacidade inatas da prpria conscincia. Quando repousa
profundamente nessa conscincia, voc rompe a estrutura artificial de interno
e externo conceitualmente sobreposta. Quando os seus olhos esto abertos e o
seu olhar est apenas repousando no espao frente, e a sua conscincia mental
est descansando na pura percepo de estar consciente, onde exatamente voc
est? Voc est dentro de sua cabea, fora dela ou essas questes j no so mais
relevantes? Fixaes a externo versus interno podem simplesmente desaparecer.
Sujeito versus objeto tambm pode desaparecer, especialmente se ficar claro
que a dicotomia sujeito/objeto a maneira como estruturamos a nossa
experincia perceptiva e conceitual consiste em nada mais do que construes
que sobrepomos experincia. Se so sobreposies artificiais, liberando-as
podemos nos estabelecer em um estado de no dualidade subjacente. Pode ser
til permanecer nesse estado em nossa meditao final durante o processo de
morte. Mas por que esperar se podemos faz-lo agora?
Padmasambhava, o grande mestre budista indiano do sculo VIII, descreveu
essa abordagem do refinamento de ateno como shamatha sem sinal.
Tsongkhapa, sbio tibetano do sculo XV, referiu-se a ela como observar a
conscincia pura e a claridade absoluta da experincia.[10] Ele descreveu essa
prtica como uma forma de ateno no conceitual no h foco em nenhum
objeto de meditao. Panchen Lozang Chky i Gy altsen descreve esse mtodo da
seguinte forma:
Seja implacvel com os pensamentos e, cada vez que observar a
natureza de quaisquer ideias que surjam, elas desaparecero por
si mesmas, surgindo, aps isso, um vazio. Da mesma forma, se
voc tambm examinar a mente enquanto se mantm sem
flutuao, ver um vazio vvido, claro e desobstrudo, sem
qualquer diferena entre os estados anteriores e posteriores.
Entre os meditadores, isso chamado e aclamado como fuso
entre a quietude e a disperso.[11]
No processo de morte, chegar um momento em que a respirao ir parar
e, portanto, a ateno plena respirao no ser mais possvel. Todavia, mesmo
depois que a respirao cessa e os sentidos fsicos so interrompidos, possvel
continuar a meditar, pois os eventos mentais continuam a ocorrer. Nessa fase do
processo de morte, voc pode praticar a segunda tcnica, a de observar o
domnio da mente imagens, pensamentos, lembranas, emoes e impulsos.

Em vez de temer a morte, tome interesse pelos eventos que ocorrem no espao
da mente e pela natureza do prprio espao. A sua mente agora est prestes a
desaparecer, pois o crebro est sendo desligado, mas a conscincia substrato
permanecer. E possvel repousar nessa dimenso da conscincia com bemaventurana, luminosidade e no conceitualidade. Mesmo quando todas as
atividades mentais cessam, voc pode permanecer vividamente consciente do
espao vazio da conscincia, no qual todas essas atividades desaparecem. Esse
espao chamado de substrato (alay a) e a conscincia bsica desse domnio
a conscincia substrato (alay avijana).
A prtica de shamatha sem sinal, ou simplesmente de estar consciente de
estar consciente, resulta em uma experincia viva da conscincia substrato que
imbuda das qualidades de bem-aventurana, luminosidade e no
conceitualidade. Esse tambm o estado de conscincia que, ao final, emerge
por meio da prtica anterior de estabelecer a mente em seu estado natural.
Sogy al Rinpoche chama isso de base da mente comum e muito fcil
confundi-la com a natureza absoluta da conscincia, conhecida como
conscincia prstina (rigpa), conscincia primordial (y eshe) ou clara luz
(sel). Existem muitas diferenas sutis entre as duas, porm o mais importante
que simplesmente repousar na conscincia substrato no purifica ou libera a
mente de nenhuma aflio mental, enquanto que repousar na conscincia prstina
libera radicalmente a mente de seus obscurecimentos e permite acessar uma
fonte inesgotvel de virtudes espontneas. Ddjom Lingpa escreveu a esse
respeito:
Algum que experienciou a vacuidade e a luminosidade e que
dirige a sua ateno para dentro pode pr fim a todas as
aparncias externas e chegar a um estado em que acredita no
haver nem aparncias, nem pensamentos. Essa experincia de
brilho, a qual no se ousa abandonar, a conscincia substrato
alguns professores a confundem com a clara luz Na
realidade, a conscincia substrato por isso, se voc ficar
preso l, ser lanado no reino da no forma, sem nem sequer se
aproximar um pouco do estado de liberao.[12]
Quanto a repousar a mente em um estado de profunda inatividade como
descrito aqui, razovel perguntar se isso a culminao da prtica budista.
Acalmar toda a atividade e acabar sentado serenamente sob a sua prpria rvore
bodhi, com um sorriso feliz no rosto, sem fazer nada, o objetivo supremo?
Neste mundo com tanto sofrimento, injustias e conflitos, isso seria um
anticlmax. As atividades motivadas pelo ego e autocentradas so reduzidas ao
mnimo nesse tipo de meditao, mas voc no adormece e nem se torna
aptico. A conscincia luminosa permanece, sem atividade ou movimento. A

partir desse estado de conscincia tranquila e fluida, os pensamentos surgem sem


esforo. Em circunstncias normais, quando a mente est envolvida em fixaes,
chamaramos esses pensamentos de distraes contudo, depois da meditao,
possvel manter um estado ao menos um pouco semelhante a essa qualidade
tranquila de conscincia no egocentrada.
O objetivo da meditao no apenas sentar em silncio. sentar-se em
silncio e, em seguida, levantar-se e mover-se em quietude, permanecendo
silencioso em certo sentido at mesmo quando se est falando. Foi l fora, no
jogo da atividade espontnea, que o ponto culminante da vida de Buda teve lugar
quando ele comeou a ensinar. A culminao no foi na quietude, sentado sob a
rvore bodhi. Foi no servio a todos os seres, emanado de sua experincia do
despertar.
Ao se engajar em tal prtica, voc pode sentir as comportas de sua
criatividade abrirem-se espontaneamente. Em um estado de conscincia serena,
com o ego adormecido, observe o que surge a partir da quietude,
espontaneamente e sem esforo. A quietude no perdida nem mesmo quando a
mente se torna ativa. Da mesma forma, voc poder sentir que no necessrio
abandonar esse silncio nem mesmo quando est falando ou quando o seu corpo
est em movimento. William James descobriu que todos os gnios tm uma
qualidade em comum: todos eles tm uma capacidade excepcional de manter a
ateno voluntria. Ele estava convencido de que a genialidade levava a essa
maior capacidade de concentrar a ateno por longos perodos de tempo e no
que a ateno sustentada os tornasse gnios. Tenho certeza de que h muita
verdade nessa afirmao, mas, se ampliarmos a noo de gnio no sentido de
reconhecer que todo mundo tem um grau de genialidade ou habilidade inata para
algo, estou convencido de que esse tipo de prtica de shamatha pode ajudar a
revelar esse gnio. Uma vez que o ego esteja relativamente fora do caminho, a
fonte de criatividade se abre. Verifique se isso verdade para voc.
Na prtica da quiescncia meditativa, h dois modelos complementares:
desenvolvimento e descoberta. Comum a ambos a ideia de que uma mente
utilizvel imbuda de estabilidade da ateno, permitindo a sustentao do foco
em um objeto escolhido. Quer esteja resolvendo problemas, ouvindo ou
compondo msicas, dando aulas ou criando filhos, voc est presente de forma
sustentada. o oposto de estar agitado, distrado ou fragmentado. A segunda
qualidade comum a ambos os modelos a vivacidade. Estabilidade sem
vivacidade no muito til, a menos que o objetivo seja o sono profundo, no qual
se tem boa estabilidade, mas pouca clareza. As primeiras duas tcnicas que
exploramos conscincia da respirao e observao da mente seguem a
abordagem de desenvolvimento. Ao cultivarmos a ateno plena respirao,
aprendemos a controlar o cavalo selvagem da mente. Lutamos com esse esprito
rebelde com o senso de: Voc tem me dominado, mas agora vou virar o jogo e

dominar voc. Vou aprender a cavalg-lo de um modo tal que voc no poder
me coicear nem me machucar. Sem isso, somos dominados por um esprito
rebelde que move o corpo, controla a boca e fere os outros com sarcasmo,
desonestidade, abuso, rispidez e escrnio.
A prtica de se soltar na estabilidade e vivacidade naturais da conscincia
pode ser realizada alm da meditao formal. Entre as sesses, se voc quer
manter essa qualidade de conscincia e ainda ser capaz de fazer o que precisa no
mundo, pode continuar a repousar a sua conscincia no espao frente, mesmo
em meio a uma conversa. Focar os olhos no espao intermedirio no o impede
de ver o que est l fora. Quando os eventos mentais surgirem, no se apegue a
eles. Deixe-os surgir e passar. Pode ser que voc no consiga fazer essa prtica
enquanto escreve ou executa um trabalho intelectual, mas isso pode ser praticado
em outras situaes, como enquanto anda pela rua ou espera em uma fila de
supermercado, ou em muitas outras situaes. Mantenha a continuidade tanto
quanto possvel. Essa uma abordagem direta para a explorao da natureza
fundamental da nossa existncia, nada menos do que isso.

OS CINCO FATORES DA ESTABILIZAO MEDITATIVA


O Buda falou de cinco fatores da estabilizao meditativa (dhy ana), essa que
no um estado de transe, mas uma conscincia clara, inteligente, focada e
estvel, no estando sujeita a flutuaes compulsivas ou lassido. Esses cinco
fatores so:
1. pensamento aplicado;
2. pensamento sustentado;
3. bem-estar;
4. bem-aventurana;
5. ateno unifocada.
Relacionados a esses cinco fatores da estabilizao meditativa esto os cinco
obstculos para se atingir essa estabilizao, obscurecimentos que velam o estado
fundamental da conscincia. So eles:
1. letargia e sonolncia;
2. ceticismo;
3. malcia;
4. agitao e culpa;
5. desejo sensual ardente.
Acontece que cada um dos cinco fatores de estabilizao meditativa

naturalmente neutraliza o seu obstculo correspondente na ordem apresentada


aqui. O primeiro dos cinco fatores, o pensamento aplicado, implica um
engajamento inicial e voluntrio da mente a um objeto. Essa atividade mental
comparada a bater um sino com um martelo. Entre os cinco obstculos
estabilizao meditativa, esse fator neutraliza a letargia e a sonolncia.
Simplesmente direcionando a mente para um objeto e engajando-se nele com
inteligncia e vigilncia, a ateno despertada, e os obscurecimentos de letargia
e sonolncia so eliminados.
O segundo fator de estabilizao mental, o pensamento sustentado, implica
um engajamento mental voluntrio contnuo com o seu objeto. No envolve
pensamento compulsivo ou associaes conceituais, mas uma ateno dirigida,
discriminativa e focada. comparado s reverberaes que continuam depois
que o sino foi tocado. O pensamento sustentado mostrou-se capaz de neutralizar o
ceticismo a mente que vacila e tem dvidas, e que simplesmente no consegue
se acalmar e se engajar na tarefa proposta. A mente sujeita influncia do
ceticismo ou da incerteza oscilante ir minar qualquer empreendimento, seja
iniciar um negcio, obter um diploma universitrio ou engajar-se na prtica
espiritual. Os tibetanos dizem que meditar com uma mente assim como tentar
passar um fio desfiado pelo buraco de uma agulha.
O terceiro fator da estabilizao meditativa uma sensao de bem-estar
que surge a partir de uma mente profundamente equilibrada, uma mente
estabelecida em equilbrio meditativo. No tem referencial, no est feliz por
causa de alguma coisa ou de algum evento especficos. Ao invs disso, ela
emerge da prpria natureza da mente quando a mente fica livre de desequilbrios
da ateno e emocionais. Essa sensao de bem-estar neutraliza naturalmente a
malcia a inteno de infligir dano , que o mais perturbador dos cinco
obstculos. No apenas ela perturba profundamente a mente, como tambm
pode causar grande destruio no mundo. Observe a sua mente sempre que voc
sucumbe raiva, malcia ou dio. Veja se essas aflies no surgem
invariavelmente quando voc est infeliz ou frustrado. Malcia e bem-estar so
mutuamente excludentes. Um precisa desaparecer para que o outro possa surgir.
O quarto fator de estabilizao a bem-aventurana. Ao progredir no
caminho de shamatha para a realizao da estabilizao meditativa, um
sentimento crescente de felicidade ir saturar o seu corpo e a sua mente. Isso no
surge porque voc est tendo um pensamento feliz ou experimentando um prazer
sensual. Essa bem-aventurana ntida e clara surge simplesmente da natureza de
sua conscincia porque a mente est estabilizada com vivacidade. A bemaventurana um sintoma de que a mente est saudvel e equilibrada.
Inquietao, insatisfao, ansiedade, tdio e frustrao so todos sintomas de
uma mente desequilibrada e aflita.
A bem-aventurana neutraliza naturalmente a agitao e a culpa. Na

terminologia budista, agitao no se refere a todos os estados mentais


agitados, mas especificamente queles que so induzidos pelo anseio, pelo desejo
e pelo apego. Por que desejamos ou ansiamos por alguma coisa? Pela
expectativa de que nos trar felicidade! Porm, se a bem-aventurana j est
presente, no h motivo para agitao. Nessa mesma categoria de obstculos
est listada a culpa. O remorso verdadeiro pode ser saudvel. Pode nos levar a
um maior equilbrio mental e a interaes harmoniosas com os outros. Se voc
foi rspido com outra pessoa, sentir remorso e querer corrigir o seu modo de agir
uma boa coisa. Mas o remorso tambm pode se transformar em vergonha e
culpa obsessivas, e, quando isso acontece, obstrui a prtica espiritual de forma
geral e, em particular, o cultivo da estabilizao meditativa. O seu antdoto
natural a bem-aventurana. No possvel se sentir culpado quando a mente
est saturada de felicidade. Um dos dois precisa partir.
O quinto fator da estabilizao meditativa a ateno unifocada. Aqui, a
mente est relaxada, estvel e viva, livre dos desequilbrios da lassido e
agitao. Essa ateno unifocada neutraliza naturalmente o desejo ardente que
vem de um sentimento de desejo, inadequao, e insatisfao. Quando a ateno
est perfeitamente equilibrada em um nico foco, o desejo pela estimulao
sensorial desaparece. A mente est to bem afinada que no necessita de uma
fonte externa para o seu bem-estar ou satisfao. Torna-se a sua prpria fonte de
alegria e satisfao. Essa uma mente saudvel e um fundamento
indispensvel para se engajar em prticas de insight para explorar a natureza da
realidade como um todo.

Parte 2. Insight por meio da ateno plena

4 Ateno plena ao corpo

O S T R S P RI M E I RO S CA P T U L O S D E ST E livro foram dedicados ao


cultivo da ateno, incluindo a ateno plena e a introspeco. Na medida em
que cultivou a ateno plena pela prtica de shamatha, voc est pronto para
aplicar a ateno plena na prtica de vipashy ana. O primeiro livro sobre
meditao budista de insight que estudei com cuidado foi a clssica obra de
Ny anponika Thera, The Heart of Buddhist Meditation,[13] que d uma explicao
detalhada sobre as quatro aplicaes da ateno plena. Isso se passou em 1970 e,
trs anos depois, tive a sorte de receber instrues profundas sobre essa prtica
por parte do monge Theravada Kitti Subho, que havia treinado durante seis anos
na Tailndia. Na mesma poca, Geshe Rabten tambm me ensinou essa prtica,
que preservada na tradio budista tibetana, mas no amplamente ensinada.

Muitas pessoas confundem vipashy ana com shamatha, mas as duas diferem
qualitativamente e levam a resultados diferentes. A prtica de shamatha
desenvolve as faculdades da ateno plena e introspeco como um meio de
aumentar a estabilidade e a vivacidade da ateno. Isso implica simplesmente
focar a ateno sobre um objeto de escolha e sustentar a ateno, e essa a
essncia da prtica ensinada anteriormente neste livro. Por outro lado, a prtica
de vipashy ana (ou vipassana, como chamada em pli) uma investigao
atenta e inteligente das principais caractersticas da nossa existncia. Por
exemplo, a ateno plena respirao, como explicado no principal discurso
do Buda sobre esse treinamento, comea como uma prtica de shamatha, mas se
desenvolve a partir da para vipashy ana, pois acrescenta uma dimenso de
investigao crtica. A diferena entre as duas no o grau de concentrao ou
de ateno, mas sim o elemento de investigao que no est presente em
shamatha.
Este captulo inicia uma srie de quatro prticas compreendendo os mtodos
fundamentais da meditao budista de insight. As chamadas quatro aplicaes
da ateno plena so a ateno plena ao corpo, aos sentimentos, aos estados e
processos mentais e aos objetos mentais, incluindo todos os tipos de fenmenos.
O objetivo de aplicar a ateno plena a esses quatro domnios da experincia
obter insights sobre a natureza desses elementos da nossa existncia.
Especificamente, investigamos a natureza de cada um desses domnios para
verificar se quaisquer desses objetos da mente so imutveis, se so verdadeiras
fontes de felicidade, e se algum deles verdadeiramente eu ou meu por sua
prpria natureza, independentemente de nossas projees conceituais. Por meio
de tais insights, possvel erradicar as causas das aflies mentais e outras
perturbaes do corao e da mente que resultam em tanto sofrimento.
Ao longo de seus 45 anos de ensinamentos, o Buda enfatizou fortemente o
cultivo das quatro aplicaes da ateno plena como um caminho direto para o
insight contemplativo e a liberao. Diversas vezes, elogiou essa combinao de
prticas, dizendo: Esse o caminho direto, monges, para a purificao dos
seres, para a superao da tristeza e da lamentao, para a superao da dor e do
sofrimento, para se atingir o caminho autntico, para a realizao do nirvana, ou
seja, as quatro aplicaes da ateno plena.[14] A prtica comea com a
minuciosa aplicao da ateno plena que j foi aperfeioada atravs da
prtica de shamatha ao corpo, aos sentimentos, mente e a todos os outros
fenmenos. Comeamos com o corpo que, em muitos aspectos, o mais fcil de
examinar.

PRTICA

Estabelea o corpo em seu estado natural, e traga mente a sua mais


elevada aspirao em termos do que voc gostaria de ser, que qualidade de vida
gostaria de ter, o que gostaria de realizar e tambm o que gostaria de oferecer ao
mundo. Mantendo essas aspiraes de forma ntida em sua mente, engaje-se
nessa prtica como um meio de realizar o que deseja.
Com os olhos fechados ou apenas parcialmente abertos, comece com a
prtica de ateno plena respirao, focando a sua ateno nas sensaes tteis
onde pode sentir a inspirao e a expirao, e conte 21 respiraes. Continue a
respirar normalmente no abdmen, mas agora redirecione a sua ateno para o
topo da cabea. Apenas observe qualquer sensao ttil que surja nessa rea, se
so experincias de firmeza, calor ou frio, formigamento ou movimento. Com o
mnimo de sobreposio conceitual possvel, observe as sensaes tteis da
forma como se apresentam sua conscincia. Elas se modificam quando voc
continua a observ-las?
Agora, imagine o seu campo de conscincia como uma superfcie curva
com cerca de dez centmetros de dimetro cobrindo o topo da cabea. Observe
as sensaes tteis que experimenta ali. Ao continuar, mantenha esse campo de
conscincia, aproximadamente com o mesmo tamanho, cerca de dez
centmetros de dimetro, como um crculo de conscincia continuamente em
movimento. A seguir, mova esse campo de ateno para baixo e para o lado
direito de sua cabea, at a altura do ouvido, incluindo a orelha. Ento,
lentamente, mova-o para a parte de trs da cabea, deslizando at o lado
esquerdo da cabea. Se descobrir reas de tenso, relaxe-as imediatamente.
Agora, mova o campo de conscincia para a testa, deslize at a altura dos olhos e
nariz, para baixo at a boca e o queixo, em seguida pelas bochechas. Expanda
levemente o campo para cobrir todo o rosto e veja se surge uma imagem mental
de seu rosto. Se isso ocorrer, solte essa imagem e observe apenas as sensaes
tteis. Mova o campo de ateno de volta, a partir do rosto, atravs da cabea e
at a parte de trs da cabea. Faa isso lentamente, como se estivesse
escaneando a sua cabea. Mova de trs para frente e a seguir para o rosto,
notando se voc pode discriminar quaisquer sensaes dentro da cabea ou se
consegue captar apenas as que surgem na superfcie.
At aqui, utilizamos um campo mais ou menos bidimensional de conscincia.
Agora, expanda-o para trs dimenses. Inclua simultaneamente as sensaes de
toda a sua cabea. Mantenha esse campo de conscincia, descendo por seu
pescoo at a clavcula, e ajuste as suas dimenses aos contornos do corpo.
Mova-o da clavcula direita por sobre o ombro, observando as sensaes tteis na
superfcie, onde as roupas tocam a sua pele, por exemplo, e tambm as
sensaes dentro do corpo. Mantenha esse campo em movimento, passando do
ombro direito at o cotovelo, depois para baixo, at o pulso. Deixe que o campo
de conscincia salte para a mo esquerda, movendo-se das pontas dos dedos at

o pulso esquerdo, do pulso esquerdo at o cotovelo, mantendo a continuidade da


conscincia da melhor forma que puder. V do cotovelo at o ombro esquerdo,
depois passe pela clavcula at a base do pescoo.
Continue escaneando o corpo, dividindo o tronco em nove sees, como um
diagrama de jogo da velha, primeiramente observando a regio superior
esquerda do peito, o interior do tronco e a regio superior esquerda das costas.
Observe quaisquer sensaes dos movimentos associados respirao. Passe
para a regio central superior. Siga para a regio superior direita. Mova agora
para baixo, para a regio central direita, com foco na altura do diafragma, na
base da caixa torcica. Bem no centro, enfoque o plexo solar, a parte frontal,
interior e as costas. Mova para a regio central esquerda, ento para baixo, para
o quadrante inferior esquerdo na altura do quadril. Passe para a regio central
inferior. Siga para a regio inferior direita. Concentre-se agora na ndega direita,
observando a sensao de solidez da ndega apoiada no assento. Desa para a
superfcie e interior da coxa, para o joelho direito, para o tornozelo e ento para
as pontas dos dedos dos ps. Observe as sensaes que surgem no p. Suba
imediatamente para a ndega esquerda. Mova a conscincia at o joelho
esquerdo, o tornozelo e a ponta dos dedos. preciso estar mentalmente quieto
para experimentar essas sensaes de forma vvida.
Muito brevemente, volte para o topo da cabea. Tomando apenas alguns
segundos, escaneie rapidamente desde o topo da cabea at a ponta dos dedos
dos ps. Agora, volte para o topo da cabea. Pela segunda vez em apenas alguns
segundos, varra todo o caminho ao longo do corpo. Em seguida, pela terceira e
ltima vez, volte ao topo da cabea e ento percorra todo o corpo.
Expanda o volume de sua conscincia para incluir simultaneamente todo o
campo de sensaes tteis, desde o topo de sua cabea, passando pela base das
coxas at as pontas dos dedos dos ps. Observe atentamente. Se notar uma
imagem mental de como voc pensa que o seu corpo se parece e isso pode
comumente surgir , veja se capaz de liber-la e enfocar com ateno pura
esse campo de sensaes tteis.
Abra os olhos lentamente. Sem perturbar o foco, direcione a mesma
qualidade de conscincia, essa ateno pura e quieta, para outro domnio de
experincia: o visual. Voc acabou de examinar o campo da experincia ttil o
domnio visual bem diferente. Nesse campo de experincia, voc percebe
cores, formas e o espao que parece estar entre voc e objetos visuais.
Feche os olhos e redirecione a sua conscincia para outro domnio de
experincia: o dos sons. Oua apenas o que se apresenta, sem acrescentar
quaisquer sobreposies conceituais.
Passe agora para o sentido do olfato, outro domnio de experincia. Voc
pode detectar alguma fragrncia? Agora, siga para a experincia do paladar, ou
do sabor. H algum gosto remanescente em sua boca?

Por fim, observe apenas o sexto domnio, aquele das experincias puramente
mentais, no qual surgem as imagens mentais, a tagarelice interna, emoes,
desejos, impulsos, memrias e fantasias. Observe com ateno pura.
Encerre a sesso.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


Embora a prtica de shamatha leve, ao final, a experincias de luminosidade,
bem-aventurana e quietude interior, ela no resulta em nenhuma purificao ou
liberao irreversvel da mente. maravilhoso equilibrar a ateno para que a
mente se torne a sua prpria fonte de bem-estar, mas, para curar a mente de
suas aflies, devemos aplicar a ateno para obter conhecimento direto de
nossa prpria natureza e do restante do mundo. a que entram as quatro
aplicaes da ateno plena.
As tcnicas para se atingir shamatha, ou, falando de forma mais ampla,
samadhi, estavam bem desenvolvidas antes do tempo de Gautama, o Buda, e
muitos contemplativos assumiram esses estados meditativos como finais,
acreditando que fossem a verdadeira liberao. Gautama reconheceu que eles
no constituem qualquer liberdade duradoura do sofrimento e de suas causas
internas, apenas suprimem os sintomas. Quem j teve uma doena de qualquer
espcie sabe que a supresso dos sintomas no ruim. Mas a cura seria muito
melhor. para isso que nos dirigimos e essa etapa uma das grandes inovaes
que o Buda trouxe para a ndia.
Comeamos com a plena ateno ao corpo, alcanada por meio de um
cuidadoso escaneamento das nossas sensaes tteis. Muitos dos que praticaram
o escaneamento do corpo descobriram que isso beneficia a sade. tambm
muito bom para o aterramento da mente, trazendo a conscincia de volta para o
corpo, chegando aos nossos sentidos. Voltamo-nos para os sentidos, em vez de
sermos apanhados como uma mosca na teia de aranha das nossas elaboraes
conceituais e respostas automticas. Ao lidarmos apenas com o que nos dado
nesse caso, as sensaes fsicas , a vida se torna mais simples, menos
complicada pelas fantasias compulsivas.
Nunca demais enfatizar a importncia desse grupo de quatro prticas no
caminho budista. Aqui, no se requer nem um salto de f em um credo, nem
devoo cega a um guru. Essas prticas compreendem uma maneira rigorosa,
clara, incisiva, atraente e benfica de sondar a natureza da existncia e do que
ser humano neste universo.
A despeito da grande diversidade de nossas origens e personalidades, acho
que muitos de ns compartilhamos algumas motivaes bsicas, como o desejo

de sermos pessoas melhores. Aspiramos a ser mais virtuosos, mais compassivos,


mais abertos e mais tolerantes com os outros, e a ter maior equanimidade. Uma
vida que exclui tais aspiraes certamente no plena. Quando o Buda falou
sobre as quatro aplicaes da ateno plena, dizendo que esse um caminho
direto para a purificao dos seres, ele quis dizer que podemos gradualmente
reduzir a carga de aflies mentais que prejudicam a virtude e a felicidade
genuna. Se pudermos purificar a nossa mente, a nossa fala e o nosso
comportamento para que possamos causar menos danos a ns e aos outros,
ento, seremos capazes de gerar maior benefcio para todos. Alm disso, suspeito
de que todos ns gostaramos de encontrar maior satisfao e felicidade, e um
sentimento mais profundo de realizao e de sentido na vida. O Buda disse que
esse um caminho direto para a superao da dor e da tristeza. Uma vez que as
aflies da mente so dissipadas, a felicidade genuna surge espontaneamente.
No precisamos busc-la fora de ns. Esse um caminho direto para a
realizao autntica do nirvana, para a cessao definitiva do sofrimento e de sua
origem.
Em todos os anos que frequentei a universidade, nunca ouvi falar de um
curso especialmente concebido para ajudar os estudantes a se tornarem seres
humanos mais virtuosos, mais felizes, menos perturbados por sofrimentos e
problemas desnecessrios. Grande parte da educao moderna dirigida
aquisio de conhecimento, mas esse conhecimento tem pouco a ver com a
busca pela virtude e pela verdadeira felicidade. Todavia, esses so elementoschave para se ter uma vida significativa. A maioria de ns termina os estudos e
faz o que necessrio para ganhar a vida. E ento fazemos o que podemos para
sermos felizes. Essa vida nos leva na direo doentia da fuga. Quem precisa da
realidade quando pode se divertir? No entanto, sabemos muito bem que a
felicidade s pode ser encontrada se estivermos presentes em nossa vida diria.
O Buda sugeriu que as qualidades de virtude, felicidade e compreenso da
realidade como ela esto profundamente inter-relacionadas. As quatro
aplicaes da ateno plena contribuem para cada uma dessas qualidades. A
qualidade da ateno que estamos cultivando na prtica mencionada
anteriormente muitas vezes chamada de ateno pura, uma qualidade de
percepo relativamente livre de estruturas conceituais preexistentes, filtros,
modificaes, interpretaes e projees. No absolutamente livre dessas
superposies conceituais. improvvel que, simplesmente apertando um boto,
possamos suspender a atividade conceitual compulsiva. Mas podemos atenu-la,
torn-la menos compulsiva, observando bem de perto, para que possamos ter
uma viso mais clara do que est sendo apresentado aos nossos seis sentidos.
Uma maneira de comear a fazer isso escanear o corpo. Pense nas vrias
situaes em que temos a possibilidade de observar algo bem de perto. No
campo, um ornitlogo observa de perto com o seu binculo, tentando ver

pequenas listras em asas ou tentando escutar um canto de pssaro. Um chef


trabalhando em seu fogo tambm observa de perto. Todos ns j tivemos
vislumbres desses modos de ateno. Alguns de ns, por vocao, podem ter
desenvolvido considervel habilidade para isso. O Buda sumarizou esse ideal:
No que visto, existe apenas o que visto; no que ouvido,
existe apenas o que ouvido; no que sentido, existe apenas o
que sentido; no que mentalmente percebido, existe apenas o
que mentalmente percebido.[15]
Em outras palavras, basta apanhar o que apresentado e no confundi-lo
com as suas projees. No misture com eu gosto, eu no gosto, estou
desapontado, estou eufrico, todas essas interminveis associaes compulsivas.
Atravesse tudo isso. O que visto apenas veja; o que ouvido apenas oua; ao
escanear o corpo, apenas sinta; o que percebido no sexto domnio de
experincia, o domnio mental, apenas observe. H momentos em que o
pensamento, a imaginao, a anlise e a memria so extremamente teis. De
fato, uma parte importante de algumas meditaes budistas. Mas no til
quando o pensamento se torna compulsivo.
O Buda nos ofereceu alternativas, prticas pertinentes vida cotidiana. E elas
no servem apenas para fugirmos rumo ao deserto e sentarmos sozinho em uma
almofada, mas sim para termos uma vida ativa com a famlia, amigos e colegas
para estarmos no mundo. Essas prticas so especialmente valiosas para se
engajar com os outros. A menos que j tenha passado por uma intensa
purificao, provvel que, ao encontrar algum desagradvel, voc fique
chateado ou irritado. A mente parte de um estado de relativa calma, mas ento
algo nos deixa perturbados. Aquilo que perturba o equilbrio interior da mente
chamado em snscrito de klesha, uma aflio mental. Seria bom se pudssemos
simplesmente escolher nunca sermos perturbados por tais aflies, mas no
temos a liberdade de suspender imediatamente a obsesso, o cime e a raiva.
Entretanto, se estamos atentos a uma aflio no instante em que ela surge, no
nos fundimos a ela. Podemos v-la e identific-la, e temos uma escolha, a
possibilidade de responder de um modo no compulsivo. Na ausncia de ateno
plena, ficamos sem sorte e sem escolhas. Essas compulses so os mesmos
hbitos que nos levaram a confuso, angstia e ansiedade sulcos na estrada que
se tornam cada vez mais profundos.
Um sistema filosfico budista especialmente compatvel com as quatro
aplicaes da ateno plena chamado de viso Sautrantika, uma das quatro
escolas filosficas no budismo indo-tibetano. Segundo a tradio tibetana, ela no
a posio definitiva dentro do budismo, mas, para a filosofia budista, ela o que
a mecnica newtoniana para a fsica. Trata-se do primeiro sistema filosfico
estudado em muitas das universidades monsticas do Tibete. Quando me tornei

monge em 1973 e comecei a minha formao no Instituto Budista de Dialtica


em Dharamsala, esse foi o primeiro tema que estudamos. Todas as nossas
instrues e textos eram em tibetano, e, durante a maior parte do tempo que
passei l, eu era o nico estudante ocidental. Todos os demais monges eram
tibetanos. Alm de assistir a palestras, estudar os materiais do curso e memorizar
dezenas de pginas de textos, tambm passvamos cerca de cinco horas por dia
em debate filosfico. Essa era uma atividade animada, efervescente, cheia de
humor, bem como de anlise incisiva, e eu a considerava muito til para
aperfeioar minha inteligncia e compreender esse sistema de pensamento.
Aprender a viso de mundo Sautrantika e aplic-la na meditao e na vida
cotidiana pode ser muito til, apesar de alguns de seus princpios bsicos no
resistirem a uma anlise mais profunda. Assim como na fsica, onde a mecnica
clssica foi superada pela mecnica quntica e pela teoria da relatividade, da
mesma forma a viso Sautrantika foi substituda pelas vises Yogachara e
Madhy amaka, que so mais sutis. Neste momento, no entraremos nessas teorias
mais avanadas. Por enquanto, ficaremos com algumas das ideias mais bsicas
da viso Sautrantika.
Uma das afirmaes centrais dessa viso : algo real, em oposio a ser
imaginrio, se tem o potencial de se apresentar diretamente a qualquer um dos
seus seis modos de percepo. Talvez esse algo seja apresentado aos seus
sentidos com o auxlio de um telescpio. Se puder ser apreendido
perceptivamente, sem sobreposio conceitual, considera-se que seja real. Isso
inclui os contedos da percepo mental, por meio da qual estamos
imediatamente conscientes de pensamentos, emoes e uma grande variedade
de outros fenmenos mentais. Estes no so menos reais do que as coisas que
percebemos diretamente com nossos cinco sentidos fsicos.
As coisas que se apresentam em seus campos de percepo so reais. As
coisas que existem apenas por sobreposies conceituais so imaginrias ou
meramente convencionais. Eu poderia pegar um pedao de papel e dizer isso
meu, mas voc poderia ficar olhando para ele at os seus olhos cansarem e
nunca veria o que tem de meu no papel. O fato de que ele meu s verdade
porque eu projetei isso conceitualmente e estabelecemos esse acordo entre ns.
Quando voc est preocupado com alguma coisa, tente ver se real ou
imaginria. Por exemplo, quando voc se olha no espelho e v a imagem
refletida como sendo o seu rosto, examine-o atentamente e veja o que o torna
seu. Observe se essa qualidade de propriedade realmente percebida ou apenas
conceitualmente sobreposta. Essa uma aplicao da ateno plena
discriminativa.
A segunda proposio da viso Sautrantika de que as coisas reais tm
eficcia causal. Elas podem fazer coisas. Tm influncia. Por sua vez, elas so
influenciadas em sequncias causais. Todas as coisas reais existem em um nexo

de inter-relacionamento causal influenciam e so influenciadas. A cincia tem


uma noo similar da realidade. Se voc acha que descobriu uma partcula
elementar, precisa ter certeza de que ela pode, por exemplo, influenciar outras
entidades medidas em uma cmara de bolhas, tais como outras partculas
elementares. Se ela no exerce nenhuma influncia e no pode ser influenciada
por coisa alguma, no ser considerada real.
A partir dessa perspectiva, a crena em coisas imaginrias, ou nas questes
convencionais, real, pois a crena surge na dependncia de causas e
condies, e por sua vez influencia outras coisas, tais como o nosso
comportamento. Considere, por exemplo, a crena de que esse papel meu. O
fato de esse papel ser meu no tem eficcia causal prpria. No como um
martelo ou como uma emoo, capazes, por seu prprio poder, de influenciar
outras coisas. Mas a minha crena de que ele meu pode influenciar muitas
coisas. Por exemplo, pode fazer com que eu fique chateado se algum lev-lo
sem minha permisso. Ou eu poderia me sentir gratificado se algum elogiasse a
qualidade do papel.
Compare essa viso viso do materialismo cientfico de que apenas os
fenmenos fsicos so reais. O seu crebro real. Os seus hormnios, a qumica
do corpo e as glndulas so reais. Doenas com base neles so reais. Mas os
acontecimentos subjetivos, tais como imagens mentais e sentimentos que
evidentemente no tm qualquer massa ou dimenses espaciais, so de alguma
forma menos reais, porque esto apenas na sua mente. A suposio subjacente
aqui de que os fenmenos objetivos, como massa e energia, so reais, mas
processos mentais subjetivos so reais apenas quando so idnticos a, ou
derivados de, fenmenos fsicos.
Os fsicos esto preocupados com a compreenso da natureza do mundo
objetivo e real, que existe independentemente da mente, enquanto que os
contemplativos budistas esto preocupados em compreender o mundo da
experincia, que existe apenas em relao mente dos seres sencientes,
humanos ou no. Essa uma grande diferena nas orientaes bsicas dessas
duas tradies. Segundo o budismo, eventos mentais influenciam eventos fsicos,
assim como outros fenmenos mentais, e eventos fsicos influenciam outros
eventos fsicos e eventos mentais imateriais. Se observarmos atentamente o
mundo das experincias, isso se torna perfeitamente bvio, ainda que no
possamos identificar qualquer mecanismo pelo qual ocorram essas interaes
entre processos materiais e imateriais. Elas simplesmente ocorrem. E, se no se
pode encontrar nenhum mecanismo para explic-las da mesma forma que no
foi encontrado nenhum mecanismo que explique as interaes entre campos
eletromagnticos e partculas elementares , talvez essa seja apenas uma
limitao das explicaes mecnicas.

AS TRS MARCAS DA EXISTNCIA


Um tema central da viso de mundo budista como um todo e que se
relaciona diretamente com as quatro aplicaes da ateno plena so as trs
marcas da existncia, cuja primeira delas a impermanncia. Enquanto
escaneia o corpo e a seguir investiga a natureza dos sentimentos, de outros
estados mentais e de todos os outros fenmenos, verifique se algo nesses vrios
domnios da experincia estvel e inaltervel no decorrer do tempo, incluindo
voc mesmo. Existe alguma coisa que se apresenta aos campos de percepo
que seja causalmente real, e tambm esttica e imutvel no decorrer do tempo?
De acordo com as investigaes budistas, a resposta no. Todos os
fenmenos condicionados o nosso corpo, a nossa mente, ns mesmos, o meio
ambiente, as outras pessoas esto em um estado de constante mudana. Todas
essas coisas so sujeitas impermanncia grosseira e, mais cedo ou mais
tarde, desaparecero. Tudo que nasce ao final morre. Tudo o que acumulado
ao final se dispersa. Tudo o que elevado ao final desce. Alm disso, tudo o que
produzido por causas existe em um constante estado de fluxo, surgindo e
desaparecendo a cada momento. O cabelo no fica grisalho de repente, no dia do
aniversrio. Momento a momento, cada clula do cabelo est envelhecendo e
perdendo a cor. Todavia, em meio a essa realidade de constante mudana, ns
conceitualmente sobrepomos um falso senso de durabilidade, estabilidade e
permanncia em nosso corpo, em nossa mente, nas outras pessoas e no ambiente
em geral. Distinga entre o que est sendo sobreposto e o que est sendo
apresentado aos campos de percepo. Isso comear a iluminar a natureza real
de sua prpria presena neste mundo e de tudo ao seu redor.
A segunda marca da existncia que tudo o que est sujeito a aflies
mentais incluindo desejo ardente, hostilidade e deluso est estreitamente
ligado insatisfao, dor e ao sofrimento. Sob a influncia de tais aflies,
podemos identificar muitas coisas, eventos e pessoas como sendo as verdadeiras
causas da felicidade porm, se inspecionarmos cuidadosamente, veremos que
eles apenas contribuem para o nosso bem-estar, no sendo a sua fonte. Muitas
vezes, eles tambm contribuem para a nossa misria. Shantideva resume o
pathos da condio humana: Aqueles que desejam escapar do sofrimento
apressam-se diretamente em direo ao sofrimento. Com o prprio desejo de
felicidade, a partir da deluso, destroem a sua prpria felicidade como se fosse
um inimigo.
No precisamos ser persuadidos a desejar a felicidade ou ficar livres do
sofrimento e da dor. natural, faz parte de ns. Se no tivermos desistido desta
busca pela felicidade, faz todo sentido interessar-se de forma penetrante pelas
verdadeiras fontes de felicidade e de dor e sofrimento. muito fcil de confundir

as suas causas com outros fatores que so apenas circunstanciais para a


qualidade de vida que buscamos. Ansiamos pela felicidade e libertao do
sofrimento, mas, muitas vezes, nos fixamos em outras coisas: Se ao menos eu
pudesse ter aquele homem/mulher (aquele trabalho, aquela manso, aquelas
frias, aquela BMW), alcanaria a felicidade, a satisfao e a realizao que
desejo. Mas voc pode obter aquela coisa e descobrir que ela no traz a
felicidade que voc esperava. Em vez disso, voc apenas conseguiu aquilo.
Como triste gastar meses ou anos lutando por algo que, ao final, s traz
decepo isso porque se h uma coisa que voc no pode comprar o tempo.
Antes de investir tudo na tentativa de adquirir algo, investigue quais so as
chances de isso lhe trazer a verdadeira felicidade. E, quando estiver procurando a
causa de alguma infelicidade ou sofrimento, assegure-se de no estar apontando
para algo que foi meramente um catalisador e no a fonte de tudo. Considere um
agricultor que ano aps ano tem uma colheita pobre. Ele pensa: Mais fertilizante
ou menos fertilizante? Mais gua ou menos gua? Contudo, se a qualidade de sua
semente pobre, no importa o quanto de fertilizantes ou de gua ele use. Quais
so as verdadeiras fontes de felicidade e quais so as verdadeiras fontes de
sofrimento? Esse segundo tema indica que muitas das coisas que esperamos
revelarem-se fontes genunas de felicidade, satisfao e bem-estar, por fim, no
se revelam dessa forma. Elas podem vir a ser mais uma fonte de insatisfao ou,
na melhor das hipteses, um objeto desejado que pode ou no contribuir para a
felicidade.
A terceira marca da existncia a ausncia de eu. Dentro do mundo da
nossa experincia conforme observamos o corpo, os sentimentos, os estados
mentais e objetos mentais h alguma coisa que se apresente para ns como um
eu autnomo, unitrio e imutvel um eu real? Existe uma entidade
duradoura, a mesma pessoa que era ontem ou h quatro anos? Existe qualquer
coisa que surja, por sua prpria natureza, como sendo verdadeiramente seu,
pertencente sua identidade pessoal? Ou voc simplesmente sobreps
conceitualmente um senso de eu e meu em vrios eventos em seu mundo?
Voc alguma vez observou um eu real?

PRTICA
Comece estabelecendo uma postura relaxada, ainda que vigilante, e um grau
de quiescncia meditativa, da maneira como fizemos na prtica anterior. Depois
de contar 21 respiraes, deixe a sua conscincia permear todo o campo de
sensaes tteis, por todo o seu corpo. Agora, voc aplicar a ateno plena
discriminativa a cinco elementos especficos do corpo. No campo da experincia

do seu corpo, voc pode identificar cinco elementos que so considerados os


constituintes do mundo fsico. O primeiro deles chamado de elemento terra,
e consiste em tudo que firme e slido. O segundo o elemento gua, que tem
as qualidades de fluidez e umidade. O elemento fogo quente e ardente assim,
o calor e o frio das coisas correlacionam-se com a intensidade do elemento fogo.
O elemento ar tem as qualidades de leveza e mobilidade, ou movimento. O
quinto elemento o espao, que tem a qualidade de no ser obstrudo. Esses
cinco elementos so tudo o que h na tabela peridica dos contemplativos
preocupados em obter insight experiencial na natureza do mundo da experincia,
este em oposio ao mundo fsico puramente objetivo, que existe
independentemente da experincia. Portanto, considere esses cinco elementos
no simplesmente como sensaes subjetivas, mas como elementos
fundamentais do seu corpo, que vivencia as experincias, e do ambiente fsico
circundante.
Com os olhos fechados, aplique ateno pura a todos os fenmenos tteis,
identificando-os como exibies das qualidades de um ou mais dos cinco
elementos. Primeiramente, veja se pode detectar o elemento terra. Para fazer
isso, mais fcil focar os pontos de contato das pernas com o colcho ou com a
cadeira, das mos com os joelhos e do contato com a prpria roupa.
Passe agora para o elemento gua. O local mais bvio a boca, onde voc
pode sentir a umidade da saliva. Como voc experimenta o elemento gua com
ateno pura, em oposio s ideias que voc tem a respeito de fluidez e
umidade?
Enfoque o espectro de quente e frio. Voc capaz de dizer se o interior do
seu corpo mais quente ou mais frio que o exterior, se a parte superior mais
quente do que a inferior ou se a parte da frente mais fria do que as costas?
Dessa forma, aplique a ateno plena ao elemento fogo.
Observe o elemento ar, qualquer fenmeno ttil que manifeste as qualidades
de leveza e movimento. Enquanto examina com cuidado, veja se h algo nesse
campo de experincia ttil que no seja saturado pelo elemento ar. Tudo est em
movimento em algum grau? Por um ou dois minutos, concentre-se em sua mo
direita e ento no seu dedo indicador direito. Lentamente, coloque o dedo em
movimento, levantando e abaixando progressivamente. Mova-o um pouco e
ento pare. Mova-o e pare. Observe a natureza do movimento em oposio
imobilidade relativa.
Voc capaz de detectar o elemento espao por meio da faculdade sensorial
ou somtica ttil, ou voc apenas pode apreend-lo por meio da percepo
mental? Voc pode apenas imagin-lo? Veja se o espao algo que voc pode
perceber diretamente ou se apenas uma superposio conceitual ao campo de
percepo da experincia ttil. Ao concluir essa sesso, veja se h algo que se
apresente percepo ttil que no seja terra, gua, ar, fogo ou espao. Resta

ainda alguma coisa?


Depois de concluir essa prtica, dedique os mritos. Isso significa trazer
mente o que quer que seja benfico e dedicar os seus esforos realizao de
suas aspiraes para si mesmo, para os outros e para este mundo perturbado.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


O propsito desse tipo de investigao , mais uma vez, fornecer-lhe um
senso claro do que de fato surge aos sentidos, em contraste com o que voc est
involuntariamente e talvez inconscientemente projetando sobre esses campos de
experincias perceptivas. Pensar em algo slido nas noes de solidez, firmeza
e peso no radicalmente diferente de experiment-lo com ateno pura? O
mesmo se d com os demais elementos. O que voc encontra quando
experimenta todo o campo de sensaes tteis provavelmente bem diferente da
sua experincia usual de corpo. Esse um tema sempre presente: observe mais
atentamente aquilo que est sendo apresentado em oposio ao que est sendo
sobreposto.
Essa prtica comea com a aplicao cuidadosa da ateno plena a todo o
seu corpo, mas no se encerra a. O Buda ampliou esse mtodo de investigao
com as seguintes palavras:
Repousa-se observando o corpo como o corpo internamente, ou
se repousa observando o corpo como o corpo externamente, ou
se repousa observando o corpo como o corpo internamente e
externamente.[16]
Observar o corpo como o corpo significa examin-lo com discernimento,
no em um estado de conscincia desorientada ou como se desse um branco.
Observ-lo internamente significa inspecionar o seu prprio corpo a partir de
dentro. Ao estender essa prtica para a vida cotidiana, voc pode observar
atentamente o corpo de outras pessoas, notando os seus gestos, expresses faciais,
tons de voz e outros maneirismos fsicos. Estar completamente presente no
contato com outros prepara a base para a empatia, que por sua vez o alicerce
para o cultivo da bondade amorosa e da compaixo.
Eis uma forma de experimentar essa prtica: primeiramente, busque uma
clara percepo do seu prprio corpo, vendo aquilo que est presente e no o que
est sobreposto. Ento e isso pode ser divertido , observe os corpos de outras
pessoas. Sente-se em um banco de uma calada movimentada. Aquiete a
tagarelice interna. Olhe os corpos das pessoas, observando cuidadosamente a
linguagem corporal, expresses e tons de voz. Depois de observar internamente e
em seguida externamente, dedique-se a observar o corpo tanto internamente

quanto externamente. Comece com o seu prprio corpo, observe o corpo de


outra pessoa e, a seguir, novamente o seu corpo. Como se estivesse em um
carrossel, gire seu eixo de perspectiva e imagine que esteja observando a partir
da perspectiva da outra pessoa, interna e externamente. A seguir, retorne sua
prpria perspectiva. Desloque-se usando a imaginao, no apenas a percepo.
Ser capaz de experimentar algo desse tipo faz parte da maravilha da mente
humana. Imagine-se presente no corpo de outra pessoa.
A ateno plena ao corpo pode trazer benefcios ao ser estendida vida
diria, observando-se atentamente as posturas de caminhar, ficar em p, sentar e
deitar, bem como durante atividades como olhar, inclinar, alongar, comer, beber,
excretar, falar, manter silncio, permanecer acordado e adormecer. Em outras
palavras, aplicar a ateno plena, vez aps vez, a todas as atividades das nossas
vidas. Observe quais fatores do origem ao surgimento dessas experincias,
como eles existem, persistem e se dissolvem. Observe com ateno.
Alguns captulos adiante, depois de trabalharmos com as quatro aplicaes da
ateno plena e com as quatro incomensurveis, introduzirei a ioga dos sonhos,
uma prtica de insight realizada inicialmente durante o dia e, a seguir, noite. Se
voc deseja explorar essa prtica, sugiro uma preparao, pois a ioga dos sonhos
pode ser bastante desafiadora. Para estabelecer o terreno, comece a prestar
ateno aos seus sonhos. Apenas tome conscincia deles, sem tentar analis-los.
Adormea com a seguinte resoluo: Nesta noite, prestarei bastante ateno aos
meus sonhos. Ento, ao acordar, lembre-se de anot-los. Ao longo das prximas
semanas e dos prximos meses, observe se h quaisquer sinais onricos
recorrentes: emoes ou situaes que se repetem, ou pessoas que aparecem nos
seus sonhos. Ento, quando chegar ao captulo sobre ioga dos sonhos, voc j
saber quais so os seus sinais onricos. Dessa forma, a sua prtica contemplativa
comear a saturar todas as horas do dia e da noite. Como aconselhou Drom
Tnpa, discpulo de Atisha: Deixe que a sua mente se torne Darma!

5 Ateno plena aos sentimentos

E N T RE O S E STA D O S M E N TA I S, O BU D A identificou os sentimentos


como um domnio especial, que merece cuidadosa inspeo por meio da
aplicao da ateno plena. Uma vez que os sentimentos poderiam ser includos
na prtica de ateno plena mente, por que essa nfase especial? Os
sentimentos so importantes porque prazer, dor e indiferena so essenciais aos
seres sencientes. Os nossos movimentos fsicos, as nossas decises, como casar
ou ter filhos, que tipo de emprego ter, onde viver, que tipo de bens adquirir e
assim por diante todas as escolhas que fazemos na vida so movidas por
sentimentos.

De um ponto de vista cientfico, os sentimentos so necessrios porque nos


alertam sobre perigos e, assim, por exemplo, no nos aproximamos demais do
fogo nem nos expomos demasiadamente ao frio. Quando sentimos fome,
buscamos alimento para no morrermos de inanio. Os sentimentos nos
permitem sobreviver. Eles nos impulsionam, nos direcionam e nos estimulam de
muitas formas. Contudo, uma vez que tenhamos sobrevivido e procriado, como
evolumos biologicamente para faz-lo, quando a nossa barriga est cheia, temos
um emprego e criamos a nossa famlia, ainda resta um anseio no satisfeito. H
um sentimento de que est faltando alguma coisa. Por exemplo, quantas pessoas
no se sentem nem satisfeitas e nem felizes embora sejam bem-sucedidas? As
pessoas ficam deprimidas, passam o tempo vendo TV ou se perdem em busca de
emoo. Quando as coisas esto indo bem, para que servem a inquietao, a
insatisfao e a depresso? Buscar a resposta a essas questes nos leva a
territrios de contemplao bastante profundos.
Quando estamos sentindo alguma insatisfao ou depresso sem nenhuma
causa externa clara problema de sade, casamento se desfazendo ou outra
crise pessoal , isso pode ser um sintoma ou uma mensagem para ns, vindo de
um nvel mais profundo do que a sobrevivncia biolgica. Como devemos
responder? Os antidepressivos essencialmente dizem a esses sentimentos:
Calem-se. Eu quero fingir que vocs no existem. Mas os sentimentos esto
emergindo por uma razo. O objetivo da prtica de ateno plena aos
sentimentos compreender as origens, a natureza e os efeitos dos sentimentos
em nossas vidas e na vida daqueles que nos cercam. Uma das afirmaes mais
comuns do Buda : Todos os seres sencientes esto buscando a felicidade e
desejando se livrar do sofrimento. O que temos em comum com todos os seres
sencientes? Os sentimentos. E no apenas os sentimentos, mas tambm querer
algumas coisas e outras no. Empatia um sentir junto, sentir como a outra
pessoa est: feliz, triste, com medo e assim por diante. As bases do altrusmo, da
compaixo e da bondade amorosa tambm se referem aos sentimentos. Por
outro lado, a base comum da obsesso, inveja, raiva, dio, conflito e rivalidade
tambm so sentimentos. Por eles exercerem tanta influncia sobre as nossas
vidas, prudente conhec-los melhor. um pouco parecido com conhecer quem
o seu mestre, porque frequentemente somos escravos dos nossos sentimentos.
Essa aplicao da ateno plena explicitamente projetada para obtermos um
insight mais profundo sobre a natureza desses fenmenos to importantes para
ns.

PRTICA

Estabelea o corpo em seu estado natural, para que possa permanecer


confortvel por um ghatika, e estabilize a mente contando 21 respiraes. Agora,
foque o campo de sensaes tteis ao longo do corpo, da cabea aos dedos dos
ps e especialmente no tronco. Apenas esteja presente, consciente desse campo
de sensaes que voc experimenta como o seu corpo. Note como isso simples.
D um descanso sua mente conceitual, deixe-a descansar de seus esforos
habituais. Repouse a sua conscincia na percepo pura, na ateno quieta.
At agora, voc observou as sensaes tteis, incluindo aquelas associadas
respirao. Essa a ateno plena ao corpo. Voc tambm observou os outros
objetos dos sentidos fsicos. Passe agora para a ateno plena aos sentimentos,
especificamente aos que experimenta em seu corpo. Se ouvir sons ou tiver
qualquer experincia sensorial, concentre-se no no contedo da experincia,
mas nos sentimentos associados a ela. Veja se voc capaz de observar
exclusivamente trs tipos de sentimentos no corpo: agradvel, desagradvel e
neutro. Fenmenos tteis como firmeza, umidade, calor e movimento so objetos
da percepo ttil, mas, de acordo com o budismo, sentimentos so elementos da
conscincia subjetiva, sendo uma forma de experimentar. Experimentamos
dolorosamente uma sensao de calor ou experimentamos prazerosamente uma
sensao de suavidade. Agora, iremos observar um evento ou uma experincia
seja de prazer, de dor ou neutro e distinguir entre o contedo objetivo da
experincia e a forma subjetiva com a qual a sentimos. So coisas diferentes.
No campo das sensaes tteis, preste ateno ao que sente como sendo bom
ou ruim. Se sentir urgncia em se mover, em se coar ou qualquer outro
incmodo, identifique o sentimento que est despertando esse desejo. Nos
momentos em que no surge nenhum sentimento de prazer ou de dor, voc
consegue identificar um sentimento neutro, de indiferena? No uma ausncia
de sentimento, apenas neutralidade. Se imaginssemos os sentimentos em um
grfico, os positivos direita do eixo vertical seriam os bons, os negativos
esquerda do eixo vertical seriam os ruins e os sentimentos exatamente no meio
seriam os neutros. Da mesma forma como os matemticos indianos estiveram
entre os primeiros a identificar o nmero zero, os budistas contemplativos
reconheceram sentimentos de magnitude zero.
Mantenha a ateno plena ao corpo como linha de base, observando a
respirao, e a partir dessa plataforma examine os sentimentos conforme eles
surgem a cada momento. Os sentimentos se modificam quando so observados
ou permanecem os mesmos? Quando voc observa os sentimentos da forma
mais passiva possvel, em que medida a sua ateno os influencia? Ao sentir que
est comeando a pensar sobre os sentimentos ou se identificando com eles,
como eles so afetados? Quando surge um sentimento de qualquer natureza, ele
permanece inalterado por algum espao de tempo? Ou, quando voc os observa
bem de perto, descobre que esto em um estado de fluxo? Quando voc se

concentra intensamente no sentimento, o que acontece com ele?


Agora, retorne respirao, com ateno plena a todo o corpo. Ao expirar,
solte. Na inspirao, deixe o ar fluir para dentro, relaxando profundamente mas
ainda mantendo uma postura de vigilncia, sem puxar o ar intencionalmente.
Deixe o seu corpo ser respirado, como se a atmosfera ao seu redor e seu corpo
estivessem se abraando, o ambiente respira voc e voc respira o ambiente.
Relaxe profundamente na expirao. Relaxe na inspirao. Solte o ar e continue
soltando at sentir que o curso da respirao est se invertendo e que o ar est
comeando a entrar, como uma onda chegando praia.
Dedique os mritos e encerre a sesso.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


Algumas meditaes so inerentemente difceis ou porque, s vezes, no
temos f ou confiana suficiente. Essa prtica no. Voc no precisa nem
mesmo focar as sensaes tteis sutis na regio das narinas. Voc pode sentir o
seu corpo ele est bem aqui. claro que as distraes podem vir e carregar
voc para longe, mas o seu corpo ainda estar presente e essa uma plataforma
para a qual voc sempre poder retornar. Quando praticar a ateno plena aos
sentimentos, no se conscientize deles apenas de uma maneira geral, mas
investigue-os com inteligncia discriminativa. Todos ns nos importamos com os
sentimentos, no apenas com os nossos, mas tambm com os dos nossos amigos
e pessoas queridas. O nosso escopo de preocupao pode ser bem amplo. O que
nos importa o bem-estar das pessoas, que est relacionado a como as pessoas
se sentem: felizes, tristes, preocupadas, indiferentes ou tranquilas. Se quisermos
ter sucesso na busca pela felicidade e pela liberao do sofrimento, temos que
observar de que maneiras os sentimentos surgem. Em relao aos sentimentos,
aja como um cientista, investigando as causas dos sentimentos que voc deseja e
daqueles que voc no gosta.
Por exemplo, suponha que voc realmente goste de msica, mas, nas
ocasies em que est cansado ou tenso, a msica no lhe traga nenhum prazer ou
satisfao. Em vez disso, ela subjugada pelo seu humor. Podemos chegar a algo
potencialmente profundo aqui: quais so as verdadeiras causas da felicidade,
sentido e satisfao que buscamos, e quais so as causas do sofrimento? Uma vez
que tenhamos examinado os sentimentos facilmente identificveis, podemos
passar para a nossa sensao mais profunda de desassossego ou insatisfao, o
desejo de algo mais ou de algo menos. Quais so as causas dessa insatisfao?
Quando analisamos os sentimentos de uma forma direta e simples,
descobrimos algo que no imediatamente bvio: os sentimentos apresentam

dois aspectos. Se voc est meditando e ouve um som alto, voc experimenta no
apenas o som detectado pela sua conscincia auditiva, mas tambm experimenta
o som de uma forma desagradvel. Voc sente: Esse barulho irritante. Eu no
gosto disso. Na realidade, voc no gosta do sentimento, no do som. Se, por
exemplo, os seus vizinhos esto dando uma festa e fazendo barulho, pode ser que
voc ache isso irritante at que eles o convidem para a festa e voc passe a fazer
barulho junto com eles.
Voc tem sentimentos fsicos e sentimentos mentais, que no so a mesma
coisa. Embora sinta que o seu corpo est bem, voc pode sentir que sua mente
est infeliz, preocupada com algum problema, como um ente querido que esteja
doente ou qualquer outro problema que possa nos perturbar. Por outro lado, o seu
corpo pode estar terrivelmente mal, enquanto a sua mente est cheia de
coragem, alegre e otimista. Isso pode ocorrer em meio a uma doena. Pode
acontecer em esportes de contato em que o corpo ferido, mas, ainda assim, o
atleta se levanta e retorna com toda a vontade. A mente pode estar eufrica
enquanto o corpo est terrivelmente mal. s vezes, o corpo e a mente esto bem
simultaneamente ou mal simultaneamente, mas eles no so a mesma coisa.
Entre esses dois modos de sentimento, corpo e mente, temos trs categorias
formando um espectro: prazerosas, neutras ou indiferentes e dolorosas.
Ao observar os sentimentos no corpo, voc achou que eles se alteraram
apenas porque os estava observando com ateno? Ou eles permaneceram
exatamente como eram quando voc os notou inicialmente? Distinga
cuidadosamente os sentimentos no corpo das respostas mentais a esses
sentimentos, pois fazemos muitas superposies conceituais sobre as nossas
experincias. Essas superposies conceituais no so necessariamente falsas,
mas no so idnticas experincia perceptiva. Nessa meditao, buscamos
diferenciar a experincia perceptiva das projees conceituais.
Vamos revisar como os sentimentos se originam. Primeiramente, ocorre um
contato direto com o estmulo sensorial e isso serve de base para o sentimento
seguinte. Por exemplo, primeiro voc v uma pessoa passando pela porta e ento
a reconhece como um velho amigo ou talvez como uma ameaa isso traz um
sentimento como resposta. Uma vez que esse sentimento surge, ele pode, por sua
vez, dar origem a um desejo ou averso quanto ao objeto, o que no igual ao
sentimento original. Ento, a resposta de desejo ou averso pode levar inteno,
por exemplo. Muitos desejos no resultam em intenes. Quando sentar em
meditao, voc poder notar sensaes sutis e efmeras experimentadas com
um certo grau de sentimento. Isso pode levar atrao, averso ou
indiferena, e esses sentimentos podem ou no dar origem a uma inteno e uma
ao subsequente. Em geral, essa sequncia completa de eventos est unida
porque ns inconscientemente nos identificamos com ela, em vez de observ-la
com cuidado. Por meio da aplicao da ateno plena discriminativa e

cuidadosa, voc pode distinguir esses eventos na sequncia em que surgem.


Como explicou a psicoterapeuta Tara Bennett-Goleman, a aplicao
cuidadosa da ateno plena aos sentimentos nos oferece uma alternativa
represso, supresso e expresso compulsivas de nossas emoes. Citando a
pesquisa do neurocirurgio Benjamin Libet, Bennett-Goleman salienta que, do
momento em que surge uma inteno, a ao pretendida tem incio um quarto de
segundo depois. Tara Bennett-Goleman comenta: Essa janela crucial: o
momento em que temos a capacidade de seguir o impulso ou rejeit-lo. Pode-se
dizer que o arbtrio reside aqui, neste quarto de segundo.[17]
Enquanto praticava, voc percebeu que um sentimento surgia
repentinamente como uma experincia singular ou em um continuum crescente
de experincia? Os sentimentos eram estticos e duradouros ou momentneos e
intermitentes? Como os sentimentos desapareciam de uma vez s ou se
desvaneciam de modo gradual? Um dos eventos mais comuns na meditao a
experincia de calor fsico, que pode ser devido aos capilares se abrirem e o
sangue fluir para as extremidades, conforme se relaxa mais e mais
profundamente durante a meditao. Quando surgir o calor, examine como ele
experimentado. agradvel ou desagradvel? Passe para essa segunda forma de
ateno aos sentimentos.
Durante a meditao, se, por exemplo, o seu joelho comea a doer, voc no
precisa fazer nenhum exerccio especial para prestar ateno nele. O desafio
estar consciente do corpo e da mente e observ-los atentamente, em vez de
apenas identificar-se com eles. Em lugar de se entregar aos pensamentos
habituais de o meu joelho est doendo ou estou machucado, observe os
sentimentos conforme surgem em relao s sensaes fsicas. possvel haver
um sentimento mental de prazer, felicidade, tristeza, desconforto ou irritao
com o qual voc no se identifique, que voc possa observar e pelo qual possa se
interessar?
Se voc se interessou pelos sentimentos que surgiram em seu corpo, ver que
a mente tambm um campo de experincias fascinante. Se em um futuro
prximo voc experimentar algum momento de depresso ou tristeza, ou algum
outro evento mental desagradvel, tome interesse por ele. Preste ateno, de
fato, a esse sentimento desagradvel, no ao estmulo que o fez se sentir mal,
mas apenas ao sentimento resultante. Quando voc observa com ateno, a
mente com a qual experimenta essa sensao ruim se sente mal? Voc capaz
de experimentar essa sensao calmamente, de forma neutra? Voc capaz de
experimentar a depresso de forma no depressiva? Ao fazer isso, poder ver o
desequilbrio emocional desaparecer diante dos seus olhos.
Outro ponto muito importante estar atento ao momento em que os
sentimentos prazerosos, no prazerosos e neutros surgem e reconhecer a
cadeia de sentimentos criada por eles. No budismo, h um princpio universal:

tudo aquilo que um efeito tambm uma causa. Tudo aquilo que uma causa
tambm um efeito. Isso significa que todo evento est interagindo com outros
eventos anteriores e com eventos posteriores. Formam uma cadeia de originao
interdependente. No h becos sem sada na causalidade no h nada que seja
um efeito e no seja uma causa. Sentimentos no so uma exceo. Surgem a
partir de condies prvias. Preste ateno ao que os sentimentos conduzem. Eles
do origem a averso ou desejo? O que acontece ento? No h nada de errado
com o desejo em si, como desejar tomar gua. O desejo leva a uma inteno de
encontrar um pouco de gua, e ento tomamos um gole. No h nenhuma
confuso na mente. Nenhuma aflio mental entrou em jogo. Mas,
frequentemente, os nossos desejos no param por a e terminam por perturbar o
equilbrio mental.
No budismo, falamos sobre aflies mentais primrias, processos mentais
que resultam em sofrimento interior e conflitos nas relaes com os outros. Esses
processos incluem variaes do anseio obsesso, desejo e apego e variaes
da averso dio, agressividade, raiva e hostilidade. Esses processos mentais nos
lanam seguidamente ao desequilbrio. A medicina tradicional tibetana faz a
mesma afirmao. Essas aflies rompem o equilbrio no apenas da mente,
mas tambm do que constitui o corpo, trazendo a doenas. Isso tem sido cada vez
mais reconhecido na medicina moderna. As emoes negativas prejudicam a
nossa sade fsica e mental. O problema no apenas esses sentimentos, mas o
que flui a partir deles.
Anseio e averso so duas das trs aflies mentais primrias. A terceira a
ignorncia e deluso. A ignorncia se manifesta como desateno e letargia, e
comumente leva deluso, que implica uma compreenso errnea da realidade.
A nossa resposta a sentimentos indiferentes leva, em geral, a essas aflies
mentais. No sucumbimos letargia se a mente estimulada de forma prazerosa
ou dolorosa. Camos nesse estado quando no est acontecendo muita coisa. a
que uma espcie de ausncia mental ou ignorncia pode assumir o controle,
fazendo com que nos comportemos como se estivssemos no piloto automtico.
Em tal estado, muito fcil interpretar de maneira equivocada o que est
acontecendo conosco e dentro de ns. aqui que a deluso comea e nos
prepara para cair em todos os outros tipos de aflies mentais.
Fundamentalmente, a deluso suprime o sistema imune psicolgico, nos tornando
vulnerveis a desequilbrios mentais e infelicidade.
Agora, consideremos os estados mentais saudveis (pois os sentimentos no
nos conduzem apenas a estados mentais aflitivos). Todos ns compartilhamos
algo fundamental: estamos nos esforando na busca pela felicidade. Temos
diferentes motivaes e diferentes anseios e aspiraes, mas o sentido de desejar
a satisfao e mais felicidade, mais contentamento, comum a todos ns. A
aspirao de que os outros possam encontrar a felicidade e as causas da

felicidade chamada de bondade amorosa. Ao tomar conhecimento do


sofrimento das pessoas, pode ser que voc sinta empatia de forma espontnea e
anseie que elas se livrem desse sofrimento. Esse anseio se chama compaixo.
H ainda a alegria emptica regozijar-se com a alegria e as causas de
felicidade de outras pessoas e, finalmente, a equanimidade, um estado
mental equilibrado, calmo e claro, livre do apego e da hostilidade quanto aos que
esto prximos ou distantes de ns. Essas quatro qualidades do corao so
conhecidas no budismo como as quatro incomensurveis e so sustentadas pela
sabedoria obtida por meio das quatro aplicaes da ateno plena.

PRTICA
Estabelea o corpo em seu estado natural e conte 21 respiraes. Agora,
traga a sua ateno ao domnio de experincias da mente pensamentos,
imagens, fantasias, memrias e sonhos. Como voc se sente mentalmente? As
sensaes mentais podem ser estimuladas pela experincia sensorial: voc pode
se sentir mentalmente bem quanto s sensaes e aparncia do seu corpo, mas
os sentimentos tambm podem ser catalisados por pensamentos.
V ao laboratrio da sua mente e realize alguns experimentos. Traga mente
uma lembrana muito agradvel de seu passado. Observe a natureza do
sentimento que surge enquanto experimenta essa lembrana. Esse sentimento
tem alguma localizao?
Agora, pense em uma experincia triste. Pode ser pessoal ou algo que viu nos
jornais. Observe o sentimento que surge com essa experincia. Quando o
observa, ele se modifica?
Solte agora a sua mente em livre associao. Permita o surgimento de
qualquer coisa, seja um som do trfego ou sua imaginao sobre eventos futuros.
Aplique cuidadosamente a ateno plena discriminativa aos seus sentimentos,
conforme a sua mente encontra casualmente um objeto ou um evento, uma
experincia aps a outra. Observe com ateno os prprios sentimentos
subjetivos, em vez de fixar-se nos fenmenos objetivos que os catalisam.
Voc deve se lembrar de que, em uma prtica anterior, ao estabelecer a
mente em seu estado natural, simplesmente observava os eventos com o mnimo
possvel de sobreposio de eu e meu, assistindo-os como meros eventos no
espao da mente. Veja agora se voc capaz de observar os sentimentos da
mesma maneira, sem a identificao de meu sentimento. Voc capaz de
ficar to tranquilo e em repouso interior to profundo a ponto de recolher os
tentculos da fixao e apenas observar os sentimentos surgindo e
desaparecendo?

Nos ltimos minutos, retorne respirao. Fique totalmente presente em seu


corpo, no campo das sensaes tteis. A cada inspirao, leve sua ateno s
regies tensas, compactadas ou densas. A cada expirao, solte qualquer tenso
no corpo ou na mente que ainda no tenha se desfeito.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


Essa uma prtica simples que voc pode aplicar em meio s suas atividades
dirias. Quando no houver nada que voc precise fazer com a sua mente,
durante um intervalo no trabalho, quando estiver apenas caminhando ou parado
em uma fila, traga a sua conscincia para o corpo, observando suavemente a sua
respirao. Em vez de cair no hbito da tagarelice interna, em que um
pensamento errante leva a outro, repouse tranquilamente com ateno plena. A
chave para o sucesso na prtica meditativa a continuidade. Permita que o fio da
ateno plena perpasse todo o seu dia. No ser a nica coisa que voc far, mas
pode ser algo que sempre retorna, como um amigo, um ponto de descanso, de
orientao, presena e sanidade. Pode ser feita em qualquer posio e em
qualquer lugar. Voc tambm pode tentar ao adormecer. Algumas meditaes
estimulam a mente e voc no consegue dormir. Essa traz tanta calma que voc
poder adormecer com ateno plena. Voc ver que essa prtica ser muito til
quando chegarmos ioga dos sonhos, aos sonhos lcidos.
Tendo prestado ateno aos sentimentos em ns mesmos, podemos agora
focar os sentimentos dos outros, da mesma forma que fizemos em relao ao
corpo de outras pessoas no captulo anterior. O Buda retorna a esse esquema em
trs fases da prtica: Dessa forma, repousa-se contemplando sentimentos como
sentimentos internamente ou repousa-se contemplando sentimentos como
sentimentos externamente, repousa-se contemplando sentimentos como
sentimentos de ambas as formas, interna e externamente.[18] Os livros do
psiclogo Paul Ekman sobre observar e compreender as expresses faciais dos
outros podem ser bastante teis a esse respeito. uma questo de observao
discriminativa e imaginao. Podemos ser mais sensveis aos sentimentos dos
outros se ns mesmos estivermos nos sentindo calmos e centrados. Se quisermos
observar atentamente os nossos sentimentos, precisaremos parar de nos fixar a
pensamentos compulsivos para que possamos observar mais claramente o que
quer que surja em nossas mentes. Todos ns sabemos que, quando estamos muito
ansiosos para dizer algo a algum, simplesmente interrompemos o outro, sem
realmente ouvi-lo nesse momento. Essa uma das formas de se engajar com
outras pessoas. Outra forma estar presente e deixar que a sua mente
permanea calma e em silncio, para que voc possa ficar atento ao que o outro

est dizendo, bem como qualidade da sua voz, sua linguagem corporal e ao
ambiente. Voc poder captar isso apenas se sua mente estiver razoavelmente
quieta. Dessa forma, poder observar os sentimentos dentro de voc e no outro.
Estamos fazendo algo alm de supor como os outros podem estar se sentindo?
Podemos conhecer os sentimentos dos outros apenas por meio de inferncia
lgica, como inferir que onde h fumaa h fogo? Ou h algo mais instantneo,
mais intuitivo acontecendo algo no to cerebral como deduzir por inferncia?
Observe os sentimentos dentro de voc, observe os sentimentos no outro e ento
observe os sentimentos em ambos. Troque de perspectiva de vez em quando,
para que a sua mente se torne malevel e possa atentar aos sentimentos a partir
de vrias perspectivas. Em poucas palavras, essa a ateno plena aos
sentimentos.

6 Ateno plena mente

N O S P RI M E I RO S T R S CA P T U L O S, E X A M I namos trs tcnicas


diferentes para acalmar a mente e trazer maior estabilidade e vivacidade
conscincia. Agora, comearemos a aplicar a ateno plena para penetrar a
natureza da nossa existncia em relao ao mundo nossa volta. Os mtodos
introdutrios de shamatha, ou quiescncia meditativa, so um blsamo para a
nossa mente, sendo especialmente teis para as pessoas do mundo moderno. Isso
se deve ao nosso estilo de vida. Vivi com tibetanos durante muitos anos, incluindo
ex-nmades e fazendeiros cujos estilos de vida eram relativamente calmos e
sem confuso. Muitos deles chegavam prtica do Darma com muito mais
equilbrio e estabilidade do que ns. Ns, ocidentais, chegamos com um ritmo de
vida acelerado, uma srie de preocupaes e atividades, e muitas coisas para
lembrar.

Quando praticamos shamatha, pode acontecer de nos lembrarmos de todas


as coisas que temos para fazer, de toda a nossa agenda do dia. A mente se abre e
essas coisas pipocam. Para um estilo de vida repleto de atividades, a quiescncia
como desfazer os ns: ela acalma a mente e nos leva de volta simplicidade.
No entanto, no uma panaceia. Isoladamente, a quiescncia no produzir uma
transformao irreversvel, uma imunidade a nos envolvermos com os
obstculos de costume. Se fosse esse o caso, poderamos apenas fazer shamatha
o tempo todo. Todavia, como o prprio Buda descobriu h 25 sculos, as tcnicas
que tm o propsito de acalmar, centrar e aquietar a mente iro inibir mas no
eliminar as aflies mentais, o tumulto e a turbulncia da mente. Esses
problemas ficaro apenas escondidos por algum tempo, prontos para brotar
assim que retornarmos vida ativa e ao bombardeio de estmulos que recebemos
em nossa sociedade hiperativa. Se estamos interessados em transformaes reais
e no apenas em uma manuteno, precisamos de algo mais do que shamatha.
Para a transformao, o Buda ensinou as quatro aplicaes da ateno plena.
Entre elas, talvez a mais fascinante e profunda seja a ateno plena prpria
mente. No budismo Theravada, diz-se que h uma dimenso de conscincia
chamada de base do vir a ser (bhavanga), que se manifesta no sono profundo,
no coma e no ltimo instante de conscincia anterior morte. Essa a dimenso
de conscincia qual o Buda se referiu quando declarou: Monges, esta mente
excepcionalmente brilhante, mas maculada por impurezas adventcias.
Monges, esta mente excepcionalmente brilhante, mas livre de impurezas
adventcias.[19] Todas as atividades mentais surgem desse domnio vazio e
luminoso de conscincia, e muito fcil confundi-lo com a prpria iluminao.
Os contemplativos da tradio Dzogchen do budismo tibetano acessam esse
mesmo estado fundamental de conscincia individual e o chamam de
conscincia substrato (alay avijana). Embora as interpretaes desse estado
de vazio no Theravada e no Dzogchen variem em alguns aspectos, estou
convencido de que esto se referindo mesma experincia, que resulta do
cultivo de shamatha. Ddjom Lingpa descreveu da seguinte forma:
Quando voc adormece, todas as aparncias objetivas da
realidade do estado de viglia, incluindo o mundo inanimado, os
seres que habitam o mundo e os objetos que surgem aos cinco
sentidos, dissolvem-se na vacuidade do substrato, que da
natureza do espao, e emergem desse domnio.[20]
De acordo com o budismo, os fenmenos mentais so condicionados pelo
corpo em sua interao com o ambiente, mas esses processos fsicos no so
suficientes para produzir nenhum estado de conscincia. Todas as atividades
mentais surgem da conscincia substrato que precede as interaes mentecrebro, e, na morte, todas essas atividades recolhem-se de volta ao substrato.

Podemos demarcar dois reinos de experincia sob a designao de chitta,


palavra em snscrito em geral traduzida como mente. Dentro do reino de
chitta est a mente operante, engajada em emoes, pensamentos, memrias,
imaginao, imagens mentais e sonhos todos os eventos e atividades da nossa
mente. Isso como a energia cintica da mente. Ainda dentro do reino de chitta
est a conscincia substrato, o estado fundamental relativo e luminoso da mente,
do qual emergem todas as atividades mentais.
Isso no metafsico, no requer nenhuma f em abstraes da cosmologia
budista. Em vez disso, baseia-se nas experincias meditativas de geraes de
contemplativos budistas. Na prtica da ateno plena mente, voc examinar
os contedos da mente e o espao do qual esses contedos emergem, o substrato.
Quando est praticando shamatha, ao contrrio de vipashy ana, voc apenas
coloca a sua ateno sobre a respirao ou estabelece a mente em seu estado
natural. Mas, com vipashy ana, voc investiga ativamente a natureza do objeto de
conscincia, examinando as causas que o produziram e as condies nas quais
desaparece.
Uma hiptese budista fundamental a de que sofremos desnecessariamente
como resultado da ignorncia e da deluso, que podem ser eliminadas do nosso
fluxo mental. Se percebemos que estamos sofrendo, em especial mentalmente,
h razes para isso, o que o Buda chamou de segunda nobre verdade: o
sofrimento tem uma causa. A causa pode ser identificada experiencialmente. E a
hiptese budista extraordinria de que ela pode ser extirpada. A premissa
subjacente realmente surpreendente e bastante estranha nossa civilizao
contempornea, enraizada nas tradies judaico-crists e greco-romanas. As
aflies da mente, as nossas tendncias ao dio, beligerncia, ganncia, ao
egosmo, inveja, vaidade, arrogncia e assim por diante, no so inatas, no
so intrnsecas ao nosso prprio ser. Apesar de centenas de milhares ou at
mesmo milhes de anos de evoluo, no temos que sofrer essas aflies.
Aqueles que acompanham os desenvolvimentos da neurocincia sabem que,
recentemente, foi descoberto que o crebro muito mais malevel do que se
presumia. Em considervel medida e depende de cada um de ns descobrir
exatamente em que medida , a nossa mente e crebro tm uma qualidade de
plasticidade.
Como voc pode utilizar essa plasticidade psiconeural? Nesse ponto, a
tradio budista de 25 sculos e a tradio neurocientfica de cem anos esto de
acordo. Se voc deseja produzir alguma transformao, necessrio um esforo
contnuo e sustentado. necessrio acostumar-se com uma nova forma de se
engajar na realidade. O esforo contnuo e sustentado pode realmente
reconfigurar o seu crebro de forma considervel. Psicologicamente, voc pode
desenvolver novos hbitos e novas formas de ver a realidade que, com o
decorrer do tempo, deixam de demandar esforo. Isso realmente promissor. A

premissa budista, que vai alm do que os cientistas cognitivos apresentaram at o


momento, diz que no somos fundamental ou intrinsecamente propensos
deluso ou a qualquer outra aflio mental, apesar das influncias da evoluo
biolgica. Ns temos o potencial para sermos livres.
Vamos descobrir se isso verdade. Teremos duas sesses de meditao
conduzidas, cada uma com um ghatika de durao. Na primeira sesso
enfocaremos eventos mentais e, na segunda, exploraremos a conscincia
substrato.

PRTICA
Deixe o seu corpo repousar em uma postura adequada, imbudo das
qualidades de relaxamento, quietude e vigilncia, e permita que a sua mente
tambm repouse com esses mesmos trs atributos. Conte 24 respiraes como
um exerccio preliminar de shamatha. Repouse em modo no conceitual e no
discursivo no decorrer de todas as inspiraes e expiraes.
Quando a mente se tornar mais funcional, com algum grau de estabilidade e
vivacidade, passe ento prtica de quiescncia, ou calma simplesmente, em
busca de insight, especificamente sobre a natureza desse extraordinrio
fenmeno que chamamos de mente, ou chitta. Observe em particular qualquer
evento que surja no domnio da mente, em vez dos cinco sentidos fsicos. Pode
parecer um pouco estranho pensar em observar a mente. Mas, da mesma forma
que voc direciona a ateno aos cinco campos de experincias sensoriais, voc
pode tambm direcion-la a esse reino experiencial no qual ocorrem
pensamentos, sentimentos, memrias, fantasias e desejos todo um conjunto de
eventos mentais.
Primeiramente, dirija a sua ateno para o domnio de experincias mentais.
Sente-se calma e conscientemente e gere pensamentos como: O que a
mente? Gere o pensamento, mas, em vez de se identificar com ele ou tentar
respond-lo, observe o evento em si, o fenmeno do pensamento O que a
mente?. Gere outro pensamento conscientemente. Observe esse evento surgindo
no campo de experincias mentais. Assista-o surgindo, exibindo-se e
desaparecendo. Mantenha a sua ateno exatamente no local onde ela estava
antes de o pensamento desaparecer. Coloque novamente a sua ateno no
domnio da mente. Qual o prximo evento que ocorre nesse domnio de
experincia? Se voc se identifica com os eventos mentais que surgem, difcil
observ-los. Voc se funde com eles e, assim, passam a controlar voc. Veja se
possvel observar esses eventos sem interveno e sem julgamento. Sem
fixaes e sem identificao, examine o que quer que surja e observe-o

desaparecendo. Esse um primeiro passo no caminho da liberdade.


At aqui, esse exerccio foi semelhante prtica de shamatha de estabelecer
a mente em seu estado natural. Agora, passaremos meditao de insight, que
envolve uma investigao sobre a natureza da mente. Por alguns instantes,
investigue o campo da mente. Examine qualquer impulso de desejo, quaisquer
imagens, pensamentos, memrias e os graus de calma, agitao, clareza ou
embotamento presentes na mente. A mente est perturbada ou serena? Se a
mente fica silenciosa por alguns instantes, o que interrompe o silncio?
Agora, vamos abordar uma questo profunda de maneira experiencial no
apenas de forma especulativa ou analtica. Quando voc ouve a sua prpria voz,
pode ter a sensao de a minha voz ou o meu som. Se ouve a voz de outra
pessoa, voc pode ter a sensao de que h um som ou de que estou escutando
uma voz, em que o senso de meu no est presente. Da mesma forma,
quando olha no espelho e v a imagem do seu rosto, voc pode pensar o meu
rosto. Se v o reflexo do rosto de outra pessoa, parece ser apenas uma imagem.
Voc pode tocar alguma coisa e sentir apenas, como se fosse a textura de um
livro ou de um tecido. Se tem uma sensao ttil dentro de seu corpo, voc pode
senti-la como a minha sensao, a minha sensao de calor, o meu
formigamento.
Essas experincias pertencem aos trs campos de percepo: visual, auditiva
e ttil. Quando passamos para os fenmenos mentais, aplicamos um outro modo
de percepo (no de imaginao e nem de memria) que os budistas chamam
de percepo mental. Tendo esse modo de percepo como base, voc est
pronto para propor questes sua mente. Para comear, observe se todos os
eventos que emergem no domnio da mente so experimentados como sendo
seus. Em relao a alguns de seus pensamentos, emoes e outros eventos,
voc apenas uma testemunha? Voc tem a sensao de que alguns eventos so
seus e outros so eventos que meramente esto acontecendo nesse domnio
privado de experincia? Observe atentamente.
Se voc experimenta alguns processos mentais como sendo seus, o que faz
com que eles sejam seus? Eles so objetivamente seus? H alguma coisa na
prpria natureza dos eventos que os tornam de sua propriedade e os colocam sob
seu controle? Ou mais uma questo de como voc se engaja neles? O que
acontece quando voc libera a fixao? Quando voc solta os tentculos da
identificao e simplesmente observa esses eventos como um bando de pssaros
voando no cu de sua mente, algum desses fenmenos intrinsecamente ou
objetivamente seu? Quais aspectos dessas atividades mentais esto de fato sob o
seu controle? Como voc sabe disso?
Veja se possvel abandonar voluntariamente o controle, o senso de posse.
Imagine que a mente seja como a tela de uma televiso e que voc esteja
abandonando o controle remoto. Desista voluntariamente. Agora, observe o mais

precisamente possvel como os eventos mentais, pensamentos, imagens mentais


e memrias passam a existir. Como eles emergem no domnio da experincia?
Eles vm todos de uma vez, da esquerda ou da direita, de cima ou de baixo? Eles
vm de alguma direo? Se achar que no h nada ali, observe mais
atentamente. Talvez possa ver algo mais sutil que havia escapado do radar de sua
ateno. Observe mais de perto, estimulando a vivacidade da sua ateno.
Quando uma atividade mental emerge no campo da experincia mental,
como ela persiste? Quanto tempo dura, cinco ou dez segundos? esttica ou
agitada? Qual a sua natureza? E, finalmente, como ela desaparece, de uma vez
ou gradualmente? Observe atentamente.
Agora, dedique os mritos e encerre a sesso.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


Essa forma de investigar os fenmenos mentais oferece insights sobre mais
do que meras imagens e sensaes. Como uma analogia, se dirigimos esse tipo
de inteligncia questionadora e discriminativa, digamos, ao campo de
experincia visual, aprendemos mais do que simplesmente sobre a natureza das
cores e formas, mais do que algo a respeito da natureza da nossa prpria
percepo visual. Aprendemos sobre coisas do mundo que nos circunda e que de
alguma forma se relacionam ou se conectam com as nossas impresses do
mundo. Galileu fitou Jpiter por meio do telescpio e descobriu as suas luas. Um
ctico poderia dizer que tudo que ele realmente descobriu foram manchas
brancas em seu campo visual. Mas ele fez importantes descobertas baseado
naquelas manchas brancas. Se ouvimos com ateno, podemos fazer o mesmo
com o campo auditivo. Bilogos da vida selvagem tm que aprender a ouvir com
inteligncia discriminativa. S assim conseguiro entender a natureza e o
significado do que ouvem nos ambientes que estudam. O mesmo se d com os
sentidos do paladar e do tato, que so altamente desenvolvidos por conhecedores
de vinhos e massoterapeutas. No estamos vivendo em um mundo fechado em si
mesmo, em nosso aqurio particular, com acesso apenas s nossas impresses
individuais e subjetivas. Estamos aprendendo sobre o mundo intersubjetivo por
meio dessas impresses. Da mesma forma que fazemos descobertas sobre a
natureza da realidade fsica por meio dos cinco sentidos fsicos, podemos
tambm aprender sobre a realidade mental por meios das aparncias que
surgem no campo da experincia mental. Em outras palavras, no h razo para
crer que os eventos no domnio da experincia mental sejam exclusivamente
pessoais e isolados do resto do mundo, enquanto as experincias fsicas esto
conectadas com o mundo a nossa volta. A mente no est aprisionada dentro de

um crnio, impenetrvel por influncias externas.


Quando passamos a explorar os extraordinrios fenmenos da mente, no h
tecnologia que nos permita acesso direto. Se quisermos refinar e ampliar a nossa
explorao sobre a natureza dos fenmenos mentais, a nica ferramenta
disponvel para ns a percepo mental. Diferentemente dos sentidos fsicos, a
percepo mental pode ser extraordinariamente melhorada com treinamento. O
Dalai Lama usa culos desde criana. No existe meditao de aperfeioamento
ocular que possa resolver o seu problema de viso. E h outros grandes lamas
que precisam de aparelhos auditivos. Eles no dizem: Esquea o aparelho
auditivo. Vou apenas recitar o mantra da audio. Eu no conheo nenhuma
meditao que torne os olhos ou os ouvidos melhores. Eles no so facilmente
modificveis por treinamentos. A percepo mental, o nico modo de
observao que no pode ser melhorado por meio da tecnologia, um tipo de
percepo que pode ser enormemente aperfeioado por meio de treinamento.
Quando investigamos o maravilhoso reino da mente, podemos perceber de
imediato que alguns eventos surgem exclusivamente nesse campo de
experincia. Podemos ver diretamente, no por anlise ou memria, que um
dado evento est acontecendo aqui e agora na mente. No reino das atividades e
processos mentais, voc j notou algumas experincias que parecem acontecer
espontaneamente, sem serem convidadas, e que, quando chegam, no parecem
ser suas? Ou voc sente que dono de tudo o que entra no seu espao? Se for
assim, eu hesitaria muito em entrar na sua casa ou em voar sobre o seu pas.
Ns temos um forte hbito de nos apossarmos de qualquer coisa que entra
em nosso espao mental. Quantas emoes voc teve, mas que sentiu no serem
suas? O que faz com que uma emoo seja sua? Elas so realmente ntimas e
pessoais. Em outras ocasies, voc tambm pode experimentar pensamentos
como se fossem um bando de pssaros voando pela sua mente, como se estivesse
ouvindo secretamente uma conversa da qual no est participando. Voc pode ter
percebido uma imagem que simplesmente surgiu, talvez uma memria, sem
qualquer impresso de que seja sua. Voc apenas a experimentou. No entanto, se
aparecer um desejo do tipo eu realmente preciso mexer a minha perna, o
mais provvel que voc se fixe a isso como meu. Quando comea a se sentir
desapontado ou perturbado, ou quando comea a se sentir feliz ou animado, voc
provavelmente tem a sensao de possuir esse sentimento. H alguma coisa na
prpria natureza dessas atividades que diga voc precisa tomar posse de mim,
sou sua, como uma criancinha dizendo eu sou seu filho, me leve para casa?
Alguns desses eventos acenam a partir de sua prpria natureza, demandando que
se aproprie deles, enquanto outros so meramente visitantes casuais? Seria
possvel que os eventos mentais, por sua prpria natureza anterior s projees
conceituais, fossem apenas fenmenos, sendo que habitualmente nos fixemos e
nos identifiquemos com alguns deles, enquanto com outros no?

Para o incio dessa prtica, sugeri que voc gerasse um pensamento de


forma deliberada: O que a mente? Por ter tido a inteno de fazer isso, pode
ser que voc tenha tido a forte sensao de esse pensamento era meu, porque
eu o produzi, um senso de identificao, fixao e propriedade. A maioria dos
pensamentos no surge voluntariamente, caso contrrio, atingiramos shamatha
na primeira tentativa. Poderamos simplesmente decidir: Eu agora vou
permanecer perfeitamente em silncio, focado, com a mente estvel por 24
minutos, e assim seria. Se a sua mente realmente sua, se o domnio das
atividades mentais pertence a voc, como o seu computador ou a sua mo, ela
deve fazer o que voc quer que ela faa. O que o faz pensar que a sua mente lhe
pertence se no consegue control-la? Talvez ela seja apenas emprestada. Ou
talvez no tenha nenhum dono. Essa uma das grandes questes que o Buda
levantou: o significado de eu e meu.
Quando estamos observando os eventos mentais, como eles surgem? Eles
ocorrem apenas porque queremos que surjam emoes, pensamentos, imagens
mentais e desejos, como se fssemos o capito ordenando faa assim? Se
fosse esse o caso, estaramos de fato no comando da nossa nave espacial mental.
Mas sabemos que no funciona desse jeito. Muito do que acontece na formao
dos fenmenos mentais ocorre por conta prpria. Do ponto de vista budista, isso
no acontece a partir do caos, absolutamente sem qualquer causalidade, e nem
sob o domnio de um senhor da mente, isto , de um eu ou de um ego. No
possvel eu pedir para as emoes e memrias saltarem, e elas me perguntarem
at onde?. Em grande medida, elas parecem agir por conta prpria,
influenciadas por coisas sobre as quais eu tenho pouco ou nenhum controle. Mas
essa no a histria completa. Quando voc decide pensar o que a mente?,
surge o pensamento. Cinco segundos depois, pode acontecer outra coisa que,
novamente, esteja fora de seu controle. Portanto, uma combinao estranha. A
mente no est completamente fora de controle, caso contrrio no
conseguiramos completar trabalho algum, no teramos um emprego e nem
funcionaramos no mundo. Mas ela tampouco est totalmente sob controle. Os
eventos que acontecem na mente no esto uniformemente sob controle e nem
uniformemente fora de controle. Ento, onde esto as demarcaes? O que faz
com que algo seja seu?
Ao observar a mente e investigar a gama de experincias de eventos
mentais, voc descobrir que no so nada mais que simples fenmenos surgindo
em um encadeamento de causas: causas neurolgicas, eventos mentais prvios e
estmulos ambientais. O crebro est em um estado de fluxo, o nosso
engajamento com o ambiente est em fluxo, tudo em estado de surgimentos e
desaparecimentos momentneos, conforme causas e eventos aparecem e
desaparecem, estimulando outros eventos mentais que nascem, florescem e
desvanecem, retornando ao espao da mente. Essa a viso budista: nada disso

est intrinsecamente sob o controle de um ego autnomo, um eu, um mestre, um


homnculo ou um senhor da mente. Quando se inspeciona com cuidado,
mesmo emoes, pensamentos e desejos que voc realmente sente como se
fossem seus, e sobre os quais voc sente ter algum controle, acabam se
mostrando como no o sendo. Quando se verifica atentamente, v-se que a
aparncia de haver uma posse intrnseca enganosa. Essa sensao de que
emoes e pensamentos so seus, e at mesmo a sensao de eu realmente
estou no controle deste corpo, falsa.
A possibilidade de algum controlar sua prpria mente quando de fato no
existe um eu autnomo um paradoxo intrigante no budismo e um de seus
temas centrais. H um provrbio budista que diz: Para aquele que dominou a
sua mente, existe felicidade; para aquele que no, no existe a felicidade. E o
Dalai Lama frequentemente comenta: Voc o seu prprio mestre. Seja o
mestre de sua prpria mente. Voc tem uma mente que malevel, e pode usla para o seu prprio benefcio e de outros. Mas uma mente que est fora de
controle, obsessiva, distorcida, embotada ou desequilibrada d origem ao
sofrimento.
Nessa aplicao cuidadosa da ateno plena s atividades mentais, estamos
trazendo inteligncia nossa observao. Lembre-se de que, quando praticamos
quiescncia meditativa, apenas observamos calmamente tudo o que surgia e
desaparecia sem interveno, julgamento ou reao, sem identificao. Tudo
era doce e simples. Mas, aqui, temos que dar um passo adiante e investigar a
natureza da nossa existncia, porque infelizmente a ignorncia que repousa na
raiz do sofrimento e das aflies mentais no apenas uma ignorncia por
desconhecimento ou por no se ter cincia. Se fosse esse o caso, o antdoto seria
o conhecimento e, tendo-se conhecimento, tudo estaria resolvido.
A ignorncia que influencia a forma como nos comportamos e nos
engajamos com o mundo ativa. Ns ativamente damos um sentido falso e
distorcemos a nossa experincia do mundo tanto interna quanto externamente.
Isso claramente verdadeiro quanto ao nosso engajamento com outras pessoas.
Muitas vezes, percebemos que as nossas avaliaes no correspondem
realidade e agimos com base no que acreditamos ser verdadeiro, o que leva a
conflitos e sofrimentos desnecessrios. Contudo, o antdoto no apenas a
simples ateno. O antdoto a ateno plena discriminativa e inteligente.
reconhecer o ponto em que estamos nos desviando da realidade, sobrepondo algo
falso. Um tema comum ao longo das quatro aplicaes da ateno plena
observar as projees conceituais que esto sobre o que de fato est sendo
apresentado a ns pela percepo. Ns sobrepomos muitas premissas, desejos e
expectativas no apenas sobre outras pessoas sobre o que elas pensam ou
sentem, ou sobre o que esto imaginando ou planejando , mas tambm sendo
muito vulnerveis a falsas sobreposies acerca de ns mesmos.

Por exemplo, que tipo de pessoa voc pensa que ? Uma pessoa gentil? Rude?
Paciente/impaciente? Esperta/estpida? Calma/agitada? Hiperativa/relaxada? Que
trabalha duro/letrgica? Amigvel/indiferente? Onde voc se encaixa? Se
escrevesse um breve sumrio sobre o tipo de pessoa que voc , essa seria uma
representao daquilo em que voc est prestando ateno, no necessariamente
daquilo que real. Mas ainda mais que isso. A ignorncia que repousa na raiz
do sofrimento vai alm do no prestar ateno. A ignorncia tambm sobrepor
as nossas construes conceituais e, ento, confundi-las com a realidade. Ao
final, agimos sobre essa base e a que as coisas comeam a dar realmente
errado.
Portanto, com discriminao inteligente, ao observarmos os fenmenos
mentais surgindo no decorrer do dia e no apenas em uma sesso de 24 minutos,
podemos formular importantes questes. Em meio ampla gama de eventos
mentais que emergem a cada momento, podemos comear a reconhecer
padres. Primeiro reconhea os momentos em que a mente est sob controle,
equilibrada. Veja por si mesmo como esse estado. Nesses momentos, podemos
dizer que a mente no est aflita. Conforme observa os eventos surgindo na
mente, note as ocasies em que esse equilbrio rompido e quando voc perde o
eixo. Em um momento, voc tem acesso inteligncia, imaginao,
criatividade e memria com clareza, mas, de repente, o equilbrio se perde e
h uma ruptura. Em seu livro Emotions Revealed, Paul Ekman chama esses
episdios de desequilbrio interno de perodo refratrio, durante o qual o nosso
raciocnio no capaz de incorporar informaes que no combinam, no
mantm ou no justificam a emoo que estamos sentindo, o que distorce a
forma como vemos o mundo e a ns mesmos.[21]
Esses momentos que rompem o nosso equilbrio so toxinas da mente, porque
nos afligem perturbando o corpo e a mente. Quando contaminam a nossa fala, as
nossas palavras se tornam instrumentos de dor, pois so usadas de forma abusiva,
cruel, enganosa, desonesta ou manipuladora. Quando as aflies mentais, ou
kleshas, poluem o nosso comportamento fsico, podemos fazer coisas com o
corpo que so destrutivas ou perigosas, a ns mesmos ou aos outros. Mas
devemos estar sempre conscientes de que esse dano se origina na mente.
Voc capaz de reconhecer tendncias mentais aflitivas e de observar por si
mesmo que elas so prejudiciais sua sade? Por outro lado, voc capaz de
encontrar qualidades que intensificam o bem-estar mental, que, quando
influenciam suas palavras, voc se expressa com clareza, gentileza e
inteligncia? Podemos tornar as pessoas bastante felizes com a nossa voz e
tambm com aes fsicas. Reconhea o que saudvel e o que no saudvel.
Fundamentalmente, no h nada de moralista nisso. Trata-se de uma questo
pragmtica.

PRTICA
Estabelea seu corpo e mente em um estado de tranquilidade, estabilidade e
vigilncia. Inspire profundamente pelas narinas, at o abdmen, expandindo
lentamente, relaxando o diafragma e, finalmente, respirando no trax. Ento,
relaxe, em uma expirao longa e suave. Faa isso trs vezes, percebendo as
sensaes das inspiraes e das expiraes por todo o corpo. A seguir, conte 21
respiraes, da forma como fizemos anteriormente.
Agora, aplique a ateno plena ao domnio da mente, gerando nova e
conscientemente o pensamento o que a mente? ou qualquer outro
pensamento. De onde esse pensamento emerge? Aguarde at que chegue o
prximo pensamento. Quando surgir um evento mental, emergindo novamente
por conta prpria, no o considere um obscurecimento. Em vez disso, examine:
de onde vem essa atividade mental? Dizemos que os pensamentos provm da
mente. O que essa mente de onde os pensamentos emergem? Quais so suas
qualidades? Ela esttica ou est em fluxo? H algo nela sugerindo que tem um
dono? Continue observando, de forma atenta, inteligente e inquisitiva, essa base
da mente que anterior a qualquer tipo de ativao, construes, imagens ou
impulsos mentais.
A seguir, uma vez que alguma atividade mental tenha ocorrido, observe onde
ela est acontecendo. Ela tem uma localizao? Observe no o plano frontal, a
atividade ou os atores no palco, mas o plano de fundo, o palco em si. Os
pensamentos agora surgem como um apoio prtica porque o ajudam a
identificar, uma vez mais, o domnio no qual os eventos mentais se exibem.
Observe atentamente. Dizemos que os pensamentos e os sentimentos ocorrem na
mente. O que a mente na qual os eventos mentais acontecem?
Se ocorrer alguma fixao, se perceber que se identificou com alguma
atividade mental em particular, apenas observe a prpria fixao. O espao
mental s vezes se contrai, gravitando em torno do objeto de fixao? A mente se
torna estreita, como se estivesse preenchida pelo objeto? Quando a fixao se
desfaz, o espao da mente permanece amplo, sem contrao, sem criar atrito
com os pensamentos que surgem e o atravessam? Observe o espao da mente.
Ele esttico ou h uma espcie de tecer de fios no espao da mente? Ela o seu
eu real ou ela verdadeiramente sua? Ou ela simplesmente um fenmeno
natural, como o espao fsico?
Por fim, quando o evento mental desaparecer, no se interesse muito pelo
evento em si, mas fique atento ao bhavanga no qual ele desaparece. Preste
ateno no ao processo de dissoluo do evento mental, mas quilo no qual o
evento mental desaparece.
Nessa prtica, os pensamentos errantes no so obstculos. Enquanto observa

a mente, se no surgir nenhum pensamento ou outra atividade mental durante


algum tempo, observe o prprio espao da mente. Se alguma coisa comear a
emergir na mente, timo. Observe aquilo a partir de que est emergindo e
examine onde est localizado. Se algo est desaparecendo na mente, timo,
observe aquilo em que est desaparecendo. A mente est sempre presente. A
conscincia substrato est sempre presente e apenas a nossa falta de ateno a
obscurece.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


O que abordamos nesse exerccio o que William James chama de
experincia pura. Em seu intrigante ensaio Does consciousness exist? [A
conscincia existe?], ele escreve: O campo instantneo do presente o que eu
chamo de experincia pura. Ainda apenas virtual ou potencialmente qualquer
objeto ou sujeito. At ento, simples realidade ou existncia no qualificada,
um mero aquilo.[22] Muitos meditadores aspiram a tal experincia no dual,
comumente experimentada como bem-aventurana e luminosidade, na qual a
fixao a um eu ou meu desaparece, bem como qualquer senso dual de
sujeito/objeto. Algumas pessoas chamam isso de nirvana, outras chamam de
realidade ltima, conscincia pura ou conscincia prstina. Contudo,
mais provvel que estejam tendo um vislumbre da conscincia substrato, na qual
a fixao cessou temporariamente.
Meramente permanecer nesse estado no ajuda em nada a purificar ou
liberar a mente de suas aflies. Se parece mais com um resort de frias
contemplativas um lugar agradvel para se ficar, mas que no transforma de
nenhuma maneira duradoura e nem profunda. Um texto budista Theravada
chamado Milindapaha compara esse estado radincia do Sol, por ser
naturalmente puro e luminoso. o estado fundamental de repouso da conscincia
que est recolhida dos sentidos, e o estado para o qual a mente retorna quando
no est fazendo mais nada. Esse o estado natural e desimpedido da mente, e,
enquanto o funcionamento normal da mente como uma lmpada que pode ser
desligada, a conscincia substrato, que se manifesta no sono sem sonho, possui
uma radincia que independe de estar ou no obscurecida.
Quando consideramos que o mundo da experincia existe apenas em relao
mente que o percebe, fica fcil entender a assero no conhecido texto pli
Dhammapada: Todos os fenmenos so precedidos pela mente, so
provenientes da mente e consistem na mente.[23] O Ratnameghasutra
Mahay ana vai alm ao afirmar: Todos os fenmenos so precedidos pela
mente. Quando a mente compreendida, todos os fenmenos so

compreendidos. Colocando a mente sob controle, todas as coisas ficam sob


controle.[24] Finalmente, outro discurso Mahay ana atribudo ao Buda, chamado
Ratnachudasutra, declara:
A mente, Kashyapa, como uma iluso e, dando forma ao que
no , compreende todo o tipo de eventos A mente, Kashyapa,
como a correnteza de um rio, inquieta, rompendo-se e
dissolvendo-se assim que produzida. A mente, Kashyapa,
como a luz de uma lamparina, e se deve a causas e condies
auxiliares. A mente, Kashyapa, como um raio que desaparece
em um instante e que no permanece. A mente, Kashyapa,
como o espao, perturbada por aflies adventcias.[25]
A mente descrita nessa passagem pode ser decifrada colocando-se a seguinte
questo: esse estado fundamental relativo da conscincia imutvel ou existe em
um estado de fluxo? uma fonte verdadeira de felicidade ou permite apenas que
haja uma pausa para a insatisfao, a angstia e a dor? E, finalmente: h algo na
natureza da mente que seja verdadeiramente eu e meu ou isso apenas um
fenmeno impessoal, como o espao, o tempo e a matria? Apenas quando nos
aventuramos a investigar essas caractersticas cruciais da mente que podemos
encontrar a verdadeira libertao das aflies mentais.

7 Ateno plena aos fenmenos

A BU SCA BU D I STA P E L A CO M P RE E N S O no se limita apenas ao


corpo e mente. Tem o objetivo de investigar a natureza de todos os fenmenos.
O objeto dessa quarta aplicao da ateno plena conhecido em snscrito
como darma, que, nesse contexto, significa simplesmente fenmenos. Ele no
deve ser confundido com a mesma palavra iniciada por letra maiscula, Darma,
que se refere aos ensinamentos e prticas que levam liberao e ao despertar
espiritual. Agora, expandiremos o escopo da ateno plena para inspecionar
todas as coisas e eventos todos os darmas , incluindo os fenmenos subjetivos
e objetivos. O resultado dessa investigao chamado de praja, um tipo de
insight e conhecimento que cura a mente de forma irreversvel, tanto das aflies
e dos obscurecimentos inatos quanto dos adquiridos.

Aps viver no Sri Lanka e praticar como monge sob a orientao de


Balangoda Ananda Maitrey a de 1980 a 1981, cheguei concluso de que as
tradies budistas Theravada e tibetana tm muito mais em comum quanto
natureza de shamatha e vipashy ana do que sugerem as primeiras impresses.
Isso fica claro quando voc confia nos eruditos e mestres de meditao mais
competentes de ambas as tradies. Durante os meses em que treinei a prtica
de shamatha com Ananda Maitrey a, no encontrei nenhuma incompatibilidade
entre suas instrues e os ensinamentos que havia recebido anteriormente de
meus lamas tibetanos, incluindo a afirmao de que, quando se atinge o acesso
primeira estabilizao meditativa (em pli, jhana), voc capaz de permanecer
em samadhi unifocado, livre at mesmo das mais leves agitao e lassido, por
pelo menos quatro horas. Perguntei a Ananda Maitrey a quantas pessoas existiam
no Sri Lanka naquela poca que haviam de fato alcanado o acesso primeira
estabilizao meditativa. Ele respondeu que, entre os milhares de monges e leigos
no Sri Lanka que se devotavam meditao budista, podia se contar nos dedos os
que haviam atingido tal nvel de samadhi. Se isso for verdade, justifica-se um
grau de ceticismo em relao s alegaes de muitos meditadores ocidentais
contemporneos com muito menos treinamento prtico e terico do que os
monges do Sri Lanka que acreditam ter alcanado a primeira estabilizao
meditativa e graus mais elevados de samadhi, e a realizao pela prtica de
vipashy ana.

PRTICA
Para iniciar essa sesso de um gathika, estabelea o seu corpo e a sua mente
tranquilamente, em quietude e em estado de vigilncia. Faa trs amplas
respiraes, lenta e profundamente, expandindo o abdmen, relaxando o
diafragma, inspirando at o trax e liberando o ar de maneira gentil e completa.
Retorne ao ritmo normal de respirao e, por alguns instantes, traga mente
a aspirao mais significativa possvel para essa sesso. Quais so seus objetivos
mais elevados como indivduo e tambm para a sua vida em relao queles a
sua volta? O que voc gostaria de alcanar, de experimentar, de se tornar? O que
voc gostaria de oferecer? Onde reside a sua maior felicidade? Deixe que a
realizao de sua aspirao seja o motivo para que voc continue.
Tendo cultivado uma motivao significativa, prepare a sua ateno e faa
com que sua mente se torne funcional, acalmando as tendncias agitao e
lassido. Traga a conscincia para o campo de sensaes tteis do seu corpo,
desde as plantas dos ps, coxas, quadril, at o tronco, braos e cabea. Mantendo
esse campo de conscincia dos fenmenos tteis, leve sua ateno respirao

como um exerccio preparatrio. Repouse em um modo de puramente


testemunhar, sem ser carregado por memrias, fantasias ou especulao.
Durante a inspirao, eleve a vivacidade de sua ateno, e durante a expirao,
relaxe e libere qualquer pensamento ou outras distraes irrelevantes que possam
surgir. Conte 21 respiraes, como fez anteriormente.
Agora, passe para a ateno plena aos fenmenos. Lembre-se do conselho
dado pelo Buda: No que visto, h apenas o que visto; no que ouvido, h
apenas o que ouvido; no que sentido, h apenas o que sentido; no que
percebido, h apenas o que percebido. Com os olhos ao menos parcialmente
abertos, comece direcionando a sua ateno aos fenmenos das formas e cores
tudo aquilo que surge de forma nua sua percepo visual. Esteja simplesmente
presente.
Com os olhos fechados, fique atento apenas aos sons.
Voc capaz de detectar algum odor? O desafio apenas testemunhar em
repouso, sem julgamentos, sem atrao ou averso, sem nenhum tipo de fixao
mental. Permanea em um modo de receptividade pura, fluida, sem rigidez.
H algum gosto remanescente em sua boca?
Agora, aplique a ateno plena ao quinto domnio de experincia sensorial,
aos fenmenos tteis. Tenha conscincia de seu corpo quanto ao que
apresentado de forma direta sua percepo ttil.
Note que voc pode se identificar com ou se fixar a objetos de qualquer um
desses campos de experincia. Se, na conscincia visual, voc v a forma de
suas pernas ou mos, voc se agarra e pensa minhas. Voc ouve a sua prpria
voz, apenas um som, mas a reconhece e pensa minha. Voc pode at mesmo
se agarrar a o meu cheiro, o meu gosto e, certamente, as minhas sensaes
corporais. Mas, quando observa atentamente, voc v algo que
intrinsecamente eu ou meu em algum dos contedos dos cinco campos de
experincia sensorial? Ou esses so meramente eventos que surgem na
dependncia de causas e condies?
Por fim, passe para o sexto domnio de experincia, o reino dos fenmenos
mentais, onde voc experimenta pensamentos, imagens, sentimentos, emoes e
memrias. Observe esse domnio da mesma forma que voc observou os
anteriores.
Agora, tente algo novo. Libere o controle da sua mente. Deixe a sua mente e
a sua ateno livres de qualquer controle. Repouse ento em um estado de
conscincia no direcionada, sem preferncia. Deixe a sua ateno flutuar no
espao da conscincia, carregada pelos ventos dos estmulos, sobrevoando os
sentidos visual, ttil, auditivo e assim por diante e o mental, como uma
borboleta pousando de flor em flor. Deixe que a sua ateno v para onde quiser,
enquanto voc permanece imvel, sem preferncias, no espao da conscincia,
sem controlar a mente e sem ser controlado por ela.

Encerre a sesso.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


Eu disse anteriormente que a ateno plena mente poderia ser a mais
fascinante das quatro aplicaes da ateno plena porque vai fundo em direo
natureza da prpria conscincia. Mas o que poderia ser mais fascinante do que
tudo? Isso o que temos aqui nada excludo. Tudo o que surge aos modos de
percepo da experincia, impresses imediatas, imagens mentais, viso e som,
o que quer que surja mente conceitual pensamentos, imagens, memrias,
fantasias, especulaes sobre o futuro , tudo isso so darmas. Tudo o que existe
est includo na categoria dos darmas. Tudo so aparncias, objetos da mente.
Isso suscita questes importantes e fascinantes, especialmente para a nossa
cultura. Uma delas a intuio. Eu sempre penso a respeito das vrias formas de
medicina tradicional as antigas medicinas grega, indiana, tibetana e chinesa:
onde aprenderam quais tipos de ervas e outros compostos naturais aliviavam
doenas especficas? Os chineses tm um sistema vasto e complexo que exige
anos para ser aprendido e dominado. Na medicina tradicional tibetana, um
comprimido pode conter de 35 a centenas de ingredientes em propores
especficas. Como descobriram isso? Certa vez ouvi uma americana nativa
descrever as propriedades medicinais de uma planta aps a outra, tudo de forma
consideravelmente detalhada. Considerando-se que existem muitas plantas
venenosas, perguntei a ela: Como descobriram aquelas que so curativas? A
resposta foi a mesma que penso ser verdadeira no caso da medicina tibetana e
que suspeito ser verdadeira na tradio ay urvdica da ndia, bem como na
medicina chinesa: intuio. No caso dos americanos nativos, afirma-se que a
planta diz ao praticante para que ela serve. Na tradio budista tibetana, o Buda
da Medicina diz ao praticante avanado quais os compostos de ervas e minerais
so eficazes para tratar uma ampla gama de doenas.
Como muitos desses medicamentos funcionam, no posso desconsiderar o
que esses praticantes dizem sobre as suas fontes de conhecimento. pouco
provvel que faam experimentos duplo-cegos em segredo com milhares de
ratos ou com humanos. A concluso a que chego de que a intuio um outro
modo de conhecimento, diferente do pensamento analtico, de projetos
experimentais e desenvolvimento tecnolgico avanado. No ingls moderno,
intuition [intuio] um termo vago, depreciativo. Contudo, a intuio
importante no apenas na prtica contemplativa, mas tambm na cincia, cuja
histria mostrou no ter sido puramente racional e analtica. Esse modo de
conhecimento direto e inexplicvel em termos de lgica pode ser cultivado. Em

um captulo anterior, coloquei a seguinte questo: como podemos sentir o que


outras pessoas esto sentindo? um processo racional de ler e interpretar a
linguagem corporal, comparar com a nossa prpria experincia e ento fazer
uma sobreposio? No parece ser assim. Parece ser de maneira direta. A
intuio pode ser errada, mas isso no exclui a possibilidade de que seja um outro
modo de conhecimento.
Por exemplo, como um americano nativo ouve uma planta falar? Ou como
um budista tibetano ouve o Buda da Medicina dizendo como tratar determinada
doena durante a meditao? Esse um tipo de percepo mental, quer venha
por meio dos sentidos fsicos, quer venha do domnio mental das experincias.
Como mencionado anteriormente, a percepo mental o nico dos nossos seis
modos de percepo que pode ser aperfeioado com a prtica. Entre eles, o
nico modo que podemos melhorar conforme envelhecemos, enquanto os outros
sentidos enfraquecem. Para fazermos isso, precisamos cultivar uma quietude
interior e uma receptividade clara ao que nos est sendo apresentado a cada
momento. E, para alcanarmos isso, temos que reduzir o hbito de nos fixarmos.
Fixao um termo frequentemente ouvido em todas as escolas do
budismo. Por um lado, temos o modo como a realidade apresentada aos nossos
sentidos. Algumas coisas que a realidade nos oferece so dolorosas e
perturbadoras. Outras so prazerosas ou neutras. Mas a maioria de ns no est
simplesmente fluindo com as aparncias que surgem. Em vez disso, estamos
ativamente interpretando-as. Algumas coisas nos irritam. Quando queremos ficar
em silncio, a realidade se torna barulhenta. Essa interpretao e preferncia so
chamadas de fixao. Quando isso acontece, um som no apenas um som.
Se a sua meditao perturbada por um som, no o som que est causando a
perturbao, mas sim a fixao ao fluxo das aparncias. A fixao
frequentemente implica averso ou atrao. Queremos nos livrar de algo ou
queremos que fique como est ou se torne mais forte. Tudo isso fixao ir
alm das aparncias daquilo que se imagina ser a fonte dos fenmenos.
Um modo delusrio e mais grosseiro de fixao objetifica as coisas,
imbuindo-as de uma existncia mais independente e tangvel do que realmente
tm. Nada existe de modo independente. Todos os fenmenos condicionados
esto surgindo a cada momento como eventos dependentemente relacionados.
Portanto, a fixao s coisas nos coloca em desacordo com a realidade.Ela
tambm nos sujeita a inmeras aflies mentais de anseio, hostilidade, inveja,
orgulho e assim por diante. a que a fixao, sob a forma de deluso, nos
mostra o quanto ela pode ser prejudicial. Quando estava aprendendo a andar de
motocicleta, o meu instrutor disse na aula: em qualquer coliso entre voc e
qualquer outra pessoa ou outra coisa, voc perde. Da mesma forma, em
qualquer coliso entre ns e a realidade, ns perdemos. A realidade nunca perde.
A realidade no sofre. Ns que sofremos. H trs formas comuns pelas quais

isso pode acontecer.


Uma das formas de colidir com a realidade nos fixarmos ao que est por
natureza em estado de constante fluxo impermanente, movendo-se,
transformando-se, passando, passado como sendo estvel e permanente. Tudo
o que surge em nossos campos de percepo est em constante fluxo. Seja
subjetivo ou objetivo, ou uma combinao dos dois, est tudo de pernas para o ar,
fluindo, sempre em efervescncia. Quando algo de ruim acontece, nos fixamos a
isso como se fosse eternamente ruim, quando, na verdade, a situao em que nos
encontramos est em constante fluxo e, cedo ou tarde, desaparecer
completamente. Achamos que vizinhos ruins iro viver para sempre e nos
irritaro todos os dias, pelo resto de nossas vidas. No que no possamos
suport-los no momento presente: o que no podemos suportar que paream
permanentes.
O mesmo acontece com eventos positivos, em que algo bom acontece. Um
exemplo clssico so os casos amorosos. Parece que a paixo ir durar para
sempre, embora a atrao sexual seja notoriamente fugaz. Podemos projetar a
mesma qualidade de permanncia a uma nova aquisio, desejando, at mesmo
esperando que se parea e funcione indefinidamente como no dia em que
fizemos a compra. Mas as coisas no se tornam defeituosas ou quebram porque
foram mal feitas: as coisas se tornam defeituosas ou quebram porque foram
feitas. Pode contar com isso. Todos os darmas que se originam da mente e se
apresentam a ela persistiro por um momento e acabaro. Se pudssemos de
alguma maneira envolver as nossas vidas em torno dessa realidade, seria de
muita utilidade, porque isso o que verdadeiro.
O ponto crucial que, sob a influncia da fixao, nossa percepo da
realidade distorcida, e quando agimos de acordo com essa distoro ns
sofremos. Essa a essncia da segunda nobre verdade, a origem do sofrimento.
Podemos evitar uma tremenda quantidade de sofrimento desnecessrio
reconhecendo a impermanncia sutil e grosseira de todos os fenmenos
condicionados e levando isso em conta ao vivermos as nossas vidas.
Uma segunda maneira de colidir com a realidade nos fixarmos ao que no
fonte verdadeira de felicidade com sendo a causa real da alegria e da
satisfao que buscamos. Considere o seguinte: existe algo que surja como uma
aparncia ou um objeto sua mente qualquer coisa que seja, em si mesmo,
uma fonte verdadeira de felicidade? Ou uma fonte verdadeira de sofrimento?
Existem incontveis coisas que podem despertar prazer e muitas outras que
podem provocar sofrimento. Freud comentou: Somos feitos de tal forma que
podemos extrair prazer intenso apenas a partir do contraste e muito pouco a partir
do estado das coisas A infelicidade muito menos difcil de se experimentar.
Considere essa afirmao ao refletir sobre a faixa de temperatura em que se
sente confortvel, a gama de alimentos que pode digerir e a gama de situaes

em que pode se sentir relaxado e feliz.


No entanto, aqui estamos, aprisionados na busca pela felicidade. Esta busca
faz parte at mesmo da Constituio dos Estados Unidos como um direito. Mas,
nesta busca, o que exatamente deveramos buscar? timos empregos, bons
salrios e casas bonitas so fontes de felicidade? O que o Buda deduziu de suas
exploraes que nos fixamos a coisas e a outras pessoas que no so por
natureza fontes de felicidade como se fossem. Investimos nossa vida nelas e
ento demandamos o retorno em felicidade. Fixar-se a algo que no por
natureza uma fonte real de felicidade, e ainda assim considerar como tal, um
imenso problema. Algumas pessoas so solteiras e esto convencidas de que ter
um parceiro lhes traria a verdadeira e duradoura felicidade. Ter um cnjuge
uma fonte verdadeira de felicidade? Muitas pessoas casadas pensam que seus
cnjuges so a verdadeira fonte de sofrimento. Portanto, ser solteiro no uma
fonte de felicidade e ter um cnjuge tambm no uma fonte de felicidade.
Com que frequncia investimos os nossos esforos em um emprego ou em
conseguir um certo tipo de casa? Investimos profundamente na esperana e na
viso de que a que reside a minha felicidade. Mas a felicidade no est nos
objetos nossa volta. Lembre-se, um objeto pode catalisar felicidade, mas esse
mesmo objeto pode levar ao sofrimento.
De acordo com o budismo, esta vida humana da qual somos dotados
preciosa alm de qualquer avaliao possvel. Devido nossa habilidade de
buscar a virtude, a felicidade e a verdade, nossa vida no tem preo. Mas assim
que voc encara sua vida? Quanto vale um dia da sua vida? Quanto voc quer de
troco por morrer um dia mais cedo? Cem dlares? Que tal mil dlares? Mais? E
ainda assim muitos de ns pensamos que podemos desperdiar tempo. O capital
das nossas vidas limitado. Isso especialmente verdade para as fases boas, em
que saudveis e bem alimentados, sem termos que passar a maior parte do
tempo apenas tentando sobreviver. Reflita sobre como voc est investindo o seu
precioso tempo. O que voc est fazendo na busca pela felicidade?
A terceira e talvez a mais profunda forma de colidir com a realidade fixarse ao que no eu ou meu como sendo eu ou meu. Conforme
aplicamos a ateno plena a toda a gama de fenmenos, no detectamos nada
alm de aparncias surgindo mente emoes, memrias, sentimentos,
sensaes fsicas e pensamentos , meras aparncias. Estamos habituados a nos
fixarmos a muitas delas como sendo minhas: os meus amigos, a minha
famlia, a minha esposa, as minhas posses materiais, a minha reputao, o meu
corpo, as minhas emoes, os meus desejos, os meus pensamentos, as minhas
memrias e assim por diante. E nos fixamos ao nosso senso de identidade pessoal
como um eu autnomo e real, que possui e frequentemente tenta controlar
tudo o que considera meu. Em sua busca por autoestima, muitas pessoas
tentam controlar tantas coisas e pessoas quanto possvel, demonstrando a si

mesmas e ao mundo que elas realmente existem, que de fato esto no controle.
Mas, quando voc aplica a ateno plena com discernimento a fenmenos
internos e externos, observando-os com o mnimo possvel de sobreposies,
nenhum desses objetos da mente se apresenta como eu nem como meu. De
acordo com a explorao experimental de contemplativos budistas, essa
tendncia profundamente arraigada de fixar-se a absolutamente qualquer coisa
como inerentemente eu ou meu deludida: coloca-nos em rota de coliso
com a realidade e, como resultado, mais uma vez sofremos.
Por exemplo, imagine que voc estabelea negcios com algum que, sem
voc saber, desonesto, manipulador e interesseiro e essa pessoa arruna seus
negcios. Voc perde dinheiro no apenas porque a pessoa trapaceira e
mentirosa, mas porque voc pensou que ela no fosse assim. Compare isso a
confundir aquilo que no eu ou meu com o que eu ou meu. Se voc
confundir um scio trapaceiro com uma pessoa honesta e fizer negcios com ele,
poder se prejudicar durante uma fase da sua vida. Mas isso passar e voc
poder se recuperar. Porm, se voc compreender de forma errnea a natureza
da sua prpria existncia, isso contaminar tudo o que fizer. Toda a sua vida
estar baseada nesse erro fundamental.
Um sutra Mahay ana, ou discurso atribudo ao Buda, aborda eloquentemente
esse ponto:
Os agregados (abrangendo o corpo e a mente) so
impermanentes, instveis, naturalmente frgeis como um vaso
no queimado, como um objeto emprestado, como uma cidade
construda no p, durando apenas algum tempo. Por natureza,
essas condies esto sujeitas destruio, so como o reboco
lavado pela estao das chuvas, como a areia margem de um
rio, dependentes das condies auxiliares, naturalmente fracas.
So como a chama de uma lamparina, a sua natureza ser
destruda to logo surjam, instveis como o vento, sem seiva e
frgeis como um grumo de espuma.[26]
A importncia de nomear coisas no se limita prpria identidade. Em um
discurso registrado no idioma pli, o Buda comenta: So meramente nomes,
expresses, maneiras de falar, designaes comumente usadas no mundo. Delas
aquele que alcanou a verdade de fato faz uso, mas no se deixa enganar.
Em outro discurso pli, ele declara:
Do mesmo modo que apenas quando as partes so reunidas
Surge a palavra carruagem,
Assim a noo de um ser
Quando os agregados esto presentes.[27]

Sobre o mesmo tema, foi registrada essa fala do Buda em um sutra


Mahay ana: Todas as condies so sem nome, mas iluminadas pelo nome.[28]
Conforme voc pde observar quietamente na meditao anterior, passando de
um domnio de experincias sensoriais a outro ou repousando em ateno plena
sem preferncia, algum desses eventos surgiu e nomeou a si prprio? Ns
nomeamos alguma coisa, ns a designamos conceitualmente e ento ela surge do
suave tecido de aparncias para nos encontrar. Ns nos nomeamos. Os nossos
nomes iluminam a demarcao entre ns e os outros, e essa uma conveno
importante. Um nome surge, cristaliza algo e o ilumina. Isso muito til, mas em
que medida levamos esses nomes a srio? Assim que nomeamos algo, ocorre a
fixao. A fixao no delusria por natureza, mas abre as portas para a
objetificao. como uma caixa de Pandora para uma mirade de deluses.

PRTICA
Estabelea seu corpo e mente em uma postura confortvel, quieta e vigilante.
Relaxando os msculos dos ombros e da face, mantenha os olhos e a testa
relaxados. Tome trs inspiraes lentas e profundas pelas narinas. A seguir, conte
21 respiraes, cercando esse cavalo selvagem da mente para poder cavalg-lo
confortavelmente.
Vamos em busca de um tipo de verdade vlida para qualquer um em todos os
momentos. Essas so verdades em todas as estruturas de referncias cognitivas.
O que constante e invarivel? Primeiro repouse na conscincia sem
preferncias, na qual voc abre mo do controle completamente, d um
descanso ao seu senso de ego, de eu controlador, deixando-o dormente por uns
momentos. Deixe a mente seguir livre, porm no se permita ser controlado por
ela. No permita que seja carregado para longe ou oprimido pela mente. Deixea ir para onde quiser, deixe que as aparncias surjam vontade.
Essa uma magnfica preparao para morrer de maneira consciente,
quando formos obrigados a abandonar o controle e as faces enganosas do
controle, porm mantendo a opo de no sermos controlados pelas emoes de
medo, ansiedade ou pesar. Como diz o ditado: Esse um homem livre, senhor
de ningum, mas comandado por ningum. Seja livre aqui e agora, enquanto
repousa na natureza da conscincia, que luminosa e transparente. Repouse sem
preferncias, sem fixaes.
Em termos de ateno plena mente, voc se lembrar de que existem os
contedos, os eventos e os processos da mente. H ento a conscincia substrato,
a base a partir da qual as aparncias surgem. Voc pode repousar no substrato,
observando sem intervenes qualquer atividade que surja nesse espao da

mente, o domnio da experincia mental. Agora amplie isso para a realidade


como um todo, no apenas o domnio da mente. Explore o domnio de todas as
experincias, todas as aparncias. Uma vez mais, voc tem as aparncias, os
contedos, os eventos os objetos que surgem para a conscincia. E ento h
aquilo a partir do qual essas aparncias se manifestam, aquilo no qual essas
aparncias permanecem, e aquilo no qual essas aparncias desaparecem. Esse
o espao da conscincia. Qual a base a partir da qual todas as aparncias
surgem, esse espao onde as aparncias permanecem e no qual as aparncias se
dissolvem? O que essa base luminosa, esse espao luminoso? Cuidadosamente,
aplique a ateno plena a toda a gama de fenmenos e ao espao a partir do qual
eles emergem, no qual permanecem e no qual se dissolvem.
Encerre essa sesso. Iniciamos cultivando uma motivao significativa.
Qualquer que seja o benefcio dessa prtica o que os budistas chamam mrito
, dedique-o realizao de suas aspiraes e motivaes mais significativas.
Possa o mrito dessa prtica conduzir realizao de suas aspiraes mais
profundas.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


Nessa prtica, levanto a possibilidade de que existem verdades invariveis ao
longo do espao e do tempo. Para elabor-la, proponho que haja um espectro de
verdades, variando de verdades bastante pessoais a verdades bem gerais. O meu
improviso ao piano a melhor msica do mundo? A resposta pode ser sim,
para algum em particular. Essa afirmao pode ser to verdadeira quanto
E=mc2, em um contexto bem estreito do universo de uma pessoa. Voc
poderia dizer que essa pessoa ridiculamente autocentrada, operando a partir de
uma nica perspectiva da verdade. Na medida em que as nossas mentes so
dominadas pelo autocentramento, sentimos: O meu bem-estar a coisa mais
importante do mundo. A segunda coisa mais importante o bem-estar das
pessoas com as quais eu mais me importo. Voc poderia empilhar os demais
seres sencientes como uma pirmide cuja base formada pelas pessoas que
poderiam ser atropeladas por um caminho e que no merecem nenhuma
felicidade porque me tocam do jeito errado. Essa uma perspectiva
perfeitamente autocentrada, em que a verdade vlida para apenas uma pessoa.
Vamos avanar nessa ideia em um contexto mais amplo. Imagine uma
cultura nmade na qual as famlias sejam separadas porque os seus rebanhos
precisam de muito espao para pastar. Ali, o ncleo familiar o centro do
universo. Com exceo das ocasionais trocas com outras unidades familiares,
tudo o que voc quer deles que no invadam seu territrio. Voc pode ter uma

viso de mundo centrada na famlia que verdadeira apenas para a sua famlia e
no para as outras famlias. Podemos avanar agora para uma mentalidade
centrada na cidade, na qual as verdades proclamadas se aplicam aos habitantes
de uma cidade, como Atenas ou Esparta, onde algumas reivindicaes so justas
para os espartanos, mas no necessariamente vlidas para os atenienses. Essa
anlise pode tambm ser aplicada de forma mais ampla ao etnocentrismo ou ao
nacionalismo. Pode haver verdades vlidas apenas para um nico grupo tnico.
Pode haver tambm estruturas de referncias centradas no idioma. As verdades
podem ser vlidas para o ingls, mas podem no s-lo para o alemo ou para o
snscrito.
O que quero dizer : h dimenses da nossa existncia, aqui e agora,
individualmente, que no esto restritas a uma personalidade especfica, o que
inclui gnero, idade, etnia, nacionalidade e espcie. E essas dimenses podem ser
experienciadas. disso que se trata a prtica. Independentemente de nossa
estrutura de referncia cognitiva, existem verdades universais no aquelas
puramente objetivas, mas as que so verdadeiras independentemente de sua
perspectiva. As trs marcas de existncia dessas verdades so:
1. todos os fenmenos condicionados, todos aqueles que surgem na
dependncia de causas e condies, esto sujeitos impermanncia, pois surgem
e desaparecem a cada momento;
2. enquanto nossa mente estiver sujeita a aflies mentais, todas as nossas
experincias sero insatisfatrias. Nenhum objeto da percepo ou pensamento
so fontes verdadeiras de felicidade;
3. nada do que experimentamos verdadeiramente eu ou meu por sua
prpria natureza. Esses conceitos so meramente sobrepostos aos fenmenos
mentais e fsicos, e nenhum deles um eu inerentemente existente.
Reconhecer essas caractersticas cruciais da existncia por meio da
experincia pessoal leva realizao do nirvana, a liberdade insupervel de
todas as aflies mentais e suas consequncias. O caminho para essa liberdade
consiste em prtica de tica, samadhi e cultivo da sabedoria. Dessa forma, as
buscas pela virtude, pela felicidade genuna e pela verdade esto inteiramente
integradas. Esse o caminho para a liberao.

Parte 3. Cultivando um bom corao

8 Bondade amorosa

Q U A N D O CO M E A M O S A E X P E RI M E N TA R os benefcios da
meditao shamatha, com a serenidade e a clareza que ela traz mente, ficamos
tentados a focar exclusivamente essa prtica. Mas a tradio budista nos
encoraja a estender a prtica espiritual para alm dos limites da calma interior.
H alguns anos, quando era intrprete em uma das conferncias do instituto Mind
and Life com Sua Santidade o Dalai Lama e um grupo de cientistas da cognio,
Tsokny i Rinpoche, um mestre de meditao tibetano altamente respeitado, era
um dos convidados. Certa noite, ele e eu nos sentamos e discutimos a difuso do
budismo no Ocidente, e ele comentou sobre algumas das desvantagens de se
fixar prtica de shamatha. Alguns alunos, disse ele, ficavam to imersos nessa
prtica que acabavam por se desconectar de tudo a sua volta, pensando, me sinto
completamente desapegado dos problemas das outras pessoas! Eu mesmo estou
muito bem. O resultado de sua prtica era um tipo de indiferena desinteressada
condio dos outros, enquanto desfrutavam de uma relativa calma no santurio
interno de sua prpria mente. Ele via isso como um real impedimento ao
crescimento espiritual.

Apenas o insight sobre a natureza da realidade pode realmente curar a mente


de suas aflies. Assim, progredimos de shamatha para as quatro aplicaes da
ateno plena, os fundamentos da prtica budista de insight como um todo. Essas
prticas foram apresentadas nos captulos anteriores. Muitas pessoas acham que
o cultivo da ateno plena muito efetivo em produzir clareza e insight na vida
cotidiana, e tenho encontrado muitas pessoas que dizem ser budistas
simplesmente porque praticam ateno plena. Algumas at mesmo igualam essa
prtica meditao budista como um todo, e afirmam que prticas meditativas
diferentes do cultivo da ateno pura so um equvoco. H uma espcie de
dogmatismo nessa atitude que, infelizmente, comum entre os praticantes
religiosos de todas as crenas: ns temos o nico caminho, e qualquer outra coisa
diferente do que acreditamos e praticamos errada e perigosa. Mas h um tema
nos ensinamentos do Buda que toca esse ponto diretamente: sabedoria sem
compaixo aprisionamento, e compaixo sem sabedoria aprisionamento.
Essa uma profunda verdade. O caminho do despertar marcado por diversos
buracos e sulcos e fcil ficar preso a vises estreitas e exclusivistas, at mesmo
com relao a prticas excelentes. Ouvi o Dalai Lama comentar sobre alguns
mestres que ele conheceu, cuja prtica de anos era centrada nas quatro
aplicaes da ateno plena. Embora demonstrassem profunda calma e
equanimidade, ele tambm percebia neles uma qualidade de austeridade e falta
de alegria, sem calor e empatia aparentes pelos outros. Sabedoria sem
compaixo aprisionamento.
O caminho budista do despertar espiritual no apenas aquele que revela a
bem-aventurana, a luminosidade e a pureza inatas da conscincia. tambm o
cultivo de qualidades saudveis do corao e da mente e sua expresso na nossa
conduta cotidiana. Portanto, para complementar a profunda sabedoria que pode
ser realizada por meio da prtica das quatro aplicaes da ateno plena,
passamos agora para o cultivo das quatro qualidades incomensurveis: bondade
amorosa, compaixo, alegria emptica e equanimidade. Cada uma delas um
elemento vital na busca pela felicidade genuna. Na nossa vida no dia a dia,
tendemos a oscilar entre expectativas e temores, alegrias e tristezas, que surgem
na dependncia de causas e condies prvias. Muitas, se no todas essas
circunstncias causais esto fora do nosso controle. A felicidade genuna, a busca
por aquilo que o prprio sentido da vida, no simplesmente um sentimento
prazeroso produzido pelo contato com estmulos objetivos e agradveis. Em vez
disso, emerge de causas e condies internas, surgindo a partir do centro, daquele
ponto mdio entre as vicissitudes. Cultive um corao aberto, preenchido por
bondade amorosa e compaixo incomensurveis, e a felicidade emergir
naturalmente de dentro de voc.

PRTICA
Primeiramente, vamos tornar a nossa mente funcional. Temos pouco
controle sobre o ambiente que nos cerca um aparente controle, que com
frequncia desaba sobre as nossas cabeas. E quando nos voltamos para dentro,
podemos verificar que a nossa mente tambm est frequentemente fora de
controle. Mas talvez possamos aprender a ter maior controle, maior domnio
sobre a nossa mente podemos tornar nossa mente mais funcional e transformla em nossa aliada.
Assuma uma postura que contribua com a prtica, com o corpo vontade,
imvel e vigilante. Relaxe os msculos dos ombros e da face, incluindo a
mandbula. Relaxe os olhos e os msculos ao redor dos olhos. E agora tome trs
inspiraes lentas, profundas, completas, respirando no abdmen, e, em seguida,
solte completamente o ar pelas narinas.
Busque, primeiramente, a sensao sutil de serenidade, de calma interior.
Libere as preocupaes do dia, as antecipaes do futuro e acomode-se na nica
realidade que existe agora: o presente. Relaxe a sua ateno em um modo de
simplesmente testemunhar, trazendo-a para o campo de sensaes tteis ao longo
de todo o corpo. Deixe a respirao seguir sem intervenes. No tente respirar
profundamente. Apenas deixe o seu abdmen solto, de modo que, ao voc
inspirar, ele se expanda com facilidade. Se a respirao estiver profunda, deixe-a
ser profunda; se estiver superficial, tudo bem.
Agora simplifique radicalmente a sua mente. Deixe seu corpo ser preenchido
pela ateno plena e mantenha sua mente presente no campo dessas sensaes
tteis da entrada e da sada do ar em todo o corpo. Se achar til, experimente
contar apenas 21 respiraes contando no incio de cada inspirao. Alm
dessa tarefa, d um descanso a essa mente incomodada por todas as
preocupaes, planos, memrias, esperanas e medos. Deixe-a simplesmente
repousar na conscincia do ritmo suave da sua respirao.
Passamos agora para um tipo de meditao na qual usamos todo o poder da
nossa imaginao, inteligncia e intuio. Esse tipo de prtica chamado de
meditao discursiva, e um importante complemento das prticas no
discursivas de shamatha e ateno pura.
Voc anseia pela felicidade? Provavelmente, voc est buscando algo alm
do mero desejo de sobreviver ou de alcanar fama e prosperidade material.
Caso contrrio, no estaria fazendo essa prtica. Ento, qual a fonte desse
anseio e o que poderia satisfaz-lo? O que voc de fato quer? Voc consegue
visualizar? Pode ser mais fcil comear pelo que voc no est buscando, aquilo
que no ser suficiente, aquilo que no trar a felicidade que voc busca.
Vasculhe a sua memria para encontrar exemplos de coisas que voc achou que

lhe trariam a genuna satisfao, mas que, ao final, lhe desapontaram. No deve
ser difcil encontr-los.
Por milnios, com suas vidas e suas palavras, os grandes mestres da tradio
budista tm nos encorajado a reconhecer que a busca pela felicidade genuna
no em vo. Voc consegue imaginar um modo de vida que seja realizvel,
que contribua com a busca por tal felicidade? Voc vive assim? Se no, o que
seria necessrio? Que mudanas seriam necessrias para que voc pudesse se
empenhar com afinco na busca pela felicidade genuna, rastreando-a at sua
origem?
Agora considere sua vida como ela . Voc est sobrevivendo e encontrou o
Darma. Talvez tenha amigos espirituais e mestres. A porta est aberta para seguir
esse caminho para a iluminao. Tais circunstncias raramente ocorrem. Uma
vida assim chamada de vida humana preciosa, com liberdades e
oportunidades. Oportunidades para fazer o qu? Para buscar a felicidade
genuna em sua origem. possvel dirigir todos os nossos esforos para encontrar
tal felicidade para ns mesmos e para os outros nossa volta? Essa seria uma
vida de bondade amorosa.
Ento, traga a bondade amorosa para si mesmo, desejando a realizao das
suas aspiraes mais profundas. Imagine um modo de vida que oferea a
mxima liberdade para voc buscar aquilo que tem mais valor. Observando
como o mundo est, assistindo s notcias, vendo o que acontece a cada dia, no
to bvio que a felicidade genuna seja, no mnimo, uma possibilidade. H tantas
causas de sofrimento, conflito, tristeza e dor. Mas a crena na nossa bondade
inata e na possibilidade de felicidade uma opo. E escolher essa opo abre as
portas para essa busca, nos traz de volta ao tema central. A tradio crist nos diz:
O reino dos cus est dentro de ns. O budismo diz: A natureza de buda a
essncia do seu ser. Aqui est a fonte da alegria, a fonte da compaixo, a fonte
da sabedoria a fonte de todo o bem. Aqui est a esperana e a plataforma para
cultivarmos a bondade amorosa por ns mesmos e pelos outros. Como podemos
nos nutrir e nos guiar de forma a levarmos as nossas vidas favorecendo a
manifestao, o florescimento, a realizao dessa natureza de buda, para que ela
se torne mais do que uma questo de f?
Imagine a sua natureza de buda a pureza essencial de sua prpria
conscincia simbolicamente como uma prola de luz branca radiante em seu
corao. E toda essa luz branca radiante e incandescente tem a natureza da
alegria e da bondade amorosa que sempre estiveram dentro de voc. Ento, a
cada inspirao, imagine-se extraindo luz dessa fonte inesgotvel do seu corao,
como se estivesse retirando gua de um poo. A cada inspirao, imagine que
voc extraia luz dessa fonte, uma fonte que pode ser facilmente obscurecida
quando se presta ateno a outras coisas, quando as nossas prioridades se perdem
nas distraes. A cada inspirao, imagine-se extraindo essa luz, como se

estivesse explorando um poo bem profundo. Ento, a cada expirao, imagine


essa luz de bem-estar, essa luz de bondade amorosa, permeando cada parte do
seu corpo, da sua mente, do seu esprito. Ento, pense: que eu possa experimentar
a felicidade genuna e a prpria fonte da felicidade. Que eu possa ficar bem e ser
feliz.
Conforme essa luz se expande, imagine que ela elimine todos os tipos de
conflitos, aflies, desequilbrios em seu corpo e na sua mente, tudo aquilo que
causa sofrimento. Visualize nitidamente essas aflies sendo eliminadas por essa
luz radiante e imagine-a saturando e preenchendo todo o seu ser. Comece essa
prtica de bondade amorosa desejando o seu prprio bem-estar, tendo em mente
o que o Buda comentou: Aquele que ama a si prprio nunca causar mal ao
outro.[29]
medida que preenche o seu corpo at transbordar, imagine esse campo de
luz em volta do seu corpo preenchendo o seu quarto e, ento, estendendo-se para
fora, permeando todos sua volta, prximos ou distantes. Conforme a luz se
expande para o mundo, sem excluir ningum, pense: possam todos os seres,
assim como eu, acima e abaixo, em todas as direes, possam todos encontrar a
felicidade e as causas da felicidade.
Ento, por alguns instantes, abandone a imaginao, libere todas as suas
aspiraes. Descanse completamente, deixando que a sua conscincia repouse
em sua prpria natureza. Esteja simplesmente consciente de estar consciente.
Encerre a sesso.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


A bondade amorosa, chamada de maitri em snscrito, a primeira das
quatro qualidades incomensurveis e significa uma aspirao sincera de que
outros possam experienciar a felicidade e as fontes da felicidade. Em resposta
pergunta qual o sentido da vida?, muitos dos grandes contemplativos, santos e
lderes religiosos do passado do Ocidente e do Oriente disseram que o sentido
da vida simplesmente esse: a busca pela felicidade. Essa uma boa notcia! De
qualquer forma, isso o que gostaramos de fazer e, se esse o sentido da vida,
timo! Mas, investigando um pouco mais, a busca pela felicidade levanta
algumas questes provocativas e tambm perturbadoras. Quando pensamos na
busca pela felicidade, o que temos em mente? Como encaramos passar todos os
dias da nossa vida lutando por ela? Claro que a simples sobrevivncia uma
questo importante. difcil ser feliz se no conseguimos nem ao menos
sobreviver, se sentimos que a nossa vida est em perigo. Ento, uma vez que
tenhamos conseguido cuidar da sobrevivncia, queremos segurana, e aqui

tambm est includa a sade. Certamente, esses so pontos bsicos para a nossa
busca pela felicidade.
Mas alm desses pontos essenciais, nos envolvemos frequentemente na busca
por prazeres mundanos em vez da felicidade genuna. Na tradio budista, h
muitas referncias s oito preocupaes mundanas. Revisando essa lista de
preocupaes, as duas primeiras so a aspirao por conseguir novas aquisies
materiais e evitar perder aquilo que j foi obtido. Algumas pessoas avaliam seu
prprio valor e seu grau de sucesso na vida em uma base puramente quantitativa:
quanto dinheiro e bens materiais foram capazes de adquirir. Essas pessoas
igualam a busca pela felicidade busca por riqueza. O segundo par de
preocupaes mundanas a busca por prazeres controlados por estmulos de
todos os tipos sensuais, intelectuais e estticos e o desejo de evitar qualquer
tipo de sofrimento ou dor. O terceiro par a preocupao em receber elogios dos
outros e evitar o menosprezo, o abuso e o ridculo. As ltimas duas preocupaes
relacionam-se a obter estima, afeto, aceitao e respeito de outros, e evitar o
desprezo, antipatia, rejeio e indiferena. Essas oito preocupaes podem
ocupar cada momento de nossas vidas em viglia e, portanto, vale a pena avalilas com cuidado para ver se justificam uma dedicao to determinada.
O neurocientista Richard Davidson, meu amigo e colega que iniciou a
conduo rigorosa de estudos cientficos sobre os efeitos da meditao no bemestar emocional, usa o termo esteira hednica para caracterizar uma vida
centrada nas oito preocupaes mundanas. A busca pela felicidade e pela sade
mental est recebendo mais e mais ateno dos cientistas cognitivos que esto
perguntando: o que de fato leva felicidade? Um dos livros mais notveis
recentemente publicados sobre esse assunto The High Price of Materialism, do
psiclogo Tim Kasser. Com respeito primeira das oito preocupaes mundanas,
a sua pesquisa concluiu que aqueles que valorizam fortemente a busca por posses
e riqueza relatam um menor bem-estar psicolgico do que aqueles que se
preocupam menos com esses objetivos. Essa fixao em aquisies materiais
no apenas prejudica a nossa prpria felicidade, como tambm distorce a
maneira pela qual nos envolvemos com os outros. Kasser comenta a esse
respeito: Quando as pessoas colocam forte nfase em consumir e comprar,
ganhar e gastar, pensar sobre o valor monetrio das coisas e pensar em coisas
durante grande parte do tempo, tambm se tornam mais propensas a tratar
pessoas como coisas.[30] A evidncia cientfica que ele reuniu sugere que, alm
de ter dinheiro suficiente para atender s necessidades bsicas de alimentao,
moradia e coisas desse tipo, conseguir riquezas, posses e status no resulta no
aumento de sua felicidade ou bem-estar a longo prazo. At mesmo a busca bemsucedida por ideais materialistas tipicamente acaba se tornando vazia e
insatisfatria. Ele resume esse ponto: Pessoas muito focadas em valores
materialistas tm menos bem-estar pessoal e sade psicolgica do que aquelas

que acreditam que a busca materialista relativamente sem importncia. Essas


relaes foram documentadas a partir de amostras de pessoas que variavam de
ricas a pobres, de adolescentes a idosas, de australianas a sul-coreanas.
No budismo, traada uma clara distino entre uma vida devotada s
verdadeiras causas da felicidade e uma vida devotada aos smbolos externos da
felicidade, ou seja, s oito preocupaes mundanas. Uma vida plena de
significado aquela orientada em torno da felicidade genuna, e isso
necessariamente implica a busca pela virtude e pelo entendimento. Navegar em
nosso caminho pela vida focando a constelao das oito preocupaes mundanas
uma estratgia sem sentido e, se for analisada minuciosamente, mostra-se
tambm ineficaz para encontrarmos o que h tanto tempo temos buscado: a
felicidade. Recordo-me do comovente comentrio de Shantideva: Aqueles que
desejam escapar do sofrimento se lanam rumo ao sofrimento. Mesmo com o
desejo de felicidade, movidos pela deluso, eles destroem a sua prpria
felicidade como se fosse uma inimiga.[31]
Nossa sociedade moderna, orientada pelo consumo, constantemente
bombardeada pelo mercado da propaganda, da mdia e de outras instituies
com a mensagem de que, se nos esforarmos um pouco mais, ganharmos mais e
gastarmos mais, encontraremos a satisfao que buscamos. Precisamos apenas
ser mais eficazes em alcanar as nossas metas materialistas, e ento esse
indescritvel prmio da felicidade ser nosso. Naturalmente, essas mesmas
pessoas que promovem esse ideal esto fascinadas por ele, caso contrrio nunca
tentariam deludir outros a abra-lo. De acordo com os achados de Kasser, essas
tentativas de hipnose global em massa demonstram-se eficazes:
A porcentagem de estudantes que acreditam ser muito
importante ou essencial desenvolver uma filosofia de vida
significativa diminuiu de mais de 80% no final dos anos 1960
para cerca de 40% no final dos anos 1990. Ao mesmo tempo, a
porcentagem que acredita ser muito importante ou essencial
estar muito bem financeiramente subiu de pouco mais de 40%
para mais de 70%. A mquina de fabricar valores da sociedade
eficaz.[32]
Se ponderarmos sobre os fins que temos buscado atingir, as formas como
temos gastado a nossa energia ao longo de toda a nossa vida, perceberemos que
temos direcionado um esforo enorme busca destas oito preocupaes
mundanas. Mas essas buscas no estariam apenas patinando na superfcie da
felicidade? No existiria um tipo de felicidade que tem a ver com a nossa prpria
forma de estarmos presentes no mundo? Se nossa autoestima muito baixa,
mesmo que estejamos cercados por coisas bonitas e pessoas boas, ser muito
difcil sermos felizes. Ah, mas perceba tambm que h pessoas com autoestima

extraordinariamente alta que no so felizes. E que, quanto a todas as outras


fontes de felicidade mundana que mencionei, h pessoas que possuem algumas
ou todas elas e ainda assim no alcanam a felicidade genuna. Se
inspecionarmos cuidadosamente esses meios de buscar a felicidade, veremos
que nenhum deles necessrio nem suficiente. Ao longo dos anos, conheci
muitas pessoas que no tm segurana financeira, que tm pouca sade e no
possuem nenhuma dessas outras armadilhas da boa vida, e que ainda assim
encontraram felicidade e significado em suas vidas.
Se todas essas coisas mundanas no so necessrias nem suficientes para
alcanar a felicidade, o que resta ento? O que seria necessrio e suficiente? A
resposta budista o Darma, que pode ser definido como uma forma de ver a
realidade e de levar a vida que resulta em felicidade genuna. Isso significa que
nenhuma preocupao mundana vale a pena e que tudo o que no seja cultivar a
sabedoria e a compaixo irrelevante? Se estivermos buscando a felicidade de
formas que no estejam relacionadas virtude, felicidade genuna e
compreenso, eu responderia que sim. Mesmo quando nos voltamos prtica
espiritual, isso tambm pode ser usado na busca por preocupaes mundanas.
Podemos meditar, por exemplo, simplesmente pela sensao imediata de
relaxamento, paz interior e felicidade que a meditao pode trazer. Dessa forma,
a meditao serve como pouco mais do que um substituto para a coleo de
drogas que a indstria farmacutica criou para alterar quimicamente o crebro.
Tambm podemos nos colocar a servio dos outros para receber elogios, amor e
respeito, o que significa que estamos buscando satisfazer preocupaes
mundanas com um fino verniz de Darma. Durante a primavera e o vero de
1980, eu morava sozinho nas montanhas acima de Dharamsala, ndia, prximo a
uma pequena comunidade de iogues tibetanos. Foi quando conheci Gen
Lamrimpa, que havia meditado em solido por cerca de 20 anos na poca. Ele
me disse que mesmo reclusos experientes podem cair na armadilha de tentar
impressionar seus benfeitores mostrando o quanto so austeros e puros como
meditadores. Esse desejo de conquistar a admirao dos outros, ele disse, uma
das preocupaes mundanas mais persistentes.
Alguns lamas tibetanos chegam ao ponto de declarar que, se algum aspecto
de sua prtica espiritual for maculado por preocupaes mundanas, voc est
perdendo seu tempo. Mas importante no se sentir oprimido por esse ideal. Um
amigo meu, ao ouvir recentemente essa declarao, me telefonou e disse que
estava se sentindo arrasado: Sinto que toda a minha prtica espiritual no vale
nada, porque eu ainda gosto de cinema, eu ainda gosto de sair com mulheres e eu
ainda gosto de muitos prazeres mundanos. Mas, ento, ele levou essas questes
ao seu lama e a gentil resposta foi: Mais devagar, mais devagar.
Para que servem essas coisas mundanas? Elas servem para apoiar a prtica
espiritual, atendendo s nossas necessidades e nos oferecendo os prazeres simples

da vida. Ns nos desviamos apenas quando as tomamos como fins em si


mesmas. Precisamos ter cuidado, porque quando a vida est indo muito bem,
quando estamos prosperando e a vida est tranquila, a prtica espiritual pode
facilmente parecer um luxo e no uma necessidade. Como observou o filsofo
Alfred North Whitehead: A religio tende a degenerar-se em uma frmula
respeitvel para embelezar uma vida confortvel.[33] Dedicar-se prtica
espiritual, ao prprio sentido da vida, pode parecer um luxo que tentamos inserir
em meio a uma vida muito ocupada e, em geral, agradvel.
Os budistas tm um antdoto para a obsesso com preocupaes mundanas e
com os slogans fascinantes da nossa sociedade materialista: esteja satisfeito com
aquilo que adequado. Mas como determinamos isso? O que adequado em
termos de posses materiais? Quanta diverso suficiente? Quanto luxo? A
resposta surge da prpria natureza da prtica espiritual, da busca pela iluminao:
ela a diretriz para os nossos desejos. Meditando sobre o que desejamos acima
de tudo, sobre o que de suma importncia, podemos descobrir o que
adequado e o que apenas efmero.
Cultivar a bondade amorosa tem tudo a ver com a busca pela iluminao. E
na prtica budista iniciamos com a bondade amorosa por ns mesmos. Essa
uma prtica muito profunda que requer uma espcie de busca por uma viso:
qual a sua viso de felicidade? O que a felicidade genuna, que produz uma
boa vida e tambm a possibilidade de se morrer bem de se ter uma boa
morte? E, se h a continuidade de uma conscincia individual alm da nossa
vida presente, o que isso implica? Qual a sua viso de felicidade a longo prazo?
A viso do Dalai Lama de que a bondade amorosa e a compaixo so inatas e
no algo que adquirimos por meio de um bom treinamento ou por uma boa
educao. Elas so intrnsecas nossa prpria identidade, natureza da prpria
conscincia. No entanto, essas qualidades inatas podem ser e frequentemente so
silenciadas ou obscurecidas. Aceitando essa premissa, voc pode recorrer a elas
em tempos de dificuldade, como se tomasse refgio em amigos de confiana.

PRTICA
A nossa primeira sesso de meditao foi uma busca por uma viso pessoal,
colocando a questo: onde reside a minha felicidade? Agora iremos nos estender
um pouco mais. Como preparao, estabelea seu corpo e sua mente em um
estado de relaxamento, quietude e clareza, e acompanhe contando 21
respiraes, mantendo seus olhos parcialmente abertos.
Mais uma vez, simbolicamente imagine a pureza de sua prpria conscincia
prstina, a sua prpria natureza de buda, como uma esfera de luz purificadora e

radiante com o dimetro de cerca de meio centmetro no centro do seu peito.


Imagine que essa seja uma luz de amor incondicional e ilimitado e de felicidade.
A cada inspirao, imagine atrair essa luz ao seu corao como se estivesse
bombeando gua de um poo. E, a cada expirao, imagine essa luz permeando
todos os aspectos do seu ser, cada clula do seu corpo.
Agora, no espao sua frente, traga mente, o mais nitidamente que puder,
uma pessoa de quem gosta muito, na qual muito fcil encontrar qualidades
adorveis. Relembre-se das qualidades maravilhosas dessa pessoa, que so
demonstradas dia aps dia, repetidas vezes. Imagine vividamente a pessoa que
exibe essa bondade.
Agora, traga os anseios dessa pessoa mente e envolva-se com empatia. O
que essa pessoa espera da vida? Qual a viso de felicidade dessa pessoa? E, da
mesma forma que deseja a sua prpria felicidade, inclua essa pessoa na esfera
de sua bondade amorosa com a aspirao: Que voc possa encontrar a
satisfao que busca. Que voc possa encontrar a felicidade e as fontes de
felicidade. E, a cada expirao, imagine uma luz emanando e fluindo de seu
corao uma luz de generosidade, uma luz de bondade amorosa. A cada
respirao, imagine os mais preciosos desejos dessa pessoa sendo realizados.
Imagine essa pessoa ou uma comunidade de pessoas assim encontrando a
felicidade que buscam.
Agora, traga mente de forma ntida uma outra pessoa que voc conhea
bem, mas por quem no tenha nenhum apego ou averso em especial, nenhuma
sensao especial de proximidade ou distanciamento. Se essa pessoa se mudasse
para longe, teria pouco impacto na sua vida ou nos seus pensamentos. Voc
poderia at aceitar a morte dessa pessoa com equanimidade. Seria apenas uma
pequena agitao em sua vida, nada mais. Traga essa pessoa mente com
nitidez. Como fcil ver outros, especialmente aqueles a quem somos
indiferentes, como meras superfcies, cifras, coisas. Mas, agora, imagine-se
sendo essa pessoa. Imagine os medos e as expectativas dessa pessoa, a vida dessa
pessoa, com toda a textura, com todas as camadas, toda a riqueza e diversidade
os anseios to apaixonados e os medos to pungentes , imagine esses medos e
expectativas como os da sua prpria vida e da vida de seus amigos mais
prximos. Reconhea a profunda semelhana entre si mesmo e essa pessoa. A
cada expirao, envie a luz de bondade amorosa e o sincero desejo: Que voc
possa, da mesma forma que eu e os meus amigos mais prximos e amados,
encontrar a felicidade que busca. Que voc possa acessar as prprias fontes da
felicidade. E, a cada expirao, conforme a luz do seu corao envolve e
preenche essa pessoa, imagine-a encontrando a felicidade e a satisfao que
busca.
A seguir, traga mente uma pessoa que o prejudicou ou que at mesmo
sentiu satisfao com o seu infortnio. Ao mesmo tempo, compreenda que todas

essas atitudes e comportamentos nocivos, motivados por aflies mentais como a


maldade, originam-se fundamentalmente da ignorncia e da deluso. Veja se
capaz de incluir tambm essa pessoa no campo de sua bondade amorosa,
desejando a cada expirao: Que voc possa se livrar dessas fontes de dor e
sofrimento. Que voc tambm possa, assim como eu, ficar bem e ser feliz. Que
voc possa descobrir por si mesmo as fontes da felicidade genuna.
Agora, expanda esse campo de luz do seu corpo e do seu corao, expanda-o
igualmente em todas as direes, incluindo tudo e todos. A cada expirao, envie
luz de bondade amorosa, com a seguinte aspirao: Que todos os seres possam,
assim como eu, encontrar a felicidade e as fontes da felicidade. E com sua
viso do Darma imagine que seja assim. Por fim, libere a imaginao, solte
todos os objetos da mente, com a sensao de completa despreocupao, de
profundo relaxamento. Deixe sua conscincia repousar, estabelecida em sua
prpria natureza.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


A nossa cultura bastante orientada ao: V e faa alguma coisa! Essa
uma sociedade que valoriza a eficincia, a velocidade e a produtividade, com
referncias constantes ao valor em dinheiro das coisas e at mesmo ao valor
financeiro das pessoas. Embora muito possa ser dito sobre o pragmatismo e a
eficincia, uma outra tradio que persiste at hoje o budismo sugere que o
melhor que voc tem a ofertar ao mundo voc mesmo, como uma pessoa que
corporifica a bondade amorosa e expressa um corao aberto na vida cotidiana.
Milarepa, um dos maiores contemplativos e santos do Tibete, passou a maior
parte de sua vida como um iogue vivendo nos Himalaias em uma simplicidade
radical, sem possuir nenhuma das armadilhas mundanas da felicidade: ele
simplesmente encontrou a felicidade em si mesma. Certo dia, Milarepa estava
em sua caverna, cultivando a bondade amorosa em meditao. Buscando-a nas
profundezas de seu ser, ele criou um campo de bondade amorosa ao seu redor.
Enquanto meditava silenciosamente, prximo dali, um caador rastreava um
cervo e seu co o perseguia. O cervo, fugindo para salvar a sua vida, j quase
sem foras, avistou Milarepa, correu at ele e tomou refgio em sua presena
bondosa, desmaiando aos ps do iogue.
O co, provavelmente um daqueles mastins tibetanos selvagens, correu at a
caverna atrs do cervo. Mas, ao se aproximar de Milarepa, diminuiu a
velocidade e se deitou calmamente, prximo ao cervo. Ento, chegou o caador.
Quando ele entrou e viu o que esse homem santo, Milarepa, havia feito
arruinado uma caa perfeita ficou enfurecido. Puxando uma flecha de sua

aljava, atirou no homem que havia estragado a sua caada, mas a flecha
misteriosamente se desviou. Aproximando-se para mirar melhor, lanou uma
segunda flecha, mas ela tambm errou o alvo. O caador ficou atnito. Por que
as suas flechas no atingiam aquele homem? Por fim, ele tambm se aproximou
e o seu furor cedeu. Ele experienciou a bondade amorosa do outro e, assim,
iniciou a sua prtica no Darma. Como declarou o Buda: A animosidade nunca
debelada com animosidade. A animosidade debelada apenas pela ausncia de
animosidade. Essa uma verdade antiga.[34] Isso pode parecer uma fbula,
mas eu conheci pessoas que eram capazes de transformar a vida dos outros com
o seu amor. Talvez voc tambm conhea pessoas assim. uma qualidade que
ns tambm podemos cultivar e no h ddiva maior que possamos oferecer ao
mundo.
Mas como determinar o que a genuna bondade amorosa em oposio a
meros fac-smiles ou falsificaes? Quer voc chame de bondade amorosa ou
de amor, aquele que for verdadeiro sempre surgir na relao entre seres,
sujeito-sujeito. Envolve o engajamento com a realidade subjetiva da outra
pessoa com suas alegrias e tristezas, esperanas e medos, semelhantes aos seus
e ento a aspirao: Que voc possa, assim como eu, ser feliz.
Contrariamente, a aflio mental do apego, conforme definido no budismo,
implica uma relao sujeito-objeto que o existencialista judeu Martin Buber
chamou de relao eu-isso. No budismo, apego tambm implica ver o outro
ser senciente como um meio de obter a sua prpria gratificao. Permita-me
definir mais precisamente: apego uma atrao por um objeto em que as
qualidades desejveis so conceitualmente sobrepostas ou exageradas, enquanto
as qualidades indesejveis so removidas. O apego pode ter vrias
manifestaes, incluindo o anseio, a obsesso, o vcio ou o desejo autocentrado.
importante reconhecer que a noo budista de apego difere da forma
como o termo usado na psicologia moderna, onde frequentemente tem
atributos positivos, como no sentido da conexo exemplificada pela relao
prxima e carinhosa entre pais e filhos. No contexto budista, o apego uma
imitao da bondade amorosa. Muitas vezes, assume a aparncia da bondade
amorosa e ir imitar o amor, ou se apresentar como se fosse real. Muitas vezes,
autodenomina-se amor e ir imit-lo. E podemos deludir a ns mesmos e aos
outros pensando que amor, quando na verdade est contaminado por uma
aflio mental: o nosso apego. Contrariamente, o amor genuno ou a bondade
amorosa explora a fonte da prpria felicidade.
Por dominar a mente, o apego um enfraquecimento radical do indivduo
que o experimenta. Se estamos sentindo apego por outra pessoa como um objeto,
estamos sobrepondo ou exagerando qualidades atraentes, e ento a desejando e
ansiando por ela, enquanto removemos as suas outras qualidades. Esse um
processo de desumanizao. Transformamos a pessoa em um objeto desejvel,

como muitas vezes acontece em relacionamentos romnticos. Quando fazemos


isso, colocamos nossa felicidade, nosso bem-estar, a realizao das nossas
esperanas na dependncia de algo sobre o qual temos pouco ou nenhum
controle. Isso nos leva ansiedade e ao medo, e nos prepara para a hostilidade, a
agresso, o cime e possivelmente a violncia mais sofrimento para todos os
envolvidos.
A distino crucial a ser feita entre a bondade amorosa uma qualidade inata
e profundamente benfica da nossa prpria conscincia e o apego, aflio
mental que obscurece a natureza mais profunda do nosso ser, de que a primeira
se baseia na realidade e o ltimo tem origem na deluso. comum observarmos
como o apego se transforma facilmente em raiva e agresso. Com a bondade
amorosa isso no acontece. O amor no se transforma facilmente em dio.
O oposto da bondade amorosa o dio. Enquanto a bondade amorosa
definida como uma aspirao sincera de que o outro experimente a felicidade e
as causas da felicidade, o dio no est engajado com a felicidade de ningum,
nem mesmo com a nossa. perturbador at mesmo pensar que s vezes temos
essa experincia. ainda mais triste ver o dio dominando a mente e perceber
que teramos prazer em ver o outro passando por humilhao, perda, sofrimento
e desgraa. O dio diametralmente oposto bondade amorosa, seu exato
oposto e de fato um obstculo felicidade genuna que buscamos.
medida que cultiva a bondade amorosa, h algum sinal indicativo do seu
sucesso a encoraj-lo? O sinal mais confivel observar se as suas tendncias
hostilidade e ao dio esto diminuindo, mesmo quando maltratado. fcil estar
livre do dio quando as pessoas o tratam bem. Mas, quando for tratado com
descaso, fingimento, ou mesmo maldade quando voc for alvo de injustia,
mesquinhez, egosmo, malevolncia, cime e assim por diante , se puder
responder sem dio, esse um sinal de que seu corao est florescendo com
bondade amorosa.
Quando cultivar qualquer uma das quatro qualidades incomensurveis,
incluindo a bondade amorosa, o desafio faz-lo de maneira equnime,
deixando-a fluir aos outros como gua sobre uma superfcie lisa. A nossa
bondade amorosa no flui apenas na direo de pessoas agradveis, pulando
aquelas cujo comportamento desagradvel. fcil sentir bondade amorosa por
amigos e parentes prximos. Mas o que fazer quando nos deparamos com
pessoas que demonstram um comportamento profundamente indigno de amor?
Por que no comearmos por ns mesmos? Podemos sentir amor por ns
mesmos quando nos comportamos mal? Nesses momentos, no hora para um
otimismo pouco realista ou para mero realismo, mas para a viso do Darma.
Voc capaz de amar a si mesmo quando est agindo de forma indigna de ser
amado, agindo a partir da dor, da confuso e, ao mesmo tempo, buscando ser
feliz, desejando se livrar do sofrimento? Voc capaz de amar a si mesmo

nessas situaes? Por que no aceitar essa possibilidade como hiptese de


trabalho e ver o que acontece? As nossas vidas se tornam terrivelmente limitadas
quando assumimos o contrrio.
O cultivo da bondade amorosa tem xito quando faz a animosidade ceder e
falha quando produz apego aflitivo. Comeamos aprendendo a amar a ns
mesmos, com a clara conscincia de nossas limitaes e imperfeies, e ao
faz-lo liberamos a averso e a baixa autoestima. Essa animosidade contra ns
mesmos, com a qual nunca somos capazes de nos perdoar por nossas falhas,
abandonada. No entanto, no substituda pelo apego, por um senso inflado de
autoestima e autoimportncia. Passamos a nos relacionar com ns mesmos em
uma aceitao gentil e sem julgamento, e expandimos esse corao amoroso a
todos nossa volta, que, como ns, desejam encontrar a felicidade.

9 Compaixo

A CO M PA I X O A RA I Z D O BU D A D A RM A . Foi a fora
motivadora que fez com que o Buda se levantasse de sua meditao solitria sob
a rvore bodhi e que o inspirou a conduzir outros a um estado duradouro de
felicidade genuna. A compaixo incomensurvel a aspirao: Que todos os
seres possam ser livres do sofrimento e de suas causas. Com esse cultivo da
compaixo que chamada de karuna em snscrito , abordamos a segunda das
quatro qualidades incomensurveis. No mudra budista, ou gesto manual, que
representa a compaixo e simboliza o equilbrio meditativo, a mo esquerda com
a palma virada para cima, simbolizando a sabedoria, apoia a mo direita,
tambm com a palma virada para cima, representando a compaixo. As pontas
dos polegares das duas mos se unem, produzindo a unio entre sabedoria e
compaixo. Nesse mudra do equilbrio meditativo, a compaixo no apenas um
sentimento, uma sensao amigvel: ela a expresso natural da sabedoria.

Eu experienciei esse tipo de compaixo de meus mestres budistas muitas


vezes ao longo dos anos. Quando, aos 24 anos de idade, senti vontade de me
retirar do treinamento filosfico que estava recebendo em um monastrio budista
tibetano tradicional em Dharamsala, o Dalai Lama gentilmente me encorajou a
seguir o meu desejo de me dedicar inteiramente meditao. Alguns anos mais
tarde, quando senti que a minha vida como monge budista no Ocidente seria
insustentvel, ele gentilmente me permitiu devolver os votos monsticos, com a
opo de me tornar um monge em outro momento da minha vida, caso fizesse
essa escolha. Nessas dcadas de prtica espiritual, constatei repetidas vezes que
os meus professores eram consistentemente compreensivos, imparciais e
compassivos ao me guiarem no caminho da felicidade genuna. A bondade
inabalvel, bem como a sabedoria dos ensinamentos dos meus mestres, foi para
mim uma fonte constante de inspirao e confiana nesse caminho.

PRTICA
Antes de meditar, traga mente a sua mais elevada motivao, suas metas e
aspiraes mais significativas. Estabelea o seu corpo em uma postura de
conforto, quietude e vigilncia. Lembre-se da sequncia. Para essa sesso, com
durao de um ghatika, deixe o seu corpo imvel. Voc trar imagens mente,
como reflexos em uma poa de gua. Os reflexos so claros somente quando a
gua est calma. Faa trs respiraes exuberantes, profundas e completas,
respirando pelas narinas, primeiro no abdmen, em seguida expandindo o
diafragma e, finalmente, no trax. Expire pelo nariz, de forma lenta, profunda e
completa, por trs vezes.
Ento, permita que essa mente que foi acionada de forma to dura durante o
dia descanse e se estabelea novamente em um modo de simples conscincia.
Perceba as sensaes tteis em todo o seu corpo. Se os pensamentos vierem,
deixe apenas que flutuem sem aderir, sem fixar-se a eles. Libere-os como se
estivesse aliviado, pensando: Eu no preciso embarcar nesse trem. Esteja
consciente de sua respirao. No incio da prxima inspirao, conte
mentalmente de forma breve: Um. Ento, em um estado de conscincia
simples, continue a prestar ateno na respirao, contando at 21.
Agora, vamos colocar em cena novamente o poder da imaginao. Passe
desse modo de simples conscincia, para longe da mente quieta, e acione os
poderes do pensamento criativo. Comearemos pelo corpo. Se preferir, afirme a
si mesmo como hiptese de trabalho, se no for algo que voc tenha
experimentado de forma direta a pureza essencial da sua conscincia. Essa
dimenso da conscincia livre de estruturas conceituais, primordialmente pura

e tem uma natureza de pura luminosidade. Imagine-a agora, em uma forma


simblica, como uma esfera de luz branca radiante e inesgotvel em seu
corao, no centro do peito. No pensamento indiano, essa rea no no rgo do
corao, mas no centro de seu peito chamada de chacra cardaco.
Imagine que essa seja uma luz de compaixo, bondade e alegria completa
e primordialmente pura. Imagine raios de luz branca uma luz branca
pacificadora, relaxante e purificadora emanando dessa esfera em seu corao
e saturando todo o seu corpo, por todos os poros de sua pele, dissipando todas as
aflies e todos os desequilbrios fsicos e mentais.
Agora amplie a imaginao e traga mente, to nitidamente quanto possvel,
um outro ser pode ser uma ou mais pessoas, ou um animal ou algum outro ser
senciente , algum com quem voc se importa profundamente. Direcione a sua
ateno para algum que esteja passando por um momento muito difcil. Pode
ser devido a aflies fsicas ou doenas, a uma situao de conflito, depresso,
ansiedade ou dor. Traga essa pessoa mente.
Agora, imagine que voc seja essa pessoa. Imagine-se passando pelos
mesmos problemas. Imagine-se assumindo o fardo dessa pessoa. Retorne a si
mesmo e, em seguida, direcione mais uma vez a sua ateno a essa pessoa
amada. Como o Buda aconselhou, observe essa pessoa internamente,
externamente e de ambas as perspectivas, interna e externamente. Ento, de
maneira sincera, natural e sem esforo, traga mente a seguinte aspirao:
Que voc se livre desse sofrimento e das verdadeiras fontes desse sofrimento.
Permita que a compaixo se intensifique, partindo do seu corao. Ento, quando
voc inspirar, imagine-se tomando para si os problemas, a doena, a turbulncia
mental, sejam quais forem os problemas dessa pessoa, sob a forma simblica de
uma nuvem escura. Imagine que a cada inspirao voc recolha essa nuvem
como um sifo. Aspire-a e conduza-a at uma esfera de luz incandescente em
seu corao, e deixe que essa escurido seja extinta, sem deixar nenhum
vestgio. Imagine a nuvem negra se dissipando a cada inspirao e tudo se
tornando mais claro. Imagine o fardo dessa pessoa se tornando mais leve a
tristeza, a doena, seja o que for. Imagine o alvio dessa pessoa.
A cada inspirao, permita que surja essa aspirao: Assim como eu desejo
me livrar do sofrimento e das fontes de sofrimento, que voc possa tambm se
livrar dessa dor, dessa aflio e de suas causas. Imagine essa pessoa
experimentando essa transformao, sentindo que o fardo se torna mais leve e
respirando com mais facilidade. E, se houver medo, imagine o medo sendo
abrandado.
Imagine, ento, que a nuvem desaparea totalmente e a escurido se dissipe,
no que ela mude de lugar, mas que seja absorvida e extinta. Da mesma forma
que, quando voc acende a luz em um quarto escuro, a escurido no se
transfere a lugar algum, ela simplesmente desaparece. Imagine que essa pessoa

se livre da aflio e que experimente uma sensao de total conforto e profundo


alvio.
Agora, amplie o campo da sua conscincia, reconhecendo que, da mesma
forma que essa pessoa querida para voc, o mundo inteiro est repleto de
pessoas que so amadas por outras. Reconhea que todos os seres so dignos de
amor. Com essa viso ampla e abrangente, traga mente as incontveis pessoas
que, como voc, esto cercadas de problemas e ansiedades, medos e sofrimentos
fsicos. A cada inspirao, expanda a sua conscincia, sem limites, sem excluir
ningum, para todas as direes, para cima e para baixo. Deixe que surja a
aspirao: Que cada ser neste mundo, assim como eu, possa se livrar do
sofrimento e das fontes de sofrimento. A cada inspirao, remova a angstia e o
sofrimento, a dor e o medo de cada ser senciente. Traga toda a dor para essa luz
infinita, essa fonte inesgotvel de luz que pode sorver o sofrimento do mundo e
no se enfraquecer. Permita que essa escurido seja extinta na luz do seu prprio
corao. A natureza da compaixo simplesmente essa: o desejo sincero de que
os outros possam se livrar do sofrimento e das fontes de sofrimento.
Agora, por alguns instantes, desprenda-se da sua imaginao, dos
pensamentos e aspiraes de liberao solte todos os objetos da mente.
Descanse na simples natureza da sua prpria conscincia. Fique vontade,
tranquilize o corao. Descanse sua mente em sua prpria natureza prstina e
luminosa. Esteja simplesmente consciente de estar consciente.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


Em seu livro The Art of Happiness, o Dalai Lama define compaixo como
um estado de mente que no violento, que no fere e no agride. uma
atitude mental baseada no desejo de que os outros se livrem de seu sofrimento, e
est associada a uma sensao de compromisso, responsabilidade e respeito para
com o outro.[35] Ela surge a partir de um sentimento chamado em tibetano de
tsewa, para o qual a traduo mais aproximada seria importar-se com
sinceridade e que o Dalai Lama considera a mais fundamental das emoes
humanas. Quando a compaixo inunda os nossos coraes, no podemos suportar
o sofrimento dos outros porque sentimos como se fosse o nosso prprio
sofrimento. Aquilo a que estamos atentos a nossa realidade e, se realmente
estamos atentos realidade do sofrimento dos outros, a atitude compassiva de
cuidar surge espontaneamente. Pense em qual seria a sua resposta imediata se
visse algum sendo carregado rio abaixo, sem conseguir se segurar, clamando
por ajuda. O seu desejo sincero de ajudar essa pessoa no adquirido por meio
de aprendizagem. inato. o seu mais profundo impulso, o de cuidar.

A tradio budista reconhece trs nveis de compaixo:


1. compaixo por aqueles que experimentam sofrimento e dor;
2. compaixo por aqueles presos em preocupaes mundanas na busca pela
felicidade;
3. compaixo por aqueles fixados a uma falsa sensao de eu e meu.
Um ponto que todos ns temos em comum a experincia de dor e
sofrimento, e reconhecer isso pode nos aproximar, nos levar a preocuparmo-nos
com as dificuldades dos outros como fazemos com as nossas prprias. O Dalai
Lama comenta:
Da mesma forma que a dor fsica nos une em torno da noo de
termos um corpo, podemos conceber que a experincia geral do
sofrimento funciona como uma fora unificadora que nos conecta
uns com os outros. Talvez seja esse o sentido ltimo por trs do
nosso sofrimento. O nosso sofrimento o elemento mais bsico
que compartilhamos com os outros, o fator que nos une a todas as
criaturas vivas.[36]
A noo de que h algo que unifica todos os seres um tema presente em
todas as grandes tradies espirituais do mundo. Shantideva expressa isso por
meio de uma metfora de um corpo composto por todos os seres:
Embora tenha muitas divises, como braos e assim por diante, o
corpo protegido como um todo. Da mesma forma, os diferentes
seres, com as suas alegrias e tristezas, so todos iguais, como eu
prprio, em seus anseios de felicidade.[37]
No entanto, muito difcil abrir o nosso corao para o sofrimento dos outros,
pois podemos facilmente nos sentir oprimidos e desamparados, especialmente
com a exposio ao sofrimento do mundo proporcionada pela mdia. Mas
Shantideva lutou com esse mesmo problema h mais de um milnio e chegou a
essa concluso:
Devo eliminar o sofrimento dos outros, assim como o meu
prprio, porque sofrimento. Eu deveria cuidar dos outros
porque so seres sencientes, assim como eu.[38]
Como no existe um dono dos sofrimentos, no h distines
entre todos eles. Eles devem ser dissipados, porque esto
causando dor. Nesse caso, para que servem as restries?[39]
Um segundo nvel de compaixo surge com pessoas que podem no estar
sofrendo neste momento, mas que, por deluso, esto levando suas vidas de uma
forma que no poder resultar em verdadeira felicidade, que s levar a mais
insatisfao, tristeza e medo. Essas so as pessoas que ainda acreditam que a

felicidade pode ser encontrada ao alcanarem seus objetivos materialistas de


obter mais riqueza, poder, luxo, elogios e respeito dos outros. Com bastante
frequncia, essas pessoas no expressam nenhum escrpulo, envolvendo-se em
atos sem corao, egostas e desonestos para alcanarem o sucesso que
almejam. Em vez de responder a essas pessoas (incluindo, s vezes, ns
mesmos) com desprezo, afastamento ou dio, a resposta mais realista a
compaixo: que elas possam se livrar do sofrimento e das causas do sofrimento.
O terceiro e mais profundo nvel de compaixo compreende a realidade de
todos os seres no iluminados, falsamente fixados a uma noo deludida de eu
e meu. Assim, lutamos para adquirir todos os tipos de bens materiais, estticos,
intelectuais e at mesmo bens espirituais para ns mesmos, neste mundo do
salve-se quem puder e do cada um por si. Buscamos a nossa prpria
felicidade como algo independente do bem-estar de todos os outros. Mas, se no
existimos independentemente dos outros, como poderia a nossa felicidade ser
independente? Quando nos atentamos realidade de outros seres como se eles
fossem ns mesmos, estabelecemos uma relao eu-voc, muito diferente da
relao manipuladora e exploradora eu-isso movida por aflies mentais.
Alm disso, na terminologia de Martin Buber, podemos evoluir para uma relao
de eu-tu, na qual a distino entre o eu e o outro transcendida. nesse
ponto que a compaixo est totalmente unida com a sabedoria e que a nossa falsa
sensao de isolamento superada.
A prtica espiritual baseada exclusivamente na sabedoria ou na compaixo
como um pssaro que esvoaa em crculos com apenas uma asa. Com as quatro
aplicaes da ateno plena, cultivamos a sabedoria, e com as quatro qualidades
incomensurveis cultivamos a compaixo, as duas asas que levam
iluminao. Conheci muitas pessoas que prestam servios aos outros e muitas
delas, incluindo profissionais de sade, professores, ativistas ambientais e
assistentes sociais, se sentem devastadas pelo sofrimento e pelo infortnio que
encontram. Nessa situao, como podemos nos importar profundamente e como
podemos continuar a servir sem nos consumirmos? Quando fiz essa pergunta, o
Dalai Lama respondeu com uma palavra: sabedoria. A sabedoria o que nos
permite voltar fonte, suportar o sofrimento e recuperar o poder do esprito, a
fora da mente e fora do corao, chamado de semshuk em tibetano. Uma vida
dedicada ao servio compassivo necessita da fora e do apoio da sabedoria, que
nos permite acessar a profunda fonte de verdadeira felicidade dentro de cada um
de ns. Os tipos de sabedoria e insight aos quais me refiro so aqueles explicados
nas partes dois e quatro deste livro.
s vezes, podemos achar difcil amar nossos semelhantes, homens e
mulheres, porque eles nem sempre agem de maneira amvel. Como fazemos
brotar amor e compaixo genunos pelas pessoas que se comportam mal? Temos
a sensao de estarmos batendo contra um muro. Mas esse obstculo no est

localizado nas atitudes ou conduta das pessoas, mas em nosso corao e em nossa
mente. No somos capazes de ver os outros com compaixo porque nossa mente
est sob a influncia dos kleshas, as aflies mentais venenosas. Uma premissa
fundamental do budismo que o estado natural de nossa mente de pura
luminosidade. Porm, quando as aflies infectam a mente, ela se torna confusa
ou distorcida. O gatilho pode ser a lembrana de ter sido maltratado por algum.
Ou pode ser a ganncia ou o desejo. Muitas vezes, o medo desempenha algum
papel. Esses so os kleshas. A mente que de forma maldosa inflige sofrimento aos
outros est sempre sob o domnio dos kleshas. Sejamos ousados e vejamos se
somos capazes de cultivar a compaixo por aqueles que esto plantando as
sementes de sofrimento, e no apenas por aqueles que esto colhendo os frutos
do sofrimento.

PRTICA
Comece estabelecendo o corpo e a mente em seus estados naturais, e dirija a
sua ateno para a respirao, contando 21 respiraes a fim de que a mente se
torne funcional. Agora, simbolicamente, afirme a pureza essencial do seu prprio
corao, de sua prpria conscincia: tranquila, no contaminada por aflies
mentais, primordialmente pura, preenchida da alegria que se origina da verdade,
uma alegria enraizada na realidade. Mais uma vez, imagine essa essncia, de
forma simblica, como uma esfera de pura luz branca radiante e brilhante, uma
luz de pureza e de purificao, a luz da compaixo, a luz do perdo. Imagine essa
luz inundando o seu corpo e a sua mente. Imagine-a purificando, dissipando todas
as impurezas do corpo e todas as aflies e as distores da mente, da mesma
forma que a luz dissipa a escurido.
Pense em um indivduo ou grupo de indivduos que esto, neste momento,
sujeitos a aflies mentais, seja deluso, raiva, egosmo, ganncia ou estupidez.
Pense nas pessoas que possam estar empenhadas em agir a partir dessas aflies
mentais, achando que esto fazendo a coisa certa, embora estejam
completamente equivocadas. Em vez disso, esto ativamente prejudicando
aqueles ao seu redor, talvez at tendo prazer em faz-lo, pensando que, de
alguma forma, isso se justifica.
Imagine que voc mesmo seja essa pessoa ou grupo de pessoas. Coloque-se
na pele dessa pessoa e, em seguida, retorne sua. Imagine como estar sujeito
s mesmas aflies mentais que esto na origem desses fluxos de
comportamento prejudicial. Imagine ser uma pessoa que est plantando as
sementes da sua prpria dor e sofrimento na busca pela felicidade.
Agora, volte para o seu prprio corpo e retome o contato com esse outro ser

humano (ou grupo) que, como voc, est procura de felicidade e deseja se
livrar do sofrimento e do medo. Imagine que, a cada inspirao, voc absorva
essa nuvem de deluso, essa nuvem composta de tudo que possa haver de mal,
com todas as aflies que possam estar por trs. A cada inspirao e com o
desejo de que voc possa ser livre, pense: quer voc esteja se sentindo bem ou
angustiado neste momento, que voc possa se livrar da fonte do sofrimento.
Como voc, assim como eu, deseja ser livre, que voc possa ser livre.
A cada inspirao, como fez anteriormente, imagine-se trazendo essa
escurido para o seu corao. A cada inspirao, absorva-a e, ao expirar,
imagine que ela desaparea completamente, que se extinga, sendo consumida
como uma pena em uma fogueira. Imagine as fontes do sofrimento
desaparecendo. Imagine a nuvem sendo dissipada, a cada respirao. E imagine
o alvio dessa pessoa, tendo a sua mente curada, voltando a um estado de
equilbrio sereno, a um estado de tranquilidade e bem-estar.
Agora, expanda o escopo de sua conscincia para incluir cada ser deste
mundo, todos como voc mesmo, desejando a felicidade e liberao do
sofrimento. Pense em como voc muitas vezes errou na busca pela felicidade e
em como fcil se deludir na tentativa de se livrar do sofrimento e do medo.
Imagine a escurido, a ignorncia, a deluso e todas as outras aflies mentais s
quais todos sucumbem. A cada inspirao e com o desejo de que todos possam
ser livres, que todos os seres sencientes possam se livrar do sofrimento e das
fontes de sofrimento, tome para si e elimine essa escurido na insondvel luz da
pureza absoluta da conscincia. Imagine o fardo de todo o mundo sendo aliviado
e imagine todos os seres verdadeiramente livres, no s do sofrimento, mas de
todas as suas causas.
Agora, por um instante, libere o anseio, desprenda-se da imaginao, libere
sua mente e repouse no simples estado de estar consciente que anterior ao
surgimento da mente. Descanse profundamente na natureza de sua prpria
conscincia.
Encerre a meditao. Como voc a iniciou cultivando a motivao mais
significativa possvel, encerre a prtica com essa dedicao. Que qualquer
benefcio que tenha surgido por meio dessa prtica possa ser dedicado
realizao de suas aspiraes mais significativas, para si e para todos aqueles que
o rodeiam.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


Em 1992, estava trabalhando com um grupo de neurocientistas que
colaboravam com iogues tibetanos nas montanhas acima de Dharamsala, no

norte da ndia, estudando a natureza e os efeitos da compaixo. O contemplativo


mais antigo que visitamos foi Geshe Yeshe Thubtop, de 69 anos, que havia
cultivado a compaixo em meditao vivendo em retiro durante os 23 anos
anteriores. Perguntamos a ele: Quando experimenta a compaixo, voc sente
tristeza? Caso sentisse, isso implicaria que, quanto mais profunda a compaixo,
maior seria o sofrimento. E que, se voc experimentasse uma compaixo sem
limites, ela seria acompanhada por um sofrimento sem limites. O iogue
respondeu: Quando voc testemunha uma criana sofrendo, a sua experincia
imediata de tristeza. Mas ento essa emoo substituda pelo anseio: Como
posso ajudar? A criana precisa de comida? Abrigo? O que pode ser feito para
aliviar o sofrimento dessa criana? Ou seja, quando a verdadeira compaixo
surge e est presente, a tristeza desaparece. A tristeza vem com a empatia,
tristeza por sentir o sofrimento e as fontes de sofrimento de outra pessoa. Isso no
compaixo, mas pode ser o catalisador da compaixo. Esse o combustvel
que pode dar origem luz da compaixo.
Sem empatia, no h compaixo. Pode haver alguma aparncia externa de
compaixo, mas pode no ser nada mais do que piedade. A empatia uma
experincia compartilhada de alegrias e tristezas, de felicidade e dor de outras
pessoas. Talvez at mesmo a dualidade do eu e do outro desaparea e voc se
funda com a outra pessoa, sentindo o sofrimento dela como se fosse seu. Esse
sofrimento emptico pode despertar a compaixo. Compaixo exige uma
espcie de coragem, de fora interior. O leo da compaixo despertado em sua
toca pelo sofrimento que vem com a empatia, e avana a passos largos,
majestosamente, com essa aspirao: Que voc possa se livrar do sofrimento e
das fontes de sofrimento.
Mas a compaixo no para por a. Ela mais do que uma emoo ela traz
consigo a questo: E o que eu posso fazer? Em alguns casos, h algo tangvel
que pode ser feito para aliviar o sofrimento de algum. Contudo, nos casos em
que h pouco ou nada que possa fazer a respeito, imediatamente e de forma
prtica, voc pode retornar para a meditao e cultivar a compaixo. Dessa
forma, pode avanar em direo iluminao, o que permitir que se torne cada
vez mais eficaz em suas habilidades para aliviar o sofrimento do mundo,
empregando plenamente os seus recursos internos de sabedoria, compaixo e
energia criativa. Essa a razo de se tornar iluminado. O ponto no poder
andar sobre a gua ou alcanar a clarividncia. Quando voc despertado para
aliviar o sofrimento dos seres, o leo em seu corao sai de sua toca, transcende
a tristeza da empatia e trabalha para aliviar o sofrimento dos outros.
Quais so os impedimentos para a compaixo? Em que ponto comeamos a
decidir que certas pessoas esto excludas da nossa compaixo? Acho que muitos
de ns atingem o limite da compaixo quando veem pessoas submetendo outros
ao sofrimento por maldade, crueldade, egosmo, ganncia, estupidez e assim por

diante. Olhamos para esses perpetradores do sofrimento, para as pessoas que


prejudicam os outros seres de inmeras formas, e sentimos: Sinto muito, mas o
meu limite aqui. Essas pessoas no so dignas de compaixo. Nesse ponto, o
insight crucial. No preciso muito insight para cultivar a compaixo por
crianas que sofrem, por vtimas ou sobreviventes de um desastre. Mas a
sabedoria e o insight so indispensveis para cultivar a compaixo por aqueles
que esto infligindo sofrimento a outros. Se no cultivarmos a compaixo por
esses seres, nossos coraes permanecero limitados pela nossa prpria
ignorncia e deluso.
Isso d um significado mais amplo compaixo. No apenas um
sentimento terno e caloroso. No significa uma mera simpatia. Em nossa
sociedade, geralmente igualamos a compaixo com o sentimento de piedade
pelos outros. Ns lamentamos por vtimas da aids e por aqueles que sofrem por
conta do genocdio, limpeza tnica, terrorismo, pobreza e tantas outras
adversidades. Mas sentir pena de algum no compaixo. Sentir pena apenas
um sentimento triste, sem impulso de ao. A partir da piedade, no passamos
para uma aspirao sincera: Que voc possa se livrar do sofrimento e das fontes
de sofrimento. A simples piedade um pobre fac-smile da compaixo, uma
imitao da compaixo.
Ao cultivarmos a compaixo, um sinal de sucesso ser observar que a nossa
capacidade para a crueldade, que o oposto de compaixo, desaparece. Quando
qualquer inclinao para a crueldade, qualquer desejo de infligir dor, qualquer
ideia de se alegrar com o sofrimento de outras pessoas (pessoas das quais no
gostamos) diminuem, esse um sinal claro de que a compaixo est expandindo.
O passo seguinte sentir genuna compaixo por aqueles que so cruis. E se
formos capazes de aspirar a que os autores de crimes terroristas e de limpeza
tnica se livrem das fontes internas do sofrimento, que os levam a infligir dor aos
outros e a si mesmos? Se formos capazes disso, teremos atingido um nvel mais
profundo de compaixo. Para mim, o caminho mais rpido para cortar as
aflies mentais que sufocam a compaixo perguntar: Por que essa pessoa se
comporta dessa maneira?
Quando compreendemos profundamente que as pessoas se envolvem com o
mal devido sua prpria ignorncia e deluso, abrimos as comportas do perdo.
E ento a compaixo por racistas, terroristas e outros que se dedicam
apaixonadamente a atos de crueldade flui ainda mais poderosamente. Como
afinal poderiam fazer isso se realmente soubessem o que estavam fazendo? Em
vrias ocasies, tive o privilgio de ser intrprete de um monge tibetano chamado
Palden Gy atso, que foi torturado na priso pelos comunistas chineses durante 33
anos. Ele descreveu sua vida extraordinria no livro The Autobiography of a
Tibetan Monk.[40] A partir de suas descries, fica claro que as pessoas
responsveis por tortur-lo achavam que estavam a servio de um bem maior.

No sentiam que estivessem fazendo algo essencialmente mau. No, para eles
havia justificativa: Pode parecer ruim, mas voc no enxerga o cenrio mais
amplo. apenas um daqueles trabalhos duros que algum precisa fazer e este
coube a mim. Aqueles que cometem esse tipo de crueldade no tm
conhecimento das verdadeiras fontes de felicidade e das verdadeiras fontes de
angstia, sofrimento e conflito. Desse desconhecimento, dessa falta de clareza,
da falta de sabedoria, surge a deluso a compreenso equivocada da realidade
e todos os males do mundo se originam a partir da.
Embora no sejamos criminosos tnicos, h momentos em que ferimos
aqueles que nos rodeiam por meio de nossos pensamentos, nossa fala e nosso
comportamento fsico. Muitas vezes fazemos essas coisas a partir da deluso,
catalisada pelo medo medo de perder o nosso sustento, medo de perder o nosso
conforto, medo de perder as coisas que imaginamos nos dar segurana. Sentimos
medo e, a partir da deluso, revidamos. Ningum escolhe a deluso ou a
ignorncia. Ningum escolhe deliberadamente a estupidez ao invs da
inteligncia, a deluso ao invs da sabedoria. Quando algum pergunta voc
gostaria de ser destemido, corajoso e ousado, ou gostaria de ser tmido, cheio de
ansiedade e de medo?, ningum responde o medo me parece muito bom.
No escolhemos essas coisas sucumbimos a elas. Por isso, fundamental
distinguir as aflies mentais daquele que est mentalmente aflito, em vez de vlos como uma coisa s, identificando as pessoas com as suas aflies mentais.
Com empatia e compaixo, podemos ver como um mdico v: aqui est o
paciente, e aqui est a doena. Eles no so idnticos, caso contrrio, os pacientes
nunca poderiam ser curados, apenas poderiam ser colocados em quarentena.
Faa essa distino entre as aflies mentais e as pessoas mentalmente aflitas,
comeando por voc mesmo. Ao abrir mo de nossa tendncia de julgar e
condenar os outros e a ns mesmos por nossas limitaes e defeitos, acessamos a
nossa capacidade inata para a compaixo, que no exclui ningum. S ento o
nosso corao se torna incomensurvel.

10 Alegria emptica e equanimidade

P O U CO D E P O I S D E T E R M E M U D A D O PA RA Amherst,
Massachusetts, aps um perodo de quatro anos dedicado na maior parte
meditao solitria, tive o privilgio de servir como intrprete para Tara
Rinpoche, um lama tibetano snior que estava dando ensinamentos no Instituto
Americano de Estudos Budistas, fundado por Robert Thurman. Ele era um
homem sbio e amoroso, e foi de grande ajuda para mim quando comecei a
integrar os meus anos de estudo e prtica do budismo com a vida no Ocidente
moderno. Lembro-me em especial de seus comentrios sobre duas maneiras de
cultivar o amor incondicional e a compaixo, independentemente de as pessoas
serem prximas ou afastadas. A primeira maneira, segundo ele, foi
perfeitamente exemplificada no ideal monstico, em que o monge se desliga de
sua famlia biolgica e procura visualizar todos os seres da mesma forma, como
se fossem seus pais e mes, irmos e irms. Ele comea com a viso equnime
de tentar cuidar de todos da mesma maneira, abandonando o apego ao
pensamento de essas pessoas so a minha famlia e esses so os meus amigos
mais prximos, enquanto o restante est fora do meu crculo de entes queridos.
Partindo desse ponto de imparcialidade, o desafio do monge cuidar mais
profundamente de todos, vendo-os como seus parentes.

A segunda maneira, ensinou Rinpoche, comear pelo ideal de ser um


esposo e um pai amoroso, com amor e compaixo incondicionais por sua prpria
famlia. Mesmo que seu cnjuge ou filhos ocasionalmente se comportem de
forma negativa, em vez de distanciar-se voc amorosamente se preocupa ainda
mais com eles, buscando maneiras pelas quais pode ajud-los a voltar ao
caminho do Darma. Essa abordagem comea com uma preocupao especial
que pode muito bem se misturar ao apego por sua prpria famlia. Mas,
medida que se aprofunda em suas prticas espirituais, voc estender essa
qualidade de afeio sem julgamento para um crculo crescente de pessoas que
encontrar. Voc passar a sentir por colegas de trabalho, e at mesmo por
pessoas estranhas, com o mesmo amor que sente pela sua prpria famlia e pelos
seus amigos. Eles tambm desejam felicidade e liberao do sofrimento e so,
portanto, igualmente merecedores de que seus desejos mais profundos sejam
atendidos. Desse modo, voc comear por uma maior proximidade com sua
famlia e amigos, mas com o tempo o alcance de seu amor e compaixo se
tornar incomensurvel, incluindo todos os seres da mesma forma, sem apego ou
averso a ningum. Embora os pontos de partida para o monge e para o leigo
sejam diferentes, o ponto final o mesmo.

PRTICA
Vamos comear essa sesso seguindo a importante tradio de primeiro
trazer mente as nossas mais elevadas aspiraes. O que buscamos alcanar na
vida? O que buscamos por meio de nossa prtica espiritual, para ns mesmos e
para aqueles que nos rodeiam?
Em seguida, acomode o seu corpo e a sua mente como j fez vrias vezes
anteriormente, assumindo uma postura correta. Aprenda bem a rotina, encontre
uma postura em que possa se sentar calmamente e vontade. O seu peito deve
estar ligeiramente elevado, os ombros relaxados, os msculos do seu rosto e dos
seus olhos devem estar soltos. Para completar esse processo, tome trs
inspiraes lentas e profundas, respirando pelas narinas at o abdmen. Durante
a inspirao, expanda primeiramente o abdmen, em seguida o diafragma e
finalmente deixe o ar chegar ao trax. Quando atingir quase a capacidade total,
solte o ar atravs das narinas, soltando-o completamente e, junto com o ar,
liberando todas as tenses do corpo e da mente.
Nessa sesso, retomaremos os fundamentos, voltando ao cultivo da ateno
equilibrada, do equilbrio meditativo, da quietude. Desperte sua conscincia e
permita que sua ateno inunde todo o campo de sensaes tteis por todo o
corpo, desde o topo da cabea at as plantas dos ps. Esteja fisicamente presente.

Continue respirando, mas agora normalmente, sem forar a respirao. Deixe o


abdmen solto e relaxado para que, mesmo com uma inspirao curta, voc
possa sentir a respirao profundamente, expandindo um pouco o abdmen, que
se esvazia durante a expirao. Deixe a respirao seguir em seu prprio ritmo,
sem nenhuma interveno consciente. No importante que a respirao seja
profunda ou superficial, que a inspirao seja mais longa do que a expirao ou
vice-versa, ou que de vez em quando haja uma pausa aps a expirao. Permita
que o sistema nervoso ou, na terminologia budista, o sistema de energia vital
dentro de seu corpo, intimamente associado com respirao busque o
equilbrio. E deixe que a conscincia repouse nesse campo de sensaes tteis,
que se modifica a cada momento, conforme o ritmo da entrada e sada do ar.
Agora, para comear a cultivar a alegria emptica, a terceira das quatro
qualidades incomensurveis, traga novamente a inteligncia discursiva, a
memria e a imaginao para a prtica. Primeiramente, dirija a sua ateno
para a sua prpria vida, com foco especial nas circunstncias que lhe trazem
alegria e contentamento. Se voc desfruta de boa sade, relacionamentos
amorosos com aqueles ao seu redor, um trabalho significativo e gratificante ou
qualquer outra coisa que lhe traz felicidade, deleite-se com a sua prpria boa
sorte com gratido.
Em seguida, observe as virtudes de corao e mente que tem cultivado, e os
momentos em que o seu discurso e as suas aes trouxeram benefcios aos
outros. Essas qualidades e aes de corpo, fala e mente so as sementes da
felicidade genuna, e importante regozijar-se com elas. Encoraje-se a levar
uma vida significativa e a ter satisfao com aqueles momentos em que tem
vivenciado os seus ideais.
Agora, traga mente um amigo querido que exala um senso de bom humor
e alegria de viver. Empaticamente, participe de sua alegria, tendo prazer com a
felicidade dessa pessoa. Lembre-se de momentos especficos de prazer na vida
dessa pessoa e compartilhe deles.
Lembre-se agora de algum que voc conhece pessoalmente, ou conhece
apenas pela reputao, que corporifica as virtudes que tambm deseja ter. Pense
em algum que expresse carinho e afeto, cuja mente seja clara e brilhante,
algum que seja altrusta e dedicado a ajudar os outros mesmo nos menores
detalhes. Observe vrias pessoas, cada uma exemplificando uma prtica de
humildade, bondade, generosidade e sabedoria, e regozije-se com as virtudes que
inspiram a todos ns.
Expanda o alcance de sua conscincia e inclua estranhos e pessoas com
quem voc tem algum conflito e em sua mente busque localizar suas virtudes,
que so facilmente esquecidas ou desconsideradas. Deleite-se em como as
sementes de virtude geram o fruto do bem-estar. Uma vez que o campo de sua
conscincia tenha se expandido sem limites, solte todos os pensamentos e

imagens e simplesmente repouse por alguns instantes no espao luminoso e vazio


da conscincia. Ento, encerre a sesso.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


Depois de ter comeado a desenvolver as duas primeiras das quatro
qualidades incomensurveis bondade e compaixo , voc descobrir que a
alegria emptica e a equanimidade surgiro naturalmente. A alegria emptica,
em particular, pertinente nossa sociedade e ao mundo moderno em que
vivemos. Isso se deve ao acesso sem precedentes que temos, por meio da mdia,
ao estado em que o mundo se encontra, especialmente aos aspectos que podem
dar origem a tristeza, ansiedade, depresso, cinismo, fria e desespero.
Recentemente, vi um adesivo que dizia: Se voc no est se sentindo indignado,
no est prestando ateno. No preciso muita imaginao para entender o
que o motorista estava pensando. Entretanto, se vagamos pela vida em um estado
contnuo de indignao, ento provavelmente somos mais uma parte do
problema do que parte da soluo. Lembre-se das palavras de William James:
A cada momento, aquilo a que prestamos ateno a realidade.[41] Isso vale
para a viso de mundo que absorvemos atravs da mdia, para a nossa
experincia do mundo imediato ao nosso redor e tambm para a nossa
compreenso de ns mesmos. Assim, como poderamos viver com um sentido
realista de bem-estar em um mundo onde h tantas causas para desespero, medo
e raiva?
Uma possibilidade seria por meio do cultivo da alegria emptica, mudita em
snscrito. Nessa prtica, buscamos pessoas e eventos especficos com os quais
nos alegramos. Nenhum de ns capaz de apreender a realidade como um todo:
estamos a todo momento selecionando a experincia de realidade que temos, por
meio dos tipos de coisas que olhamos e pela forma como olhamos. Estamos
sempre inserindo e deletando percepes, escolhendo o que ser real para ns ou
deixando que essas escolhas sejam feitas pela mdia e por outras instituies
poderosas.
Tome o exemplo dos vieses das notcias veiculadas pela mdia. As notcias
tendem a se concentrar nas grandes tragdias, nas crises, nas misrias e nos
males do mundo. Isso o que vende. Em um mundo onde h tanto conflito e
sofrimento, os atos excepcionais de sabedoria e compaixo so a verdadeira
notcia, mas recebem pouca cobertura. Assim, como resultado da miopia da
mdia, perdemos de vista as muitas virtudes e alegrias do mundo. Elas parecem
menos reais para ns. Nessa prtica, buscamos equilibrar esse ponto.
Ao cultivar a alegria emptica, optamos deliberadamente por tentar

descobrir, com ateno vvida: Onde h felicidade e virtude no mundo? claro


que relativamente fcil experimentar alegria emptica em relao a algum
prximo a voc. Se o seu filho consegue algo que desejava ou um amigo
promovido para um emprego fabuloso, a alegria emptica surge naturalmente.
Mas, nessa prtica, tentamos ampliar o alcance do nosso deleite com a felicidade
de outras pessoas, com as alegrias e sucessos de estranhos. Enquanto a empatia
limitada e nos alegramos com algumas pessoas e no com outras, enquanto
sentimos compaixo e bondade apenas por um grupo seleto de seres, essas
qualidades do corao esto contaminadas pelas aflies de apego e averso.
Ento, o que estamos buscando nessa prtica a ausncia de limites. Quando a
bondade amorosa se torna incomensurvel, sem excluir ningum, isso o que
chamamos de amor incondicional. E quando a compaixo torna-se
incomensurvel, incluindo todo o mundo os malfeitores e as vtimas , isso se
chama compaixo incondicional. Da mesma forma, quando a alegria
emptica se estende, como a gua se espalhando uniformemente sobre uma
plancie, sem vieses, sem preconceitos, essa a alegria emptica incondicional e
ilimitada.
Olhe ao seu redor. No difcil encontrar felicidade. Voc pode se deliciar
com algo to simples quanto uma criana bem faceira, andando pela rua,
desfrutando de uma casquinha de sorvete, ou devorando um biscoito. Alegre-se
com a felicidade dessa criana e, ento, regozije-se com a felicidade que se
espalhou at voc no h nada de errado nisso. E no se exclua de qualquer
uma das quatro qualidades incomensurveis, porque assim deixaria de ser
incomensurvel. Aprofundando-nos um pouco mais, percebemos que, se o
regozijo com os frutos da felicidade significativo e benfico, ento claro que
vale a pena deliciar-se com as sementes da felicidade.
Assim como a bondade e a compaixo se aprofundam quando se integram
sabedoria, o mesmo ocorre com a alegria emptica. Todos ns podemos nos
lembrar de momentos em que experimentamos uma sensao de bem-estar que
no foi causada por nenhum estmulo externo aparente. Nesses momentos, o
corao est pleno e enternecido. Sorrimos facilmente. H um sentimento de
alegria. Podemos nos perguntar: O que causou isso? Com sabedoria, podemos
reconhecer que, se a causa no est fora de ns, ela s pode estar em um lugar:
na nossa prpria mente.
A psicologia budista preocupa-se principalmente com a compreenso dos
estados mentais que, por sua prpria natureza, do origem felicidade, bem
como daqueles que resultam em sofrimento e conflito. Os primeiros so
considerados saudveis e os ltimos, aflitivos. Essa uma questo de causalidade
no contexto da experincia humana, no de moralidade imposta sobre a
humanidade por uma autoridade moral externa. Quando a mente est saudvel,
ela nos conduz a uma sensao de felicidade que surge da sua prpria natureza.

Assim, quando estamos na presena de pessoas que demonstram estados


mentais, fala e conduta fsica saudveis, podemos sentir prazer. E, se assim
desejamos, podemos expressar a nossa alegria.
No preciso um evento dramtico para fazer brotar a alegria emptica.
Pode ser algo to banal como uma simples cortesia. Isso aconteceu comigo uma
vez em uma viagem ao Mxico. Eu havia confundido a disposio dos assentos e
tomei o lugar de outra pessoa. Claro que a pessoa que tinha reservado o assento
acabou chegando. Quando a aeromoa explicou a confuso, a pessoa cujo
assento eu havia tomado muito sinceramente pediu desculpas por qualquer
problema que poderia estar causando a mim. E, naturalmente, eu estava
arrependido de ter sido a causa da confuso. No foi grande coisa, mas a
simpatia e a gentileza que experimentei foram genunas, e algo para alegrar. Esse
tipo de coisa acontece o tempo todo. Ento, quando topar com elas, faa a si
mesmo um grande favor: no deixe de v-las, preste ateno. Se voc no est
se alegrando com a bondade do mundo, voc no est prestando ateno.
tambm vital nos deliciarmos com as nossas prprias virtudes. Se seus atos
de bondade e sabedoria so deliberados ou espontneos, alegre-se com a
bondade que est trazendo ao mundo. Muitas pessoas tendem a subestimar sua
prpria bondade, pensando que devem ser humildes em vez de serem, ou
parecerem, satisfeitas consigo mesmas. Dessa forma, ignoram suas prprias
qualidades e aes positivas. Mas o budismo diz que isso no apropriado. Afinal
de contas, se vale a pena regozijar-se com qualidades e aes virtuosas de outras
pessoas, isso igualmente valioso com relao a ns mesmos. No budismo se diz
que a maneira mais fcil e rpida de fortalecer nossa prtica espiritual nos
alegrarmos com as nossas prprias virtudes.
Ao ter prazer com as aes virtuosas, intensificamos a potncia dessas aes
e, assim, elas geram mais frutos. O mesmo se aplica s aes negativas. Quando
voc conscientemente tem prazer em fazer algo prejudicial aos outros, o ato
negativo ganha mais poder. Por exemplo, se gostamos de fazer comentrios
sarcsticos para diminuir os outros, reforamos a tendncia para o sarcasmo. Da
mesma forma, sentir remorso em relao a algo, seja virtuoso ou no virtuoso,
atenua o poder da ao. Assim, ter prazer com a felicidade e as causas da
felicidade, em relao a ns mesmos e aos outros, um elemento crucial da
prtica espiritual. A nossa prtica ir florescer a longo prazo apenas quando
estiver plena de entusiasmo, e o caminho para a prtica alegre ter prazer a
cada momento.
Podemos nos alegrar com aqueles que se dedicam prtica espiritual,
incluindo os que se recolhem temporariamente, seja para um retiro de fim de
semana, uma hora de meditao por dia, um retiro de seis meses ou um retiro de
25 anos. Por que nos alegrarmos com isso? Se as pessoas evitam as interaes
sociais apenas por averso ou por exausto, no h nenhum valor especial nisso.

Mas e se uma pessoa ocasionalmente se retirar por qualquer perodo que parea
significativo e adequado a fim de cultivar virtudes como o equilbrio da ateno,
a ateno plena discriminativa, o amor e a compaixo? A curto prazo, pode
parecer que essa pessoa no est fazendo nada pela sociedade. Mas essa prtica
leva ao equilbrio psicolgico e ao amadurecimento espiritual. claro que vale a
pena. Quando essas pessoas acessam os seus recursos internos de virtude mais
profundos e depois retornam ativa com maior bondade, clareza e
discernimento, elas nos demonstram, por exemplo, que agora mesmo temos
dentro de ns tudo de que precisamos para encontrar a felicidade que estamos
buscando.
Conheo vrios iogues tibetanos que passaram dcadas em retiro de
meditao solitria. No entanto, muitas pessoas na sociedade de hoje
desconfiariam desse estilo de vida recluso. Quando entrei no meu primeiro retiro
longo de shamatha, em 1980, o Dalai Lama me falou sobre um monge que vivia
em retiro no Buto e que havia realizado shamatha plenamente. A seguir, o
monge passou prtica de vipashy ana e um dos resultados de sua prtica foi que,
depois de algum tempo, descobriu que podia curar as pessoas de vrias doenas
por sua simples presena. Logo ele teve que interromper sua prtica meditativa,
porque as pessoas estavam fazendo fila do lado de fora de sua cabana para
serem curadas. Presumo que sua motivao original para a prtica era a de
curar sua mente de todas as aflies, mas vejam vocs ele descobriu que sua
presena poderia curar os outros de suas aflies fsicas espontaneamente.
Admiramos as pessoas que, a fim de curar os doentes, estudam medicina durante
anos a fio e podemos tambm nos alegrar quando, a fim de curar a mente de
todas as suas aflies, outros se dedicam a uma rigorosa prtica contemplativa.
Ao praticar as quatro qualidades incomensurveis, o foco no nem o eu,
nem os outros. Pelo contrrio, o tema recorrente tanto para ns mesmos
quanto para os outros. H aqui uma completa igualdade, uma total
uniformidade. O cultivo da alegria emptica uma prtica significativa, virtuosa
e que traz satisfao sem absolutamente nenhuma desvantagem. Quer
consideremos ns mesmos ou os outros, o que nos traz prazer a prpria ao
virtuosa. Portanto, a soluo para o problema do egosmo muito simples:
nenhuma das virtudes que ocasionalmente manifestamos e nem as atividades
virtuosas das quais participamos surgem de um ego autnomo e autossuficiente.
Em primeiro lugar, esse ego no existe. Todas essas virtudes surgem em
dependncia de causas e condies como eventos interdependentes.
Considere as suas prprias qualidades mais primorosas e se pergunte de onde
vieram. Elas surgiram em relao s pessoas que cuidaram de voc conforme
voc cultivava essas qualidades. O que estava apoiando voc em tudo isso? O que
estava impedindo essas qualidades de se perderem ou de serem suprimidas?
Quando comeamos a observar o que d origem s nossas virtudes de corpo, fala

e mente, descobrimos que todas surgem devido a causas e condies. Em


resumo, todas as virtudes e alegrias dependem da bondade de outros.
Quando comeamos a ponderar sobre isso, notamos duas coisas que andam
sempre juntas. Em primeiro lugar, podemos nos alegrar com os aspectos de
nosso prprio comportamento que trazem felicidade para ns mesmos: Como
maravilhoso que o meu modo de vida traga felicidade para mim e para os que
me rodeiam. Ento, olhamos mais uma vez, questionando de onde tudo isso
veio, comeando por nossos pais, professores, amigos e por outras pessoas que
nos ajudaram. Todos eles nos ajudaram a cultivar o que h de bom em nossas
vidas neste momento. Assim, ao mesmo tempo nos alegramos com a
virtuosidade de nossas vidas e, com gratido, nos regozijamos com aqueles que
nos apoiaram. Esse o antdoto para qualquer arrogncia que possa surgir de nos
alegrarmos com as nossas prprias virtudes.
Escolha voc mesmo o tipo de realidade em que deseja habitar. Se no fizer
isso, o bombardeio de estmulos da mdia ir for-lo a internalizar uma
perspectiva que algum escolheu por voc. E essa viso da realidade no
necessariamente a mais interessante. Quando encontrar as causas da felicidade
em outros um pouco de bondade aqui, um pouco de cordialidade ali , pare por
uns instantes e se alegre com isso.
O fac-smile empobrecido ou a falsa impostora da alegria emptica uma
espcie de felicidade superficial, frvola, que se fixa em prazeres mundanos. Em
vez de serem percebidos com empatia, os outros so vistos como objetos que nos
fazem felizes, que nos do barato. O oposto da alegria emptica a inveja.
Enquanto a alegria emptica ter prazer no sucesso, virtudes e talentos de outra
pessoa, o oposto o descontentamento, o cinismo e a inveja. Nesse caso,
percebemos a virtude de outras pessoas e no a vemos como tal. Em vez disso,
nos perguntamos: Qual a dessas pessoas? Estamos de volta ideia de uma
relao eu-isso com os outros. Essa uma atitude que comea e acaba em
derrota. Como disse o Dalai Lama, se voc perder a esperana se voc cair no
desespero, que outra palavra para a descrena , no h nenhuma chance de
sucesso, porque voc ir falhar devido sua prpria atitude.
A causa imediata da alegria emptica simplesmente a conscincia da
virtude e da alegria de outras pessoas. Portanto, essa prtica principalmente
aprender a prestar ateno. Se realmente estamos atentos ao sofrimento de
outras pessoas, a compaixo surge naturalmente. E, se prestamos ateno
felicidade e ao sucesso, alegria emptica uma resposta natural. O cultivo da
alegria emptica bem-sucedido quando o seu oposto diminui. Tornamo-nos
menos descrentes, sentimos menos inveja. Ao invs de ficarmos descontentes,
tornamo-nos, como brincou P. G. Wodehouse, contentes.

PRTICA
Inicie essa sesso como anteriormente, estabelecendo primeiramente o
corpo, a fala e a mente em seus estados naturais, e, em seguida, contando 21
respiraes para ajudar a estabilizar a mente. Enquanto segue para o cultivo da
equanimidade, ou imparcialidade, traga mente o desejo natural de se livrar do
sofrimento e da dor e encontrar a felicidade. Todos ns nos importamos e
ansiamos pelo nosso prprio bem-estar, independentemente da forma como
conduzimos as nossas vidas. E, quando buscamos nossa prpria felicidade em
detrimento dos outros, isso se d, invariavelmente, devido s aflies mentais que
dominam temporariamente as nossas mentes. Prejudicamos os outros e, por fim,
prejudicamos a ns mesmos por ignorncia e por deluso.
Agora leve sua ateno a algum que conhece bem ou com quem se
encontra com frequncia, mas que tem pouca importncia para voc. Algum
cujo sucesso ou adversidade provavelmente no teriam muito efeito sobre voc.
Deixe esse sentimento de indiferena surgir. Experimente-o e reconhea-o.
Ento, preste bastante ateno a essa pessoa, no como um objeto, mas como
um sujeito, um ser senciente como voc. Imagine-se sendo essa pessoa e
experimentando as suas esperanas e temores, alegrias e tristezas. Sabendo que,
apesar de todas as diferenas superficiais, ele ou ela fundamentalmente como
voc, aspire que os desejos mais ntimos dessa pessoa se cumpram, com
empatia, como se fossem seus. Indo e vindo, veja essa pessoa como o outro a
partir de sua prpria perspectiva e, a partir da perspectiva dela, veja a si mesmo
como o outro, deseje que essa pessoa encontre a felicidade e se livre do
sofrimento e de suas causas.
Agora, traga mente uma pessoa por quem voc sente um forte apego.
Talvez algum que tenha provado ser um grande amigo, que o tenha apoiado, ou
ajudado a ter sucesso, ou trazido muita alegria e conforto. Talvez voc
simplesmente admire essa pessoa por suas prprias qualidades encantadoras,
fsicas ou mentais, e sinta alegria em estar com ela. Essa pessoa um objeto que
lhe traz felicidade, e voc reage com apego. Deixe surgir esse sentimento de
apego, esse desejo egocntrico, notando o quanto essa pessoa significa para voc
como um suporte para o seu prprio bem-estar. Agora, troque a sua perspectiva
pela perspectiva dessa pessoa: imagine-se sendo ela e experimentando as suas
esperanas e medos, sucessos e fracassos. Imagine o seu desejo por felicidade e
segurana, e empaticamente tome esse desejo como se fosse seu. Depois, volte
para a sua prpria perspectiva, vendo essa pessoa como um ser humano como
voc, e aspire que ela encontre bem-estar, independente de seus prprios desejos
autocentrados.
Por fim, leve sua ateno a algum que tenha prejudicado voc, que tenha

lhe desejado mal, ou que tenha qualidades que voc considera repugnantes. Essa
pessoa parece ser um impedimento para a sua prpria felicidade, e
desagradvel at mesmo estar em sua presena. Ela parece uma fonte da sua
infelicidade, e pode ser que voc sinta que o mundo como um todo seria melhor
sem ela. Deixe que o medo, a averso ou o dio por essa pessoa se manifestem
enquanto est silenciosamente sentado em meditao. Agora, troque a sua
perspectiva pela perspectiva dessa pessoa, imaginando ser como ela, com as suas
esperanas e medos e suas ideias sobre como encontrar felicidade e segurana.
Algumas dessas ideias podem ser deludidas, mas, se assim for, a pessoa ainda
no sabe e est convencida de que a melhor maneira de encontrar o que
procura, no importando quantas outras pessoas sejam prejudicadas nesse
processo. Sem concordar com as suas atitudes, comportamento ou ideias,
observe os seus anseios bsicos por felicidade e por se libertar do sofrimento.
Essencialmente, eles no so diferentes dos seus. Ento, experimente-os como se
fossem seus e deseje que ela possa ser feliz. Cultive o desejo de que ela alcance
a clareza quanto s verdadeiras causas da felicidade e do sofrimento e tenha uma
vida de acordo. Que ela fique bem e feliz, livre do medo e do sofrimento, assim
como deseja a si mesmo. Novamente, observe essa pessoa a partir de sua
prpria perspectiva, vendo-a agora no como um ser to desagradvel, um
objeto ameaador, mas como um ser senciente assim como voc, digno de
felicidade.
Agora, expanda o alcance da sua conscincia, incluindo todos os seres,
humanos ou no, que anseiam pela felicidade e pela liberao da dor e do
sofrimento. Como fez anteriormente, visualize a pureza essencial de sua prpria
conscincia na forma de uma esfera radiante de luz branca em seu corao.
Conforme inspira, imagine que ela remova todo o sofrimento do mundo,
juntamente com as suas causas subjacentes, e dissolva essa nuvem escura de
angstia em seu corao, onde ela se extingue sem deixar vestgios. E, conforme
expira, deixe que essa luz flua igualmente de seu corao em direo a todos os
seres, satisfazendo os seus desejos mais profundos, trazendo-lhes alegria e
felicidade medida que nutre as verdadeiras causas de seu prprio bem-estar.
Que todos os seres, assim como ns, possam ser livres do sofrimento e de suas
causas. Que cada ser encontre a felicidade e as causas da felicidade.
Ao encerrarmos essa sesso, dedicamos os benefcios da prtica: que
qualquer mrito que possa ter sido produzido por nos dedicarmos a essas prticas
possa levar ao florescimento da bondade amorosa e da compaixo, da alegria
emptica e da equanimidade em nossas prprias vidas. Que ns possamos nos
tornar um exemplo para os outros. Que ns possamos incorporar essas quatro
qualidades incomensurveis. Que ns possamos despertar essas mesmas
qualidades em outros. Que ns possamos ensin-las aos nossos filhos, e eles a
seus prprios filhos. Que ns possamos viver bem e felizes juntos. Antes de

concluir essa sesso, solte todas as imagens mentais, pensamentos e desejos, e


repouse por alguns instantes na natureza no estruturada de sua prpria
conscincia. Esteja simplesmente presente, consciente de estar consciente.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


Cada vez que encontrar sofrimento no mundo, seja percebendo-o
diretamente ou pela mdia, voc pode fazer a prtica de tonglen. Essa palavra
tem a conotao de tomar para si o sofrimento e o mal do mundo, e
oferecer alegria e virtude para todos os seres. Sempre que se deparar com o
mal a cobia, a iluso e o dio, que geram tanto sofrimento , em vez de pensar
que voc superior e criticar os malfeitores, pratique tonglen. Todos ns
sabemos por experincia prpria como ser ganancioso, deludido e detestvel.
Inspire e purifique a negatividade com a aspirao: Que voc possa, assim
como eu, ser livre. Em outras palavras, o mundo inteiro pode ser um catalisador
para a sua prtica do Darma. Em vez de reagir com a dor, tristeza ou depresso,
responda compassivamente.
Um dos melhores momentos para praticar tonglen quando est assistindo ou
ouvindo o noticirio. Se sua situao de vida deixa pouco tempo para a meditao
formal, pratique enquanto assiste ao noticirio. O tonglen pode abranger todo o
drama do mundo todas as suas misrias e os seus conflitos. Pratic-lo
diariamente pode ser muito transformador. Mas voc precisa ganhar agilidade:
no decorrer do dia, se encontrar algum tendo um comportamento desagradvel,
saque o seu tonglen. Quando encontrar algum sofrendo, faa a mesma coisa.
Quando notar uma pessoa procurando ativamente a felicidade, junte-se a ela
com a sua prtica de tonglen. Pratique um minuto aqui, 15 segundos ali. uma
prtica maravilhosa, uma das joias que coroa as centenas de meditaes que os
tibetanos tm preservado e desenvolvido ao longo dos sculos.
No ano 2000, ajudei a organizar e servi como intrprete em uma conferncia
sobre emoes destrutivas organizada pelo Dalai Lama, que mais tarde foi
descrita no livro Destructive Emotions,[42] de Daniel Goleman. Durante o
encontro de cinco dias, o filsofo Owen Flanagan citou estudos que indicam que
pessoas exageradamente otimistas so mais felizes do que os realistas, que
geralmente tendem depresso. Se isso for verdade, parece que ficamos com
apenas duas opes: podemos ser exageradamente otimistas, esperando sempre
que as coisas acabem bem, ou, como segunda opo, podemos ser realistas
sbrios, lidando apenas com os fatos, que so muitas vezes tristes e deprimentes.
Mas h outra alternativa?
Eu acho que podemos encontrar essa alternativa no que poderia ser chamado

de viso do Darma, uma viso de bondade amorosa. No discordo dos


resultados desses estudos. A alternativa budista, a viso da bondade amorosa,
otimista, mas no no sentido de esperar por alguma coisa sobre a qual no temos
controle, para transform-la de uma determinada maneira, com apego ao
resultado desejado. A bondade amorosa tampouco pessimista, fixada s
limitaes do presente. fcil nos sentirmos presos a essas limitaes, dados o
sofrimento e a frustrao a que estamos expostos ao tomarmos contato com as
misrias e com os traumas constantes de nossa aldeia global. Nesse ponto, o
Darma sugere que no nos fixemos a isso, que possamos ir mais fundo. A viso
do Darma implica uma viso de felicidade desprovida de apego, que no se
baseia na expectativa de que as coisas saiam de uma forma e no de outra. Ela
vai alm do otimismo e do pessimismo, em direo a outro tipo de felicidade,
aquela que, nas palavras do Dalai Lama, tem outra base: a f na verdade.
A lio de que as pessoas que, de forma geral, so felizes, que mantm um
sentimento de bom humor, de nimo e de bem-estar, so aquelas que encontram
muitas pequenas coisas ao longo do dia com as quais se alegrar. Por outro lado,
episdios ocasionais de experincias drasticamente positivas, como ganhar na
loteria ou alcanar um objetivo muito importante, como ter sucesso em um
grande investimento, tm muito pouco impacto sobre a sensao geral de bemestar das pessoas. Assim, cultivar a alegria emptica pode, de fato, pouco a
pouco, inundar sua vida de felicidade.
A equanimidade, tambm conhecida como igualdade e imparcialidade, no
deve ser confundida com indiferena, ou simplesmente com um sentimento
desprovido de prazer ou de dor. A qualidade interior a ser cultivada aqui mais do
que um sentimento uma postura, uma atitude, uma maneira de perceber os
outros, que no envolve nem apego aos que esto prximos, nem averso a
qualquer pessoa que possa impedir a nossa felicidade. Assim, a equanimidade
no contexto das quatro qualidades incomensurveis equilibra a nossa
perspectiva em relao aos outros. Transcendemos o apego e a averso,
atingindo um senso de equilbrio. Baseia-se simplesmente no reconhecimento de
que todos os seres sencientes, humanos ou no, esto, assim como ns, em busca
da felicidade e desejando estar livres do sofrimento.
No entanto, todos ns, exceto aqueles que esto muito, muito adiante no
caminho, estamos sujeitos s aflies mentais. Quando vemos, por exemplo,
algum sob o efeito da raiva, do desejo e do cime, com toda a honestidade,
temos que admitir: Sei bem o que sentir isso. A equanimidade acessa essa
realidade e quebra as barreiras, equilibra as nossas noes de prximo e
distante. Aqui, o desejo que cultivamos : Possa eu viver em equanimidade,
livre do apego e da averso pelos que esto prximos e distantes. Desenvolva a
preocupao, bondade amorosa, compaixo e carinho pelos outros de forma
imparcial, independentemente de seu comportamento. Esse tipo de

equanimidade indispensvel. Sem ela, o amor, a compaixo e a alegria


emptica sero sempre condicionais, maculados pelo apego autocentrado. Ento,
a equanimidade, essa imparcialidade, um componente essencial das quatro
qualidades incomensurveis.
Quando comecei a aprender meditao com Geshe Rabten em Dharamsala,
na ndia, em 1971, ele me aconselhou a meditar longamente sobre a
equanimidade, vendo todos os seres como se fossem os meus prprios pais e
mes, irmos e irms. O nosso apego aos que so prximos e queridos, nossa
averso aos que impedem a realizao dos nossos desejos e nossa indiferena ao
restante, que parece irrelevante para o nosso bem-estar, tudo vem da iluso do
autocentramento. Como um mdico compassivo que atende a todos os pacientes
de forma igual, independentemente da gravidade da sua doena, o budismo
considera todos os seres igualmente merecedores da felicidade. Essa
imparcialidade a base para todas as demais prticas espirituais.
Geshe Rabten explicou como a sabedoria sustenta essa preocupao amorosa
e imparcial com o bem-estar dos outros:
Quando sentimos dio por algum que consideramos um inimigo,
apreendemos a existncia dessa pessoa muito intensamente,
como se tivesse uma existncia inerente, de uma maneira muito
real e vvida Mas, se investigarmos a maneira verdadeira pela
qual essa pessoa existe, descobriremos que, analisando as partes
que constituem seu corpo, seremos incapazes de encontrar uma
base verdadeiramente existente para o rtulo inimigo. Da
mesma forma, no h nada inerente nos sentimentos dessa
pessoa ou em sua mente que v resistir nossa investigao e
revelar-se como uma base real para um inimigo Podemos
tambm aplicar esse tipo de raciocnio a um objeto ao qual temos
forte apego, algum a quem nos sentimos fortemente apegados
O nosso amor, preocupao e compaixo pelos outros devem se
estender igualmente a todos, e isso s possvel quando a
equanimidade cultivada. Desenvolver esse tipo de
equanimidade naturalmente d origem a uma maior paz mental,
conforme nos libertamos dos extremos de dio ou apego. essa
paz mental que necessria como base para um maior
desenvolvimento.[43]
A indiferena que sentimos em relao a algumas pessoas realmente no
tem nada a ver com suas qualidades pessoais ou comportamento. Da mesma
forma, os atributos amigo e inimigo no so inatos a ningum. Projetamos
esses rtulos nas pessoas com base no relacionamento que temos com elas,
especialmente em termos de como tm afetado ou podem afetar o nosso prprio

bem-estar. Mas essas relaes inevitavelmente mudam com o tempo. Algum


que consideramos nosso amigo mais querido pode se distanciar, ou at mesmo se
voltar contra ns. Pessoas que nos eram estranhas podem se transformar em
pessoas queridas, enquanto outros se tornam nossos inimigos mais temidos. E
mesmo aqueles que temos temido e odiado podem tornar-se vagas lembranas,
ou at mesmo amigos queridos. Os outros no so a verdadeira fonte de nossa
alegria ou de nossa tristeza. Classificar e reificar pessoas como amigo,
inimigo e estranho algo que se baseia em uma noo delusria de eu e
meu. Esses atributos equivocados surgem de uma atitude de autocentramento,
da convico de que o bem-estar dos outros significativo apenas quando
contribui para a nossa prpria felicidade. Aquilo que a maioria das pessoas
acredita a prova da sua invalidade, j que cada um de ns um amigo, um
inimigo ou um ningum aos olhos dos outros.
Segundo o budismo, a causa imediata da equanimidade assumir a
responsabilidade por nossa prpria conduta. Para entender o significado completo
dessa afirmao, preciso compreender ao menos os fundamentos da teoria
budista sobre o carma. A essncia dessa teoria aparece em muitas das grandes
tradies espirituais do mundo: Voc colhe aquilo que semeia. No budismo,
esse princpio interpretado dentro do contexto da reencarnao, no qual nossa
conduta em vidas anteriores influencia o que experimentamos nesta vida
presente. Se semeamos a boa semente do comportamento virtuoso em vidas
passadas, poderemos colher uma safra de boa sorte nesta vida. Quando os outros
nos tratam com bondade, isso representa em parte o reflexo da bondade que
demonstramos aos outros no passado; quando somos tratados de forma rude, isso
pode ser visto como um amadurecimento da forma como tratamos os outros no
passado.
A falsificao de equanimidade a indiferena, simplesmente no se
importar com ningum. Diametralmente oposto, o inimigo distante da
equanimidade a dependncia e o apego aos nossos entes queridos, e a averso a
qualquer um que esteja no caminho do que consideramos felicidade. Isso levanta
um ponto importante para aqueles que no so monges ou monjas, aqueles que
vivem no mundo, com famlias: como mantemos a imparcialidade no que diz
respeito nossa famlia, aos nossos entes queridos e assim por diante?
Do ponto de vista prtico, se somos responsveis por sustentar uma famlia,
temos uma quantidade finita de dinheiro para cumprir essa responsabilidade. No
temos recursos infinitos para ajudar todas as outras famlias do mundo. Como
ento podemos ser realistas e ao mesmo tempo praticar a equanimidade? Como
seria um pai bodisatva? Tome como exemplo a situao do Dalai Lama. De certa
forma, ele como um pai, mesmo que tendo sido um monge desde criana bem
pequena. Poderamos dizer que sua famlia composta por todos os seres
sencientes, mas sua famlia em particular so os seis milhes de tibetanos que o

veem como seu lder e sua fonte de inspirao. Ele sabe que essas pessoas o
veem de uma maneira especial. E assim, grande parte de sua agenda bastante
ocupada dedicada a trabalhar para o bem dos tibetanos e ensinar o Darma para
os tibetanos, sua famlia. Na verdade, ele usa seu tempo para viajar por todo o
mundo e encontrar-se com outras pessoas que querem sua ajuda. E ele reza por
todos os seres sencientes. Mas, em grande parte, ele trabalha para os tibetanos.
Ser que faz isso porque acha que os tibetanos so mais dignos de sua
preocupao do que os bolivianos, os australianos ou os etopes? No, ele se
dedica mais conscienciosamente e est mais disponvel para os tibetanos porque
eles o veem de uma forma diferente dos outros. Simples assim.
Por ter observado o Dalai Lama em muitas situaes, s vezes servindo
como seu intrprete, eu no acredito que ele ame os tibetanos mais do que as
outras pessoas. Eu tambm no acho que sinta mais compaixo pelos tibetanos
que sofreram com as violaes dos direitos humanos por comunistas chineses do
que por outras pessoas que sofreram genocdio sob outros regimes totalitrios.
Nem mesmo acredito que ele sinta mais compaixo pelos tibetanos do que pelos
chineses, que tm oprimido o seu povo. Me parece que a sua compaixo
verdadeiramente imparcial.
Por t-lo visto em ao, sei que tal compaixo possvel. Da mesma forma,
podemos ser bons pais e bons amigos, bons irmos e bons filhos para nossos pais
e ainda assim ter essa bondade amorosa imparcial e incondicional. O cultivo da
equanimidade possvel. E a ausncia de limites das quatro qualidades
incomensurveis depende inteiramente dela.
Antes de encerrarmos esta discusso, vamos revisar os falsos representantes
de cada uma das quatro qualidades incomensurveis e ver como cada prtica
equilibra a outra. Quando o cultivo da bondade no funciona, o resultado o
apego autocentrado, o que pode ser equilibrado pela meditao sobre a
equanimidade. Quando a compaixo sucumbe ao seu falso pretendente, o pesar,
podemos restaurar o equilbrio dos nossos coraes cultivando a alegria
emptica, observando as alegrias e as virtudes dos outros e de ns mesmos.
Quando a prtica da alegria emptica se transforma em frivolidade, possvel
superar isso cultivando a bondade amorosa, aspirando que todos os seres possam
experimentar a verdadeira felicidade e cultivar suas causas. Finalmente, quando
a equanimidade cede ao distanciamento indiferente, podemos reverter
meditando sobre a compaixo, nos concentrando no sofrimento dos seres
sencientes, em como sofrem e continuam a semear as causas de sua prpria
misria. Assim, cada uma das quatro qualidades incomensurveis ajuda a
equilibrar os desvios de outra. Aqui realmente temos um caminho para a
realizao de ns mesmos e de nossos companheiros humanos.

Parte 4. Explorando a natureza da conscincia

11 Bodicita: o esprito do despertar

A P S O D E SE N V O LV I M E N T O D A S Q U AT RO qualidades
incomensurveis e antes do cultivo da sabedoria est a joia da coroa de todo o
budismo Mahay ana. Em snscrito, chamada de bodicita, que traduzo como o
esprito do despertar. Se voc pudesse ler e praticar apenas um captulo deste
livro, deveria ser este. Porque bodicita, o esprito do despertar, comea com
shamatha, que torna a sua mente funcional, segue com o cultivo da bondade
amorosa e da compaixo, e, em seguida, culmina no Dzogchen, a Grande
Perfeio. Abrange todo o Budadarma nada deixado de fora.

Entre todos os professores espirituais com quem tenho treinado ao longo dos
anos, nenhum incorpora de forma mais clara as qualidades de bodicita do que
Sua Santidade o Dalai Lama. Isso ficou evidente para mim em 1979, quando tive
o privilgio de servir como seu intrprete durante visitas Sua e Grcia. Ele
parecia irradiar um sentimento de bondade e humildade, e me senti inundado por
sua ternura. Em Atenas, nos foi oferecida hospedagem em uma residncia
privada. A porta da frente se abria para uma sala de estar que levava a um
corredor com todos os quartos da casa. Sua Santidade foi acomodado no quarto
ao final do corredor. Quando ia para o banho, tinha que atravessar o corredor at
o banheiro mais prximo. Em uma tarde quente, caminhando para seu banho,
enrolado apenas em uma toalha, ele olhou para a sala de estar onde estvamos
reunidos e nos cumprimentou com um aceno e um sorriso feliz.
Alguns dias mais tarde, visitamos um centro budista fundado por Kalu
Rinpoche, um lama altamente respeitado da ordem Kagy upa do budismo
tibetano. No passado, Kalu Rinpoche havia instrudo seus alunos novatos a se
dedicarem s tradicionais prticas preliminares em preparao para as
meditaes esotricas do budismo Vajray ana. Mas, depois de sua breve visita
Grcia, Kalu Rinpoche voltou para a ndia, deixando os seus alunos sem ningum
para orient-los na prtica diria. As preliminares que ele ensinou incluem a
recitao de mantras e muitas outras prticas devocionais, tais como a realizao
de 100.000 prostraes para os budas. Esses alunos iniciantes disseram ao Dalai
Lama que tinham muita resistncia para realizar essas prticas, apesar das
instrues de seu lama, a quem reverenciavam. Sua Santidade respondeu que
essas preliminares so destinadas especificamente a preparar o aluno para
prticas Vajray ana avanadas, mas no so fundamentais para o budismo como
um todo. Ele os encorajou a enfatizar sobretudo o cultivo da bodicita. Executar
at mesmo uma nica prostrao com a motivao de bodicita, ele lhes disse,
mais valioso do que fazer 100.000 prostraes com uma motivao egosta.
Ento, deixe que bodicita seja o corao da sua prtica.

PRTICA
Sente-se confortavelmente, repousando o corpo de uma maneira que facilite
a meditao. Para ajudar a manter a estabilidade da ateno, permanea to
imvel quanto possvel. Quer esteja em uma cadeira com os ps no cho ou
sentado de pernas cruzadas, assuma uma postura de vigilncia, com o esterno
ligeiramente elevado para que possa respirar no abdmen sem esforo.
Assegure-se de estar com o abdmen relaxado, para que possa se expandir
quando voc inspira. Os msculos do seu rosto esto relaxados e soltos,

especialmente os msculos ao redor dos olhos e os prprios olhos? Se perceber


qualquer tenso em uma dessas reas de seu rosto, relaxe. Agora, faa trs
respiraes lentas e profundas, inspirando no abdmen de forma plena e
profunda, e expirando de forma natural e livre.
Comece por acalmar sua mente com a prtica da ateno plena
respirao. Recolha a sua conscincia do mundo exterior e repouse sua ateno
no campo das sensaes tteis por todo o corpo. A cada inspirao e expirao,
observe se a respirao longa ou curta. Em vez de forar a concentrao,
simplesmente deixe os pensamentos errantes passarem. D um descanso para a
mente discursiva durante essa sesso de 24 minutos. A cada inspirao, respire
nas reas de tenso em seu corpo e, a cada expirao, sinta os ns de tenso do
corpo e da mente se desfazendo, conforme relaxa mais profundamente.
Em especial ao final da expirao, no h necessidade de aplicar a vontade
para que a inspirao acontea. Em vez disso, deixe-a fluir como as ondas do
mar. Relaxe profundamente na inspirao e continue relaxando na expirao.
Busque uma sensao de calma interior, liberando a tenso da mente no por
constrio, mas liberando sua ateno, de modo que a quietude surja dessa
sensao de calma interior.
Essa prtica levar voc a uma sensao cada vez mais profunda de
quietude, que se transformar aos poucos em uma sensao de bem-estar.
Potencialmente, esse um caminho para um profundo insight, tanto sobre a
natureza da conscincia quanto sobre a natureza do mundo que nos rodeia. Mas,
por enquanto, em vez de aprofundarmos essa prtica, expandiremos o alcance de
nossa conscincia usando outra maravilhosa faculdade da mente humana: a
imaginao. Voltemos prtica de tonglen, a prtica de dar e receber, que o
principal mtodo para o cultivo de bodicita.
Comece imaginando uma pessoa prxima a voc um ente querido, um
irmo, um parente, um amigo , uma pessoa que voc conhea bem e com
quem se importe bastante. Traga mente uma pessoa assim, que esteja
enfrentando alguma adversidade, seja econmica, social, psicolgica ou fsica.
Imagine nitidamente essa pessoa e traga mente, da melhor forma que puder, as
causas de seu sofrimento, externas e internas. Em seguida, simbolicamente
visualize a pureza fundamental da sua prpria conscincia, a sua natureza de
buda. Essa a sua capacidade para a iluminao, que se torna obscurecida por
aflies mentais. Agora, imagine-a sob a forma simblica de uma esfera de luz
em seu corao uma luz branca, inesgotvel e radiante, uma luz de alegria e de
purificao. Imagine-a como a base do seu ser, a sua verdadeira natureza.
Agora, seguindo com a prtica de tonglen, imagine o sofrimento e as fontes
de sofrimento desse ser amado na forma de uma nuvem escura que oculta a
verdadeira natureza dessa pessoa. A cada inspirao, imagine que voc inspire
essa escurido, trazendo-a at a esfera da luz em seu corao, onde essa nuvem

desaparece sem deixar rastro. Faa isso no apenas como um exerccio de


visualizao, mas gerando esse desejo a cada inspirao: Que voc se livre
desse sofrimento e de suas causas subjacentes. A cada inspirao, imagine o
sofrimento dessa pessoa e as suas causas se dissipando at desaparecerem
completamente.
Mais uma vez, traga essa pessoa de forma vvida sua mente, mas, dessa
vez, foque os anseios dessa pessoa e o seu desejo de felicidade. E com a
aspirao de que voc possa encontrar a verdadeira felicidade e acessar a sua
fonte, a cada expirao, imagine essa luz fluindo de seu corao diretamente
para fora, como um brilho suave e tranquilizador de bondade amorosa. Imagine
essa luz se espalhando e preenchendo essa pessoa com a luz da alegria. Imagine
que isso seja verdade aqui e agora.
Agora, traga mente algum que lhe trouxe sofrimento e que possa ainda lhe
desejar mal. medida que traz essa pessoa mente, questione se as qualidades
condenveis que voc percebe nela so reais ou imaginrias. Poderiam ser em
parte reais e em parte projetadas por voc? Por fora da averso, podemos
reforar a percepo das qualidades negativas do outro. De qualquer forma, aqui
est uma pessoa problemtica, e o problema parece vir de fora. A cada
inspirao, traga para si as qualidades que o incomodam. Imagine-se inspirando
essas causas de sofrimento, quer estejam na vida da pessoa, na sua vida, ou na
relao entre as duas. Traga isso para o seu corao na forma de uma nuvem de
escurido e elimine-a. A cada inspirao, imagine todas essas qualidades ou tipos
de comportamento que voc acha to difceis se dissipando. Imagine todas as
aflies e obscurecimentos da mente desaparecendo, sendo extintos na luz de seu
prprio corao.
Agora, a cada expirao, visualize toda a bondade, toda a compaixo e toda a
sabedoria fluindo a partir dessa fonte inesgotvel em seu corao. A cada
expirao traga esse pensamento de bondade amorosa: Que voc fique
realmente bem e feliz, dotado das causas da felicidade genuna. Imagine essa
pessoa sendo inundada por essa luz de bondade, experimentando a alegria da
realizao da bondade amorosa e da compaixo. Imagine essa luz a saturando
essa pessoa com mais e mais brilho, e imagine a sua alegria aumentando.
Agora, amplie o alcance da sua conscincia para envolver todos os seres que,
como voc mesmo, anseiam pela felicidade e por se livrar da dor e da
ansiedade. A cada inspirao, traga para si o sofrimento dos seres, juntamente
com as suas causas subjacentes, na forma de uma nuvem escura. A cada
expirao, imagine-se abenoando o mundo com a luz da verdadeira felicidade.
Em seguida, desprenda-se de sua imaginao, libere os objetos de sua mente
e, sem esforo, estabelea a sua conscincia em sua prpria natureza, sem
sujeito e sem objeto apenas solte.
Dedique os mritos e encerre a sesso.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


Todas as semanas durante o vero e outono de 1972, um ano depois de
comear os meus estudos em Dharamsala, na ndia, subia a montanha acima da
aldeia para me encontrar com o meu professor, Geshe Rabten. Ele estava em
retiro meditativo naquela poca, vivendo em um estbulo rstico com vista para
a estao da montanha McLeod Ganj, para onde os membros do Raj britnico
mudavam as suas famlias durante os sufocantes veres indianos. A meu pedido,
ele contou a histria de sua vida, comeando pela infncia como um garoto de
fazenda na selvagem regio Leste do Tibete. Ao descrever seu caminho de
formao e desenvolvimento espiritual, enfatizou o cultivo de bodicita como a
mais importante de todas as prticas, pois a estrutura do modo de vida do
bodisatva como um todo. A quietude meditativa, as quatro qualidades
incomensurveis e as quatro aplicaes da ateno plena estabelecem uma base
para o desenvolvimento do esprito do despertar. As prticas do Buda que so
ensinadas, me disse Geshe Rabten, consistem em apenas trs tipos: a base para
bodicita; o cultivo efetivo de bodicita; o resultado de bodicita, que se refere
s qualidades da iluminao que emergem dessa prtica. Assim, o esprito do
despertar reflete a essncia da prtica budista em seu incio, meio e fim.
Bodicita a aspirao sincera de alcanar o despertar espiritual para
benefcio de todos os seres, uma aspirao que funde os dois objetivos mais
nobres. O primeiro buscar a iluminao. Mas perseguir essa aspirao apenas
para si mesmo ignora algo fundamental sobre a natureza da nossa existncia:
nenhum de ns vive isolado, independente dos que nos rodeiam. A nossa
existncia uma inter-relao. Ns sobrevivemos na dependncia dos cuidados
de nossos pais e de nossos relacionamentos com os nossos irmos, amigos e
professores. A sociedade nos proveu sustento, roupas e abrigo. Cada um de ns
sempre viveu na dependncia de uma rede de outras pessoas que se estende
atravs do tempo e do espao, sem fim.
Assim, as nossas aspiraes devem incluir o bem-estar dos outros. Se
estamos buscando a verdade, as nossas aspiraes devem estar enraizadas na
realidade de que existimos de maneira interdependente. Cada um de ns est se
esforando para alcanar a felicidade e se libertar do sofrimento e ansiedade. No
entanto, muitas vezes os nossos esforos falham. Novamente, lembre-se do
comentrio de Shantideva em A Guide to the Bodhisattvas Way of Life: Aqueles
que desejam escapar do sofrimento se lanam rumo ao sofrimento. Mesmo com
o desejo de felicidade, movidos pela deluso, eles destroem a sua prpria
felicidade como se fosse uma inimiga.[44] Como precisa essa imagem de
nossas prprias vidas e do mundo em geral! Isso nos leva ao nosso segundo nobre
objetivo: O que posso fazer para ajudar?

Ao longo dos anos, desde que recebi esses ensinamentos sobre bodicita pela
primeira vez, foi ficando cada vez mais claro para mim que o cultivo da
compaixo sobretudo uma questo de prestarmos ateno aos outros em vez de
nos esforarmos para nos preocupar com eles. Como j discutimos antes, a
compaixo no sentir pena: em vez disso, ela ver o sofrimento e
automaticamente aspirar que possa ser aliviado. Por exemplo, se voc est
passando pela cena de um acidente, espera espontaneamente que ningum tenha
ficado ferido com gravidade. Esse tipo de compaixo no requer uma grande
prtica espiritual. o resultado natural de prestar ateno ao sofrimento dos
outros.
Quando observamos a magnitude do sofrimento no mundo e a maneira pela
qual tolamente perpetuamos as fontes do nosso sofrimento, a compaixo uma
resposta natural. Isso nos leva questo: como podemos estar a servio no
apenas para atenuar alguns dos sintomas, mas para eliminar as causas
fundamentais do sofrimento para todos? Para abordar essa questo a partir de
uma perspectiva prtica, faz sentido o fato de que, quanto mais nos curarmos das
aflies mentais e quanto mais desenvolvermos virtudes como a sabedoria e
compaixo, mais eficazes poderemos ser ao nos colocarmos a servio dos outros.
Nas palavras de Shantideva: Aqueles que anseiam superar as esmagadoras
angstias da existncia, aqueles que desejam dissipar as dificuldades do mundo e
aqueles que anseiam por experimentar uma mirade de alegrias nunca devem se
separar do esprito do despertar.[45]
Temos o desafio de descobrir a nossa natureza bdica e tambm o desafio de
despert-la. Esse no um estado passivo de conscincia. Pelo contrrio,
podemos dar alguns passos para despertar a nossa prpria natureza bdica, de
forma a torn-la ativa em nosso comportamento fsico, verbal e mental. A chave
o cultivo da grande compaixo, ou mahakaruna. Lembre-se do tpico da
compaixo ilimitada como a segunda das quatro qualidades incomensurveis.
Esse um tipo de compaixo que no se fixa nas demarcaes de amigo,
inimigo e pessoa neutra, mas abrange todos os seres, eu mesmo e os outros,
incondicionalmente. Todavia, mahakaruna vai um passo alm disso. Ela implica
tomarmos para ns a responsabilidade de aliviar o sofrimento dos outros e de
levar cada um deles, sem exceo, a um estado de alegria duradoura.
Quando Geshe Rabten explicou a diferena entre compaixo ilimitada e
grande compaixo a um pequeno grupo de estudantes em nosso monastrio na
Sua, ele fez uma analogia com as diferentes formas de reagir ao incidente de
uma vaca que ficou atolada em um buraco de esgoto. Uma pessoa que tenha
cultivado a compaixo ilimitada veria a vaca como um amigo querido, e tentaria
libert-la com cordas e com a ajuda de outras pessoas, puxando-a at a terra
firme, para fora da fossa. Mas um bodisatva que desenvolveu a grande
compaixo, assumindo a responsabilidade pessoal de resgatar a vaca, faria tudo

que fosse possvel para libert-la, inclusive pular para dentro da fossa. Quando
um de seus alunos perguntou se deveramos nos considerar como o bodisatva,
Geshe Rabten nos disse sem rodeios: Vocs so a vaca!
A grande compaixo a fora motivadora que inspira todo o modo de vida
do bodisatva. Com a grande compaixo assumimos responsabilidade pessoal pelo
bem-estar de todo o mundo. Ao cultivar essa dimenso da compaixo,
experimentamos um sentimento de profunda inter-relao, que torna o bemestar de cada pessoa to importante quanto o nosso. Assim, a grande compaixo
se expressa por meio dessa aspirao: Que todos os seres sencientes se livrem
do sofrimento e das fontes de sofrimento, e que eu seja capaz de ocasionar isso.

AS TRS DIMENSES DA CONSCINCIA


Com a grande compaixo, aspiramos a libertar todos os seres do sofrimento e
de suas causas, e com o esprito do despertar buscamos uma forma de realizar
essa aspirao. A fim de dar a esse compromisso uma base firme na realidade,
devemos compreender a natureza da conscincia. Esse um modelo da
conscincia em trs dimenses e cada uma delas pode ser testada por meio da
experincia. So elas:
1. a psique;
2. a conscincia substrato;
3. a conscincia primordial.
A psique o reino da mente estudado pelos psiclogos. Inclui toda a gama de
processos mentais, conscientes ou inconscientes, que so condicionados pelo
corpo, especialmente pelo crebro, em interao com o meio ambiente. Esses
processos so especficos quanto a gnero, raa, idade e assim por diante. A
razo mais importante para termos interesse pela psique aprender a distinguir
quais dos processos mentais so propcios para o nosso bem-estar e quais no so.
A psicologia budista experiencial e pragmtica, incentivando-nos a responder a
essas perguntas observando as nossas prprias mentes e a influncia dos estados e
atividades mentais especficos. Conforme nossa habilidade introspectiva se
aprimora, jogamos mais e mais luz sobre um domnio antes obscuro.
Investigando as origens da psique, os contemplativos budistas descobriram
que ela surge a partir de uma dimenso subjacente, chamada de conscincia
substrato, um continuum de conscincia individual que segue de uma vida para
outra, armazenando memrias e outros traos de carter pessoal ao longo do
tempo. Comparando esse ponto de vista ao da neurocincia atual, a psique
condicionada por sinapses cerebrais, neurotransmissores e outros processos

neurais, mas no est localizada no crebro, nem uma propriedade emergente


do crebro e de sua interao com o ambiente, como acreditam os
neurocientistas atualmente.
A existncia da conscincia substrato no apenas uma especulao
metafsica, mas uma hiptese que pode ser colocada prova por meio da
experincia contemplativa. Essa no uma tarefa fcil, e no uma hiptese
que possa ser testada apenas pelo estudo do crebro. um desafio que pode ser
assumido por contemplativos experientes que j alcanaram a quietude
meditativa. Por meio dessa prtica, voc transforma a ateno em um poderoso
feixe de conscincia luminosa, focada e refinada, cortando as camadas
superficiais e turbulentas da psique como um laser. medida que a obscuridade
e as perturbaes dos pensamentos discursivos acalmam, o espao da mente
torna-se cada vez mais transparente. Muitos budistas contemplativos do passado e
do presente afirmam que voc pode ento penetrar o substrato, acessando
sistematicamente memrias de vidas anteriores que foram impressas nesse
continuum de conscincia. Essas memrias podem incluir lembranas de sua
casa, pertences pessoais, amigos, meio de vida e a maneira como morreu.
A conscincia substrato tambm pode ser indiretamente inferida com base
em pesquisas feitas com crianas que relatam memrias de vidas passadas
validadas e at exibem caractersticas fsicas, como sinais de nascena, que
remontam vida anterior. O psiquiatra Ian Stevenson tem feito investigaes
cientficas nessa rea e resumiu 40 anos de pesquisa em seu livro Where
Reincarnation and Biology Intersect.[46] Portanto, alm dos relatos dos
contemplativos, parece haver uma base cientfica indireta para afirmar a
existncia de uma conscincia substrato individual que segue de uma vida para a
seguinte.
A aspirao do esprito do despertar comea a parecer exequvel quando se
considera a possibilidade de o nosso amadurecimento espiritual continuar de uma
vida para a prxima. Se a nossa existncia estivesse confinada a apenas esta vida,
bodicita seria uma mera fantasia, porque, nesta vida apenas, no teramos
nenhuma chance de aliviar o sofrimento de todos os seres. Porm, se cada um de
ns participa de um fluxo de conscincia que flui para um futuro sem fim, ento
temos muito tempo para curar os outros. O Dalai Lama cita frequentemente esse
verso de A Guide to the Bodhisattvas Way of Life: Enquanto o espao perdurar,
enquanto os seres sencientes permanecerem, que eu possa permanecer para
aliviar o sofrimento do mundo.[47]
Alm do domnio da conscincia substrato, contemplativos de vrias
tradies ao redor do mundo e ao longo da histria descobriram uma terceira
dimenso de conscincia, chamada no budismo de conscincia primordial. Ela
transcende as construes conceituais de espao e tempo, sujeito e objeto, mente
e matria, e at mesmo de existncia e no existncia. Essa dimenso da

conscincia inefvel e inconcebvel, mas, como acontece com a psique e com


a conscincia substrato, pode ser experimentalmente explorada por meio da
meditao. Nesse ponto, a quietude meditativa por si s no suficiente. Isso
exige um treinamento rigoroso no insight contemplativo, ou vipashy ana, para
romper todas as construes conceituais e a concretude das nossas categorias
at o ponto em que possamos repousar na natureza vazia e luminosa da prpria
conscincia.
Alguns anos atrs, perguntei ao meu falecido amigo e colega Francisco
Varela, um eminente neurocientista, se esse ponto de vista budista seria
compatvel com o conhecimento cientfico moderno sobre o crebro. Ele brincou
respondendo que essa era uma questo cruel, pois ela de fato compatvel,
mas praticamente toda a pesquisa neurocientfica realizada com base na
premissa contrria, de que a mente no nada mais do que uma funo do
crebro. E, enquanto os cientistas cognitivos limitarem sua investigao psique
e suas correlaes com o crebro, seus pressupostos materialistas permanecero
incontestados e no testados.
Os budistas chamam esse nvel mais profundo de conscincia primordial de
natureza bdica e so dadas trs razes para afirmar que a natureza bdica
est presente em todos os seres. A primeira razo que o dharmakay a, a
conscincia de todos os budas, permeia todo o espao-tempo. A segunda razo
que na natureza ltima da realidade no h distino entre seres iluminados e no
iluminados. Em ltima anlise, somos da mesma natureza que os iluminados. A
terceira razo que todos ns temos a capacidade de atingir a iluminao de um
buda. A tradio budista Mahay ana afirma que essa natureza bdica a fonte de
nosso anseio para alcanar a felicidade genuna, ou nirvana. Por natureza, essa
dimenso da conscincia luminosamente brilhante e originalmente pura,
mas surge impura quando obscurecida pelo apego, dio, deluso e ideao
compulsiva. Repleta das qualidades de um buda, primordialmente presente
desde tempos sem princpio e tambm deve ser levada perfeio por meio do
cultivo apropriado. A natureza bdica a verdadeira natureza imaculada da
conscincia, qual nada precisa ser adicionado e da qual nada precisa ser
removido, mas que precisa ser separada das impurezas que a acompanham, da
mesma forma que o minrio de ouro precisa ser refinado para produzir e
manifestar a pureza intrnseca do ouro. No Lankavatara Sutra, o Buda declara
que a natureza bdica tem em si a causa para o bem e para o mal, e por isso
produz todas as formas de existncia. Como um ator que assume uma variedade
de aparncias.[48]
Se nos esforamos para perceber a nossa natureza bdica ao longo de vrias
vidas, primeiramente purificando a nossa mente, em seguida explorando a
conscincia substrato e, por fim, examinando as profundezas da conscincia
primordial, ento, a grande aspirao da bodicita parece vivel.

NO CAMINHO DO BODISATVA:
TRANSFORMANDO A ADVERSIDADE E A FELICIDADE
Na tradio budista tibetana, so apresentadas duas abordagens para explorar
e manifestar o poder da conscincia primordial. A primeira delas poderia ser
chamada de um modelo de desenvolvimento, no qual a natureza bdica
caracterizada como algo que ns j temos, um potencial que existe dentro de
cada um de ns para alcanar o perfeito despertar espiritual. Em outras palavras,
os obscurecimentos e as aflies de nossa mente no so intrnsecos nossa
prpria existncia. Podem ser irreversivelmente dissipados, permitindo que a
pureza inata de nossa mente se manifeste. A segunda abordagem pode ser vista
como um modelo de descoberta, no qual a natureza bdica apresentada no
como algo que temos, mas sim como algo que j somos ela no , portanto, um
potencial, mas sim uma realidade oculta. De acordo com esse ponto de vista, se
investigarmos quem realmente somos, se pudermos sondar a dimenso mais
profunda do nosso ser, reconheceremos que a natureza essencial de nossa prpria
mente a conscincia primordial que nunca foi contaminada por qualquer
aflio ou obscurecimento mental.
medida que nos aventurarmos no caminho da iluminao, certamente
enfrentaremos bons e maus momentos. Para que possamos florescer em nossa
prtica espiritual e no vacilar cada vez que nos depararmos com a adversidade,
devemos aprender a transformar momentos ruins em alimento para o nosso
amadurecimento espiritual. No sexto captulo de A Guide to the Bodhisattvas
Way of Life, so explicados vrios mtodos teis para transformar a adversidade
em lenha para a fogueira, para aprofundar nossa compaixo e outras qualidades
inatas prpria iluminao. Shantideva elimina uma grande dose de frustrao
desnecessria, depresso e desespero, ao colocar as seguintes questes: Se h
algo que voc possa fazer em relao a um problema, por que se sentir
frustrado? Se no h nada que voc possa fazer, por que se perturbar?[49]
Um mtodo para transformar a adversidade em uma habilidade ao longo do
caminho us-la como combustvel para intensificar o esprito do emergir, o
desejo de nos libertarmos do sofrimento e de suas causas internas. Queremos nos
curar da deluso, da carncia e da hostilidade. Muitas das dificuldades que
encontramos se originam, em parte, de nossas prprias aflies mentais e de
comportamentos prejudiciais nesta vida. Mas, em algumas ocasies, sofremos
mesmo sem termos cometido qualquer ao negativa. Nesses casos, se
estivermos dispostos a aceitar como hiptese de trabalho a teoria da
reencarnao, em que cada uma das nossas encarnaes condicionada por
nosso comportamento no passado, podemos considerar nossos sofrimentos atuais
como consequncias de nossas aflies mentais e m conduta em vidas
anteriores. No que estejamos sendo punidos por nossos pecados. Em vez disso,

estamos simplesmente experimentando as repercusses naturais de nossa


conduta anterior. Ver nossa vida dessa maneira pode levar a um aprofundamento
do desejo pela liberao das fontes internas de sofrimento e no apenas dos
catalisadores externos da infelicidade.
Um dos principais obstculos para atingir a iluminao a arrogncia um
sentimento de orgulho e autoimportncia. A adversidade tende a esvaziar tal
ostentao, trazendo um maior grau de humildade para a nossa prtica. Os
tibetanos muitas vezes comparam essa arrogncia com o solo do topo de uma
grande montanha, to delgado que nada pode crescer. Todo o solo do topo acaba
por se sedimentar no vale, proporcionando um campo frtil para o crescimento.
Do mesmo modo, no vale da humildade que as qualidades da iluminao
crescem, e no nos picos estreis da arrogncia.
Por fim, a experincia da adversidade pode fornecer uma base para a
empatia. Conhecendo nosso prprio sofrimento, podemos nos identificar com os
problemas dos outros. Isso pode comear a despertar empatia e compaixo.
Infelizmente, s vezes a experincia de conflito pode nos levar a revidar,
infligindo sofrimento semelhante aos outros. Ento, o nosso desafio aprender a
transmutar a dor em compaixo, em vez de ressentimento ou vingana. Dessa
forma, nossa prtica funciona como um elixir alqumico, transformando os
eventos adversos de nossas vidas em crescimento espiritual.
Estamos frente ao desafio de transformar no apenas os momentos ruins,
mas tambm os bons momentos em prtica espiritual, que pode ser facilmente
negligenciada quando tudo parece estar indo bem. A esse respeito, Padampa
Sangy e, contemplativo budista indiano do sculo XI, comentou: As pessoas so
capazes de lidar com apenas um pouco de felicidade, mas podem lidar com
muitas adversidades.[50] Como muitos de ns j presenciaram, grandes
dificuldades podem trazer o que as pessoas tm de melhor: autossacrifcio,
compaixo, altrusmo, desejo de servir aos outros. Porm, quando as pessoas
esto aninhadas no luxo e no conforto, isso pode facilmente produzir arrogncia e
complacncia.
Bodicita a essncia do modo de vida do bodisatva e o elixir que transforma
todas as nossas atividades em prtica espiritual. As prticas de ioga dos sonhos e
da Grande Perfeio que se seguem so fundamentais para o cultivo do insight
necessrio para levar a aspirao do bodisatva fruio. Mas o prato principal de
todo esse banquete de prticas do Darma o prprio cultivo de bodicita.

12 Prtica diurna de ioga dos sonhos

CO M A P R T I CA D I U RN A D A I O G A D O S sonhos, iniciamos o
treinamento de bodicita absoluta o cultivo do insight contemplativo sobre a
natureza da realidade, com nfase especial na conscincia primordial. Gy atrul
Rinpoche, lama snior da ordem Ny ingma e um dos meus principais mentores,
foi quem me deu os meus primeiros ensinamentos sobre ioga dos sonhos, em
1990.

Algumas pessoas nascem com um talento especial para reconhecer o estado


de sonho enquanto sonham. Eu no sou uma dessas pessoas, mas descobri que
essa capacidade pode ser melhorada atravs da prtica. Um elemento chave
ficar atento em todos os momentos a situaes que sejam excepcionalmente
estranhas. Isso foi o catalisador do seguinte sonho lcido: dirigia com um amigo e
percebi que o Sol estava se pondo. Decidimos comer algo e, ento, paramos em
uma lanchonete com decorao estilo anos 1950. Sentados em uma mesa de
frmica prxima janela, esperando para sermos atendidos, olhei pela janela e
reparei que o Sol ainda estava alto no cu. Pensei: Isso impossvel. S posso
estar sonhando! Ao mesmo tempo, eu estava bem ciente de que todo o
ambiente era um cenrio de sonho. Uma das coisas mais estranhas quanto aos
meus sonhos lcidos que eu sei que h um outro corpo deitado sobre a cama
durante o sonho, mesmo sem ter nenhuma evidncia experimental para isso.
Toda a minha conscincia perceptiva est limitada ao sonho. Nesse sonho em
particular, eu me levantava entusiasticamente e caminhava em torno da
lanchonete, dizendo s outras pessoas que estavam l: Voc sabe que isso um
sonho? Elas olhavam para mim com olhares vazios e ento cheguei concluso
de que eu, o Alan do sonho no restaurante, era o nico que estava ciente do fato
de que eu, o Alan que dormia na cama, estava sonhando.
A prtica da ioga dos sonhos comea durante o dia, quando examinamos a
natureza onrica da experincia de viglia. Vamos comear com uma meditao
que pode abrir esse caminho de explorao.
Em preparao para a prtica noturna da ioga dos sonhos, toda noite quando
estiver adormecendo, estabelea uma firme determinao, pensando: Nesta
noite, vou prestar ateno aos meus sonhos. Vou me recordar deles. Que eles
sejam vvidos. Quando eu acordar, antes de me mover, retornarei para o sonho.
Ao acordar, pode ser que voc esteja emergindo diretamente de um sonho.
Antes de mover o corpo, volte para o sonho e talvez, se voc for realmente
delicado, leve como o toque de uma asa de borboleta, poder ser capaz de
deslizar de volta para o sonho mantendo-se lcido. Essa a maneira mais fcil de
atingir a lucidez. To logo desperte do sonho, escorregue de volta, com o
reconhecimento de que est sonhando. Isso muito sutil e pode ser difcil, mas,
enquanto emerge do sonho, tente se tornar consciente de seu contedo. Voc
pode manter um dirio de sonhos, um caderno contendo algumas das principais
caractersticas para que voc possa desenvolver algum reconhecimento de seus
sinais de sonho.

PRTICA

Como fez anteriormente, comece estabelecendo o corpo em uma postura


adequada. Sente-se ereto, em uma posio confortvel, quieto e vigilante. Faa
trs respiraes profundas e, apenas por alguns minutos, observe a respirao,
acalmando a mente.
Agora, com a mente relativamente calma e clara, analise de maneira
introspectiva que imagem tem de si mesmo. Quando voc pensa eu sou, que
aparncias vm mente? Conforme investiga isso, veja o conjunto de imagens e
ideias que associa a si mesmo. Em seguida, questione se isso realmente voc,
ou apenas contedos mentais com os quais se identifica. O verdadeiro voc
pode ser encontrado em algum lugar dentro dessa matriz de eventos em seu
corpo e em sua mente, matriz que voc investigou com cuidado na prtica
anterior das quatro aplicaes da ateno plena? Ou h alguma evidncia de que
voc existe fora dessa matriz de experincia, separado de todas as aparncias
que surgem mente?
Abra os olhos e olhe ao redor, observando as formas e cores que surgem
sua conscincia visual. Note que essas coisas que voc percebe so aparncias
para a sua mente, no so coisas puramente objetivas, independentes da
conscincia. O mesmo vale para os sons que ouve, para os odores e as sensaes
corporais que sente. Todos eles consistem em aparncias para os seus sentidos
fsicos.
Agora, feche os olhos e observe as coisas que voc pensa que existem l
fora quando seus olhos esto fechados. Todos esses fenmenos conceituais que
voc imagina tambm consistem em imagens para a sua mente. Tudo o que
voc vivencia feito de aparncias, at mesmo o seu prprio senso de identidade
pessoal.
Olhe para a sua mente, notando o que voc de fato observa. Veja o que surge
quando voc pensa a minha mente, e veja se essa entidade existe em si e por
si.
Por fim, analise se a sua prpria conscincia uma entidade real e
independente. Veja se pode apenas estar consciente de estar consciente,
observando com ateno o fenmeno puro da conscincia. Investigue se ele pode
ser encontrado em um exame cuidadoso ou se parece escapar a essa
investigao.
Por esses meios, investigue a natureza da sua prpria identidade, o contedo
do seu mundo perceptivo e do seu mundo conceitual, sua mente e a prpria
conscincia, para ver se h algo no universo da sua experincia que possa ser
considerado como existente de forma independente. A constatao de que nada
existe dessa forma chamada de insight sobre a natureza vazia dos
fenmenos. Mas, ainda que todas as coisas sejam vazias dessa maneira, elas
ainda surgem como se tivessem existncia independente, assim como num
sonho. Tanto no estado de viglia quanto no de sonho, as coisas de fato existem de

uma forma radicalmente diferente de como elas surgem. Em ambos, tudo


parece existir por si mesmo, independentemente da nossa conscincia. Mas essa
maneira de surgimento ilusria, semelhante ao sonho. Isso no significa que o
mundo no deva ser levado a srio, que as nossas alegrias e tristezas sejam
insignificantes ou que tudo seja, de algum modo, sem sentido. Pelo contrrio,
todos esses fenmenos esto surgindo de forma interdependente, assim como o
contedo de um sonho surge em relao mente do sonhador.
Enquanto encerra essa meditao, abra os olhos deixando que essa
conscincia flua para a sua experincia de viglia. Permita que ocorra uma
transio suave entre a sua meditao e a sua participao ativa no mundo.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


Shantideva explica que h dois tipos de bodicita: um esprito que aspira ao
despertar espiritual e um esprito de se lanar ativamente a esse despertar. A
ponte entre os dois tipos um conjunto de prticas que estrutura o meio de vida
do bodisatva: as seis perfeies.
A primeira dessas perfeies a generosidade, o esprito de doao. Isso
significa doar de inmeras formas: doar bens materiais, doar a amizade e o
amor, doar proteo, doar conselhos espirituais. O modo de vida do bodisatva
est saturado com o esprito de generosidade. A prtica de shamatha, por
exemplo, pode ser um ato de generosidade, de tornar a sua prpria mente um
instrumento til a servio dos outros, de forma altrusta. A generosidade
estabelece a orientao do caminho como um todo a de se colocar a servio.
A segunda perfeio a disciplina tica, resumida no seguinte princpio:
evitar infligir danos a si mesmo e aos outros e, quando surgir a oportunidade,
colocar-se a servio. O tema da no violncia, de ahimsa, fundamental.
Quando tiver a chance, tente ativamente aliviar o sofrimento dos outros e trazer
alegria por meio de sua conduta fsica, verbal e mental. Esse o ncleo tico da
prtica budista.
A terceira perfeio frequentemente traduzida como pacincia, mas
tambm significa coragem espiritual (semshuk), tolerncia ou bravura
indmita. Inclui a vontade de nos aplicarmos prtica espiritual interior e servir
aos outros, mesmo quando isso significa enfrentar problemas. Existem muitas
dificuldades na vida como ela , mas o caminho para a iluminao traz
superfcie os problemas que poderiam permanecer dormentes. difcil enfrentar
as nossas prprias imperfeies e isso que a prtica do Darma nos obriga a
fazer.
Em seguida, vem o zelo, ou entusiasmo. Isso significa prazer em se engajar

em uma conduta saudvel, quer seja como um meditador dedicado, um pai


devotado, um esposo amoroso, um lojista bondoso, um mdico atencioso ou
simplesmente como um membro altrusta da sociedade.
Sobre essa base formada pelas quatro primeiras prticas vem a perfeio da
meditao, que significa equilibrar e refinar a mente, especialmente por meio da
quietude meditativa. Dessa forma, podemos aprimorar a mente e transform-la
em uma tima ferramenta para a explorar a realidade e tambm para cultivar
virtudes como a bondade amorosa e a compaixo.
Finalmente temos a sexta perfeio do modo de vida de um bodisatva, a
sabedoria, que a culminncia das seis perfeies. Em suma, a motivao por
trs do modo de vida do bodisatva a bodicita relativa, e sua fruio o cultivo
da bodicita absoluta ou insight sobre a natureza da conscincia primordial.
Os lamas tibetanos com quem estudei enfatizaram a importncia do que
chamam mi zpey ny ingjey, ou compaixo intolerante, declarando que no ser
capaz de suportar o sofrimento dos outros uma coisa boa. Quando ouvi isso pela
primeira vez, me perguntei como o caminho para a iluminao poderia ser
alegre uma vez que nos abrimos cada vez mais para a misria do mundo.
Quando fiz essa pergunta, Sua Santidade o Dalai Lama respondeu que isso
possvel equilibrando a compaixo com o insight sobre a natureza da realidade. A
sabedoria o grande remdio que cura a mente de suas aflies de forma
radical e irreversvel. A compaixo a motivao, mas o antdoto direto para a
ignorncia que est por trs de todo o sofrimento a sabedoria.
Devaneio sobre o eu
O objetivo da prtica diurna da ioga dos sonhos diurna perceber a natureza
onrica da realidade no estado de viglia, comeando com um exame da prpria
identidade pessoal. Comeamos com essa pergunta: a que a noo de eu se
refere? Voc pode ter um conceito de eu, mas isso no igual ao eu, assim
como o conceito de mo no a mo. Por isso, importante fazer a distino
entre as ideias que voc tem sobre si mesmo e o voc a que se referem essas
ideias.
Cada um de ns veio a existir na dependncia de causas e condies, como
ter pais. E todos ns temos vrios atributos, como nossas caractersticas fsicas,
gnero, inteligncia, memria, imaginao e habilidades de linguagem. Junto a
essas qualidades, cada um de ns tem um corpo, pensamentos, emoes,
memrias, problemas e objetivos. E h outras coisas que temos, como parentes,
amigos, bens materiais e reputao. Podemos falar de o meu pas e o meu
planeta ou at mesmo identificar a Via Lctea como a minha galxia.
Todas as coisas que identificamos como sendo nossas esto em um
constante estado de fluxo. O nosso humor muda, o nosso corpo muda e a nossa
ateno muda. Embora possamos, de forma geral, ter a sensao de que o nosso

corpo e a nossa mente esto sob o nosso controle, vez aps vez isso se mostra
falso. O nosso corpo envelhece e adoece, quer gostemos ou no. As nossas
emoes, pensamentos e ateno muitas vezes parecem ter vontade prpria. E,
claro, o controle que temos sobre nossos bens pessoais, amigos, colegas e sobre o
ambiente em geral comprovadamente limitado, a ponto de s vezes parecer
que perdemos completamente o controle. Cada um de ns sonha noite os
sonhos so nossos e de ningum mais , mas repare como o controle que temos
sobre eles pequeno.
Isso implica que pode haver algo arbitrrio sobre a gama de coisas que
chamamos de nossas. Consideramos alguns eventos e qualidades como sendo
nossos simplesmente porque ns e mais ningum podemos experiment-los,
como nossos pensamentos, desejos e sonhos. Consideramos tambm outras
coisas como sendo nossas porque pensamos que vieram de ns e que podemos
control-las, como nossos pensamentos, emoes, filhos e realizaes. Alm
disso, h aquelas so nossas simplesmente porque nos identificamos com elas
como resultado de uma associao real ou imaginria, como o nosso time de
futebol, a nossa nao ou a nossa raa.
Mas experimentarmos algo no o torna inerentemente nosso. Muitas vezes, os
objetos e as pessoas que achamos que podemos controlar agem de forma
contrria aos nossos desejos, e o fato de algumas coisas serem nossas , muitas
vezes, uma questo de conveno social. Se algo fosse inerentemente nosso,
estaria sempre sob nossa posse e controle, mas isso no verdade nem mesmo
sobre a nossa prpria conscincia, quanto mais sobre outras coisas. Entretanto,
uma vez que tudo com o que nos identificamos impermanente e sujeito a
mudanas, ao final, isso no ser mais nosso, ou porque ter desaparecido, ou
porque ns teremos desaparecido. Em suma, a noo de de fato termos o que
quer que seja uma iluso. Os nossos atributos e posses no so inerentemente
mais nossos do que aqueles com os quais nos identificamos durante um sonho.
Agora, examinemos a natureza do eu que aparentemente tem todos esses
atributos e pertences. Pense em quem voc , no no que voc tem. muito
provvel que, o que vem mente so imagens mentais com as quais se
identificou. Mas nenhuma dessas imagens intrinsecamente sua e, como voc as
est percebendo enquanto objetos de sua mente, no parece plausvel que elas
sejam voc de verdade. So apenas coisas que voc vivencia e s quais se agarra
como se fossem eu ou meu.
Lembre-se de uma situao em que voc tenha sido elogiado ou maltratado.
No primeiro caso, voc pode ter se sentido lisonjeado, pois voc era a pessoa que
estava sendo elogiada. Mas, se analisar as palavras usadas, ver que o que a outra
pessoa estava exaltando no era voc, mas sim alguma qualidade, posse ou
realizao atribuda a voc. Mas nada disso realmente voc e, ento, a sua
resposta eufrica ao elogio foi baseada em uma iluso. O mesmo verdadeiro

no caso de voc ter sido insultado. Ningum nunca de fato o insultou, apenas se
referiram a aparncias que surgiram s suas prprias mentes, e nenhuma delas
inerentemente voc. Assim, no h necessidade de tomar como ofensa pessoal,
como ser ridicularizado em um sonho.
Quando examinamos cuidadosamente o que consideramos como sendo eu
e meu, no encontramos nada que seja intrinsecamente eu ou meu. No
budismo, dizemos que eles, eu e meu, so vazios de uma existncia
inerente. Mas isso no quer dizer que no existam ou que no tenhamos nenhuma
qualidade ou nenhum bem.
Ns com certeza existimos, bem como outras pessoas e nosso meio ambiente
natural. Mas como ns existimos? De acordo com a viso do Caminho do Meio
(Madhy amaka), tudo consiste em padres de eventos surgindo em um perptuo
estado de fluxo inter-relacionado com o ambiente nunca separado, nunca
isolado e nunca independente. Assim, qualquer noo de si mesmo ou de alguma
outra coisa como existindo de maneira independente ilusria.
Todos os fenmenos condicionados surgem como eventos dependentemente
relacionados, pois dependem de:
1. causas e condies anteriores;
2. componentes e atributos do prprio fenmeno;
3. designao conceitual que identifica o fenmeno que possui esses
componentes e atributos.
Poderamos analisar qualquer fenmeno natural com base nesses trs modos
de dependncia, mas vamos continuar a enfocar a natureza do eu. Afinal, cada
um de ns vive e age a partir do centro de nosso prprio mundo; sendo por isso
razovel partir do centro e, ento, passar para o mundo exterior.
Quanto ao primeiro modo de dependncia, todos passam a existir na
dependncia de causas e condies anteriores, como os pais. Em segundo lugar,
cada um de ns existe na dependncia de nosso corpo, mente e outras
caractersticas pessoais. Mas esses dois fatores causas anteriores e qualidades
atuais no so suficientes para constituir uma pessoa. Para que voc possa vir a
existir, algum tem que pensar voc. Esse o poder da designao conceitual.
Ao identific-lo como aquele que porta os seus atributos e possui o seu corpo e a
sua mente, voc trazido existncia. Voc e os outros pensam que voc e,
portanto, voc . Mas, se essa designao conceitual for removida, voc
desaparecer, deixando apenas os seus componentes e seus bens para trs, que j
no sero mais seus. Pelo simples fato de existir como uma sequncia de eventos
relacionados de maneira dependente, voc vazio de existncia inerente. O
significado disso que vivemos em um mundo participativo, no qual nossos
prprios pensamentos desempenham um papel fundamental na determinao do
que experimentamos como realidade. Acorde para esse fato e seja bem-vindo

ao mundo do devaneio lcido. Esse o primeiro passo para a prtica diurna da


ioga dos sonhos.
Geshe Rabten uma vez comentou que, se voc desenvolver primeiramente a
bodicita relativa e, em seguida, insights sobre a natureza vazia de si mesmo, voc
experimentar isso com alegria, como se tivesse encontrado o mais precioso de
todos os tesouros. Porm, se chegar a essa viso sem primeiro ter cultivado uma
atitude altrusta desinteressada, voc se sentir como se tivesse perdido o mais
precioso dos tesouros. Voc ter realizado no que no existe de modo algum,
mas que no existe independentemente de todos os outros e de seu meio
ambiente. Ento, se estiver vivendo como se o seu bem-estar fosse separado de
todos que o rodeiam, ser um choque desagradvel descobrir que esse eu que
voc tem tratado com tanto carinho, acima de todos os outros, nem sequer existe.
Devaneio sobre o mundo
No apenas o eu que ilusrio, que surge pelo poder da designao
conceitual. O mesmo vale para todo o universo de experincias. Tudo o que
experimentamos existe em relao s nossas percepes e concepes. Tudo o
que percebemos por meio dos nossos cinco sentidos fsicos e do nosso sexto
sentido mental vises, sons, cheiros, sabores, tato, pensamentos, imagens
mentais e emoes so como reflexos em um espelho, como uma apario ou
um sonho. E, no entanto, em meio a essas aparncias, a mente conceitual isola e
designa objetos que concebe como possuindo certos atributos. Dessa forma,
construmos os objetos que compem o nosso mundo de ambos os lados,
subjetivo e objetivo , e todos esses objetos carregam certos atributos, tais como
componentes espaciais e temporais. Trazemos nosso mundo existncia nos
concentrando em certas aparncias e ignorando outras, e ento dando sentido a
essas aparncias por meio de nossas demarcaes e interpretaes conceituais.
Por ignorncia, como um sonhador no lcido, tomamos este mundo imaginado
como se fosse substancial e independente. Acorde para a realidade de si mesmo
e do resto do mundo como uma matriz de eventos dependentemente
relacionados, cada um deles vazio de existncia inerente, e voc se lanar por
completo prtica diurna da ioga dos sonhos.
Essa maneira de ver o mundo perfeitamente compatvel com a
compreenso neurocientfica moderna da experincia. De acordo com pesquisas
recentes, a principal diferena entre o sonho e a imaginao de um lado e a
percepo de viglia de outro que as experincias de viglia so acionadas por
estmulos do mundo externo.
Porm, quando estamos sonhando, surgem muitos reflexos semelhantes do
mundo exterior vises, sons, cheiros, gostos, pensamentos e emoes. Esses no
so diretamente despertados por estmulos do nosso mundo intersubjetivo. Da
mesma forma, na imaginao, enquanto estamos bem acordados, podemos

trazer algo mente que ningum mais pode experimentar. Mas os neurocientistas
descobriram recentemente uma grande sobreposio entre os tipos de funes
cerebrais que correspondem ao sonho, imaginao e percepo de viglia. A
experincia de viglia tambm implica um tipo de imaginao ativa, moldando
um mundo sob a influncia da estimulao fsica externa do crebro, em
oposio estimulao apenas interna.
As cores que voc percebe ao percorrer o seu campo visual no so
qualidades intrnsecas dos objetos externos. Como ressalta o neurologista Antnio
Damsio: No h nenhuma imagem do objeto que esteja sendo transferida do
objeto para a retina e da retina para o crebro.[51] Em vez disso, essas imagens
so catalisadas por ftons que atingem a sua retina e produzem eventos
eletroqumicos ao longo do nervo ptico at o crtex visual, embora as formas e
cores que voc percebe paream ser qualidades inerentes dos objetos existentes
no mundo externo real. Alguns cientistas do crebro concluram que essas
formas e cores percebidas existem apenas dentro do crebro. Mas ningum de
fato viu o vermelho de uma rosa ou o azul do cu em meio s configuraes
neurais do crebro. Essa apenas uma concluso especulativa baseada no
pressuposto de que, uma vez que as imagens visuais no existem no mundo fsico
fora do crebro, devem ento existir dentro do crebro. Imagine s!
Essa natureza ilusria tambm verdadeira para os sons que ouvimos, para
os odores, os gostos e as sensaes tteis que sentimos. Todos eles consistem em
aparncias para a mente, aparncias que no tm existncia inerente no mundo
exterior ao crebro ou no interior do crebro. Mas eles parecem ser atributos de
objetos inerentemente existentes em um mundo real objetivo e, ao nos fixarmos
a eles dessa maneira, persistimos em nosso atual estado de devaneio no lcido.
Pelo menos desde o tempo de Descartes, os cientistas reconhecem a natureza
subjetiva do mundo dos sentidos e tm procurado compreender o mundo fsico
real, uma vez que ele existe independentemente dos nossos sentidos. O que vem
mente quando voc tenta conceber o universo como se ele realmente existisse
l fora? Pense, por exemplo, em um tomo. Voc talvez ir imaginar um
pequeno ncleo com eltrons circulando ao redor, dentro de um domnio muito
maior de espao vazio. Se voc pensar no ncleo, poder imaginar prtons e
nutrons. Se voc conhecer um pouco mais de fsica, poder imaginar partculas
ainda menores, como os quarks. Voc adquiriu essas imagens mentais dos fsicos,
que as apresentam como modelos dos constituintes fundamentais do mundo
fsico, que esto realmente no mundo externo, ainda que ningum esteja olhando.
Mas as imagens que vm mente quando pensamos em partculas elementares,
tomos, campos e energia so criaes livres da mente humana. Eles no so
fotografias instantneas dos componentes reais do mundo fsico, como se
existissem independentemente da conscincia. So modelos teis, com certeza,
mas s existem em relao mente que os concebeu, assim como as

experincias sensoriais existem apenas em relao aos nossos modos de


percepo.
Esse ponto de vista do Caminho do Meio, que evita os extremos filosficos do
substancialismo e do niilismo, resumido no Sutra da perfeio da sabedoria
em 20.000 versos. Nesse texto, Subhuti, um dos discpulos de Buda, declara:
Um bodisatva analisa todos os fenmenos como semelhantes a uma
apario, um sonho, uma miragem, um eco, uma imagem, um reflexo da Lua
na gua, uma criao mgica, uma aldeia de espritos Digo que at mesmo o
nirvana como um sonho, como uma iluso. Se eu fosse capaz de apreender
qualquer fenmeno mais sublime do que o nirvana, deveria dizer que at mesmo
esse fenmeno como um sonho, como uma iluso.
Prtica diurna da ioga dos sonhos
A prtica diurna da ioga dos sonhos de grande valor em si mesma e
tambm uma preparao vital para a prtica noturna da ioga dos sonhos. Para
reconhecer os sonhos pelo que so, pode ser til adquirir o hbito de testar a
natureza da nossa experincia no decorrer do dia. Stephen LaBerge, um
proeminente pesquisador dos sonhos da Universidade de Stanford e coautor do
livro Exploring the World of Lucid Dreaming,[52] desenvolveu uma tcnica para
fazer exatamente isso. Os fenmenos em um sonho, especialmente os materiais
escritos, tendem a ser instveis. Se voc ler algo em um sonho, afastar seu olhar
e, em seguida, olhar de novo, as chances de que o texto seja diferente na segunda
vez so muito elevadas. Se fechar seus olhos e olhar por uma terceira vez,
ainda mais provvel que seja diferente. Para testar se voc est sonhando neste
momento, leia uma frase, feche seus olhos, e depois olhe para ela novamente. Se
na segunda vez voc ler a mesma coisa, mais provvel que no esteja
sonhando. Feche seus olhos e leia uma terceira vez, e, se ainda ler a mesma
coisa, ainda mais provvel que no esteja sonhando. Isso chamado de
verificao do estado da natureza de sua experincia atual.
Na vida cotidiana, quando algo muito incomum acontece, as pessoas
geralmente exclamam: Foi inacreditvel! Parecia mentira! Eu me senti como
se estivesse sonhando. s vezes, dizemos para ns mesmos: Tive que me
beliscar para ver se aquilo era real ou se eu estava sonhando. LaBerge comenta
que se beliscar no uma maneira confivel para realizar uma verificao de
estado, e a minha prpria experincia confirma isso. Muito recentemente, fiquei
surpreso e encantado ao descobrir que eu poderia flutuar vontade. Isso parecia
to real que eu estava confiante de que no estava sonhando, mas me belisquei
apenas para testar a minha hiptese. Com muita certeza, senti o belisco na
minha perna, o que reforou a minha convico de que eu de fato podia levitar.
Porm, mais tarde acordei e, desde ento, no consegui mais voar. Portanto, ou
eu estava sonhando que podia levitar, ou eu estou agora no meio de um longo

sonho em que pareo estar preso terra para sempre. A moral dessa histria
que s porque podemos tocar alguma coisa no significa necessariamente que
ela exista independentemente da nossa experincia. A verificao do estado
proposto por LaBerge muito mais confivel do que o teste do belisco.
Com base em seu teste, voc pode chegar concluso de que agora est
acordado e no sonhando. Isso verdade: em relao ao seu estado de sonho
comum, voc agora est acordado. Contudo, em relao conscincia
primordial, o estado desperto da conscincia de um buda, neste momento, voc
est sonhando, vivenciando um eu ilusrio em um mundo ilusrio, ambos
fabricados pelo poder do pensamento. Em um texto clssico chamado Natural
Liberation,[53] sobre o qual recebi ensinamentos de Gy atrul Rinpoche, o
contemplativo indiano do sculo VIII Padmasambhava d o seguinte conselho
em relao prtica diurna da ioga dos sonhos: imagine continuamente que voc
esteja sonhando o seu ambiente e todos que nele se encontram, embora,
relativamente falando, voc saiba que est acordado.
Por outro lado, em um sonho noturno, o sonhador no idntico persona no
sonho, uma vez que o sonhador est dormindo na cama e a persona est se
movendo em meio ao sonho. Como sonhador, voc sonha ser um personagem
particular. Voc pode at sonhar que pertence a uma espcie ou gnero diferente,
ou como sendo mais velho ou mais novo do que no estado de viglia. Ou pode
assumir no sonho qualidades, padres de comportamento ou caractersticas que
voc em geral no apresenta no estado de viglia. Em um seminrio que LaBerge
e eu lideramos, uma das participantes, experiente nessa prtica, relatou um sonho
lcido em que se transformou em um disco de vitrola. Depois de ver o mundo
dos sonhos a partir dessa perspectiva vertiginosa por algum tempo, ela ento se
transformou em uma borboleta e voou janela afora. A persona sonhada uma
emanao, uma criao, um artefato do sonhador.
Vamos colocar essa mesma ideia no contexto do estado de viglia. Neste
momento, pense em si mesmo como uma persona no sonho. Quem o sonhador
que sonha voc? Um provvel candidato a sua prpria conscincia primordial,
a dimenso mais profunda do seu ser. Aqueles que vagam pela vida em um
sonho no lcido perderam o contato com a verdadeira identidade, com a
verdadeira natureza, e so aprisionados pela fixao em coisas que no so eu
ou meu como se fossem as nossas verdadeiras identidades e posses. Da
mesma forma, nos fixamos ao mundo que nos rodeia como se fosse
inerentemente real e objetivo, como em um sonho no lcido. O objetivo
principal da ioga dos sonhos diurna tornar-se lcido durante o estado de viglia
como uma preparao para tornar-se lcido quando estamos dormindo, abrindo
o caminho para a prtica noturna da ioga dos sonhos.

13 Prtica noturna de ioga dos sonhos

N O D I A D E SU A I L U M I N A O , O BU D A SE sentou sob a rvore


bodhi firmemente decidido a no se mover at que alcanasse o despertar
espiritual. A noite foi dramtica, com o irromper das vrias realizaes de
Shaky amuni e, enfim, ao amanhecer, veio a sua ltima realizao: o seu bodhi, o
seu despertar. A iluminao do Buda oferece uma boa introduo para esse tema
da prtica noturna da ioga dos sonhos. H um paralelo fantstico. Toda a ideia da
ioga dos sonhos de que, em meio ao sonho, voc desperte. Na terminologia
cientfica moderna isso chamado de sono paradoxal, porque voc est
dormindo e, simultaneamente, est desperto. Se voc se tornar experiente em
sonhos lcidos ou ioga dos sonhos, ter plena conscincia de estar sonhando em
meio ao sonho.

O que acontece quando voc dorme? No incio, as pessoas geralmente


entram em um estado sem sonhos, onde no h nenhuma forma, contedo ou
narrativa. como o reino da no forma no budismo, uma dimenso da
existncia onde os seres esto presentes e conscientes ainda que no haja
nenhum contedo tangvel conscincia e que os seres que habitam esse reino
no tenham corpo. Portanto, o estado sem sonhos anlogo a morrer no reino
humano e renascer no estado da no forma. Esse um tipo de sono em que no
h o movimento rpido dos olhos (REM, rapid ey e movement) caracterstico dos
sonhos. Outro tipo de sono no REM ocorre quando voc no est sonhando, mas
a mente no est desprovida de contedo. Aqui, no h nenhuma sequncia clara
e coerente acontecendo, as imagens apenas surgem sem qualquer carga
emocional. anlogo ao renascimento no reino da forma: podem ser formas
abstratas ou arquetpicas, mas, ainda assim, so apenas formas. De acordo com a
cosmologia budista, os seres que habitam essa dimenso esto corporificados de
forma sutil e etrea, e percebem vrios tipos de aparncias, mas suas mentes
permanecem em um estado to refinado que no se envolvem em nenhum tipo
de conduta no virtuosa. No h nenhum carma negativo sendo acumulado no
reino da forma ou da no forma.
Ento, cerca de 90 minutos depois de adormecer, pode ser que voc comece
a ter o seu primeiro sonho. Voc entra em sono REM e ocorre no crebro uma
configurao especfica da atividade no EEG (eletroencefalograma). Existem
tambm outras respostas que permitem que os investigadores reconheam que
algum est sonhando com base numa srie de medidas cientficas objetivas.
Caracteristicamente, em um sonho h uma linha de histria. Normalmente, voc
tem um corpo, assume uma forma fsica no sentido de que voc pode tocar,
ver e ouvir a sua presena fsica no sonho, mas essa forma no material,
porque no uma configurao de massa-energia. Em alguns sonhos voc pode
ser mais semelhante a uma conscincia abstrata no espao, mas, com
frequncia, como todos sabemos, ns adquirimos uma certa persona em um
sonho. Ento, nos movemos pelo sonho.
Isso semelhante a renascer no que os budistas chamam de reino do
desejo e sabemos que, frequentemente, os sonhos expressam desejos. Desejos
sensoriais so a base e a fora motriz de muitos sonhos. Outra caracterstica
comum a desorientao deluso, embotamento, um estado de confuso. Por
exemplo, percebo que, em muitos sonhos no lcidos, eu normalmente me
perco. Lembro-me de um sonho onde eu estava em um grande hotel vagando
por um labirinto de corredores, perguntando: Onde est o meu quarto? Onde
est o meu quarto? Tanto o budismo quanto a psicologia freudiana consideram
sonhos no lcidos como estados de deluso: pensamos estar lidando com uma
realidade objetiva independente de nossa mente, mas no estamos.
Ento, finalmente, o sonho chega ao fim e voc morre naquele reino do

desejo, podendo depois disso passar algum tempo em um reino da no forma


entre os sonhos. Em seguida, vem outro sonho. As ltimas duas horas de uma
noite inteira de sono contm a maior densidade de sonhos. Um nico sonho, com
sua prpria narrativa contnua, pode durar at 45 minutos. Por sinal, os
pesquisadores descobriram que o tempo no sonho mais ou menos equivalente
ao tempo durante a viglia. Ou seja, se no sonho pareciam ter se passado 45
minutos, esse perodo provavelmente durou cerca de 45 minutos no estado de
viglia. Portanto, esse o formato bsico do sonhar. Usando a analogia da morte e
renascimento na viso budista, em uma noite voc morre e em seguida
renasce metaforicamente em reinos diferentes. Voc morre e renasce, morre e
renasce, e segue em frente a cada uma das vezes impulsionado pelo qu? No
Ocidente moderno, diramos que voc impulsionado pelo subconsciente e, com
base nisso, analisaramos os sonhos a fim de lanar luz sobre o inconsciente. No
entanto, no budismo, afirma-se que os sonhos emergem da conscincia substrato
ou da base da morte e renascimento, que o ciclo de vida.
Dessa forma, voc experimenta a quintessncia do samsara em uma nica
noite. Recordando o seu sonho a partir da perspectiva de ter acabado de acordar,
voc pode pensar: Ah, por que me agarrei a essa persona no sonho? Eu no era
realmente essa pessoa. Voc se pergunta: Por que eu passei por toda essa
turbulncia? Por que me agarrei a tudo nesses sonhos como se fosse real, me
tornando to perturbado e triste, to desorientado com todas essas emoes que
surgiram? Como pude me deludir tanto? A razo simples: voc se esqueceu de
quem voc e se identificou com o que voc no . claro que isso acontece
porque, quando adormece, voc se torna amnsico at mesmo de um sonho em
relao ao outro. Quando estamos sonhando, raramente nos lembramos do que
estvamos sonhando antes. muito difcil at mesmo lembrarmos do ltimo
sonho da noite, ainda mais dos anteriores. Conforme voc acorda, o sonho pode
escapar to rapidamente que tentar lembr-lo como tentar agarrar gua. De
acordo com a viso de mundo budista, essa amnsia satura todo o conjunto das
experincias samsricas, conforme o nosso fluxo de conscincia transmigra de
uma forma de corporificao para a seguinte.
Por um lado, quando estamos sonhando, esquecemos quem somos. Por outro
lado, mais do que apenas uma questo de esquecer, porque, se realmente
tivssemos esquecido, poderamos nos preocupar com quem sou eu?. Esse
questionamento seria um passo na direo da sabedoria reconhecer que no sei
quem sou. E haveria um passo seguinte na direo de reconhecer: No sei
quem eu sou e nem tenho certeza de que isso seja real ou no. Se pudssemos
realizar esses questionamentos, estaramos a meio caminho da lucidez.
O Buda afirmou ter despertado e, segundo a sua perspectiva, estamos todos
adormecidos. Todos os nossos estados, incluindo o sono e a viglia, so um sonho.
Temos a capacidade de despertar, mas como se tivssemos esquecido nossa

verdadeira natureza, que no outra seno a nossa natureza bdica. E, no meio


dessa ignorncia, tomamos o que no eu e nem meu por aquilo que
percebemos como eu e meu. Fixamo-nos nossa histria pessoal, ao nosso
corpo, gnero, talentos, habilidades e defeitos. Fixando-nos aos nossos desejos, s
nossas esperanas e aos nossos medos, solidificamos ainda mais a nossa noo
reificada de identidade pessoal. E, conforme nos identificamos com inmeras
coisas que no so nem eu nem meu, ignoramos quem realmente somos.
Essa questo nem sequer levantada. Observe o paralelo notvel que h entre
despertar dentro de um sonho e o despertar do Buda para a realidade como um
todo. Quando nos tornamos completamente lcidos dentro de um sonho,
compreendemos a natureza da nossa verdadeira identidade e o mundo de sonhos
ao nosso redor, e essa percepo produz grande alegria e liberdade. Isso tambm
vlido, em uma escala infinitamente mais ampla, quanto iluminao do Buda.
Os contemplativos budistas tibetanos relatam que h paralelos importantes
entre adormecer e morrer, entre o estado de sonho e o bardo, e entre acordar e
reencarnar. H tambm uma correlao entre tornar-se lcido em um sonho e
perceber a natureza ilusria dos fenmenos no estado de viglia. Em ambos os
casos, voc acorda em meio a uma realidade de sonho e v as coisas como
elas realmente so.
O falso despertar outra experincia comum, estudada por pesquisadores
dos sonhos lcidos. Stephen LaBerge comenta:
s vezes, falsos despertares ocorrem repetidamente: o sonhador
lcido parece ter acordado repetidas vezes, mas, em cada uma
dessas vezes, acaba descobrindo que ainda est sonhando. Em
alguns casos, os sonhadores lcidos relatam dezenas de falsos
despertares, antes de, finalmente, acordarem de verdade
Muito ocasionalmente, um sonhador pode reconhecer um falso
despertar como um sonho. No entanto, isso muitas vezes difcil,
porque o sonhador acredita que j est acordado e nunca pensa
em questionar essa premissa.[54]
Algum que tenha compreendido completamente a natureza da realidade
como um todo chamado de buda, ou aquele que despertou, ou um ser
iluminado. Mas assim como ocorrem os falsos despertares na transio do
estado de sono para o estado de viglia, podem tambm ocorrer falsos
despertares espirituais. Ao experimentar alguma mudana excepcional em sua
conscincia, algumas pessoas concluem que esto iluminadas e rapidamente
proclamam isso para o mundo. Mas, em muitos casos, os estados msticos de
conscincia que experimentaram so transitrios, e elas acabam retornando s
atitudes e comportamentos de costume. importante reconhecer esses falsos
despertares pelo que so, sem chegar concluso prematura de que, como o seu

prprio despertar foi transitrio, ningum mais pode ter encontrado algo mais
duradouro.
Nenhuma tradio espiritual tem o monoplio da definio de iluminao,
mas, na tradio budista, essa realizao significa estar para sempre livre de
todas as aflies mentais e obscurecimentos, como egosmo, desejo, hostilidade,
inveja e arrogncia, bem como dos sintomas de tais aflies, incluindo
ansiedade, depresso e frustrao. O corao e a mente foram curados de suas
tendncias aflitivas de forma completa e irreversvel, e isso se reflete no
comportamento. Mas a ocorrncia dos falsos despertares est descrita at
mesmo na literatura budista tradicional. H um relato envolvendo um monge
mais velho e seu discpulo iniciante. Enquanto o mestre equivocadamente
pensava j estar iluminado, seu jovem discpulo tinha realmente atingido a
liberao, mas continuava o treinamento para adquirir mais conhecimentos e
virtudes. De maneira intuitiva reconhecendo que seu mestre havia avaliado mal
seu prprio grau de amadurecimento espiritual, o discpulo traou uma estratgia
para trazer o velho monge realidade. O discpulo criou mentalmente uma
apario de um elefante enfurecido e projetou essa iluso para que seu mestre
pudesse v-la. O mestre confundiu a iluso com um elefante real e, em pnico,
saiu correndo. Quando o discpulo o alcanou, aps a dissoluo da apario, ele
calmamente perguntou: Mestre, possvel para um ser iluminado sentir tanto
pnico frente a uma iluso? Esse foi o toque de despertar necessrio para o
mestre, que voltou para a sua prpria prtica com uma compreenso mais clara
do que ainda precisava ser realizado.

PRTICA
Deixe a sua conscincia repousar no corpo, no campo das sensaes tteis,
incluindo os seus ps, panturrilhas, coxas, ndegas, tronco, pescoo e cabea.
Sinta o ritmo, o fluxo da entrada e da sada do ar. Observe essas sensaes tteis e
observe como se deslocam durante cada respirao.
D um descanso sua mente, essa mente que est sempre pulando de um
estmulo para outro em busca das fontes de excitao. Opte por sair da agitao e
escolha a serenidade. Por puro hbito, certamente surgiro pensamentos
discursivos involuntrios e imagens mentais no espao da conscincia. A cada
expirao, como o soprar de uma brisa suave, deixe o contedo da mente ser
liberado e levado.
Mesmo que esteja ereto na posio sentada, a cada expirao, permita que o
corpo inteiro seja levado a um estado mais e mais profundo de repouso, de
profundo relaxamento. Deixe que a sua mente abandone todas as preocupaes

do dia, da noite e as preocupaes com o futuro. Deixe que ela venha a repousar
na quietude da entrada e da sada do ar. Relaxe profundamente o corpo e a
mente, a ponto de se sentir como se estivesse adormecendo conscientemente.
como se voc estivesse fechando as portas da casa para ir se deitar, apagando as
luzes de cada um dos sentidos. Mas deixe uma luz acesa a luz da mente. Deixe
a luz da percepo mental acesa.
A prtica dessa sesso pode ser feita durante o dia, quando estiver acordado,
e tambm noite, quando estiver no processo de adormecer. Esse um mtodo
prtico para adormecer de forma consciente, para observar as transies que
ocorrem conforme a mente passa do estado de viglia para o estado de sono sem
sonhos. Mantenha apenas uma luz acesa enquanto os seus sentidos fsicos forem
desligados. Adormea e sustente a conscincia mental nesse processo. Conforme
a sua conscincia se recolhe do mundo externo de vises, sons e sensaes tteis,
e conforme se retira do mundo interior de conceitos, memrias, desejos,
esperanas e medos, recue a essa quietude interior sem formas, na qual voc
est completamente acordado.
Agora, redirecione o seu foco como se estivesse dormindo. Posicione o feixe
luminoso de sua ateno sobre o domnio da experincia da mente, esse reino
onde surgem as imagens mentais, pensamentos, emoes e sonhos. E observe os
eventos da mente sem ser carregado por eles. Observe-os com clareza e lucidez,
sem interveno. Observe at mesmo os impulsos menos intensos e mais sutis
surgindo na conscincia, as imagens fugazes. Como se estivesse sonhando
lucidamente, lembre-se de que todos esses fenmenos nada mais so do que
manifestaes da conscincia, sendo que ela mesma no tem forma. Nenhum
desses fenmenos voc e nenhum deles existe independentemente da sua
prpria conscincia.
Num primeiro momento, voc recolheu a ateno do ambiente exterior para
o corpo, o campo de sensaes tteis, e em seguida a recolheu outra vez, mais
profundamente, para o campo da mente. Agora, recolha a ateno para o centro,
o centro em relao ao qual no existe periferia, o centro sem limites. Permita
que sua conscincia repouse em sua cognio mais ntima, na conscincia de
estar consciente. Repouse nessa simplicidade absoluta, consciente de estar
consciente, sem um objeto. Quando faz isso, voc repousa na prpria
luminosidade, a natureza clara e cognitiva da conscincia.
O que voc v? Em meio aos muitos estmulos para a mente, em meio ao
fluxo do ambiente do corpo e da mente, possvel discernir uma quietude
contnua? Se assim for, esse o estado inato da prpria quiescncia meditativa
que no precisa ser alcanada, que j est presente. Quando repousa na
conscincia, voc capaz de ver que no h um objeto especfico que seja a
conscincia? Ela no uma entidade real. No tem uma identidade inerente
prpria. to vazia e aberta quanto o prprio espao. Mas, alm dessa qualidade

de espacialidade, voc consegue discernir a luminosidade natural, o brilho da


conscincia inata que est sempre presente? Afirma-se que essa a natureza da
conscincia. Isso voltar para casa, para a conscincia.
Dedique os mritos e encerre a sesso.

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


Existem muitas tcnicas diferentes para reconhecer o estado de sonho e abrir
as portas para a prtica da ioga dos sonhos. Na tradio tibetana, algumas dessas
tcnicas envolvem visualizao. Conforme o praticante adormece, faz-se uma
visualizao no corao ou no chacra da garganta. Acredito que algumas pessoas
sejam capazes de adormecer sustentando essa visualizao. Quando bemsucedida, elas passam diretamente do estado de viglia para o estado de sonho,
mantendo a visualizao durante todo o caminho. Isso requer uma mente
bastante calma, a ponto de no ser necessrio quase nenhum esforo para gerar
e sustentar a visualizao. Se voc tem uma mente calma assim, essa pode ser
uma tcnica muito til. Mas, a julgar pela minha experincia e a de alguns dos
meus professores, essas tcnicas de visualizao so um pouco exigentes demais
para a maioria de ns. O esforo necessrio pode nos manter acordados. No meu
caso, quando estou praticando visualizaes, eu no adormeo. E, quando
finalmente libero a visualizao, perco a conscincia imediatamente, o que me
impede de transportar a visualizao ao estado de sonho.
Aqui esto algumas tcnicas que voc pode tentar para facilitar o sonho
lcido. Adormecer na postura do leo adormecido, aquela em que o Buda
faleceu, pode favorecer essa prtica. Isso implica deitar sobre seu lado direito,
apoiando a bochecha direita sobre a mo direita, com o brao esquerdo ao longo
da perna esquerda. Os contemplativos budistas recomendam essa postura no
apenas para a ioga dos sonhos como tambm para adormecer de maneira geral.
Voc pode assumir essa posio e, em seguida, trazer a conscincia para o corpo.
Voc como um submarino deslizando sob a espuma e sob a turbulncia de todas
as ondas na superfcie do mar. Na tranquilidade do corpo, simplesmente no leve
a ateno s preocupaes, emoes, pensamentos, memrias e assim por
diante. Finalmente, voc adormecer com ateno plena e clara. Na minha
opinio, esse um mtodo muito prtico.
Se preferir, voc pode tentar repousar sua conscincia no domnio da mente
da maneira ensinada pelo lama tibetano Namkhai Norbu. Nessa tcnica, em vez
de ter o campo de sensaes tteis como objeto da mente, voc se concentra no
teatro da prpria mente. O objetivo repousar com clareza e no se deixar levar
por pensamentos e outros fenmenos mentais. Voc deve ento repousar,

observando a mente sem perder a continuidade da conscincia. Essa uma


excelente preparao para o sonho lcido. Aqueles que tiveram sonhos lcidos
sabem que, muitas vezes, logo depois de reconhecer que est sonhando, talvez
em uma questo de segundos, voc o perde, ou porque volta ao estado no lcido
ou porque fica to animado que acaba acordando. Por isso, importante saber
como manter a lucidez. A prtica semelhante a cultivar shamatha como suporte
para vipashy ana, para que voc possa sustentar seus insights experimentais sobre
a natureza da realidade. Uma maneira de conseguir isso desenvolver a
imperturbabilidade da sua conscincia em repouso. Aprenda a repousar a
conscincia sem se deixar levar pelos atores no teatro da mente. Lembre-se da
metfora: seja o anfitrio gracioso em meio a hspedes indisciplinados, sendo
que os convidados indisciplinados so o que quer que surja e desaparea em seu
campo mental. Seja capaz de manter essa continuidade mesmo quando no
houver continuidade ou coerncia dos contedos da mente. A sua conscincia
permanece coerente e contnua mesmo em meio a tudo isso. Quando conseguir
fazer isso, quando puder sustentar a lucidez por vrios minutos, voc ter
estabelecido a base para fazer o mesmo no estado de sonho. Como Lerab Lingpa
afirmou anteriormente, estabelecer a mente em seu estado natural a base para
todos os estados mais avanados de samadhi.
Outra opo desengajar a sua conscincia do corpo e da mente. Aqui voc
escolhe no se interessar por nada, nem mesmo pelo contedo da sua mente.
Voc simplesmente permite que sua conscincia se estabelea em seu prprio
espao, sem qualquer objeto como referncia. Agora, no h relao
sujeito/objeto, apenas a cognio primordial, o conhecimento antes do
conhecimento de qualquer outra coisa, o conhecimento de simplesmente estar
consciente.
Se voc tiver a inteno de explorar o mundo dos sonhos lcidos e as
dimenses de conscincia que podem ser acessadas por meio da ioga dos sonhos,
lembre-se de que o perodo de maior frequncia de sonhos ocorre durante as
ltimas duas horas antes de acordar. Muitas vezes, esses sonhos tendem a ser
mais claros, mais frequentes e de maior durao. Portanto, voc deve planejar
despertar cerca de duas horas e meia antes da hora em que normalmente
desperta. Acerte o seu alarme, acorde e fique acordado por 3045 minutos.
Durante esse tempo, envolva a sua mente na teoria e prtica do sonho lcido.
Leia e contemple algum dos excelentes livros sobre sonhos lcidos ou ioga dos
sonhos. Deixe a sua mente ser permeada por esses pensamentos, deixe que essa
seja a realidade qual voc est atento. Em seguida, coloque o livro de lado,
deite-se virado para o lado direito e volte a dormir com essa firme determinao:
Agora, neste horrio nobre para sonhar, vou reconhecer o sonho como tal.
Stephen LaBerge descobriu que, fazendo isso, as suas chances de ter um sonho
lcido aumentam em 20 vezes. Esse um enorme dividendo para compensar o

sacrifcio de acordar cedo e ficar acordado por alguns minutos.


As pessoas trazem vrias motivaes para a prtica do sonho lcido e da ioga
dos sonhos. Alguns entram na prtica principalmente para desfrutar de suas
fantasias fazendo da prtica uma fuga temporria de sua realidade desperta
normal ou uma diverso. A prtica budista de ioga dos sonhos vai muito alm da
realizao de saber que se est sonhando enquanto se est sonhando. Esse
treinamento budista pode ser dividido em vrios estgios:
reconhecer o estado de sonho;
transformar o sonho;
ver atravs do sonho.
Reconhecer o estado de sonho
O primeiro passo determinar o estado de sonho como tal, tornar-se lcido
durante o sonho. Juntamente com as outras tcnicas mencionadas, essa primeira
fase pode ser conseguida atravs do reconhecimento de um dos seus sinais de
sonho. Se treinar para reconhecer esses sinais no estado de viglia, voc poder
ser capaz de transportar essa habilidade para o estado de sonho e reconhec-lo
como tal. Pode ser que voc note algo extremamente estranho em um sonho e
reflita: Como isso poderia ser real? Em qualquer hora do dia ou da noite,
quando algo estranho ou improvvel acontecer, faa uma verificao de estado,
como descreve Stephen LaBerge, e verifique se est sonhando. O fato de os
eventos parecerem perfeitamente reais no garantia de que voc esteja
acordado.
Quando for capaz de se tornar lcido nos sonhos, aprenda a sustentar essa
lucidez. Se o sonho comear a se desvanecer como s vezes acontece quando
voc fica to emocionado que comear a acordar ou quando o sonho fica
confuso e voc comea a perd-lo , preencha a sua conscincia com os
estmulos. Comece a rodar, girando o seu corpo diversas vezes. Isso inundar a
sua conscincia e o sonho ser restaurado. Outra soluo esfregar as mos ou
massagear todo o seu corpo. O truque se engajar com o sonho de modo que o
cenrio do sonho se torne a sua realidade.
Transformar o sonho
Imagine que voc possa manter a lucidez por cinco, dez, 15 ou at 20 minutos
em um sonho. Comece deliberadamente a fazer coisas novas no sonho, como
voar. Agora voc est em posio para decolar em sua prpria expedio,
explorando as fronteiras da sua mente. Ainda assim, nessa fase, as coisas no
sonho parecem ser slidas e reais, independentes da conscincia. A segunda
etapa da ioga dos sonhos tradicional, uma prtica que remonta a, pelo menos,
1.200 anos, exercitar a sua habilidade de se transformar. Use a sua vontade e a

sua imaginao para transformar os contedos e os acontecimentos do sonho,


incluindo a sua prpria forma. Voc pode ser um mutante. Se voc um homem,
transforme-se em uma mulher. Se voc tem mais idade, torne-se mais jovem. Se
voc estiver com uma multido de pessoas, transforme-a em apenas uma ou
duas pessoas. Se voc estiver com uma ou duas pessoas, transforme-as em
muitas. Transformar o pequeno no grande e o grande no pequeno. Em outras
palavras, seja um artista e recrie a tela dos seus sonhos. Ento, veja se existe
objetivamente alguma coisa l fora ou subjetivamente qualquer coisa por
aqui quanto sua prpria identidade, sua prpria encarnao no sonho,
qualquer coisa que seja muito real e tangvel para ser mudada. H algo no sonho
que resiste sua imaginao? Se assim for, investigue mais profundamente at
reconhecer claramente a sua natureza ilusria. Essa percepo quebrar as
barreiras da objetificao que domina os sonhos no lcidos.
Ver atravs do sonho
medida que voc explora as mudanas da forma, bem provvel que
elementos da conscincia substrato emerjam por voc estar explorando as
profundezas da conscincia. bem possvel que, no decorrer desse treinamento,
se desencadeiem pesadelos. Algumas das tendncias habituais mais negativas na
conscincia substrato sero inevitavelmente despertadas, e podero se manifestar
como perturbaes e talvez como sonhos terrveis. Estes podero at mesmo ser
repetitivos. Quando comear a ter esses pesadelos, se voc se tornar cada vez
mais habilidoso em transform-los, poder fazer o bvio: faz-los ir embora. Se
algum monstro terrvel o ameaar, voc poder transform-lo em um
cachorrinho, em um sorvete de casquinha ou em um buqu de flores. Lembre-se
de que, durante sua iluminao, quando as hordas de demnios convergiram para
o Buda brandindo suas armas, ele transformou esses demnios em flores.
Voc tambm poder dar um passo adiante. Quando outro pesadelo surgir,
voc poder passar para a terceira fase da prtica de ioga dos sonhos. Sabendo
que seu corpo no sonho no pode ser ferido por nenhuma das aparncias no
sonho, relaxe e permita que ele seja atacado. Se um crocodilo estiver se
movendo na sua direo, com os seus olhos redondos esbugalhados acima da
superfcie da gua, no momento em que ele abrir as suas mandbulas para
devor-lo, relaxe e cumprimente-o graciosamente: O almoo est servido. Bom
apetite! Relaxe e liberte a sua identificao com o seu corpo de sonho, sabendo
que no h nenhum dano que possa ser infligido a ele ou a voc, no por um
crocodilo de sonho. Deixe-o mastig-lo vontade e, quando ele tiver terminado,
voc pode simplesmente se refazer e, se estiver em um estado de esprito
especialmente generoso, perguntar ao crocodilo se ele gostaria de repetir a
refeio sem medo e sem necessidade de modificar nada. Essa a fase trs e
indica a profundidade do seu insight sobre a verdadeira natureza dos sonhos.

Em algum momento na sua prtica de ioga dos sonhos, voc pode ficar
curioso para saber como seria experimentar a lucidez sem nenhum tipo de
contedo a experincia de lucidez em um sono profundo sem sonhos. Para
explorar isso, voc pode liberar o sonho e simplesmente estar consciente de estar
consciente. Voc no tem que se preocupar com os joelhos doloridos, com a sua
postura, com as pequenas coceiras aqui e ali ou com qualquer outra distrao
durante a meditao. Agora voc est dormindo, e, portanto, a sua mente est
naturalmente recolhida dos sentidos fsicos e do corpo. Voc j est em uma
arena de meditao, tudo que precisa fazer meditar. Ento, depois de o
crocodilo ter lhe devorado como um jantar de trs pratos, voc talvez possa
decidir que j suficiente e dissolv-lo. Em seguida, permita que a
conscincia repouse na prpria conscincia.
Quando voc acordar aps a prtica de ioga dos sonhos, Padmasambhava
aconselha o seguinte:
De manh, quando acordar, contemple com vigor e clareza: nem
um nico sonho de todos os que tive na noite passada permanece
quando eu acordo. Da mesma forma, nenhuma de todas essas
aparncias que surgirem durante o dia de hoje estar nos meus
sonhos noite.[55]
Os sonhos do dia no so fundamentalmente mais reais do que os sonhos da
noite. So igualmente ilusrios. Do ponto de vista do Desperto, estamos sonhando
neste exato instante. Ontologicamente falando, este reino de viglia no mais
real do que os sonhos que vivenciaremos noite. Ento, como seria estar lcido
durante o estado de viglia? Que tipo de liberdade, que tipo de alegria, que tipo de
escolhas poderiam ser feitas se entendssemos a natureza deste sonho desperto?
O que poderia ser mais fascinante? No sou capaz de imaginar aventura maior
do que essa.

14 A Grande Perfeio

D U RA N T E O S P RI M E I RO S 2 0 A N O S D O meu treinamento no
budismo, estudando e praticando sob a orientao de professores como Geshe
Ngawang Dhargy ey, Geshe Rabten, Gen Lamrimpa, Saky a Dagmola, Balangoda
Ananda Maitrey a e Sua Santidade o Dalai Lama, fui exposto principalmente
abordagem de desenvolvimento do amadurecimento e do despertar espiritual.
Mas, desde o incio da dcada de 1990, sob a orientao do Lama Ny ingmapa
Gy atrul Rinpoche, venho treinando a abordagem de descoberta da Grande
Perfeio ou Dzogchen. Durante esse tempo, tambm tive a sorte de receber
mais instrues sobre essa tradio contemplativa de outros lamas Ny ingmapa e
de Sua Santidade o Dalai Lama.

Os lamas da ordem Ny ingmapa veem o Dzogchen como o pinculo da teoria


e da prtica budista, e declaram que ele especialmente relevante e eficaz em
tempos de degenerescncia moral como a era atual. Portanto, h um paradoxo
intrigante aqui: o Dzogchen apresentado como a mais sutil e profunda de todas
as teorias e prticas budistas, mas tambm se diz que adequado principalmente
para pessoas cujas mentes so grosseiras e no refinadas.
Muitos ensinamentos budistas que apresentam a abordagem de
desenvolvimento enfatizam a importncia da rdua purificao e transformao
da mente, sobre a qual pesam as aflies e os obscurecimentos. Essa perspectiva
v a natureza bdica como a nossa capacidade de atingir a iluminao, mas
adverte que, a menos que nos apliquemos diligentemente prtica disciplinada
por um tempo muito longo, essa capacidade permanecer sendo apenas uma
promessa. A partir dessa perspectiva, o caminho para a iluminao parece longo
e rduo. Por outro lado, de acordo com a abordagem de descoberta ensinada no
Dzogchen, a nossa natureza bdica a natureza essencial de nossa mente.
primordialmente pura e repleta de todas as qualidades de um buda neste
momento. Tudo o que temos a fazer remover os vus. E a maneira de fazer
isso no desenvolvendo virtudes e combatendo os vcios assiduamente, mas sim
deixando que a conscincia repouse em seu prprio estado natural sem esforo.
Desse modo, as qualidades da iluminao surgem espontaneamente. H at
mesmo um texto clssico sobre Dzogchen, do mestre do sculo XIX Ddjom
Lingpa, chamado Buddhahood without meditation [O estado de buda sem
meditao]. Isso soa maravilhosamente bem, quase bom demais para ser
verdade. Mas muitas pessoas no Ocidente esto migrando para esses
ensinamentos e retiros de meditao reagindo a essa abordagem com uma
sensao de alvio, em contraste ao desnimo que sentem quando encaram as
rduas disciplinas ensinadas em muitas tradies contemplativas, incluindo o
budismo. No entanto, ainda que os ensinamentos da Grande Perfeio sejam
muito atraentes para pessoas aprisionadas na correria do mundo moderno e que
simplesmente no conseguem encontrar tempo para meditar, eles no fornecem
uma soluo rpida para atingir a iluminao.
O grande perigo que o Dzogchen seja, assim como o Zen e o Vipassana,
tirado de seu contexto para ser aplicado ao mundo moderno. Os ensinamentos do
Zen, nicos e ricos, podem ser tomados de forma simplista e reduzidos a apenas
sentar, e as prticas profundas do Buda ensinadas nas quatro aplicaes da
ateno plena podem tambm ser reduzidas a apenas estar plenamente atento.
Da mesma forma, a teoria, a meditao, e o modo de vida ensinados no
Dzogchen podem ser simplificados e reduzidos a apenas estar presente e ser
espontneo, sem rejeitar nada e sem praticar nada.
Quando os ensinamentos da Grande Perfeio so estudados a fundo, fica
claro que esse caminho no simplesmente uma descoberta passiva de sua

natureza bdica, mas que tambm envolve uma sequncia exigente de prticas
que fazem parte de uma viso sofisticada tanto da realidade relativa quanto da
realidade absoluta. A prtica autntica do Dzogchen resulta no despertar espiritual
perfeito de um buda, mas isso requer um alto grau de preparao. Sem atingir
shamatha, sem a realizao das quatro qualidades incomensurveis, de bodicita e
do insight direto sobre a ausncia da natureza inerente de todos os fenmenos, o
Dzogchen no ser completamente eficaz. No entanto, isso no quer dizer que o
Dzogchen precise ser adiado at que tenhamos compreendido bem esses estgios
de prtica mais elementares. Muitas pessoas acham que o Dzogchen til
mesmo nos estgios iniciais da prtica. Mas importante no reduzir esse sistema
profundo de teoria e prtica a apenas estar consciente. Esse tipo de
reducionismo comum na prtica moderna do Zen e do Vipassana, mas as
pessoas que fazem isso no devem esperar que tais prticas produzam os
mesmos benefcios que proporcionaram para as geraes de contemplativos
budistas que nos precederam.
uma questo de ponderao. Por um lado, os clssicos da Grande
Perfeio declaram que shamatha, bodicita e a realizao da vacuidade podem
surgir a partir da simples prtica de repousar no estado natural de conscincia
primordial, rigpa. Mas muito fcil confundir a conscincia substrato ou
simplesmente um estado de vazio mental com essa dimenso primordial de
conscincia pura, vazia e luminosa. Especialmente quando experimentamos um
sentimento de bem-aventurana, clareza e no conceitualidade em nossa
meditao, podemos nos agarrar a essas experincias e confundi-las com o
estado real de rigpa. Contudo, como o grande mestre Dzogchen do sculo XIX
Patrul Rinpoche adverte:
Um iniciante pode ser capaz de deixar a mente repousar
naturalmente em si mesma e tentar manter isso. No entanto,
impossvel para ele se livrar da fixao a muitas experincias,
como bem-aventurana, clareza e no conceitualidade,
que acompanham o estado de calma e quietude.[56]
Para elaborar a questo, possvel experimentar a conscincia substrato sem
insight sobre a natureza de qualquer outro fenmeno. Acessar a conscincia
substrato um resultado direto de shamatha, sem necessidade de vipashy ana. No
entanto, para realizar a conscincia primordial preciso reconhecer a natureza
vazia do samsara e do nirvana, e perceber todas as aparncias como
manifestaes da conscincia primordial. Para obter acesso conscincia do
substrato, voc remove a mente de sua prpria base individual. Por outro lado,
para realizar a conscincia primordial preciso abrir sua conscincia para o um
s sabor de todos os fenmenos como manifestaes da conscincia primordial.
Ento, como podemos evitar as armadilhas que nos levam a confundir as

experincias meditativas mundanas com a conscincia primordial? Por meio das


prticas profundas e simples, porm bastante desafiadoras, do Dzogchen, sem
tir-las de seu contexto e apreciando a sutil combinao de esforo e
relaxamento, controle e liberao, desenvolvimento e descoberta que esse
caminho implica, podemos, ento, ter sucesso.

PRTICA
Em seu livro A Spacious Path to Freedom,[57] Karma Chagm cita as
instrues em quatro etapas do contemplativo tibetano Siddha Orgy en, sobre a
unio de Dzogchen e Mahamudra:
1. repouse na conscincia no estruturada;
2. solte as memrias e os pensamentos;
3. transforme a adversidade em ajuda;
4. solte as aparncias.
O Mahamudra um sistema de prticas meditativas intimamente
relacionado com o Dzogchen. Nos trechos a seguir, esse sistema se refere
natureza ltima da conscincia, dharmakay a. As instrues so to profundas e
lcidas que eu as ofereo sem nenhum comentrio de minha parte:
1. Repouse na conscincia no estruturada
Fique vontade como um brmane contando histrias. Fique
solto como um feixe de palha cuja amarrao foi cortada. Seja
gentil como se pisasse em uma almofada macia. Caso contrrio,
voc se aprisionar como se tivesse cado em uma teia de
aranha. Mesmo contraindo todo o corpo e a mente como um
lenhador agarrado a um penhasco, a mente resiste quietude.
Em um estado livre de um objeto de meditao e de um
meditador, ponha-se em guarda, simplesmente recolhendo a
mente sem distrao, e ento deixe tudo ser como ,
calmamente. Assim, a conscincia retornar ao seu lugar de
descanso como um camelo me que havia sido separado de seu
filhote.
Portanto, o ponto crtico de sustentar a mente simplesmente
saber como relaxar em um estado livre de distraes e sem
meditar. Isso profundo. Mais uma vez, diz-se que relaxar a
conscincia no algo fcil.
2. Solte as memrias e os pensamentos

Essa mente comum existe original e primordialmente como o


dharmakaya. Os seis campos de experincia, que surgem como
as diferentes memrias e pensamentos diversos, so formas do
dharmakaya e a mente segue cada um desses objetos. Uma vez
que a experincia de todos eles tenha surgido no fluxo mental, ao
reconhecer a prpria natureza dessa experincia em seu prprio
estado, a essncia do Mahamudra vista. Nessa realizao, no
h expulso de coisas ruins que no pertenam meditao e
no h nada a ser afirmado. Sejam quais forem os pensamentos
que surjam, no se distraia com eles, mas mantenha a prtica
como o fluxo de um crrego.
3. Transforme a adversidade em ajuda
Sejam quais forem as aparncias das oito preocupaes
mundanas que surjam, no as considere um problema, mas se
relacione com elas como uma ajuda. Se voc compreende esse
ponto, no h necessidade de buscar intencionalmente a no
conceitualidade, no h necessidade de considerar os
pensamentos como sendo um problema. Ento, a sua conscincia
generosamente sustentada sem o aparecimento de uma fome
de prtica espiritual. Desse modo, sem buscar a quietude, a
vivacidade ou a bem-aventurana da mente, pratique sem
rejeitar ou aceitar o que quer que surja. Essa conscincia
comum no fabricada e nem estruturada. A autoiluminao em
si o encontro com todos os fenmenos.
4. Solte as aparncias
Assim, todas as memrias e pensamentos, todas as aparncias e
todas as experincias de atividades surgem na natureza do
Mahamudra. Da mesma forma que nenhuma pedra comum
encontrada em uma ilha de ouro, os vrios fenmenos do
samsara e do nirvana naturalmente no perdem o seu frescor, a
sua face no muda e eles surgem como a conscincia primordial,
inata e auto-originada na natureza do Mahamudra primordial,
no criado e no fabricado.[58]

PARA CONTEMPLAO ADICIONAL


Vamos iniciar contextualizando essa prtica profundamente simples dentro do
quadro mais amplo dos ensinamentos budistas. Isso pode permitir que voc

desenvolva uma apreciao mais profunda pela simplicidade dessa prtica


uma simplicidade que de forma alguma fcil de se dominar. A tradio
Theravada, que enfatiza os fundamentos do Darma budista, visa libertao
individual (pratimoksha). Essa a busca do nirvana, a busca pela liberao do
samsara do sofrimento e das causas do sofrimento. O tema geral que atravessa
esses ensinamentos e prticas fundamentais reconhecer as aflies ou
distores da mente: apego, hostilidade, deluso e assim por diante. medida
que essas aflies surgem, voc as reconhece e aprende a neutraliz-las. Voc
mesmo ir se curar, aplicando os antdotos. uma abordagem profundamente
sensata.
Um relato muito inspirador do Buda e de muitos outros praticantes
contemplativos que vieram depois dele de que a mente no irreversivelmente
propensa a essas aflies mentais. Ela pode ser curada de forma permanente. O
foco a prpria existncia, um ponto de partida razovel, e a prtica requer
muito esforo. Nesses primeiros ensinamentos do Buda, muitas vezes se
encontram exortaes para se esforar com afinco, para resistir quando est
prestes a se render raiva, agresso ou a qualquer tipo de comportamento no
virtuoso, seja de corpo, fala ou mente. A prtica envolve elaboraes conceituais
(prapacha), ou seja, h muito a ser compreendido e a ser feito em termos de
purificao e transformao da mente.
Uma segunda escola do budismo conhecida como Mahay ana, o Grande
Veculo. Aqui, a motivao para a prtica espiritual no apenas a libertao
pessoal, mas a liberao de todos os seres sencientes. E o objetivo no
simplesmente a liberao do sofrimento e de suas causas internas as aflies
mentais , mas a eliminao de todas as obscuridades mentais, para que a nossa
capacidade plena de sabedoria, compaixo e poder da conscincia possa se
manifestar. Esse caminho no nega a busca pela liberao individual, mas a
amplia e inclui todos os seres. Todos os aspectos de nossa existncia, desde que
fomos concebidos (sem contar a questo de nossas encarnaes anteriores),
ocorrem na dependncia de outros da bondade de nossos pais, professores,
amigos da escola e todos ao nosso redor. Geshe Rabten compartilhou a sua
prpria experincia comigo, h muitos anos:
Ao refletir sobre o desenvolvimento do esprito do despertar, em
que a preocupao consigo mesmo transformada em
preocupao com os outros, percebi que somos dependentes da
bondade dos outros para todas as nossas atividades e em todos os
estgios de desenvolvimento espiritual, como uma criana que
precisa contar com os outros para todas as suas necessidades. Se
no podemos contar com os outros seres, no temos poder
algum.[59]

Ao reconhecermos isso, torna-se desnecessrio afirmar que a nossa busca


individual pela felicidade deve considerar e incluir todos aqueles que nos
possibilitaram viver e buscar a nossa prpria felicidade. Assim, ampliamos o
alcance de nosso interesse e dos nossos cuidados, e aspiramos a atingir o mais
perfeito e elevado estado de despertar espiritual, semelhante ao de um buda, para
que possamos servir melhor aos outros.
Assim como a busca pela liberao individual, o caminho Mahay ana
tambm implica neutralizar as aflies da mente, s vezes de forma vigorosa.
Tambm inclui cultivar qualidades virtuosas diligentemente ateno
equilibrada, bondade amorosa, compaixo, discernimento e assim por diante.
tambm uma prtica com elaboraes conceituais que exige esforo para a
transformao. Mas agora a amplitude enormemente expandida, porque a
prtica realizada para o benefcio de todos os seres sem exceo.
O terceiro veculo do Darma budista, o mais alto escalo da teoria e da
prtica, chamado de Vajray ana, ou veculo de diamante. Da mesma forma
que o Mahay ana incorpora as prticas de liberao individual, o Vajray ana
abrange o Mahay ana. como um Mahay ana ampliado h um sentido de
urgncia na prtica Vajray ana, motivado no pela impacincia, mas por uma
profunda compaixo. Os problemas que afligem os seres sencientes so
extremamente terrveis. E, ento, se existem remdios disponveis, como os
praticantes Vajray ana diriam: Mos obra! O Vajray ana implica tomar toda
a energia que temos nossa disposio, incluindo a energia das aflies mentais,
e transmut-la por meio de uma espcie de alquimia espiritual. Essa energia
transmutada em caminho espiritual utilizando-se tcnicas onde as elaboraes
conceituais transformam a negatividade em combustvel para a maturao
espiritual. O falecido Lama Thubten Yeshe, discpulo de Geshe Rabten, escreveu
um livro claro e acessvel sobre esse tema, chamado Introduction to Tantra.[60]
Por fim, chegamos ao Dzogchen, considerado por muitos tibetanos como a
culminncia do Vajray ana. Aqui, no h mais o mesmo sentido de esforo
diligente, de desenvolvimento, de transformao j no h elaboraes
conceituais de teorias e sistemas filosficos e psicolgicos complexos. Em vez
disso, h simplicidade. A nfase na liberao da mente e em se estabelecer
profundamente na natureza da conscincia pura, que no precisa de modificao
e que no pode ser desenvolvida. Assim, a abordagem de desenvolvimento d
lugar descoberta. O Dzogchen uma prtica sem elaboraes conceituais, a
prtica da no meditao. De um modo muito profundo, no h nada a ser feito.
Mas o Dzogchen no vira as costas a tudo o que foi dito at agora: ele incorpora
tudo isso de uma maneira muito especial.
O objetivo da prtica Dzogchen a realizao de rigpa conscincia prstina
que a natureza fundamental da nossa prpria mente e, em ltima anlise, a
prpria natureza bdica. As realizaes da vacuidade e de rigpa so fortemente

enfatizadas na tradio budista tibetana. Ento, qual a relao entre elas? dito
por muitos dos grandes praticantes, incluindo o atual Dalai Lama, que, a fim de
penetrar rigpa, voc deve realizar a vacuidade. O que isso significa?
Segundo os ensinamentos do Madhy amaka ou Caminho do Meio sobre a
vacuidade, ensinamentos que so fundamentais e completamente compatveis
com o Dzogchen, o mundo em que vivemos, aqui e agora, semelhante a um
sonho. Mas a noo de que os fenmenos que vivenciamos no estado de viglia
no tm uma existncia mais real, objetiva e inerente do que a de um sonho
parece ser contrria nossa experincia. Na verdade, os mestres Madhy amaka
dizem que h uma profunda incongruncia ou incompatibilidade entre a maneira
como os fenmenos parecem ser para ns e a forma como eles so. Se voc
estivesse em uma mesa de restaurante comendo com os amigos e observasse a
pessoa ao seu lado, ela pareceria ter uma existncia objetiva, independentemente
da sua prpria conscincia ou da conscincia de qualquer outra pessoa. Para
confirmar isso, voc poderia se aproximar e cutuc-la, e, para tornar isso mais
cientfico, poderia pedir que as outras pessoas mesa tambm a cutucassem.
Com esse contato fsico em primeira pessoa e com a corroborao de sua
prpria experincia por uma terceira pessoa, voc poderia concluir que essa
pessoa objetivamente real, independentemente das percepes ou concepes
de quem quer que seja. Mas lembre-se de que voc pode fazer a mesma coisa
quando est sonhando. As aparncias, incluindo as sensaes tteis, podem ser
enganosas. Assim, a filosofia budista do Caminho do Meio ensina que os
fenmenos, que parecem existir independentemente, no existem desse modo.
Para que passem a existir, eles devem ser conceitualmente designados. Os
fenmenos que experimentamos no existem independentemente de nossos
modos de percepo ou concepo portanto, dizemos que eles so vazios de
existncia inerente e objetiva, como os eventos em um sonho.
Essa realizao pode ser caracterizada como estar em um estado de viglia
lcido. Para investigar a relao entre a realizao da vacuidade e da
conscincia prstina, imagine que voc esteja sonhando. Nesse sonho, voc
decide que as preocupaes mundanas no esto trazendo a satisfao que
procura, e ento voc decide procurar outras coisas. Voc faz uma varredura na
lista telefnica, verifica com os amigos e, finalmente, encontra um professor
budista qualificado, digamos, um lama tibetano. Em seu sonho, voc se encontra
com o lama e pede orientao. Depois de lhe dar muitos dos ensinamentos
bsicos do budismo, o lama sente que chegou o momento de lhe dar instrues
sobre a meditao da vacuidade. Explicando que nada existe de forma inerente,
independente da designao conceitual, ele revela a voc a natureza de sonho de
todos os fenmenos. Ao investigar a natureza dos fenmenos por si mesmos,
quanto mais voc examina a natureza de sua prpria identidade, de sua mente e
de tudo ao seu redor, mais voc percebe que no h natureza inerente em coisa

alguma. Ento, voc acaba por reconhecer: Isso realmente como um sonho e
todos esses fenmenos so apenas objetos que passam a existir pelo poder da
designao conceitual, por meio da qual eu reifico o meu mundo. Eu
compartimento o meu mundo, separo o sujeito do objeto Sim, eu vejo que
realmente um sonho. Lembre-se: nesse cenrio, voc est de fato sonhando.
E agora, observando o seu progresso, o lama diz: Agora que voc j obteve
insights sobre a vacuidade, acho que est pronto para o Dzogchen. Ento, eu
tenho algumas notcias para voc. Voc no de forma alguma a pessoa que
pensa ser. Voc no essa persona de sonho com a qual se identifica. Na
verdade, tudo o que voc pensa ser apenas uma aparncia. Eu sou apenas uma
aparncia e tudo o que estamos vivendo aqui uma manifestao, uma exibio
da conscincia prstina. Voc no est nesse sonho. Na realidade, voc o
sonhador, o sonhador de mim, o sonhador de voc, voc o sonhador de todo o
ambiente. Isso no como um sonho, isso um sonho! Agora, desperte!
Portanto, enquanto estava sonhando, voc reconheceu a natureza no objetiva do
contedo do sonho. Alm disso, reconheceu que voc o sonhador e no o que
sonhado. Ento, despertando, tornando-se lcido em seu sonho, voc vivencia um
fac-smile de rigpa.
Agora, vamos aplicar isso ao estado de viglia. O Buda e os mestres
Madhy amaka posteriores, como Nagarjuna, Shantideva, Tsongkhapa e o Dalai
Lama, declaram que o estado de viglia como um sonho. E oferecem mtodos
de investigao contemplativa para realizarmos a ausncia de natureza inerente
destes fenmenos aqui e agora. Com base nisso, os mestres Dzogchen declaram:
isso no como um sonho, isso um sonho e estamos apenas sonhando que
somos seres sencientes, mas, na verdade, somos budas. Ns nunca fomos outra
coisa seno seres despertos. Tudo o que precisamos fazer reconhecer o que j
somos.
Se a viso Madky amaka da vacuidade afirma que todos os fenmenos, sem
exceo, so desprovidos de existncia inerente e que existem pelo poder da
designao conceitual, o que dizer da prpria natureza de rigpa? No Dzogchen,
rigpa descrito como a base do ser, como o um s sabor que abrange todo o
samsara e todo o nirvana. Em outras palavras, rigpa soa como algo real no
sentido absoluto. Alm disso, diz-se que rigpa transcende toda a elaborao
conceitual, toda a categorizao originao e cessao, sofrimento e alegria, eu
e no eu, bom e mau, sujeito e objeto, mente e matria, e at mesmo existncia
e no existncia. Rigpa est alm de tudo isso. Como Patrul Rinpoche diz:
Essa conscincia desimpedida e que tudo penetra o ponto
chave da sabedoria naturalmente inerente e inexprimvel, que
est alm de todos os extremos filosficos, como surgir e cessar,
existir e no existir, e, portanto, alm das palavras e dos
conceitos.[61]

Nesse caso, rigpa algo que passa a existir pelo poder da designao
conceitual? No, claro que no. Como poderia ser assim, se rigpa transcende a
prpria modalidade de designao conceitual, de construes conceituais? Est
alm de tudo isso e, portanto, no poderia vir a existir como resultado do pensar.
Mas os ensinamentos Madhy amaka sobre a vacuidade dizem que, se afirmar a
existncia de algo independente da designao conceitual, isso implica que esse
algo existe por sua prpria natureza inerente. Como resolver esse dilema?
A resposta se torna facilmente perceptvel se dermos um passo atrs.
Lembre-se de que o status de rigpa, de conscincia prstina, desafia as prprias
categorias de existncia e no existncia. Rigpa no intrinsecamente real e nem
inerentemente irreal. No isso, no aquilo, no se enquadra em nenhuma
das nossas categorias conceituais. Assim, estando alm da existncia e da no
existncia, no nem verdadeiramente existente, nem trazida existncia pelo
poder da designao conceitual.
Agora, imagine que voc oua ensinamentos e leia livros sobre o Dzogchen
e, por fim, faa alguma ideia ou obtenha alguma noo de rigpa. Voc ouve o
familiar refro de que rigpa a conscincia conceitualmente no estruturada, a
conscincia prstina, a base do samsara e do nirvana que se manifesta
espontaneamente como exibies de todo o mundo e que ainda desafia todas as
construes conceituais. Mas, conforme reflete sobre essas afirmaes, voc
gera construes conceituais sobre rigpa. O que voc est chamando de rigpa
est agora surgindo na sua mente como um objeto. No entanto, quando voc
realmente repousa a sua conscincia em rigpa, a prpria dicotomia entre sujeito
e objeto se dissolve, no h objetos da mente reificados, porque no h diviso
reificada entre sujeito e objeto. Essa a primeira das duas principais fases da
prtica do Dzogchen, conhecida como o Atravessar (Breakthrough). Quando a
mente est repousando em seu estado primordialmente desperto que permeia
toda a existncia, isso rigpa. Mas, ento, rigpa no de forma alguma um
objeto da mente. E a questo de saber se inerentemente existente nem sequer
se coloca.
A clara luz da morte
possvel que pessoas como ns alcancem esses estados elevados de
realizao espiritual, desafiando at mesmo a prpria morte? De uma forma
muito prtica, a resposta sim, mesmo se deixarmos um cadver para trs ao
final desta vida. Isso tem tudo a ver com o que pensamos que somos, com isso a
que estamos nos agarrando como eu e meu. Enquanto eu me agarrar a este
corpo, irei morrer, o meu corpo estar destinado a desaparecer de um jeito ou de
outro. Enquanto eu me agarrar minha mente, minha psique, minha
personalidade, minha histria pessoal, ao meu conhecimento, aos meus
interesses e a outras coisas que j adquiri, eu irei morrer. No processo de morte

do corpo, o crebro e o sistema nervoso perdem a sua capacidade de dar


sustentao psique, que por fim desaparece. Mas, de acordo com os
contemplativos budistas, a psique no desaparece sem deixar vestgios. Como no
cultivo de shamatha, a psique se dissolve na conscincia substrato, que segue de
uma vida para outra. Em seguida, na fase culminante do processo de morte, at
mesmo a conscincia substrato se torna dormente e todas as dimenses da
conscincia so reduzidas extrema simplicidade de rigpa, que se manifesta
naquele momento como a clara luz da morte.
A clara luz da morte, que no outra seno a sua prpria natureza bdica,
no nascida. Ela no surge na dependncia de causas e condies, nem
condicionada pelo seu crebro ou pelo ambiente. Sendo assim, no est sujeita a
morte e decrepitude. Voc pode aprender, ainda em vida, a soltar as fixaes em
nveis cada vez mais sutis liberando a sua mente, a sua fala, o seu corpo, a sua
histria pessoal. Ao repousar profundamente nessa conscincia prstina, sabendo
que a conscincia primordial e no nascida remanescente quem voc voc
no morre. Essa uma abordagem prtica da imortalidade, mesmo que seu
corpo morra e sua psique desaparea.
Aqueles que so capazes de reconhecer a natureza da conscincia, quando
esto na sequncia final de experincias do processo de morrer comumente,
permanecem na clara luz da morte durante dias ou semanas, ou, raramente,
mesmo durante meses. Nesse perodo, os batimentos cardacos, a respirao e
todos os sinais metablicos so interrompidos. Mas eles ainda esto meditando.
Resta um calor na regio do corao e o corpo no se decompe. Hoje em dia,
se discute pouco sobre a veracidade desse fenmeno. Ele foi presenciado por
muitas pessoas, budistas e no budistas, incluindo mdicos, mais recentemente.
A primeira vez que vi evidncias desse fenmeno foi em 1992, quando estava
em Dharamsala, na ndia, com um grupo de neurocientistas que estudavam
iogues tibetanos avanados. Assim que chegamos cidade, recebemos uma
mensagem do gabinete de Sua Santidade o Dalai Lama incentivando-nos a ir
rapidamente para a casa de Rat Rinpoche, um lama tibetano idoso que vivia no
exlio perto da sede do governo tibetano. A sua respirao e os seus batimentos
cardacos haviam cessado seis dias antes, e os seus assistentes observaram que o
seu corpo no havia se deteriorado e que se mantinha um calor em seu corao.
Os neurocientistas e eu chegamos poucas horas depois de ele ter encerrado essa
meditao final na clara luz da morte, o que era indicado pelos primeiros sinais
de decomposio fsica. O seu corpo mal havia comeado a desfalecer e no
havia nenhum odor desagradvel no quarto.
Rat Rinpoche foi reconhecido como um tulku, a reencarnao de um mestre
altamente realizado, quando era criana pequena. Ele nasceu, por assim dizer,
como um aristocrata espiritual, recebendo treinamento de professores realizados
desde criana. Mas nem todos que exibem a realizao da clara luz da morte so

lamas encarnados. Um dos meus principais professores, o contemplativo tibetano


Gen Lamrimpa, era simplesmente um monge tibetano, havendo sido ordenado
ainda criana no Tibete, estudando na ndia e passando as ltimas dcadas de sua
vida em meditao intensiva. Ele faleceu no outono de 2003 e, aps a cessao
de sua respirao e de seus batimentos cardacos, permaneceu na clara luz da
morte por cinco dias. A sua vida e a sua morte foram uma inspirao para todos
os seus alunos, no Oriente e no Ocidente.
Conheci Gen Lamrimpa em 1980, quando estava em um retiro solitrio de
cinco meses nas montanhas acima de Dharamsala, praticando sob a orientao
de Sua Santidade o Dalai Lama. Um velho amigo meu, Jhampa Shaneman,
permitiu que eu me mudasse para sua cabana de retiro que no estava sendo
usada no momento. Essa cabana se situava em um conjunto de cabanas de
meditao ocupadas por experientes iogues tibetanos e Gen Lamrimpa era o
meu vizinho mais prximo. Eu o visitava uma vez por semana para consult-lo
sobre a minha prtica, e me impressionavam a sua profunda compreenso e a
calorosa compaixo. Anos mais tarde, ele aceitou o meu convite para conduzir
um retiro de shamatha de um ano no Noroeste Pacfico, durante o qual
compartilhamos uma cabana e eu continuei o meu treinamento com ele. Na
minha cabea, ele era o iogue entre os iogues: s vezes, meditava de cinco horas
da manh at uma hora da manh do dia seguinte. Ningum que o conhecia
ficaria surpreso ao saber que ele havia morrido com tamanha equanimidade e
alegria, e que havia passado os seus ltimos dias repousando no mais profundo
estado de conscincia.
Nem todo mundo que realiza a clara luz da morte reconhecido em vida
como um iogue realizado como Gen Lamrimpa. Lama Putse, lder de recitaes
do monastrio Ka Ny ing Shedrub Ling, em Boudhanath, Nepal, era respeitado
por seus colegas monges como um especialista em todos os aspectos dos rituais e
um qualificado revisor de tratados escriturais budistas. Mas poucos sabiam da
profundidade de sua realizao meditativa. Segue um trecho do boletim
publicado logo aps sua morte, em 31 de maro de 1998:
Para a nossa maravilhosa surpresa, Lama Putse permaneceu por
11 dias no estado meditativo ps-morte de tuk-dam. Durante esse
tempo, no houve nenhum dos habituais sinais de decomposio
ps-morte. O seu corpo permaneceu fresco e completamente
livre de odores, a carne macia e suave, sem nenhum sinal de
rigidez cadavrica. O seu rosto estava tranquilo e parecia ter
vida. Na noite do dia 8 de abril, a nosso pedido, o dr. David R.
Shlim, respeitado mdico-chefe da clnica CIWEC, veio ao
mosteiro para ver o Lama Putse. Dr. Shlim ficou espantado com a
condio extraordinria do corpo e declarou que no conseguia
pensar em nenhuma explicao, do ponto de vista mdico e

cientfico, para tal ocorrncia Durante os 11 dias de tuk-dam,


vrios monges permaneceram no quarto de Lama Putse para
realizar pujas durante 24 horas por dia. O quarto tinha uma
agradvel fragrncia suave e um frescor notvel Lama Putse
concluiu a sua meditao de tuk-dam no sbado, dia 11 de abril.
Quando o tuk-dam termina, a mente da pessoa deliberadamente
se separa do corpo fsico e o corpo comea a se decompor
rapidamente.[62]
Aparentemente, todos os contemplativos citados nesses relatos foram capazes
de reconhecer a conscincia primordial quando estavam morrendo e por isso
que a experincia conhecida como a clara luz da morte. Foi o reconhecimento
desse estado que lhes permitiu sustent-la, postergando a deteriorao do corpo.
Se a sua conscincia v a sua prpria face na hora da morte, isso como
reconhecer um velho amigo. Os tibetanos chamam isso de encontro da clara luz
da conscincia me e filha e a experincia semelhante a uma criana subindo
para o colo de sua me. como voltar para casa. Esse o estado fundamental
absoluto de sua conscincia, no um territrio estranho. Caso voc se familiarize
com esse estado de conscincia por meio de sua prtica meditativa, essa
experincia no causar desorientao na morte. Voc ir reconhecer a base
absoluta de sua existncia.
Corpo de arco-ris
Alguns mestres de meditao muito avanados no caminho Vajray ana
revelam algo ainda mais surpreendente no momento da morte, chamado de
corpo de arco-ris. O Dzogchen, assim como outras prticas do Vajray ana,
inclui o tema da alquimia, de transmutar as aflies mentais em um elixir da
sabedoria primordial. Mas h tambm um processo de transmutao do prprio
corpo. O Tantra Kalachakra, outro sistema entre os mais profundos da teoria e da
prtica no budismo Vajray ana, fornece explicaes detalhadas sobre como
alcanar a transmutao alqumica do corpo por meio da prtica avanada de
meditao, que envolve visualizaes complexas e profunda realizao. Com a
culminncia dessa prtica, os elementos materiais do corpo so extintos, restando
apenas um corpo de forma vazia.
Ao longo da ltima dcada, ouvi falar de dois contemplativos tibetanos que
demonstraram uma realizao parcial do corpo do arco-ris ao morrer. Um deles
foi um Geshe Gelukpa que viveu em Lhasa e o outro foi um lama da ordem
Jonangpa que viveu no mosteiro Dzamthang, no Tibete oriental. Nesses dois
casos, testemunhas relataram que, no momento da morte, o corpo do lama
encolheu, atingindo o tamanho de uma criana pequena, mas manteve as
propores e as caractersticas do lama adulto. A crena budista tibetana de que

os componentes materiais do corpo se dissolvem em energia pura da conscincia


primordial, mas, nesses casos, a transmutao alqumica no foi completa.
Penor Rinpoche, antigo chefe da ordem Ny ingma, a quem traduzi em junho
de 2000 em Los Angeles, afirmou naquela poca (ele tinha ento 60 anos) que
sabia pessoalmente de seis casos de contemplativos tibetanos que haviam atingido
completamente o corpo do arco-ris. Isso ocorre quando uma pessoa passa pelo
processo da morte, entra na clara luz da morte, libera a experincia e, ao fazer
isso, o corpo simplesmente desaparece, restando geralmente apenas as partes
que no esto mais vivas: os cabelos e as unhas. Esse processo implica uma
profunda transmutao e extino dos componentes materiais do corpo. Assim,
de acordo com relatos tibetanos, manifestar o corpo de arco-ris um evento
raro que no passado recente ocorreu cerca de uma vez a cada dcada , o que
notvel, considerando que, ao longo dos ltimos 50 anos, a civilizao tibetana
tem sofrido um genocdio de grande escala nas mos dos comunistas chineses,
que tambm destruram praticamente todos os monastrios tibetanos e centros de
retiro contemplativos.
David Steindl-Rast, monge beneditino, ficou curioso a respeito do corpo de
arco-ris depois de ouvir relatos sobre vrios mestres tibetanos, conhecidos por
sua sabedoria e compaixo, que tinham mostrado sinais dessa realizao no
processo de morte. Segundo os relatos, arco-ris surgiram repentinamente no cu
na ocasio da morte desses mestres e depois de vrios dias seus corpos
desapareceram. Em alguns casos, restaram unhas e cabelos. Em outros casos,
nada restou. Isso o fez refletir sobre a ressurreio de Jesus Cristo, ponto central
de sua prpria f. Ele comentou: Se pudermos demonstrar como um fato
antropolgico que o que est descrito na ressurreio de Jesus no apenas
ocorreu com outros, mas ainda est acontecendo nos dias de hoje, a nossa viso
do potencial humano ser colocada sob uma luz completamente diferente.[63]
O padre Steindl-Rast entrou em contato com o padre Francisco Tiso, um
sacerdote catlico romano ordenado que havia estudado a lngua e a cultura
tibetana, pedindo-lhe para investigar o assunto. O padre Tiso foi aluno de Khenpo
Ach, um monge Gelukpa que viveu no leste do Tibete e cujo corpo desapareceu
depois de sua morte em 1998. Ele conseguiu localizar a aldeia no Tibete onde
Khenpo Ach havia morrido e conduziu entrevistas gravadas com testemunhas
oculares da morte de Khempo Ach. O padre Tiso relatou: Todos os
entrevistados mencionaram a fidelidade a seus votos, a sua pureza de vida e que
ele muitas vezes falou da importncia de se cultivar a compaixo. Ele tinha a
capacidade de ensinar, mesmo s pessoas mais brutas e mais violentas, como ser
um pouco mais suave, um pouco mais consciente. Estar na presena desse
homem transformava as pessoas.[64]
De acordo com as testemunhas oculares que ele entrevistou, quando Khenpo
Ach estava morrendo, a sua respirao parou e a sua carne se tornou um pouco

rosada. Uma pessoa disse que o seu corpo ficou branco e radiante, e todos
disseram que comeou a brilhar. Por sugesto de um amigo, com o mesmo
nome, Lama Ach, o corpo de Khenpo Ach foi envolto em um manto amarelo
e, com o passar dos dias, testemunhas relataram que puderam ver atravs do
manto que os seus ossos e o seu corpo estavam encolhendo. Aps sete dias,
retiraram o pano amarelo e nada havia restado de seu corpo.
Na literatura Dzogchen, essa conquista conhecida como o pequeno corpo
de arco-ris. Muito mais rara do que ela a conquista do corpo de arco-ris da
grande transferncia. Com essa realizao, a transmutao alqumica completa
dos constituintes materiais do corpo em energia da conscincia primordial pode
ocorrer enquanto voc ainda est vivo e com boa sade. Eu encontrei poucos
relatos de realizaes como essas durante os ltimos 1.200 anos no Tibete,
embora elas possam ter ocorrido sem que eu tenha conhecimento. Um dos que a
realizou foi Padmasambhava, que viveu no sculo VIII. Outro foi seu
contemporneo, Vimalamitra, e um terceiro foi Chetsn Senge Wangchuk, que
viveu na virada do sculo XI para XII. Alm disso, ouvi dizer que dois outros
mestres tibetanos, Ny enwen Tingdzin Zangpo e Chetsn Senge Shora,
alcanaram esse estado. O que Jesus manifestou aps a sua morte uma questo
em aberto.
A transmutao de Padmasambhava foi concluda antes de ele ter morrido
no havia mais matria em seu corpo, nada para morrer, nem mesmo
fisicamente. Assim, se diz que ele no morreu. Aparentemente, ele dissolveu o
seu corpo em luz e partiu do Tibete para outro reino onde a sua presena era
mais urgentemente necessria. Mas a realidade mais profunda que o seu
prprio ser se expandiu infinitamente no espao que tudo permeia, o
dharmakay a, ou mente do Buda. Ddjom Lingpa apresenta essa viso geral dos
diferentes nveis de realizao do corpo de arco-ris:
Aqueles de faculdades mentais superiores so liberados como
uma corporificao da grande transferncia, expandindo-se
infinitamente no dharmakaya que tudo permeia, como a gua
fundindo-se com a gua ou o espao fundindo-se com o espao.
Aqueles de faculdades medianas atingem a iluminao como um
grande corpo de arco-ris, como um arco-ris desaparecendo no
cu. Para aqueles de faculdades inferiores, quando a clara luz da
base surge, as cores do arco-ris se estendem partindo do espao
absoluto e os seus corpos materiais diminuem de tamanho, at
que finalmente desaparecem como corpos de arco-ris, no
deixando para trs qualquer vestgio de seus agregados. Isso
chamado de pequeno corpo de arco-ris. Quando a clara luz
da base surge, os corpos materiais de algumas pessoas diminuem
de tamanho ao longo de um perodo de at sete dias e, em

seguida, finalmente, deixam para trs apenas o resduo de seus


cabelos e de suas unhas. A dissoluo do corpo em partculas
diminutas chamada de pequena transferncia. Para aqueles
de faculdades superiores, essa dissoluo do corpo em partculas
diminutas pode ocorrer at mesmo durante o Atravessar
(Breakthrough).[65]
Uma cincia contemplativa da conscincia
Em nosso mundo materialista moderno, todos esses relatos soam como pura
fantasia. No entanto, certa vez, o grande escritor de fico cientfica Arthur C.
Clarke comentou que qualquer tecnologia suficientemente avanada
indistinguvel da magia para aqueles que no a compreendem. E John Searle, um
filsofo contemporneo, recentemente declarou: Apesar de nossa arrogncia
moderna sobre o quanto sabemos, apesar das garantias e da universalidade da
nossa cincia, no que diz respeito mente, estamos caracteristicamente confusos
e em desacordo.[66] Isso no quer dizer que ele, defensor do materialismo
cientfico, acharia plausvel o que foi afirmado anteriormente. Mas talvez essa
observao deva ser tomada como uma nota de advertncia sobre confundir
meras suposies com conhecimento.
Os budistas tibetanos, apoiando-se nas descobertas do Buda e em 1.500 anos
de experincia contemplativa budista indiana, tm preservado e desenvolvido
uma cincia da conscincia altamente avanada ao longo dos ltimos 1.200 anos.
Ns, no Ocidente moderno, s agora estamos na infncia do desenvolvimento
dessa cincia. Embora estejamos muito avanados quanto a cincias fsicas,
quando se trata de compreender a natureza e os potenciais da conscincia, ainda
estamos na Idade das Trevas. uma tarefa que exige rigorosa investigao
emprica e no uma f cega ou racionalizao metafsica. luz do comentrio
de Arthur C. Clarke, as tecnologias contemplativas dos tibetanos podem ser to
avanadas que, para ns, so indistinguveis da magia.
No geral, no h nada que me impressione por ser to profundamente
universal, perene e primordial como o Dzogchen. Muitos aspectos do budismo
so nicos, como as quatro aplicaes da ateno plena e os ensinamentos
Madhy amaka sobre a vacuidade. Mas encontramos ensinamentos
profundamente semelhantes ao Dzogchen em diversas tradies contemplativas
ao longo da histria, no Oriente e no Ocidente. Em ltima anlise, sou propenso a
pensar que o Dzogchen primordial e universal demais para ser confinado a
qualquer tradio espiritual em particular.
Reflexes finais
Diz-se, especialmente na ordem Ny ingma do budismo tibetano, que o

Dzogchen a joia da coroa de todos os nveis e modalidades de prtica budista.


Por muitos sculos, o Dzogchen foi ensinado apenas para as pessoas que haviam
recebido uma srie de iniciaes e que j haviam concludo extensas prticas
preliminares. De maneira geral, esse ainda um bom conselho. Ao mesmo
tempo, tambm verdade que a tradio Ny ingma preservou uma srie de
profecias que supostamente se relacionam com a nossa era, aps o Tibete ter
sido subjugado e a liberdade de preservar a sua herana espiritual ter sido negada
aos tibetanos. Foi profetizado que haveria um florescimento do budismo fora do
Tibete. Isso est comeando a acontecer. A nossa poca considerada uma era
de degenerescncia em vrios aspectos, o que bvio para muitos de ns.
Paradoxalmente, a previso era de que nesta era degenerada o Dzogchen iria
florescer. Poderia se pensar que em eras degeneradas, em que as pessoas so
brutas, materialistas e cheias de agressividade e egosmo, o Dzogchen seria sutil
demais para ser praticado. Mas, ao contrrio, as profecias dizem que agora o
Dzogchen est maduro.
Mais e mais professores, incluindo muitos mestres tradicionais, como os
meus reverenciados lamas Gy atrul Rinpoche e Sua Santidade o Dalai Lama,
esto tornando esses ensinamentos disponveis para o pblico e no apenas para
aqueles que foram iniciados no Vajray ana. O Dzogchen est sendo apresentado
para as pessoas que nem sequer so praticantes budistas. Assim, o Dzogchen
algo que parece muito contemporneo, embora se mantenha absolutamente
primordial.
Um dos aspectos mais interessantes e promissores da teoria e da prtica do
Dzogchen a ideia de que, quando se libera a mente, soltando as fixaes, as
qualidades inatas do prprio Buda surgem superfcie. Costuma-se dizer na
literatura Dzogchen que, se voc realizar rigpa, nenhuma outra prtica precisar
ser feita para cultivar bodicita. A grande compaixo, bondade e empatia todas
essas virtudes surgiro espontaneamente de sua prpria conscincia primordial.
Essas qualidades da conscincia emergem naturalmente quando simplesmente
paramos de impedir, constringir e estrangular a conscincia se apenas no
fazemos e fazemos o no fazer luminosamente. Se no fazemos em um estado
de luminosidade, a mente se desembaraa, e surge uma fonte de alegria e de
todas as qualidades da iluminao.
Gy atrul Rinpoche repreendeu seus alunos diversas vezes enquanto dava
ensinamentos Dzogchen, dizendo: Vocs sabem por que no realizaram as suas
aspiraes espirituais? Porque vocs no acreditam em si mesmos. No que no
acreditem no budismo ou na tradio Ny ingma, mas porque vocs no
acreditam em si mesmos. E assim . O desafio diante de ns primordial:
descobrir quem realmente somos, conhecer a ns mesmos. Isso nos libertar.

Para maiores informaes

Para maiores informaes sobre lanamentos da Lcida Letra,


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[1] Plato, Phaedo, Oxford, Oxford University Press, 2002, p.230.


[2] Santo Agostinho, The Confessions, Hy de Park, New City Press, 1997, p.33.
[3] The Connected Discourses of the Buddha, Boston, Wisdom Publications, 2000,
v.2, p.1.774.
[4] Tsong-kha-pa, The Great Treatise on the Stages of the Path to Enlightenment,
Ithaca, Snow Lion Publications, 2000, v.1, p.100108.
[5] Lerab Lingpa (gTerstonlasrabglingpa), rDzogs pa chenpo man
ngagsdeibcudphur man ngagthams cad kyirgyalpoklonglngaiyigedumbugsum pa
lcebtsunchenpoivymalaizabtiggibshadkhridchubabssubkod
pa
snyingpoibcuddril ye shesthig le, Darjeeling, Orgyan Kunsang Chokhor Ling, sem
data, p.640.
[6] Ddjom Lingpa (bDudjomsglingpa). The Vajra Essence, Dag snang ye
shesdrva pa lasgnas lugs rang byunggirgyudrdorjeIsnyingpo. Ttulo em snscrito:
Vajrahdayasuddhadhutijnahrelajtiytisma, Collected Works of His
Holiness Dudjom Rinpoche, Bhutan, Kunsang Topgay, 1978, p.32.
[7] Panchen Lozang Chky i Gy altsen, na seo Semsgnaspaithabs de
dGeldanbKabrgy udrinpocheibkasrolphy agrgy achenpoirtsabargy as parbshad
pa y ang gsalsgron me, Asian Classics Input Project, CD, release A, S5939F.ACT,
1993.
[8] Atisha, Lamp for the Path to Enlightenment, Ithaca, Snow Lion Publications,
1997, verso 39. Nota do autor: minha traduo difere levemente dessa traduo
da obra de Atisha.
[9] Padmasambhava, Natural Liberation: Padmasambhavas Teachings on the Six
Bardos, Boston, Wisdom Publications, 1998, p.105113.
[10] Citado por B. Alan Wallace, The Bridge of Quiescence: Experiencing Tibetan
Buddhist Meditation, Chicago, Open Court, 1998, p.173.
[11] Panchen Lozang Chky i Gy altsen, citao da seo Semsgnaspaithabs de
sua obra dGeldanbKa brgyudrinpocheibka srolphyagrgyachenpoirtsabargyas
par bshad pa yang gsalsgron me, em Geshe Rabten, Echoes of Voidness, Londres,
Wisdom Publications, 1986, p.113128.
[12] Ddjom Lingpa, Op.cit., p.364.
[13] Ny anaponika Thera, The Heart of Buddhist Meditation: The Buddhas Way of
Mindfulness, So Francisco, Weiser Books, 2014.
[14] Bhikkhu Bodhi, The Middle Length Discourses of the Buddha, Boston, Wisdom
Publications, 1995, Satipahnasutta, verso 2, p.145.
[15] Udna, captulo 1, dcimo discurso.
[16] Satipahnasutta, 5.
[17] Tara Bennett-Goleman, Emotional Alchemy: How the Mind Can Heal the
Heart, Nova Iorque, Harmony Books, 2001, p.144. H uma edio brasileira para
o livro: Alquimia emocional: a mente pode curar o corao, Rio de Janeiro,
Editora Objetiva, 2001.
[18] Satipahnasutta, 10, 33
[19] Anguttara Niky a, A, I, 9-10.
[20] Ddjom Lingpa, Op.cit., p.46-47
[21] Paul Ekman, Emotions Revealed: Recognizing Faces and Feelings to
Improve Communication and Emotional Life, Nova Iorque, Times Books, 2003,

p.3940. H uma edio brasileira para o livro: A linguagem das emoes, So


Paulo, Lua de Papel, 2011.
[22] William James, Does consciousness exist?, The Writings of William James,
Chicago, University of Chicago Press, 1977, p.177178.
[23] Dhammapada, captulo 1, verso 1.
[24] Ratnameghastra, citado em Shantideva, ikssamuccaya, Darbhanga,
Mithila Institute, 1961, p.121.
[25] Ratnacdasutra, citado em Shantideva, ikssamuccaya, Darbhanga, Mithila
Institute, 1961, p.220.
[26] Lalitavistarastra, citado em Shantideva, ikssamuccaya, Darbhanga,
Mithila Institute, 1961, p.222.
[27] Samy utta-Niky a; I, 135.
[28] Lokanthavykarana, citado em Shantideva, ikssamuccaya, Darbhanga,
Mithila Institute, 1961, p.224.
[29] Udna, captulo 5, primeiro discurso.
[30] Tim Kasser, The High Price of Materialism, Cambridge, MIT Press, 2000,
p.67.
[31] Shantideva, A Guide to the Bodhisattvas Way of Life, Ithaca, Snow Lion
Publications, 1997, captulo 1, verso 28. H uma edio brasileira para o livro,
baseada em outra traduo: O caminho do bodisatva, Trs Coroas, Makara, 2013.
[32] Tim Kasser, The High Price of Materialism, Cambridge, MIT Press, 2000,
p.104.
[33] Alfred North Whitehead, Science and the Modern World, Nova Iorque,
Fontana Books, 1975, p.223.
[34] Dhammapada, captulo 1, verso 5.
[35] Sua Santidade o Dalai Lama & Howard C. Cutler, The Art of Happiness: A
Handbook for Living, Nova Iorque, Riverhead Books, 1998, p.114. H uma edio
brasileira para o livro: A arte da felicidade, So Paulo, Martins Fontes, 2003.
[36] Ibidem, p.211.
[37] Shantideva, Op.cit., cap.8, verso 91.
[38] Ibidem, cap.8, verso 94.
[39] Ibidem, cap.8, verso 102.
[40] Palden Gy atso, The Autobiography of a Tibetan Monk, Nova Iorque, Grove
Press, 1998.
[41] William James, The Principles of Psychology, Nova Iorque, Dover
Publications, 1950, volume 2, p.322.
[42] Daniel Goleman, Destructive Emotions: How Can We Overcome them?,
Nova Iorque, Bantam Books, 2003. H uma edio brasileira para o livro: Como
lidar com emoes destrutivas, Rio de Janeiro, Editora Campus, 2003.
[43] Geshe Rabten, Treasury of Dharma: A Tibetan Buddhist Meditation Course,
Londres, Tharpa Publications, 1988, p.143144.
[44] Shantideva, Op.cit., cap.1, verso 28.
[45] Idem
[46] Ian Stevenson, Where Reincarnation and Biology Intersect, Westport,
Praeger Publishers, 1997.
[47] Shantideva, Op.cit., cap.10, verso 55.

[48] Citado em Peter Harvey, The Selfless Mind: Personality, Consciousness and
Nirvana in Early Buddhism, Surrey, Curzon Press, 1995, p.176.
[49] Shantideva, Op.cit., cap.6, verso 10.
[50] B. Alan Wallace e Gy atrul Rinpoche, Meditation, Transformation, and Dream
Yoga, Ithaca, Snow Lion Publications, 2002, p.23.
[51] Antnio Damsio, The Feeling of What Happens: Body and Emotion in the
Making of Consciousness, Nova Iorque, Harcourt, 1999, p.321. H uma edio
brasileira para o livro: O mistrio da conscincia: do corpo e das emoes ao
conhecimento de si, So Paulo, Companhia das Letras, 2000.
[52] Stephen LaBerge & Howard Rheingold, Exploring the World of Lucid
Dreaming, Nova Iorque, Ballantine Books, 1990.
[53] Padmasambhava, Op.cit.
[54] Stephen LaBerge, Lucid Dreaming: The Power of Being Awake and Aware in
your Dreams, Nova Iorque, Ballantine Press, 1985, p.129131.
[55] Padmasambhava, Op.cit.,
[56] Citado em Sua Santidade o Dalai Lama, Dzogchen: The Heart Essence of the
Great Perfection, Ithaca, Snow Lion Publications, 2000, p.66.
[57] Idem.
[58] Citado em Karma Chagm, A Spacious Path to Freedom: Practical
Instructions on the Union of Mahmudr and Atiy oga, Ithaca, Snow Lion
Publications, 1998, p.141144.
[59] Geshe Rabten, The Life and Teachings of Geshe Rabten: a Tibetan Lamas
Search for Truth, Londres, George Allen and Unwin, 1980, p.116.
[60] Lama Thubten Yeshe, Introduction to Tantra: The Transformation of Desire,
Sommerville, Wisdom Publications, 2014. H uma edio brasileira para o livro:
Introduo ao Tantra: a transformao do desejo, So Paulo, Gaia, 2007.
[61] Citado em Sua Santidade o Dalai Lama, Op.cit., p.68.
[62] Notcias do Monastrio Ka-Ny ing Shedrub Ling, Boudhanath, Nepal,
Boudha Sangha News, 16 abr 1998.
[63] Gail B. Holland, The rainbow body , IONS: Noetic Sciences Review,
nmero 59, mar/abr 2002, p.33.
[64] Ibidem, p.34.
[65] Ddjom Lingpa, Op.cit., p.464-465.
[66] John. R. Searle, The Rediscovery of the Mind, Cambridge, MIT Press, 1994,
p.247.

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