Modernidade, Contemporaneidade e Subjetividade

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Artigo: Modernidade, contemporaneidade e subjetividade

Modernidade, contemporaneidade e subjetividade


Modern, contemporaneity and subjectivity
Renata Dumont Flecha*

Resumo
O artigo objetiva a discusso das caractersticas da modernidade e
contemporaneidade e seus possveis efeitos de mal-estar sobre a subjetividade.
O projeto da modernidade apresenta-se marcado pelo vis antropolgico e
antropocntrico, j que o homem, enquanto indivduo, foi alado condio
fundamental de medida de todas as coisas. Enfatizam-se a autonomia individual
e a valorizao narcsica, que se constituem em novos modos de alienao e se
orientam em direo ao gozo e ao consumo. Em uma sociedade, na qual se
valoriza a autonomia do indivduo, o sujeito se v obrigado a recorrer e a se
referir a si prprio, imerso em uma busca narcsica de perfeio e completude,
evitando, dessa forma, um confronto com sua condio de ser marcado pelo
falta e pela castrao, que lhe impem limites.
Palavras-chave: modernidade; contemporaneidade; mal-estar; subjetividade.
Abstract
The article aims to discuss the characteristics of modernity and contemporary
and its possible effects of malaise about subjectivity. The project of modernity
presents itself marked by anthropological and anthropocentric point-of-view,
since the man as an individual, was promoted to the fundamental condition of
the measure of all things. To emphasize individual autonomy and narcissistic
exploitation, which constitute new forms of alienation and are geared towards
the enjoyment and consumption. In a society in which values the autonomy of
the individual, the subject is forced to use and refer to himself, lost in a
narcissistic pursuit of perfection and completeness, thus preventing a
confrontation with his condition to be checked by lack and castration, which
impose limits.
Keywords: modern; contemporary; malaise, subjectivity.

_________________
Artigo recebido em 18 de janeiro de 2011 e aprovado em 24 de maio de 2011.
* Doutora em Educao pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da PUCMINAS e do Centro
Universitrio Newton Paiva. Email: [email protected]

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Introduo1
O

terreno

da

modernidade

de

sua

herdeira,

ps-modernidade

ou

contemporaneidade2, que implicou e ainda implica transformaes tm seus efeitos sobre os


modelos institudos de subjetividade. O psicanalista Joel Birman em sua obra Mal-estar na
atualidade: a Psicanlise e as novas formas de subjetivao, de 1999, chama a ateno
para tais efeitos, j que, segundo ele, em uma ordem social tradicional, o sujeito seria
regulado pela longa durao das instituies, bem como pela permanncia do seu sistema
de regras, que ofereceria segurana e certeza. A cartografia do mundo moderno e,
posteriormente, a contemporaneidade j no possuem tal marca, configurando aquilo que
Guimares Rosa manifesta, atravs de seu personagem Riobaldo: viver muito perigoso.
O homem ps-moderno estaria entregue a um sem nmero de opes e escolhas, que o
jogam muito mais em um mundo no totalizante e universalizante, no qual a experincia de
desamparo e angstia tem lugar privilegiado.

[...] As dcadas finais do sculo XX se caracterizam pelo ceticismo. As utopias


polticas que dominaram o imaginrio ocidental, desde a Revoluo Francesa,
soobraram. O ideal de felicidade enunciado pelo Iluminismo, pelo qual o homem
1

Parte do Captulo da Tese de Doutorado Do pecado pessoal ao pecado social: a solidariedade na reatualizao do ensino religioso da Companhia de Jesus, defendida na Faculdade de Educao/UFMG em
Junho/2009.
2
Faremos uso aqui das concepes e consideraes de Birman (2006, p. 37-38) sobre essa discusso dos
termos modernidade, ps-modernidade e contemporaneidade. [...] os norte-americanos em geral preferem
referir-se ps-modernidade para descrever os novos tempos em oposio modernidade. No se deve,
contudo, ser esquemtico em relao a isso, j que encontramos entre os europeus no apenas o acento
incidindo sobre a ruptura, como tambm a caracterizao dessa ruptura como algo positivo. Este o caso, por
exemplo, de Zygmunt Bauman, cientista social polons que professor nas universidades de Varsvia e de
Leeds, na Inglaterra. De outro ponto de vista, o filosofo francs Jean-Franois Lyotard tambm reconhece a
existncia da ruptura e o fim da modernidade, sublinhando a impossibilidade terica atual de as grandes
narrativas serem realizadas. O italiano Gianni Vattimo no apenas insiste na ruptura radical, como um
entusiasta dos tempos ps-modernos, baseando-se para isso em outros critrios filosficos. Em contrapartida,
o cientista social francs Gilles Lipovetsky destaca a ruptura, mas de maneira negativa, referindo-se psmodernidade como o imprio do vazio e do efmero, posio no muito distante da expressa pelo socilogo
Jean Baudrillard, que tambm a considera da maneira negativa. Por sua vez, os europeus ainda insistem na
existncia da modernidade hoje, sublinhando a radicalizao de seus pressupostos. Assim, Anthony Giddens,
na Inglaterra, prefere referir-se existncia de uma modernidade tardia, estando prximo do caminho do
cientista social alemo Ulrich Beck, que destaca a idia de uma modernidade reflexiva. Da mesma forma, o
cientista social francs Georges Balandier insiste na existncia de uma super-modernidade, na qual ainda
permanecem os fundamentos da modernidade. O filsofo alemo Jrgen Habermas destaca-se como um
defensor implacvel do projeto da modernidade, tudo isso se nos referirmos apenas aos campos das cincias
sociais e da filosofia, deixando de lado o da esttica, nos quais a presena viva do iderio da modernidade
sempre se destaca.

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dominaria a natureza e constituiria uma sociedade igualitria pelo domnio da


razo cientfica, j no provoca mais as certezas de outrora. No por acaso,
certamente, que assistimos nos dias de hoje a um vigoroso processo de reevangelizao do mundo, atravs do qual se retorna religio como busca de
proteo face ao desamparo. Busca-se assim, uma viso de mundo reasseguradora que possibilite proteo ao sujeito frente ao medo do indeterminado
e do acaso. Nesse registro se inscrevem os fundamentalismos, que pipocam na
ps-modernidade, como uma das caractersticas bsicas das novas modalidades
religiosas (BIRMAN, 1999, p. 228-229).

Em outra obra, de 2006, denominada Arquivos do mal-estar e da resistncia, o


mesmo autor retoma esse debate e acrescenta que a modernidade trouxe transformaes tais
vida humana na terra que, inclusive, estabeleceu outras formas de servido. Fazendo uso
das ideias de tienne de La Botie3 sobre a servido voluntria, Birman argumenta que,
diferentemente do mundo moderno, o mundo medieval era regulado pela religio e pela
teologia. Isso garantia que a vida humana estivesse fundada na onipotncia divina, que
estabelecia um assujeitamento do homem de ordem involuntria. No entanto, o homem
moderno, classificado como empreendedor, centrado na razo e no discurso da cincia,
promove um autocentramento no eu e na conscincia e teria, assim, essa condio
modificada para um tipo de servido agora denominada de voluntria. O autor ainda
assinala que tal transformao foi fruto da construo de Estado moderno, bem como do
poder absoluto, que revelou ao mundo uma nova ordem: a dominao sobre os homens
deslocando-se do cu estrelado para o mundo sublunar.
Kehl (2002) nos mostra que a tradio, marca do mundo medieval, proporcionava,
de certa forma, uma possibilidade de localizao do sujeito, pois explicitava o que era
esperado de cada um, de acordo com seu lugar de nascimento. A religio, dominante,
oferecia sentidos e respostas para a vida e tambm para a morte e ainda orientava no que
diz respeito s escolhas morais. A modernidade destituiu Deus de algumas de suas funes.
A quebra do monoplio da Igreja Catlica implicou a emergncia de uma gama de saberes
que foraram o homem a realizar sua filiao simblica.

tienne de La Botie humanista e filsofo francs escreveu a sua obra mais famosa, intitulada "Discurso da
Servido voluntria". J no ttulo aparece a contradio do termo servido voluntria, pois como se pode
servir de forma voluntria, isto , sacrificando a prpria liberdade de espontnea vontade? Dentro desta
temtica, a obra essencialmente um questionamento acerca das possveis causas que levariam os povos a se
submeterem vontade de um tirano, o que se mostrar como uma grande interrogao e indignao
opresso.

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Se as sociedades modernas preservam ainda a idia de um Deus, o fato que j


no existem mais condies para que esse Deus seja UM. Situemos ento, um
tanto arbitrariamente mas no sem algumas boas razes, a origem disto a quem
chamamos os tempos modernos por volta do sculo XVI, quando a Reforma
luterana abalou profundamente o monoplio da Igreja catlica sobre a
religiosidade no Ocidente. verdade que Martinho Lutero no propunha outra
verso de Deus, mas outra verso da f e da administrao terrena das coisas
sagradas. Foi contrrio corrupo e ao enriquecimento das altas autoridades da
Igreja, prtica da venda de indulgncias, ao uso do latim nos ofcios sagrados,
favorvel a uma reduo no nmero e na importncia dos sacramentos, ao acesso
de todos os fiis aos textos sagrados. Mas, acima de tudo, Lutero defendeu a idia
de que cada fiel deveria prestar contas diretamente a Deus a respeito de sua
devoo e procurar sozinho o caminho de sua salvao, independente da tutela de
um representante da Igreja (KEHL, 2002, p. 54).

Caractersticas da Modernidade
A Reforma Protestante permitiu certa democratizao do saber at ento
concentrado nas mos da Igreja Catlica e um tipo diferenciado de relao do homem com
o sagrado, na qual o crente poderia, por exemplo, ter a prpria interpretao dos textos
sagrados. A proposta de Martinho Lutero direcionava-se a um retorno ao Cristianismo
primitivo, no contaminado, e com alianas com o poder profano. A consequncia disso foi
uma pluralizao da verdade da f.
Outra caracterstica marcante da modernidade diz respeito ampliao dos
horizontes atravs das grandes navegaes e descobrimentos, o que tambm provocou certa
relativizao das convices morais e sociais europeias, devido circulao das notcias da
existncia de outros povos que se organizavam socialmente de forma diferenciada. Dessa
forma, o deslocamento produzido pela descoberta do Novo Mundo, acrescido da
divulgao dos avanos na astronomia copernicana, retiraram a Terra e o homem europeu
de seu centro, colocando ambos em um lugar de insignificncia. Vale ainda ressaltar que
este foi um perodo no qual as trocas eram mediadas pela moeda, assim como do
estabelecimento da mercadoria com um valor diferente de seu uso atravs das relaes
capitalistas.
Esse movimento assim um nascente projeto de globalizao, que perpassado
por uma crescente interdependncia dos povos. A globalizao avana hoje em ritmo
acelerado e impelida, principalmente, pelo desenvolvimento nos campos da tecnologia e
da comunicao.

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O individualismo4, outra marca por excelncia da modernidade e da


contemporaneidade, remete, segundo o psiclogo Raggio (1998), noo de indivduo. Ele
mostra que o termo indivduo vem do latim individum, que, por sua vez, a traduo do
grego tomo, significando no divisvel. Assim, inicialmente a noo de indivduo no
se encontrava associada subjetividade humana, dado que era uma noo das cincias
naturais, e s sofreu tal associao a partir do sculo XVI, tomando mais vulto com as
transformaes operadas a partir do sculo XVIII. O autor assinala que tais transformaes
partem da dissoluo da sociedade com bases feudais e do surgimento de novas relaes de
produo.

[...] Ser a partir da apario do Estado burgus e da nova institucionalidade


jurdica que o indivduo alcanar plena legitimidade. As novas foras produtivas
requeriam homens juridicamente livres e independentes que voluntariamente, e
numa relao entre iguais, pudessem vender sua fora de trabalho. A relao
igualitria estar intermediada pelo Contrato Social (Rousseau) que, a partir
desse momento, ser o encarregado de conectar sujeitos considerados por
natureza independentes e de intermediar todas as relaes essenciais
manuteno do Estado (RAGGIO, 1998, p. 319-320).

J Dumont (1985), socilogo, defende a ideia de que o individualismo (nfase no


indivduo) um valor fundamental das sociedades modernas e se contrape a outra ideia, a
de holismo, que valoriza a totalidade social e negligencia ou, ainda, subordina o indivduo.
Esse individualismo promove, segundo ele, uma priorizao nas relaes entre os homens e
as coisas em detrimento da relao dos homens entre si.
Birman (2006) acrescenta que, sendo a modernidade centrada no indivduo, a
individualidade passa a ser uma categoria fundamental. Assim, o projeto da modernidade
apresenta-se marcado pelo vis antropolgico e antropocntrico, dado que o homem, na
qualidade de indivduo, foi alado condio fundamental de medida de todas as coisas.
Kehl (2002, p. 13) acrescenta que as sociedades ditas modernas enfatizam como pilares a
liberdade, a autonomia individual e a valorizao narcsica, que se constituem em novos
modos de alienao e que orientam em direo ao gozo e ao consumo. Assim, cada gerao
se constitui pela ideia de um rompimento com a tradio advinda das geraes anteriores.
[...] Cada indivduo se cr pai de si mesmo, sem dvida nem compromisso com os
4

Birman (2006) argumenta que a partir do pressuposto do individualismo temos um destaque significativo do
eu, que passou a ser a medida de todas as coisas. A modernidade apresenta-se como uma ruptura com as
tradies da Idade Mdia na qual o eu no ocupava tal lugar que era ento atribudo a Deus.

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antepassados, incapaz de reconhecer o peso do lao com os semelhantes, vivos e mortos, na


sustentao de sua posio subjetiva [...].. Dessa forma, segundo a psicanalista Caldeira
(1996), em uma sociedade na qual se valoriza a autonomia do indivduo, o sujeito se v
obrigado a recorrer e a referir-se a si prprio, imerso em uma busca narcsica de perfeio e
completude, evitando, dessa forma, um confronto com sua condio de ser marcado pelo
falta e pela castrao, que impem limites.
Esse projeto moderno que enfatiza o indivduo/individualismo encontra seu eco
histrico. Elias (1994, v. 1), socilogo, nos mostra que os processos civilizadores impem
cada vez mais ao sujeito um lugar de apartamento da cena pblica e uma crescente
valorizao do espao da intimidade e da privacidade. Isso ocorre, por exemplo, na relao
do sujeito com o prprio corpo, que deve ser controlado e adestrado em seus impulsos,
desejos e afetos, o que permitir uma convivncia mais adequada com outros. Esse
autocontrole, apoiado por sanes sociais, deve ser cada vez mais interiorizado e praticado,
mesmo em momentos de solido5, e o seu no cumprimento acarretar o sentimento de
vergonha atrelado ao medo da degradao social. essa concepo de interiorizao que
aproxima Elias do pensamento freudiano, naquilo que Freud prope como uma instncia
interna instaurada pela lei paterna o supereu. Assim, segundo Kehl,

A diviso do sujeito da psicanlise completa-se aqui; ao final do processo,


assistimos emergncia de um sujeito que passa a desconhecer tanto suas
determinaes ntimas como o carter coletivo, social, das foras que o
atravessam. Para se acreditar independente, individual entre seus semelhantes,
ele tem que ignorar (recalcar?) todas as evidncias de sua dependncia, desde a
educao que lhe garantiu um lugar na sociedade at a fora de tradies e
saberes implcitos no sistema de crenas e valores que ele acredita ter constitudo
sozinho, pelo poder da razo. O resultado dessa operao o desenvolvimento de
uma aguda conscincia de si, responsvel, a um s tempo, pelo

Elias (1993, p. 196, v. 2) explica: [...] O fato seguinte foi caracterstico das mudanas psicolgicas
ocorridas no curso da civilizao: o controle mais complexo e estvel da conduta passou a ser cada vez mais
instilado no indivduo desde seus primeiros anos, como uma espcie de automatismo, uma autocompulso
qual ele no poderia resistir, mesmo que desejasse. A teia de aes tornou-se mais complexa e extensa, o
esforo necessrio para comportar-se corretamente dentro dela ficou to grande que, alm do autocontrole
consciente do indivduo, um cego aparelho automtico de autocontrole foi firmemente estabelecido. Esse
mecanismo visava a prevenir transgresses do comportamento socialmente aceitvel mediante uma muralha
de medos profundamente arraigados, mas, precisamente porque operava cegamente e pelo hbito, ele, com
freqncia, indiretamente produzia colises com a realidade social. Mas fosse consciente ou
inconscientemente, a direo dessa transformao da conduta, sob a forma de uma regulao crescentemente
diferenciada de impulsos, era determinada pela direo do processo de diferenciao social, pela progressiva
diviso de funes e pelo crescimento de cadeias de interdependncia nas quais, direta ou indiretamente, cada
impulso, cada ao do indivduo tornavam-se integrados.

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desenvolvimento dos homens modernos como indivduos diferentes uns dos


outros e pelo sofrimento que essa prtica contnua de auto-observao pode
acarretar. (2002, p. 64).

Duby tambm nos mostra esse lastro histrico em a Histria da vida privada, 2: da
Europa feudal Renascena (1990). Nesse texto o autor discute a ideia de que o espao
para o individual era algo que inexistia na poca feudal, as experincias dentro e fora das
moradas sempre ocorriam em grupos, e qualquer movimento no sentido da privacidade ou
isolamento era objeto de suspeita ou, ainda, de admirao. Na grande maioria das vezes s
se expunham a essa experincia os considerados desencaminhados, os possudos (herticos)
e os loucos (um dos sintomas da loucura era vaguear sozinho). A ideia e processo de
privatizao s se constituiro, de acordo com Chartier, entre os sculos XVI e XVIII e
vinculam-se a seis categorias essenciais:

[...] a civilidade, que suscita atitudes novas com relao ao corpo; o


autoconhecimento, procurado na escritura ntima; a solido, praticada no mais
apenas como ascese, porm ainda como prazer; a amizade, cultivada em
particular; o gosto, valorizado como uma forma de auto-representao; e a
comodidade, resultado da reorganizao do cotidiano. (1991, p. 165).

Assim, pretende-se estabelecer regulaes e adestramentos sobre o corpo, que deve


ser continuamente dominado em um movimento constante de interiorizao dessas
prescries. So proscritos, por exemplo, gestos e atitudes que poderiam denotar falta de
humanidade e a explicitao de seu contrrio, a animalidade, como o riso equino, a voz
anasalada que lembra o elefante etc.6, assim como so prescritas formas adequadas de se
vestir, bem como regras de higiene corporal.
A privatizao tambm pode ser observada no surgimento de espaos fsicos que a
possibilitam, tais como jardins, gabinetes, bibliotecas, quartos. Ranum (1991), historiador,
nos mostra que os arquitetos dos chamados sculos modernos criaram espaos privados
e/ou ampliaram determinados espaos operando uma passagem de peas do mobilirio para
6

Revel (1991, p. 174-175), historiador, nos mostra que As transformaes dos comportamentos e das
representaes so lentas e difusas e muitas vezes contraditrias. Assim, s excepcionalmente podemos
atribuir uma data precisa a uma evoluo ou a uma inovao e associ-la a um fato singular. Contudo, a
histria da civilidade prope essa experincia nica. Ancora-se num texto bsico que depois no cessou de ser
reivindicado, plagiado, deformado. Essa matriz A civilidade pueril, de Erasmo, publicada pela primeira vez
em Basilia em 1530 e logo destinada a imenso sucesso. Ao mesmo tempo em que reformula a prpria noo
de civilidade, esse breve tratado didtico, escrito em latim, fixa e por trs sculos o gnero literrio que
garantir pedagogia das boas maneiras sua ampla difuso social.

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cmodos. Dessa forma, gabinetes, bibliotecas, escritrios, que designavam um mvel, vo,
pouco a pouco, transformando-se em aposentos com uma funo especfica, bem como
sendo marcados pelo carter privado.
Tambm nos hbitos e modos mesa podemos observar esse movimento de
privatizao, que interdita, por exemplo, o compartilhamento do prato, a utilizao das
mos ao comer, e prescreve o emprego de utenslios pessoais, bem como a ritualizao das
refeies, e no crescente movimento de conservar objetos materiais que remetem
lembrana/presena do outro.

Isso evidencia no s uma obsesso pela limpeza, como ainda um progresso do


individualismo: o prato, o copo, a faca, a colher e o garfo individuais na verdade
erguem paredes invisveis entre os comensais. Na Idade Mdia, levava-se a mo
ao prato comum, duas ou trs pessoas tomavam a sopa numa s escudela, todos
comiam a carne na mesma travessa e bebiam de uma nica taa que circulava
pela mesa; facas e colheres, ainda inadequadas, passavam de um conviva a outro;
e cada qual mergulhava seu pedao de po ou de carne em saleiros e molheiras
comuns. Nos sculos XVII e XVIII, ao contrrio, cada comensal dono de um
prato, um copo, uma faca, uma colher, um garfo, um guardanapo e um pedao de
po. Tudo que retirado das travessas, molheiras e saleiros comuns deve ser pego
com utenslios adequados e depositado no prato antes de toc-lo com os prprios
talheres e lev-lo boca. Cada conviva encerrado numa espcie de gaiola
imaterial [...] (FLANDRIN, 1991, p. 268).

Esse individualismo, porm, se ope quilo que a Psicanlise preconiza que o


conceito de sujeito. Este, o sujeito, no nasce ou se desenvolve, mas constitudo a
partir de funes que lhe propiciam entrar na ordem social emanada da famlia, ou seus
substitutos sociais ou jurdicos, tais como orfanatos, por exemplo. Sem esse amparo, j que
a condio fundamental da espcie humana o desamparo7, no haver sua humanizao,
ou seja, sua entrada para a ordem cultural qual todos, de alguma forma, esto submetidos.
Assim, quando nasce uma criana, um primeiro ponto a se considerar em seu percurso de se
tornar um sujeito que ele uma espcie de local de imperiosa demanda de
sobrevivncia, que muito rapidamente ser mediada pela linguagem, fazendo com que a
7

[...] desamparo fundamental (Hilflosigkeit) do ser humano, exige a interveno de um adulto prximo
(Nebenmensch) que perpetre uma ao especfica necessria sobrevivncia do ser humano desamparado.
Lacan prope a categoria de Outro (com o maisculo) para designar no apenas o adulto prximo de que
fala Freud mas tambm a ordem que este adulto encarna para o ser recm-nascido na cena de um mundo j
humano, social e cultural. [...]. O Outro no apenas, portanto, uma pessoa fsica, um adulto, por exemplo,
[...] chamaremos de me, porquanto em nossas sociedades seja esta a categoria que designa a funo de cuidar
dos bebs e tambm toda uma ordem simblica que a me introduz no seu ato de cuidar do beb. (ELIA,
2004, p. 39-40).

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vida biolgica pura (da ordem do instinto) seja excluda da experincia do sujeito, que a
pulveriza e fragmenta na vida cultural (da ordem da pulso).

Muitos cometem aqui o mal-entendido de dizer que a psicanlise desconsidera a


vida biolgica, que negligencia nossa condio animal, por exemplo. Deixemos,
portanto, bem claro do que se trata: a psicanlise no desconsidera que tenhamos
um organismo e que este regido por leis naturais e biolgicas (o que seria
louco), nem afirma que as vicissitudes deste organismo no afetam o sujeito (o
que seria imprprio). Ela evidencia e formaliza, como, alis, de vocao fazer, o
que todo mundo sabe pela experincia, mas disso no tira, em geral, nenhuma
conseqncia: que a experincia que temos de nosso organismo, de suas
exigncias, proezas, debilidades ou doenas, ns s a temos atravs do campo da
significao, do sentido, ou seja, pelo fato de que, por sermos falantes, somos
marcados pela linguagem, pelo significante, mesmo no mais extremo nvel de
intimidade que possamos estabelecer como nossos rgos e com o nosso
corpo.[...] (ELIA, 2004, p. 46).

O que daqui se depreende que essa concepo de sujeito tem ntima relao com a
descoberta do inconsciente. Assim, perante uma modernidade que enfatiza o eu e a razo
como soberanos, Freud traz aquilo que ele prprio denomina a terceira ferida narcsica da
humanidade, atravs da postulao do conceito de inconsciente8. O inconsciente
compreendido pela Psicanlise como um sistema que possui leis prprias de
funcionamento, e no como algo que se situa fora do campo da conscincia. Freud d ao
inconsciente e s suas formas de expresso um status que os olhos do senso comum
desprezam.

Os fenmenos em questo so as pequenas falhas comuns aos indivduos normais


e aos neurticos, fatos aos quais no costumamos ligar importncia o
esquecimento de coisas que deviam saber e que s vezes sabem realmente (por
exemplo, a fuga temporria dos nomes prprios), os lapsos de linguagem, to
freqentes at mesmo conosco, na escrita ou na leitura em voz alta; atrapalhaes
no executar qualquer coisa, perda ou quebra de objetos etc., bagatelas de cujo
determinismo psicolgico de ordinrio no se cuida, que passam sem reparo

[...] No transcorrer dos sculos, o ingnuo amor-prprio dos homens teve de submeter-se a dois grandes
golpes desferidos pela cincia. O primeiro foi quando souberam que a nossa Terra no era o centro do
universo, mas o diminuto fragmento de um sistema csmico de uma vastido que mal se pode imaginar. Isto
estabelece conexo, em nossas mentes, com o nome de Coprnico, embora algo semelhante j tivesse sido
afirmado pela cincia de Alexandria. O segundo golpe foi dado quando a investigao biolgica destruiu o
lugar supostamente privilegiado do homem na criao, e provou sua descendncia do reino animal e sua
inextirpvel natureza animal. Esta nova avaliao foi realizada em nossos dias, por Darwin, Wallace e seus
predecessores, embora no sem a mais violenta oposio contempornea. Mas a megalomania humana ter
sofrido seu terceiro golpe, o mais violento, a partir da pesquisa psicolgica da poca atual, que procura provar
o ego que ele no senhor nem mesmo em sua prpria casa, devendo, porm, contentar-se com escassas
informaes acerca do que acontece inconscientemente em sua mente [...]. (FREUD, 1917, p. 336).

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como causalidades, como resultado de distraes, desatenes e outras condies


semelhantes. Juntam-se ainda os atos e gestos que as pessoas executam sem
perceber, e, sobretudo, sem lhes atribuir importncia mental, como sejam trautear
melodias, brincar com objetos, com partes da roupa ou do prprio corpo etc.
Essas coisinhas, os atos falhos, como os sintomticos e fortuitos, no so assim
to destitudas de valor como por uma espcie de acordo tcito hbito admitir.
So extraordinariamente significativas e quase sempre de interpretao fcil e
segura, tendo-se em vista a situao em que ocorrem; verifica-se que mais uma
vez exprimem impulsos e intenes que devem ficar ocultos prpria
conscincia, ou emanam justamente dos desejos recalcados e dos complexos que,
como j sabemos, so criadores dos sintomas e formadores dos sonhos [...]
(FREUD, 1909, p. 35-36).

A Psicanlise, dessa maneira, postula a existncia de um determinismo mental, dado


que no h ento nada de insignificante, arbitrrio nas manifestaes psquicas, e uma
concepo de sujeito e subjetividade radicalmente descentrada dos registros do eu e da
conscincia/razo, lugares agora marcados no pela verdade, mas pelo ocultamento e
desconhecimento. Mas o fato de ser determinado por algo que lhe escapa, o inconsciente,
no isenta o sujeito de se responsabilizar por si e pelos seus atos. Freud alerta: quem mais,
alm de mim, pode se responsabilizar por algo que, embora no controle, no posso deixar
de admitir como parte de mim mesmo? uma responsabilidade difcil de ser assumida,
dado o desconhecimento e a recusa que o sujeito tem em admitir o estranho que existe e age
em si. Dessa forma, o sujeito freudiano s livre na medida em que aceita esse
determinismo, o que implica ento uma liberdade restrita.

Contemporaneidade e Individualismo
O mundo contemporneo demarcado pelo individualismo tambm se associa ao
consumismo, configurando aquilo que Debord (1997) chama de sociedade de consumo
ostentatrio e do espetculo9, com a busca do prazer incessante e a obsesso pela imagem
perfeita, de corpos e almas, tudo isso reforado pelas iluses farmacolgicas para regular o
mal-estar. tambm uma cultura do narcisismo, segundo prope o historiador Lasch

Debord, escritor francs, discute em seu livro A sociedade do espetculo (1997) a nfase que o mundo
moderno/ps-moderno d imagem, provocando um deslizamento do ter para o parecer, na qual a
mercadoria (descartvel) consumida tem um lugar preponderante e exaltada de forma significativa. A
teatralidade outra caracterstica desse tipo de sociedade, na qual cada membro se insere como um ator na
cena social, com grande contribuio da mdia.

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(1983), na qual o que importa a exaltao gloriosa do prprio eu 10, uma cultura na qual
no h lugar para a existncia do amor, amizade, pois o que interessa a cada um o gozo
predatrio sobre o outro e sobre o seu corpo, que tratado como um annimo qualquer,
sem rosto. , ento, uma forma de estruturao que aponta muito mais para uma cultura de
morte do que para uma cultura de vida.
Outra caracterstica deste tempo, apontada pelo socilogo Bauman (1998), so os
fundamentalismos e seus fascnios, que prometem isentar cada um dos sujeitos das agruras
da

escolha,

ofertando-lhes

uma

autoridade

indubitavelmente

suprema.

Os

fundamentalismos apresentam-se como um remdio de ordem radical para esse veneno da


sociedade de consumo ostentatrio, pois oferecem ao indivduo um caminho prdeterminado a ser percorrido, sendo ento uma certeza na incerteza caracterstica do mundo
ps-moderno. Podemos ainda destacar neste contexto um processo de estetizao
generalizado. Segundo Bulhes, encontramos

[...] Exemplos contundentes desta estetizao, dominante na realidade em


diferentes instncias, desde o cotidiano at a poltica, podem ser identificados,
mais claramente, na publicidade. Ela capaz de transformar qualquer tipo de
produto em um prottipo de beleza e signo de uma forma de vida ideal. Para a
publicidade, que cobre de belas imagens o cotidiano de milhares de indivduos,
no existem pessoas feias ou defeituosas, no existe pobreza ou sujeira. O mundo
se tornou, sob sua tica, asceticamente perfeito. A prpria guerra passou a ser
esttica, em suas formas televisivas. Nenhuma imagem mais choca os
indivduos envolvidos pela proteo visual da sociedade do simulacro. (1999, p.
93).

Os avanos tecnolgicos de um mundo globalizado11 tambm reforam todo esse


panorama, pois permitem cada vez mais aos sujeitos do mundo moderno/contemporneo a
iluso de suportar o tempo marcadamente acelerado, estabelecendo comunicaes variadas
em qualquer lugar e momento12. Assim, as novas e recentes tecnologias, como, por
10

Lasch (1983) configura a cultura do narcisismo como aquela que exalta o eu, atravs dos mecanismos
miditicos que promovem uma estetizao desmesurada. Neste tipo de cultura o sujeito vale pela imagem que
produz e expe.
11
Segundo a doutora em Psicologia Social Aguiar (2002), a globalizao no pode se reduzir dimenso
econmica, apesar de ser o seu primeiro e principal aspecto. Ela se atrela tambm experincia cotidiana das
aes que no reconhecem ou desconhecem fronteiras no que diz respeito informao, ecologia, tcnica,
sociedade civil etc. Ela opera transformaes na realidade dos homens gerando o inesperado, o incerto, a
ausncia de limites.
12
Sobre os avanos tecnolgicos, principalmente dos meios de comunicao, Bauman (2007, p. 11) destaca:
[...] No h terra nulla, no h espao em branco no mapa mental, no h terra nem povo desconhecidos,
muito menos incognoscveis. A misria humana de lugares distantes e estilos de vida longnquos, assim como

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exemplo, a internet e o celular, podem ter um efeito de fascnio sobre cada um, pois
oferecem uma iluso de liberdade de escolha, que parece infinita, mas que, ao mesmo
tempo, demarcam uma ausncia de intimidade, pois o sujeito pode ser localizado a qualquer
tempo e em qualquer lugar. Essa iluso protege o sujeito do medo do encontro, do ntimo e
do contato com o outro.

Em tudo isso, o discurso da cincia que passa a ocupar a posio estratgica de


produo e de agenciamento da verdade, substituindo progressivamente os
discursos filosficos e teolgicos. A razo cientfica torna-se a marca distintiva
do homem, o que lhe confere soberania e autonomia no apenas diante da
natureza, como tambm em face do mundo divino. Portanto, apenas a
racionalidade cientfica que pode argir sobre a veracidade dos enunciados e dos
juzos. Em decorrncia disso, a tecnologia se transforma no instrumento por
excelncia do exerccio da sabedoria humana, uma vez que a tcnica verifica na
prtica a verdade formulada pela razo cientfica, isto , por seu impacto e pelas
transformaes que possibilita na natureza e na sociedade (BIRMAN, 2006, p.
41).

Todas essas estratgias visariam lidar, de forma ilusria, com as trs fontes de
sofrimento/impotncia das quais padece o homem moderno/contemporneo o corpo, a
natureza e a relao com o outro , como nos mostra Freud em sua obra de 1930. Assim,

[...] A modernidade alimentou a iluso de que tais foras poderiam ser


controladas pela tecnologia, pela cincia e pela razo. O ideal de auto-suficincia,
que a liberdade e autonomia para qual o homem moderno foi educado viria a
proteg-lo, quem sabe, do incmodo do inferno que so os outros, parafraseando
Sartre. O que se v hoje, ento a hiper-valorizao do cada um estar na sua ou
do estar bem aqui e agora, a importncia do auto-conhecimento, do ser mais
eu. Dezenas de terapias, religies e seitas, que se colocam hoje como alternativa
para formar o homem para a felicidade e sucesso (MARIN, 2004, p. 89) .

A posio da psicanalista acima citada compartilhada pelo tambm psicanalista


Birman (1999, p. 36), que argumenta que, pelo fato de os homens serem [...] frgeis,
finitos e mortais eles precisam criar todos os artifcios para o tamponamento daquelas
marcas que se materializam com os europeus da vaidade, da suposta auto-suficincia e da
onipotncia.. Dessa forma, o profundo desamparo, marca fundamental da condio
humana, conduziu o sujeito a um impasse trgico do qual ele no consegue se livrar:
a corrupo de outros lugares distantes e estilos de vida longnquos, so apresentadas por imagens eletrnicas
e trazidas para casa de modo to ntido e pungente, vergonhoso ou humilhante como o sofrimento ou a
prodigalidade ostensiva dos seres humanos prximos de casa, durante os passeios dirios pelas ruas das
cidades [...].

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precisar do outro como um possvel irmo para realizar certa gesto do mal-estar, ou se
agarrar de forma alienada iluso de autossuficincia engendrada pelo mundo moderno e
ps-moderno, atravs de expedientes diversos.
Mas, outras formas de mal-estar hoje se impem. Birman, em outra obra, de 2006,
Arquivos do mal-estar e da resistncia, acrescenta que, na chamada ps-modernidade,
experimentamos outras modalidades de mal-estar que se registram no corpo, na ao e no
sentimento, que podem se combinar no mesmo sujeito.
Para ele, o corpo um dos registros no qual o mal-estar se prenuncia de uma forma
mais eminente. Todos se queixam do mau funcionamento do corpo e acreditam que sempre
deve haver uma forma adequada para que a performance do corpo possa ser melhor. [...]
Sentimo-nos sempre faltosos, deixando de fazer tudo o que deveramos, considerando as
possibilidades oferecidas para o cuidado do corpo. Enfim, estamos sempre numa posio de
dvida em relao a isso. (BIRMAN, 2006, p. 175). O autor descreve que nos encontramos
em um estado permanente de estresse, que pode se manifestar de maneiras infinitas: dores
difusas, tonteiras, elevao da presso arterial, acelerao cardaca, sndrome da fadiga
crnica, sndrome do pnico etc. Perante esse contexto de mltiplas explicitaes do malestar, sobressaem os tratamentos corporais, que vo das massagens nos spa, passando
pelos exerccios orientais e ginsticas (as academias transformam-se em templos seculares),
no se excluindo aqui os suplementos vitamnicos, para o enfrentamento imaginrio da
morte e do envelhecimento.
J no registro da ao, a chamada hiperatividade (excitabilidade elevada) se
impe, e o sujeito age, com frequncia, sem pensar naquilo que objetiva com sua ao e
tambm naquilo que motiva sua ao. Assim, a explosividade impera, e como se o sujeito
no conseguisse conter um excesso experienciado e, tampouco, transformar esse excesso
em uma ao adequada ao contexto. Decorrem dessas exploses emocionais incontrolveis
a violncia (que difere da agressividade, constitutiva do psiquismo) e o consequente
aumento da delinquncia, do uso das drogas (legais e ilegais), dos transtornos alimentares
(bulimia e anorexia) e da criminalidade, que se intensifica e se torna cada vez mais
refinada.
O ltimo registro, o do sentimento, se apresenta, em primeiro lugar, pelo
empobrecimento da linguagem, que se encontra cada vez mais perpassada pela imagem,

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que dificulta a mediao entre as diferenas. Assim, ao empobrecimento do pensamento


corresponde, de um lado, a violncia; e de outro, a depresso13.
Birman (2006, p. 191) ainda acrescenta a essa discusso as manifestaes
contemporneas do mal-estar, as experincias da dor e do sofrimento nesse contexto e a
dificuldade do sujeito atual em transformar a dor em sofrimento. [...] se o sofrimento era a
marca especfica pela qual a subjetividade metabolizava o mal-estar na modernidade, a dor
passou a ser o trao inconfundvel pelo qual aquela se confronta como o mal-estar na psmodernidade.
A dor uma experincia na qual o sujeito se fecha sobre si mesmo, no havendo
aqui espao/lugar para o outro no seu mal-estar. , assim, uma experincia de carter
solipsista, na qual s h espao para si prprio, sem possibilidade para a dimenso
alteritria.

[...] Da a passividade que sempre domina o indivduo quando algo di,


esperando que algum tome uma atitude por ele. Se isso no ocorre, a dor pode
mortificar o corpo do indivduo, minando o somtico e forjando o vazio da autoestima. Ou, ento, a dor pode fomentar as compulses e a violncia, formas de
descarga daquilo que di. Enfim, a dor uma maneira de se falar do
ressentimento que perpassa hoje os humilhados e ofendidos dos quatro
quadrantes do planeta.
Imersa que fica na dor e no ressentimento, portanto, a subjetividade
contempornea se evidencia como essencialmente narcsica, no se abrindo para
o outro, de forma a fazer um apelo. Isso porque pega mal precisar do outro, pois
isso revelaria as falhas do demandante. Na cultura do narcisismo, as
insuficincias no podem existir, j que essas desqualificam a subjetividade, que
deve ser auto-suficiente (BIRMAN, 2006, p. 191-192).

Por outro lado, o sofrimento apresenta-se como uma experincia com carter
alteritrio. Assim sendo, o outro se encontra presente, e para ele que o sujeito em
sofrimento enderea seu apelo, pois aqui h um reconhecimento da no autossuficincia.
Nesse contexto, o homem ps-moderno/contemporneo vive uma experincia de
contradio cultural, pois, de um lado, se tem a priorizao da autonomia, da pretenso de
13

A depresso, sintoma do mal-estar neste comeo de milnio, como a histeria no final da era vitoriana, ao
mesmo tempo condio e conseqncia da recusa do sujeito em assumir a dimenso do conflito que lhe
prpria. De um lado a condio, porque, sem certo rebaixamento libidinal prprio dos estados depressivos, o
conflito acaba por se impor. De outro conseqncia, na medida em que a depresso, o empobrecimento da
vida subjetiva, so o preo pago por aqueles que orientam as suas escolhas em funo do medo de sofrer. O
sintoma neurtico provm justamente das resistncias de um eu que no dispe de recursos significantes para
enfrentar seu sofrimento. Por conta da resistncia, do desconhecimento que esta produz, o sofrimento
recusado lana sobre o eu uma sombra muito maior do que sua dimenso verdadeira. (KEHL, 2002, p. 80).

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ser dono do seu querer e viver e, por outro, submete-se a uma servido imaginria e
alienada das solues que so oferecidas a todos sem distino.

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