BAKHTIN. Sobre o Grotesco

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BAKHTIN, Mikhail.

A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento; o


contexto de Franois Rabelais. 7a ed. Traduo de Yara Frayeschi Vieira. So
Paulo: Hucitec, 2010.

Trechos selecionados sobre o Grotesco

[16] (...) Costuma-se assinalar a predominncia excepcional que tem na


obra de Rabelais o princpio da vida material e corporal: imagens do corpo, da
bebida, da comida, da satisfao de necessidades naturais, e da vida sexual.
So imagens exageradas e hipertrofiadas. Alguns batizaram a Rabelais como o
grande poeta "da carne" e "do ventre" (Victor Hugo, por exemplo). Outros o
censuraram por seu "fisiologismo grosseiro", seu "biologismo" e seu
"naturalismo", etc. Os demais autores do Renascimento (Boccaccio,
Shakespeare, Cervantes) revelaram uma propenso anloga, embora menos
acentuada. Alguns a interpretaram como uma "reabilitao da carne" tpica da
poca, surgida como reao ao ascetismo medieval. s vezes, outros quiseram
ver nele uma manifestao tpica do princpio burgus, isto , do interesse
material do "indivduo econmico", no seu aspecto privado e egosta.
As explicaes desse tipo so apenas formas de modernizao das imagens
materiais e corporais da literatura do Renascimento; so-lhes atribudas
significaes restritas e modificadas de acordo com o sentido que a "matria", o
"corpo" e a "vida material" (comer, beber, necessidades naturais, etc.)
adquiriram nas concepes dos sculos seguintes (sobretudo o sculo XIX).
No entanto, as imagens referentes ao princpio material e corporal cm
Rabelais (e nos demais autores do Renascimento) so a herana [17] (um
pouco modificada, para dizer a verdade) da cultura cmica popular, de um tipo
peculiar de imagens e, mais amplamente, de uma concepo esttica da vida
prtica que caracteriza essa cultura e a diferencia claramente das culturas dos
sculos posteriores (a partir do Classicismo). Vamos dar a essa concepo o
nome convencional de realismo grotesco.
No realismo grotesco (isto , no sistema, de imagens da cultura cmica
popular), o princpio material e corporal aparece sob a forma universal, festiva e
utpica. O csmico, o social e o corporal esto ligados indissoluvelmente numa
totalidade viva e indivisvel. um conjunto alegre e benfazejo.
No realismo grotesco, o elemento material e corporal um princpio
profundamente positivo, que nem aparece sob uma forma egosta, nem
separado dos demais aspectos da vida. O princpio material e corporal
percebido como universal e popular, e como tal ope-se a toda separao das
razes materiais e corporais do mundo, a todo isolamento e confinamento em si
mesmo, a todo carter ideal abstrato, a toda pretenso de significao
destacada e independente da terra e do corpo. O corpo e a vida corporal

adquirem simultaneamente um carter csmico e universal; no se trata do


corpo e da fisiologia no sentido restrito e determinado que tm em nossa
poca; ainda no esto completamente singularizados nem separados do resto
do mundo.
O porta-voz do princpio material e corporal no aqui nem o ser biolgico
isolado nem o egosta indivduo burgus, mas o povo, um povo que na sua
evoluo cresce e se renova constantemente. Por isso o elemento corporal to
magnfico, exagerado e infinito. Esse exagero tem um carter positivo e
afirmativo. O centro capital de todas essas imagens da vida corporal e material
so a fertilidade, o crescimento e a superabundncia. As manifestaes da vida
material e corporal no so atribudas a um ser biolgico isolado ou a um
indivduo "econmico" particular e egosta, mas a uma espcie de corpo
popular, coletivo e genrico (esclareceremos mais tarde o sentido dessas
afirmaes). A abundncia e a universalidade determinam por sua vez o carter
alegre e festivo (no cotidiano) das imagens referentes vida material e
corporal. O princpio material e corporal o princpio da festa, do banquete, da
alegria, da "festana". Esse aspecto subsiste consideravelmente na literatura e
na arte do Renascimento, e sobretudo em Rabelais.
O trao marcante do realismo grotesco o rebaixamento, isto , a
transferncia ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua
indissolvel unidade, de tudo que elevado, espiritual, ideal e abstrato. o
caso, por exemplo, da Coena Cypriani (A Ceia de Ciprio) que j mencionamos,
e de vrias outras pardias latinas da Idade Mdia cujos autores em grande
parte extraram da Bblia, [18] dos Evangelhos e de outros textos sagrados
todos os detalhes materiais e corporais degradantes e terra-a-terra. Em certos
dilogos cmicos muito populares na Idade Mdia como, por exemplo, os que
mantm Salomo e Marcul, h um contraponto entre as mximas salomnicas,
expressas em um tom grave e elevado, e as mximas jocosas e pedestres do
bufo Marcul que se referem todas premeditadamente ao mundo material
(bebida, comida, digesto, vida sexual).1 preciso esclarecer, tambm, que um
dos procedimentos tpicos da comicidade medieval consistia em transferir as
cerimnias e ritos elevados ao plano material e corporal; assim faziam os bufes
durante os torneios, as cerimnias de iniciao dos cavaleiros e em outras
ocasies solenes. Numerosas degradaes da ideologia e do cerimonial
cavaleiresco que aparecem no Dom Quixote, so inspiradas pela tradio do
realismo grotesco.
A gramtica jocosa estava muito em voga no ambiente escolar e culto da
Idade Mdia. Essa tradio, que remonta ao Vergilius grammaticus, j
mencionado, estende-se ao longo da Idade Mdia e do Renascimento e subsiste
ainda hoje oralmente nas escolas, colgios e seminrios religiosos da Europa
Ocidental. Nessa gramtica alegre, todas as categorias gramaticais, casos,
formas verbais, etc., so transferidas ao plano material e corporal, sobretudo
ertico.
1 Os dilogos de Salomo e Marcul, degradantes e pedestres, so muito semelhantes aos dilogos que
entretm D. Quixote e Sancho Pana.

No so apenas as pardias no sentido estrito do termo, mas tambm


todas as outras formas do realismo grotesco que rebaixam, aproximam da terra e
corporificam. Essa a qualidade essencial desse realismo, que o separa das
demais formas "nobres" da literatura e da arte medieval. O riso popular que
organiza todas as formas do realismo grotesco, foi sempre ligado ao baixo
material e corporal. O riso degrada e materializa.
Que carter assumem, portanto, essas degradaes tpicas do realismo
grotesco? Para essa pergunta daremos agora apenas uma resposta preliminar,
uma vez que o estudo da obra de Rabelais nos permitir, nos prximos
captulos, precisar, ampliar e aprofundar a nossa concepo dessas formas.
No realismo grotesco, a degradao do sublime no tem um carter formal
ou relativo. O "alto" e o "baixo" possuem a um sentido absoluta e
rigorosamente topogrfico. O "alto" o cu; o "baixo" a terra; a terra o
princpio de absoro (o tmulo, o ventre) e, ao mesmo tempo, de nascimento
e ressurreio (o seio materno). Este o valor topogrfico do alto e do baixo no
seu aspecto csmico. No seu aspecto corporal, que no est nunca separado
com rigor do seu aspecto csmico, o alto representado pelo rosto (a cabea),
e o [19] baixo pelos rgos genitais, o ventre e o traseiro. O realismo grotesco e
a pardia medieval baseiam-se nessas significaes absolutas. Rebaixar consiste
em aproximar da terra, entrar em comunho com a terra concebida como um
princpio de absoro e, ao mesmo tempo, de nascimento: quando se degrada,
amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e d-se a vida em
seguida, mais e melhor. Degradar significa entrar em comunho com a vida da
parte inferior do corpo, a do ventre e dos rgos genitais, e portanto com atos
como o coito, a concepo, a gravidez, o parto, a absoro de alimentos e a
satisfao das necessidades naturais. A degradao cava o tmulo corporal
para dar lugar a um novo nascimento. E por isso no tem somente um valor
destrutivo, negativo, mas tambm um positivo, regenerador: ambivalente, ao
mesmo tempo negao e afirmao. Precipita-se no apenas para o baixo, para
o nada, a destruio absoluta, mas tambm para o baixo produtivo, no qual se
realizam a concepo e o renascimento, e onde tudo cresce profusamente. O
realismo grotesco no conhece outro baixo; o baixo a terra que d vida, e o
seio corporal; o baixo sempre o comeo.
Por isso a pardia medieval no se parece em nada com a pardia literria
puramente formal da nossa poca.
A pardia moderna tambm degrada, mas com um carter exclusivamente
negativo, carente de ambivalncia regeneradora. Por isso a pardia, como
gnero, e as degradaes em geral no podiam conservar, na poca moderna,
evidentemente, sua imensa significao original.
As degradaes (pardicas e de outros tipos) so tambm caractersticas
da literatura do Renascimento, que perpetua desta forma as melhores tradies
da cultura cmica popular (de modo particularmente completo e profundo em
Rabelais). Mas j nessa poca o princpio material e corporal muda de sentido,
torna-se cada vez mais . restrito e seu naturalismo e seu carter festivo
atenuam-se. No entanto, esse processo est apenas comeando nessa altura,

como o demonstra claramente o exemplo do D. Quixote.


A linha principal das degradaes pardicas conduz em Cervantes a uma
reaproximao da terra, a uma comunho com a fora produtora e
regeneradora da terra e do corpo. a prolongao da linha grotesca. Mas, ao
mesmo tempo, o princpio material e corporal j se empobreceu e se debilitou
um pouco. Est num estado de crise e desdobramento originais, e as imagens
da vida material e corporal comeam a adquirir uma vida dupla.
O grande ventre de Sancho Pana, seu apetite e sua sede so ainda
fundamental e profundamente carnavalescos; sua inclinao para a abundncia
e a plenitude no tem ainda carter egosta e pessoal, uma propenso para a
abundncia geral. Sancho um descendente direto dos antigos demnios
panudos da fecundidade que podemos [20] ver, por exemplo, nos clebres
vasos corntios. Nas imagens da bebida e da comida esto ainda vivas as ideias
do banquete e da festa. O materialismo de Sancho, seu ventre, seu apetite, suas
abundantes necessidades naturais constituem o "inferior absoluto" do realismo
grotesco, o alegre tmulo corporal (a barriga, o ventre e a terra) aberto para
acolher o idealismo de Dom Quixote, um idealismo isolado, abstrato e
insensvel; ali o "cavaleiro da triste figura" parece dever morrer para renascer
novo, melhor e maior; Sancho o corretivo natural, corporal e universal das
pretenses individuais, abstratas e espirituais; alm disso, Sancho representa
tambm o riso como corretivo popular da gravidade unilateral dessas
pretenses espirituais (o baixo absoluto ri sem cessar, a morte risonha que
engendra a vida). O papel de Sancho Pana em relao a D. Quixote pode ser
comparado ao das pardias medievais diante das ideias e cultos sublimes; ao
papel do bufo frente ao cerimonial srio; ao da Charnage2 em relao
Quaresma, etc. O alegre princpio regenerador existe ainda, embora numa
forma atenuada, nas imagens terra-a-terra dos moinhos de vento (gigantes),
albergues (castelos), rebanhos de cordeiros e ovelhas (exrcitos de cavaleiros),
estalajadeiros (casteles), prostitutas (damas da nobreza), etc. um tpico
carnaval grotesco, que converte o combate em cozinha e banquete, as armas e
armaduras em utenslios de cozinha e vasilhas de barbear, e o sangue em vinho
(episdio do combate com os odres de vinho), etc.
Esse o sentido primordial e carnavalesco da vida que aparece nas
imagens materiais e corporais no romance de Cervantes. precisamente esse
sentido que eleva o estilo do seu realismo, seu universalismo e seu profundo
utopismo popular.
Por outro lado, entretanto, os corpos e objetos comeam a adquirir, em
Cervantes, um carter privado e pessoal, e por causa disso se apequenam e se
domesticam, so degradados ao nvel de acessrios imveis da vida cotidiana
individual, ao de objetos de desejo e de posse egostas. J no o inferior
positivo, capaz de engendrar a vida e renovar, mas um obstculo estpido e
moribundo que se levanta contra as aspiraes do ideal. Na vida cotidiana dos
indivduos isolados as imagens do "inferior" corporal conservam apenas seu
valor negativo, e perdem quase totalmente sua fora positiva; sua relao com
2 Perodo em que era permitido comer carne.

a terra e o cosmos rompe-se e as imagens do "inferior" corporal ficam reduzidas


s imagens naturalistas do erotismo banal. No entanto, esse processo est
apenas comeando em Cervantes.
Esse segundo aspecto da vida das imagens materiais e corporais combinase com o primeiro numa unidade complexa e contraditria. [21] E a vida
dupla, intensa e contraditria dessas imagens que constitui a sua fora e o seu
realismo histrico superior. Isso constitui o drama original do princpio material
e corporal na literatura do Renascimento: o corpo e as coisas so subtrados
unidade da terra geradora e separados do corpo universal, que cresce e se
renova sem cessar, nos quais estavam unidos na cultura popular.
Na conscincia artstica e ideolgica do Renascimento, essa ruptura no se
consumara ainda por completo; o "baixo" material e corporal do realismo
grotesco cumpre ainda suas funes unificadoras, degradantes, destronadoras,
mas ao mesmo tempo regeneradoras. No importa quo dispersos, desunidos e
individualizados estivessem os corpos e as coisas "particulares", o realismo do
Renascimento no cortara ainda o cordo umbilical que os ligava ao ventre
fecundo da terra e do povo. O corpo e as coisas individuais no coincidem ainda
consigo mesmo, no so idnticos a si mesmos, como no realismo naturalista
dos sculos posteriores; formam parte ainda do conjunto material e corporal do
mundo em crescimento e ultrapassam, portanto, os limites do seu
individualismo; o particular e o universal esto ainda fundidos numa unidade
contraditria. A viso carnavalesca do mundo 6 a base profunda da literatura do
Renascimento.
A complexidade do realismo do Renascimento no foi ainda suficientemente
esclarecida. So duas as concepes do mundo que se entrecruzam no realismo
renascentista: a primeira deriva da cultura cmica popular; a outra, tipicamente
burguesa, expressa um modo de existncia preestabelecido e fragmentrio. As
alternncias dessas duas linhas contraditrias caracterizam o realismo
renascentista. O princpio material em crescimento, inesgotvel, indestrutvel,
superabundante, princpio eternamente ridente, destronador e renovador,
associa-se contraditoriamente ao "princpio material" abastardado e rotineiro
que preside vida da sociedade de classes.
imprescindvel conhecer o realismo grotesco para compreender o
realismo do Renascimento, e outras numerosas manifestaes dos perodos
posteriores do realismo. O campo da literatura realista dos trs ltimos sculos
est praticamente juncado de destroos do realismo grotesco, destroos que s
vezes, apesar disso, so capazes de recuperar sua vitalidade. Na maioria dos
casos, trata-se de imagens grotescas que perderam ou debilitaram seu polo
positivo, sua relao com um universo em evoluo, apenas atravs da
compreenso do realismo grotesco que se pode entender o verdadeiro valor
desses destroos ou dessas formas mais ou menos vivas.
A imagem grotesca caracteriza um fenmeno em estado de transformao,
de metamorfose ainda incompleta, no estgio da morte e do nascimento, do
crescimento e da evoluo. A atitude em relao ao tempo, evoluo, um
trao constitutivo (determinante) [22] indispensvel da imagem grotesca. Seu

segundo trao indispensvel, que decorre do primeiro, sua ambivalncia; os


dois polos da mudana o antigo e o novo, o que morre e o que nasce, o
princpio e o fim da metamorfose so expressados (ou esboados) em uma ou
outra forma.
A atitude em relao ao tempo que est na base dessas formas, sua
percepo e tomada de conscincia, durante seu desenvolvimento no curso dos
milnios, sofrem, como natural, uma evoluo e transformaes substanciais.
Nos perodos iniciais ou arcaicos do grotesco, o tempo aparece como uma
simples justaposio (praticamente simultnea) das duas fases do
desenvolvimento: comeo e fim: inverno-primavera, morte-nascimento. Essas
imagens ainda primitivas movem-se no crculo biocsmico do ciclo vital produtor
da natureza e do homem. A sucesso das estaes, a semeadura, a concepo,
a morte e o crescimento so os componentes dessa vida produtora. A noo
implcita do tempo contida nessas antiqussimas imagens a noo do tempo
cclico da vida natural e biolgica.
Mas, evidentemente, as imagens grotescas no permanecem nesse estgio
primitivo. O sentimento do tempo e da sucesso das estaes que lhes
prprio, amplia-se, aprofunda-se e abarca os fenmenos sociais e histricos;
seu carter cclico superado e eleva-se concepo histrica do tempo. E
ento as imagens grotescas, com sua atitude fundamental diante da sucesso
das estaes, com sua ambivalncia, convertem-se no principal meio de
expresso artstica e ideolgica do poderoso sentimento da histria e da
alternncia histrica, que surge com excepcional vigor no Renascimento.
No entanto, mesmo nesse estgio, e sobretudo em Rabelais, as imagens
grotescas conservam uma natureza original, diferenciam-se claramente das
imagens da vida cotidiana, preestabelecidas e perfeitas. So imagens
ambivalentes e contraditrias que parecem disformes, monstruosas e horrendas,
se consideradas do ponto de vista da esttica "clssica", isto , da esttica da
vida cotidiana preestabelecida e completa. A nova percepo histrica que as
trespassa, confere-lhes um sentido diferente, embora conservando seu contedo
e matria tradicional: o coito, a gravidez, o parto, o crescimento corporal, a
velhice, a desagregao e o despedaamento corporal, etc., com toda a sua
materialidade imediata, continuam sendo os elementos fundamentais do sistema
de imagens grotescas. So imagens que se opem s imagens clssicas do
corpo humano acabado, perfeito e em plena maturidade, depurado das escrias
do nascimento e do desenvolvimento.
Entre as clebres figuras de terracota de Kertch, que se conservam no
Museu l'Ermitage de Leningrado, destacam-se velhas grvidas cuja velhice e
gravidez so grotescamente sublinhadas. Lembremos ainda [23] que, alm
disso, essas velhas grvidas riem.3 Trata-se de um tipo de grotesco muito
caracterstico e expressivo, um grotesco ambivalente: a morte prenhe, a morte
3 Ver, a esse respeito, H. Reich: Der Mimus. Ein literar-entwicklungsges-chichtlicher
Versuch, (O mimo. Ensaio de uma histria da evoluo literria). Berlim, 1903. O autor
analisa-as de maneira superficial, de um ponto de vista naturalista. (Reimpresso:
Hildesheim, Nova York, Georg Verlag, 1974).

que d luz. No h nada perfeito, nada estvel ou calmo no corpo dessas


velhas. Combinam-se ali o corpo descomposto e disforme da velhice e o corpo
ainda embrionrio da nova vida. A vida se revela no seu processo ambivalente,
interiormente contraditrio. No h nada perfeito nem completo, a
quintessncia da incompletude. Essa precisamente a concepo grotesca do
corpo.
Em oposio aos cnones modernos, o corpo grotesco no est separado
do resto do mundo, no est isolado, acabado nem perfeito, mas ultrapassa-se
a si mesmo, franqueia seus prprios limites. Coloca-se nfase nas partes do corpo
em que ele se abre ao mundo exterior, isto , onde o mundo penetra nele ou
dele sai ou ele mesmo sai para o mundo, atravs de orifcios, protuberncias,
ramificaes e excrescncias, tais como a boca aberta, os rgos genitais, seios,
falo, barriga o nariz, em atos tais como o coito, a gravidez, o parto, a agonia, o
comer, o beber, e a satisfao de necessidades naturais, que o corpo revela sua
essncia como princpio em crescimento que ultrapassa seus prprios limites.
um corpo eternamente incompleto, eternamente criado e criador, um elo na
cadeia da evoluo da espcie ou, mais exatamente, dois elos observados no
ponto onde se unem, onde entram um no outro. Isso particularmente evidente
em relao ao perodo arcaico do grotesco.
Uma das tendncias fundamentais da imagem grotesca do corpo consiste
em exibir dois corpos em um: um que d a vida e desaparece e outro que
concebido, produzido e lanado ao mundo. sempre um corpo em estado de
prenhez e parto, ou pelo menos pronto para conceber e ser fecundado, com um
falo ou rgos genitais exagerados. Do primeiro se desprende sempre, de uma
forma ou outra, um corpo novo.
Contrariamente s exigncias dos cnones modernos, o corpo sempre de
uma idade to prxima quanto possvel do nascimento ou cia morte: a primeira
infncia a velhice, com nfase posta na sua proximidade do ventre ou do
tmulo, o seio que lhe deu a vida ou que o sepultou. Mas seguindo essa
tendncia (por assim dizer, no limite), os dois corpos se renem em um s. A
individualidade mostrada no estgio de fuso; agonizante j, mas ainda
incompleta; um corpo simultaneamente no umbral do sepulcro e do bero,
no mais um nico corpo nem so tampouco dois; dois pulsos batem dentro
dele: um deles, o da me, est prestes a parar.
[24] Alm disso, esse corpo aberto e incompleto (agonizante-nascente ou
prestes a nascer) no est nitidamente delimitado do mundo: est misturado ao
mundo, confundido com os animais e as coisas. um corpo csmico e
representa o conjunto do mundo material e corporal, em todos os seus
elementos. Nessa tendncia, o corpo representa e encarna todo o universo
material e corporal, concebido como o inferior absoluto, como um princpio que
absorve e d luz, como um sepulcro e um seio corporais, como um campo
semeado que comea a brotar.
Essas so, simplificadas, as linhas diretrizes dessa concepo original do
corpo. Ela alcanou sua perfeio mais completa e genial na obra de Rabelais,
enquanto que em outras obras literrias do Renascimento se debilitou e diluiu.

A mesma concepo preside a arte pictrica de Jernimo Bosch e Brueghel, o


Velho. Alguns elementos dessa concepo encontram-se j nos afrescos e baixosrelevos que decoravam as catedrais e s vezes mesmo as igrejas rurais dos
sculos XII e XIII.
Essas imagens do corpo foram especialmente desenvolvidas nas diversas
formas dos espetculos e festas populares da Idade Mdia; festas dos tolos,
charivaris, carnavais, festa do Corpo de Deus no seu aspecto pblico e popular,
diabruras-mistrios, soties e farsas. A cultura medieval popular e dos
espetculos conhecia apenas essa concepo do corpo.
No domnio literrio, a pardia medieval baseia-se completamente na
concepo grotesca do corpo. Essa concepo organiza as imagens do corpo na
massa considervel de lendas e obras referentes s "maravilhas da ndia" e do
mar cltico. Serve tambm de base para as imagens corporais na imensa
literatura de vises de alm-tmulo, nas lendas de gigantes, na epopeia animal,
fabliaux e Schwanke (bufonarias alems).
Enfim, essa concepo do corpo est na base das grosserias, imprecaes e
juramentos, de excepcional importncia para a compreenso da literatura do
realismo grotesco. Esses elementos lingusticos exerceram uma influncia
organizadora direta sobre toda a linguagem, o estilo e a construo das imagens
dessa literatura. Eram frmulas dinmicas, que expressavam a verdade com
franqueza e estavam profundamente ligadas, por sua origem e funes, s
demais formas de "degradao" e "aproximao da terra" do realismo grotesco
e do Renascimento. As grosserias e obscenidades modernas [25] conservaram
as sobrevivncias petrificadas e puramente negativas dessa concepo do corpo.
Essas grosserias (nas suas mltiplas variantes) ou expresses, como "vai . ..",
humilham o destinatrio segundo o mtodo grotesco, isto , elas o enviam para
o baixo corporal absoluto, para a regio dos rgos genitais e do parto, para o
tmulo corporal (ou os infernos corporais) onde ele ser destrudo e de novo
gerado.
Nas grosserias contemporneas no resta quase mais nada desse sentido
ambivalente e regenerador, a no ser a negao pura e simples, o cinismo e o
mero insulto; dentro dos sistemas significantes e valorativos das novas lnguas,
essas expresses esto totalmente Isoladas (tambm o esto na organizao do
mundo): so fragmentos de uma lngua estrangeira, na qual se podia outrora
dizer alguma coisa, mas que agora s expressa insultos carentes de sentido.
No entanto, seria absurdo e hipcrita negar que conservam um certo encanto,
apesar de tudo (alis, sem nenhuma conotao ertica). Parece dormir nelas a
recordao confusa da verdade carnavalesca e de suas antigas ousadias. No
se colocou ainda adequadamente o grave problema de sua indestrutvel
vitalidade na lngua.
Na poca de Rabelais, as grosserias e imprecaes conservavam ainda, no
domnio da lngua popular de que saiu seu romance, a significao integral e
sobretudo o seu polo positivo e regenerador. Eram profundamente ligadas a
todas as formas de degradao, herdadas do realismo grotesco, aos disfarces
populares das festas e carnavais, s imagens das diabruras e dos infernos na

literatura das peregrinaes, das soties, etc. Por isso, essas expresses podiam
desempenhar um papel primordial na sua obra.
preciso assinalar especialmente a expresso estrepitosa que assumia a
concepo grotesca do corpo nos preges das feiras e na comicidade de praa
pblica na Idade Mdia e no Renascimento. Por esses meios, essa concepo se
transmitiu at a poca atual nos seus aspectos mais bem conservados: no sculo
XVII sobrevivia nas "paradas" de Tabarin, nas burlas de Turlupin e outros
fenmenos anlogos. Pode-se afirmar que a concepo de corpo do realismo
grotesco sobrevive ainda hoje (por mais atenuado e desnaturalizado que seja o
seu aspecto) nas vrias formas atuais de cmico que aparecem no circo e nos
nmeros de feira.
Essa concepo, de que acabamos de dar uma viso preliminar, encontra-se
evidentemente em contradio formal com os cnones literrios e plsticos da
Antiguidade "clssica"4, que constituram a [26] base da esttica do
Renascimento e aos quais a arte no esteve indiferente na sua evoluo. Esses
cnones consideram ao corpo de maneira completamente diferente, em outras
etapas da sua vida, em relaes totalmente distintas com o mundo exterior
(no-corporal). Para eles, o corpo algo rigorosamente acabado e perfeito.
Alm disso, isolado, solitrio, separado dos demais corpos, fechado. Por isso,
elimina-se tudo o que leve a pensar que ele no est acabado, tudo que se
relaciona com seu crescimento e sua multiplicao: retiram-se as excrescncias
e brotaduras, apagam-se as protuberncias (que tm a significao de novos
brotos, rebentos), tapam-se os orifcios, faz-se abstrao do estado
perpetuamente imperfeito do corpo e, em geral, passam despercebidos a
concepo, a gravidez, o parto e a agonia. A idade preferida a que est o
mais longe possvel do seio materno e do sepulcro, isto , afastada ao mximo
dos "umbrais" da vida individual. Coloca-se nfase sobre a individualidade
acabada e autnoma do corpo em questo. Mostram-se apenas os atos
efetuados pelo corpo num mundo exterior, nos quais h fronteiras ntidas e
destacadas que separam o corpo do mundo; os atos e processos intracorporais
(absoro e necessidades naturais) no so mencionados. O corpo individual
apresentado sem nenhuma relao com o corpo popular que o produziu.
Essas so as tendncias primordiais dos cnones da nova poca.
perfeitamente compreensvel que, desse ponto de vista, o corpo do realismo
grotesco lhes parea monstruoso, horrvel e disforme. um corpo que no tem
lugar dentro da "esttica do belo" forjada na poca moderna.
Na nossa introduo, assim como nos captulos seguintes (sobretudo o
Captulo V), limitamo-nos a comparar os cnones grotesco e clssico da
representao do corpo, estabelecendo as diferenas que os colocam em
oposio, mas sem fazer prevalecer um sobre o outro. No entanto, como
natural, colocamos em primeiro plano a concepo grotesca, uma vez que ela
4 Mas no da Antiguidade em geral: na antiga comdia drica, no drama satrico, nas formas da comdia
siciliana, em Aristfanes, nos mimos e atelanas, encontramos uma concepo anloga, assim como em
Hipcrates, Galeno, Plnio, na literatura dos "banquetes", em Ateneu, Plutarco, Macrbio e muitas outras
obras da Antiguidade no-clssica.

que determina a concepo das imagens da cultura cmica popular em


Rabelais: nosso propsito compreender a lgica original do cnon grotesco,
sua especial inteno artstica. No domnio artstico, conhecemos o cnon
clssico, que nos serve de guia at um certo ponto na atualidade; o mesmo no
ocorre com o cnon grotesco que j h muito tempo deixou de ser compreensvel
ou do qual temos apenas uma compreenso distorcida. A tarefa dos
historiadores e tericos da literatura e da arte consiste em recompor esse
cnon, em restabelecer seu sentido autntico. inadmissvel interpret-lo
segundo o ponto de vista das regras modernas e nele ver apenas os aspectos
que delas se afastam. O cnon grotesco deve ser julgado dentro do seu prprio
sistema.
Neste momento, importante apresentar algumas explicaes. No
compreendemos o termo "cnon" no sentido restrito de um conjunto [27]
determinado de regras, normas e propores conscientemente estabelecidas e
aplicadas representao do corpo humano. Dentro dessa acepo estrita, ainda
se pode falar do cnon clssico em certas etapas determinadas da sua evoluo.
Mas a imagem grotesca do corpo no teve jamais um cnon desse tipo. Sua
prpria natureza anticannica. Empregamos o termo "cnon" no sentido mais
amplo de tendncia determinada, porm dinmica e em processo de
desenvolvimento, na representao do corpo e da vida corporal. Na arte e na
literatura do passado, observamos duas tendncias desse gnero, s quais
atribumos convencionalmente o nome de cnones grotesco e clssico.
Demos aqui a definio desses dois cnones na sua expresso pura e, por
assim dizer, no seu limite. Na realidade histrica viva, esses cnones (mesmo o
clssico) nunca foram estticos nem imutveis, mas encontravam-se em
constante evoluo, produzindo diferentes variedades histricas do clssico e do
grotesco. Alm disso, sempre houve entre os dois cnones muitas formas de
interao: luta, influncias recprocas, entrecruzamentos e combinaes, Isso
vlido sobretudo para a poca renascentista, como j observamos. Inclusive em
Rabelais, que foi o porta-voz da concepo grotesca do corpo mais pura e
consequente, existem elementos do cnon clssico, principalmente no episdio
da educao de Gargantua por Ponocrates e no de Tlema. No quadro do nosso
estudo, o mais importante a diferena capital entre os dois cnones na sua
expresso pura e sobre cia focalizaremos nossa ateno.
Denominamos convencionalmente "realismo grotesco" ao tipo especfico de
imagens da cultura cmica popular em todas as suas manifestaes.
Discutiremos a seguir a terminologia escolhida.
Consideremos em primeiro lugar o vocbulo "grotesco". Vamos expor a sua
histria, paralelamente ao desenvolvimento do grotesco o de sua teoria.
O mtodo de construo das imagens grotescas procede de uma 6poca
muito antiga: encontramo-lo na mitologia e na arte arcaica de todos os povos,
inclusive na arte pr-clssica dos gregos e romanos. No desaparece tampouco
na poca clssica; excludo da arte oficial, continua vivendo e desenvolvendo-se
em certos domnios "inferiores" no-cannicos: o das artes plsticas cmicas,

sobretudo as miniaturas, como, por exemplo, as estatuetas de terracota que j


mencionamos, as mscaras cmicas, silnios, demnios da fecundidade,
estatuetas extremamente populares do disforme Tersites, etc; nas pinturas
cmicas de vasos, por exemplo, figuras de ssias cmicos (Hrcules, Ulisses),
cenas de comdias, etc.; e tambm nos vastos domnios da literatura cmica,
relacionada de uma forma ou outra com as festas [28] carnavalescas; no
drama satrico, antiga comdia tica, mimos, etc. Nos fins da Antiguidade, o
tipo de imagem grotesca atravessa uma fase de ecloso e renovao, e abarca
quase todas as esferas da arte e da literatura. Aparece ento, sob a influncia
preponderante da arte oriental, uma nova variedade de grotesco. Mas como o
pensamento esttico e artstico da Antiguidade se desenvolvera no sentido da
tradio clssica, no se deu ao tipo de imagem grotesca uma denominao
geral e permanente, isto , um termo especial; tampouco foi reconhecido pela
teoria, que no lhe atribuiu um sentido preciso.
Os elementos essenciais do realismo formaram-se durante as trs fases do
grotesco antigo: arcaico, clssico e ps-antigo. um erro considerar o grotesco
antigo apenas como um "naturalismo grosseiro", como s vezes se fez. Contudo,
a fase antiga do realismo grotesco ultrapassa o quadro do nosso estudo. Nos
captulos seguintes, trataremos apenas dos fenmenos que influram na obra de
Rabelais.
O florescimento do realismo grotesco o sistema de imagens da cultura
cmica popular da Idade Mdia e o seu apogeu a literatura do Renascimento.
Nessa poca, precisamente, aparece o prprio termo "grotesco", que teve
na sua origem uma acepo restrita. Em fins do sculo XV, escavaes feitas em
Roma nos subterrneos das Termas de Tito trazem luz um tipo de pintura
ornamental at ento desconhecida. Foi chamada de grottesca, derivado do
substantivo italiano grotta (gruta). Um pouco mais tarde, decoraes
semelhantes foram descobertas em outros lugares da Itlia. Quais so as
caractersticas desse motivo ornamental?
Essa descoberta surpreendeu os contemporneos pelo jogo inslito,
fantstico e livre das formas vegetais, animais e humanas que se confundiam e
transformavam entre si. No se distinguiam as fronteiras claras e inertes que
dividem esses "reinos naturais" no quadro habitual do mundo: no grotesco,
essas fronteiras so audaciosamente superadas. Tampouco se percebe a
imobilidade habitual tpica da pintura da realidade: o movimento deixa de ser o
de formas completamente acabadas vegetais e animais num universo
tambm totalmente acabado e estvel; metamorfoseia-se em movimento interno
da prpria existncia e exprime-se na transmutao de certas formas em
outras, no eterno inacabamento da existncia.
Sente-se, nesse jogo ornamental,
uma liberdade e uma leveza [29]
excepcional na fantasia artstica; essa liberdade, alis, concebida como uma
alegre ousadia, quase risonha. E no resta dvida que Rafael e seus discpulos
compreenderam e transmitiram com exatido o tom alegre dessa decorao

nova quando, pintando as galerias do Vaticano, imitaram o estilo grotesco.5


Essa a caracterstica fundamental do motivo ornamental romano no qual
se aplicou pela primeira vez essa palavra indita, que designava o que se
acreditava ento ser um fenmeno novo. Inicialmente, eu sentido era muito
restrito. Mas, na verdade, essa variedade do motivo ornamental romano era
apenas um fragmento (um caco) do Imenso universo da imagem grotesca que
existiu em todas as etapas de Antiguidade e que continuou existindo na Idade
Mdia e no Renascimento. Esse fragmento refletia os aspectos caractersticos
desse imenso universo, o que assegurava a vitalidade futura e produtiva do novo
termo e sua extenso gradual ao universo quase ilimitado do sistema de
imagens grotescas.
Mas a ampliao do vocbulo realizou-se muito lentamente, sem uma
conscincia terica clara acerca da originalidade e da unidade do mundo
grotesco. A primeira tentativa de anlise terica ou, para ser mais preciso, de
simples descrio e apreciao do grotesco, foi a de Vasari que, baseando-se
sobre um julgamento de Vitrvio (arquiteto romano que estudou a arte da poca
de Augusto), emitiu uma opinio desfavorvel sobre o grotesco. Vitrvio, que
Vasari cita com simpatia, condenava a nova moda "brbara" que consistia em
"borrar as paredes com monstros em vez de pintar imagens claras do mundo
dos objetos"; em outras palavras, condenava o estilo grotesco a partir do
posies clssicas, como uma violao brutal das formas e propores
"naturais". Essa era tambm a opinio de Vasari. Tal posio devia, de fato,
predominar durante muito tempo, Uma compreenso mais profunda e ampla do
grotesco s aparecer na segunda metade do sculo XVIII.
Nos sculos XVII e XVIII, enquanto reinava o cnon clssico nos domnios da
arte e da literatura, o grotesco, ligado cultura cmica popular, estava separado
dela e ou se reduzia ao nvel do cmico de baixa qualidade ou caa na
decomposio naturalista de que falamos anteriormente. [30]
Nesta poca (mais precisamente, desde a segunda metade do sculo XVII),
assiste-se a um processo de reduo, falsificao e empobrecimento
progressivos das formas dos ritos e espetculos carnavalescos populares. Por
um lado, produz-se uma estatizao da vida festiva, que passa a ser uma vida
de aparato; por outro, introduz-se a festa no cotidiano, isto , ela relegada
vida privada, domstica e familiar. Os antigos privilgios da praa pblica em
festa restringem-se cada vez mais. A viso do mundo carnavalesco, particular,
com seu universalismo, suas ousadias, seu carter utpico e sua orientao
para o futuro, comea a transformar-se em simples humor festivo. A festa
quase deixa de ser a segunda vida do povo, seu renascimento e renovao
5 Citemos ainda a notvel definio do grotesco que d L. Pinski: "No grotesco, a vida
passa por todos os estgios; desde os inferiores inertes e primitivos at os
superiores mais mveis e espiritualizados, numa guirlanda de formas diversas porm
unitrias. Ao aproximar o que est distante, ao unir as coisas que se excluem entre si, e
ao violar as noes habituais, o grotesco artstico se assemelha ao paradoxo lgico.
primeira vista o grotesco parece apenas engenhoso e divertido, mas na realidade possui
outras grandes possibilidades". (L. Pinski: O realismo na poca renascentista, Moscou,
Edies Literrias do Estado, 1961, pp. 119-120, em russo).

temporrios. Sublinhamos o advrbio quase porque, na verdade, o princpio da


festa popular do carnaval indestrutvel. Embora reduzido e debilitado, ele
ainda assim continua a fecundar os diversos domnios da vida e da cultura.
H um aspecto particular desse processo que deve ser assinalado. A
literatura desses sculos no est mais submetida influncia direta da
debilitada cultura festiva popular. A concepo carnavalesca do mundo e o
sistema de imagens grotescas continuam vivendo e transmitindo-se unicamente
na tradio literria, principalmente na do
Renascimento.
Ao perder seus laos vivos com a cultura popular da praa pblica, ao
tornar-se uma mera tradio literria, o grotesco degenera. Assiste-se a uma
certa formalizao das imagens grotescas do carnaval, o que permite a
diferentes tendncias utiliz-las para fins diversos. Essa formalizao no foi
apenas exterior: a riqueza da forma grotesca e carnavalesca, seu vigor artstico
e heurstico, generalizador, subsistem em todos os acontecimentos
importantes da poca (sculos XVII e XVIII): na commedia dell'arte (que
conserva sua relao com o carnaval de onde provm), nas comdias de
Molire (aparentadas com a commedia dell'arte), no romance cmico e
travestis do sculo XVII, nos romances filosficos de Voltaire e Diderot (Les
bijoux indiscrets, Jacques le Fataliste), nas obras de Swift e vrias outras.
Nesses casos, apesar das diferenas de carter e orientao, a forma do
grotesco carnavalesco cumpre funes semelhantes; ilumina a ousadia da
inveno, permite associar elementos heterogneos, aproximar o que est
distante, ajuda a liberar-se do ponto de vista dominante sobre o mundo, de
todas as convenes e de elementos banais e habituais, comumente
admitidos; permite olhar o universo com novos olhos, compreender at que
ponto relativo tudo o que existe, e portanto permite compreender a
possibilidade de uma ordem totalmente diferente do mundo.
Mas a compreenso terica clara e precisa da unidade dos aspectos que
abarca o termo grotesco e do seu carter artstico especfico, progride muito
lentamente. Alis, o prprio termo teve os seus substitutos [31]: "arabesco"
(aplicado essencialmente aos motivos ornamentais) e "burlesco" (aplicado
literatura). Por causa do ponto de vista clssico dominante na esttica, essa
compreenso terica era ainda Impossvel.
Na segunda metade do sculo XVIII, ocorrem mudanas fundamentais no
campo literrio e esttico. Na Alemanha, discute-se ardorosamente a personagem
Arlequim, que ento figurava obrigatoriamente em todas as representaes
teatrais, mesmo as mais srias. Gottsched e os demais representantes do
classicismo pretendiam expulsar Arlequim da cena "sria e decente", e o
conseguiram por algum tempo. Lessing, pelo contrrio, saiu em defesa de
Arlequim.
Esse problema aparentemente restrito era muito mais amplo, encobrindo
alternativas de princpio: podiam admitir-se dentro da esttica de beleza e do
sublime elementos que no correspondiam aos seus requisitos? Em outras
palavras, podia-se admitir o grotesco? Justus Mser dedicou um pequeno estudo

(publicado em 1761) a esse problema: Harlekin oder die Verteidigung des


Grotesk-Komischen (Arlequim ou a defesa do cmico grotesco). Arlequim em
pessoa falava em defesa do grotesco. Mser destaca que Arlequim uma
parcela isolada de um microcosmos ao qual pertencem Colombina, o Capito, o
Doutor, etc., isto , o mundo da commedia dellarte. Esse mundo possui uma
integridade e leis estticas especiais, um critrio prprio de perfeio no
subordinado esttica clssica da beleza e do Sublime. Ao mesmo tempo,
Mser ope esse mundo comicidade "Inferior" dos artistas de feira, o que
provoca uma restrio da noo de grotesco. Em seguida, Mser revela certas
particularidades do mundo grotesco: qualifica-o de "quimrico" por sua
tendncia para reunir o heterogneo, comprova a violao das propores
naturais (carter hiperblico), a presena do caricaturesco e pardico. Enfim
Mser sublinha o princpio cmico no grotesco, explicando o riso coma uma
necessidade de gozo e alegria da alma humana. A obra de Mser, embora
limitada, a primeira apologia do grotesco.
Em 1788, o crtico literrio alemo Flgel, autor de uma histria da
literatura cmica em quatro volumes e de uma Histria dos bufes da corte,
publica sua Histria do cmico grotesco. Flgel no define nem delimita a noo
de grotesco, nem do ponto de vista histrico nem do ponto de vista
sistemtico. Qualifica de grotesco tudo o que se aparta sensivelmente das regras
estticas correntes, tudo que contm um elemento corporal e material
nitidamente marcado e exagerado. [32] No entanto, a maior parte da obra
dedicada s manifestaes do grotesco medieval. Flgel examina as formas
das festas populares ("festa dos loucos", "festa do asno", os elementos
populares e pblicos da festa do Corpo de Deus, os carnavais, etc.), as
sociedades literrias do fim da Idade Mdia (Le Royaume de Ia Basoche, Les
enfants sans souci, etc.), soties, farsas, jogos do Mardi Gras, certas formas do
cmico popular da praa pblica etc. Em geral, Flgel reduz um pouco as
dimenses do grotesco: no estuda as manifestaes puramente literrias do
realismo grotesco (por exemplo, a pardia latina da Idade Mdia). A ausncia
de um ponto de vista histrico e sistemtico determina que a escolha dos
materiais seja s vezes deixada ao acaso. O autor compreende apenas
superficialmente o sentido dos fenmenos que analisa; na realidade, limita-se a
reuni-los como curiosidades. Apesar de tudo, e graas principalmente aos
documentes que contm, a obra de Flgel conserva ainda sua importncia.
Mser e Flgel conhecem apenas o cmico grotesco, ou seja, o grotesco
baseado no princpio do riso, ao qual atribuem um valor de regozijo e alegria.
Este foi o objeto de seus estudos: a commedia dell'arte para Mser e o grotesco
medieval para Flgel.
Ora, na mesma poca em que apareceram essas obras, que pareciam
orientadas para o passado, para as etapas anteriores do grotesco, este entrava
numa nova fase de desenvolvimento. Na poca pr-romntica e em princpios
do Romantismo, assiste-se a uma ressurreio do grotesco, dotado ento de
um novo sentido. Ele serve agora para expressar uma viso do mundo
subjetiva e individual, muito distante da viso popular e carnavalesca dos

sculos precedentes (embora conserve alguns de seus elementos). A primeira e


importante expresso do novo grotesco subjetivo o romance de Sterne, Vida
e opinies de Tristram Shandy (traduo original da viso do mundo de
Rabelais e Cervantes na linguagem subjetiva da poca). Outra variedade do
novo grotesco o romance grotesco ou negro.
Foi provavelmente na Alemanha que o grotesco subjetivo se desenvolveu de
maneira mais poderosa e original. Ali nasceu a dramaturgia do Sturm und Drang,
o Romantismo (Lenz, Klinger, o jovem Tieck), [33] os romances de Hippel e JeanPaul e a obra de Hoffmann, que influram fundamentalmente na evoluo do novo
grotesco, assim como em toda a literatura mundial. F. Schlegel e Jean-Paul
converteram-se nos tericos dessa tendncia,
O grotesco romntico foi um acontecimento notvel na literatura mundial.
Representou, em certo sentido, uma reao contra os cnones da poca
clssica e do sculo XVIII, responsveis por tendncias de uma seriedade
unilateral e limitada: racionalismo sentencioso e estreito, autoritarismo do
Estado e da lgica formal, aspirao ao perfeito, completo e unvoco, didatismo e
utilitarismo dos filsofos iluministas, otimismo ingnuo ou banal, etc. O
romantismo grotesco recusava tudo isso e apoiava-se principalmente em
Shakespeare e Cervantes, que foram redescobertos e luz dos quais se
interpretava o grotesco da Idade Mdia. Sterne exerceu uma influncia
considervel sobre o romantismo, a tal ponto que pode ser considerado o seu
iniciador.
A influncia direta das formas carnavalescas de espetculos populares (j
muito empobrecidos) era aparentemente fraca, pois predominavam as tradies
literrias. preciso, contudo, notar a influncia muito importante do teatro
popular (principalmente do teatro de marionetes) e de certas formas cmicas
dos artistas de feira.
Ao contrrio do grotesco da Idade Mdia e do Renascimento, diretamente
relacionado com a cultura popular e imbudo do seu carter universal e pblico,
o grotesco romntico um grotesco de (cmara, uma espcie de carnaval que o
indivduo representa na solido com a conscincia aguda do seu isolamento. A
sensao carnavalesca do mundo transpe-se de alguma forma linguagem do
pensamento filosfico idealista e subjetivo, e deixa de ser a sensao vivida (podese mesmo dizer corporalmente vivida) da unidade e do carter inesgotvel da
existncia que ela constitua no grotesco da Idade Mdia e do Renascimento.
O princpio do riso sofre uma transformao muito importante. Certamente,
o riso subsiste; no desaparece nem excludo como nas obras "srias"; mas no
grotesco romntico o riso se atenua, e toma a forma de humor, ironia ou
sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador e positivo do
riso reduz-se ao mnimo.
Em uma das obras-primas do grotesco romntico, Rondas noturnas, de
Bonawentura (pseudnimo de um autor desconhecido, talvez Jean-Gaspard
Wetzel), encontramos opinies muito significativas sobre o riso na boca de um
guarda-noturno. Num certo ponto, o narrador explica o riso: "Haver no mundo
meio mais poderoso para [34] opor-se s adversidades da vida e do destino! O

inimigo mais poderoso fica horrorizado diante desta mscara satrica e a prpria
desgraa recua diante de mim, se me atrevo a ridiculariz-la! E, que diabo, esta
terra, com seu satlite sentimental, a lua, no merece mais do que burla!" Essa
reflexo destaca o carter universal do riso e a concepo de mundo que possui,
elemento obrigatrio do grotesco; glorifica-se a sua fora liberadora, mas no
se alude sua fora regeneradora, e por causa disso perde o seu tom jocoso e
alegre.
O autor (atravs do narrador, o guarda-noturno) d uma outra explicao
original: investiga o mito da origem do riso; o riso foi enviado terra pelo
diabo, apareceu aos homens com a mscara da alegria e eles o acolheram com
agrado. No entanto, mais tarde, o riso tira a mscara alegre e comea a refletir
sobre o mundo e os homens com a crueldade da stira.
A degenerao do princpio cmico que organiza o grotesco, a perda de sua
fora regeneradora suscitam novas mudanas que separam mais profundamente
o grotesco da Idade Mdia e do Renascimento do grotesco romntico. As
mudanas mais notveis ocorrem com relao ao terrvel, O universo do
grotesco romntico se apresenta geralmente como terrvel e alheio ao homem.
Tudo o que costumeiro, banal, habitual, reconhecido por todos, torna-se
subitamente insensato, duvidoso, estranho e hostil ao homem. O mundo
humano se transforma de repente em um mundo exterior. O costumeiro e
tranquilizador revela o seu aspecto terrvel. Tal a tendncia do grotesco
romntico (nas suas formas extremas, mais prototpicas). A reconciliao com o
mundo, quando se realiza, ocorre em um plano subjetivo e lrico, s vezes
mesmo mstico. Ao contrrio, o grotesco medieval e renascentista, associado
cultura cmica popular, representa o terrvel atravs dos espantalhos cmicos,
isto , na forma do terrvel vencido pelo riso. O terrvel adquire sempre um tom
de bobagem alegre.
O grotesco, integrado cultura popular, faz o mundo aproximar-se do
homem, corporifica-o, reintegra-o por meio do corpo vida corporal
(diferentemente da aproximao romntica, totalmente abstrata e espiritual).
No grotesco romntico, as imagens da vida material e corporal: beber, comer,
satisfazer necessidades naturais, copular, parir, perdem quase completamente
sua significao regeneradora . transformam-se em "vida inferior". As imagens
do grotesco romntico so geralmente a expresso do temor que inspira o
mundo e procuram comunicar esse temor aos leitores ("aterroriz-los"). As
imagens grotescas da cultura popular no procuram assustar o leitor,
caracterstica que compartilham com as obras-primas literrias do
Renascimento. Nesse sentido, o romance de Rabelais a expresso mais tpica,
no-h vestgio de medo, a alegria percorre-o integralmente. Mais do que
qualquer outro no mundo, o romance de Rabelais exclui o temor. [35]
Outras particularidades do grotesco romntico denotam o enfraquecimento
da fora regeneradora do riso. O motivo da loucura, por exemplo,
caracterstico de qualquer grotesco, uma vez que permite observar o mundo com
um olhar diferente, no perturbado pelo ponto de vista "normal", ou seja, pelas
ideias e juzos comuns. Mas, no grotesco popular, a loucura uma alegre

pardia do esprito oficial, da gravidade unilateral, da "verdade" oficial. uma


loucura festiva. No grotesco romntico, porm, a loucura adquire os tons
sombrios e trgicos do isolamento do indivduo.
O motivo da mscara mais importante ainda. o motivo mais complexo,
mais carregado de sentido da cultura popular. A mscara traduz a alegria das
alternncias e das reencarnaes, a alegre relatividade, a alegre negao da
identidade e do sentido nico, a negao da coincidncia estpida consigo
mesmo; a mscara a expresso das transferncias, das metamorfoses, das
violaes das fronteiras naturais, da ridicularizao, dos apelidos; a mscara
encarna o princpio do jogo da vida, est baseada numa peculiar interrelao da
realidade e da imagem, caracterstica das formas mais antigas dos ritos e
espetculos. O complexo simbolismo das mscaras inesgotvel. Basta Iembrar
que manifestaes como a pardia, a caricatura, a careta, as contores e as
"macaquices" so derivadas da mscara. na mscara que se revela com clareza
a essncia profunda do grotesco.6
No grotesco romntico, a mscara, arrancada da unidade da viso popular e
carnavalesca do mundo, empobrece-se e adquire vrias nutras significaes
alheias sua natureza original: a mscara dissimula, encobre, engana, etc.
Numa cultura popular organicamente integrada, a mscara no podia
desempenhar essas funes. No Romantismo, a mscara perde quase
completamente seu aspecto regenerador e renovador, e adquire um tom
lgubre. Muitas vezes ela dissimula um vazio horroroso, o "nada" (tema que se
destaca nas Rondas noturnas de Bonawentura). Pelo contrrio, no grotesco
popular, a mscara recobre a natureza inesgotvel da vida e seus mltiplos
rostos.
No entanto, mesmo no grotesco romntico, a mscara conserva traos da
sua indestrutvel natureza popular e carnavalesca. Mesmo na vida cotidiana
contempornea, a mscara cria uma atmosfera especial, como se pertencesse
a outro mundo. Ela no poder jamais tomar-se um objeto entre outros.
No grotesco romntico, as marionetes desempenham um papel limito
importante. Esse motivo no alheio, evidentemente, ao grotesco popular. Mas
o Romantismo coloca em primeiro plano a ideia [36] de uma fora sobrehumana e desconhecida, que governa os homens e os converte em marionetes.
Essa ideia totalmente alheia cultura cmica popular. O motivo grotesco da
tragdia da marionete pertence exclusivamente ao Romantismo.
A maneira como tratada a personagem do diabo faz tambm ressaltar a
diferena entre os dois grotescos. Nas diabruras dos mistrios da Idade Mdia,
nas vises cmicas de alm-tmulo, nas lendas pardicas e nos fabliaux, etc., o
diabo um alegre porta-voz ambivalente de opinies no-oficiais, da santidade
ao avesso, o representante do inferior material, etc. No tem nada de
aterrorizante nem estranho (em Rabelais, a personagem Epistmon, voltando do
inferno, "assegurava a todos que os diabos eram boa gente"). s vezes, o diabo
e o inferno so descritos como meros "espantalhos alegres". Mas no grotesco
6 Referimo-nos aqui s mscaras e seu significado na cultura popular da Antiguidade
e da Idade Mdia, sem examinar seu sentido nos cultos antigos.

romntico, o diabo encarna o espanto, a melancolia, a tragdia. O riso infernal


torna-se sombrio e maligno.
preciso observar que, no grotesco romntico, a ambivalncia se transforma
habitualmente em um contraste esttico brutal ou em uma anttese petrificada.
Assim, por exemplo, o guarda-noturno que narra as Rondas noturnas tem como
pai o diabo e como me uma santa canonizada; ele costuma rir nos templos e
chorar nos bordis. Dessa forma, a antiga ridicularizao ritual da divindade e o
riso no templo, tpicos na Idade Mdia durante a festa dos loucos, convertem-se
em princpios do sculo XIX no riso excntrico de um original no interior de um
templo.
Notemos ainda uma outra particularidade do grotesco romntico: ele tem
uma predileo pela noite (As rondas noturnas de Bonawentura, os Noturnos de
Hoffmann), a obscuridade e no a luz que o caracteriza. Pelo contrrio, no
grotesco popular a luz o elemento imprescindvel: o grotesco popular
primaveril, matinal e auroreal por excelncia.7
Esses so os elementos que caracterizam o grotesco romntico alemo.
Estudaremos mais adiante sua variante romntica. Por agora, vamos nos deter
um pouco sobre a teoria romntica do grotesco. No seu Discurso sobre a poesia
(Gesprach ber die Poesie, 1800), Friedrich Schlegel examina o conceito de
grotesco, que qualifica habitualmente de "arabesco". Considera-o a "forma mais
antiga da fantasia humana" e a "forma natural da poesia". Encontra elementos
grotescos em Shakespeare, Cervantes, Sterne e Jean-Paul. Para ele, trata-se da
mescla fantstica dos elementos heterogneos da realidade, a destruio da
ordem e do regime habituais do mundo, a livre excentricidade das imagens e a
"alternncia do entusiasmo e da ironia". [37]
Na sua Introduo esttica (Vorschule der Aesthetik), Jean-Paul revela
com maior acuidade os elementos do grotesco romntico. No emprega
tampouco o termo grotesco, mas designa-o com o nome de "humor destrutivo".
Tem uma concepo muito ampla desse "humor destrutivo", que ultrapassa os
quadros da literatura e da arte: inclui nele a "festa dos loucos", a "festa do
asno" ("missas dos asnos"), isto , as formas de ritos e espetculos cmicos
medievais. Entre os autores renascentistas, cita de preferncia Rabelais e
Shakespeare. Menciona especialmente a
"ridicularizao
do
mundo"
(Weltverlachung) em Shakespeare, referindo-se aos seus bufes "melanclicos"
e a Hamlet.
Jean-Paul compreende perfeitamente o carter universal do riso grotesco. O
"humor destrutivo" no se dirige contra fenmenos negativos isolados da
realidade, mas contra toda a realidade, contra o inundo perfeito e acabado. O
perfeito aniquilado como tal pelo humor. Jean-Paul sublinha o radicalismo
dessa posio: graas ao "humor destrutivo", o mundo se converte em algo
exterior, terrvel e injustificado, o cho nos escapa sob os ps, sentimos a
vertigem, pois no vemos nada estvel nossa volta. Jean-Paul distingue o mesmo
universalismo, o mesmo radicalismo na destruio de todos os fundamentos
7 Mais precisamente, o grotesco popular reflete o momento em que a luz sucede obscuridade,
a manh noite, a primavera ao inverno.

morais e sociais que se opera nos ritos e espetculos da Idade Media.


No separa o grotesco do riso: ele compreende que, sem o princpio
cmico, o grotesco impossvel. Mas a sua concepo terica s conhece o riso
reduzido (humor), destitudo de fora regeneradora e renovadora positiva e,
portanto, sombrio e sem alegria. Destaca o carter melanclico do "humor
destrutivo" e afirma que o diabo (na sua acepo romntica, claro) teria sido o
maior dentre os humoristas.
Embora Jean-Paul cite fatos relacionados com o grotesco medieval e
renascentista (inclusive Rabelais), expe na realidade a teoria do grotesco
romntico; atravs desse prisma, considera as etapas anteriores do grotesco,
"romantizando-os" (seguindo sobretudo a interpelao de Rabelais e Cervantes
por Sterne).
Da mesma forma que Schlegel, interpreta o aspecto positivo do grotesco, a
sua ltima palavra, fora do princpio cmico, conhece-o como uma evaso para
um plano espiritual, longe de todo o perfeito e acabado, o qual destrudo pelo
humor.8
Bem mais tarde, logo antes de 1830, assiste-se a um renascimento do tipo
de imagens grotescas no Romantismo francs.
No prefcio de Cromwell, em primeiro lugar, e no William [38]
Shakespeare, em seguida, Victor Hugo colocou o problema do grotesco de
maneira interessante, caracterstica tambm do Romantismo francs.
Atribui um sentido muito amplo ao tipo de imagens grotescas. Descobre a
sua existncia na Antiguidade pr-clssica (a Hidra, as Hrpias, os Ciclopes) e
em vrias personagens do perodo arcaico e, em seguida, classifica como
pertencente a esse tipo toda a literatura ps-antiga, a partir da Idade Mdia. "No
pensamento moderno, pelo contrrio, o grotesco [...] est em toda parte: por
um lado, cria o disforme e o horrvel; por outro, o cmico e bufo."
O aspecto essencial do grotesco a deformidade. A esttica do grotesco
em grande parte a esttica do disforme. Mas, ao mesmo tempo, Hugo
enfraquece o valor autnomo do grotesco, considerando-o como meio de
contraste para a exaltao-do sublime. O grotesco e o sublime completam-se
mutuamente, sua unidade (que Shakespeare alcanou melhor que qualquer
outro) produz a beleza autntica que o clssico puro incapaz de atingir.
Em William Shakespeare, Hugo faz as anlises mais interessantes e mais
concretas da imagem grotesca e, em especial, do princpio cmico, material e
corporal. Estudaremos seu ponto de vista mais adiante, pois Hugo a expe
tambm sua concepo da obra rabelaisiana.
Outros autores romnticos franceses partilharam igualmente o interesse
pelo grotesco e suas fases antigas, mas preciso observar que, na Frana, o
grotesco era considerado como uma tradio nacional. Em 1853, Thophile
Gautier publicou uma antologia intitulada Les grotesques, onde se reuniam os
8 Nas obras literrias de Jean-Paul, encontram-se numerosas imagens tpicas do grotesco
romntico, sobretudo nos seus "sonhos" e "vises". (Cf. o conjunto de obras desse gnero
editado por R. Benz: Jean Paul, Trume und Visionen, Munique, 1954.) Esse volume contm
exemplos notveis do grotesco noturno e sepulcral.

representantes do grotesco francs tomado num sentido bastante amplo:


encontramos Villon, os poetas libertinos do sculo XVII (Thophile de Viau,
Saint-Amant), Scarron, Cyrano de Bergerac e at mesmo Scudry.
guisa de concluso, devemos destacar dois aspectos positivos: em
primeiro lugar, os romnticos procuraram as razes populares do grotesco; em
segundo lugar, no se limitaram a atribuir ao grotesco funes exclusivamente
satricas.
claro, nossa anlise do grotesco romntico est longe de ser exaustiva.
Alm disso, adquire um carter um pouco unilateral, talvez mesmo polmico, ao
tentar iluminar as diferenas entre o grotesco romntico e o grotesco popular da
Idade Mdia e do Renascimento. preciso reconhecer que o Romantismo fez
um descobrimento positivo, de considervel importncia: o descobrimento do
indivduo subjetivo, profundo, ntimo, complexo e inesgotvel.
Esse carter infinito interior do indivduo era estranho ao grotesco da Idade
Mdia e do Renascimento, mas a sua descoberta pelos romnticos s foi
possvel graas ao emprego do mtodo grotesco, da [39] sua fora capaz de
superar qualquer dogmatismo, qualquer carter acabado e limitado. Num
mundo fechado, acabado, estvel, no qual se traam fronteiras ntidas e
imutveis entre todos os fenmenos e valores, o infinito interior no poderia ser
revelado. Para convencer-se disso, basta comparar as anlises racionalistas e
exaustivas dos sentimentos internos feitas pelos clssicos e as imagens da vida
ntima em Sterne e os romnticos. A fora artstica e heurstica do mtodo
grotesco sobressai de forma gritante. Mas tudo isso ultrapassa o quadro do
nosso estudo.
Acrescentaremos ainda algumas palavras a respeito da compreendo do
grotesco na esttica de Hegel e de Fischer.
Hegel faz aluso apenas fase arcaica do grotesco, que ele define como a
expresso do estado de alma pr-clssico e pr-filosfico. Buscando-se na fase
arcaica hindu, Hegel caracteriza o grotesco por trs qualidades: mescla de
zonas heterogneas da natureza; dimenses exageradas e imensurveis; e a
multiplicao de certos rgos e membros do corpo humano (divindades hindus
com vrios braos e pernas). Hegel ignora totalmente o papel organizador do
princpio cmico no grotesco e considera-o fora de qualquer ligao com a
comicidade.
Nesse aspecto, Fischer diverge de Hegel. Para ele, a prpria essncia e a
fora motriz do grotesco so o risvel e o cmico. "O grotesco o cmico, no
seu aspecto maravilhoso, o 'cmico mitolgico'." Essa definio tem uma
certa profundidade.
preciso lembrar que na evoluo seguida pela esttica filosfica at aos
nossos dias, o grotesco no foi compreendido nem apreciado de acordo com o
seu valor, nem encontrou um lugar no sistema esttico.
Depois do Romantismo, a partir da segunda metade do sculo XIX, o
interesse pelo grotesco diminui notavelmente, tanto na literatura como na
histria literria. Quando se faz aluso a ele, para releg-lo s formas do
cmico vulgar de baixa categoria, ou para interpret-lo como uma forma particular

da stira, orientada contra fenmenos individuais, puramente negativos. Dessa


maneira, toda a profundidade, todo o universalismo das imagens grotescas
desaparecem para sempre.
Em 1894, aparece a obra mais volumosa sobre o assunto: A histria da
stira grotesca de Schneegans (Geschichte der grotesken Satyre), dedicada
sobretudo a Rabelais, que o autor considera o maior representante da stira
grotesca; faz ao mesmo tempo um resumo de certas manifestaes do grotesco
medieval. Schneegans o representante mais tpico da interpretao puramente
satrica do grotesco. Para ele, o grotesco sempre e unicamente uma stira
negativa, o exagero do que no deve existir, exagero que ultrapassa o
verossmil e se torna assim fantstico. Atravs do exagero do que [40] no
deve existir, afirma Schneegans, aplica-se-lhe um golpe mortal e social.
Schneegans no compreende em absoluto o hiperbolismo positivo do
princpio material e corporal no grotesco medieval e em Rabelais. Tampouco
capta a fora regeneradora e renovadora do riso grotesco. Conhece apenas o
riso puramente negativo, retrico e triste da stira do sculo XIX, e interpreta
as manifestaes do grotesco medieval e renascentista a partir desse ponto de
vista. Esse um exemplo extremo da "modernizao" desvirtuada do conceito
de riso na histria da literatura. O autor no compreende tampouco o
universalismo das imagens grotescas. Sua concepo tpica dos historiadores
da literatura da segunda metade do sculo XIX e primeiras dcadas do XX.
Mesmo na atualidade, subsiste o sistema de interpretao puramente satrica
do grotesco, principalmente em relao a Rabelais. Como j mencionamos,
Schneegans se baseia sobretudo nas anlises da obra rabelaisiana. Por isso
vamos voltar ainda sua obra no decorrer do nosso trabalho.
No sculo XX, assistimos a um novo e poderoso renascimento do grotesco,
se bem que o termo de "renascimento" seja dificilmente aplicvel a certas
formas do grotesco ultramoderno.
A linha da sua evoluo bastante complicada e contraditria. No entanto,
em geral, podem-se distinguir duas linhas principais. A primeira o grotesco
modernista (Alfred Jarry, os surrealistas, os expressionistas, etc.). Esse grotesco
retoma (em graus diferentes) as tradies do grotesco romntico; atualmente
se desenvolve sob a influncia das diversas correntes existencialistas. A segunda
linha o grotesco realista (Thomas Mann, Bertolt Brecht, Pablo Neruda, etc.) que
retoma as tradies do realismo grotesco e da cultura popular, e s vezes
reflete tambm a influncia direta das formas carnavalescas (Pablo Neruda).
No nosso propsito definir as particularidades do grotesco atual.
Examinaremos simplesmente a ltima teoria ligada linha modernista. Aludimos
obra do eminente crtico literrio alemo Wolfgang Kayser, Das Groteske in
Malerei und Dichtung, 1957 (O grotesco na pintura e na poesia).
Na realidade, a obra de Kayser o primeiro estudo, e at o momento o
nico, consagrado teoria do grotesco. Ele contm um [41] grande nmero de
observaes preciosas e anlises sutis. No entanto, no podemos aprovar a
concepo geral do autor.

Kayser props-se a escrever uma teoria geral do grotesco, a revelar a


prpria essncia do fenmeno. Na realidade, seu livro contm apenas a teoria (e
um breve histrico) dos grotescos romntico e modernista, ou, para ser preciso,
do segundo apenas, uma vez que o autor s v o grotesco romntico atravs do
prisma do grotesco modernista, razo pela qual ele o compreende e aprecia de
uma forma um pouco desvirtuada. A teoria de Kayser absolutamente
inaplicvel aos milnios de evoluo anteriores ao Romantismo: fase arcaica,
antiga (por exemplo, o drama satrico ou a comdia tica), Idade Mdia e
Renascimento, integrados na cultura cmica popular. O autor nem sequer
investiga essas manifestaes (contenta-se com mencion-las). Baseia suas
concluses e generalizaes na anlise do grotesco romntico e modernista, mas
a concepo modernista que determina sua interpretao. Tampouco
compreende a verdadeira natureza do grotesco, inseparvel do mundo da
cultura cmica popular e da viso carnavalesca do mundo. No grotesco
romntico, essa natureza est enfraquecida, empobrecida e em grande parte
reinterpretada. Contudo, mesmo no grotesco romntico, os grandes temas
originrios do carnaval conservam reminiscncias do poderoso conjunto a que
pertenceram. Essa reminiscncia desponta nas melhores obras do grotesco
romntico (com uma fora particular, embora de tipo diferente, em Sterne e
Hoffmann). Essas obras so mais poderosas, profundas e alegres que a sua
prpria concepo subjetiva e filosfica do mundo. Mas Kayser ignora essas
reminiscncias e no as investiga. O grotesco modernista que d o tom sua
concepo, olvida quase completamente essas reminiscncias e interpreta de
maneira extremamente formalista a herana carnavalesca dos temas e
smbolos grotescos.
Quais so, segundo Kayser, as caractersticas fundamentais da imagem
grotesca?
Lendo suas definies, ficamos surpreendidos pelo tom lgubre, terrvel e
espantoso do mundo grotesco, que ele o nico a captar. Na realidade, esse
tom totalmente alheio a toda a evoluo do grotesco at o Romantismo.
Dissemos que o grotesco da Idade Mdia e do Renascimento, impregnado da
viso carnavalesca do mundo, libera a este ltimo de tudo que nele pode haver
de terrvel e atemorizador, torna-o totalmente inofensivo, alegre e luminoso.
Tudo que era terrvel e espantoso no mundo habitual, transforma-se no mundo
carnavalesco em alegres "espantalhos cmicos". O medo a expresso
extrema de uma seriedade unilateral e estpida que no carnaval e vencida
pelo riso (Rabelais elabora magnificamente esse tema na sua obra,
principalmente atravs do "tema de Malbrough"). A liberdade absoluta que
caracteriza o grotesco, no seria possvel num mundo dominado pelo medo.
[42]
Para Kayser, o essencial do mundo grotesco "algo hostil, estranho e
desumano" (das Unheimliche, das Verfremdete und Unmenschliche, p. 81).
Kayser destaca especialmente o aspecto estranho; "O grotesco o mundo
que se torna estranho" (das Groteske ist die entfremdete Welt, p. 136). Explica
essa definio, comparando o grotesco ao universo dos contos maravilhosos, o

qual, visto de fora, pode tambm ser definido como estranho e inslito, mas
no como um mundo que se tomou estranho. No mundo grotesco, pelo
contrrio, o habitual e prximo torna-se subitamente hostil e exterior. o nosso
mundo que se converte de repente no mundo dos outros.
Essa definio, que se aplica a certos fenmenos do grotesco moderno, no
inteiramente adequada ao grotesco romntico, e menos ainda s fases
anteriores.
Na realidade, o grotesco, inclusive o romntico, oferece a possibilidade de
um mundo totalmente diferente, de uma ordem mundial distinta, de uma outra
estrutura da vida. Franqueia os limites da unidade, da indiscutibilidade, da
imobilidade fictcias (enganosas) do mundo existente. O grotesco, nascido da
cultura cmica popular, tende sempre, de uma forma ou outra, a retornar ao
pas da idade de ouro de Saturno, e contm a possibilidade viva desse retorno.
O grotesco romntico tambm contm essa possibilidade (caso contrrio,
deixaria de s-lo), mas dentro das formas subjetivas que lhe so peculiares. O
mundo existente torna-se de repente um mundo exterior (para retomar a
terminologia de Kayser), justamente porque se revela a possibilidade de um
mundo verdadeiro em si mesmo, o mundo da idade de ouro, da verdade
carnavalesca. O homem encontra-se consigo mesmo, e o mundo existente
destrudo para renascer e renovar-se em seguida. Ao morrer, o mundo d luz.
No mundo grotesco, a relatividade de tudo que existe sempre alegre, o
grotesco est impregnado da alegria da mudana e das transformaes, mesmo
que em alguns casos essa alegria se reduza ao mnimo, como no Romantismo.
preciso sublinhar ainda uma vez que o aspecto utpico ("a idade de
ouro") revela-se no grotesco pr-romntico, no sob a forma do pensamento
abstrato ou das emoes internas, mas na realidade total do homem:
pensamento, sentimentos e corpo. A participao do corpo num outro mundo
possvel, a faculdade de compreenso do corpo adquire uma importncia
capital para o grotesco.
A concepo de Kayser, porm, no deixa lugar ao princpio material e
corporal, inesgotvel e perpetuamente renovado. Tampouco aparecem o tempo,
ou as mudanas, ou as crises, isto , nada do que ocorre sob o sol, na terra, no
homem, na sociedade humana, e que constitui a razo de ser do verdadeiro
grotesco. [43]
Esta definio de Kayser extremamente tpica do grotesco modernista: "o
grotesco a forma de expresso do 'id'" (p. 137).
Para Kayser, "id" representa algo mais existencialista do que freudiano;
"id" a fora estranha que governa o mundo, os homens, suas vidas e seus
atos. Kayser reduz vrios motivos fundamentais do grotesco a uma nica
categoria, a fora desconhecida que rege o mundo, representada, por exemplo,
atravs do teatro de marionetes. Essa tambm a sua concepo de loucura.
Pressentimos sempre no louco algo que no lhe pertence, como se um esprito
no-humano se tivesse introduzido na sua alma. J mencionamos que o grotesco
empilhou de maneira radicalmente diferente o motivo da loucura: a fim de
liberar-se da falsa "verdade deste mundo" e contempl-lo com um olhar liberto

dessa "verdade".
Kayser refere-se frequentemente liberdade da fantasia caracterstica do
grotesco. Mas como poderia existir liberdade num mundo iluminado pela fora
estranha do "id"? A concepo de Kayser contm uma contradio insupervel.
Na realidade, a funo do grotesco liberar o homem das formas de
necessidade inumana em que se baseiam as ideias dominantes sobre o unindo. O
grotesco derruba essa necessidade e descobre seu carter relativo e limitado. A
necessidade apresenta-se num determinado momento como algo srio,
incondicional e peremptrio. Mas historicamente as ideias de necessidade so
sempre relativas e versteis. O riso e a viso carnavalesca do mundo, que esto
na base do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretenses de
significao incondicional e intemporal e liberam a conscincia, o pensamento e a
imaginao humana, que ficam assim disponveis para o desenvolvimento de
novas possibilidades. Da que uma certa "carnavalizao" da conscincia precede
e prepara sempre as grandes transformaes, mesmo no domnio cientfico.
No mundo grotesco, qualquer "id" desmistificado e transforma-se em
"espantalho cmico"; ao penetrar nesse mundo, mesmo no mundo do grotesco
romntico, sentimos: uma alegria especial e "licenciosa" do pensamento e da
imaginao.
Analisaremos agora mais dois aspectos da concepo de Kayser.
Resumindo as suas anlises, ele afirma que "no grotesco no se trata de
medo da morte, mas de medo da vida".
Essa afirmao, feita a partir de um ponto de vista existencialista, ope a
vida morte, oposio que no existe no sistema de imagens grotescas, onde a
morte no aparece como a negao da vida (entendida na sua acepo
grotesca, isto , a vida do grande corpo popular). Dentro dessa concepo, a
morte considerada uma entidade da vida na qualidade de fase necessria, de
condio para a sua renovao e rejuvenescimento permanente. A morte est
sempre relacionada ao nascimento, o sepulcro ao seio terreno que d luz.
[44] Nascimento-morte e morte-nascimento so as fases constitutivas da
prpria vida, como o expressa em palavras clebres o esprito da Terra no
Fausto de Goethe.9 A morte est includa na vida e determina seu movimento
perptuo, paralelamente ao nascimento. O pensamento grotesco interpreta a
luta da vida contra a morte dentro do corpo do indivduo como a luta da vida
velha recalcitrante contra a nova vida nascente, como uma crise de
revezamento.
Leonardo da Vinci disse: "Quando o homem espera com alegre impacincia
o novo dia, a nova primavera, o ano novo, no pensa que deste modo aspira
sua prpria morte". Embora expresso numa forma no-grotesca, o aforismo est
9 Geburt und Grab, / Ein ewiges Meer, / Ein wechselnd Weben, / Ein glhend Leben. (Nascimento e sepultura, /
Um eterno mar, / Um movimento sucessivo, / Uma vida ardente.) Aqui a morte e a vida no se opem; o
nascimento e a sepultura sobrepem-se, ligam-se da mesma forma ao seio procriador e absorvente da terra
e do corpo, entram da mesma maneira, como fases necessrias, no conjunto vivo da vida em eterna
mudana, em eterna renovao. Isso muito tpico da concepo do mundo de Goethe. O mundo onde
se opem a vida e a morte, totalmente diferente do mundo onde nascimento e sepultura se
confrontam. Este ltimo pertence cultura popular e tambm em grande parte o do poeta.

inspirado na concepo carnavalesca do mundo.


No sistema de imagens grotescas, portanto, a morte a renovao so
inseparveis do conjunto vital, e incapazes de infundir temor.
preciso notar que no grotesco da Idade Mdia e do Renascimento h
elementos cmicos mesmo na imagem da morte (at no campo pictrico,
como por exemplo nas "Danas macabras" de Holbein ou Drer). A figura do
espantalho cmico reaparece com maior ou menor relevo. Nos sculos
seguintes, principalmente o sculo XIX, perdeu-se a compreenso da comicidade
presente nessas imagens, que foram interpretadas com absoluta seriedade e
unilateralidade, razo pela qual se tornaram falsas e andinas. O sculo XIX
burgus s tinha olhos para a comicidade satrica, o riso retrico, triste, srio e
sentencioso (no admira que tenha sido comparado ao ltego ou aos aoites).
Admitia-se ainda o riso puramente recreativo, despreocupado e trivial. O srio
tinha que permanecer grave, isto , montono e sem relevo.
O tema da morte concebida como renovao, a superposio da morte e
do nascimento e as imagens de mortos alegres tm um papel fundamental no
sistema de imagens de Rabelais, e por isso vamos analis-las concretamente
nos captulos seguintes do nosso estudo.
O ltimo aspecto da concepo de Kayser que examinaremos aqui, a sua
anlise do riso grotesco.
Esta a sua definio: "O riso mesclado de dor adquire, ao entrar no
grotesco, os traos do riso burlador, cnico e finalmente satnico".
Kayser concebe o riso grotesco da mesma forma que o vigia de Bonawentura
e a teoria do "riso destrutivo" de Jean-Paul isto , dentro do esprito do grotesco
romntico. O riso no tem o aspecto alegre, liberador e regenerador, ou seja,
criador. Por outro lado, Kayser compreende muito bem a importncia do
problema do riso no grotesco e evita resolv-lo de maneira unilateral (cf. op cit.,
p. 139).
Como j dissemos, o grotesco a forma predominante que adotam as
diversas correntes modernistas atuais. A concepo de Kayser no essencial pode
servir-lhes de fundamento terico e, embora com algumas reservas, esclarecer
certos aspectos do grotesco romntico. Mas parece-nos inadmissvel estend-la s
outras fases da evoluo da Imagem grotesca.
O problema do grotesco e de sua essncia esttica s pode ser
inteiramente colocado e resolvido dentro do mbito da cultura popular da Idade
Mdia e da literatura do Renascimento, e nesse sentido Rabelais
particularmente esclarecedor. Para compreender a profundidade, as mltiplas
significaes e a fora dos diversos temas grotescos, preciso faz-lo do ponto
de vista da unidade da cultura popular e da viso carnavalesca do mundo; fora
desses elementos, os temas grotescos tornam-se unilaterais, dbeis e andinos.
No resta dvida quanto adequao do vocbulo "grotesco" apurado a
um tipo especial de imagens da cultura popular da Idade Media e literatura
do Renascimento. Mas at que ponto se justifica a nossa denominao de
''realismo grotesco"?

Nesta introduo, s podemos dar uma resposta preliminar a essa questo.


As caractersticas que diferenciam de maneira to marcante o grotesco
medieval e renascentista do grotesco romntico e modernista principalmente a
compreenso espontaneamente materialista e dialtica da existncia podem
ser definidas da maneira mais adequada como realistas. Nossas anlises
ulteriores concretas das imagens grotescas iro confirmar essa hiptese.
As imagens grotescas do Renascimento, diretamente ligadas cultura
popular carnavalesca (em Rabelais, Cervantes e Sterne), influram em toda a
literatura realista dos sculos seguintes. O realismo em grande estilo (Stendhal,
Balzac, Hugo, Dickens, etc.) esteve sempre lidado (direta ou indiretamente)
tradio renascentista, e a ruptura desse lao conduziu fatalmente ao
abastardamento do realismo, sua degenerao em empirismo naturalista.
A partir do sculo XVII, certas formas do grotesco comeam a degenerar
em "caracterizao" esttica e estreita pintura de costumes, como consequncia
da limitao especfica da concepo burguesa de inundo. Pelo contrrio, o
verdadeiro grotesco no de maneira alguma esttico; esfora-se, alis, por
exprimir nas suas imagens o [46] devir, o crescimento, o inacabamento
perptuo da existncia: o motivo pelo qual ele d nas suas imagens os dois
polos do devir, ao mesmo tempo o que parte e o que est chegando, o que
morre e o que nasce; mostra dois corpos no interior de um nico, a germinao
e a diviso da clula viva. Nas formas mais altas do realismo grotesco e
folclrico, como nos organismos unicelulares, no resta jamais um cadver (a
morte do organismo unicelular coincide com o processo de multiplicao, a
diviso em duas clulas, dois organismos, sem "desfazimentos"), a velhice est
grvida, a morte est prenhe, tudo que limitado, caracterstico, fixo, acabado,
precipita-se para o "inferior" corporal para a ser refundido e nascer de novo.
Mas, durante o processo de degenerao e desagregao do realismo grotesco,
seu polo positivo desaparece, isto , a malha jovem do devir'(substituda pela
sentena moral e pela concepo abstrata), e resta apenas um cadver, uma
velhice sem prenhez, pura, igual a si mesma, isolada, arrancada do conjunto em
pleno crescimento no seio do qual ela se ligava malha jovem seguinte, na
cadeia nica da evoluo e do progresso.
No resta mais que um grotesco mutilado, efgie do demnio da fecundidade
com o falo cortado e o ventre encolhido. E o que d origem a todos os tipos
estreis do "caracterstico", a todos os tipos "profissionais" de advogados,
mercadores, alcoviteiras, velhos e velhas, etc., simples mscaras de um realismo
falsificado e degenerado. Esses tipos existiam tambm no realismo grotesco,
mas no constituam o quadro de toda a vida, eram apenas a parte agonizante
da vida renascente. Na realidade, a nova concepo de realismo traa outras
fronteiras entre os corpos e as coisas. Separa os corpos duplos e poda do
realismo grotesco e folclrico as coisas que brotaram junto com o corpo,
procura aperfeioar cada individualidade, isolando-a da totalidade final que j
perdeu a antiga imagem, sem ter ainda encontrado uma nova. A compreenso
do tempo, tambm, modificou-se consideravelmente.
A literatura chamada de "realismo burgus" do sculo XVIII (Sorel, Scarron

e Furetire), ao lado de elementos puramente carnavalescos, contm j


imagens grotescas estticas, isto , quase subtradas passagem do tempo,
corrente da evoluo, portanto, ou fixada na sua dupla natureza ou dividida em
dois. Alguns autores, como por exemplo Rgnier, inclinam-se a interpretar esses
primeiros passos como o comeo do realismo. Na verdade, so apenas
fragmentos mortos, e s vezes quase desprovidos de sentido, do pujante e
profundo realismo grotesco.
[...]
[293] preciso no perder de vista o papel enorme que desempenha o
medo csmico medo de tudo que incomensuravelmente grande e forte:
firmamento, massas montanhosas, mar e o medo das perturbaes csmicas
e das calamidades naturais, nas mais antigas mitologias, concepes e sistemas
de imagens, e at nas prprias lnguas e nas formas de pensamento que elas
determinam. Uma certa lembrana obscura das perturbaes csmicas passadas,
um certo temor indefinvel dos abalos csmicos futuros dissimulam-se no prprio
fundamento do pensamento e da imagem humanos. Na base esse temor, que
no absolutamente mstico, no sentido prprio do termo ( o temor inspirado
pelas coisas materiais de grande porte e pela fora material invencvel),
utilizado por todos os sistemas religiosos com o fim de oprimir o homem, de
dominar a sua conscincia. Mesmo [294] os testemunhos mais antigos da obra
popular refletem a luta contra o temor csmico, contra a lembrana e o
pressentimento dos abalos csmicos e da morte violenta. Assim, nas criaes
populares que exprimiam esse combate, forjava-se uma autoconscincia
verdadeiramente humana, liberada de todo medo.10
Essa luta contra o temor csmico, em todas as suas formas e manifestaes,
apoiava-se no sobre esperanas abstratas, sobre a eternidade do esprito, mas
sobre o princpio material includo no prprio homem. De alguma forma, o
homem assimilava os elementos csmicos (terra, gua, ar, fogo), encontrandoos e experimentando-os no seu prprio interior, no seu prprio corpo; ele sentia o
cosmos em si mesmo.
No Renascimento, essa assimilao dos elementos csmicos nos elementos
do corpo realizava-se de maneira particularmente consciente e explcita. Ela
encontrou a sua expresso terica na ideia do microcosmos, de que se serve
Rabelais no julgamento de Panurge (a respeito dos credores e devedores).
10 As imagens que exprimem esse combate, esto frequentemente misturadas a outras, que refletem a
luta paralela desenrolada no corpo do indivduo, contra o seu nascimento em meio s dores e o
pressentimento da agonia. O temor csmico mais profundo e mais essencial; ele parece refugiado no corpo
pro criador da humanidade, e assim insinuou-se nos prprios fundamentos da lngua, das imagens e do
pensamento. Esse temor csmico portanto mais essencial e mais forte do que o medo individual e
corporal da morte violenta, se bem que por vezes as suas vozes se unam nas imagens folclricas e
sobretudo literrias. Esse medo csmico foi legado pela impotncia dos primeiros homens diante das foras
da natureza. A cultura popular ignorava esse temor, aniquilava-o por meio do riso, da corporificao
cmica da natureza e do cosmos, pois ela estava fortalecida na base pela confiana indefectvel no poder
e na vitria final do homem. Pelo contrrio, as culturas oficiais utilizavam muitas vezes, e at mesmo
cultivavam, esse temor a fim de humilhar e oprimir o homem.

Voltaremos mais tarde a esses aspectos da filosofia do Renascimento. No


momento, gostaramos de sublinhar que as pessoas assimilavam e sentiam em si
mesmas o cosmos material, com os seus elementos naturais, nos atos e funes
eminentemente materiais do corpo; alimentao, excrementos, atou sexuais; a
que encontravam em si mesmos e tateavam, por assim dizer, saindo do seu
corpo, a terra, o mar, o ar, o fogo e, de maneira geral, toda a matria do mundo
em todas as suas manifestaes, o assim a assimilavam. Foram justamente as
imagens relativas ao "baixo" corporal que adquiriram um valor microcsmico
essencial.
Na obra folclrica literria, o temor csmico (como qualquer temor)
vencido pelo riso. Assim, a matria fecal e a urina , matria cmica, corporal,
compreensvel, tinha a um papel muito importante. Elas figuram tambm em
quantidade astronmica, numa escala [295] csmica. O cataclismo csmico,
descrito com a ajuda das imagens do baixo material e corporal, rebaixado,
humanizado e transformado num alegre espantalho. Assim o riso venceu o terror
csmico.
[...]

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