BAKHTIN. Sobre o Grotesco
BAKHTIN. Sobre o Grotesco
BAKHTIN. Sobre o Grotesco
literatura das peregrinaes, das soties, etc. Por isso, essas expresses podiam
desempenhar um papel primordial na sua obra.
preciso assinalar especialmente a expresso estrepitosa que assumia a
concepo grotesca do corpo nos preges das feiras e na comicidade de praa
pblica na Idade Mdia e no Renascimento. Por esses meios, essa concepo se
transmitiu at a poca atual nos seus aspectos mais bem conservados: no sculo
XVII sobrevivia nas "paradas" de Tabarin, nas burlas de Turlupin e outros
fenmenos anlogos. Pode-se afirmar que a concepo de corpo do realismo
grotesco sobrevive ainda hoje (por mais atenuado e desnaturalizado que seja o
seu aspecto) nas vrias formas atuais de cmico que aparecem no circo e nos
nmeros de feira.
Essa concepo, de que acabamos de dar uma viso preliminar, encontra-se
evidentemente em contradio formal com os cnones literrios e plsticos da
Antiguidade "clssica"4, que constituram a [26] base da esttica do
Renascimento e aos quais a arte no esteve indiferente na sua evoluo. Esses
cnones consideram ao corpo de maneira completamente diferente, em outras
etapas da sua vida, em relaes totalmente distintas com o mundo exterior
(no-corporal). Para eles, o corpo algo rigorosamente acabado e perfeito.
Alm disso, isolado, solitrio, separado dos demais corpos, fechado. Por isso,
elimina-se tudo o que leve a pensar que ele no est acabado, tudo que se
relaciona com seu crescimento e sua multiplicao: retiram-se as excrescncias
e brotaduras, apagam-se as protuberncias (que tm a significao de novos
brotos, rebentos), tapam-se os orifcios, faz-se abstrao do estado
perpetuamente imperfeito do corpo e, em geral, passam despercebidos a
concepo, a gravidez, o parto e a agonia. A idade preferida a que est o
mais longe possvel do seio materno e do sepulcro, isto , afastada ao mximo
dos "umbrais" da vida individual. Coloca-se nfase sobre a individualidade
acabada e autnoma do corpo em questo. Mostram-se apenas os atos
efetuados pelo corpo num mundo exterior, nos quais h fronteiras ntidas e
destacadas que separam o corpo do mundo; os atos e processos intracorporais
(absoro e necessidades naturais) no so mencionados. O corpo individual
apresentado sem nenhuma relao com o corpo popular que o produziu.
Essas so as tendncias primordiais dos cnones da nova poca.
perfeitamente compreensvel que, desse ponto de vista, o corpo do realismo
grotesco lhes parea monstruoso, horrvel e disforme. um corpo que no tem
lugar dentro da "esttica do belo" forjada na poca moderna.
Na nossa introduo, assim como nos captulos seguintes (sobretudo o
Captulo V), limitamo-nos a comparar os cnones grotesco e clssico da
representao do corpo, estabelecendo as diferenas que os colocam em
oposio, mas sem fazer prevalecer um sobre o outro. No entanto, como
natural, colocamos em primeiro plano a concepo grotesca, uma vez que ela
4 Mas no da Antiguidade em geral: na antiga comdia drica, no drama satrico, nas formas da comdia
siciliana, em Aristfanes, nos mimos e atelanas, encontramos uma concepo anloga, assim como em
Hipcrates, Galeno, Plnio, na literatura dos "banquetes", em Ateneu, Plutarco, Macrbio e muitas outras
obras da Antiguidade no-clssica.
inimigo mais poderoso fica horrorizado diante desta mscara satrica e a prpria
desgraa recua diante de mim, se me atrevo a ridiculariz-la! E, que diabo, esta
terra, com seu satlite sentimental, a lua, no merece mais do que burla!" Essa
reflexo destaca o carter universal do riso e a concepo de mundo que possui,
elemento obrigatrio do grotesco; glorifica-se a sua fora liberadora, mas no
se alude sua fora regeneradora, e por causa disso perde o seu tom jocoso e
alegre.
O autor (atravs do narrador, o guarda-noturno) d uma outra explicao
original: investiga o mito da origem do riso; o riso foi enviado terra pelo
diabo, apareceu aos homens com a mscara da alegria e eles o acolheram com
agrado. No entanto, mais tarde, o riso tira a mscara alegre e comea a refletir
sobre o mundo e os homens com a crueldade da stira.
A degenerao do princpio cmico que organiza o grotesco, a perda de sua
fora regeneradora suscitam novas mudanas que separam mais profundamente
o grotesco da Idade Mdia e do Renascimento do grotesco romntico. As
mudanas mais notveis ocorrem com relao ao terrvel, O universo do
grotesco romntico se apresenta geralmente como terrvel e alheio ao homem.
Tudo o que costumeiro, banal, habitual, reconhecido por todos, torna-se
subitamente insensato, duvidoso, estranho e hostil ao homem. O mundo
humano se transforma de repente em um mundo exterior. O costumeiro e
tranquilizador revela o seu aspecto terrvel. Tal a tendncia do grotesco
romntico (nas suas formas extremas, mais prototpicas). A reconciliao com o
mundo, quando se realiza, ocorre em um plano subjetivo e lrico, s vezes
mesmo mstico. Ao contrrio, o grotesco medieval e renascentista, associado
cultura cmica popular, representa o terrvel atravs dos espantalhos cmicos,
isto , na forma do terrvel vencido pelo riso. O terrvel adquire sempre um tom
de bobagem alegre.
O grotesco, integrado cultura popular, faz o mundo aproximar-se do
homem, corporifica-o, reintegra-o por meio do corpo vida corporal
(diferentemente da aproximao romntica, totalmente abstrata e espiritual).
No grotesco romntico, as imagens da vida material e corporal: beber, comer,
satisfazer necessidades naturais, copular, parir, perdem quase completamente
sua significao regeneradora . transformam-se em "vida inferior". As imagens
do grotesco romntico so geralmente a expresso do temor que inspira o
mundo e procuram comunicar esse temor aos leitores ("aterroriz-los"). As
imagens grotescas da cultura popular no procuram assustar o leitor,
caracterstica que compartilham com as obras-primas literrias do
Renascimento. Nesse sentido, o romance de Rabelais a expresso mais tpica,
no-h vestgio de medo, a alegria percorre-o integralmente. Mais do que
qualquer outro no mundo, o romance de Rabelais exclui o temor. [35]
Outras particularidades do grotesco romntico denotam o enfraquecimento
da fora regeneradora do riso. O motivo da loucura, por exemplo,
caracterstico de qualquer grotesco, uma vez que permite observar o mundo com
um olhar diferente, no perturbado pelo ponto de vista "normal", ou seja, pelas
ideias e juzos comuns. Mas, no grotesco popular, a loucura uma alegre
qual, visto de fora, pode tambm ser definido como estranho e inslito, mas
no como um mundo que se tomou estranho. No mundo grotesco, pelo
contrrio, o habitual e prximo torna-se subitamente hostil e exterior. o nosso
mundo que se converte de repente no mundo dos outros.
Essa definio, que se aplica a certos fenmenos do grotesco moderno, no
inteiramente adequada ao grotesco romntico, e menos ainda s fases
anteriores.
Na realidade, o grotesco, inclusive o romntico, oferece a possibilidade de
um mundo totalmente diferente, de uma ordem mundial distinta, de uma outra
estrutura da vida. Franqueia os limites da unidade, da indiscutibilidade, da
imobilidade fictcias (enganosas) do mundo existente. O grotesco, nascido da
cultura cmica popular, tende sempre, de uma forma ou outra, a retornar ao
pas da idade de ouro de Saturno, e contm a possibilidade viva desse retorno.
O grotesco romntico tambm contm essa possibilidade (caso contrrio,
deixaria de s-lo), mas dentro das formas subjetivas que lhe so peculiares. O
mundo existente torna-se de repente um mundo exterior (para retomar a
terminologia de Kayser), justamente porque se revela a possibilidade de um
mundo verdadeiro em si mesmo, o mundo da idade de ouro, da verdade
carnavalesca. O homem encontra-se consigo mesmo, e o mundo existente
destrudo para renascer e renovar-se em seguida. Ao morrer, o mundo d luz.
No mundo grotesco, a relatividade de tudo que existe sempre alegre, o
grotesco est impregnado da alegria da mudana e das transformaes, mesmo
que em alguns casos essa alegria se reduza ao mnimo, como no Romantismo.
preciso sublinhar ainda uma vez que o aspecto utpico ("a idade de
ouro") revela-se no grotesco pr-romntico, no sob a forma do pensamento
abstrato ou das emoes internas, mas na realidade total do homem:
pensamento, sentimentos e corpo. A participao do corpo num outro mundo
possvel, a faculdade de compreenso do corpo adquire uma importncia
capital para o grotesco.
A concepo de Kayser, porm, no deixa lugar ao princpio material e
corporal, inesgotvel e perpetuamente renovado. Tampouco aparecem o tempo,
ou as mudanas, ou as crises, isto , nada do que ocorre sob o sol, na terra, no
homem, na sociedade humana, e que constitui a razo de ser do verdadeiro
grotesco. [43]
Esta definio de Kayser extremamente tpica do grotesco modernista: "o
grotesco a forma de expresso do 'id'" (p. 137).
Para Kayser, "id" representa algo mais existencialista do que freudiano;
"id" a fora estranha que governa o mundo, os homens, suas vidas e seus
atos. Kayser reduz vrios motivos fundamentais do grotesco a uma nica
categoria, a fora desconhecida que rege o mundo, representada, por exemplo,
atravs do teatro de marionetes. Essa tambm a sua concepo de loucura.
Pressentimos sempre no louco algo que no lhe pertence, como se um esprito
no-humano se tivesse introduzido na sua alma. J mencionamos que o grotesco
empilhou de maneira radicalmente diferente o motivo da loucura: a fim de
liberar-se da falsa "verdade deste mundo" e contempl-lo com um olhar liberto
dessa "verdade".
Kayser refere-se frequentemente liberdade da fantasia caracterstica do
grotesco. Mas como poderia existir liberdade num mundo iluminado pela fora
estranha do "id"? A concepo de Kayser contm uma contradio insupervel.
Na realidade, a funo do grotesco liberar o homem das formas de
necessidade inumana em que se baseiam as ideias dominantes sobre o unindo. O
grotesco derruba essa necessidade e descobre seu carter relativo e limitado. A
necessidade apresenta-se num determinado momento como algo srio,
incondicional e peremptrio. Mas historicamente as ideias de necessidade so
sempre relativas e versteis. O riso e a viso carnavalesca do mundo, que esto
na base do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretenses de
significao incondicional e intemporal e liberam a conscincia, o pensamento e a
imaginao humana, que ficam assim disponveis para o desenvolvimento de
novas possibilidades. Da que uma certa "carnavalizao" da conscincia precede
e prepara sempre as grandes transformaes, mesmo no domnio cientfico.
No mundo grotesco, qualquer "id" desmistificado e transforma-se em
"espantalho cmico"; ao penetrar nesse mundo, mesmo no mundo do grotesco
romntico, sentimos: uma alegria especial e "licenciosa" do pensamento e da
imaginao.
Analisaremos agora mais dois aspectos da concepo de Kayser.
Resumindo as suas anlises, ele afirma que "no grotesco no se trata de
medo da morte, mas de medo da vida".
Essa afirmao, feita a partir de um ponto de vista existencialista, ope a
vida morte, oposio que no existe no sistema de imagens grotescas, onde a
morte no aparece como a negao da vida (entendida na sua acepo
grotesca, isto , a vida do grande corpo popular). Dentro dessa concepo, a
morte considerada uma entidade da vida na qualidade de fase necessria, de
condio para a sua renovao e rejuvenescimento permanente. A morte est
sempre relacionada ao nascimento, o sepulcro ao seio terreno que d luz.
[44] Nascimento-morte e morte-nascimento so as fases constitutivas da
prpria vida, como o expressa em palavras clebres o esprito da Terra no
Fausto de Goethe.9 A morte est includa na vida e determina seu movimento
perptuo, paralelamente ao nascimento. O pensamento grotesco interpreta a
luta da vida contra a morte dentro do corpo do indivduo como a luta da vida
velha recalcitrante contra a nova vida nascente, como uma crise de
revezamento.
Leonardo da Vinci disse: "Quando o homem espera com alegre impacincia
o novo dia, a nova primavera, o ano novo, no pensa que deste modo aspira
sua prpria morte". Embora expresso numa forma no-grotesca, o aforismo est
9 Geburt und Grab, / Ein ewiges Meer, / Ein wechselnd Weben, / Ein glhend Leben. (Nascimento e sepultura, /
Um eterno mar, / Um movimento sucessivo, / Uma vida ardente.) Aqui a morte e a vida no se opem; o
nascimento e a sepultura sobrepem-se, ligam-se da mesma forma ao seio procriador e absorvente da terra
e do corpo, entram da mesma maneira, como fases necessrias, no conjunto vivo da vida em eterna
mudana, em eterna renovao. Isso muito tpico da concepo do mundo de Goethe. O mundo onde
se opem a vida e a morte, totalmente diferente do mundo onde nascimento e sepultura se
confrontam. Este ltimo pertence cultura popular e tambm em grande parte o do poeta.