Um General Na Biblioteca PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 12

ITALO CALVINO

um general
na biblioteca

Tradução
Rosa Freire d’Aguiar
Copyright © 1993 by Espólio de Italo Calvino
Proibida a venda em Portugal

Esta publicação contou com o apoio do Ministério de Relações Exteriores


da Itália.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
Prima che tu dica “Pronto”

Capa
Jeff Fisher

Preparação
Eliane de Abreu Santoro

Revisão
Juliane Kaori
Flávia Yacubian

Índice remissivo de Catalogação na Publicação (cip)


Dados Internacionais
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
X
Calvino, Italo, 1923-1985
Um general na biblioteca / Italo Calvino ; tradução de Rosa
Freire d’Aguiar. — São Paulo : Companhia das Letras, 2010.

Título original : Prima che tu dica “Pronto”.


isbn978-85-359-1699-7

1. Contos italianos i. Título.


10-05490 cdd- 853.1

Índice para catálogo sistemático:


1. Contos : Literatura italiana 853.1

2010

Todos os direitos desta edição reservados à


editora schwarcz ltda.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — sp
Telefone: (11) 3707-3500
Fax: (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br
SUMáRIO

Nota de Esther Calvino 7

apó­lo­gos e con­tos 1943-1958


O homem que cha­ma­va Teresa 12
O raio 14
Quem se con­ten­ta 16
O rio seco 17
Consciência 22
Solidariedade 24
A ove­lha negra 27
Imprestável 29
Como um voo de patos 34
Amor longe de casa 41
Vento numa cida­de 50
O regi­men­to desa­pa­re­ci­do 57
Olhos ini­m i­gos 63
Um gene­ral na biblio­te­ca 67
O colar da rai­nha 73
A gran­de bonan­ça das Antilhas 98
A tribo com os olhos para o céu 105
Monólogo notur­no de um nobre esco­cês 108
Um belo dia de março 112

con­tos e diá­lo­gos 1968-1984


A memó­ria do mundo 118
A deca­pi­ta­ção dos che­fes 125
O incên­dio da casa abo­m i­ná­vel 139
A bomba de gaso­li­na 152
O homem de Neandertal 158
Montezuma 166
Antes que você diga “Alô” 177
A gla­cia­ção 185
O chamado da água 188
O espe­lho, o alvo 193
As memó­rias de Casanova 200
Henry Ford 210
O últi­mo canal 227

Nota do Editor 234


Sobre o autor 237
Italo Calvino come­ça a escre­v er muito cedo, ainda
ado­les­cen­te: con­tos, apó­lo­gos, poe­sias e peças tea­t rais. O tea­t ro
é sua pri­mei­ra voca­ção e tal­vez o que mais lhe inte­res­se. Desse
perío­do há mui­tas peças que nunca foram publi­ca­das. Sua
extraor­di­ná­ria capa­ci­da­de de auto­crí­t i­ca, de se ler des­do­bran­
do-se, levou-o muito depres­sa a aban­do­nar esse gêne­ro. Numa
carta de 1945 ele anun­cia laco­ni­ca­men­te ao amigo Eugenio
Scalfari: “Passei à nar­ra­t i­va”. A notí­cia devia ser muito impor­
tan­te, pois foi escri­ta em maiús­cu­las que cru­zam todo o espa­ço
da pági­na.
A par­t ir daí sua ati­v i­da­de de escri­tor será inin­ter­r up­ta; não
houve dia em que não tenha tra­ba­lha­do, em qual­quer lugar,
em qual­quer cir­cuns­tân­cia, sen­ta­do à mesa ou com o papel em
cima dos joe­lhos, no avião ou num quar­to de hotel. Não espan­
ta, pois, que tenha dei­xa­do uma obra tão vasta, da qual fazem
parte inú­me­ros con­tos e apó­lo­gos. Além dos cole­ta­dos por ele
em ­vários volu­mes, mui­tos saí­ram ape­nas em jor­nais e revis­tas;
­outros per­ma­ne­ce­ram iné­di­tos.
Os tex­tos aqui reu­ni­dos — iné­di­tos e não — são ape­nas
uma parte dos escri­tos entre 1943 — quan­do o autor ainda não
tinha vinte anos — e 1984.
Alguns, con­ce­bi­dos ini­cial­men­te como roman­ces, vão se
tor­nar con­tos, pro­ces­so nada insó­li­to em Calvino, que, de um
roman­ce nunca publi­ca­do, Il bian­co velie­ro, tira­rá mais de um rela­
to inse­ri­do no volu­me dos Contos de 1958.
Outros resul­t am de pedi­dos espe­cí­f i­cos: tal­vez ele nunca
tives­se escri­to A gla­cia­ção se uma des­t i­la­r ia japo­ne­sa de bebi­das
alcoó­l i­cas, mais espe­ci­f i­ca­men­te de um uís­que muito popu­lar
no Oriente, não tives­se deci­d i­do fes­te­jar seu quin­qua­gé­si­mo
ani­ver­sá­r io pedin­do um conto a cer­tos escri­to­res famo­sos

7
euro­peus. Havia uma única obri­ga­ção: a de men­cio­nar no
texto uma bebi­da alcoó­l i­ca qual­quer. A gla­cia­ção foi publi­ca­do
pri­mei­ro em japo­nês e ­depois em ita­l ia­no. Curiosos tam­bém
são a ges­t a­ção e o des­t i­no de O incên­dio da casa abo­mi­ná­vel.
Havia um pedi­do, bas­t an­te vago, da ibm: até que ponto era
pos­sí­vel escre­ver um conto com o com­pu­t a­dor? Isso se pas­sa­va
em Paris, em 1973, e essas máqui­nas não eram de fácil aces­so.
Sem se desen­co­ra­jar, e dedi­can­do-lhes muito tempo, Calvino
fez à mão todas as ope­ra­ções que o com­pu­t a­dor deve­r ia ter
exe­c u­t a­do. O conto ter­m i­nou sendo publi­ca­do, ­depois, numa
edi­ção ita­l ia­na da Playboy, o que, na ver­da­de, não sig­n i­f i­cou
um pro­ble­ma para Calvino, pois ele o des­t i­na­ra men­t al­men­te
ao Oulipo* como exem­plo de ars com­bi­na­to­r ia e desa­f io às pró­
prias capa­ci­da­des mate­má­t i­cas.
Quanto aos con­tos que abrem este livro, quase todos iné­
di­tos e muito cur­tos — Calvino os cha­ma­va rac­con­ti­ni, “con­t i­
nhos” —, pode ser útil saber que, numa nota de 1943, encon­
tra­da entre seus ­papéis de juven­t u­de, ele escre­veu: “O apó­lo­go
nasce em tem­pos de opres­são. Quando o homem não pode dar
forma clara a seu pen­sa­men­to, expri­me-o por meio de fábu­las.
Esses con­t i­n hos cor­res­pon­dem a uma série de expe­r iên­cias
polí­t i­cas e ­sociais de um jovem duran­te a ago­n ia do fas­cis­
mo”. Quando os tem­pos per­m i­t is­sem, acres­cen­t a­va — ou seja,
­depois do final da guer­ra e do fas­cis­mo —, o conto-apó­lo­go
não seria mais neces­sá­r io e o escri­tor pode­r ia pas­sar a outra
coisa. Mas os títu­los e as datas de gran­de parte dos tex­tos do
pre­sen­te volu­me e de ­outros escri­tos não reu­n i­dos aqui pare­
cem indi­car que, ape­sar do racio­cí­n io de juven­t u­de, Calvino
con­t i­nua­r ia a escre­ver apó­lo­gos ainda por mui­tos anos.
Foram incluí­dos neste livro ­alguns tex­tos de difí­cil clas­si­f i­

* Ouvroir de lit­té­ra­t u­re poten­t iel­le (Oficina de lite­ra­t u­ra poten­cial):


grupo cria­do pelos fran­ce­ses Raymond Queneau e François Le Lionnais, do
qual par­t i­ci­pa­ram Georges Pérec e Italo Calvino, e que pro­pu­n ha expe­r iên­
cias lite­rá­r ias segun­do ­regras rígi­das que seus pró­prios mem­bros inven­t a­vam
e se impu­n ham. (N. T.)

8
ca­ção, como O cha­ma­do da água; mesmo não sendo apó­lo­gos nem
con­tos no sen­t i­do estri­to, mere­cem ser tra­zi­dos aos lei­to­res.
Em ­outros casos, tex­tos que podem pare­cer úni­cos e iso­
la­dos no con­jun­to de sua obra fazem parte de pro­je­tos que
Calvino tinha cla­ros na mente mas não teve tempo de rea­li­zar.

Esther Calvino

9
apólogos e contos
1943-1958
o homem que chamava teresa

Desci da cal­ça­da , ­recuei uns pas­sos, olhan­do para cima,


e, che­gan­do no meio da rua, levei as mãos à boca, como um
mega­fo­ne, e gri­tei para os últi­mos anda­res do pré­dio:
— Teresa!
A minha som­bra se assus­tou com a lua e se aga­chou entre
meus pés.
Passou ­alguém. Chamei de novo:
— Teresa!
A pes­soa se apro­x i­mou, disse:
— Se não cha­mar mais alto não vão escu­tar. Vamos ten­tar
nós dois. Assim: conto até três, no três gri­ta­mos jun­tos. — E
disse: — Um, dois, três.
E jun­tos gri­ta­mos: — Tereeeesaaa!
Passou um gru­pi­nho de ami­gos que vol­ta­vam do tea­t ro ou
do café e viram nós dois cha­man­do. Disseram: — Bom, tam­
bém pode­mos aju­dar com a nossa voz. — E tam­bém foram para
o meio da rua e o pri­mei­ro dizia um, dois, três e então todos
gri­ta­vam em coro: — Te-reee-saaa!
Passou mais um e jun­tou-se a nós; quin­ze minu­tos ­depois
está­va­mos reu­ni­dos num grupo, uns vinte, quase. E de vez em
quan­­do che­ga­va mais um.
Não foi fácil che­gar­mos a um acor­do para gri­tar­mos direi­
to, todos jun­tos. Havia sem­pre um que come­ça­va antes do
“três” ou que demo­ra­va ­demais, mas no final já con­se­g uía­mos
fazer algu­ma coisa benfeita. Combinou-se que “Te” seria dito
baixo e longo, “re”, agudo e longo, e “sa”, baixo e breve. Fun­
cionou muito bem. Mas, vez por outra, havia uma briga por­que
­alguém desa­f i­na­va.
Já come­çá­va­mos a per­der o fôle­go quan­do um de nós, que

12
a jul­gar pela voz devia ter a cara cheia de sar­das, per­g un­tou: —
Mas vocês têm cer­te­za de que ela está em casa?
— Eu não — res­pon­di.
— Que con­f u­são — disse um outro. — Esqueceu a chave,
não é?
— Na ver­da­de — disse eu —, estou com a chave aqui.
— Então — me per­g un­ta­ram —, por que não sobe?
— Mas eu nem moro aqui — res­pon­di. — Moro no outro
lado da cida­de.
— Mas então, des­cul­pe a curio­si­da­de — per­g un­tou cir­
cuns­pec­to o sujei­to da voz cheia de sar­das —, quem é que mora
aqui?
— Para falar a ver­da­de, não sei — disse eu.
Houve um certo des­con­ten­ta­men­to ao redor.
— Mas então se pode saber — per­g un­tou outro com a
voz cheia de den­tes — por que está cha­man­do Teresa aqui de
baixo?
— Por mim — res­pon­di — tam­bém pode­mos cha­mar outro
nome, ou em outro lugar. Não custa nada.
Os ­outros esta­vam meio abor­re­ci­dos.
— O ­senhor não teria dese­ja­do fazer uma brin­ca­dei­ra
conos­co? — per­g un­tou o das sar­das, des­con­f ia­do.
— Eu, hein! — disse, ofen­di­do, e me virei para os ­outros
para pedir que con­f ir­mas­sem ­m inhas boas inten­ções. Os ­outros
fica­ram cala­dos, mos­t ran­do não terem cap­ta­do a insi­nua­ção.
Houve um ins­tan­te de cons­t ran­g i­men­to.
— Vejamos — disse um deles, bon­do­so. — Podemos cha­
mar Teresa mais uma vez, e ­depois vamos para casa.
E cha­ma­mos mais uma vez — um, dois, três, Teresa! —,
mas já não deu muito certo. Depois nos dis­per­sa­mos, uns por
aqui, ­outros por ali.
Eu já havia che­ga­do à praça quan­do tive a impres­são de
ainda ouvir uma voz que gri­ta­va: — Tee-reee-sa!
Alguém deve ter fica­do cha­man­do, obs­t i­na­do.

13
o raio

Aconteceu-me uma vez , num cru­za­men­to, no meio da


mul­t i­dão, no vai­vém.
Parei, pis­quei os olhos: não enten­dia nada. Nada, rigo­ro­sa­
men­te nada: não enten­dia as ­razões das coi­sas, dos ­homens, era
tudo sem sen­t i­do, absur­do. E come­cei a rir.
Para mim, o estra­nho naque­le momen­to foi que eu não
tives­se per­ce­bi­do isso antes. E tives­se até então acei­ta­do tudo:
semá­fo­ros, veí­cu­los, car­ta­zes, far­das, monu­men­tos, essas coi­sas
tão afas­ta­das do sig­ni­f i­ca­do do mundo, como se hou­ves­se uma
neces­si­da­de, uma coe­rên­cia que ligas­se umas às ­outras.
Então o riso mor­reu em minha gar­gan­ta, corei de ver­
go­nha. Gesticulei, para cha­mar a aten­ção dos pas­san­tes e —
Parem um momen­to! — gri­tei — Tem algo estra­nho! Está tudo
erra­do! Fazemos coi­sas absur­das! Este não pode ser o cami­nho
certo! Onde vamos aca­bar?
As pes­soas para­ram ao meu redor, me exa­m i­na­vam, curio­
sas. Eu con­t i­nua­va ali no meio, ges­t i­cu­la­va, ansio­so para me
expli­car, torná-las par­t i­ci­pan­tes do raio que me ilu­m i­na­ra de
repen­te: e fica­va quie­to. Quieto, por­que no momen­to em que
levan­tei os bra­ços e abri a boca a gran­de reve­la­ção foi como que
engo­li­da e as pala­v ras saí­ram de mim assim, de cho­f re.
— E daí? — per­g un­ta­ram as pes­soas. — O que o ­senhor
quer dizer? Está tudo no lugar. Está tudo andan­do como deve
andar. Cada coisa é con­se­quên­cia de outra. Cada coisa está
vin­cu­la­da às ­outras. Não vemos nada de absur­do ou de injus­
ti­f i­ca­do!
E ali ­f iquei, per­di­do, por­que dian­te dos meus olhos tudo
vol­ta­ra ao seu devi­do lugar e tudo me pare­cia natu­ral, semá­
fo­ros, monu­men­tos, far­das, arra­nha-céus, tri­lhos de trem, men­

14
di­gos, pas­sea­tas; e no entan­to não me sen­t ia tran­qui­lo, mas
ator­men­ta­do.
— Desculpem — res­pon­di. — Talvez eu é que tenha me
enga­na­do. Tive a impres­são. Mas está tudo no lugar. Desculpem.
— E me afas­tei entre seus olha­res seve­ros.
Mas, mesmo agora, toda vez (fre­quen­te­men­te) que me acon­
te­ce não enten­der algu­ma coisa, então, ins­t in­t i­va­men­te, me vem
a espe­ran­ça de que seja de novo a boa oca­sião para que eu volte
ao esta­do em que não enten­dia mais nada, para me apo­de­rar
dessa sabe­do­ria dife­ren­te, encon­t ra­da e per­di­da no mesmo ins­
tan­te.

15

Você também pode gostar