Da chanchada ao cinema novo: 1960-1963
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Da chanchada ao cinema novo - Ricardo Luiz de Souza
EPÍGRAFE
Todos os filmes nascem livres e iguais em direitos.
[ Andre Bazin ]
APRESENTAÇÃO
Os primeiros anos da década de 1960 – o período que vai de 1960 a 1963 – presenciaram um processo de renovação decisiva do cinema brasileiro, consubstanciado na formação e consolidação do Cinema Novo. Uma nova estética foi criada, um novo olhar sobre o Brasil foi elaborado, algumas obras-primas foram feitas, mas houve uma perda.
Um cineasta como Mazzaropi continuou mantendo um diálogo efetivo com um público vasto, alguns filmes foram muito bem nas bilheterias, mas as pontes com um público mais amplo, construídas por meio da chanchada, vieram abaixo, e novas pontes não seriam edificadas até os anos 70, vindo abaixo, novamente, na década seguinte, até o cinema brasileiro virtualmente desaparecer das telas na primeira metade da década de 1990.
Houve, portanto, entre 1960 e 1963, uma renovação profunda e necessária e uma perda a ser lamentada, tendo um filme como Rio, 40 graus, que Nelson Pereira dos Santos lançou em 1955, atuado, perante um processo e outro, como o maior divisor de águas já existente na história do cinema brasileiro. E em relação a ele, Nelson Pereira dos Santos, segundo Glauber (Rocha, 2003, p. 110), se transformou na principal personalidade revolucionária do cinema brasileiro
.
A princípio ele não dividiu nada, uma vez que os frutos da renovação por ele estabelecida iriam amadurecer apenas alguns anos depois e, de forma mais sistemática, apenas a partir do início dos anos 60. E filmes anteriores a ele e pouco conhecidos, como Vento norte, um filme gaúcho dirigido por Salomão Scliar em 1951, e Tudo azul, lançado por Moacyr Fenelon no ano seguinte, já traziam elemento do neorrealismo e da crítica social que Nelson Pereira dos Santos consolidaria em seu filme de estreia.
Nas páginas seguintes farei a análise de 40 filmes produzidos entre 1960 e 1963. É o período correspondente ao declínio e fim da chanchada e, concomitantemente, ao surgimento do Cinema Novo, quando foram produzidos seus primeiros clássicos. E o ponto final deste período pode muito bem ser situado no primeiro semestre do ano seguinte, ou seja, no golpe de março de 1964, que deu fim ao período de reformas retratado de diferentes formas, em seus anseios e frustrações, que se refletem nos filmes que analisarei a seguir. Meu objetivo será efetuar um panorama da produção cinematográfica do período, sem a intenção de fazer com que tal panorama seja exaustivo.
Não me restringirei, por outro lado, aos filmes mais famosos e importantes, nem adotarei critérios de qualidade quanto à escolha dos filmes, uma vez que a análise de obras cinematográficas medíocres pode ser útil para a compreensão da produção cinematográfica de sua época, pensada de uma forma mais ampla.
CAPÍTULO 1: A CHANCHADA EM SEU PERÍODO FINAL
A Atlântida Cinematográfica foi criada em 1941 por Moacyr Fenelon e pelos irmãos José Carlos e Paulo Burle. Produziu apenas cinejornais em seus dois primeiros anos, obtendo seu primeiro êxito em 1943 com o lançamento de Moleque Tião, uma biografia disfarçada de Grande Otelo estrelada por ele ainda adolescente. Mudou de rumos em 1947, quando Luis Severiano Ribeiro Júnior assumiu o controle do estúdio. E a chanchada tornou-se seu principal produto a partir de 1949, quando Carnaval no fogo, dirigido por Watson Macedo, lançou as diretrizes do gênero, que seriam seguidas, em linhas gerais, nas chanchadas produzidas pela Atlântida e por outros estúdios.
O último filme significativo realizado pela Atlântida foi O homem do Sputnik, dirigido por Carlos Manga e lançado em 1959, quando a chanchada já era um gênero que dava todos os sinais de esgotamento, tais como o uso reiterado das mesmas fórmulas e a incapacidade de renovação. E quando o estúdio lançou seu último filme em 1962, encerrando suas atividades, esta data significou, também, o desaparecimento do gênero.
Diversas chanchadas, entretanto, foram produzidas entre 1960 e 1962. São filmes que se situam no período de agonia do gênero e reciclam formas já bastante gastas, retomando diferentes procedimentos adotados mesmo em chanchadas tardias. Nem por isto devem ser ignorados, e alguns deles podem ser mencionados e analisados.
Assim, se em Este milhão é meu, de 1959, Carlos Manga fez uma incursão pelo noir, deixando a paródia de lado, o procedimento se repete em Os dois ladrões, sendo a paródia mais uma vez substituída pela cópia. Neste filme, o cineasta faz uma comédia sofisticada, no registro adotado por Stanley Donen em um filme como Charada, entre outros.
Já a sequência inicial remete diretamente a Ladrão de casaca, de Alfred Hitchcock, com John Robie, apelidado O Gato, o personagem interpretado por Cary Grant, substituído de forma bastante improvável por Jonjoca, o ladrão aposentado interpretado por Oscarito; mas, a princípio, as coisas pouco se diferenciam. Se John Robie recebe a visita de um investigador em sua casa em Mônaco, onde se dedica ao cultivo de flores, depois de ser visto como suspeito de uma série de roubos que não cometera, Jonjoca recebe a visita de Mão Leve, um colega de profissão, em sua casa, de onde se avista a baía da Guanabara e a paisagem carioca.
Nada mais distante da persona usada por Oscarito em seus filmes anteriores que o ladrão rico e aposentado que filosofa a respeito de sua opção pela aposentadoria, aparentando uma sofisticação mais própria de Cary Grant que de Oscarito, ou do que se espera dele na tela.
Há um registro equivocado logo de saída, portanto, e se Jonjoca é uma versão carioca do Gato, Mão Leve é uma versão tropical de Robin Hood. Logo que surge em cena ele dá uma esmola generosa a uma criança, explicando ao colega que não pode se aposentar porque muitas pessoas precisam dele, ou seja, o produto de seus roubos banca a sobrevivência de diversas pessoas. Muito mais que um bandido, portanto, ele é um benemérito, e apenas esta condição torna aceitável a transformação de um assaltante em galã. Afinal, Mão Leve, interpretado por Cyll Farney, é o galã, o que permite que o esquema habitual das chanchadas da Atlântida seja retomado.
Neste esquema um personagem é o galã, sendo responsável pelas cenas românticas e de ação, enquanto a parte humorística da narrativa cabe a Oscarito. E, para dar conta desta parte, ele se livra rapidamente da sofisticação inicialmente atribuída ao seu personagem, dando início a uma frenética sessão de travestismos variados, fazendo com que o registro da comédia romântica seja abandonado para que Oscarito possa assumir o protagonismo e salvar o filme, que se encaminhava de forma irremediável para a sensaboria.
Ele imita uma personagem de meia-idade um tanto ridícula, interpretada por Eva Todor, e replica os trejeitos da mulher, servindo como imagem quando ela se mira em um falso espelho; a melhor sequência do filme, já usada pelos Irmãos Marx em O diabo a quatro.
Em outra sequência, um homem que tenta conquistar a mulher se vê às voltas com duas delas – a própria e a cópia encarnada por Jonjoca –, e passa a galantear a ambas, com as consequências previsíveis. E Jonjoca ainda se disfarça como uma velha, uma irmã de caridade e, por fim, como um bebê.
É isto, no final das contas, o que interessa em Os dois ladrões, já que as partes da narrativa correspondentes à comédia sofisticada não funcionam e a trama policial é tosca. O problema é que uma e outra correspondem à boa parte da narrativa, o que comprova como a paródia, na Atlântida, sempre funcionou muito melhor que a cópia.
No final dos anos 50 surgiria uma vertente paulista da chanchada, cujo estúdio principal seria o Herbert Richers, antes de se transformar em estúdio de dublagens, mas as características básicas da chanchada carioca, incluindo os cenários, seriam mantidas. Neste estúdio o croata J. B. Tanko desempenharia o papel de especialista no gênero, que havia sido o de Carlos Manga na Atlântida.
Uma característica de J. B. Tanko, que certamente o levou a se tornar um cineasta de confiança de Herbert Richers, foi o fato dele não buscar se sobressair nos filmes que dirigia. Foi assim com os filmes que faria para Os Trapalhões, foi assim com as chanchadas que dirigiu para o estúdio. O que interessava eram os comediantes, não o diretor, assim como ocorria com os filmes estrelados por Jerry Lewis e Dean Martin, dirigidos por nomes hoje esquecidos como Norman Taurog e Hal Walker. E um filme como O diabo a quatro é um filme dos Irmãos Marx, não um filme de Leo McCarey, que o dirigiu.
No caso de Entrei de gaiato, este é um filme de Zé Trindade e Dercy Gonçalves, que fazem um humor muito parecido, essencialmente verbal. Ele tinha pouca mobilidade física e dependia de sua expressão facial e dos achados verbais, como na cena em que diz estar perto de ter um enfarte do Leocádio. Neste sentido, diferencia-se muito das origens circenses de Oscarito, que sempre afirmou ter em um tio que foi palhaço de circo uma de suas maiores influências.
Também se diferencia do humor acrobático de Ankito, podendo ser comparado, de uma forma bastante remota, ao humor de Groucho Marx, embora sua obsessão por mulheres o aproxime mais de Harpo. Já Dercy Gonçalves, se tivesse tido melhores oportunidades, teria sido uma Mae West menos sutil e mais escrachada, mas sem os furores sexuais expressos verbalmente pela persona da atriz hollywoodiana.
Zé Trindade interpretava o vigarista, ou seja, um tipo que Oscarito, que fazia mais o tipo ingênuo, nunca interpretou. Em Entrei de gaiato, ele aplica um golpe em um mineiro que acabara de chegar ao Rio de Janeiro. Ele o aborda em uma estação de trem e consegue lhe vender um apartamento muito sossegado e a um metro e meio abaixo do chão, que, na realidade, é um túmulo no Cemitério do Caju.
Um personagem de Oscarito jamais faria isto, nem demonstraria o gosto que Januário, o personagem interpretado por Zé Trindade, sente pela trapaça. Ele não é apenas um vigarista, mas gosta muito do que faz. Na narrativa, ele finge ser um coronel do cacau hospedado em um hotel de luxo e tem como objetivo depenar os hóspedes, mas escolhe como vítima uma hóspede chamada Ananásia, que é tão pilantra quanto ele e diz ser proprietária de joias valiosas, mas, que, na verdade, são falsas. E ela também pretende aplicar um golpe no falso coronel, acreditando no que ele diz.
Para completar, um casal de ladrões também se empenha em furtar as joias, fazendo o contraponto dos vilões para valer, que são presença indispensável nas chanchadas, assim como o uso de mulheres com as pernas nuas – habitualmente vedetes dos números musicais – também dá o tom de erotismo, que hoje soa apenas ingênuo.
A narrativa, nas chanchadas, costuma ser uma miscelânea na qual cabe de tudo e onde a lógica é o que menos importa, sendo que em Entrei de gaiato, a presença entre os hóspedes de um paxá com seu harém faz parte do cardápio, mas também ele entra na conta da vigarice geral, uma vez que se trata de um falso paxá, igualmente interessado nas joias a serem roubadas.
O furto de joias valiosas já havia sido o ponto de partida em Carnaval no fogo que Watson Macedo dirigiu para a Atlântida em 1949; uma chanchada com a qual o filme de Tanko se assemelha, por exemplo, ao situar a narrativa em um hotel de luxo. Entrei de gaiato, porém, leva ao paroxismo uma característica da chanchada, que é o fato de os personagens não serem o que aparentam. O par romântico, formado pela sobrinha de Ananásia e um detetive do hotel, se torna irrelevante enquanto o índice de vigarices dispara.
Januário e Ananasia, afinal, são trapaceiros rodeados de bandidos, e o casamento burlesco de ambos, que encerra a narrativa, não elimina o amoralismo reinante. Mais do que em relação a Dercy, este é um filme, afinal, centrado em Zé Trindade, e sua persona – a única que criou em toda a sua carreira –, baliza toda a narrativa. Januário costuma chamar o dinheiro de ventarola, e é atrás dele que correm todos os personagens.
Nas comédias da Atlântida era praxe haver o vilão e, no polo oposto, o grupo formado pelas pessoas honestas – habitualmente o par romântico auxiliado por Oscarito – mas sem que o vilão nunca fosse realmente assustador ou cometesse atos especialmente cruéis. Nas comédias estreladas por Zé Trindade isto se torna impossível, uma vez que a honestidade sempre está longe de ser o forte dos personagens interpretados por ele. São pilantras, de uma forma ou de outra, mas nunca praticando atos que pudessem gerar a antipatia do público. É um vigarista inofensivo, no final das contas.
Ele também é o mulherengo, sendo este o traço básico de Anacleto, o protagonista de Marido de mulher boa, igualmente dirigido por