Psicologia Como Uma Ciência Social - Nikolas Rose

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 10

Psicologia & Sociedade; 20 (2): 155-164, 2008

PSICOLOGIA COMO UMA CINCIA SOCIAL1


Nikolas Rose University of London, London, United Kingdom

RESUMO: A psicologia ocupou um papel importante na sociedade durante o sculo XX, ajudando a construir o mundo e as pessoas em que nos transformamos. Nesse sentido, constituiu-se como uma cincia social, promovendo uma psicologizao das vidas individual e coletiva, inventando e transformando diversas idias em termos psicolgicos. Este texto busca compreender esta caminhada da psicologia, que encontrou seu espao como uma tcnica de regulamentao, um pretenso conhecimento sobre as pessoas com o objetivo institucional de administr-las, moldlas, reform-las. Passa pela psicologia social do ps primeira e segunda guerras, com suas pesquisas de atitudes e trabalhos sobre grupos, culminando na noo de empreendimento, construindo e regulando as aes humanas. Termina problematizando a primazia do corpo biolgico no sculo XXI, onde as novas tecnologias de imagem, a psiquiatria biolgica, a neuroqumica e a neurobiologia emergem, na mesma medida em que uma subjetividade cerebral se fortalece. PALAVRAS-CHAVE: Psicologia Social; histria da Psicologia; tcnicas de regulamentao. PSYCHOLOGY AS SOCIAL SCIENCE ABSTRACT: Psychology played an important role in society during the 20th century, helping to build the world and the people we became. In that sense, it established itself as a social science, promoting a psychologization of individual and public lives; inventing and transforming several ideas in psychological terms. This text aims at understanding this evolution of psychology which found its space as a regulation technique, a presumed knowledge about people with an institutional objective of managing, shaping and reforming them. It discusses social psychology of post-war periods with its attitude researches and works about groups; reaching its climax with the notion of enterprise, building and regulating human actions. It ends with a discussion over the importance of the biological body in the 21st century, in which new technologies of image, biological psychiatry, neurochemistry and neurobiology emerge at the same time that brainhood is strengthened. KEYWORDS: Social Psychology; history of Psychology; regulation techniques.

O Sculo da Psicologia
O sculo XX foi certamente o sculo da psicologia ser que o sculo XXI ser igual? O que quero dizer, quando coloco o sculo XX como sculo da psicologia, no somente que esse foi o sculo em que a psicologia se transformou em disciplina, com departamentos universitrios, professores especializados, diplomas, qualificaes e esse tipo de coisa. Nem que esse foi o sculo em que a psicologia decolou como uma profisso: com corpos profissionais, qualificaes, empregos relacionados e muito mais. Penso que, mais do que isso, esse foi o sculo da psicologia, porque a psicologia atravs do sculo XX ajudou a construir a sociedade em que ns vivemos e tambm o tipo de pessoas em que nos transformamos. O desenvolvimento da psicologia durante o sculo XX teve um importante impacto social em nosso entendimento e tratamento do distress2; nas nossas concepes de normalidade e anormalidade; nas nossas tecnologias de regulao, normalizao, reforma e correo; no cuidado com crianas e na educao, na propaganda, no marketing e nas tecnologias de consumo, no controle do comportamento humano, do industrial ao militar. A psicologia e as linguagens da psicologia construram um senso comum na Europa e na Amrica do Norte, na Austrlia, na Amrica Latina e em muitos outros lugares. O treinamento psicolgico afetou profissionais de orientao de crianas, de trabalhos sociais, e mesmo de administrao de recursos humanos. No processo, nossas muitas idias do self, da identidade, da autonomia, liberdade e da realizao pessoal foram reformadas em termos psicolgicos. Seres humanos, nessas regies, vieram a se entender como se fossem habitados por um profundo e interno espao psicolgico, que estaria avaliando-os e agindo sobre eles nos termos dessa crena. As pessoas falam de si mesmas numa linguagem psicolgica

155

Rose, N. Psicologia como uma cincia social

de descrio pessoal a linguagem da inteligncia, personalidade, ansiedade, neurose, depresso, trauma, extroverso, introverso julgando-se em termos do que penso podermos determinar, quase com certeza, como uma tica psicolgica. Esse no foi apenas o processo de individualizao; isso tambm inclui a psicologizao da vida coletiva, a inveno da idia de grupos, grandes e pequenos, das atitudes, da opinio pblica e temas deste tipo. Prticas, da indstria ao exrcito, podem agora ser entendidas em termos de dinmicas psicolgicas das relaes interpessoais. Problemas sociais, do preconceito e luta de grupos at criminalidade e pobreza, so abalizados em termos psicolgicos. Assim, como disse, isso no foi apenas uma questo da psicologia se estabelecer como uma disciplina ou como uma profisso; uma maneira caracterstica de pensar sobre profisses nas cincias sociais, como disciplinas que tentam exercer sua autonomia como profisses e manter o controle de determinadas tcnicas. Mas, com a psicologia no foi assim. A psicologia foi uma disciplina muito generosa, ela se doou para todos os tipos de profisses, da polcia a comandantes militares, numa condio de faz-los pensar e agir, pelo menos de alguma maneira, como psiclogos. Conforme entramos no sculo XXI, talvez queiramos refletir sobre esse processo; talvez o poder da psicologia, como uma maneira de entender e administrar todos esses assuntos, esteja enfraquecendo. Talvez esse profundo espao psicolgico que se abriu em ns esteja comeando a se achatar, enquanto nossos descontentamentos agem diretamente no crebro. Ento, ser o sculo XXI o sculo da psicologia? isso o que pergunto na minha pesquisa atual. Mas aqui, como eu, nostalgicamente, disse, apenas quero retomar algumas consideraes que fiz sobre a psicologia vinte anos atrs; e estou ansioso para saber se vocs pensam que elas ainda valem. Talvez ainda apontem para alguma coisa significativa sobre o papel da psicologia como uma cincia social, e, quem sabe, at como uma cincia poltica.

uma cincia moderna no foi formada nos corredores tranqilos da academia, nem no empirismo dos aventais brancos do laboratrio e do experimento. Na verdade, a psicologia comeou a se formar em todos aqueles locais prticos que tomaram forma durante o sculo XIX, no qual problemas de conduta coletiva e individual humanas eram de responsabilidade das autoridades que procuravam control-las nas fbricas, na priso, no exrcito, na sala de aula, no tribunal... A psicologia, inicialmente, tomou forma no como uma disciplina ou uma rea profissional, mas como uma cadeia de pretenses de conhecimento sobre pessoas, individual e coletivamente, que permitiria que elas fossem melhor administradas. Por essa razo, essa no a psicologia aplicada os vetores no foram de um conhecimento formado na academia para o campo das aplicaes, mas o contrrio. Similarmente, os vetores do desenvolvimento da psicologia no foram do normal para o anormal, mas fizeram o caminho inverso: um conhecimento da normalidade, e das normas da normalidade, derivado de um interesse na anormalidade. Por exemplo, a idia de inteligncia, que seria um foco da psicologia durante a primeira metade do sculo XX, surgiu de esforos para identificar os indivduos de reduzida capacidade mental e encaminh-los para instituies apropriadas, escolas ou colnias especiais. O mesmo pode ser dito da personalidade e de quase todos os conceitoschave da disciplina.

Como Fazer a Histria da Psicologia? Todo aluno de psicologia conhece a expresso a psicologia tem um longo passado, porm uma histria curta, como Edwin Boring assinalou de forma bem sucinta. Um longo passado sculos de reflexo sobre a vida mental humana, voltando aos gregos, estabelecem a credibilidade da disciplina. Assim, vocs que esto estudando psicologia, esto estudando uma longa e honrada tradio, de acordo com Boring. Ainda, uma histria curta, que data da adoo de metodologias empricas no sculo XIX, o que levou ao desenvolvimento de uma cincia real da mente, vida e comportamento humano. Esse , na verdade, o mito fundador da disciplina psicologia. Mas isso fundamentalmente incorreto. A psicologia como

Mentes Calculveis e Indivduos Administrveis Inicialmente, a psicologia se constituiu como uma tecnologia de individualizao, quer dizer, emergiu mais como uma cincia positiva do que como uma subcategoria da filosofia quando mudou suas responsabilidades da teoria geral da mente para um campo prtico: a criao de mentes calculveis e de indivduos administrveis. Isso ocorreu em um espao problemtico especfico, formado por demandas crescentes de que os indivduos deveriam ser administrados, ou distribudos em regimes particulares, tarefas ou tratamentos, de acordo com suas habilidades na escola, no trabalho, no exrcito, no sistema de justia. Quando Cyril Burt3 foi indicado para seu posto em 1913, Sir Robert Blair4, ento oficial chefe da educao na Inglaterra, o anunciou como o primeiro psiclogo oficial do mundo. Sua tarefa principal pode parecer estranha para ns: examinar crianas do ensino fundamental vistas como enfraquecidas mentalmente. Em seu livro de 1921, Mental and scholastic tests, Burt conta a seus leitores uma parbola:
Na histria de Rasselas, prncipe de Abyssinia, est descrito como uma vez um brbaro tolo tentou voar. Ele subiu, abriu as asas, se soltou da beirada, e logo caiu de cabea em um lago. Mas suas asas, que fa-

156

Psicologia & Sociedade; 20 (2): 155-164, 2008

lharam em sustent-lo no ar, o mantiveram flutuando quando ele atingiu a superfcie do lago. O episdio foi escrito como uma alegoria, e tem a inteno de desmentir o esteretipo de que o destino dos defeituosos em geral determinado por sua inaptido. Em uma atmosfera traioeira e estreita, em uma altitude difcil e atordoante onde homens altamente civilizados, assistidos pelo mais novo maquinrio de uma comunidade altamente civilizada, sozinhos podem viajar de maneira segura, e sozinhos devem se aventurar a altos vos, l, os mais simples, menos afortunados e inconscientes de sua debilidade, bem menos equipados, iro ao encontro de sua runa. Mas se estes encontrarem um plano denso e elstico o bastante e, ainda, mais flutuante e menos varivel, podem imaginar, embora mecanicamente, que esto se apoiando sem nenhuma ajuda. Em um ambiente ele cai, em outro ele pode flutuar. Ele est l, como dizemos, no seu elemento. (Burt, 1921, p. 172).

Cada um em seu elemento um sonho nobre, talvez relembrando um outro: de cada um de acordo com suas habilidades, para cada um de acordo com suas necessidades. A chave da tecnologia de Burt para atingir esse objetivo foi a inveno da norma - aquele pequeno e peculiar termo que condensa, em uma palavra, idias do normal, do regular, do significado estatstico, do desejvel, do saudvel... Para os psiclogos, a norma no foi derivada de nenhum conhecimento do funcionamento orgnico da mente humana, como foram as normas da medicina em relao regulamentao do corpo. As normas psicolgicas derivam das normas requeridas pelas instituies do sistema escolar, da indstria, das foras armadas e de todos os lugares. A forma psicolgica da norma emparelha esses requerimentos com as normas de variao estatstica e as leis de grandes grupos, alinhando tambm regras de desejo scio-poltico e institucional com a demanda da teoria estatstica. George Canguilhem, talvez o principal autor da epistemologia histrica, refora isso em seu estudo, The normal and the pathologic5: a prpria vida, e no o julgamento mdico, que faz do normal biolgico um conceito de valor e no de realidade estatstica. Por essa razo, Canguilherm gosta de citar Leriche: Sade vida no silncio dos rgos. Mas para a psicologia, perdovel pensar que sade era, como um dia foi, meramente vida no silncio das autoridades: isso est conectado a um projeto de normalizao sem referncia s normas do seu objeto, uma teoria patolgica sem uma teoria de normalidade. claro que uma teoria assim seria muito simples. A psicologia se forma como um hbrido entre esses projetos administrativos e projetos filosficos mais antigos. Esse foi o tema das reflexes de Canguilhem em sua palestra What is Psychology? 6, ministrada na Sorbonne, em Paris, em 1956. Ele sugeriu que a psicologia, como a Sorbonne, est posicionada entre duas rotas possveis.

Quando algum sai da Sorbonne, pode seguir em uma de duas direes. Se essa pessoa tomar o caminho que sobe a montanha, chega ao Pantheon onde os mais sbios filsofos franceses esto enterrados. Por outro lado, o caminho que desce a montanha leva delegacia de polcia. O trabalho de Burt, originalmente, era conectado a uma responsabilidade scio-poltica sobre a degenerescncia, e em particular sobre as conseqncias para a sociedade da existncia e reproduo daqueles de reduzida capacidade mental: um grupo de indivduos que, para algum sem um olho clnico, eram quase imperceptveis entre as pessoas normais, mas, na verdade, faziam parte da extensa famlia daqueles de pouca serventia para a sociedade os tuberculosos, os portadores de sfilis, os alcolatras, os doentes mentais, as prostitutas e os que no podiam trabalhar e sua proliferao excessiva poderia, em poucas geraes, colocar em risco a qualidade do restante da populao. Aqui no o lugar para falar sobre alianas eugnicas entre os psiclogos anteriores, do estudo da inteligncia e dos testes psicolgicos: essa histria bem conhecida (Rose, 1985). Os testes psicolgicos eram inicialmente requeridos e usados por aqueles que queriam encontrar a verdade sobre o problema mental. O significativo aqui no apenas a aspirao de diferenciar pessoas de acordo com suas habilidades mentais, mas a inveno de tecnologias para isso, notavelmente o teste. Phillip Ballard disse em 1920, a respeito de Alfred Binet, o inventor original do dispositivo para identificar aqueles que a reduzida capacidade mental tornaria incapazes de aprender as lies da escola regular:
A glria de Binet no ter agrupado um conjunto de testes heterogneos para a deteco de mentes deficientes, e sim ter inventado uma escala. Lembrando assim, Saul, o filho de Kish, que saiu para procurar cinzas e encontrou um reino. (Ballard, 1920).

A idia central aqui foi que a psicologia se moveu, no final do sculo XIX, da tecnologia investigativa do experimento para a tecnologia julgadora do teste. O teste um novo tipo de exame que no clnico nem pedaggico, como em exames de qualificao para universidades ou para servios pblicos; na verdade modelado para relacionar uma pontuao a um indivduo. O teste uma maneira de materializar a mente, parte de uma mudana maior na individualizao, partindo de um olhar focado no corpo para um olhar focado em um espao interior. Tentativas anteriores de mdicos para descobrir a verdade do problema mental focavam o corpo as crianas, apenas com roupas de baixo, desfilavam na frente dos mdicos, cujo olhar treinado deveria identificar o estigma do defeito no formato da face, na postura e no andar, na proporo dos membros e assim por diante. O problema daqueles de capacidade mental reduzida pare-

157

Rose, N. Psicologia como uma cincia social

cia ser que seus corpos no eram de fcil leitura. Da, a lgica do teste. A diferena no mais escrita na superfcie do corpo e, sim, em um domnio interior, e o teste psicolgico uma maneira de transformar o invisvel em visvel, calculvel e administrvel. O teste torna a diferena visvel de uma forma particular atravs de nmeros, e especificamente, na forma de um nico nmero: o resultado geral. Tais nmeros tm grande poder, e incorporam a autoridade da objetividade. A caixa-preta do resultado transforma questes de valores e avaliao em questes tcnicas sobre a construo, confiana e validao do teste. Crianas movem-se, transformam-se, tornando difcil a acumulao de informao e clculo a seu respeito. Mas o teste funciona como um mecanismo de inscrio para capturar esses comportamentos efmeros, qualidades passageiras e capacidades variveis do seres humanos, levando-os serem pensados como objetos dceis. Os resultados dos testes tabelas, grficos , como mbiles imutveis, possibilitam a estabilizao, o acmulo de informao sobre o objeto do teste. Eles permitem sua normalizao, esquematizao e deliberao no ambiente tranqilo do escritrio dos psiclogos, que pode assim se transformar no que Bruno Latour chama de centro de clculo. Decises podem ser tomadas a partir deste centro e de instrues vindas dele, possibilitando que os sujeitos sejam administrados nesse sentido distribudos em torno da variedade de papis disponveis, classes, tarefas no exrcito ou na indstria, ou encaminhadas para a escola ou hospital corretos dentro de um arquiplago de instituies. Projetos para individualizao, acesso e administrao do indivduo no sentido de suas capacidades psicolgicas espalham-se alm do intelecto em direo personalidade, e tambm para todas as prticas nas quais os indivduos deveriam ser administrados em relao s suas diferenas. A psicologia formada, assim, como uma competncia em diferenas individuais, em diferenciao individual. importante, entretanto, ser claro sobre uma coisa. As tecnologias humanas, nas quais a psicologia estava envolvida, no eram tecnologias desumanas. A psicologia ganhou seu poder na indstria, na escola, no exrcito, na priso, precisamente pela necessidade desses rgos de administrar seres humanos luz de um conhecimento de sua natureza, e, fazendo isso, ajudou a dar uma nova legitimidade autoridade: a autoridade deixou de ser arbitrria. O trabalho de F. W. Taylor e o tipo de organizao que ficou conhecida como taylorismo um exemplo, pois, apesar de s vezes ser criticado como um projeto para controlar o trabalhador como se fosse uma mquina, o apelo de Taylor racionalidade foi na verdade uma resposta explcita a uma crise de legitimidade da organizao dos Estados Unidos. Foi um processo de auto-afirmao. Cada uma dessas instituies, onde tal distribuio psicolgica era prati-

cada, se transforma um pouco em um laboratrio psicolgico, onde indivduos podem ser observados, controlados, testados em nome da eficincia da organizao. E o que pode ser observado, nesse processo, a verdadeira produo de novas identidades em potencial. Com isso, quero dizer que podemos observar uma mudana dos termos pelos quais os indivduos no somente so julgados por outros, mas tambm nos termos pelos quais eles entendem, julgam e agem sobre si mesmos. Para mim, o que est em jogo aqui no a questo psicolgica de produo de subjetividades, uma questo de alterar as maneiras pelas quais indivduos se relacionam com seu eu. Para mim, isso parece ser uma questo aberta investigao histrica uma histria das relaes que os indivduos tm consigo mesmos. A psicologia nasceu, como uma disciplina, dentro de uma variedade de projetos polticos para o controle de indivduos: teve uma vocao social desde o incio. Aqui est Burt de novo em 1927:
Como muitos avanos na cincia terica, a anexao desse novo campo [da psicologia do indivduo] pode ser vista como presso das necessidades prticas. As psicologias da educao, da indstria e da guerra, o estudo do criminoso, do deficiente e do insano, dependem para seu desenvolvimento de uma boa anlise das diferenas individuais; e a investigao dos problemas mais prticos j comeou a pagar sua dvida, fornecendo novos dados, de grande valor para a cincia me. Por fim, ns vemos o nascimento do membro mais novo na lista das cincias a psicologia do indivduo... Almeja preciso quase que matemtica, e prope nada menos do que o controle dos poderes mentais. (p. 5).

Psicologia como Cincia Social


Considera-se que a conexo entre a cultura poltica moderna e a psicologia reside em seu individualismo compartilhado, e muitos j sugeriram que esta a explicao para o forte individualismo de grande parte da psicologia nas culturas individualistas do ocidente. Foi certamente como uma cincia do indivduo que a psicologia encontrou, a princpio, um lugar em meio s tcnicas de regulamentao. Segundo a racionalidade tpica de democracias liberais de governo, noes abstratas da liberdade do indivduo so acompanhadas pela proliferao de prticas racionalizadas que procuram moldar, transformar e reformar indivduos. Assim, no era apenas a tica do individualismo, mas tambm as prticas de individualizao na priso, na fbrica, na escola e no manicmio que forneciam condies-chave para disciplinar a psicologia. A psicologia acharia seu lugar em todos esses sistemas nos quais indivduos deveriam ser administrados, no por um poder arbitrrio ou negligente, mas partindo de julgamentos que buscavam objetividade, neutralidade, e desta maneira, efetividade. Isso forneceria uma tecnologia para tornar o

158

Psicologia & Sociedade; 20 (2): 155-164, 2008

individualismo utilizvel como um conjunto de programas especficos para a regulao da existncia. Ainda assim, nesse momento individualizante, a psicologia era uma cincia social, uma cincia com vocao social, organizada em torno de objetivos sociais, como vimos em suas conexes com as idias de degenerescncia e eugenia, e sua vontade de detectar os indivduos de reduzida capacidade mental. Mas existe tambm um outro sentido pelo qual a psicologia era uma cincia social no perodo de antes e durante a Segunda Guerra Mundial e logo depois dela, a psicologia deveria direcionar-se para os processos inerentes s coletividades humanas, grandes e pequenas. Deveria procurar pens-las e conceitu-las a fim de administrar indivduos e organizaes. Nesse sentido ampliado, ento, a psicologia se transformaria em uma verdadeira cincia social. Deixem-me falar, portanto, um pouco sobre dois exemplos: a Democracia e o Grupo.

outro, conhecendo e modelando essas relaes de acordo com uma concepo de como elas funcionam alinhando o governo com a dinmica social daquilo que ser governado. Como Gordon Allport afirmou:
A primeira Guerra Mundial . . . seguida pela expanso do Comunismo, pela grande depresso dos anos 30, pela ascenso de Hitler, pelo genocdio dos judeus, por protestos raciais, pela Segunda Guerra Mundial e pela ameaa atmica, estimulou todos os ramos de cincia social. Um desafio especial caiu sobre a psicologia social. A pergunta foi lanada: Como possvel preservar os valores da liberdade e dos direitos individuais em condies de presso e regulamentao? A cincia pode ajudar a encontrar uma resposta? Essa questo desafiadora levou a uma exploso de esforos criativos que acrescentaram muito ao nosso entendimento dos fenmenos da liderana, opinio pblica, rumores, propaganda, preconceito, mudana de atitude, moral, comunicao, tomada de decises, relao entre raas e conflitos de valores. (1954, p. 2).

Democracia A psicologia social que foi escrita nos anos 30, 40 e 50 faz referncia freqente democracia. O artigo clssico de Gordon Allport sobre a histria da psicologia social moderna, na primeira edio do Handbook of Social Psychology em 1954, afirma que as razes da psicologia social moderna esto no solo distinto dos pensamentos e da civilizao do ocidente, sugerindo que a psicologia social requer a rica mistura das cincias naturais e biolgicas, a tradio de livre investigao e uma filosofia e tica da democracia. (Allport, 1954). Os estudos famosos de Lewin, Lippitt e White sobre estilos de liderana, desenvolvidos de 1938 a 1942 na Estao de Pesquisa do Bem-Estar da Criana em Iowa, procuraram demonstrar as diferenas entre grupos criados experimentalmente em uma atmosfera democrtica e outros numa atmosfera autocrtica ou de laissez-faire as diferenas encontradas foram sempre em prol da democracia (Lewin, Lippitt, & White 1939; Lippitt, 1939, 1940). George Gallup e S. F. Rae intitularam seu primeiro livro sobre a opinio pblica, publicado em 1940, de The pulse of democracy, e argumentaram que, em uma sociedade democrtica, as opinies da maioria devem ser vistas como o ltimo tribunal para assuntos polticos e sociais (Gallup & Rae, 1940, p. 15). J. A. C. Brown, em seu livro-texto publicado primeiramente em 1954 e com vrias reedies, The Social Psychology of industry7, tem muito a falar sobre democracia, concluindo que uma democracia industrial genuna pode ser baseada apenas na cooperao inteligente de grupos primrios de trabalho com administrao de mentes responsveis (Brown, 1954, p. 301). O que devemos fazer com essas referncias democracia? Elas so apenas um tanto quanto retricas? Minha resposta : no. Regular cidados democraticamente significa regr-los atravs de suas relaes com o

A psicologia social estava l para criar um vocabulrio para o entendimento desses problemas que atrapalhavam a democracia. Para avaliar as possibilidades de resolv-los de maneira democrtica. Para fornecer os meios para a criao de propostas resolutivas desses problemas, por um lado de acordo com o conhecimento racional cientfico e, por outro lado, de acordo com os valores democrticos da sociedade liberal, pluralista e individualista do ocidente. E para contribuir com as tecnologias que iriam procurar dar efeito a essas novas maneiras de governar. Allport cita Giambattista Vico na abertura da sua reviso histrica de psicologia social: O governo deve se adequar natureza dos homens governados (Vico, 1725, conforme traduo de 1848, citada por Allport, 1954, p. 1). Para a psicologia social, como para a filosofia poltica, a natureza social do homem deve ser conhecida para que ele seja adequadamente governado. A psicologia social proporciona tanto a tecnologia humana quanto a intelectual para possibilitar que o governo democrtico opere. Atitudes foram o primeiro conceito-chave. O desenvolvimento da cincia das atitudes exemplifica a maneira como problemas de governo so reformados nos termos da linguagem nascente da psicologia social, com o objetivo de faz-los mais maleveis para que sejam encontradas solues. Atitude apareceu pela primeira vez em The polish peasant (1918), de Thomas e Znaniecki: os autores argumentavam que a cincia social precisava responder desorganizao gerada pelas mudanas sociais atravs do desenvolvimento de tcnicas de controle racionais, baseadas em um conhecimento que daria base quilo que chamaram de tecnologia social, que aplicaria o conhecimento acumulado pelos cientistas sociais a situaes prticas:

159

Rose, N. Psicologia como uma cincia social

teoricamente possvel saber quais influncias sociais devem ser aplicadas a certas atitudes j existentes, com o objetivo de criar novas atitudes, e quais atitudes devem ser desenvolvidas levando em considerao certos valores sociais j existentes, com o objetivo de fazer o indivduo ou o grupo produzir novos valores sociais. No existe um nico fenmeno em toda a esfera da vida humana que o controle consciente no consiga alcanar mais cedo ou mais tarde. (1918, p. 66-67).

Por volta de 1918, atitudes se tornaram um tema chave, um espao para pensar e agir sobre os problemas das relaes de indivduos e grupos, parte da tentativa de desenvolver tecnologias para o controle consciente da conduta social humana baseado em conhecimento cientfico. Mas isto no ocorreu at 1928, quando Thurstone proclamou, orgulhoso, que atitudes podem ser controladas e inaugurou uma srie de invenes para tornar o subjetivo objetivo, o intersubjetivo calculvel, permitindo que cada indivduo fosse colocado numa escala de atitudes, podendo assim ser comparado com outros. Atitudes, para Floyd Allport, no eram anmicas: elas eram cheias de vitalidade, desejo, dio, amor e paixo. Como ele afirmou em 1935: Para a explicao do preconceito, lealdade, patriotismo, comportamento de multido, controle pela propaganda, nenhuma concepo anmica de atitude ser suficiente. A concepo de atitude seguiria junto, nas primeiras dcadas do sculo XX, com as polticas da sociedade americana, que colocaram grande f no controle de todas as reas da vida social por competentes e racionais engenheiros cientficos, administradores e gerenciadores (Miller & OLeary, 1989). A reforma progressista ameaou os ideais democrticos devido a uma administrao municipal corrupta, e a uma concentrao de poder incontvel nas mos das grandes corporaes e no setor financeiro. O conhecimento das cincias sociais era uma contribuio para tornar essas ameaas democracia administrveis, com seus apelos objetividade, racionalidade, profissionalismo e neutralidade. Isso iria reconciliar as metas da eficincia administrativa com as da democracia a autoridade seria exercida no atravs de capricho arbitrrio ou interesses parciais, mas, sim, atravs da exatido cientfica. Uma grande quantidade de espaos no mundo intersubjetivo seria mapeada atravs da noo de atitudes: atitudes de proprietrios de hotel e restaurante para com chineses, atitudes de universitrios para com negros, judeus, atitudes de empregados para com seu trabalho, chefes e muito mais. Na poca da deflagrao da Segunda Guerra Mundial, a tecnologia de atitudes foi usada para suprir a promessa de uma tecnologia social racional e de acordo com os valores da democracia pelos quais a guerra aconteceu. A idia de atitude era tambm chave para a inveno da opinio pblica sentindo o pulso da demo-

cracia, como George Gallup colocou. O pblico nem sempre foi pensado como um fator de opinio, e certamente no como uma parte que deveria ser ouvida os debates do incio do sculo XX sobre democracia, nos Estados Unidos, eram cheios de preocupaes em relao s multides, s massas e aos perigos de tais aglomeraes para a democracia. No entanto, gradualmente um argumento diferente prevaleceu: a opinio pblica era vital para a democracia, mas no deveria ser formada por suposies uniformes de polticos ou reivindicaes no representativas de grupos de presso. Como, ento, seria conhecida a verdadeira opinio do pblico? Foi nos anos 30 que se demonstrou o valor da amostra grande e sistemtica de opinies, e a cincia da pesquisa de opinio foi validada; como Floyd Allport afirmou, no artigo de abertura da primeira edio de Public Opinion Quarterly, opinio pblica no tinha nada a ver com as antigas falcias de mentes coletivas, mas era o resumo de opinies especficas de indivduos sobre assuntos ou pessoas em particular. E, para Gallup, a pesquisa de opinio pblica forneceu dupla conexo entre cidados e seus representantes a favor de uma democracia, o que era crucial. No h tempo aqui para explorar em detalhes os caminhos pelos quais a medio e a administrao da moral e da opinio se tornaram cruciais na Segunda Guerra Mundial a moral do inimigo, a moral do pas, os meios de ataque ao primeiro pelas tcnicas psicolgicas de guerra e os meios de sustento do segundo pela propaganda e coisas do gnero. Um leque de estudos, documentos e livros se seguiu, desenvolvendo teorias de propaganda, rumores e mudana de atitudes a mente do pblico havia se tornado um domnio acessvel ao conhecimento, clculo e governo de uma maneira que seria crucial para o governo das democracias nos anos do ps-guerra. Talvez se possa argumentar que isso apenas o uso de tcnicas originais para descobrir o que sempre esteve l atitudes, opinies. Eu discordaria. As cincias sociais, incluindo a psicologia e a psicologia social, na verdade criam fenmenos. Elas trazem novos domnios a serem conhecidos, registrados e administrados. E elas mudam as maneiras como os indivduos se relacionam consigo mesmos. Cidados, agora, tm atitudes, que discutem e justificam, controlam e mudam. E cidados tm opinies: ns aprendemos a ter opinio.

O Grupo Tenho tempo para mais um breve exemplo a inveno do grupo. claro, voc vai dizer, os seres humanos sempre cooperaram com outros em grupos grandes e pequenos. Mas foi nos anos 30 que o grupo foi descoberto como um campo a ser estudado, registrado, calibrado e administrado. Como eu escrevi, h quase 20 anos atrs:

160

Psicologia & Sociedade; 20 (2): 155-164, 2008

O grupo deve existir como um intermedirio entre o indivduo e a populao, deve habitar o mundo desalmado da organizao e dar, a esse mundo, sentido subjetivo na viso do empregado; isso ir suprir as necessidades sociais do atmico e fragmentado self, isolado com o aparecimento da diviso do trabalho e o declnio da comunidade, isso ir explicar problemas e poder ser mobilizado para o bem, poder provocar danos na sua forma totalitria e contentamento e eficincia na sua forma democrtica. No meio do grupo, um novo lugar foi encontrado onde a administrao, luz da capacidade psicolgica, poder chegar ao alinhamento com os valores da democracia.

O grupo foi primeiramente descoberto na fbrica a fbrica e o local de trabalho vm h tempos sendo locais-chave para a construo das subjetividades coletivas e individuais. Nos anos 30, pode-se observar uma mudana de um foco no trabalhador individual, e em sua adaptao ou no adaptao que seria higiene mental, alocao eficiente de mo-de-obra, seleo, orientao vocacional e tratamento de neuroses psicolgicas individuais para as relaes coletivas do grupo de trabalho. Os mais famosos estudos foram os de Elton Mayo, Hawthorne works of the Western Electric Company, entre 1923 e 1932. Para Mayo, o significativo no era nem as exigncias objetivas e as caractersticas do processo de trabalho nveis de luz, horas de trabalho e etc. nem mesmo as no-adaptaes e neuroses psicolgicas dos trabalhadores individualmente, mas as relaes humanas da empresa: a vida informal de grupo que ela construiu e as relaes subjetivas internas que ela comps. Produtividade, eficincia e contentamento deviam agora ser entendidos em termos das atitudes dos trabalhadores com seu trabalho, seus sentimentos de controle sobre seu ritmo e ambiente de trabalho, seu senso de coeso dentro de seu pequeno grupo, suas crenas sobre a preocupao e entendimento que os patres tinham pelo seu valor individual e seus problemas pessoais. Uma nova gama de tarefas emergiu para ser entendida pelo conhecimento e administrada dentro da fbrica. As caractersticas subjetivas da vida coletiva puderam ser conhecidas por meio de entrevistas os pesquisadores de Hawthorne realizaram umas 20.000 dessas que acabaram sendo utilizadas, no para fornecer informao objetiva, e sim para serem caminhos para a vida emocional da fbrica, permitindo que os pesquisadores interpretassem o aspecto psicolgico das reclamaes, e as enxergassem como sintomas de situaes sociais que precisavam ser entendidas e administradas para criar uma harmonia organizacional. Comunicao, aconselhamento e muitas outras eram tcnicas atravs das quais a administrao poderia criar a harmonia interna, que era a condio para uma fbrica feliz e produtiva. Interaes humanas, sentimentos e pensamentos, as relaes psicolgicas do indivduo com relao ao grupo emergiram como

um novo domnio para a administrao (Roethlisberger & Dickson, 1939). Existiram muitos outros caminhos para o descobrimento do grupo. Muzafer Sherif encontrou normas de grupo em seus estudos das relaes de grupo no experimento Robbers Cave, conduzido com os escoteiros americanos no campo de Oklahoma, e descobriu como eles poderiam ser artificialmente manipulados para criar hostilidade o grupo aparecia como um ponto de perigo em potencial. Kurt Lewin descobriu um grupo mais virtuoso em suas aplicaes experimentais da teoria de campo, e procurou mostrar que os valores da democracia poderiam ter uma base cientfica, a superioridade da democracia sobre outros modos de exercer autoridade social podendo ser demonstrada em um cenrio experimental e generalizada para a vida organizacional e para culturas como um todo. Democracia seria no apenas comprovadamente vantajosa, mas poderia tambm ser ensinada. Lewin e Bavelas descrevem um rpido retreinamento de lderes medocres transformando-os em eficientes e democrticos lderes. Isso no apenas fez os lderes de grupos ficarem mais sensveis s possibilidades da liderana, mas eles tambm sentiram nitidamente sua prpria calma e desenvoltura, depois de descobrirem que a disciplina do grupo no dependia mais da sua vigilncia constante (Bavelas & Lewin, 1942). No perodo ps-guerra, essa descoberta do grupo como um mecanismo de treinamento foi institucionalizada no National Training Laboratories in Group Development, que Lewin inaugurou em 1947. Parecia que treinar indivduos para serem lderes melhores tambm fazia com que eles se sentissem pessoas melhores, que se poderia completar algum como pessoa ao torn-lo um administrador mais eficiente e um lder mais democrtico. Este trabalho est ligado descoberta inglesa de um tipo diferente de grupo atravs do trabalho da Clnica Tavistock e do Instituto Tavistock de Relaes Humanas. Grupos haviam sido descobertos nos mtodos de tratamento nos hospitais militares por Tom Main e Maxwell Jones, mas talvez mais notavelmente por Wilfred Bion, cujas experincias em grupos se tornaram o texto fundador de uma nova maneira de induzir dinmicas de interao de grupos para a awareness8 dos participantes: experimentando as dinmicas de grupos sem lderes, e participando do processo interpretativo, eles se tornariam, ao mesmo tempo, melhores em seus trabalhos, quaisquer que fossem, e melhores entendedores de si mesmos. Os grupos sem lderes se tornaram um poderoso mtodo de treinamento em grupos grandes e pequenos de terapia, de conceituao de problemas do trabalho, de reforma da estrutura da autoridade no local de trabalho, e, com o trabalho de Eric Trist, Elliot Jacques e muitos outros, se tornaram uma maneira de tratar os assuntos de produtividade na indstria partindo da

161

Rose, N. Psicologia como uma cincia social

Tennessee Valley Authority9, nos Estados Unidos, at a Unilever10 no Reino Unido. Resumindo, os grupos estavam em todos os lugares.

A Psicologia da Empresa11
Em 1967, Dorwin Cartwright e Alvin Zander ainda podiam introduzir a terceira edio de sua descrio compreensiva de Group dynamics: Research and theory12 com uma referncia explcita democracia:
A fora da sociedade democrtica vem do efetivo funcionamento da multiplicidade de grupos que ela possui. Seu recurso mais valoroso so os grupos de pessoas encontrados em suas casas, comunidades, escolas, igrejas, negociaes, auditrios de sindicatos e em vrias filiais de governo. Agora, mais do que nunca, reconhecido que essas unidades realizaro bem suas funes se os sistemas maiores trabalharem com sucesso. (Cartwright & Zander, 1967, p. VII).

Mas talvez o apogeu do grupo j tivesse acabado. Uma nova relao estava tomando forma entre os problemas aparentes de inmeras prticas, as aspiraes do governo, a subjetividade do indivduo e a capacidade da psicologia. Essa nova relao melhor resumida em uma palavra Empresa. Atravs dos anos 80, a pressuposio do indivduo autnomo que escolheu o self livre como valor, base ideal e objetiva serviu para legitimar a atividade poltica, e preencheu as mentalidades polticas do Reino Unido, dos Estados Unidos e at de alguns pases da velha Europa, assim como aqueles radicais que eram chamados de Europa do Leste. Quase todos os problemas do passado foram reduzidos falta de iniciativas. A idia de empresa liga uma sedutora tica do self, uma poderosa crtica realidade institucional e poltica contempornea e um design aparentemente coerente para a transformao radical de planejamentos sociais contemporneos. Nos textos de neoliberais como Hayek e Friedman, o bemestar das existncias poltica e social deve ser garantido no por planos centralizados e burocracia, mas atravs de atividades empreendedoras e escolhas de entidades autnomas negcios, organizaes, pessoas , cada uma se esforando para maximizar sua prpria vantagem e promovendo novos projetos por meio de clculos de estratgias e tticas individuais, locais, custos e benefcios (Friedman, 1982; Hayek, 1976). As formas de razo poltica que almejavam uma cultura de empreendimentos estavam de acordo com um valor poltico vital para certa imagem do self. A imagem de um self empreendedor era potente porque no era uma posse de direito, mas ressoava com pressupostos amplamente presentes em se tratando do self, incorporado em nossa linguagem para fazer pessoas

pensantes, e em nossos ideais de como as pessoas devem ser. Empresa no apenas designa um tipo de organizao apropriado para organizaes industriais e de negcios unidades individuais competindo com outras no mercado , mas tambm fornece uma imagem original para um modelo de atividade a ser encorajado em locais que tinham anteriormente operado de acordo com lgicas bem diferentes: a escola, a universidade, o hospital, o consultrio do GP13, os vrios exrcitos da guerra social, at mesmo a famlia. Os problemas em cada domnio eram problematizados em termos da falta de empreendimento que habitava aquelas entidades: isso era o exemplo mximo de suas fraquezas e de suas falhas. Elas deveriam ser reconstrudas, promovendo-se e utilizando-se as capacidades de iniciativa de cada uma, encorajando-as a se conduzirem com ousadia e vigor, a usarem o clculo para sua prpria vantagem, para gui-las rigorosamente e a aceitar riscos na busca dos objetivos. A empresa ganhou dos especialistas em vida organizacional uma forma tecnolgica, construindo as relaes humanas, atravs da arquitetura, da carga horria, dos sistemas de superviso, dos esquemas de pagamento, dos currculos e coisas do gnero, para alcanar a economia, eficincia, excelncia e competitividade. Prticas reguladoras foram transformadas para incorporar a pressuposio do self empreendedor, esforando-se por satisfao, excelncia e conquistas. Por essa razo, o vocabulrio da empresa liga a retrica da poltica e de programas reguladores s capacidades de controle do self dos prprios sujeitos. A empresa forjou um novo link entre as maneiras pelas quais somos governados por outros e as maneiras pelas quais devemos nos governar. Designou uma coleo de regras para a conduo da existncia cotidiana de uma pessoa: energia, iniciativa, ambio, clculo e responsabilidade pessoal. O self empreendedor faria de sua vida um empreendimento, projetaria um futuro e procuraria adequar-se na inteno de se tornar aquilo que desejasse. Empresa designa uma forma de regular que intrinsecamente tica: um bom governo aquele baseado nas maneiras pelas quais as pessoas se governam. O self para aspirar autonomia, para esforar-se para alcanar satisfao pessoal em sua vida na terra, para interpretar sua realidade e destino como uma questo de responsabilidade individual, enfim, encontrar significado na existncia moldando sua vida atravs de escolhas. Essas maneiras de se pensar sobre selves, e de julg-los, estavam ligadas a certas maneiras de agir sobre selves. A orientao dos selves no era mais dependente da autoridade da religio ou moralidade tradicional; estava alocada a especialistas da subjetividade que transfiguraram questes existenciais sobre o propsito da vida e o significado do sofrimento em questes tcnicas, em maneiras mais efetivas de se administrar o mal-

162

Psicologia & Sociedade; 20 (2): 155-164, 2008

funcionamento e melhorar a qualidade de vida. No governo do self empreendedor, atravs das duas ltimas dcadas do sculo XX, em casa e no trabalho, em universidades e em shoppings, no escritrio de trabalho e no complexo mdico, a psicologia sua linguagem, suas explicaes, seus julgamentos, suas competncias mais uma vez provou seu valor.

neurobiologia como a principal maneira de se entender a conduta humana e os fatores que a influenciam, uma coisa certa para tomar o lugar que foi aberto nos nossos sistemas de governo, nossas prticas de regulao e nossos regimes ticos, a neurobiologia tambm ter que se tornar uma cincia social.

Notas Concluso: Ainda o Sculo Psi?


O tipo de anlise que sugeri no uma crtica psicologia no minha inteno dizer que corrupta, que serve ao poder ou que parte de estratgias de dominao e explorao. Tambm no quero substituir uma psicologia por outra, mais verdadeira, mais humana, ou mais cientfica. Eu meramente apontei as relaes recprocas entre essas maneiras de nos entendermos conceitualmente, nos administrarmos na prtica, e trabalharmos sobre ns mesmos eticamente. Conforme entramos no sculo XXI, relevante perguntar se o novo sculo ainda ser o sculo da psicologia o sculo psi. Sugeri em outro texto que o self psicolgico profundo, inventado durante o sculo XX o interior profundo que habita cada um de ns, o depsito da histria de nossas vidas, o assento dos nossos desejos, o local de nossos prazeres e frustraes, o alvo do conhecimento, inveno, administrao e terapia, a base de nossa tica que este espao profundo est se achatando. Novas e diretas relaes esto sendo estabelecidas entre nossos pensamentos, sentimentos e desejos, nossa normalidade e nossa patologia e nossos crebros, este visto como um rgo de carne a ser anatomizado e entendido em nvel molecular. O corpo biolgico agora crescentemente tido como o assento de nossos problemas e o alvo de trabalhos ticos de melhoria do indivduo. Na viso de alguns, ao menos, ns ultrapassamos o dualismo cartesiano em cima do qual a psicologia se apoiava mente apenas o que o crebro faz. Das novas tecnologias de imagem estudos de tomografias cerebrais de neurnios, in vitro e in vivo , aos avanos na psiquiatria biolgica, neuroqumica e genoma, o crebro vem sendo recriado como o depsito de tudo o que antes estava alocado na mente. Podemos antecipar o enfraquecimento da psicologia ou pelo menos sua transformao? Talvez a psicologia superficial das terapias cognitivas comportamentais fornea um modelo para se pensar o novo self que emerge junto com o que alguns se referem como brainhood14, ou subjetividade cerebral, e o que nomeei como individualidade somtica e o nascimento do self neuroqumico. Ou ento o self psicolgico vai se provar mais durvel, e de alguma maneira necessrio num perodo de intensificao do desejo e da administrao de influncias. muito cedo para dizer. Mas, se a psicologia for substituda pela
1. Traduo da palestra: Rose, N. (2007). Psychology as Social Science (E. R. P. Martins, Trad., A. M. Jac-Vilela & A. A. do Esprito Santo, Review). Paper presented at the Psychology as a Social Science Public Lecture Series 2006/7, Essex, UK. Retrieved December 12, 2007, from http:// www.psych.lse.ac.uk/socialpsychology/events/200607/other/ documents/NikRose_05_02_07.pdf 2. A palavra distress tem vrios significados: distress na medicina, por exemplo, um estresse causado por eventos adversos. Neste caso, um tipo de sofrimento. (Nota do Tradutor) 3. Cyril Lodowic Burt (1883-1971) educador ingls conhecido por seus estudos sobre o efeito da hereditariedade na inteligncia. (Nota do Tradutor) 4. Robert Blair (1859-1935) educador cuja maior contribuio para educao foi enquanto Oficial de Educao no London County Council (LCC), posto que manteve de 1904 at sua aposentadoria em 1924. (Nota do Tradutor) 5. Edio Brasileira: (1978). O normal e o patolgico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitria. (Nota do Tradutor) 6. Edio Brasileira: (1972). O que Psicologia? In Tempo Brasileiro (pp. 30-31). (Nota do Tradutor) 7. Edio Brasileira: (1972). A Psicologia Social da indstria: Relaes humanas na fbrica. So Paulo, SP: Atlas. (Original publicado em 1976). (Nota do Tradutor) 8. Awareness uma reao perceptiva e cognitiva humana ou animal a um evento ou condio. Awareness no necessariamente significa entendimento, apenas uma habilidade de ser consciente, sentir ou perceber. (Nota do Tradutor) 9. Tennessee Valley Authority (TVA) uma corporao federal nos EUA criada para prover navegao, controle de enchentes, eletricidade, manufatura de fertilizantes e desenvolvimento econmico no Vale do Tennessee uma regio bastante afetada pela Grande Depresso. (Nota do Tradutor) 10. Unilever uma multinacional anglo-neerlandesa lder em vendas de bens de consumo de produtos alimentcios, de higiene e de limpeza. (Nota do Tradutor) 11. Enterprise pode tambm ser traduzido como iniciativa ou empreendimento. (Nota do Tradutor) 12. Edio Brasileira: (1961). Dinmica de grupo: Pesquisa e teoria. So Paulo, SP: Herder. (Nota do Tradutor) 13. GP (General Practitioner) uma especialidade mdica caracterizada pela ateno integral sade e por levar em considerao a insero do paciente na famlia e na comunidade. No Brasil, foi reconhecida pelo Ministrio da Educao, por intermdio da Comisso Nacional de Residncia Mdica em 1981, com o nome de Medicina Geral e Comunitria. (Nota do Tradutor) 14. Uma traduo para brainhood seria cerebralidade. (Nota do Tradutor)

163

Rose, N. Psicologia como uma cincia social Rose, N. Psicologia como uma cincia social

Referncias
Este texto uma palestra e, por esta razo, no possui uma bibliografia formal. Referncias completas a todos os textos citados, no entanto, podem ser encontradas nesses livros do autor. Rose, N. (1985). The psychological complex. London: Routledge. Rose, N. (1996). Inventing ourselves. Cambridge, MA: Cambridge University Press. Rose, N. (1999). Governing the soul: The shaping of the private self (2nd. ed.). London: Free Associations. (Original publicado em 1989)

Nikolas Rose is the Martin White Professor of Sociology, and the Director of the London School of Economics and Political Science (LSEs) BIOS Centre for the Study of Bioscience, Biomedicine, Biotechnology and Society- University of London, United Kingdom. [email protected]

Traduo da Palestra: Rose, N. (2007). Psychology as Social Science. Paper presented at the Psychology as a Social Science Public Lecture Series 2006/7, Essex, UK. Psicologia como uma Cincia Social Traduo: Emerson R. P. Martins Reviso: Ana Maria Jac-Vilela & Adriana A. do Esprito Santo Recebido: 14/05/2008 Aceite final: 20/06/2008

164

Você também pode gostar