Garção - Sonetos
Garção - Sonetos
Garção - Sonetos
de Correia Garo
NDICE: Afortunado Eneias, que saste Amigo, falo srio, saudosos Amigo Frei Joaquim, assim te eu veja Amigo Padre Antnio, a Fonte Santa Amor nos olhos da formosa Clara Ante meus olhos anda Amor voando Ao brilhante poder do santo fogo Ao pelado Eliseu a rapazia Ao som da Fonte Santa que corria Ao som dos duros ferros que arrastava Apareceu o Padre Antnio; estava A porto salvo com feliz carreira Batendo Amor as asas cintilantes Cantar Marlia ouvi to docemente Cheios de espessa nvoa os horizontes Com a mo na rabia e coaguilhada Comigo minha Me brincando um dia Com soquete, lanada e bota fogo Contigo, Ldia, moram os Amores De beijos um cestinho Amor enchia Depois de atar o pobre barco, Algido De proceloso mar vejo cingida De teus celestes olhos namorado Doutor Henriques, o Garo doente Doze vezes o Sol com seus fulgores Em magnfica cena a fantasia Era alta a noite, a lua prateada Espargindo dourados resplendores Esprito gentil do Esposo amado Faze versos, meu Tirse; a linda Clara Foi-se embora o Delfim! Como ficamos Inda a vermelha Aurora sonolenta Inda que abrindo a boca o Mar irado Infeliz onde estou? So estas brenhas J de trs do casal vem ressurgindo Lacaios, mulher, filhos e criadas Lutando com mil sustos, mil pesares Msero gandaieiro do Parnaso No cobre vastos campos o meu gado No louves, caro Tirse, a rouca lira
No se paga de versos a saudade No te direi que as Graas, que os Amores Na solitria praia a ruiva areia Numa gal mourisca aferrolhado Numa sonora roda que, girando O louro ch no bule fumegando Ontem se foi daqui Nise formosa Os antigos poetas fabulando Pinto fidalgo, embaixador da Mancha Pisando mil estrelas radiantes Pr Cerastes e Grgonas lanada Por entre crespas serras de enrolado Quais as portas de Jano aferrolhadas Qual a mansa novilha que, inocente Qual saudosa me que da ribeira Que dele o cabeo do P. Antnio? Quem de meus versos a lio procura Quem vem! l? Quem nos honra? Este estudante Quem viu o P. Antnio? Um clrigo alvo Salve formoso Dia, alegre Dia Se, Beliza gentil, pudera crer-te Se como tu Amor mandas e queres Se eu soubera, Marlia, que vivia Sujos Brontes esto arregaados Tambm me lembra a mim que j tiveste Trs vezes vi, Marlia, de alva lua Tu s Dirceia, filha do Tirreno Vo de valor, vo de fortuna armados Vejo na vasta cena do futuro
I Quem de meus versos a lio procura Os farpes nunca viu de Amor insano, Nem sabe quanto custa um vil engano Traado pela mo da Formosura. Se o peito no tiver de rocha dura Fuja de ouvir contar tamanho dano, Que a desabrida voz do Desengano O mais firme semblante desfigura. Olhe, que h-de chorar, vendo patente Em to funesta e lagrimosa cena O cadafalso infame e sanguinoso. Ver levado morte um inocente, E condenado a vergonhosa pena O mais fiel amor, mais generoso.
II Senhora D. Maria Joaquina de Gusmo e Vasconcelos Lutando com mil sustos, mil pesares, Com desprezos, enganos e rigores, A teu rosto gentil, olhos traidores, Templos lhe consagrei, ergui-lhe altares. Rociadas de lgrimas a mares Degolavam as vtimas Amores: Ara cruel! Suspiros, mgoas, dores Lanava em denso fumo aos mansos ares. Chegou, Marlia, de mudar-te o dia; Teias, secure, pira, vasos, fogo, Tudo rompeste, tudo aos ps pisaste. Triunfou, triunfou a tirania, Mas apesar do altivo desafogo Ilesa a f, ileso o amor deixaste.
III mesma Senhora Em magnfica cena a fantasia, Entre festes de estrelas radiantes, Teus anglicos olhos triunfantes, Gentil Marlia, me mostrou um dia. O sol de teus cabelos se esparzia Por colunas e frisos rutilantes; Aos pedestais atados, mil amantes Honesto riso suspirar fazia. Movendo longas asas brandamente, Voavam Esperanas e Desejos, Coas Graas abraadas, cos Amores; Mas retinindo um silvo, de repente, A cortina caiu: males sobejos! S mgoas vi depois, s vi temores.
IV mesma Senhora Os antigos Poetas fabulando Inspirados por Deuses se fingiram, Com o Olimpo sonharam e mentiram, A falsos Numes torpes aras dando. Eneias pio, ao Bratro levando, Ver Elisa outra vez lhe permitiram; E umas sombras, que vidas o viram, Memoraram o caso miserando. Para honrar de seu canto a melodia, Procuraram desta arte engrandec-la E quase foram tidos por divinos: Eu mais fama darei Poesia, Se um instante sonhar, Marlia bela, Que so dos olhos teus meus versos dinos.
V mesma Senhora Cantar Marlia ouvi to docemente, Que o corao, prostrados os sentidos, Imaginou que at pelos ouvidos Seus olhos o assaltavam de repente. Entrava a doce voz to brandamente, Quais entram na alma os olhos seus, movidos Com formoso desdm, quando rendidos Pisa desejos mil tiranamente. O poder milagroso da harmonia, Que no peito em triunfo campeava, Na mo por palma os olhos seus trazia. Eu, que ao carro fatal atado andava, Se era v-la, ou ouvi-la no sabia: Sei que os novos grilhes no estranhava.
VI mesma Senhora Se eu soubera, Marlia, que vivia O doce Amor nos olhos teus formosos, Em meus sublimes versos numerosos O dia de teus anos cantaria. Qual brando Orfeu coa fora da harmonia, Dos ngremes outeiros pedragosos, As altas faias, lamos frondosos Para ouvir-me cantar desprenderia. No cuides que vs fbulas invento, Se vendo os olhos teus, teu rosto amado, Do peito sinto o corao fugir-me. Antes, se no me engana o pensamento, Farei que o Mundo todo namorado, Qual fiquei de te ver, fique de ouvir-me.
VII Cheios de espessa nvoa os horizontes, Espantosas voragens vm saindo! Foi-se o Sol entre nuvens encobrindo, Voltando para o mar os quatro Etontes. Caiu a grossa chuva pelos montes, Os incautos pastores aturdindo; E engrossados os rios vo cobrindo Com embate feroz as curvas pontes. Com medonho estampido, pavorosos, Os longos ecos dos troves soando, A rezar nos pusemos temerosos. Parou a chuva; correm sussurrando Os torcidos regatos vagarosos; No me atrevo a sair, fico jogando.
VIII Se, Beliza gentil, pudera crer-te Exposto a todo o mal, todo o tormento, Esperara, voando o pensamento, Com suspiros e lgrimas mover-te. Ousado cometera, enfim, render-te Sem a pena temer do atrevimento, Pois, para ter desculpa o meu intento, Bastava ser a causa s querer-te. Mas vivo to cortado de desgosto, De desprezos, traies e tiranias, Que sonho cuido ser quanto desejo. E nem luz, de teu sereno. rosto, Com que meus tristes olhos alumias... Posso crer que te vejo, se te vejo.
IX Ao som da Fonte Santa que corria, Na alva borda do tanque debruado, De cansados desejos j cansado, O triste Coridon adormecia: Em doce sonho imaginando via De Beliza gentil o rosto amado, Que na trmula veia retratado Dos olhos cobiosos lhe fugia. Os torpes braos sem cessar movendo, Em vo aperta a lmpida corrente, Em vo lhe est com lgrimas dizendo: Se, folgas de que morra um inocente, Porque foges de mim, Ninfa, sabendo Que Amor me mata quando ests presente?
X Qual a mansa novilha que, inocente, Pelas pontas de louros enramada, A duro sacrifcio vai puxada Sem temer a secure reluzente, S conhece que morre quando sente O frio gume na cerviz cravada, Ento, mas tarde j, desenganada, Ao Cu se queixa da malvada gente! Tais, Beliza cruel, a teus ouvidos Voam meus rudes, inocentes versos, Sem merecer desprezos, nem rigores; Quando os virem, porm, ensurdecidos, Quando forem pisados e dispersos, Debalde espalharo tristes clamores.
XI Senhora D. Maria Caetana de Sousa Seyao Amor, que mil ciladas me traava L de trs de uma verde gelosia, Com uns pequenos olhos me feria Com que os sentidos todos me assaltava. Mal retiniu a frecha, que voava, J noto o pobre corao sentia; E o sangue que das veias me corria Com lgrimas ardentes misturava. Em vo fugir procuro, em vo desejo Arrancar da ferida os passadores; Cravados dentro na alma me ficaram. E desde ento que sempre os olhos vejo, Esses olhos pequenos e traidores, Que, para me matar, me no mataram.
XII Senhora D. Elena Filipa Xavier Navarro. Contigo, Ldia, moram os Amores, Moram as Graas, Ldia, na verdade, Que no reino de Amor a liberdade Sempre viveu sujeita a mil temores. De teus formosos olhos vencedores Amor as armas tem na claridade; Como h-de voar livre uma vontade Por entre aljavas, arcos, passadores? Ningum solto se v, se chega a ver-te; Por mais livre que traga o pensamento, H-de amar-te, servir-te e obedecer-te. Negar o cativeiro no intento, Pois, inda que quisera no querer-te, Nunca livre me vira, nunca isento.
XIII Espargindo dourados resplendores De teus anos, anglica Maria, Nasce o ditoso, o suspirado dia, Dia das Graas, dia dos Amores. Juncada a tenra de orvalhadas flores Em sinal de prazer e de alegria, Das frautas alternando a melodia, Travam coreias Ninfas e Pastores. Pelas cncavas fragas retinindo O brando som de versos sonorosos Teu nome esto os montes repetindo. E os Stiros campestres, cobiosos De ver os olhos teus, teu gesto lindo, Se penduram dos lamos frondosos.
XIV Amigo Frei Joaquim, assim te eu veja Vigrio de Pond ou Taprobana, Assim voltes . barra tagitana, Que pana seu cachopo te deseja; Assim permita o Cu, assim proveja Que, farto de charo e porolana, Tragas veste, calo de linha ousana, Por solidu na tola uma bandeja; Assim, naire montado num camelo Arrastando as gualdrapas pela rua, Passeies por Lisboa a passapelo; Assim digas, assim, por vida tua, A quem sabes que adoro com disvelo Que esta alma, dantes minha, agora sua.
XV Aos Anos do Coronel de Artilharia Frederico Weinholtz Com soquete, lanada e bota-fogo Armado vi Amor; tinha assestados Em plataforma cem canhes dourados, Com que ao Mundo fazia um vivo fogo. No servio cruel, sem desafogo, Ferviam seus algeros soldados, As balas eram olhos magoados, O estridor das peas vivo rogo. Eu, que o golpe temi de tantos danos: Que isto, lhes bradei, moos traidores? Sorrindo me respondem os tiranos: Weinholtz, que ao gesto lindo, que aos ardores De Flis se rendeu, hoje faz anos; To bom dia festejam os Amores.
XVI O louro ch no bule fumegando De Mandarins e Brmenes cercado; Brilhante acar em torres cortado; O leite na caneca branquejando; Vermelhas brasas alvo po tostando; Ruiva manteiga em prato mui lavado; O gado feminino rebanhado, E o pisco Ganimedes apalpando: A ponto a mesa est de enxaropar-nos. S falta que tu queiras, meu Sarmento, Com teus discretos ditos alegrar-nos. Se vens, ou caia chuva, ou brame o vento, No pode a longa noite enfastiar-nos, Antes tudo ser contentamento.
XVII Depois de atar o pobre banco, Algido, Algido pescador do Tejo undoso, Enquanto o bravo Noto proceloso Revolve as negras ondas insofrido, Entre limosas lajens recolhido, De Dinamene o nome saudoso Na lisa bia de um chinchorro algoso, Suspirando, entalhou co anzol torcido; Depois trs vezes o beijou, dizendo: Quais serenam teus olhos meus pesares, Teu nome o mar serene . E ao mar o lana. Sbito o cu azul se ficou vendo: Desfaz-se a branca escuma pelos mares; Adormecem os ventos em bonana.
XVIII Vejo na vasta cena do futuro Do trgico Destino a face acesa, E de Espectros cobrir a redondeza O nebuloso cu, o plo escuro. Rasgar-me o peito e corao figuro Da torpe Inveja a brbara fereza. Da fome crua, esqulida pobreza Em vo fugir desejo, em vo procuro. Nada vale constncia e sofrimento; Monstros feros, Cerastes assanhando, Pacincia e valor pem a tormento. O que mais , que a vida prolongando, Se ceva e nutre o meu entendimento Do espectculo feio e miserando.
XIX Numa sonora roda que, girando, Desmancha de seus raios a figura, Com delicada mo de neve pura A linda Natarea vi fiando. O linho humedecer de quando em quando Coa doce boca de rubim procura; Mas Amor, que ciladas aventura, Em torno ao louro fio anda voando. Pesados sobre as asas meus Desejos O capito ousado vo seguindo 'T que a molhar o fio se inclinasse. Bradou Amor; roubaram-lhe mil beijos. V o triste os ladres ir j fugindo, E pede-me que o furto lhe entregasse.
XX Ao brilhante poder do santo fogo De teus formosos olhos vencedores, Que do suave Tirse so senhores, Se acolhe, humilde, meu humilde rogo. Que ampares, gentil Clori, peo e rogo, Se podem comover-te meus clamores, A quem chora da Sorte os desfavores Sem que em lgrimas ache desafogo. O generoso corao inclina Do teu e nosso Tirse a que se doa Da mofina e misrrima pobreza; E, qual Tirse na ctara divina Teu lindo rosto anglico apregoa, Cantarei de tua alma a gentileza.
XXI Ao Senhor Teotnio Gomes de Carvalho, Scio da Arcdia Ante meus olhos anda Amor voando, No cruentos virotes espargindo, Mas triste e magoado o rosto lindo Lgrimas cristalinas derramando. No ousado e soberbo, humilde e brando, Esmola pede a tenra mo abrindo: Se lhe digo que espere, alegre e rindo, Me vai mil esperanas amostrando. Meto a mo na algibeira, acho s versos. De versos, me diz ele, quem se veste? Quem mata a crua fome com talentos? Bem sei que os Fados tens achado adversos; Mas pede a Teotnio que te empreste Um dobro de seis mil e quatrocentos.
XXII Aos Anos do Senhor Teotnio Gomes de Carvalho Salve formoso Dia, alegre Dia Que os olhos viste abrir a Tirse amado! Sempre sejas feliz, abenoado, Cheio de glria, cheio de alegria. A luz que tuas horas alumia Mil vezes torne ao Tejo prateado; E o roxo Sol no carro seu dourado, Atropele os Frises da Noite fria, Formoso, alegre Dia, pois nos deste Um limpo corao, amparo, abrigo Da espantosa, misrrima pobreza, Que ddiva do Cu no nos trouxeste! Ah! que um amigo, e na desgraa amigo, No o pode fazer a Natureza.
XXIII Aos Anos do mesmo Senhor No te direi que as Graas, que os Amores Com suave prazer, doce alegria, Salvando, caro Tirse, o teu bom dia, Grinaldas tecem de mimosas flores. No te direi que as ninfas, que os pastores, Atroando a fragosa serrania Com singela, campestre melodia, Cantam os anos teus, os teus louvores. Com vozes mais sonoras e pungentes, Na choa esto de Coridon cantando A triste me, os filhos inocentes: No ao som de ureas liras modulando, Mas com devotas lgrimas ardentes Pela vida de Tirse ao Cu clamando.
XXIV Ao mesmo Senhor No louves, caro Tirse, a rouca lira Do rude Coridon, triste forado, Que toste da gal aferrolhado, Se deseja cantar, chora e suspira. O lasso pensamento nunca tira Do duro remo, do grilho pesado: Se se lembra do seu antigo estado, Atnito e frentico delira. O mar a cada instante lhe apresenta Trgicas cenas de futuras mgoas, Mergulhando entre as ondas a Esperana: E s tu, qual Santelmo na tormenta Sereno torna o furor das guas, Lhe ds alegres mostras de bonana.
XXV Cor. Faze versos, meu Tirse; a linda Clara Teus versos quer ouvir, teu doce canto. Tir. Mas que versos farei, que possam tanto Que branda torne minha sorte avara? Cor. A luz dos olhos seus formosa e clara Foi quem na alma te deu fatal quebranto. Tir. So o doce veneno, so o encanto Com que Amor as cadeias me prepara. Cor. Teus ais magoados, teus fiis ardores Podero abrandar tanta dureza: Suspira, que bem ouve os teus clamores. Tir. Se suspiros abrandam a beleza, Brandos espero ver, cheios de amores, Os olhos em que vive esta alma presa.
XXVI Ao P. Francisco Jos Freire, mandando-lhe pedir tabaco espanhol Quais as portas de Jano aferrolhadas Onde presa mugia a Guerra dura, O entupido nariz o embate atura Do teimoso vaivm das ms pitadas. As pretas sobrancelhas carregadas, Com torvo gesto, feia catadura, Sorvo e torno a sorver; e a mo j fura, Em vez de abrir, as ventas desfloradas. Debalde o marrafo empurro e meto; Alojado na brecha o mormo grosso, Com um rodeiro malho atocha o taco. O remdio ser corno ou espeto, Se me no mandas j, por esse moo, Do macio espanhol louro tabaco.
XXVII Numa gal mourisca aferrolhado, Ao som do rouco vento que zunia, Sobre o remo cruzando as mos, dormia O lasso Coridon, pobre forado. Em agradveis sonhos engolfado, Cuidava o triste, que o grilho rompia, E que entre as ondas Llia branda via Talhar co branco peito o mar salgado. De v-la e de abra-la cobioso Estremeceu, tentando levantar-se, E os fusis da cadeia retiniram: Acordou ao motim, e pesaroso, Querendo rude chusma lamentar-se, S mil suspiros, s mil ais lhe ouviram.
XXVIII calva do Padre Antnio Delfim, amigo do Autor Era alta a noite, a lua prateada J no sereno cu resplandecia, E a corrente do Tejo parecia, De ferventes estrelas marchetada. Ento Candia bela, destoucada, Descalo o lindo p, filtros urdia, Em torno de uma loisa que se abria, De medonhos Espectros rodeada. Regougavam no cume dos outeiros Esfaimadas raposas; na floresta Lhe respondiam mochos agoureiros. Brama Candia, e aos lmures ligeiros Unhar mandou do bom Delfim na testa De finado cabelo alguns milheiros.
XXIX Ao Padre Delfim Foi-se embora o Delfim! Como ficamos? Ah tirano Delfim, que nos deixaste! Contigo o prazer nosso nos levaste, Por ti aflitos sem cessar chamamos. Em vo cansadas lgrimas choramos: Desta pobre choupana te enfadaste? Depois que a nossos olhos te negaste, Nem comemos, nem rimos, nem danamos. Escura nos parece a luz do dia! Da triste noite os fnebres horrores Inda fazem maior nossa agonia! Tudo se nos mudou em dissabores! gua fervendo para ns fria, O ch de trs mil ris, ch de dores.
XXX calva do mesmo Ao pelado Eliseu a rapazia (Enxame de formigas inquietas) Com apupos batendo-lhe palmetas: Ergue-te, calvo - em chusma lhe dizia. O pobre com a capa se cobria; E deitando a correr, as sapatetas No calcanhar tangiam castanhetas, Cujo som pelas ruas retinia. Assim, creca Eliseu, Delfim Antnio, Fugiste de entre ns a passapelo? Parece que foi cousa do Demnio! De cada vez te falta mais cabelo. Clrigo calvo Clrigo bolnio; Mas ainda assim, tomramos ns v-lo.
XXXI Ao Padre Delfim No se paga de versos a saudade, Nem de relva se farta o manso gado; O campo que do gelo foi crestado, No torna a rebentar coa tempestade. Se queres que te creiam, se verdade Que este Crio te deve algum cuidado, No estejas em casa encoquinhado: Foge, foge da msera Cidade. Estes campos te esperam com mil flores; A Fonte Santa seus cristais desata; Sem ti o nosso pranto se no seca. Desprezas o agasalho de pastores? Pois se de aparecer aqui no trata, Fazemos-lhe sequestro na rebeca.
XXXII Ao fogo de um monte de tojo em Alcntara, aludindo calva do Padre Delfim Por entre crespas serras de enrolado, Negro fumo, o claro se despargia De um incndio voraz, que vista ardia Do dono da fogueira descorado. Soavam crebros golpes do machado Com que a mestrana intrpida batia; A pesada calceta retinia: Estava imenso povo embasbacado. Achicavam as bombas sequiosas; Marcha em fileiras a guerreira gente: Nunca no cu se viu lua to alva! Co reflexo das chamas luminosas Brilha do Tejo a tmida corrente Qual brilha do Delfim ao sol a calva.
XXXIII Ao Padre Delfim Quem viu o P. Antnio? Um clrigo alvo, Olhos azuis, as faces mui rosadas, Castanhas as melenas estiradas, E na brunida testa um pouco calvo? Quem mo trouxer aqui a so e salvo, Certo, no perder suas passadas. Na verdade, que h horas minguadas! E deixei-o fugir? Sou um papalvo! Vai tu, Manuel, pergunta a toda a gente Se conhecem um padre rabugento Que gosta de viver alegremente? Anda, rapaz, ligeiro como um vento, Vai pregar um escrito a So Vicente, E pe outro na rua de So Bento.
XXXIV calva do mesmo Com a mo na rabia e coaguilhada, O colono vilo, os bois picando, Abre o comprido rego, a terra arando Que quer de louro trigo semeada. Depois de grossas chuvas orvalhada, Rebenta, a verde cana levantando; E, no quente vero, do vento brando Sussurra levemente meneada. Ento os encalmados segadores Lanam por terra os esquadres viosos; Da carnagem cruel nenhum se salva: Assim andam Demnios malfeitores Ceifando nas cabeas de tinhosos, Assim Delfim a tua se fez calva.
XXXV Ao Padre Delfim Manuel Apareceu o Padre Antnio; estava Escondido num covo de galinhas; Para caber meteu-se de gatinhas, E nem que pinto fora assim piava. Eu. Quem? O Padre Antnio, que tocava Diversos minuetes e modinhas, Cuja calva em funes de Ladainhas Entre cinzentas croas alvejava? M.el Esse mesmo. Eu. Quem fez to bom achado? M.el Certo atravessador que, mui contente, Entre capes o tinha pendurado; Mas viu, que lhe dizia toda a gente: Como est manso pelos ps atado! Se o soltarem, vai dar a So Vicente.
XXXVI Ao Padre Delfim Tambm me lembra a mim que j tiveste Mais cabelo na calva luzidia; E me lembro tambm de que algum dia De vir conosco estar gosto fizeste; Nem me esqueo de quando nos tangeste (Por sinal que cigarra parecia) A rebeca, que a todos aturdia, At que coitadinho endoideceste. Desgraado Delfim! Eras bom homem. O mofino do moo deu-te olhado, Foi o mesmo que ver-te lobisomem. Agora andas cumprindo com teu fado: S gostas de comer o que eles comem, Depois de digerido e transmutado.
XXXVII calva do Padre Delfim Por Cerastes e Grgonas lanada, Do mirrado Cassinni a sombra fria Passa do lago Averno a gritaria, Sobre as asas da Noite reclinada. Das venerveis Densas avexada Teme no rompa cedo o claro dia; E acossada dos ces freme, assovia, Tremendo a terra toda de assustada. Silvando vaga assim de rua em rua, E ao som medonho da infernal calceta Sbito quebra o sono mais profundo: Vem buscar do Delfim a calva nua Para traar o giro de um cometa Que h-de crestar a grenha a todo Mundo.
XXXVIII Ao Padre Delfim Inda a vermelha Aurora sonolenta, Os olhos esfregando, mal abria A dourada Manh, e a luz do dia No Tejo se encostava macilenta, Das nuvens o teatro representa ris formosa, que fugir se via Do sossegado mar da Trafaria, Triste sinal da prxima tormenta, Quando trs, quatro, seis, e oito vezes O inquieto Delfim por mim chamava, Os lombos despegando-me do leito. Falou, tossiu, tocou, e em tais revezes, Quando cuidei que sossegado estava, Fez-me os versos fazer que tenho feito.
XXXIX Ao Padre Delfim Qual saudosa me que da ribeira Bradando aflita, em lgrimas banhada, Co amado filho, de quem era amada, V da praia fugir a nau ligeira, Tal nossa saudade verdadeira, De te no ver aqui desesperada, Sente que da aflio a alma cansada Est chegada hora derradeira! Tristes, mudos, aflitos e chorosos, Uns para os outros nem sequer olhamos: Que longos so os dias invernosos! E se s vezes as trombas levantamos, Pelo Padre Delfim, dele saudosos, Uns aos outros a medo perguntamos.
XL Ao Padre Delfim Que dele o cabeo do P. Antnio? Onde tem o chapu, mais a bengala? Francisca, v se podes apanh-la: Fugir-nos se intentava, era bolnio. Ora anda, rapariga do demnio; Espera, escuta se ressona ou fala. Acordaste-lo? Valha-te uma bala; Pois perdeu duas missas Santo Antnio. Deus te salve, Delfim, muito bons dias: Queres ch ou caf? A Misses Rosa Tem ordem de fazer-nos as fatias. Quanto esta manh fresca deliciosa, Quanto de inverno so as noites frias, Para ns tua vista saborosa.
XLI Ao Padre Delfim Amigo Padre Antnio, a Fonte Santa Sem ti no vale nada: descontentes Convidados, amigos e parentes, A todos m tristeza nos quebranta. A mim, pobre de mim! j me ataranta Ouvir splicas to impertinentes. Uns, dizem que virs; outros, que mentes, Que deixaste o bordo que teso canta. Ora vem, bom Delfim, vers louraas, Magotes e magotes de mulheres, Umas assim assim, outras caraas. Sege te mandarei, se sege queres; No te peo seno que agora faas O que fizeste j noutros Prazeres.
XLII Ao Padre Delfim Amigo, falo srio, saudosos Pelo nosso Delfim todos chamamos, s portas e janelas perguntamos, Que feito foi de ti, de ti queixosos. Sempre os olhos trazemos lagrimosos E crestados do pranto que choramos. s mangas sem cessar nos assoamos, De cada vez nos vemos mais ranhosos. No desprezes, Delfim, o amor ardente De teus velhos amigos, coitadinhos, Que sem ti sol no acham que os aquente. Quais piam pela me os pintainhos, Assim chama por ti toda esta gente, Parentes, convidados e vizinhos.
XLIII Na solitria praia a ruiva areia Com a luz da manh resplandecia; De inquietas estrelas se cobria O fundo pego que sonoro ondeia. De branca espuma na cerlea veia O gado de Proteu sulcos abria; Glauco da barca as redes desprendia, O lano consagrando a Galateia. Mas suspendeu as chinchas, assustado, Vendo boiar do Tejo na gua pura O coral roxo, o mrice dourado. Ouve uma voz bradando: Quem procura Profanar este dia consagrado Da engraada Corina formosura?
XLIV Aos Anos da Senhora D. Maria Eufrsia Pisando mil estrelas radiantes As celestes Virtudes vm descendo, Com as cndidas mos croas tecendo De louro no, de imensos sis brilhantes: Em sonora cadeia de diamantes O Tempo voador esto prendendo, longa eternidade obedecendo Quietos os algeros Instantes. Do fulvo Tejo as Ninfas que admiraram A luz que pelas guas se estendia, Umas s outras com prazer lembraram Que as eternas Virtudes neste dia Para habitar dos altos Cus baixaram No corao herico de Maria.
XLV Ontem se foi daqui Nise formosa, Nise nosso prazer, nossa alegria: Tornou-se em feia noite o claro dia, Cobriu-se o Sol de sombra pavorosa. At a clara fonte saudosa Inconsolveis lgrimas vertia, E a tarde, que mil ditas prometia, Oh quo triste nos foi, quo amargosa! Neste espanto fatal um desgraado, Que por Nise em amor todo se inflama, De Nise to cruel assim se queixa: Se o mundo todo fica to mudado, Quando foges de quem em vo te chama, Ou no vs, ou teus olhos c nos deixa.
XLVI Aos Anos da Senhora D. Camila Doze vezes o sol com seus fulgores De teus anos dourou, Camila, o dia, E doze vezes cheios de alegria Empenaram as setas os Amores. Croada a Primavera de mil flores, Pelos campos aromas espargia, O mesmo Cu de estrelas se cobria: Brilhavam da Virtude os resplandores. Jazem na fresca relva os armentios, E os pastores, tocando nas avenas, Modulam o teu claro nascimento. Murmuram brandamente os alvos rios, Correm sonoras fontes mais serenas, Tudo respira enfim contentamento.
XLVII A uma Senhora, a quem o Autor chamava sua Me Comigo minha Me brincando um dia, A namorar cos olhos me ensinava; Mas Amor, que em seus olhos me esperava, Com mil brilhantes farpas me feria. De quando em quando mais formosa ria, Porque incapaz do ensino me julgava; Porm tanto a lio me aproveitava Que suspirar por ela j sabia. Em poucas horas aprendi a am-la. Ditoso se tal arte no soubera: No me custara a vida no logr-la. Certo, que aprender menos melhor era, Pois no soubera agora desej-la, Nem de to louco amor enlouquecera.
XLVIII A Jernimo Henriques de Sequeira Doutor Henriques, o Garo doente Vai-se achando pior, a febre atura; A face cada vez est mais dura, Tratando mal de mim toda esta gente. Cuido que vejo a fouce reluzente, Na descarnada mo da Morte escura, Ante os olhos girar, e a m figura, Bem certa de vencer, mostrar-me o dente. Um bando de atrocssimos pecados Resenha esto fazendo em outra parte, Tero de tabarus mal encarados. Que poderei fazer seno chamar-te? Teu nome, se me livras de cuidados, Cantando espalharei por toda a parte.
XLIX Trs vezes vi, Marlia, de alva lua Cheio de luz o rosto prateado, Sem que dourasse o campo matizado A linda aurora da presena tua. Ento subindo terra calva e nua, De um ngreme rochedo pendurado, Os olhos alongando pelo prado, Chamava, mas em vo, a Morte crua. Ali comigo vinham ter pastores Que meus suspiros frvidos ouviam Cortados do alarido dos clamores. Tanto que a causa de meu mal sabiam, Julgando sem remdio minhas dores, Por no poder-me consolar, fugiam.
L Lacaios, mulher, filhos e criadas Todos clamando esto pelas fogueiras Quais gritam marafonas regateiras, Pela taxa ou tributo alvoroadas. O coto sacudindo, despejadas Lhes mostro sem pataca as algibeiras; Elas, que so ladinas e matreiras, Trazem papel e penas aparadas. Que te escreva me pedem, que te pea Para cabeas ou barris dinheiro, Que o Lus ir l a toda a pressa. Que remdio! Despacho um caminheiro, Pois temo que me queimem a cabea Ou me ponham por mastro no terreiro.
LI J de trs do casal vm ressurgindo O Pedro e Fr. Joaquim; eis que da Fonte Rebenta o bom Mardel no preto Etonte, E co chapu na mo se vem j rindo. Na janela aparece o rosto lindo Que no justo, amigo, que te conte; Saltam os dois a terra ali defronte; As raparigas vo de c saindo. Jaz Francisco Raimundo de barrete Em trajes de Confcio ou de Mafoma, Os gentis olhos baixa Ania santa. O Pedro corre a mo pelo topete, Depois de cochichar o ch se toma: Eis aqui o Long Room da Fonte-santa.
LII Inda que abrindo a boca o Mar irado Os dentes mostre em borbotes de espuma, Ou nos abismos rpido se suma, Ou caia das estrelas despenhado; Inda que o Oceano denodado Co gro tridente dardejar presuma, E que o msero corpo me consuma, De cerleos Delfins atassalhado; Inda que Europa, com fragor estranho, Submergindo-se seja a campa minha, Servindo-me os Antpodas de lastro; Qual impvido Sneca no banho Com os dedos fazendo tisourinha, Repetirei a histria de Alencastro.
LIII Se como tu, Amor, mandas e queres Que admire de Tirceia a formosura, Igual que me abrasa chama pura Em seu peito invencvel acenderes; Se em seus divinos olhos tu puderes Claros sinais mostrar-me de ternura; Se em vez de ingrata ser, e ser to dura, Que benigna me atenda, enfim venceres; Ento direi, Amor, que s poderoso, Que te devida nossa idolatria, E que podes fazer-me venturoso: Mas receio que Tirceia ingrata, impia Cedendo a meu destino rigoroso, Destes suspiros faa zombaria.
LIV Ao terramoto do primeiro de Novembro de 1755 Afortunado Eneias, que saste Da destruda Tria carregado Com o peso feliz do Pai amado, E assim as leis do sangue bem cumpriste; Tambm nessa piedade resististe Ao direito fatal do injusto Fado: Se viste o ptrio ninho destroado Salvo quem te deu ser, ditoso, viste. Os penates, os scios transportaste Ao Lcio porto, aonde achaste abrigo, Onde um novo Paldio colocaste. Eu provei mais cruel Fado inimigo: A Ptria vi arder: tu a salvaste; Mas eu perdi o Pai, perdi o Amigo.
LV A sua Mulher, a Senhora D. Maria Ana Xavier de Sande e Salema Ao som dos duros ferros que arrastava, A lira de ouro Coridon tangia: De Mrcia o doce nome repetia, Mas no meio do canto, soluava. No rosto macerado, que enfiava, O lagrimoso pranto reluzia, E nos olhos, que aos altos Cus erguia, O pensamento intrpido voava. No se assombra de ventos insofridos, Nem com ousado lenho arar intenta O plo do futuro nebuloso; Menos chora terrenos bens perdidos. De pouco um peito grande se contenta: Antes quere ser honrado que ditoso.
LVI Sujos Brontes esto arregaados Batendo o rubro ferro, e, retinindo Os rijos malhos, vo ao ar subindo Estelantes coriscos enrolados. Ao fuzilar dos golpes, pendurados Aparecem mil elmos reluzindo; Na forja a labareda est zunindo, Impelida dos foles engelhados. Cristalino suor alaga a testa Do coxo mestre; a calma da oficina fresca Virao as asas cresta. Forjavam uma seta colubrina; Eis entra Amor, e diz-lhe que no presta vista dos bons olhos de Coma.
LVII Morte de Flix Coutinho Esprito gentil do Esposo amado, Que, sobre as asas de Virtudes santas, Muito acima dos astros te levantas Do misrrimo corpo desatado; Ante o slio de estrelas recamado, J do grande Adonai o nome cantas, E do perptuo dia no te espantas Que a nossos mortais olhos vedado. Se o purpreo semblante a ns volvendo (Nova constelao resplandecente), A terra, l do Cu, inda ests vendo; No te canses de nosso amor ardente, Que este pranto, que vs estar correndo, Que viva c sem ti me no consente.
LVIII Contra Jos Baslio da Gama Quem vem l? Quem nos honra? Este estudante, Que das Musas quer ter o magistrio, Aprendeu com vares do sacro imprio, Porm se tolo foi, veio ignorante. Examinado ele, um pedante, Das Musas portuguesas vituprio. Foi criado no clido hemisfrio, Fidalgo pobre, cavaleiro andante. Do alto monte que aos cus vizinho S ele o alado bruto enfreia e doma, Faz castelos no ar de cedro e pinho. O louro, quando quer, despreza e toma: Arredem-se, senhores, dem caminho, Passe o senhor quaqui, que vem de Roma.
LIX Contra um rancho satrico Pinto fidalgo, embaixador da Mancha, Tu Monteiro roaz, que na baralha Vales por espadilha da canalha Que a fama alheia com ferretes mancha; Padre Niceno, tu, patro da lancha, Carregada de drogas da antigualha Que o Bandeirinha alvar toa espalha, Potro que noutro potro se escarrancha; Capito Arquimedes, tu zarolho, Manuel de Sousa que pareces Mendes, Que da rcua aproveitas o restolho; Ulpiano venal... tu bem me entendes... Se para estas cousas tenho dedo e olho, Em peralvilhos jubilado tendes.
LX Tu s Dirceia, filha do Tirreno, Eu um dos filhos sou do pobre Alceste, Mas nem por fado teu tal pai tiveste, Nem eu por culpa minha sou pequeno: Bem sei que te pretende o rico Alceno, Mas, se peles e ls mais finas veste, To bem no amor o veno qual cipreste Excede no robusto ao brando feno. Deixa vaidades da justia alheias, No desprezes afectos e ternura Por teres mais cabritos e colmeias. Faze Dirceia reflexo madura: V que a virtude prpria em mim premeias E nele s premeias a ventura.
LXI No cobre vastos campos o meu gado, O maioral no sou da nossa aldeia, Do meu trabalho como, mas, Dirceia, Ainda que sou pobre, vivo honrado. No jogo da carreira e do cajado At o dextro Algano me receia. Qual loura espiga de grozinhos cheia Me alegra ver teu rosto delicado. Se queres minha ser, fala a verdade. No vestirs as peles mais vistosas As finas ls tecidas na cidade: Trajars das que eu trajo as mais mimosas, F-las- de mais preo a s vontade Com que quisera dar-te as mais custosas.
LXII Ao Padre Antnio de S. Jernimo Justiniano, Capelo do Coro de N. Senhora do Loreto da Nao Italiana. Msero gandaieiro do Parnaso, Que para alimentar teu pobre estilo Das escrias tiraste do chirilo Com que da ideia encheste o tosco vaso: Apolo faz de ti to pouco caso Que, vendo que tu foste persegui-lo, Podendo te mandar beber daquilo, Mandou te desse fria o seu Pegaso. Essa fria que o Pindo te dispensa Bem se v que de besta; no proluxo O ds a conhecer de uma obra extensa. Deu-te Pgaso as guas de repuxo, Que Apolo, s se andasse de correna que podia dar-te o seu influxo.
LXIII Amor nos olhos da formosa Clara, Armado no de setas, de ternura, Cruis vinganas implacvel jura, Guerra fatal aos coraes declara. Dos brandos tiros que dali dispara Ningum pode, ningum fugir procura, Que do mesmo poder da formosura Nenhum peito de bronze se depara. Seus lindos olhos com desdm movidos Pisam desejos mil, rendem mil peitos, Lanam por terra coraes feridos. Se esquivos causam to cruis efeitos Inda causam mais nsias, mais gemidos Quando se deixam ver a amor sujeitos.
LXIV A porto salvo com feliz carreira Vai a Nau, sem temer de dar em seco, V com desprezo a ufana cruz de Meco, Passa, e no faz caso da Azeiteira. Se armada em guerra sobre a tua esteira Te encontrar petulante algum chaveco, Prolonga-te por cima do Tareco, E ri-te quando vires a Bandeira. Se der no fundo e vires que Barrada, A aguda proa sobre o baixo mete, Vers que tudo se resolve em nada. J segura a vitria te promete, Pois, como era podre, e a gente levantada, No teme Capito, bem que Estoquete.
LXV Queixas de Amor De beijos um cestinho Amor enchia, E, depostos os duros passadores, Quais semeiam o trigo os lavradores Num campo os semeou todos um dia. Da a pouco com prazer se via A seara ferver toda em Amores, Que aos centos rebentavam entre as flores, De que o travesso deus folgava e ria. Eu, que bem por acaso ali me achava, Um deles colho, e sobre o peito o prendo, Sem recear o mal que me aguardava: Pois as tenras razes estendendo, Pouco a pouco no corao mas crava Donde novos amores vo nascendo.
LXVI Motivo Amoroso Batendo Amor as asas cintilantes, Sem arco, sem farpes e sem aljava, Sobre esplndida mesa ontem voava Por entre os ureos vasos escumantes. Eu, que o vi sem as setas penetrantes, Seguro pelas asas lhe agarrava E numa grande taa o mergulhava, Vingar querendo os mseros amantes. Ufano do sucesso, incautamente Todo o licor bebendo o vaso entorno sade da circunstante gente. Mas ai triste de mim! Desde este caso No peito sinto Mongibelo ardente, E sem alvio ter, vivo me abraso.
LXVII De teus celestes olhos namorado O meu rival, o brbaro Cupido, Um dia massaltou enfurecido De seus cruis ministros rodeado. Pela feroz quadrilha aferrolhado, Fui ante o fero Amor oferecido, Que, armada a dextra dum punhal budo, O terno peito me deixou rasgado. No satisfeito ao corao me aponta Trs vezes, e em vo nele o encravara, Pois que sem o ofender se lhe desponta: Absorto inquire a maravilha rara, Quando se descobriu, por sua afronta, Que ali a tua imagem me amparara.
LXVIII De proceloso mar vejo cingida De Amarlis a anglica morada, De veladores Argos vigiada, De adamantinas torres defendida. Em vo, em dbil barca, a embravecida Fria do pego espero ver domada, Que encapelando-se a branca carne irada Quase no fundo a vejo submergida. Mas, se nos seus olhos lcidas estrelas Com amorosa luz fixa e constante Me guiam entre as hrridas procelas, Eu vencerei as ondas triunfante, E, alucinando as fortes sentinelas, Farei cair os muros de diamante.
LXIX Infeliz, onde estou? So estas brenhas, Estes montes adonde Circe mora? Fortuna cruel, enganadora, Que veloz para o dano me despenhas! Como hei-de caminhar por estas penhas Se tudo horror o que descubro agora? Cego fui: quem me vira daqui fora Antes que tu, tirana Circe, venhas! Mas j a horrenda porta est patente, Treme a serra ao revolver dos gucios, E o sangue congelou-se de repente. De que sai a matar vem dando indcios: Todos beijam a terra humildemente, Porm ela despreza os sacrifcios.
LXX Vo de valor, vo de fortuna armados A devastar o mundo heris valentes, E na testa de exrcitos rompentes Voltem de mil despojos carregados. Soltem ao vento mil pendes ganhados; Coas j cativas numerosas gentes Rompam do mar as frvidas correntes Altas galeras de espores dourados. Entrem por Grcia e Roma, generosa Sombra de arcos triunfais de palma e louro, Ouam aclamaes em verso e prosa: Que eu mais ricos despojos entesouro Nos trofus da conquista gloriosa Duns olhos pardos, duns cabelos de ouro.
VARIANTES SONETO LIX Pinto fidalgo, Embaixador da Mancha, Tu Monteiro roaz, que da baralha s a vil espadilha da canalha Que a honra alheia com ferretes mancha: Padre Niceno, tu patro da Lancha, Carregado das drogas da antigualha, Que o Bandeirinha alvar toa espalha, Potro que em outro potro se escarrancha: Capito Arquimedes, tu zarolho Manuel de Sousa, que pareces Mendes, E da rcua aproveitas o restolho: Ulpiano venal, que bem me entendes; Se para a cousa tenho dedo e olho, Em peralvilho jubilado tendes. B. N. L., ms. 8582
SONETO LIX Pinto Fidalgo Embaixador a Mancha, Tu Monteiro Ruas que da canalha s a vil espadilha da baralha Que a honra alheia com ferretes mancha, Padre Niceno bom patro da lancha, Carregado das drogas da antigualha Que o Bandeirinha alvar toa espalha, Potro que noutro potro se escarrancha, Capito Arquimedes, tu zarolho Manuel de Sousa que pareces Mendes. Que aproveitas da rcola o restolho, Ulpiano venal que bem me entendes, Se para a cousa tenho dedo e olho Em peralvilhos jubilados os tendes. E. N. L., ms. 8584
SONETO LXIII Amor nos olhos da formosa Clara, Armado no de setas, de ternura, Duros castigos implacvel jura, Guerra fatal aos coraes declara. Dos brandos tiros que dali dispara Ningum pode, ningum fugir procura, Que dos golpes cruis da formosura Nem um peito de bronze se repara. Seus lindos olhos, com desdm movidos, Prostram desejos mil, rendem mil peitos, Lanam por terra coraes feridos: Se esquivos causam to cruis efeitos, Quais sero os estragos dos vencidos Se os vreis acender a amor sujeitos? B. N. L., ms. 8610
SONETO LXIV A porto e salvo, com feliz carreira, Vai a nau com temor de dar em seco, V com desprezo a ufana Cruz do Meco, Passa sem fazer caso da Azeiteira. Se armado em guerra sobre a tua esteira Te encontrar petulante algum chaveco, Prolonga-te por cima do tareco, E ri-te quando vires a bandeira. Se der em seco e vires que varada, A aguda proa sobre o baixo mete, Vers que tudo se resolve em nada: J segura a vitria te promete Pois como podre e gente levantada No teme capito bem que escopete. B. N. L., ms. 8582
****************************************************************** Transcrio de Fernando Moreira baseada na edio de 1778 e na edio de Roma, confrontadas com a edio de Antnio Jos Saraiva (Lisboa, S da Costa, 1958). Actualizou-se a grafia. Projecto Vercial, 2003 http://www.ipn.pt/literatura ******************************************************************