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Foucault, Proudhon, Malatesta: Anarquismo e Governamentalidade
Foucault, Proudhon, Malatesta: Anarquismo e Governamentalidade
Foucault, Proudhon, Malatesta: Anarquismo e Governamentalidade
E-book738 páginas9 horas

Foucault, Proudhon, Malatesta: Anarquismo e Governamentalidade

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O livro Foucault, Proudhon, Malatesta: anarquismo e governamentalidade investiga as reflexões do anarquista francês Pierre-Joseph Proudhon e do anarquista italiano Errico Malatesta sobre o exercício do poder governamental, utilizando uma abordagem dos estudos da governamentalidade, noção elaborada por Michel Foucault para designar o campo estratégico das relações de poder que busca converter o que elas têm de móvel, transformável e reversível, em estados de dominação. Partindo do fato que, no Ocidente, as relações de poder foram constituídas de tal modo por uma proliferação indefinida de técnicas e mecanismos governamentais, que fizeram seu exercício assumir formas sempre mais excessivas e intoleráveis, o autor enfatiza a importância de se estudar essa prática complexa e singular que consiste em governar os indivíduos, transformada pelas sociedades modernas em um dos seus mais essenciais atributos. Mais do que uma prática imemorial, o autor afirma que o governo ganhou um desenvolvimento sem precedentes com a formação dos Estados modernos. Nesse processo, a soberania tomou emprestado do governo a perenidade do seu caráter natural e a permanência da sua natureza providencial: Estados nascem e morrem, mas o governo é eterno. E da sua eternidade, o governo remeterá sempre para a violência de uma força dominadora. No entanto, o autor mostra como o anarquismo foi a única tradição política, na história do Ocidente, que buscou direcionar, especificamente contra o governo, a crítica implacável de um saber que sondou sua existência insidiosa. Embora as resistências ao poder governamental sejam encontradas desde o início da formação do Estado moderno, foram os anarquistas que, jamais cessando de denunciá-lo, produziram, nas lutas em torno e contra ele, a enorme sistematização de um saber antigovernamental. Em suma, trata-se de uma obra importante para pensar, a partir do tríptico Foucault-Proudhon-Malatesta, a potencialidade extraordinária de produção de novas subjetividades presente nas formas de luta contemporâneas contra o governo. O livro não somente nos convida a constituir a nós mesmos como sujeitos transgressivos, mas também mostra o quanto é urgente, em nossa atualidade, a tarefa de constituir a si mesmo como sujeito anárquico.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de dez. de 2024
ISBN9786525069302
Foucault, Proudhon, Malatesta: Anarquismo e Governamentalidade

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    Foucault, Proudhon, Malatesta - Nildo Avelino

    Parte I.

    Foucault-Proudhon: Anarquismo e Governamentalidade

    CAPÍTULO 1

    GUERRA E POLÍTICA

    1. Da governamentalidade ao Pós-Anarquismo e além

    O neologismo governamentalidade foi, talvez, o que conheceu a mais surpreendente trajetória e posteridade na obra de Foucault. Sylvain Meyet⁹ descreveu o singular percurso do conceito foucaultiano. A governamentalidade, tendo sido inicialmente apresentada por Michel Foucault como a quarta aula do seu curso de 1978 no Collège de France, ganha sua primeira aparição em suporte de texto, ainda no mesmo ano, na revista da extrema esquerda italiana Aut-Aut, a partir da transcrição e tradução de Pasquale Pasquino. No ano seguinte, Rose Braidotti e Colin Gordon traduzem a versão italiana para a revista inglesa Ideology & Consciousness e, ainda em 1979, Roberto Machado e Ângela Loureiro de Souza são os tradutores da edição brasileira, publicada como último capítulo do livro Microfísica do Poder, sem precisar, no entanto, a origem (nas referências bibliográficas consta apenas: A governamentalidade, curso no Collège de France, 1o de fevereiro de 1978). Somente em 1986, dois anos após a morte de Foucault, aparece uma versão francesa de A governamentalidade, publicada pela revista Actes e que traz uma curiosa advertência: "O texto publicado [não é] uma transcrição direta da fita original. [Este texto foi traduzido do italiano e], malgrado o esforço dispensado ao trabalho, tantas idas e vindas proíbem considerá-lo como sendo um ‘texto’ de M. Foucault.¹⁰ Outras versões foram publicadas a partir da tradução italiana, porém apenas em 2004 é editado na França o curso completo, sob os cuidados de Michel Senellart, que daria A governamentalidade uma transcrição feita a partir dos manuscritos de aula utilizados por Foucault. O que é interessante é que, muito antes da aparição da versão francesa considerada autêntica", um grupo de pesquisadores anglófonos fundou, em torno da revista inglesa Economy and Society, um projeto intelectual e um programa de pesquisas conhecido como governmentality school. O manifesto inaugural do grupo pode ser considerado o número especial da revista, publicado em agosto de 1993, organizado por Nikolas Rose, Thomas Osborne e Andrew Barry, que subscrevem a introdução onde se lê:

    [...] os artigos neste número especial de Economy and Society compartilham um interesse no diagnóstico das formas de racionalidade política que governam nosso presente. Desse modo, é possível afirmar que os artigos compartilham de uma motivação comum relativa a uma reinterpretação que exige novos modos de pensar acerca dos laços entre o domínio da política, o exercício da autoridade e as normas de conduta em nossa sociedade.¹¹

    Segundo os organizadores, governmentality school marca menos uma relação doutrinal ou dogmática com os trabalhos de Foucault do que a partilha de certo ethos da análise marcado pelo desejo comum em

    [...] analisar as racionalidades políticas contemporâneas como técnicas concretas para o governo das condutas. [...] Liberalismo e neoliberalismo são analisados aqui não simplesmente como tradições político-filosóficas. São analisados, sobretudo, como uma série de práticas refletidas relativas a, e intervindo no, campo do governo.¹²

    Foi a partir desse grupo de pesquisas organizado na Inglaterra, mais tarde incluindo pesquisadores australianos e americanos, que desde os anos 1990 uma série de publicações acerca dos estudos da governamentalidade deu nascimento a uma extensa literatura anglófona responsável por formar, nas palavras de Dean:

    Um novo ramo de saber no interior das ciências sociais e humanas relativo às maneiras pelas quais se governa, o como do governo: como nós governamos, como nós somos governados e a relação entre o governo de nós mesmos, o governo dos outros e o governo do Estado.¹³

    Contudo, embora fruto de uma intensa produção intelectual, a chamada governmentality school não constituiu nem um método, nem uma teoria comum de estudos. Dean, por exemplo, afirma ser tais estudos uma inspiração para seus trabalhos, nos quais busca [...] reter alguma clareza nos estudos da governamentalidade e prover um instrumento e uma perspectiva para seu uso.¹⁴ No mesmo sentido, Rose não toma a governamentalidade como teoria geral ou história do governo, da política ou do poder, aplicável a tudo.

    Existem aqueles que se empenham em ser estudiosos de Foucault. [...] Eu reclamo uma relação livre com seu trabalho, muito mais inventiva e empírica. Menos implicada com uma fonte de autoridade intelectual do que com um trabalho com certo ethos de análise.¹⁵

    Aquilo que caracteriza os estudos da governamentalidade não é a busca de uma homogeneidade coerente com os trabalhos de Foucault, não é o [...] interesse motivado por uma vontade de conhecimento exegético, mas a vontade de tirar dele uma inspiração utilizável para trabalhar sobre sua própria atualidade.¹⁶ E isso de tal modo que, para a maioria dos utilizadores do termo, o conhecimento na íntegra do curso não foi indispensável, como parece ter sido para os franceses, já que suas aquisições derivaram de textos publicados e de resumos propostos.¹⁷

    O que busco fazer neste livro é, também, um uso específico dos estudos da governamentalidade. A procedência desse uso pode ser encontrada no início dos anos 1990, quando surgem alguns estudos que colocaram em evidência certo número de analogias entre o pensamento anarquista dos séculos XIX e XX e o que se convencionou chamar pensamento pós-estruturalista, categoria que contém o prejuízo da síntese, como observou Vaccaro¹⁸, principalmente temporal, mas que foi utilizada para se referir às reflexões de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida e François Lyotard. Em relação a Foucault, a aproximação com o pensamento anarquista foi possível, sobretudo, pelo seu retournement efetuado a partir do segundo volume da sua História da Sexualidade, no qual se ocupará do sujeito ético.

    No Brasil, os efeitos iniciais dessas experimentações podem ser vistos pelo dossiê organizado por Edson Passetti, para a revista Margem, da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP, em 1996, trazendo a tradução de estudos nessa perspectiva, notadamente os artigos de Todd May e Salvo Vaccaro¹⁹; o dossiê foi responsável pela introdução, no Brasil, da problemática anarquismo e pós-estruturalismo. A literatura que inaugura essa problemática, no âmbito internacional, compreende as obras de Todd May, Saul Newman, Lewis Call, Salvo Vaccaro, Daniel Colson²⁰; no Brasil, destacam-se os trabalhos de Edson Passetti e Margareth Rago²¹. Trata-se de uma extensa literatura que, de algum modo, procura articular anarquismo e pós-estruturalismo; contudo, há nessa literatura algumas diferenças fundamentais.²² Quero sugerir que é possível extrair da literatura sobre anarquismo e o pós-estruturalismo, grosso modo, dois tipos de procedimentos analíticos: um procedimento que seria próprio ao pós-anarquismo anglófono e outro que eu chamaria anarquista tout court. São movimentos teóricos distintos e que levam a conclusões completamente diferentes: enquanto nas análises anarquistas a inquietação repousa sobre o anarquismo em si mesmo, ou seja, o objeto da inquietação é a própria realidade histórica e intelectual do anarquismo; no pós-anarquismo o objeto da inquietação é constituído, como assinalou Viven Garcia²³, pela chamada French Theory, e a recorrência ao anarquismo histórico se dá apenas de maneira negativa. Disso resulta duas questões distintas. Para a perspectiva anarquista, a questão colocada é: estando dada a realidade histórica e intelectual do anarquismo, qual pertinência ela poderia ter no presente, a partir do momento em que se dá à análise instrumentos tais como aqueles encontrados no pensamento pós-estruturalista? Já na perspectiva pós-anarquista a questão é: estando dada essa analogia ambígua e problemática, mas em todo caso real, entre anarquismo e pós-estruturalismo, quais diferenças estabelecer, quais rupturas, quais rejeições ou quais similitudes se desenham? Em outras palavras, [...] o pós-anarquismo não se posiciona em uma continuidade histórica com o anarquismo. [...] O prefixo ‘pós’ atribuído ao termo anarquismo sugere, de qualquer modo, que esse último, tal como foi pensado até então, está de alguma maneira obsoleto²⁴. Assim, para os pós-anarquistas, se existe qualquer possibilidade de sentido crítico que o anarquismo possa ter hoje, ele deve ser buscado entre os instrumentos legados pela French Theory. Está claro quando Todd May afirma que

    [...] o poder constitui para os anarquistas uma força repressiva. A imagem com a qual opera é aquela de uma força que comprime – e às vezes destrói – ações, eventos e desejos com os quais mantém contato. Essa imagem é comum não apenas a Proudhon, Bakunin, Kropotkin e em geral aos anarquistas do século XIX, mas também àqueles contemporâneos. É uma tese sobre o poder que o anarquismo compartilha com a teoria liberal da sociedade, que considera o poder como uma série de obstáculos à ação, principalmente prescritos pelo Estado, cuja justiça depende do estatuto democrático desse Estado.²⁵

    Já Saul Newman afirma, a partir de uma citação de Kropotkin, que a [...] história, para os anarquistas, é a luta entre humanidade e poder, sendo essa dimensão que faz com que o anarquismo esteja [...] baseado sobre uma noção específica de essência humana. Para os anarquistas, nessa noção existe uma natureza humana com características essenciais ²⁶, como a ideia bakuninista de justiça e de bem:

    Bakunin define essa essência, essa moralidade natural humana como respeito humano, e a partir dessa definição ele é levado a admitir direitos humanos e dignidade humana em todos os homens. Essa noção de direitos humanos é parte do vocabulário humanista do anarquismo e fornece o ponto de partida em torno do qual a crítica do poder está baseada.²⁷

    Por supor a existência de uma natureza humana boa, Newman afirma que o anarquismo estaria baseado, de maneira clara, na divisão maniqueísta entre autoridade artificial e autoridade natural, entre poder e subjetividade, entre Estado e sociedade. Além disso, a autoridade política é vista como fundamentalmente opressiva e destrutiva do potencial humano²⁸. Retomando essa discussão no seu livro posterior, Newman afirma sua intenção em dar ênfase ao ataque dirigido por Nietzsche contra o anarquismo, no qual este lançou o epíteto de manada de animais moralistas. Para isso, pretende explorar a lógica do ressentimento nas políticas radicais e, particularmente, no anarquismo, procurando:

    [...] desmascarar os traços de ressentimento ocultos no pensamento político maniqueísta de anarquistas clássicos tais como Bakunin e Kropotkin. Mas não com a intenção de diminuir o anarquismo como teoria política. Ao contrário, vejo o anarquismo como um importante precursor teórico da política pós-estruturalista em razão da sua desconstrução da autoridade política e da sua crítica ao determinismo econômico marxista.²⁹

    Para o pós-anarquismo, portanto, o anarquismo não pode assumir outro valor, em relação à política pós-estruturalista, que o da crítica ao determinismo econômico e da desconstrução da autoridade. Assim,

    [...] a oposição entre anarquismo e pós-anarquismo não é, desse modo, um debate histórico entre o anarquismo clássico (entendido como anarquismo do século XIX) e o anarquismo de hoje (o pós-anarquismo). Mas marca uma verdadeira ruptura epistemológica.³⁰

    Não é o propósito desse trabalho investigar a validade das críticas do pós-anarquismo. Ao introduzir a discussão meu objetivo foi, de um lado, tornar clara a distância que separa o procedimento buscado aqui das análises do pós-anarquismo; e, de outro, para evidenciar a necessidade de dar outro sentido ao vocabulário anarquista, fora daquele empregado pelo pós-anarquismo, na análise do pensamento de Proudhon e, especialmente, de Malatesta. Em todo caso, a partir da perspectiva anarquista tourt court, a questão colocada sobre qual pertinência no presente pode ser extraída da realidade histórica do anarquismo, por meio de uma análise utilizando as reflexões de Foucault e Deleuze, a resposta assume um valor heurístico completamente diferente daquela do pós-anarquismo.

    Para Vaccaro³¹, por exemplo, o pensamento anarquista, ao buscar a abolição da autoridade, afirma uma procura interminável, e sempre em sentido móvel, de vida que retraça livremente ligações sociais expressas experimentalmente, renováveis e revogáveis à vontade, constitutivamente fluídas, não cristalizadas em corpos institucionais e que, em última análise, caracteriza a relação singularidade/comunidade. A distância que separa a concepção anárquica do poder, decisivamente negativa porque afirmativa da liberdade como prática prioritária, daquela de Foucault é menor do que se apresenta à primeira vista. Para Vaccaro, algumas liaisons dangereuses confirmam confluências entre anarquismo e pós-estruturalismo, como a crítica à dialética, contra a qual ambos opuseram o arbitrário e o excedente, sublinhando a margem de manobra possibilitada pela vontade ao apostar no ato subversivo de liberação. Margareth Rago narra a força de atração existente entre os operadores foucaultianos, com seus ataques aos micropoderes, ao biopoder, ao dispositivo da sexualidade, ao controle social e individual, invisível e sofisticado, que passava despercebido pelo olhar orientado pelas teorias marxistas e liberais então hegemônicas,³² e a crítica anarquista:

    [...] do poder nas relações cotidianas, exercido nas instituições disciplinarizantes; o questionamento dos códigos morais rígidos e autoritários, introduzidos na modernidade; a defesa do amor livre, da maternidade voluntária, do prazer sexual das mulheres, tal como desfilavam nas folhas amareladas e envelhecidas dos jornais libertários A Plebe, Lanterna, Terra Livre, A Voz do Trabalhador. ³³

    Para Rago, não foi difícil perceber o quanto essas duas vertentes – Foucault, de um lado, e o Anarquismo, de outro – se aproximavam, a despeito da distância cronológica e da própria independência de um em relação ao outro³⁴. Foi a partir dessa inquietação que Rago procurou mostrar os vínculos existentes entre Foucault e o anarquismo, apontando a forte presença anarquista em sua forma de pensamento, ampliando as possibilidades de leitura da sua obra e criando outras condições para se revisitar a história do Anarquismo³⁵. Foram essas ligações perigosas que permitiram a Edson Passetti encontrar, de um modo particular, no pensamento de Max Stirner, uma referência para o estudo, no interior do anarquismo, da [...] amizade da associação dos únicos como atualidade libertária, da mesma maneira que, hoje em dia, Nietzsche e Foucault são procedências imperdíveis não só para a amizade como tema menor, a amizade entre amigos, mas para o próprio anarquismo³⁶. Para Passetti, ao contrário dos pós-anarquistas, essa nova faceta resultante da aproximação do anarquismo com vertentes pós-modernas:

    [...] não exclui as anteriores e com elas convive, dialoga e debate. Apresenta-se como parte constitutiva que investe, preferencialmente, no campo das interdições políticas, culturais e sexuais. Ampliam-se os laços de amizade no interior do anarquismo com base na diferença na igualdade, considerando que, sempre liberto da soberania da teoria, o anarquismo é um saber que se faz pela análise da sociedade e que supõe a coexistência.³⁷

    Contudo, o que importa para Passetti não é vincular diretamente Foucault ao anarquismo, o que para ele seria se [...] propor a andar em círculos tentando apanhar o próprio rabo.³⁸ O que aproxima Foucault dos anarquistas é a concepção do poder apresentada em ambos como relação de força, concepção que [...] desloca e desassossega a herança liberal e socialista que entende o poder como decorrência dos efeitos de soberania e de seus desdobramentos jurídico-políticos.³⁹ Daniel Colson, por sua vez, afirma o surgimento de uma nova legibilidade do anarquismo, a partir da segunda metade do século XX, que ele atribui a [...] um pensamento contemporâneo, aparentemente sem relação com o anarquismo histórico, referindo-se frequentemente mais a Nietzsche do que a Proudhon, mais a Espinosa do que a Bakunin ou a Stirner⁴⁰. Contudo, diz Colson, seria preciso ver:

    [...] como o nietzschianismo de Foucault ou de Deleuze, a releitura de Espinosa ou de Leibniz que ele autoriza, mas também a redescoberta atual de Gabriel Tarde, de Gilbert Simondon ou ainda de Alfred North Whitehead, não somente dão sentido ao pensamento libertário propriamente dito, aos textos de Proudhon e de Bakunin por exemplo, mas também ganham eles mesmos sentido no interior desse pensamento que elucidam e renovam, contribuindo, talvez, com esse feliz encontro, em tornar possível o anarquismo do século XXI.⁴¹

    Para melhor compreender a força irruptiva do pós-estruturalismo, considerado por Colson como o terceiro período do anarquismo, é preciso levar em conta o ressurgimento surpreendente de um pensamento esquecido durante longo tempo nos arquivos e nas bibliotecas e em meio a um contexto que tinha o marxismo como força hegemônica, tanto na forma da ditadura do Estado socialista, quanto na forma do patrulhamento teórico exercido pelo marxismo estruturalista das elites eruditas da rue d’Ulm. Foi nesse contexto, e em meio a uma enorme explosão de vida e de revoltas, que surgiu, de maneira diversa e fragmentária, um grande número de filósofos e pensadores, entre os quais Deleuze e Foucault, que fizeram emergir, [...] na situação emancipadora dos anos 1960 e 1970, uma concepção filosófica que não era nova, mas que, esquecida, revestia-se então com todos os traços de uma ruidosa novidade.⁴² Foi um pensamento que, dando a si mesmo como referência Nietzsche, rompeu com as representações filosófico-políticas de Hegel, Marx e do marxismo. Foi essa invenção de um Nietzsche emancipador e de esquerda, malgrado seu antissocialismo e seu antianarquismo declarados, que conferiu a esse encontro improvável a possibilidade de

    [...] tornar explícita a força das suas razões, dar sentido a uma história operária reduzida por muito tempo a peripécias enigmáticas, insignificantes e derrisórias, tornar perceptível a radicalidade, a amplitude e a novidade passadas de suas práticas e de seus projetos.⁴³

    Essa renovação do pensamento libertário, no final do século XX, também recolocou a possibilidade de reler o pensamento de autores como Proudhon, Bakunin, Kropotkin e Malatesta, pensadores cuja prefixação utópica e as aspas da irrisão tinham excluído da monótona confraria do saber erudito. Com Foucault e Deleuze foi finalmente possível assimilar, em toda sua consequência, a ideia subjacente à história do movimento operário na Europa e na América.

    Para além de uma ideologia anarquista fechada durante muito tempo em sua inspiração, reduzida a uma bricolagem de substituição, no bom sentido utilitário de Jules Ferry, a um humanismo, um individualismo e um racionalismo estreito e científico, tornou-se enfim possível não apenas apreender a natureza das afinidades entre Nietzsche e os movimentos libertários, mas também retomar a analogia entre esses movimentos e um pensamento filosófico e político anterior e largamente esquecido [...]. A Ideia anarquista, pela descoberta de seu duplo e sucessivo desdobramento – teórico e prático – podia, por sua vez, intensificar a expressão filosófica que a tornava visível, uma expressão filosófica nascida de outro modo e mais tarde, em outras circunstâncias, a partir de outros movimentos e de outras condições.⁴⁴

    O significativo na análise de Colson é que ela procura explicitar que, para além do estabelecimento de um mero laço de filiação, seria preciso perceber o movimento pelo qual a crítica anarquista é capaz de conferir sentido

    [...] a uma afirmação comum da vida, a uma crítica radical da ciência e da modernidade, a uma mesma percepção da transformação incessante e da subjetividade irredutível das forças e dos seres, a uma concepção do mundo, da opressão e da emancipação que arruínam radicalmente as velhas distinções entre indivíduo e sociedade, subjetividade e objetividade, unidade e multiplicidade, eternidade e devir, real e simbólico.⁴⁵

    Em outras palavras, seria preciso perceber antes, depois, ao lado, ou implicitamente ao anarquismo, a existência da anarquia. Evitar, portanto, dar à anarquia uma realidade programática, uma forma doutrinal, uma rigidez teórica. Perceber a anarquia como visão de mundo cuja história rompe certamente com os quadros da modernidade e do Iluminismo. Foi o que fez Deleplace quando, ao procurar traçar a história da palavra anarquia e de seus usos, desde o século XVIII, mostrou a existência da "[...] elaboração de um conceito, ainda que negativo, [...] mas segundo um processo que é possível elevar à importância da conceitualização positiva da anarquia empreendida posteriormente"⁴⁶ com Proudhon. De tal maneira que, ao longo da história, [...] a noção de anarquia foi sempre o objeto de uma elaboração realizada, sendo preciso apreender na riqueza desse discurso não somente uma designação sócio-política, mas também uma noção-conceito ou uma noção-prática a partir da qual [...] a anarquia se mostra apta para cobrir todo o campo das categorias descritivas do discurso revolucionário.⁴⁷ Dar ao anarquismo a função de categoria meramente classificatória seria arriscar, como afirmou Colson, a negação da própria anarquia da qual ele pretende ser a expressão teórica e prática; seria igualá-lo a uma [...] instituição fechada sobre sua própria identidade, dispondo de um interior e de um exterior, com seus rituais de entrada, seus dogmas, sua polícia e seus padres, suas exclusões, suas dissidências, seus anátemas e suas excomunhões.⁴⁸ Ao contrário disso, seria preciso declarar a disposição anárquica ao alcance de todos e extrair disso a [...] possibilidade preciosa de fazer do anarquismo o projeto comum a uma multiplicidade de situações, a uma infinidade de funções de sentir, de perceber e de agir. É o melhor meio de perceber no anarquismo essa ‘estranha unidade’, da qual fala Deleuze, ‘que se diz tão só do múltiplo’.⁴⁹

    Aquilo que procuro mostrar neste trabalho é, portanto, uma releitura do pensamento de Proudhon e Errico Malatesta a partir das implicações teóricas sobre a problemática da governamentalidade. Retomo a reflexão política de Michel Foucault, portanto, com um duplo propósito: de um lado, restituir a força crítica desses dois pensadores do anarquismo cujo pensamento será apresentado a partir da perspectiva dos estudos da governamentalidade, isto é, a partir da analítica das relações de poder fora das concepções liberal e marxista. Talvez retomar não seja a palavra certa para designar a intenção que busco efetuar; talvez fosse melhor falar em vontade de apropriação, no sentido nietzschiano ou foucaultiano do termo, já que se trata menos de efeitos de harmonia e de filiação do que de uso. Mas, de outro lado, ao restituir a força da crítica dos dois autores do anarquismo, procuro igualmente, como efeito de retorno ou como o ritornelo deleuziano para composição de intensidades e potências, estabelecer uma relação de procedência entre a anarquia proudhoniana e a governamentalidade foucaultiana.

    2. Foucault, guerra e governo

    A análise em termos de relações de forças no domínio político é um dos aspectos fundamentais nos estudos da governamentalidade. Como sugeriu Rose, nesses estudos as investigações sobre o governo consideram as forças que atravessam os múltiplos conflitos por meio dos quais a conduta dos indivíduos está sujeita ao governo: prisões, clínicas, salas de aula e abrigos, empresas e escritórios, aeroportos e organizações militares, mercados e shopping centers, relações sexuais etc. O objetivo da análise é:

    [...] localizar as relações de força a um nível molecular, a maneira como circulam através de múltiplas tecnologias humanas, em todas as práticas, arenas e espaços nos quais programas para o governo dos outros imbricam-se com técnicas para o governo de si mesmo. Focaliza as várias manifestações disso que se poderia chamar a vontade de governar representada por uma multidão de programas, estratégias, táticas, dispositivos, cálculos, negociações, intrigas, persuasões e seduções objetivando conduzir a conduta dos indivíduos, grupos, populações – e até de si mesmo.⁵⁰

    Sob a perspectiva dos estudos da governamentalidade, as questões de Estado e soberania, tradicionalmente centrais para as investigações do poder político, são deslocadas.

    O Estado aparece agora como simples elemento – cuja funcionalidade é historicamente específica e contextualmente variável – em meio a muitos circuitos de poder, conectando uma diversidade de autoridades e forças, no interior de uma totalidade variada de conjuntos complexos.⁵¹

    O neologismo foi elaborado por Foucault durante o curso Sécurité, Territoire, Population, proferido no Collège de France entre o inverno e a primavera de 1978. Malgrado o título, o curso vai lidar com outra problemática a partir da aula do dia 1º de fevereiro de 1978: se as aulas anteriores, como explica Foucault,⁵² tinham sido dedicadas à série segurança-população-governo, agora se tratará de estudar o problema do governo. O deslocamento é de tal modo visível que, após ter introduzido a problemática da governamentalidade, Foucault dirá, no fim dessa aula:

    [...] no fundo, se eu quisesse ter dado ao curso que realizo esse ano um título mais exato, não seria certamente segurança, território, população que eu teria escolhido. O que gostaria de fazer agora [...] seria qualquer coisa que eu chamaria de uma história da governamentalidade.⁵³

    Ou seja, a governamentalidade se torna a noção mais importante para o conjunto das reflexões de Foucault; seria preciso seguir alguns dos seus desenvolvimentos para melhor compreender essa importância. Logo após a aparição do primeiro volume da História da sexualidade, Foucault dizia, em entrevista de janeiro de 1977, que o essencial de seu trabalho foi uma reelaboração da teoria do poder⁵⁴ a partir da qual afirma ter abandonado uma concepção tradicional do poder como mecanismo essencialmente jurídico que dita a lei, do poder como interdição com seus efeitos negativos de exclusão, rejeição etc. A Ordem do discurso, de 1970, aparece como um momento de transição; segundo Foucault, ao fazer a articulação do discurso com os mecanismos de poder, ele teria proposto uma resposta inadequada ao retomar a mesma concepção de poder que havia utilizado na História da loucura, mas que no contexto daquele projeto lhe parecia suficiente, posto que:

    [...] durante o período clássico, o poder se exerceu sobre a loucura sem dúvida nenhuma, pelo menos sob a forma maior da exclusão; assiste-se, então, a uma grande reação de rejeição na qual a loucura encontrou-se implicada. De modo que, analisando esse fato, pude utilizar sem muito problema uma concepção puramente negativa do poder.⁵⁵

    Segundo Foucault, teria sido sua experiência concreta a propósito das prisões, em 1971-1972, que o convenceu de que não era em termos de direito, mas em termos de tecnologia, em termos de tática e estratégia⁵⁶ que era preciso analisar o poder. Uma substituição que ele operou, inicialmente, em Vigiar e Punir, publicado em 1975. Em todo caso, foi no âmbito dessa reelaboração da teoria do poder que Foucault criou os neologismos biopolítica e governamentalidade, destinados a analisar as relações de poder sob diferentes aspectos: o primeiro nos processos ligados à população, o segundo no campo das tecnologias de governo. Essas duas noções constituem a contribuição mais importante de Foucault para o debate no interior da ciência política: sua força de inovação inaugurou um novo ramo de saber no domínio da política, sobretudo com os desenvolvimentos do grupo anglófono dos governmentality studies, que rompeu com as tradições liberal e marxista de análise do poder.

    Com as contestações de 1968, o colapso do comunismo na Europa Oriental e na ex-URSS, assistiu-se também à crise dos modelos hegemônicos de pensamento representados pelo liberalismo e pelo marxismo; um novo horizonte se abre, permitindo uma insurreição de saberes sujeitados que provou a eficácia de críticas descontínuas, locais e particulares, críticas que, segundo Foucault, tinham sido até então suspensas pelos efeitos de teorias totais e globais.⁵⁷ A irrupção de uma imensa criticabilidade das coisas levantou problemas relacionados ao poder e ao seu funcionamento nos diversos campos do saber, desde a medicina até a pedagogia, passando pela psiquiatria, pela criminologia, pela psicanálise etc. A contestação atingia o poder no lugar mesmo onde se exercia, na imediatez do seu exercício e por meio dos próprios corpos que ele mesmo investia, nas lutas locais e particulares contra a autoridade de um poder que atuava a nível microfísico: poder do macho, do pai, do homem, do branco, do médico, do psicanalista etc., questionados por homossexuais, por filhos, por mulheres, por negros, por doentes, por loucos etc. A partir das contestações de 1968 o desejo começou a ser levado em conta, fazendo emergir certo sujeito revolucionário plural. Sujeito que não era somente proletário, mas proletário e homossexual, louco, drogado, feminista, estudante. O final dos anos 1960 foi um período caracterizado pela eficácia das ofensivas dispersas e descontínuas contra as redes de poder. E o tipo de saber que essas ofensivas fez circular foi o saber das pessoas, um saber que era particular, local, diferencial e imanente à luta; incapaz, portanto, de se tornar unânime e de exigir consenso, que retira sua força unicamente da resistência que oferece a tudo que buscava aprisioná-lo. Foram saberes que se manifestaram lá onde materialmente e progressivamente o sujeito era constituído pelo poder a partir de uma multiplicidade de corpos, forças, energias, desejos e pensamentos. Ou seja, de um lado, desbloqueio de uma crítica não hierarquizada do poder e, de outro, lutas locais e horizontais contra o poder: trata-se de um cenário que tornou atual e urgente a tradição anárquica do pensamento político ocidental que tinha sido, desde a derrota da Revolução Espanhola e a ascensão totalitária na Europa e na América, se não desqualificada, ao menos desacreditada na força da sua crítica. Então, foi a partir desse cenário, diz Colson, que:

    [...] a ideia anarquista pode reafirmar uma concepção de mundo na qual todas as coisas estão reportadas a uma pluralidade infinita de forças e de pontos de vista em luta por sua afirmação, uma concepção na qual, como tinha afirmado Proudhon, todo grupo é um indivíduo, dotado de subjetividade, porque todo indivíduo é ele mesmo um grupo, uma resultante (portanto, um fluxo subjetivo), um composto de potências e de vontades.⁵⁸

    Foi no contexto das revoltas de 1968 e a partir da sua militância no GIP (Grupo de Informação sobre as Prisões), que Foucault constatou a insuficiência das análises do poder de que se dispunha até então. Dizia que, não obstante o interesse de muitos jovens pelo engajamento na luta contra a prisão, faltavam-lhes os instrumentos analíticos:

    [...] porque o PC, ou a tradição marxista francesa em geral, pouco ajudam naquilo que concerne aos marginais, naquilo que compreende seus problemas e o que apresenta suas reivindicações. A esquerda ela mesma tem a maior repugnância de fazer esse trabalho. Nós temos necessidade de análises a fim de poder dar um sentido a essa luta política que começa.⁵⁹

    Além disso, vivia-se igualmente o tempo de uma urgência política que se apresentou, segundo Foucault, desde o fim do nazismo e do stalinismo, como problema do funcionamento do poder no interior das sociedades capitalistas e socialistas. Mas não o funcionamento global do poder, tal como poderia aparecer em termos de Estado, classe ou castas hegemônicas:

    [...] mas toda essa série de poderes sempre mais tênues, microscópicos, que são exercidos sobre os indivíduos no seu comportamento cotidiano e até em seus corpos. Vivemos imersos no fio político do poder e é esse poder que está em questão. Penso que desde o fim do nazismo e do stalinismo todo mundo se coloca esse problema. É o grande problema contemporâneo.⁶⁰

    Contudo, diante dessa urgência, colocava-se a incapacidade analítica da época. Segundo Foucault, enquanto a direita questionava o poder em termos de constituição, de soberania, em termos jurídicos, o marxismo questionava-o em termos de aparelhos de Estado. Parecia-lhe insuficiente apreender o poder de uma maneira polêmica e global:

    [...] o poder no socialismo soviético era chamado pelos seus adversários de totalitarismo; e, no capitalismo ocidental, era denunciado pelos marxistas como dominação de classe, mas a mecânica do poder não era jamais analisada. Pôde-se começar a fazer esse trabalho apenas depois de 1968, quer dizer, a partir das lutas cotidianas e conduzidas na base, com aqueles que se debatiam nas malhas mais finas das redes do poder. É lá onde o concreto do poder apareceu e, ao mesmo tempo, a fecundidade visível dessas análises do poder para se dar conta dessas coisas que tinham ficado, até lá, fora do campo da análise política. Para dizer as coisas mais simplesmente, o internamento psiquiátrico, a normalização mental dos indivíduos, as instituições penais têm certamente uma importância muito limitada quando se busca apenas sua significação econômica. Ao contrário, no funcionamento geral das engrenagens do poder, elas são sem dúvida essenciais.⁶¹

    Essa dificuldade provinha, segundo Foucault, do desconhecimento quase completo acerca do poder e do fato de que nem Marx, nem Freud eram suficientes para fazer conhecer essa coisa enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida por toda parte, que se chama o poder.⁶² Nem a teoria do Estado, nem a tradicional análise dos aparelhos do Estado, davam conta do campo de exercício do poder.

    É o grande desconhecido: quem exerce o poder? Onde ele exerce? Atualmente, sabe-se suficientemente quem explora, para onde vai o lucro, nas mãos de quem ele passa e onde ele será reinvestido, mas o poder... Sabe-se bem que não são os governos que detêm o poder. Mas a noção de classe dirigente não é nem muito clara, nem muito elaborada. Dominar, dirigir, governar, grupo no poder, aparelho de Estado etc., existe aqui todo um jogo de noções que exigem análises. Assim como seria preciso saber até onde se exerce o poder, por quais relés e até quais instâncias frequentemente ínfimas, de hierarquia, de controle, de vigilância, de interdições, de obrigações. Por toda parte, onde existe poder, o poder se exerce. Ninguém, propriamente falando, é seu titular; e, no entanto, ele se exerce sempre numa certa direção, com uns de um lado e os outros do outro; não se sabe precisamente quem o tem; mas sabe-se quem não o tem.⁶³

    Ou seja, para o filósofo, a insuficiência das análises do poder encontrava-se ligada, desde o começo dos anos 1970, aos impasses das teorias liberal e marxista. Segundo Daniel Defert, quando da publicação do Anti-Édipo de Gilles Deleuze, Foucault teria lhe dito que era ‘preciso se desembaraçar do freud-marxismo’. Deleuze lhe responde: ‘Eu me encarrego de Freud, você se ocupa de Marx?’.⁶⁴ Pouco depois, ao escrever o resumo do curso Teorias e instituições penais, proferido no Collège de France, entre 1971 e 1972, Foucault afirmava sua hipótese de trabalho segundo a qual poder e saber não estavam ligados um ao outro somente pelo jogo dos interesses e das ideologias, de modo que o problema não é o de descobrir como o poder imprime ao saber conteúdos e limitações ideológicas, mas colocar no início de toda análise a implicação necessária entre saber-poder.⁶⁵ Assim, a partir de 1972, Foucault desloca o foco da sua análise que passa da arqueologia do saber à dinastia do saber: após ter analisado as formações discursivas e os tipos de discurso nos livros Arqueologia do Saber e As palavras e as coisas, seu projeto é agora estudar como esses discursos puderam formar-se historicamente e sobre quais realidades históricas eles se articularam, ou seja, em quais condições históricas, econômicas e políticas eles emergiram. A questão do poder ganha cada vez mais relevo.

    Parece-me que fazer a história de certos discursos, portadores de saberes, não é possível sem ter em conta as relações de poder que existem na sociedade onde esse discurso funciona. [...] As palavras e as coisas situa-se no nível puramente descritivo e deixa inteiramente de lado toda análise das relações de poder que sustentam e tornam possível a aparição de um tipo de discurso.⁶⁶

    A análise proposta por Foucault provocará a inversão da tradição marxista, que consiste em explicar as coisas em termos de superestruturas, quando, ao contrário, o sistema penal ao qual Foucault se dedicou, é um sistema de poder que penetra profundamente na vida dos indivíduos, relacionando-os ao aparelho de produção.⁶⁷ Nessa mesma época, segundo Daniel Defert, Foucault empreende a análise das relações de poder a partir da ‘mais indigna das guerras: nem Hobbes, nem Clausewitz, nem luta de classes, mas a guerra civil’.⁶⁸

    O curso de 1972-1973, no Collège de France, intitulado A sociedade punitiva, que deveria chamar-se, inicialmente, A sociedade disciplinar,⁶⁹ marca, talvez, a primeira elaboração sistemática da concepção do poder de Foucault. Foi após esse curso, em abril de 1973, que Foucault terminou "a primeira redação do livro sobre as prisões (Vigiar e punir)".⁷⁰ Em todo caso, no curso Foucault menciona o hábito que se tinha, no século XIX, de classificar as sociedades conforme a maneira pela qual elas tratavam seus mortos. Existiam, diz ele, dois tipos de sociedade: as incineradoras e as inumatórias. Em analogia a esse tipo de classificação, Foucault pergunta se:

    [...] não seria possível classificar as sociedades segundo a sorte que elas reservam, não aos mortos, mas àqueles que, entre os vivos, ela pretende se desvencilhar; segundo a maneira pela qual as sociedades dominam esses que procuram escapar ao poder, o modo como as sociedades reagem a esses que transpõem, rompem ou contornam, de uma maneira ou de outra, as leis.⁷¹

    Assim, existiram sociedades, como as gregas, que privilegiaram o exílio, o banimento para fora das fronteiras, a interdição a certos lugares; outras sociedades, como as germânicas, organizaram compensações, impuseram reembolsos, converteram o dano em dívida, o delito em obrigação financeira; existiram ainda sociedades como as ocidentais que, até o fim da Idade Média, praticaram a exposição dos corpos e os marcaram por meio da ferida, de cicatrizes e amputações, impuseram suplícios, em suma, apropriaram-se dos corpos e neles inscreveram as marcas do poder.⁷² Finalmente, chegaria o tempo das sociedades disciplinares que, como as nossas, aprisionam. São sociedades que em suas justificativas para o aprisionamento sempre definem os criminosos ou aqueles que escapam ao poder como sendo o inimigo.

    Em suma, os reformadores, na sua grande maioria, buscaram, a partir de Beccaria, definir a noção de crime, o papel da parte pública e a necessidade de uma punição, a partir unicamente do interesse da sociedade ou da pura necessidade de protegê-la. O criminoso lesa, antes de tudo, a sociedade; rompendo o pacto social, ele se constitui nela como um inimigo interior.⁷³

    Foucault definirá essa prática de aprisionamento como uma técnica e a prisão como uma tecnologia de poder própria das nossas sociedades cujo funcionamento possui três características fundamentais: 1) é um tipo de poder que intervém na distribuição espacial dos indivíduos, promovendo vigilâncias, deslocamentos, separações, fixações e circulações com fins específicos – esse aspecto, Foucault o retomará mais detalhadamente no curso O poder psiquiátrico;⁷⁴ 2) é um poder que atua não por meio de uma grade jurídica que teria por finalidade o estabelecimento do interdito e do proibido; não atua unicamente mediante efeitos negativos; ao contrário, intervém menos em nome da lei e mais em nome da norma, da regularidade e da ordem – Foucault dedicará o curso Os anormais aos processos de normalização das condutas;⁷⁵ finalmente, 3) é um poder sem origem ou de difícil determinação daquilo que seria um ponto de partida ou de chegada, em virtude de seu funcionamento em rede; em outras palavras, trata-se de um poder que é menos o instrumento de uma soberania, de um absolutismo ou de uma classe, pois seu exercício é capilar, local, microfísico. O estudo que procura demonstrar de maneira detalhada o caráter microfísico do poder foi feito no livro Vigiar e Punir;⁷⁶ mas também nas investigações realizadas sobre as lettres de cachet, publicadas inicialmente no artigo La vie des hommes infâmes, de 1977, depois reunidas no livro Le Désordre des familles, que será publicado mais tarde, em 1982, com Arlette Farge. Nesse trabalho, Foucault procurou mostrar como o poder seria leve, fácil, sem dúvida, de desmantelar, se ele não fizesse senão vigiar, espreitar, surpreender, interditar e punir; mas ele incita, suscita, produz; ele não é simplesmente orelha e olho; ele faz agir e falar.⁷⁷ A lettre de cachet, em uma definição geral, era "uma carta escrita por ordem do Rei, assinada por um secretário de Estado e selada [cachetée] com o selo [cachet] do Rei.⁷⁸ Tratava-se de cartas régias que continham uma ordem real de prisão ou de internamento, organizada sob a forma de serviço público para suprimir uma espécie de vazio judiciário existente na época. Essas ordens eram habitualmente solicitadas contra alguém por seus próprios familiares: pai ou mãe, filho ou filha, vizinhos, algumas vezes pelo pároco da cidade ou algum outro personagem influente. É preciso tomar essas ordens não como o bel prazer real servindo para aprisionar nobres infiéis ou grandes vassalos desobedientes [...], como ato público buscando eliminar, sem outra forma de processo, o inimigo do poder"⁷⁹, mas sobretudo como o hábito pelo qual as famílias recorriam

    [...] para resolver certas tensões, lá onde a autoridade, devido a sua hierarquia, era impotente e quando o recurso à justiça não era nem possível (porque o problema era demasiado insignificante), nem desejável (porque teria sido demasiado lento, demasiado custoso, infame, incerto).⁸⁰

    Graças a esse mecanismo singular, a prática das lettres de cachet pôde tomar tamanha amplitude e fez seu arbítrio ser considerado perfeitamente aceitável.

    Charles Bonnin, coveiro do cemitério dos Santos Inocentes, dirige-se muito humildemente a V.A. para lamentar que sua mulher afundou-se desde muito tempo num distúrbio tão terrível que se tornou o escândalo público de todos seus vizinhos, causando diariamente a ruína total do suplicante, tendo vendido tudo o que existia no quarto, até mesmo minhas roupas, das crianças pequenas e as dela, para satisfazer seu alcoolismo, que atingiu de tal modo o suplicante que atualmente convalesce no leito, doente sob os cuidados de sua pobre mãe, que muito pena para subsistir, para onde foi em retiro forçado, pois sua dita mulher recusou-se abrir a porta onde se trancou já faz três dias para se embebedar, pelo que espera o suplicante que Meu Senhor queira ordenar que ela seja aprisionada no hospital pelo resto de seus dias, e ele será obrigado a pregar a Deus pela saúde e prosperidade de V.A.⁸¹

    Jeanne Catry apresenta muito humildemente a V.A. que tendo esposado dito Antoine Chevalier, pedreiro, há 46 anos, ele tem dado sempre algum sinal de loucura que aumenta de ano em ano e que se atribuía somente a sua conduta má e devassa, porque ele não se comportou jamais como homem de nível, tendo sempre consumido no cabaré tudo o que ganhava sem ter nenhum cuidado com sua família, e tendo sempre vendido até mesmo os farrapos de sua esposa e os seus próprios para beber no cabaré; porém, Meu Senhor, assim como desde alguns anos, esta loucura, acompanhada dessa má conduta, aumentou a tal ponto que dito Antoine Chevalier retorna frequentemente para casa a qualquer hora da noite, inteiramente nu, sem chapéu, sem vestimentas, e mesmo sem sapatos, que ele deixa no cabaré para pagar as despesas que fez com o primeiro que vê, sem mesmo o conhecer, a suplicante, que é uma pobre mulher reduzida à mendicância pela conduta do seu marido, suplica muito respeitosamente a V.A. de querer bem a caridade de aprisionar dito Antonio Chevalier, seu marido. É a graça que ela ousa esperar de Vossa Bondade, Meu Senhor, e ela se obrigará de pedir a Deus por sua saúde e prosperidade.⁸²

    Suplicando muito humildemente Jean Jacques Cailly e Marie Madeleine du Poys, sua esposa, afirmam que Marc René Cailly, seu filho de 21 anos, esquecendo toda boa educação que lhe foi dada, frequenta tão só mulheres prostituídas e pessoas de má vida, com os quais ele se entregou a uma devassidão ultrajante [...]. Isso considerado, Meu Senhor, vos pedimos ordenar Marc René Cailly, filho dos suplicantes, a ser conduzido à casa R. Péres de Saint-Lazare para ali ser recluso para correção até que tenha dado sinais de arrependimento; oferecendo os suplicantes de pagar sua pensão, é a graça que eles esperam da Justiça de V.A.⁸³

    Meu Senhor, Jean Rebours apresenta muito humildemente à V. Majestade que tem por filha Marie Rebours, de 18 anos, que há quatro a cinco anos está entregue à libertinagem, não frequenta a Igreja, está atualmente com um soldado da guarda francesa, malgrado a boa educação, perdeu todo respeito pelo pai, o suplicante recorre a V.A. para que conceda uma ordem do Rei para aprisioná-la na casa do hospital. É a graça que espera de Vossa Equidade e o suplicante continuará suas rezas para a conservação da saúde de V.A.⁸⁴

    Em todos esses minúsculos dramas familiares, manifestamente infames, o poder soberano foi chamado a intervir em nome da causa de um marido ou de uma esposa, de um pai ou mãe etc., e nessa intervenção não somente a autoridade soberana é perfeitamente aceita, mas intensamente desejada. E com isso, foi estabelecida uma superfície de contato [...] entre a conduta dos indivíduos e as instâncias de controle, ou de castigo, do Estado. E, consequentemente, postula-se uma moral comum sobre a qual as duas partes – esses que a solicitam e a administração que deve responder – são estimulados a entrar em acordo.⁸⁵ E nesse momento, por meio dessa técnica um tanto rudimentar e arcaica, foi possível ao poder soberano do rei inscrever-se no nível mais elementar das relações sociais; de sujeito a sujeito, entre os membros de uma mesma família, nas relações de vizinhança, de interesse, de profissão, nas relações de raiva, de amor ou de rivalidade.⁸⁶

    Assim, nas práticas da lettre de cachet Foucault viu claramente e de maneira muito concreta o poder se exercer:

    [...] não, seguramente, como a manifestação de um Poder anônimo, opressivo e misterioso; mas como um tecido complexo de relações entre parceiros múltiplos: uma instituição de controle e de sanção, que tem seus instrumentos, suas regras e sua tecnologia própria, investida por táticas diversas segundo os objetivos desses que se servem delas ou que as sofrem, e seus efeitos se transformam, os protagonistas se deslocam; ajustamentos se estabelecem; oposições se reforçam; certas posições são afirmadas, assim como outras são minadas.⁸⁷

    As lettres de cachet possibilitavam ver em que medida as relações de poder não são a projeção pura e simples do grande poder soberano sobre os indivíduos, mas como essas relações são muito mais o solo móvel e concreto sobre o qual o poder vai se ancorar, as condições de possibilidade para que ele possa funcionar.⁸⁸ Daí a insuficiência das afirmações, frequentemente repetidas, de que o pai, o marido, o patrão, o adulto, o professor representam um poder de Estado que, ele mesmo, representa os interesses de uma classe. Esse modo de análise não dá conta nem da complexidade dos mecanismos, nem da sua especificidade, nem dos apoios, complementaridades e, às vezes, bloqueios, que essa diversidade explica.⁸⁹ As lettres de cachet explicitam o fato de que o poder não se constrói a partir das vontades (individuais ou coletivas), e que nem mesmo deriva dos interesses. O poder se constrói e funciona a partir de poderes, de multiplicidades de questões e de efeitos de poder.⁹⁰

    Foi para analisar essa mecânica disciplinar microfísica, que um mecanismo tal como as lettres de cachet fazia funcionar, que Foucault esboçou, no começo dos anos 1970, sua analítica do poder. Segundo ele, "seria necessário escrever uma física do poder e mostrar o quanto ela foi modificada em relação à suas formas anteriores, no início do século XIX, quando do desenvolvimento das estruturas do Estado".⁹¹ Em todo caso, o funcionamento desse poder descrito por Foucault era evidentemente contrário às análises políticas muito em voga feitas em termos de ideologia e de repressão empreendidas pela psicanálise, pelo marxismo e pelo chamado freud-marxismo, sobretudo a partir de Reich e de Marcuse. Para Foucault, o uso que Marcuse deu à noção de repressão era exagerado porque:

    [...] se o poder tivesse por função tão só reprimir, se ele operasse tão só sob o modo da censura, da exclusão, do bloqueio, do recalque, como um grande superego, se ele se exercesse tão só de uma maneira negativa, ele seria demasiadamente frágil. Se o poder é forte é porque ele produz efeitos positivos no plano do desejo – o que se começou a perceber – e no plano do saber.⁹²

    Chamar o poder de repressivo significava, portanto, privar a análise de uma compreensão possível dos efeitos positivos do poder por meio dos quais ele investe o desejo e o saber. Por isso Foucault insistiu que a análise não deveria se deter nessa noção de repressão, mas deveria continuar adiante para:

    [...] mostrar que o poder é ainda mais pérfido que isso. Que ele não consiste apenas em reprimir – a impedir, a opor obstáculos, a punir –, mas que ele penetra, ainda mais profundamente que isso, criando desejo, provocando prazer, produzindo saber. De modo que é bem difícil se livrar do poder, porque se o poder não tivesse por função a não ser excluir, impedir ou punir, como um superego freudiano, uma tomada de consciência seria suficiente para suprimir seus efeitos, ou ainda para o subverter. Penso que o poder não se contenta em funcionar como um superego freudiano. Não se limita a reprimir, a limitar o acesso à realidade, a impedir a formulação de um discurso: o poder trabalha o corpo, penetra o comportamento, permeia-se entre desejo e prazer, é nessa operação que é preciso surpreendê-lo e é essa análise difícil que é preciso fazê-la.⁹³

    Com relação a noção de ideologia, ao sugerir que o exercício do poder responde às exigências da sua recondução para uma ideologia dominante, se tornava incapaz de explicar todos os seus mecanismos reais e materiais pelos quais o poder efetivamente funciona; o poder, [...] antes mesmo de agir sobre a ideologia, sobre a consciência das pessoas, exerce-se de um modo muito mais físico sobre seus corpos.⁹⁴ Essas duas noções, repressão e ideologia, segundo Foucault, provocaram uma lacuna nas análises históricas dos mecanismos de poder.

    Já se fez uma análise dos processos econômicos, uma história das instituições, das legislações e dos regimes políticos, mas a história do conjunto dos pequenos poderes que se impõem a nós, que domesticam nosso corpo, nossa linguagem e nossos hábitos, de todos os mecanismos de controle que se exercem sobre os indivíduos, essa história resta fazer.⁹⁵

    Como notou Dean,⁹⁶ a elaboração dos trabalhos de Foucault sobre as formas históricas do poder e do governo

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