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O céu sobre meus mares
O céu sobre meus mares
O céu sobre meus mares
E-book202 páginas3 horas

O céu sobre meus mares

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Sobre este e-book

Guto Vilaverde nos entrega suas memórias neste delicioso O céu sobre meus mares. Trata-se de uma narrativa que constrói, via memória, a jornada de vida de um improvável casal: um jovem de Alegrete, pequena cidade do interior do RS, e um diplomata francês de ascendência pied-noir. Do encontro, na Porto Alegre dos anos 1990, seguimos sua trajetória num caudaloso rio de lembranças. Numa narrativa de ritmo acelerado, Guto nos apresenta Jean-Pascal e sua paixão pela literatura, pela gastronomia, pela cultura e, principalmente, pela criação de cães de raça para competições, pela aventura e pela vida. O livro nos arrebata por minúcias e descrições de lugares exóticos em países como Zâmbia, Moçambique, África do Sul, Austrália, Costa Rica, Singapura e, é claro, o Brasil, com sua gastronomia, arte, cultura, costumes. Guto e sua memória prodigiosa nos concede um painel fantástico de sua relação afetiva com Jean-Pascal, um jovem idealista, ousado, destemido, que o arrastou pelo mundo em aventuras e delícias, experimentando sabores, cheiros, cores, sem hesitação. O livro é uma celebração da vida e do amor, da amizade e do afeto, da coragem e do respeito a ser o que se é, sem temor e sem remorsos. Ao leitor resta o sentimento de voyeur privilegiado dessa bela relação que durou quase 14 anos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de nov. de 2024
ISBN9786557591895
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    Pré-visualização do livro

    O céu sobre meus mares - Guto Vilaverde

    Copyright © Guto Vilaverde, 2024

    Capa: Like Conteúdo

    Projeto gráfico e editoração: Niura Fernanda

    Revisão: Simone Ceré

    Conversão livro digital: Cristiano Marques

    Editor: Luis Antonio Paim Gomes

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    Bibliotecária Responsável: Denise Mari de Andrade Souza – CRB 10/960

    Todos os direitos desta edição são reservados para:

    EDITORA MERIDIONAL LTDA.

    Rua Leopoldo Bier, 644, 4º andar – Santana

    CEP: 90620-100 – Porto Alegre/RS

    Fone: (0xx51) 3110.9801

    www.editorasulina.com.br

    e-mail: [email protected]

    Novembro/2024

    Sumário

    As várias vidas de uma existência

    Sábado, 11 de abril de 1992

    Jean-Pascal Botella

    1990 e 1991

    1992 Porto Alegre

    1993 Lusaka – Zâmbia

    1995 Joanesburgo – África do Sul

    1998 Curitiba

    2001 Porto Alegre

    2002 França e África do Sul

    2002 Joanesburgo

    2006 O depois

    Sobre o autor

    Através do meu coração passou um barco

    que não para de seguir sem ti o seu caminho.

    Sophia de Mello Breyner

    Aqui em Alegrete, costumamos adaptar aquela máxima de que baiano não nasce, estreia, pros Vilaverde.

    A família é pródiga em artistas, e mesmo aqueles e aquelas que não escolheram a arte como ofício, exibem seus dotes artísticos nas rodas familiares ou pela pujante noite alegretense.

    Pois o Guto não fugiu à regra. Saiu artista. E levou tão a sério a vocação pela arte que não bastou um segmento. 

    Então guri, enveredou pelos caminhos da dança, depois deixou sua marca no teatro, escreveu letras lindas musicadas pelo genial Márcio Faraco, virou um dos maiores mosaicistas do país e agora nos apresenta outra faceta, a de escritor.

    E se lança nos apresentando a sua comovente história de amor, vivida em diferentes cantos deste mundão, cruzando ares e mares, em seu inevitável destino de aventureiro. 

    Ah, já ia esquecendo o seu maior talento. A capacidade rara de fazer amigos. Entre estes me incluo há 50 anos, o que significa que durante todas essas décadas estive na primeira fila, aplaudindo de pé o seu talento em tantos e diferentes palcos.

    Bravo!

    Paulo Berquó

    As várias vidas de uma existência

    Eis aqui o depoimento de uma vida que, por suas mirabolantes coincidências e desencontros, parece ficção e, portanto...

    Nesse relato das aventuras de Guto e Pascal, o acaso é o combustível da existência, e nele, assim como os perrengues aparentemente impossíveis são solucionados milagrosamente, os encontros mais surpreendentes ocorrem nos lugares mais insólitos e os cenários mudam de uma página para outra, como se o universo conspirasse para tornar tudo extraordinário.

    O livro tem uma dinâmica frenética que parece uma referência à personalidade vibrante de Jean-Pascal, o personagem que liga tudo a todos. Como ele, é engraçado, envolvente, contagiante, inesperado, triste, hilário e genial. Deixando-me levar pelo bom humor de suas linhas, de repente, senti um nó na garganta ao ler a transcrição do texto de um cartão postal onde Guto começa com Meu amado. Nesse momento, identifiquei uma saudade que permeia todos os instantes da história, entrelaçando tempo, música, risos, competições caninas, viagens pelo mundo e uma certa inocência – a inocência e a sede de viver que são ingredientes essenciais da coragem.

    Esperei que a obra decantasse em mim para me livrar dos sentimentos pessoais que provei ao lê-la e só um mês depois parei para tentar fazer esta apresentação. Conhecendo bem o autor, posso afirmar que ele escreveu este livro exatamente como viveu: com as lembranças chegando intensas e desordenadas, sem um plano definido e se organizando nas páginas com a meticulosidade de um mosaicista.

    É uma obra feita em breu de abeto, a substância que, por sua aderência, vibra as cordas da alma e transforma a vida em música. Uma composição feita de amor e saudade, assim como Apolo imortalizou Jacinto em flor.

    Marcio Faraco

    Compositor

    Sábado, 11 de abril de 1992

    Nossa velha amizade nasceu

    De uma luz que acendeu aos olhos de abril

    Com cuidado e espanto eu te olhei

    No entanto você sorriu

    Concedendo-me a graça de ver

    Talhado em você

    A nobreza de frente

    O amor se desnudando

    No meio de tanta gente...

    Nobreza – Djavan

    Porto Alegre, no início dos anos 90, era um lugar ideal para qualquer estudante de classe média, vindo do interior, buscar diversão e amizades. Aos 26 anos, num sábado à noite, não faltavam possibilidades. Entre o Bairro Bom Fim e a Cidade Baixa, no circuito boêmio da época, existia o bar Doce Vício. Ficava nas proximidades do histórico Parque Farroupilha, na Vieira de Castro, uma ruazinha arborizada que, aos domingos, liga o tradicional Brique da Redenção à Rua Venâncio Aires.

    O surpreendente ano de 1992 estava apenas no início. Tinha muita água pra rolar, não só na minha vida, mas no mundo inteiro. Nas grandes cidades de todo Brasil, os caras pintadas invadiram as ruas e acabaram forçando o impeachment do presidente caçador de marajás. Foi o ano da nebulosa morte de Ulisses Guimarães, do lançamento de Erotica, o álbum mais polêmico de Madonna, e do seu escandaloso livro Sex, da histórica cruzada de pernas de Sharon Stone e do fim do conto de fadas de Charles e Diana.

    Mas voltando ao outono, o clima de Porto Alegre em abril é perfeito. A luz límpida intensifica as cores do dia e o imenso azul do céu. O ar é seco e levemente frio. A noite começa a cair mais cedo, com seus barulhos de copos, talheres e risadas, como uma festa de despedida do escaldante verão gaúcho.

    Nessa época, eu morava com meu amigo de infância Paulo Antônio, e no horário do almoço trabalhava no restaurante Torta de Sorvete, na Rua Padre Chagas. À tarde, ensaiava um espetáculo com o Ballet Mudança, uma companhia de vanguarda no cenário da dança contemporânea gaúcha nos anos 80 e 90. Éramos cinco bailarinos e duas bailarinas dividindo o palco numa obra coreográfica de Ivan Motta, chamada Vuelvo al Sur, sobre os tangos modernos de Astor Piazzolla.

    Os compromissos do dia já haviam sido cumpridos com sucesso. Depois do ensaio, combinei com o Fernando Palau, companheiro de palco, que iríamos ao Doce Vício à noite.

    Foi nessa época, numa mesa da Torta de Sorvete, que vi um telefone celular pela primeira vez. A geringonça, um tijolo portátil que ocupava boa parte de mesa, ainda não indicava que iria revolucionar a comunicação das décadas seguintes. Mas como o Fernando e eu pertencíamos a outro mundo, eu comprei uma ficha de orelhão, que era praticamente a única forma de comunicação à distância até então, e liguei para combinarmos nossa chegada juntos ao bar.

    O concorrido ponto GLS (sim, era assim que se dizia, antes da chegada das outras letras) era num casarão de três pisos, com uma pista de dança no segundo e um terraço aberto no último. O Doce Vício tinha as melhores panquecas de Porto Alegre. Os donos não primavam pela simpatia, mas esse ranço era compensado pela recepção calorosa da Nega Lu, uma figura notória na noite da cidade no final do século passado. Nascida Luiz Airton Bastos, o ex-bailarino e cantor foi solista dos corais da UFRGS e da Ospa e crooner da banda de blues Rabo de Galo. Nega Lu recebia os frequentadores com seu vozeirão, interpretando clássicos de jazz ou blues e impressionando a todos, até os mais frequentes. Quando ela me via chegando, e sabendo que eu gostava, cantava Summertime, de George Gershwin, a plenos pulmões, me matando de vergonha. Sempre usando um turbante feito da bandeira do arco-íris e uma caneta Bic na orelha para anotar os pedidos dos clientes, ela cantarolava de mesa em mesa. Tudo na Nega Lu era alegria transgressora e revolucionária.

    Da nossa chegada ao bar eu não lembro direito, mas me recordo que a casa estava cheia. A pista lotava aos primeiros acordes de algum sucesso da época, como Domino Dancing, dos Pet Shop Boys. O que a minha memória olfativa jamais vai esquecer é da mistura dos cheiros de cigarro, panqueca e Styletto.

    Com nossos copos de cerveja, ficamos entre a pista e o terraço, onde era possível fumar sem incomodar ninguém. Mesmo que naquele tempo ainda fosse permitido fumar em quase todos os bares e boates, o Fernando tinha voltado de um período na Europa, de onde trouxera a novidade do espaço para fumantes, geralmente ao ar livre. Eu, mesmo sem o hábito do cigarro, acompanhava o amigo nesse divertido sobe e desce de escadas, motivo para paqueras, algumas piadas divertidas e brindes com desconhecidos.

    Numa dessas idas ao terraço, onde também havia um balcão e um barman fazendo malabarismo com garrafas coloridas, nós decidimos que ali seria o melhor lugar para passar o resto da noite. Havia também uma turma em pé, numa conversa animada. Algum tempo depois, percebi que toda a atenção daquela conversa era para um desconhecido que, no centro da roda, respondia perguntas com simpatia e não se importava com as piadas e brincadeiras de duplo sentido. Bebia caipirinha, fumava e sorria com os olhos. A pele morena e a careca contrastavam com as sobrancelhas cerradas. Tinha o queixo largo e um sorriso de menino. Gesticulava com um jeito tímido e atento, tentando entender o que os outros falavam. E todos falavam ao mesmo tempo. Vestia uma camisa escura e uma calça Levi’s 501, com um estilo que desviava a atenção de quem passava. Enquanto eu reparava, percebi o sotaque quando ele elogiava o barman pelas caipirinhas. E foram muitas caipirinhas. Foram tantas que mesmo eu, que não fazia parte da conversa, mas não disfarçava a curiosidade, fui convidado a interagir. Aos poucos, eu e o Fernando já estávamos enturmados com o pessoal e formávamos um grande grupo. Enquanto o som aumentava, lotando cada vez mais a pista no andar de baixo, o nosso grupo foi diminuindo, até que ficamos a sós Meu nome é Jean-Pascal. Sou francês e trabalho para a Embaixada da França aqui no Brasil. Estou em Porto Alegre há pouco mais de um ano. O sotaque era uma mistura de francês com português. Aprendi português em Portugal, antes de vir morar no Brasil. Ele me disse que havia passado um ano em Lisboa, até ser chamado pelo Ministère des Affaires Etrangères para assumir o posto de Adido de Cooperação Linguística e Educativa em Porto Alegre, e que seu escritório era no Centro, em frente ao Mercado Público. Sabes a loja Dabdab? É em cima! Um prédio alto que tem uma vista linda sobre o Guaíba! Passa lá um dia e tomamos um café. Fica no décimo segundo andar!

    A conversa se estendeu, e num piscar de olhos já passava das quatro horas da madrugada. Eu não sabia onde andava o Fernando, e nenhum dos novos amigos havia retornado. Éramos nós, o barman e alguns fumantes avulsos.

    Eu vim de táxi. Meu carro está na oficina. Quer ir para a minha casa? É um pouco longe, mas tem uma vista linda da cidade. Depois de pagarmos a conta e da Nega Lu nos levar até a rua cantando Piaf com um sorriso no canto da boca, sentamos no banco traseiro do táxi. Enrolando a língua pela caipirinha e o sotaque, ele passou o endereço para o taxista: Rua Dr. Arnaldo da Silva Ferreira, 95, Jardim Isabel, Zona Sul, e imediatamente caiu dormindo no meu ombro. O taxista me procurou pelo retrovisor para me dizer que aquele endereço era bem longe, que iria demorar um pouco, mas que eu ficasse tranquilo, pois ele sabia onde era. O dia foi amanhecendo, e à medida que nos distanciávamos do centro de Porto Alegre, ia surgindo a orla luminosa do Guaíba.

    O taxista tentou alguns assuntos, curioso para saber quem era o estrangeiro que dormia. Eu desconversei. Subimos a Rua Arlindo Pasqualini, que, segundo o motorista, era em direção ao Morro do Osso, uma pequena reserva ecológica protegida pelos moradores da região.

    Quando finalmente chegamos ao endereço, ele acordou, pagou a corrida, e descemos em frente a uma casa no topo de uma colina – pela localização, dava para ver que tinha uma vista privilegiada sobre o Guaíba. Com o barulho das chaves na grade do portão, ouvi alguns latidos e fui surpreendido por uma correria de cachorros que desciam a entrada da garagem e vinham festejar a chegada do dono da casa. Era quase impossível entrar pelo portão. Uns pulavam alto e saltavam no colo dele, outros, de tão felizes, pulavam em mim também, enquanto eles ganhavam carinho, o dono me apresentava os nomes: Essa aqui é a mais velha, a Daia, essa é a Faustine, o Roy, a Gina, o Apache, a Pulguinha... e foi me dizendo tantos nomes e me explicando quem era mãe de quem, qual era o pai, quais eram irmãos de ninhada, e eu, tonto, fingia que entendia tudo. Subimos a entrada da garagem e, antes de entrarmos na casa, ele me sugeriu que olhasse para trás para ver a imensidão do Guaíba daquele ponto. Estava completamente prateado. Entramos na casa e fui apresentado à empregada que já preparava um café da manhã para o Seu Jean. Pela maneira afetuosa com que eles se falavam e pela nítida dedicação com que aquela mesa de café havia sido posta, eu tive certeza de que estava ao lado de alguém muito especial. As pessoas aqui no Brasil me chamam de Jean. É um pouco estranho, mas eu já me acostumei. Eu perguntei se estava errado, e ele: Em francês a pronúncia correta é ‘jan’, e nunca vem sozinho, é sempre um nome composto. Explicou, sorrindo: O meu é Jean-Pascal, assim como tem Jean-Paul, Jean-Marc, etc.. Tomei um gole de café achando graça no sotaque.

    Mais tarde, enquanto ele chamava um táxi que me levaria de volta pra casa, combinamos de nos encontrar, talvez no mesmo lugar da noite anterior, talvez em um cinema ou um café. Como só tínhamos telefones fixos naquela época, foi importante levar o número anotado e bem conferido.

    Voltando no táxi para casa, eu sentia uma leve ressaca que misturava informações e sensações. Baixei o vidro do carro para disfarçar o sorriso que durou o resto do dia.

    Jean-Pascal Botella

    ...tout seul avec le vent

    Comme dans mes rêves d’enfant

    Je m’en irai courir dans le paradis blanc...

    Le Paradis Blanc – Michel Berger

    Antes de prosseguir, preciso voltar no tempo, e repetir o que Jean-Pascal contava sobre sua criação no sul da França. As histórias das nossas famílias, de antes de nos conhecermos, sempre renderam longas conversas. Algumas sobre dificuldades e regeneração, mas também sobre conquistas, alegrias e comemorações. Aqui, vou detalhar o que ele me relatou. E os detalhes eram imprescindíveis para dois virginianos.

    Jean-Pascal Gérard Botella era francês e nasceu em 17 de setembro de 1959, na cidade de Frenda, no norte da Argélia, país que havia sido colonizado pela França e que, naquele momento, passava pela guerra de independência. A Argélia era mais uma nação inserida no movimento de descolonização que vinha acontecendo em todo continente africano. Naquele país, o movimento de libertação começou em 1954 e só acabou em 1962, com o fim da guerra e o êxodo de 900 mil colonos para a França.

    Os franceses que viviam nas colônias do norte da África, e principalmente da Argélia, eram chamados de pieds-noirs. Essa expressão vem dos pés pretos dos trabalhadores das minas de carvão, que foram os primeiros grupos de colonizadores a desembarcar no território argelino. Essas famílias não eram necessariamente francesas de

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