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Consolação
Consolação
Consolação
E-book438 páginas7 horas

Consolação

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Sobre este e-book

O romance Consolação narra a aventura (e as desventuras) de Marco Camargo, jornalista que, em vias de completar 30 anos, toma um pé na bunda na mesma época em que uma demissão em massa atinge a redação onde trabalha. Ao descobrir que sua ex, por quem nutre um sentimento de posse, já arrumou outro, o protagonista se lança ao seguinte desafio: levar cem mulheres para a cama. O narrador se muda com seu cachorro para o bairro paulistano Consolação e, literalmente da noite para o dia, passa a viver uma rotina frenética de sexo, drogas e rock'n'roll. Tal qual um Forrest Gump degenerado, o personagem atravessa os principais acontecimentos do Brasil — da crise no jornalismo à popularização do Tinder, de junho de 2013 à Copa do Mundo —, sempre atrás de um novorabo de saia para sua lista.Com ritmo acelerado, abordagem naturalista e influência da linguagem do cinema, da internet e da música pop, a narrativa expõe a liquidez e o automatismo dos relacionamentos na era digital, ao mesmo tempo em que serve como prelúdio para a crise política e ideológica no país. O tom canastrão e o léxico sexista do narrador acabam por revelar as contradições identitárias e as fragilidades associativas que se escondem sob a masculinidade tóxica. Ao mesmo tempo, ao capturar, de forma alegórica, a onda hipster, o livro se coloca como registro geracional dos primeiros millennials a atingirem 30 anos.

TEXTO DA CONTRACAPA
"Depois de se separar, o jornalista Marco Camargo resolve tirar o atraso, propondo-se a cair na noite e levar cem mulheres para a cama. O que pode parecer uma premissa vazia revela-se uma forma corajosa e bem-humorada de abordar a crise do macho contemporâneo. Afinal, ao acordar solteiro, Marco descobre que, para lá da porta do seu apê, o mundo não é mais o mesmo. As mulheres mudaram e a forma de interagir com elas também. Numa era digital e avessa a ranços machistas, Marco tenta sobreviver e (por que não?) se dar bem, pulando de um par de seios para outro, às vezes anestesiando-se com drogas, bebida e música pop, às vezes fantasiando um curioso seminário sobre como conquistar qualquer mulher. O nome Consolação refere-se ao bairro em gentrificação que se transforma junto com o personagem, mas também poderia aludir ao resquício deixado pela narrativa: num universo de relações cada vez mais supérfluas, o sexo casual pode não salvar ninguém, mas pelo menos serve como algum consolo", Giovana Madalosso.
IdiomaPortuguês
EditoraProsaica
Data de lançamento17 de jan. de 2020
ISBN9786580466016
Consolação

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    Consolação - Carlos Messias

    Playlist Consolação no Spotify: tiny.cc/1moz5y

    #RomanceConsolação

    carlos messias

    Índice

    Marquês de Paranaguá 15

    Roosevelt 71

    AUGUSTA 137

    Frei Caneca 185

    PAIM 251

    Copyright © 2019 by Carlos Messias

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,

    que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    CAPA Vanina Batista

    Foto Lucas Lima

    Projeto gráfico Rodrigo Terra

    Preparação Livia Deorsola

    Revisão Lucas Mendes Kater

    1a impressão, 2019

    Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção.

    fb.com/editoraprosaica • coesaoindependente.com.br/editora/prosaica

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Messias, Carlos

    Consolação / Carlos Messias. -- São Paulo :

    Editora Prosaica, 2019.

    ISBN: 978-65-80466-01-6

    1. Ficção brasileira I. Título.

    19-26304 CDD-B869.3

    Índice para catálogo sistemático:

    1. Ficção : Literatura brasileira B869.3

    Beber, fumar, cheirar, trepar sem camisinha, comer fruta sem lavar, beber água da torneira, não fazer plano de saúde, não ir ao médico, deixar cicatrizar sem desinfetar, não renovar o seguro do carro, passar dos cento e vinte quilômetros por hora, dirigir chapado, furar batida policial, não trancar o carro, não trancar a porta de casa, encarar de volta, sair na mão se a ocasião exigir. Vivemos em uma redoma de segurança imaginária. Uma ilusão alimentada com o intuito de adiar ao máximo o momento em que inevitavelmente seremos obrigados a reconhecer que não temos controle sobre porra nenhuma.

    Claro, você tem mais chances de morrer sendo inconsequente. Mas pode perder a vida mesmo levando uma vida prudente. Vemos motorista bêbado que mata uma família ao errar uma curva. Mas muita gente — a maioria, eu arriscaria — comete peripécias como as descritas acima, ainda que escondido, e sobrevive. Ah, foi só aquela vez, você pode dizer a si mesmo. Mas a experiência tem me provado que, na loteria do acaso, pode passar muito tempo até chegar sua vez. E em quase dois anos de vida loka, ainda não tinha sofrido nem um arranhão — pelo menos na superfície.

    Refletia sobre isso enquanto colocava meu copo de vodka — meio cheio, meio vazio — na divisória que separava a minha privada da do meu vizinho no banheiro. O cilindro de plástico com o destilado e gelo derretido ali repousou obedientemente. Com o passar dos anos eu havia me especializado na arte de apoiar a bebida em superfícies altas de banheiros sujos. Aproveitei a viagem para cheirar uma carreira estirada sobre a tela do iPhone através de uma nota de dez reais. Depois de sete cervejas, quatro vodkas para levantar, um doce para brisar e um baseado para potencializar a brisa, só o pó salva.

    Ao me inclinar para lavar as mãos, me olhei no espelho e encarei meus olhos fundos. Pude ver meu rosto derretendo, então me lembrei de que não se olha no espelho depois de tomar ácido. Vazei dali. De volta à pista, DJ Virado tocava Odara, do Caetano, canção que nunca faltava em seu set. Desde que tinha me separado da Érica, devia ter escutado essa música umas 894 vezes. Destas, coisa de 732 foram engatilhadas pelo anfitrião da festa Santuário, uma instituição onde a elite cultural da Zona Oeste paulistana costumava ir para dançar e fazer baguncinha.

    Bill, no entanto, parecia se divertir, assim como, imagino, qualquer estrangeiro que se sinta em contato com tamanho exotismo. Depois de ter comido pouco, bebido bem e cheirado muito, o gringo tinha entrado no modo disco riscado e tentava desenvolver uma longa e profunda conversa com um hippie sujo que tinha acabado de conhecer. Olhei ao redor para ver se a noite ainda tinha algo a oferecer, mas, como parecia comum nos últimos tempos, só caiu essa ficha quando a pista carecia de ofertas. Ainda havia ex-peguetes disponíveis, como via de regra era o caso. Naquela madrugada específica, estavam as de número 29, 47 e 71 da minha lista, mas nenhuma que tivesse empolgado o suficiente a ponto de eu querer repeteco. A vida de solteiro é feita de ciclos. Tinha época em que eu simplesmente parecia exalar boceta, o que funcionava como íman, como afrodisíaco para que mais bocetas se dispusessem a se abrir para mim. Em outras fases, como aquela, parecia estar escrito na minha testa que eu não comia ninguém há quase um mês.

    Quando deixamos a festa, já estava claro. A brisa daquela manhã cinzenta de domingo trazia certa melancolia. E a ressaca, que já se anunciava pela garganta seca, prometia ser avassaladora. Antes de chafurdar na autocomiseração, no entanto, ainda tinha de dar carona para Bill, que estava hospedado no Mercure da alameda Itu. À distância, apertando um botão no controle embutido na chave, destravei as portas do Astrones (como costumava me referir ao meu Astra Elegance hatch cinza-chumbo) e ele ofereceu o assento do passageiro ao seu novo BFF, deixando-me com um estranho ao lado.

    Very nice, my friend, era basicamente a única forma como o hippie sujo respondia aos acessos verborrágicos do gringo.

    Saí pela Pedroso, entrei na Inácio Pereira da Rocha e segui até a Henrique Schaumann, quando aquele hippie cabuloso resolveu puxar assunto comigo. Em português.

    — Eu te conheço, cara — soltou, em tom que pareceu ameaçador.

    — Hum? — desacreditei. Por mais que em tempos de Facebook e Instagram a sua vida fique tão exposta a ponto de completos estranhos saberem da sua existência, a porra do hippie estava falando de forma muito clara. E rancorosa.

    — Eu te conheço, cara!

    — De onde, caralho? — apelei.

    Ele deu uma risadinha meio sacana.

    — Fala, porra! — insisti.

    — Você foi o último namoradinho da Nina antes de ela sair do país. Ela se mudou para Londres por sua causa.

    — Que caralho de Nina, mano? — eu já estava bem paranoico.

    — Como assim, que Nina? — ele reagiu, cabreiro.

    — Velho, eu nunca namorei nenhuma Nina. Tenho certeza

    — afirmei.

    — Namorou, sim.

    — Mano, eu só tive três namoradas na vida. E nenhuma delas se chamava Nina. Nem Marina. Nem Vanina. Ou qualquer nome que justifique esse diminutivo.

    — Tá, não namorou. Vocês estavam de casinho antes de ela viajar.

    Aaah tá… Uma coisa era namorar. Outra era ter dado umazinhas por aí. E Nina, diminutivo comum em ex-alunas de colégios construtivistas, certamente era uma alcunha reincidente no meu CV.

    — Que Nina? — insisti.

    — Como assim, que Nina? — o hippie levantou a voz, definitivamente abrindo mão da vibe paz e amor. Pelo retrovisor, vi Bill com os olhos esbugalhados no banco de trás. Ele não falava quase nada de português, mas certamente conseguia entender alguma coisa daquele diálogo surreal. O hippie serviu ao menos para calar a boca do cheirador tagarela. Encostei o carro e olhei no fundo dos olhos dele.

    — Qual o sobrenome, caralho? — pó me deixava macho pra porra.

    — Você não sabe? — redarguiu, ressentido.

    — Sei, claro que eu sei. Por isso que eu encostei o carro às sete da manhã de um domingo para discutir com um noia que nem você!

    — Lombardi.

    — Quê?

    — Nina Lombardi.

    Aí sim deu um estalo. Dos brabos. Eu havia saído umas três vezes com uma Nina Lombardi, ou melhor, com uma Marina Lombardi, no ano anterior. Se não me engana a memória, havia sido a sortuda de número 59. Havíamos nos conhecido no Tinder. Como já tínhamos trocado uns olhares na Merça, o approach tinha sido mais fácil. Saímos algumas vezes, entre elas um show horroroso de música jamaicana no Sesc Pompeia (de onde me vêm uns flashes de ter conhecido o hippie sujo), e nunca mais nos vimos. O sexo era OK, ela tinha sido uma companhia agradável, inteligente, até divertida, mas, no nosso último encontro, demonstrou, como todas eventualmente fazem, estar interessada em algo mais. Tudo que uma mulher à época precisava fazer para ser condecorada com a minha indiferença (bem que eu tinha achado estranho ela mudar de país tão repentinamente).

    — A Nina Lombardi! Muito legal, ela — enfim, reconheci.

    — Muito legal? A Nina é uma pessoa incrível. E eu mato quem se atrever a falar mal dela. Vai querer discutir? — ameaçou, projetando a cara em direção à minha.

    — Não, de forma alguma — afinei, não pelo hippie sujo representar qualquer ameaça, mas porque senti certa culpa com relação à Nina. E também bateu uma preguicinha de sair na mão àquela hora da manhã.

    — Quantas mulheres você precisa foder até entender que pode ter uma para amar?

    Que porra ele queria dizer?

    — Que porra você quer dizer?

    — Você me ouviu.

    Eu tinha ouvido mesmo, a ponto de desejar não ter escutado. Virei a chave na ignição, engatei a primeira e retornei ao fluxo da Bela Cintra deserta do primeiro domingo de junho de 2014. OK, era óbvio que o hippie era apaixonado pela Nina; ela muito provavelmente o havia colocado na friend zone, que, em minha opinião, era o status de relacionamento mais ingrato que um homem poderia ter com uma mulher.

    Mais do que sua pergunta sem sentido, tinha me tocado do quão absurda era a ideia de que eu poderia ter me esquecido tão facilmente de alguém com quem tinha me relacionado havia não tanto tempo, fato que, pelo visto, a tinha impactado o suficiente para influenciar em sua decisão de se mudar de país.

    Ao subirmos a Augusta, na altura da Franca, a carcaça chamuscada de um Gol jazia no meio da rua. O carro tinha pegado fogo provavelmente algumas horas antes, pois não havia ninguém por perto. Ainda era possível sentir o cheiro de queimado.

    Marquês de Paranaguá

    Eu era bem diferente quando me mudei com o Nietzsche, meu schnauzer acinzentado, para o apartamento 91 do edifício Lydia, prédio no número 66 da Marquês de Paranaguá, quase esquina com a rua da Consolação, dois anos antes. Lá me estabeleci quando eu e Érica nos separamos. Mesma época em que fui um dos quarenta demitidos em um passaralho do jornal. Eu gozava do mais deleitoso ócio ininterrupto naquele palacete de 55 metros quadrados. Ao entrar, você se deparava com um longo corredor com estantes abarrotadas de livros, discos de vinil, CDs e DVDs à direita. Na primeira porta à esquerda, uma cozinha com piso de casquinhas de cerâmica vermelha e gabinetes brancos com aquelas saídas redondas de ar típicas dos anos sessenta. A segunda porta revelava o banheiro, também com azulejos brancos, uma banheira quase vitoriana ao fundo, espelho com armarinho sobre a pia e toalheiros de louça. Na terceira porta estava o meu quarto, com armário embutido, cômoda de madeira sob a janela, cama do tipo box e um criado mudo. Àquela altura, tal servo silencioso, posicionado entre a porta e a cama, ainda não tinha como prever tudo o que testemunharia, quase sempre com o abajur aceso, pois sou do tipo que gosta de olhar para determinadas partes do corpo feminino durante o ato. Se aquele móvel falasse, me pouparia deste relato.

    É um processo longo e angustiante transformar um quarto e sala num lar. Móveis que não cabem tão bem como já couberam, peças que não dão liga entre si, um espaço que ainda não se encaixou.

    Quando me mudei, comecei a ocupar a sala, ao final do corredor, de maneira solitária, assistindo a filmes na Zenith 19 polegadas de tubo que ficava sobre a cômoda de jacarandá, ao lado da vitrola e do receiver vintage, lendo no meu sofá de tecido verde com almofadas macias, que me lembravam a sala do Grande Lebowski, com a diferença de que eu ainda tinha o meu tapete marrom (it really tied the room together), mesma cor da mesa de madeira em estilo botequim, comprada com duas cadeiras em uma loja de móveis usados na Amaral Gurgel.

    Até então, passava as tardes catando milho na minha velha Remington Rand, onde, sem muita disciplina, tentava escrever um livro. E via o anoitecer enquanto fumava um cigarro na sacada com vista para a praça da República. Em retrospecto, foi provavelmente o último período em que conseguia nutrir qualquer espécie de romantismo em meio ao cotidiano.

    Na noite da mudança, me indulgenciei um banho de banheira com espuma comprada especialmente para a ocasião. Abri uma das caixas com discos de vinil e puxei o primeiro que meus dedos conseguiram fisgar: Tempo, do grupo Tamba Trio. Era da Érica, um dentre os vários álbuns da respeitável coleção de samba e MPB que ela havia herdado do pai quando até mesmo ele se cansou da reprodução analógica. Tinha vindo parar entre os meus por engano. Sempre me irritou essa mania que a Érica tinha de não devolver os vinis ao lugar de onde haviam saído, separado por gênero, país de origem e ordem alfabética. Pelo menos assim eu acabei levando vantagem inesperada sobre o espólio do sogrão. E samba-jazz ornaria com o banho de espuma.

    No banheiro, de frente ao espelho vertical atrás da porta, tirei o relógio e depois os óculos de leitura, que de uns tempos para cá tinham passado a parecer grandes demais para o meu rosto. Ao puxar a camiseta branca e já encardida, após um dia levantando e abaixando caixas, constatei que de fato havia emagrecido. Minhas costelas, sempre salientes, se projetavam ainda mais. O escorpião que eu tinha tatuado na maçã do ombro esquerdo, resultado da primeira viagem à Praia do Rosa, em Santa Catarina, com a turma do colégio, parecia maior. Até mesmo meu pau, com medidas dentro da média (mais para a metade de lá do que de cá, importante frisar), se vangloriava da nova proporção figura-fundo a ele proporcionada, como pude observar pelo reflexo. Não achei que minha dieta involuntária pudesse ter a ver com a dolorosa constatação de que o meu saco começava a cair.

    A água quente massageava cada terminação nervosa dos meus músculos e, aos poucos, abrandava qualquer sinal de dor. O cenário de uma banheira branca me lembrou de quando comi a Érica na banheira do hotel onde estávamos hospedados em Nova York — provavelmente a única vez em que transamos durante a nossa última viagem juntos.

    Me permiti fantasiar com lembrança tão gloriosa, experiência pela qual, naquele instante, eu daria um mindinho para reviver. Tive de me contentar com o simulacro daquele espetáculo que agora se passava só na minha cabeça. Ao observar meu esperma se misturar à espuma, refleti sobre como um único daquelas centenas de milhares de espermatozoides, agora prestes a ir pelo ralo, poderia ter salvado nosso relacionamento. E eu não estaria apenas fantasiando lembranças com o meu pau na mão.

    O álbum chegava à décima primeira faixa, Consolação, composta por Baden Powell e Vinicius de Moraes: Se não tivesse o amor, dizia a letra, se não tivesse essa dor/ e se não tivesse o sofrer/ e se não tivesse o chorar/ melhor era tudo se acabar./ Eu amei, amei demais/ o que eu sofri por causa do amor ninguém sofreu./ Eu chorei, perdi a paz./ Mas o que eu sei é que ninguém nunca teve mais, mais do que eu.

    Quando consegui desviar minha mente da imagem daqueles nadegões firmes e arrebitados e do rosto dela, virado para trás, meio que solicitando que eu mandasse ver, notei que o teto havia sido pintado sem lixar. O mesmo acontecia na área de serviço. Imaginei que, na hora de se apressar para deixar o apartamento gastando o mínimo possível, algum inquilino deve ter deixado de pintar o forro, o que pode ter passado batido pela imobiliária, e o problema assim fora herdado pelo inquilino seguinte. Este, por sua vez, viu a pintura começar a descascar e, só de birra, passou o rolo de tinta de qualquer jeito e devolveu o imóvel sem ter se dado o trabalho de nivelar a superfície. O inconveniente seria herdado pelo inquilino posterior, formando, assim, um círculo vicioso que resultou naquele aspecto embolorado que eu teria o desprazer de observar sempre que deitasse na banheira. Bem diferente dos cômodos do apartamento que Érica tinha ganhado da mãe, com acabamento impecável, ao qual eu tinha me acostumado ao longo de cinco anos, assim como com o corpo dela.

    ***

    Quatro horas da manhã, eu sozinho no quinto andar do Correio de São Paulo. Fileiras e fileiras com cadeiras vazias, computadores ligados e potentes luminárias com lâmpadas bastão que zumbiam em uníssono. Eu tinha, mais uma vez, sobrado no pescoção, desolação com a qual já devia ter me acostumado por ter acumulado as funções de redator e repórter, mesmo ganhando o piso. Às sextas a editoria de cultura fechava os cadernos de sábado e de domingo.

    Estava decupando a entrevista de um jovem documentarista brasileiro. Leite de pedra havia sido arrancar algo de aproveitável naquele monólogo absolutamente padrão sobre a dificuldade de se conseguir público e recursos no cinema nacional. Só lá pelo minuto 22 consegui arrancar uma frase de efeito minimamente original para poder estourar no título. O mais chato de transcrever entrevista era quando eu conseguia terminar de anotar uma fala e o entrevistado já emendava em uma outra linha de raciocínio, o que me obrigava a voltar ao meio da sentença, via de regra passando bastante do ponto e me obrigando a escutar partes do discurso que já tinha anotado.

    O telefone tocou. Consultei o primeiro daquela sequência de relógios digitais com luz vermelha que pendiam sobre cada editoria. Marcava três horas. Adivinhei quem era.

    — O que você ainda está fazendo aí? — Érica exigiu saber.

    — Estou em meio a uma orgia regada a uísque e champagne, e você?

    — Muito engraçado ficar ouvindo piadinha às três da manhã do namorado que não vem para casa.

    — Acredite, meu anjo, não é por opção.

    — O que você está fazendo aí até essa hora?

    Eu adorava essas perguntas retóricas.

    — Tô trabalhando — me contive. — Só sobrou eu.

    — Pra variar.

    — O que eu posso fazer se, não bastassem todas as páginas fixas de duas edições que eu tenho que fechar, ainda tenho uma matéria para escrever.

    — Só você? Sei — ironia fina era a especialidade da Érica.

    — Só eu mesmo — respondi, mais firme.

    — Marco, você quer que eu acredite que você está trabalhando, sozinho, às três da manhã de uma sexta-feira?

    — Quero.

    — Você acha que eu sou idiota?

    Esse era um caminho sem volta.

    — Sim, Érica. Eu quero que você acredite.

    — Aham.

    — Meu amor, quanto mais eu demorar aqui falando com você, mais vou demorar para ir embora e mais estranho — sublinhei vocalmente — isso vai ficar.

    — Vem logo — ordenou, antes de solenemente desligar na minha cara.

    Sempre que recebia uma ligação dessas no meio da madrugada, minha vontade era comer a Maria Amélia, tradutora delícia que ficava no sexto andar, por trás, em pé na escada, enquanto apertava aqueles seios estufados, explodindo de colágeno e provavelmente ornados por auréolas rosadas para casar os olhos claros e cabelos loiros. Ou quem sabe estar com a Carina, tatuada de shape gordelícia do site de fofocas, ajoelhada com a boca carnuda a deslizar pela cabeça do meu pau. Ou ainda estar entre as pernas da Talita, a falsa magra repórter de olhos azuis do caderno de turismo, ao mesmo tempo em que aqueles peitos incondizentes com o seu porte miúdo estariam pressionando o meu. Mas estava batendo boca com a Érica, cuja desconfiança, apesar de lisonjeira, estava a séculos-luz de condizer com a realidade.

    ***

    Ao trocar o jornal do Nietzsche, observei que o Correio de São Paulo, publicado em cadernos cada vez mais finos, especialmente durante a semana, já não bastava para absorver todas as cagadas do animal. Peguei a edição daquela sexta-feira de setembro de 2012 e puxei os cadernos de Esportes e Economia, os dois que eu nunca lia, e os estendi entre a máquina de lavar e o tanque, que ocupavam a estreita área de serviço.

    A abstinência de cafeína começava a bater. Teria de ir ao Bologna para o espresso daquela manhã. Havia conseguido me safar por toda a vida sem ter coado uma única xícara. Antes da Érica, mineira ferrenha que não abria mão de um café fresco logo cedo, dona Gertrudes, minha mãe, havia me deixado mal acostumado com a térmica sempre cheia antes de eu acordar. Tudo que eu conseguia pensar para que manhãs difíceis como aquela não se repetissem era em uma cafeteira elétrica, que certamente não se equipararia ao padrão de qualidade ao qual eu tinha me acostumado, mas traria comodidade.

    Passei a coleira no Nietzsche e, ainda de chinelos, atravessei o hall de entrada do edifício Lydia, que tinha algumas paredes vermelhas, outras cobertas por pedriscos acinzentados, ao redor de colunas cilíndricas de estilo modernista. A escrivaninha que servia de posto ao porteiro ficava ao final do hall, perto da porta de vidro, e a caminhada até lá era suficientemente longa para causar constrangimento. Sobretudo porque eu, péssimo com nomes, não lembrava mais qual era a graça do porteiro da manhã, a quem eu tinha me apresentado no dia em que me mudei. Quanto aos funcionários dos outros turnos, só me ocorreu perguntar o nome tarde demais. De modo que passei a me esquivar da minha apatia em um exercício eterno de construção de frases em que eu não precisaria chamá-lo pelo nome.

    Opa, bom dia, beleza?, era o que costumava me ocorrer quando eu não apelava para um amigão.

    Boa tarde, seu Marco, ele respondia, o que já começava a me fazer sentir culpado.

    No único ponto comercial do condomínio, no térreo, entre a porta de entrada e o portão da garagem, ficava a videolocadora Nova Paranaguá, que exibia um pôster de Meia-Noite em Paris, então o filme mais recente de Woody Allen.

    Arborizada, com calçadas vazias e trânsito moderado, a Marquês de Paranaguá era um oásis em meio ao caos da Consolação e à putaria da Augusta e da Frei Caneca. Minha rua ainda era ladeada pelo Parque Augusta, um terreno de 24 mil metros quadrados repleto de Mata Atlântica então guardado da população a sete chaves por duas grandes construtoras.

    Com o tempo fechado daquela manhã, a parte da vegetação que avançava pelos portões adquiria aspecto assombroso. Chegando à esquina com a Augusta, carros abandonados e viaturas dividiam espaço nas vagas em quarenta e cinco graus em frente ao 4º DP. Ali tornavam-se gritantes os barulhos dos motores, buzinas e freadas esganiçadas dos ônibus que paravam em cima do ponto.

    Na porta do Bologna, frangos inteiros giravam em espetos atrás do vidro da televisão de cachorro. O bigode estava atrás do balcão. Não que ele já tivesse se apresentado como bigode, mas chamá-lo assim soava menos formal e forjava algum tipo de intimidade. Pedi uma empada de camarão para acompanhar o espresso duplo. O barulho das mesas, cadeiras, louças e talheres chocando-se no salão ao fundo não me incentivava a ficar lá por muito tempo. Ao fechar a comanda, pedi para incluírem um maço de cigarros. Já estava habituado a me contentar com Marlboro, já que eles não trabalhavam com Lucky Strike.

    Continuei minha caminhada. Ao passar em frente ao Studio SP, lambe-lambes traziam um logotipo com a frase Mais Amor Por Favor.

    A loja de presentes ficava na rua Dona Antônia de Queirós, ao lado da boate Caribe, uma das casas de show mais tradicionais do distrito Consolação, assim batizado por conta da capela que, no início do século 19, tamanho vilarejo era São Paulo, demarcava o limite municipal. Ali, onde cem anos depois foi construída a paróquia Nossa Senhora da Consolação, hoje de costas para a praça Roosevelt, começava a estrada para Sorocaba e os viajantes costumavam dar uma passada para uma bênção (leia-se, um consolo) antes de seguirem caminho.

    Em 2012, ninguém, especialmente seus recentes e descolados habitantes, se referia ao bairro como Consolação, e sim como Baixo Augusta, alcunha que poderia muito bem ter sido criada por algum publicitário oportunista, com o perdão da redundância, a serviço da especulação imobiliária. Coisa de uma década antes, aquele microcosmo ao redor da rua Augusta, entre a Roosevelt e a Paulista, era repleto de puta, lixo e bandido. Seria considerado pelos norte-americanos the wrong side of the tracks, em comparação com o trecho dos Jardins. Agora, o Baixo Augusta já começava a receber os seus primeiros neoclássicos.

    — Una cafeteilá — perguntou o coreano (chinês, japonês?). Ele usava um jaleco branco sobre a camisa azul-piscina. A rádio, provavelmente AM, tocava Lonely Days, do Bee Gees.

    — Isso, aquela branca ali — respondi, apontando para uma Betty Crocker atrás do balcão.

    Lá foi ele, meio hesitante, abrir uma das portas do armário sob a vitrine que, somada aos itens expostos sob o tampo do balcão, também em vidro, acumulavam de rádio-relógio a pequenas caixas de som para reprodutores de MP4, assim como Technos e Mondeos ou Tag Heuers a preços questionáveis.

    Apontei para uma torradeira, também branca, algumas prateleiras abaixo da cafeteira.

    — Quanto?

    — Tlintá.

    — Aceita cartão?

    — Vissá, Mástel e Amélican Expless — enumerou.

    — Vou levar as duas.

    — Pode ir no caixá — disse, ao rabiscar com uma caneta Bic um pedaço da bobina que destacou da calculadora.

    Saindo de lá, passei no Dia% para comprar um saco de café, que retirei de uma caixa de papelão rasgada. A etiqueta trazia escrito em caneta verde: Promoção: R$ 3,99. Também peguei filtro, pão de forma, requeijão, creme dental e papel higiênico, algo de que eu sempre me envergonhava de carregar em público.

    Na fila do caixa, não pude deixar de prestar atenção na conversa de duas senhoras.

    — É o que eu sempre digo, minha filha: homi bom só fica bom mesmo com uma mulé boa do lado. Senão vira vagabundo, drogado e sai com qualquer rabo de saia…

    Sorri em silêncio embora tenha sentido receio de que ela estivesse certa.

    No caixa, não havia tela que exibisse os itens que eu estava levando. Coloquei as compras em dois sacos plásticos, sempre impossíveis de abrir. Peguei o Nietzsche, amarrado a um corrimão no estacionamento, e tomei o caminho de volta.

    Ao chegar em casa, apanhei as contas amontoadas sob a porta. Vivo, Eletropaulo, Congás e Mastercard, que depositei diretamente sobre a bancada da cozinha. De lá, semanas depois, iriam para o lixo sem que os envelopes nem sequer fossem abertos. Eu dificilmente conferia as contas, todas registradas em débito automático, e, quando o fazia, jamais detectava qualquer irregularidade. Exceto pelos boletos da Vivo, cuja conta eu nunca entendia e que, independentemente do quanto eu tivesse usado o velho Nokia naquele mês, me deixava sempre com a impressão de que eu estava sendo roubado.

    Abri a caixa, marcada com um adesivo preto, e retirei o plástico que envolvia a cafeteira. Deixei o manual de instruções sobre o balcão e deduzi que a portinha da frente abrigaria o filtro de café e a do topo receberia água, que poderia ser abastecida pela jarra refratária. Apertei o botão vermelho e pude ouvir o gorgolejo da água aquecida passando pelos tubos internos do utensílio que começava a soar, anunciando o café fresco prestes a respingar. Conforme o espesso líquido preto se aproximava de atingir a marca das doze xícaras de café coado, pude escutar um sopro arrastado que lembrava o último suspiro de um moribundo. Com o tempo, acabaria aprendendo a usar o timer sem consultar o manual. E uma caneca de café recém-passado pela manhã voltaria a ser parte da minha rotina.

    Atrasado para a minha primeira sessão de RPG, costurei um Celta por fora para conseguir entrar à direita na Joaquim Eugênio de Lima. Invadi brevemente a faixa do ônibus e embiquei no estacionamento do número 726 da avenida Paulista, mesmo prédio onde ficava a locadora 2001. Tomei o elevador no subsolo rumo ao sexto andar.

    — Aguarde um pouquinho que a doutora Nilce já vai te atender — disse a atendente com sotaque portenho. Sentei em uma das cadeiras de plástico enfileiradas na recepção e apanhei uma revista Caras. Achei muito trampo relacionar as legendas, agrupadas em ordem numérica, com as dezenas de fotos de celebridades no mosaico da página dupla.

    — Oi, Marco, eu sou a Nilce — disse a fisioterapeuta, com uma mistura de bondade e timidez. — Pode entrar.

    Ela tinha uma pinta saliente em cima do lábio superior. Alguns pelos no buço também se faziam notar. Entrei no consultório envolto por um armário, uma divisória e uma parede, todos revestidos em fórmica, além de uma parede de vidro com vista para o prédio da Fnac.

    — Pode sentar — ela falou. — O que você tem?

    — Segundo este exame, estou com hérnia de disco — respondi, entregando-lhe o envelope com a ressonância magnética.

    — Seu exame mostra compressão na L2. Você deve estar com bastante dor.

    Finalmente alguém me entendia.

    — Estou. Acabei de fazer mudança e acabei com as mi-

    nhas costas.

    — Você trabalha muito sentado?

    — O tempo todo.

    — O que você faz?

    — Sou jornalista. Quando trabalhava no jornal, chegava a passar dezesseis horas em frente ao computador.

    — Trabalhava?

    — Sim, saí numa demissão em massa. Mas, quando eu falei que tinha sido diagnosticado com a hérnia de disco enquanto trabalhava lá, me deram seis meses de carência no convênio.

    — Tenho recebido vários jornalistas com o mesmo problema. Você trouxe um shorts? — perguntou, interrompendo o silêncio incômodo.

    — Trouxe — apontei para a bolsa.

    — Então pode ir se trocando, eu já volto.

    — Obrigado.

    O forte ar-condicionado me deixou de farol aceso. Meus pés descalços sobre o piso frio não me ajudaram a sentir exatamente confortável para ficar seminu diante de uma desconhecida. Ela bateu na porta antes de voltar ao consultório.

    — Pode entrar.

    — Abra as pernas, alinhe os pés, olhe para cá — falou, já de frente para mim, apontando para duas linhas do rejunte do piso. — Você está torto — avaliou, pegando na minha cintura como que para me endireitar. Fazia tempo que ninguém me tocava diretamente sobre a pele. A princípio aquela mão gelada me causou estranhamento, que logo se converteu em conforto.

    — Deite na maca — comandou.

    Ela colocou cada um dos meus calcanhares sobre alças elásticas de nylon que pendiam sobre a maca. Quando levantou minha perna direita para prendê-la, deixei um peido escapar.

    — Estique as pernas — falou, interrompendo o silêncio constrangedor. Veio atrás da minha cabeça, de onde comandava as roldanas, e foi girando a manivela até meu corpo formar quase um L.

    — Respire — falava. — Respire.

    — Assim está bom? — quis assegurar.

    — Não. Quero que você puxe o ar bem fundo e depois solte tudo de uma vez.

    Conforme eu soltava o ar, ela puxava mais um nível das cordas que sustentavam as alças elásticas. Percebi que, fosse pelo cigarro, pelo estresse ou pelos dois juntos, eu tinha esquecido de como respirar.

    Então pediu que eu me deitasse de bruços, posição na qual senti minha lombar sendo sutilmente pressionada.

    — Pode levantar — ordenou, terminada a massagem.

    Apoiei o pé no chão e me coloquei de pé. Só me lembrava de que sentia tontura ao levantar rápido quando eu já estava plantado no chão. Depois que me reagrupei, ela pediu que eu colocasse os pés nas mesmas linhas de quando cheguei. Ela voltou a avaliar minha postura.

    — Você ainda está torto, mas um pouco melhor — constatou.

    — Ótimo, obrigado.

    — Mesmo horário na semana que vem?

    — Mesmo horário.

    Além da coluna, eu precisava endireitar a minha vida, e o primeiro passo seria engrenar com o livro, que só progredia no campo da imaginação. Passei a folha sulfite no cilindro da velha Remington, joguei o carro para a direita e mandei ver na batucada.

    __

    Você vai gostar muito de morar lá, disse a corretora, já com as chaves nas mãos, em meio às paredes revestidas com madeira e piso de mármore da imobiliária.

    Ah, é?

    É. A Denise, última inquilina, morou lá por quase seis anos e só não renovou o contrato pela segunda vez porque ia casar, acrescentou, dando um tanto de informação a mais do que precisava, em minha opinião.

    Então tá, respondi, tentando colocar fim àquele diálogo sofrível.

    Boa sorte.

    Me deu um meio abraço que pareceu durar horas, de tão duro e hesitante.

    As primeiras frases fluíam com naturalidade. Aos poucos preenchi uma folha, que troquei por outra, e outra, e uma quarta, como se as palavras jorrassem pela ponta dos

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