Direito Internacional no Tempo Medieval
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Direito Internacional no Tempo Medieval - Paulo Borba Casella
TRATADO DE DIREITO INTERNACIONAL
DIREITO INTERNACIONAL NO TEMPO MEDIEVAL
TOMO 4 – 2ª EDIÇÃO REVISTA, AMPLIADA E ATUALIZADA
© Almedina, 2023
Autor: Paulo Borba Casella
Diretor Almedina Brasil: Rodrigo Mentz
Editora Jurídica: Manuella Santos de Castro
Editor de Desenvolvimento: Aurélio Cesar Nogueira
Assistentes Editoriais: Larissa Nogueira e Letícia Gabriella Batista
Estagiária de Produção: Laura Roberti
Diagramação: Almedina
Design de Capa: Roberta Bassanetto
Conversão para Ebook: Cumbuca Studio
ISBN: 9786556278629
Maio, 2023
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Casella, Paulo Borba
Tratado de direito internacional : direito
Internacional no tempo medieval : tomo 4
Paulo Borba Casella. – 2. ed. – São Paulo : Almedina, 2023.
e-ISBN 978-65-5627-862-9
ISBN 978-65-5627-828-5
1. Direito internacional 2. Estado (Direito)
3. Idade Média I. Título.
23-146821
CDU-341
Índices para catálogo sistemático:
1. Direito internacional 341
EEliane de Freitas Leite – Bibliotecária – CRB 8/8415
Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, protegido por copyright, pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida de alguma forma ou por algum meio, seja eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenagem de informações, sem a permissão expressa e por escrito da editora.
Editora: Almedina Brasil
Rua José Maria Lisboa, 860, Conj. 131 e 132, Jardim Paulista | 01423-001 São Paulo | Brasil
www.almedina.com.br
Não te esqueças que nos próprios limites dessa pequena habitação vivem numerosas nações, separadas umas das outras, pela língua, pelos costumes, por todos os hábitos da vida, e que tanto pela dificuldade das comunicações, quanto pela diversidade da linguagem e da ausência de relações regulares, eles são inacessíveis não somente ao renome dos indivíduos, mas mesmo ao das cidades.
BOÉCIO Philosophiae consolationis (524 A.D.)¹
Nos enganaríamos, se quiséssemos pressupor que o direito internacional é uma criação da era moderna. Muitas valiosas pedras fundamentais foram trabalhadas por tempos mais antigos, que construíram as bases do direito internacional para sempre. Nessa empreitada, se destacam as contribuições de sábios da Antiguidade, filósofos e juristas, gregos e romanos. Não menos relevante foi a contribuição da Idade média, com sua plenitude de sabedoria, com seu fino e piedoso sentido de dar prosseguimento à construção desse legado intelectual, com seu cristianismo vivo e seu forte sentimento do direito, amor ao próximo e justiça.
Otto SCHILLING (1919)²
A evolução política da Europa leva ao estabelecimento das grandes monarquias soberanas. Ao processo histórico corresponde uma nova concepção do direito internacional, que se estabelece sobre as ruínas dos princípios da Idade média. [...] O cosmos jurídico é então quebrado em fragmentos soberanos e a ideia da organização, forte e hierarquizada, do gênero humano, parece se desfazer para sempre.
Michel ZIMMERMANN (1933)³
Não é para nos livrar dela, que estudamos a história, mas para salvar do nada o passado que se afogaria sem ela; é para fazer renascer no presente aquilo que, sem ela, nem mesmo seria passado, nesse presente único, fora do qual nada existe. Para que exista de novo esse humano, em sua complexidade individual e concreta, basta conhecê-lo; para nos enriquecer com sua substância, basta amá-lo.
Étienne GILSON (1938, ed. 1978)⁴
Historicamente é impossível encontrar o início de qualquer dos fios que vieram a ser trançados na trama do direito internacional moderno.
Mark W. JANIS (1999, ed. 2004)⁵
O direito é uma parte da história, e a ciência jurídica pode ver-se como auxiliar de outras ciências, precisamente da história e da política. Mas também se produz o inverso. A história pode desenvolver função auxiliar, e a ciência jurídica (que é em si mesma uma ciência histórica) pode ‘pedir conselho’ à história.
Mario BRETONE (2000)⁶
Não percamos jamais de vista esse dado essencial: todo pensamento se inscreve no contexto do tempo, assim como a duração única que vive cada um se inscreve na duração coletiva. Isso nos torna prudentes mesmo em relação a tudo que apareça como absoluto. Do que parece, mas aos olhos de quem e em que momento? Na verdade, está tudo aí.
L. JERPHAGNON (2010)⁷
¹ BOÉCIO, Consolação (l. II, prosa VII, n. 7): quod hoc ipsum brevis habitaculi septum plures incolunt nationes lingua, moribus, totius vitae ratione distantes, ad quas tum difficultate itinerum, tum loquendi diversitate, tum commercii insolentia non modo fama hominum singulorum, sed ne urbium quidem pervenire queat. Foram utilizadas: BOÈCE, Consolation de la philosophie (traduction nouvelle en prose et en vers avec le texte en regard par Louis Judicis de MIRANDOL, Paris: Guy Trédaniel / Ed. de la Maisnie, 1981) b/c outra edição bilingue, BOÈCE, La consolation de la philosophie / Philosophiae consolationis (traduction nouvelle avec une introduction et des notes par Aristide BOCOGNANO, Paris: Garnier, 1937).
² Otto SCHILLING, Das Völkerrecht nach Thomas von Aquino (Freiburg im Breisgau: Herdersche Verlagshandlung, 1919, na coleção Das Völkerrecht – Beiträge zum Wiederaufbau der Rechts- und Friedensordnung der Völker, im Auftrage der Kommission für Christliches Völkerrecht von Dr. Godehard Jos. EBERS, Heft Nr. 7 – digitalized by the Internet Archive in 2011 with funding from Univ. of Toronto, http://www.archive.org/details/dasvlkerrecht00schi, 1 – Einleitung, p. 1).
³ Michel ZIMMERMANN, La crise de l’organisation internationale à la fin du Moyen Âge (RCADI, 1933, t. 44, p. 315-437, cit. p. 434).
⁴ Étienne GILSON, Héloïse et Abélard (orig. publ. 1938, Paris: Vrin, 3e éd. rev., 2e tirage, 1978, chap. 8 – La leçon des faits, p. 147-168, cit. p. 168): Ce n’est pas pour nous débarrasser d’elle que nous étudions l’histoire, mais pour sauver du néant le passé qui s’y noierait sans elle; c’est pour faire que ce qui, sans elle, ne serait même plus du passé, renaisse à l’existence dans cet unique présent hors duquel rien n’existe. Pour que cet humain existe de nouveau dans sa complexité individuelle et concrète, il suffit de le connaître; pour nous enrichir de sa substance, il suffit de l’aimer.
⁵ Mark JANIS, Religion and the literature of International Law: some standard texts (in Religion and International Law, ed. by M. W. JANIS and C. EVANS, orig. Publ. 1999, Leiden / Boston: M. Nijhoff, 2004, p. 121-143, cit. p. 121).
⁶ Mario BRETONE, Derecho y tiempo en la tradición europea (orig. publ. Diritto e tempo nella tradizione europea, 1994, trad. Isidro ROSAS Alvarado, México: Fondo de cultura economica, 1° ed., 1999, reimpr., 2000, primera parte, cap. IV – La investigación del tiempo clásico, p. 87-112, cit. p. 91).
⁷ Lucien JERPHAGNON, La... sottise? (vingt huit siècles qu’on en parle) (Paris: Albin Michel, 2010, cit. p. 122-123): Mais laissons ces controverses aux escholiers du Paris médiéval. Non qu’ils fussent plus stupides que nous, ni d’ailleurs plus intelligents. Cela, ils l’étaient tout autant, mais autrement, et l’on a pu voir en passant que de l’intelligence et de la sottise ils avaient eux aussi leur idée. ABÉLARD vous l’aurait dit, ou deux cents ans plus tard, une belle tête comme GUILLAUME D’OCKHAM.
ABREVIATURAS
a. C. – antes de Cristo
A.D. – anno Domini, para designar a cronologia a partir do nascimento (presumido) de Jesus Cristo, também designado como d.C.
AFDI — Annuaire Français de Droit International (publicação do C.N.R.S., Paris)
AIEA — Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA, em inglês)
AJIL — American Journal of International Law.
ARSI – Archivum Romanum Societatis Jesu – Arquivo romano da Companhia de Jesus
Bol. SBDI ou Boletim — Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional.
BYBL — British Yearbook of International Law
© – copyright = indica a data de publicação original da obra citada
ca. – circa, por volta de
CBN – Comunidade Britânica de Nações (British Commonwealth of Nations)
CDI ou ILC — Comissão de Direito Internacional da Nações Unidas – International Law Commission
CEDIN – Centro de estudos de direito internacional, seguido de indicação da Universidade
cf. – conforme
cfr. – confira-se
CIJ — Corte Internacional de Justiça, Haia (1946- )
CPJI — Corte Permanente de Justiça Internacional
d. C. – depois de Cristo, para designar o calendário da era cristã
DI – Direito internacional (público)
Difel – Editora Difusão Européia do Livro, São Paulo
DIP — Direito internacional privado
DTV – Deutscher Taschenbuch Verlag, Munique
Ed. cit.
Edusp – Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo
EJIL – European Journal of International Law
Encyclopedia of International Law — The Max Planck Encyclopedia of public international law (ed. by R. WOLFRUM, Oxford: Univ. Press, 2012, 11 vols.), com indicação do tomo e das páginas – edição anterior da Enclyclopedia foi coordenada por R. BERNHARDT (Dordrecht, 1981- -1990, 12 vols.)
FAO — Food and Agriculture Organization (Organização para a Agricultura e Alimentação das Nações Unidas), Roma
FCE – Fondo de cultura economica, Cidade do México e outras cidades
FUNAG – Fundação Alexandre de Gusmão, Brasília
Fundamentos – P. B. CASELLA, Fundamentos do direito internacional pós-moderno (prólogo Hugo CAMINOS, São Paulo: Quartier Latin, 2008)
GYIL — German Yearbook of International Law
i.a. – inter alia – dentre outros
ICLQ — International and Comparative Law Quarterly
IDI – Instituto de Direito internacional — Institut de droit international
IHLADI — Instituto Hispano-Luso-Americano de Direito Internacional
ISIAO – Istituto Italiano per l’Africa e l’Oriente, Roma
LCL – Loeb Classical Library (Greek and Latin series), Cambridge, Ma. / London, England: Harvard Univ. Press
Manual – H. ACCIOLY – G. E. do NASCIMENTO E SILVA – P. B. CASELLA, Manual de direito internacional público (com a colaboração de Arthur R. Capella GIANNATTASIO, São Paulo: Saraiva, 25ª ed., 2021)
op. cit. – opus cit. – obra citada
orig. publ. – originalmente publicado em
PU – Presses Universitaires (com indicação da universidade / cidade)
SdN — Sociedade das Nações
SFDI – Sociedade francesa para o direito internacional
OESP – jornal O Estado de São Paulo
ONU — Organização das Nações Unidas
PUF – Presses Universitaires de France, Paris
RCADI — Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye – Collected courses of the Hague Academy of International Law (Haia) – publicados desde 1923, com indicação do ano, volume e páginas
RDILC – Revue de droit international et de législation comparée
Restatement — American Law Institute, Restatement of the law — The foreign relations law of the United States, St. Paul, Minn., 1987, 2 v.)
RGDIP — Révue Générale de Droit International Public, Paris
tb. – também
Tratado – Tratado de direito internacional (Almedina, 2022-) P. B. CASELLA, Tratado de direito internacional (São Paulo: Almedina, 2022-) com indicação do tomo e do capítulo ao qual se remete
Tratado ACCIOLY – H. ACCIOLY, Tratado de direito internacional (terceira edição, histórica, com pref. P. B. CASELLA, Brasília: FUNAG / São Paulo: Quartier Latin, 2009, 3 vols.)
UNTS – United Nations Treaty Series – com indicação do volume e página
Univ. – Universidade / University / Université
UP – ou Univ. Press – University Press (seguido da indicação do nome e/ou local da Universidade)
VRBEI – Vorträge, Reden und Berichte aus dem Europa-Institut – Sektion Rechtswissenschaft – Universität des Saarlandes, Saarbrücken
v. – vide – ver
v. tb. – ver também
YILC — Yearbook of the International Law Commission
ZEE — Zona Econômica Exclusiva
SUMÁRIO
Cover
Folha de Rosto
Página de Créditos
SUMÁRIO
POR QUE O DIREITO INTERNACIONAL NO TEMPO MEDIEVAL?
TÍTULO II
Capítulo 8 - A longa transição do mundo tardo-antigo ao medieval
8.1. Agostinho de Hipona (354-430 A.D.)
8.2. Isidoro de Sevilha (560-636 A.D.)
8.3. Caminhos da instauração medieval
8.3.1. Plano material: o que é?
8.3.2. Extensão temporal: quando é?
8.3.3. Dimensão espacial: onde cabe falar em Idade média?
8.4. Continuidade e mudança do contexto medieval ao moderno
Capítulo 9 – Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham
9.1. Marsílio de Pádua (1275-1342)
9.2. Guilherme de Ockham (ca. 1285-1347)
Capítulo 10 – Tomás de Aquino e Dante Alighieri
10.1. Tomás de Aquino (ca. 1225-1277)
10.2. Dante Alighieri (1265-1321)
Capítulo 11 – Tratadistas da Guerra: Balthazar Ayala e Pierino Belli
11.1. ‘Cristianizar’ a guerra?
11.2. Guerra justa e guerra santa: entre jihad e as cruzadas
11.3. Herança antiga e medieval na concepção moderna da guerra
11.4. Guerra e natureza humana
11.5. O ideal de construção da paz
11.6. A guerra e o direito internacional nos tratados de AYALA e BELLI
11.6.1. Balthazar AYALA (1548-1584)
11.6.2. Pierino BELLI (1502-1575)
11.6.3. A contribuição dos tratadistas da guerra para o direito internacional
11.7. A guerrilha e o direito internacional
CONCLUSÕES
Pontos de referência
Cover
Folha de Rosto
Página de Créditos
Sumário
Página Inicial
Conclusão
POR QUE O DIREITO INTERNACIONAL NO TEMPO MEDIEVAL?
A história existe e sua realidade não depende da mera vontade ou da habilidade do lexicógrafo. A história é uma disciplina científica, rica de muitos séculos de experiência, e que detém método original, elaborado, pouco a pouco e progressivamente aperfeiçoado, em contato com seu objeto.
H.-I. MARROU (1961)⁸
A realidade da experiência histórica leva à reflexão e à construção da sistematização metodológica e dos mecanismos de apoio para o conhecimento do passado e da relevância da ação humana, para o tempo já decorrido, como para pautar a ação no tempo presente. Não se esgota como relato, nem como olhar voltado para trás, mas se constrói como aporte para a relação do homem com o mundo, o que se manifesta tanto no plano das relações interpessoais, como das relações entre sociedades politicamente organizadas e independentes.
De modo equivalente, para o direito internacional, olhar para o passado não se esgota em si mesmo. Não se trata de ver somente o direito internacional como este se deu no passado, mas a partir deste, importa conhecer e fazer operar o direito internacional sobre a realidade atual. Esta é a proposta deste exame do direito internacional no tempo: olhar o sistema, no tempo passado, para o conhecimento e a ação deste sobre o presente, e perquirir sobre o que pode se construir neste, a seguir. No presente tomo, voltado para o tempo medieval.
Esse conhecimento e essa operação do direito internacional exigem, como toda área de conhecimento humano, o olhar sobre o que aconteceu para ajudar a compreender o que existe hoje, e o que pode vir a existir a seguir. É o processo de construir meios de adaptação às necessidades da pós-modernidade, com elementos antigos.⁹ O que sempre se fez: a especificidade da pós-modernidade é acusar as fontes, em lugar de pretender reinventar a roda.
Por isso, após considerar o direito internacional no tempo antigo, nos dois tomos precedentes, trata-se, aqui, de apontar algumas das etapas principais e dos conceitos mais relevantes, da fase seguinte, sobre o direito internacional no tempo medieval. E a partir desse, prosseguir rumo ao moderno.¹⁰
O encadeamento é lógico, histórico e institucional: a fase seguinte contém elementos da anterior, mas traz dados novos, que as diferenciam entre si. Ocorrem grandes mutações, na história da humanidade, sobretudo no Ocidente, entre o tempo antigo e o assim chamado tempo medieval. Não serão estas mudanças menores entre os tempos medieval e moderno. São aqui consideradas as grandes mutações ocorridas no contexto medieval e, concomitantemente, com o direito internacional.
Destas se vem, com mais algumas transformações, no assim chamado direito internacional moderno, deste rumo ao clássico, até o contexto pós-moderno. Fases que serão objeto de posterior exame.
Compreender e situar esse conjunto na ‘longa duração’ – la longue durée – é o que se busca com a utilização de conceitos e de referências histó- ricas¹¹ que permeiam e dão base para o exame ‘do direito internacional’, que se faz ‘no tempo’. Essa longa duração, esclarecia BRAUDEL, não é mero decurso de tempo, cronologicamente longo, mas a concomitância de elementos de uma fase, que se prolongam em outras fases da história.
A percepção da continuidade e do encadeamento são elementos relevantes para a compreensão do processo civilizacional, no qual, inexoravelmente, inscreve-se o direito internacional, como ‘produto cultural’. A compreensão contextualizada permite situar o conjunto do sistema institucional e normativo internacional, até os nossos tempos. Aí, inscreve-se a mudança, combinada com a continuidade, entre as diferentes fases da evolução do sistema institucional e normativo internacional.
A perspectiva histórica também se faz necessária, de modo a evitar o etnocentrismo, praga essa que, desgraçadamente, mancha parte da história do direito internacional clássico – ao aceitar o colonialismo,¹² e a falácia preconceituosa da suposta missão civilizadora do homem branco.¹³ E disso se acede logo adiante ao racismo.¹⁴
O colonizador propõe tal imagem do colonizado, tão adaptada às exigências da colonização que seria preciso acreditar em harmonia pré-estabelecida. Escreveu-se que os europeus construíram um império colonial porque os futuros colonizados eram ‘colonizáveis’. Compreende-se que a Europa tinha de preencher esse vazio: este era seu ‘dever histórico’! Afirmou-se isso sem rir: estabeleciam-se protetorados, para proteger o colonizado. Os lucros e as exações eram, sem dúvida, devidos a enganos, a negligências, a erros, como hoje se diz.¹⁵
O que ocorreu não somente por parte dos europeus e dos norte-americanos; vale a admoestação, também, em relação aos latino-americanos, em geral, e mesmo em relação aos brasileiros.¹⁶ A negação sistemática das diferenças pode ser encontrada na interpretação do racismo.¹⁷ É sempre mais fácil enxergar os defeitos dos outros!
O indispensável alargamento da perspectiva se põe, justamente, no sentido de não nos prendermos somente ao que se deu, em parte restrita da Europa ocidental, nesse tempo, igualmente restrito, dos últimos séculos, mas deve se fazer de modo a abranger, ainda que somente como breves cortes verticais temporais, em relação ao que ocorria em outros quadrantes do mundo.¹⁸ Esta poderia ser chamada de janela do Ocidente
sobre o mundo.¹⁹ Isso se faz e se deve fazer não somente por diletantismo, ou curiosidade, mas como dados relevantes e necessários para compreender o homem e a sua trajetória no espaço (do mundo) e no tempo (da história).
Cabe advertir,²⁰ que somente a própria história da história pode nos fazer tomar consciência da existência e da originalidade dessa tradição de estudo, desse conjunto de procedimentos técnicos testados, que constituem o método histórico
.²¹
Ao nome se soma o objeto, a coisa: ‘história’ é ‘relato’, no sentido inicial amplo de ‘investigação’, com o qual se inaugura a disciplina. Já na obra de HERÓDOTO se explicita o objeto da História: para impedir que as ações realizadas pelos homens se apaguem com o tempo
.²²
A esse dado ‘documental’ se agrega outra dimensão, algumas décadas mais tarde, com TUCÍDIDES. E, alguns séculos mais adiante, na época helenística, com POLÍBIO, soma-se o sentido crítico da história.
Este historiador permite ressaltar a importância da época helenística. Esta era não pode ser vista de perspectiva de excessivo purismo humanista, como decadência em relação ao século dito de ouro, ou de PÉRICLES, mas como a admirável maturidade da civilização antiga. A sua versão mais universal, e mais abrangente, antes do ocaso do mundo antigo e a posterior longa transição para o contexto medieval.
POLÍBIO, ao lado de TUCÍDIDES, são os historiadores da Antiguidade cuja prática mais se aproxima da ciência moderna.²³ Ambos definem o futuro da disciplina,²⁴ quando a história se especializa, ao se voltar para o conhecimento do passado.
Alcançou-se visão singularmente enriquecida – na linha de DROYSEN e ROSTOVTZEV – a respeito da civilização helenística. Esta, agora, parece-nos antes como a admirável maturidade da civilização antiga – esse longo verão sob o imóvel sol meridional, ‘ce long été sous l’immobile soleil de midi’ – em lugar de representar já a sua decadência, como apontava certo purismo humanista, excessivamente centrado na noção de um ‘século de ouro’, ou em visão romântica da história, somente sensível aos valores de originalidade de criação, de florescimento inicial, o que levava antes ao arcaísmo, à juventude da arte, do pensamento, de uma civilização.²⁵
História não se esgota como conhecimento do passado humano,²⁶ mas, a partir deste, como reflexão sobre o presente.²⁷ Como se ressalta, desde ARISTÓTELES, a diferença entre o poeta e o historiador não está no uso de verso ou prosa
– e a obra de HERÓDOTO poderia estar em versos e continuaria a ser história – mas porque a história é a narração do que efetivamente ocorreu e a poesia trata do que poderia ocorrer.²⁸
Não destoa o sinólogo belga Simon LEYS, no tocante à distinção entre romancistas e historiadores, porquanto suas diferenças não estariam na natureza do trabalho, mas no modo de o fazer.²⁹ No mesmo sentido, a fina percepção de Joseph CONRAD.³⁰
As civilizações que conheceu a humanidade experimentaram a necessidade de conservar a lembrança do passado, de fixar essa memória coletiva. Aí, põe-se a indagação quanto a constituir o mito quer um meio ou a recusa em exprimir essa preocupação. Mas, é verdade, tal anseio se percebe também nas civilizações antigas do Oriente médio, do Egito faraônico, ao Império aquemênida.³¹ Como, também, na Índia,³² apesar de seu amor exuberante pelo mito e sua indiferença aparente para com a cronologia
. Diversamente do que ocorre na China.
Sabe-se a importância do setor histórico na literatura clássica da China. Os chineses veem a si mesmos como povo histórico, insertos em tradição temporal e cultural. E, não obstante grandes mudanças, almejam a continuidade e o encadeamento com os tempos imemoriais. Muito embora a projeção do mito sobre o tempo realmente vivido pelos homens constitua uma tentativa de interpretação ingenuamente racionalista, tal iniciativa encontra seu equivalente no tratamento que os letrados confucianos fizeram passar os mais antigos documentos da literatura chinesa.³³
A grande tradição de prática da sabedoria, ilustrada pelos pensadores confucianos, das dinastias Song e Ming pode ser revivida e encontrar novas aplicações. É possível fazer ponte entre o presente e essa época magistral, passando por cima dos três séculos da dinastia manchu, marcada pela degenerescência do ensinamento confuciano, em estudos filosoficamente estéreis, e além do intelectualismo e do niilismo dos intelectuais engajados no movimento dito de renovação do ‘Quatro de maio’ de 1919, que depois do fim do império, em 1911, proclama uma nova cultura, científica e democrática. A corrente do neoconfucianismo contemporâneo
, do qual MOU Zongsan (1909-1995) foi um dos principais representantes, pode se apresentar como alternativa a esse movimento antitradicionalista,³⁴ e, inscreve-se em sentido de continuidade histórica.
Na medida em que se aperfeiçoam os nossos conhecimentos, percebe-se que isso é também verdade nas civilizações pré-colombianas, azteca, maia e inca.³⁵ Mas, ainda há muito atraso relativo a ser recuperado. E o conhecimento da contribuição dessas civilizações para o conjunto da humanidade deve ser ampliado. Não somente como relato ‘antropológico’, nem tampouco somente a partir da perspectiva europeia ocidental e norte americana.³⁶
A história é relato do passado, mas a sua técnica apresenta estrutura bipolar: de um lado, há o esforço para compreender, explicar e introduzir na evocação do passado, o máximo de inteligibilidade, mas, de outro, é preciso assegurar o lugar e reconhecer a importância, igualmente essencial, do trabalho de coligir, ordenar e criticar a documentação, os dados elementares, os materiais com os quais se construirá a síntese almejada: a validade desta repousa, definitivamente, sobre a qualidade e a solidez dos meios elaborados pela análise erudita
.³⁷
Toda história é história contemporânea, afirmava Benedetto CROCE, porquanto esta, mesmo quando trata de assuntos aparentemente muito distantes, no espaço e no tempo, somente merece o nome de ‘história’ na medida em que se revela como contribuição para a elucidação dos problemas, colocados à consciência do historiador e de seus pares, a interpretação da situação que lhes é feita pela conjuntura política, social, econômica e cultural do tempo em que estão situados.³⁸
Nos séculos da história europeia, na passagem do mundo greco-romano ao medieval, apesar das devastações e das destruições dos bárbaros invasores, manteve-se sentido de continuidade, assim como efeito da persistente ideia de Roma, como para o cristianismo, que recolhe muitos elementos da herança do mundo antigo. A continuidade foi reintegrada e mais vivamente sentida no início da idade moderna, [período] intenso em obras e em confiança, pela transformação dos grandes estados, pelas descobertas e conquistas de terras, além do oceano, pela cultura rapidamente crescente nos vários povos da Europa, pelos corajosos espíritos inovadores em religião, na filosofia e na ciência. E no século XVIII, se reforçou o seu mito na teoria do progresso irrefreável e na força da razão reformadora.³⁹
Existe, assim, encadeamento entre as civilizações antigas, em especial a greco-romana, sucedida pela cristã-eclesiástica, e esta pela cristã-leiga, ou particularizando, a civilização do humanismo⁴⁰ e do renascimento, aquela do iluminismo e a esta, por sua vez, pela liberal – a última percebida pelo observador histórico
– e, em todas essas sucessões, a tradição se conserva, e todos ainda vivemos, embora com mudadas relações, e proporções, e perspectivas, e acentuações, dos pensamentos e das obras, e dos sentimentos, dos gregos e dos romanos, e da igreja medieval, e do humanismo, e do renascimento e do iluminismo, que são partes ativas da nossa alma, de modo que a privação de algumas destas seria, por nós, sentida como dolorosa e vergonhosa mutilação: e este é o sentido vivo do progresso: conservação e inovação em uma certa ‘unidade de civilização’.⁴¹
Aqui, propõe-se perspectiva histórica que contribua para o conhecimento e a compreensão do direito internacional. Nestes tomos, voltados para o tempo medieval e moderno, são consideradas etapas relevantes do desenvolvimento conceitual e institucional do ‘sistema internacional’. Foram etapas formadoras do sistema, antes de se chegar à configuração do direito internacional clássico, até o direito internacional pautado pela pós-modernidade.
Deve-se compreender o desenvolvimento histórico do direito internacional, enquanto trajetória no tempo histórico e no contexto cultural, como elemento para o conhecimento primeiro e, em seguida, para o aperfeiçoamento, e a melhor aplicação deste, como sistema institucional e normativo internacional. Não se trata aqui somente de fazer história do direito internacional, mas, de compreender o direito internacional na história – por isso, denominou-se direito internacional no tempo, e este se cinde, para fins tão somente organizacionais em três tomos: nos dois precedentes se considerou o tempo antigo; no tomo presente, o tempo medieval e, nos seguintes, o moderno, o clássico, o direito internacional no tempo do colonialismo, até se alcançar o presente contexto pós-moderno.
A falta de referências históricas é empobrecedora da riqueza da experiência e dos desdobramentos da trajetória humana no espaço do planeta e no tempo, construído pela mão e pela mente humanas. O conjunto se põe como necessidade para a compreensão não somente do passado, que já se escoou, embora ainda repercuta sobre o presente, mas, antes, para que possamos nos dar conta de quantas coisas podem ser mais bem compreendidas quando situadas de modo adequado em relação a conjunto mais abrangente de referências e de experiências. Isso é o que se chama civilização; o direito internacional é parte desse legado.
Se o futuro da presença do passado é história, cabe situar o conjunto do direito internacional pós-moderno, em relação às matrizes medieval, moderna e clássica, que nortearam a formação e o desenvolvimento deste, até o aparecimento do direito internacional atualmente vigente. Como interação entre fases que nos conduzem até o presente momento de crise e de reavaliação, na pós-modernidade.
Curiosamente o mundo medieval, embora cronologicamente e causalmente mais próximo de nossos tempos pós-modernos, parece suscitar mais resistência do que os tempos antigos. Jules MICHELET, em sua obra sobre as origens do direito francês,⁴² buscadas nos símbolos e fórmulas do direito universal, apontava: se o direito teve uma idade poética, é bem difícil que essa idade tenha perecido, sem deixar traços
. E aduzia:
Nenhuma forma de sociedade deixou mais ódio que o mundo feudal, nem mais rancor junto ao povo. A Antiguidade, sem dúvida, tinha sido muito mais dura; da escravidão à servidão, aos direitos citadinos (villenage), o progresso foi sensível. Mas a feudalidade foi insolente, cheia de pose e de desprezo.⁴³
Não disfarçava MICHELET a sua atitude crítica em relação à feudalidade: "os habitantes das terras não demarcadas (la Marche) – estas que pertenciam à comunidade, muitas vezes sem delimitação precisa – tiveram muito trabalho, durante a Idade média, em defender a liberdade de suas velhas florestas, contra a feudalidade insolente da qual estavam cercados".⁴⁴
O caráter internacional do mundo medieval tinha natureza e extensão distintas das que caracterizam o mundo moderno e tal como se manifesta a internacionalidade deste último até nossos dias. Mas, existia e operava como tal.
A internacionalidade intrínseca ao mundo medieval é dado crucial, e se manifestava em vários planos, inclusive com relação a diversas instituições feudais, compartilhadas em vastas extensões da Europa ocidental. Compõe quadro institucional, embora comportando a contraposição entre poder laico e poder religioso, com fortes elementos de padrão cultural comum, decorrente do uso da mesma língua, no conjunto do Ocidente ‘civilizado’, da Antiguidade até ao menos o final do século XVII.
A ação uniformizadora do latim como língua culta unificada, para o conjunto da Europa ocidental, durante mais de um milênio, após a queda de Roma, vai mesmo além da unidade das instituições, como o império e o papado. Essa internacionalidade medieval parece ser, muitas vezes, negligenciada, esquecida, ou quiçá desconhecida, o que é negativo para a compreensão do fenômeno da existência e da operação de sistema institucional e normativo internacional medieval.
Esta é vertente relevante não somente para a compreensão do mundo medieval, como para a formação e o funcionamento do mundo moderno, que recebeu esse legado.
A ignorância decorre do desconhecimento do legado comum.⁴⁵ Este é compartilhado, e permanece necessário, para a concepção do Ocidente, com suas raízes greco-latinas e outras, e os seus desdobramentos nas nações modernas. O encadeamento é claro.
É fundamental que se perceba quantos elementos desse sistema ‘internacional’ medieval integram a evolução para o sistema ‘moderno’ de internacionalidade, que nos parece mais próximo: este último não surge, do dia para a noite, pronto e acabado, de uma vez, depois de 1648. A sua gestação se estende por séculos, desde a Antiguidade e a Idade média.⁴⁶
Este é o propósito do presente exame do direito internacional no tempo medieval: mostrar a internacionalidade e a sua regulação institucional e normativa, em contextos menos frequentemente apontados. A internacionalidade existia, sob forma diversa do que será elemento característico desta, após a consolidação dos modernos estados acionais.
A feudalidade e a igreja eram fatos ‘europeus’ e não ‘nacionais’. Isto se põe no sentido de fenômenos continentais – ao menos em relação à igreja, de vocação universal – dados compartilhados por conjunto de identidades nacionais em formação.⁴⁷
Paolo GROSSI (1995) conceitua o contexto legal:⁴⁸
O direito feudal é o conjunto de costumes – e secundariamente algumas leis imperiais, sentenças de cúrias feudais, e teorizações doutrinárias – que se acumulam durante toda a alta Idade média, e que disciplinam aquele universo de relações entre senhores e vassalos, entre superiores e inferiores, que é a ordem feudal: relações pessoais consistentes em homenagem e fidelidade, por parte do vassalo, e em proteção, por parte do senhor. Um universo jurídico exclusivo, que desenvolveu as suas regras típicas, e tem os próprios tribunais para aplicá-las; que, sob esse aspecto, bem pode ser qualificado como manifestação de particularismo, mesmo se devemos acrescentar que a dimensão universal do fenômeno feudal induz os mestres de direito a inserir o tesouro consuetudinário feudal, os assim chamados Libri feudorum, em apêndice ao próprio Corpus juris civilis, como matéria digna de ser estudada e glosada, também pela ciência.⁴⁹
A consolidação de consciência europeia é fenômeno cultural e histórico, mais que geográfico. Esse espaço-tempo-cultura são percorridos por fenômenos comparáveis: a tradição filosófica tem troncos comuns, quer na linha idealista, que liga PARMÊNIDES, PITÁGORAS, PLATÃO, ZENÃO DE ELEIA, TOMÁS DE AQUINO, DESCARTES, SPINOZA, KANT, FICHTE e HEGEL, quer na linha cético-empirica, que liga PROTÁGORAS, ARISTÓTELES, CARNEADES, GUILHERME DE OCKHAM, MONTAIGNE, BACON, HOBBES, LOCKE, BERKELEY, HUME. Esses elos sistêmicos são ainda mais fortes e podem ser demonstrados de modo cogente no caso da consciência religiosa ou científica.⁵⁰
De modo comparável, o desenvolvimento da pintura a óleo, por exemplo, foi o resultado de forte união de elementos, habilidades e tradições bizantinas, flamengas e italianas; a música como forma de arte, fez-se com a conjugação de habilidades e tradições italianas, francesas, alemãs e austríacas; a arquitetura, especialmente gótica e o reflorescimento da arquitetura greco-romana fluem a partir da Itália e da França, para proporcionar estilo compartilhado e comparável de vida, para a vida urbana;⁵¹ da mesma forma, o romance, o teatro e o filme, como formas de arte, para os quais autores de tantas partes contribuíram, são formas de auto-contemplação coletiva, que podem ser vistos como a continuação da filosofia por outros meios (mais acessíveis)
. De tal modo, "sempre existiram outros externos, que ajudaram a constituir a identidade (self) europeia".⁵²
Quando viajantes medievais tardios se aventuraram além da Europa continental, particularmente para a Índia e a China, tornou-se necessário reimaginar o lugar da Europa em mundo físico e cultural, que ia muito além deste. Quando os colonizadores europeus se deslocaram por todo o mundo, um ‘Novo Mundo’, tornou-se necessário reimaginar a natureza e a responsabilidade do europeísmo, como fenômeno cultural exportável.
Podemos concluir que a atração magnética de subjetividade europeia compartilhada sempre esteve em oposição dialética com a atração de subjetividade particularizante.⁵³
O fenômeno da feudalidade se verifica na parte ‘ocidental’ da Europa medieval, como também se produz na Europa dita ‘central’. Existem traços comuns e diferenças específicas.⁵⁴
Nos Balcãs, a conquista e a dominação otomana incluem laços feudais, como se deu, por exemplo, na região da atual Bulgária, durante os cinco séculos de dominação por otomanos ou por renegados búlgaros.⁵⁵ Apesar de tudo, durante ao menos os primeiros trezentos anos, o regime dessa feudalidade, sob ocupação estrangeira, teria sido menos gravoso, para os camponeses, do que o anterior, regido pelos grandes proprietários de terras (boiardos) búlgaros, em relação aos seus próprios conterrâneos.
Muitas das fórmulas que a igreja e a feudalidade conferiram à França não são exclusivamente francesas, mas europeias. Nesse sentido, MICHELET referia: nosso direito feudal, embora se tenha formado de maneira totalmente independente, lembra, em muitos pontos, aquele dos povos vizinhos. Algumas vezes, ele parece eco prosaico do direito feudal alemão
.⁵⁶
Em linguagem simbólica,⁵⁷ MICHELET compara os aportes francos e germânicos, na formação da identidade ocidental medieval, entre os baluartes do império e do papado:
O Império teve dois herdeiros, o Cristianismo dois discípulos, a Alemanha e a França: discípulos questionadores, que deram muito trabalho para seus mestres; a Alemanha ultrassimbólica, a França antissimbólica.
A Alemanha, mesmo se dizendo Santo império românico, não quis nem a língua de Roma, nem o seu direito civil. Em direito, ela foi semipagã, e em religião, mística; ou seja, aquém e além da igreja, raramente segundo a linha prescrita. [...]
O império dos Francos já é a centralização do mundo bárbaro. Os próprios francos, como se sabe, não são nem uma raça, nem uma tribo, mas uma associação. Em suas fórmulas da tradição e do casamento, eles mesclam todos os símbolos jurídicos das diversas nações alemãs.⁵⁸
A armadura das instituições que regem uma sociedade não poderia, em última análise, explicar-se se não pelo conhecimento do meio humano, como um todo – advertia Marc BLOCH, em seu magistral estudo sobre a sociedade feudal⁵⁹ – "pois a ficção de trabalho que, no ser de carne e de sangue, nos obriga a recortar esses fantasmas: homo oeconomicus, philosophicus, juridicus, esta é, sem dúvida, necessária, mas somente suportável se nos recusarmos a ser enganados por ela".⁶⁰ Ao mesmo tempo, também enfatizava:
Seria erro de pesadas consequências tratar a ‘civilização feudal’ como constituindo, no tempo, um único bloco. Provocadas sem dúvida, também tornada possível pela interrupção das últimas invasões. Mas, na mesma medida em que eram o resultado desse grande fato, com atraso de algumas gerações, uma série de transformações, muito profundas e muito gerais, observam-se por volta da metade do século XI. Com certeza, não cabe falar em ruptura, mas mudança de orientação, que, apesar de inevitáveis descompassos, segundo os países ou os fenômenos considerados, atingiu, sucessivamente, praticamente todas as camadas da atividade social.⁶¹
Segundo o ângulo pela qual se considere, a civilização da Europa feudal parece tanto maravilhosamente universalista, tanto particularista ao extremo – considerava BLOCH – e essa antinomia tinha, antes de tudo, sua origem em regime de comunicações tanto favorável à longínqua propagação de correntes de influência muito gerais, como rebelde, nos detalhes, à ação uniformizadora das relações de vizinhança
.⁶²
Ao se falar em contexto medieval se põe, assim, ao mesmo tempo, certa unidade e certa diversidade, certo contraste entre estabilidade e mudança, certa tensão entre o passado e o presente, entre o distante e o próximo, entre as várias formas possíveis de ordenação da vida em sociedade. Como, ademais, em outras fases da história mas, importa, sobretudo, mencionar esses dados em relação ao contexto medieval, que tende a ser considerado, como um bloco, negativamente.
O esforço para situar o contexto e inscrever o direito internacional do tempo em exame, no conjunto da civilização de determinada época, não se destina a elencar os dados extrajurídicos como fins em si mesmos, mas na medida em que estes possam contribuir para a compreensão do fenômeno jurídico internacional, em sua formação, seu desenvolvimento e sua transição para modelo diverso, em fase histórica distinta. O quadro é necessário, com seus elementos históricos, políticos, filosóficos; mas o propósito é jurídico: situar o direito internacional no tempo, aqui em relação ao contexto medieval.
A elucidação do conceito geral de direito parte da filosofia
.⁶³ Esse é todo um programa de pensamento e de construção do direito, enquanto sistema, cuja validade e pertinência não se questiona.⁶⁴ VILLEY o enfatizava, em relação aos medievais, mas a advertência continua verdadeira e se mostra muito presente, em nossos dias: o descrédito dos autores pagãos tem como corolário a recusa expressa de uma filosofia
.⁶⁵ O legado da Antiguidade e da Idade média são vitais para a construção da filosofia, como do direito modernos.⁶⁶
A essência do direito internacional se manifesta, assim entendo e trabalho, assim como produto cultural e temporalmente condicionado. Todo pensamento se inscreve no tempo e no espaço, como no contexto cultural, social e mesmo linguístico do seu autor – não é mero detalhe a advertência de Ludwig WITTGENSTEIN: os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo; mas toda linguagem tem uma mesma lógica, de modo que seus limites são os limites do mundo
.⁶⁷
Esse caráter condicionado de toda obra humana, assim como do direito internacional, em nada o diminui, nem invalida, nem restringe o seu alcance; mas, é preciso deixar de repetir, sempre, os mesmos enganos, e não mais incorrer nas mesmas generalizações simplistas, relativas ao direito internacional, em outras eras e em contextos diversos do cristão, europeu e ocidental, dos últimos dois ou mesmo dos últimos quatro séculos. O que já é muito; mas não o bastante, para que este seja compreendido como criação de vocação universal. Ao menos, o é ou deve ser, como ‘vocação’. Se não puder ser como efetividade.
Não percamos jamais de vista esse dado essencial: todo pensamento se inscreve no contexto do tempo, assim como a duração única que vive cada um se inscreve na duração coletiva. Isso nos torna prudentes mesmo em relação a tudo que apareça como absoluto. Do que parece, mas aos olhos de quem e em que momento? Na verdade, está tudo aí.⁶⁸
Foram as extraordinárias mudanças ocorridas no direito internacional, nas últimas décadas, que tornam necessário revisitar as premissas básicas da disciplina.⁶⁹ Essa viagem no tempo não se destina a fazer ‘volta ao passado’, mas, a partir deste, compreender o presente e colocar elementos para o futuro.
O direito internacional também ocorre antes e ocorre também em contextos diversos do cenário cristão, europeu e ocidental, moderno e contemporâneo, no qual teve e tem seu papel, e a partir do qual se projetou para outros contextos, no tempo e no espaço.⁷⁰ O alargamento da perspectiva é indispensável para a adequada compreensão da disciplina.
Tem, assim, aqui, a perspectiva temporal caráter instrumental, para o estudo e a análise do direito internacional. O propósito não é a história: até porque me faltariam as premissas de formação na área específica.
O exame do direito internacional no tempo se inscreve como programa de ação característico da pós-modernidade: por meio do diálogo com as fontes e por meio da reconsideração do legado do passado se pode chegar a melhor compreensão do presente e tentar projetar elementos para a possível atuação deste no futuro. Entendê-lo como parte de conjunto integrado à história em geral e à história das ideias, assim como à filosofia, é a proposta de trabalho: considero fundamental dispor de tal embasamento para melhor compreender e operar o direito internacional pós-moderno.
O direito internacional não deve ser visto e estudado isolado da história. Se se quiser compreender a sua essência e a sua existência, a perspectiva histórica agrega elementos fundamentais para a sua compreensão: a história geral, como, especificamente, a história das ideias, são elementos cruciais para tal entendimento.
Ao mesmo tempo, a formação e a institucionalização do direito internacional como sistema pode e é objeto de controvérsias. E estas foram consideradas em relação ao tempo antigo⁷¹ e também serão aqui tratadas.⁷²
Por exemplo, Mario GIULIANO em breve ensaio sobre o sistema medieval e as pretensas origens da sociedade e do direito internacional
,⁷³ não obstante a erudição e a experiência do autor, em dez páginas faz quatro assertivas distintas:
– a primeira é a linha clássica: o ambiente no qual o direito internacional se manifesta e opera é o produto das profundas transformações políticas, econômicas e sociais que ocorrem na Europa, entre a primeira metade do século XV e a segunda metade do século XVII – e isso é justificado com elementos incontroversos na matéria, tais como a constituição ou consolidação de pluralidade de monarquias nacionais e de principados; o estabelecimento de intensa e regular vida de relações entre estes; esta vida internacional expressa em missões diplomáticas permanentes entre soberanos;⁷⁴
– segundo outros estudiosos, o marco fundador do sistema internacional seria o final da Guerra dos trinta anos, em 1648, com La pace (detta di Westfalia) – GIULIANO os cita e rejeita esse entendimento⁷⁵ – aponta esse momento como marco transformador e não como a gênese do moderno sistema internacional;
– na terceira, diversamente, as origens da sociedade internacional e do seu direito seriam reportadas a época muito mais remota. Estas remontariam à alta Idade média: aproximativamente ao período histórico compreendido entre o século IX e o século XI.
A comunidade das gentes cristãs (a assim chamada Respublica christiana ou Respublica sub Deo) se teria, então, constituido na Europa ocidental, e essa comunidade teria tido uma estrutura hierárquica, no sentido que a intrincada rede de relações de caráter feudal entre os reis, os príncipes e os senhores, que presidiam ao governo daquelas gentes, teria tido, no seu vértice, e seria, assim, culminada pela suprema autoridade dos papas (e, segundo outros, também dos imperadores).
A partir da segunda metade do século XV, essa comunidade se teria lentamente transformado, até assumir a estrutura da moderna sociedade internacional: isto é, a de uma sociedade entre autoridades políticas superiorem non recognoscentes. Mas, esta teria sido uma transformação meramente estrutural e que não teria comportado solução de continuidade, em relação à Respublica christiana: da qual, assim, a moderna sociedade internacional constituiria a continuação e o desenvolvimento;⁷⁶ e
– a quarta assertiva: caso se desejasse traçar uma linha de continui- dade desde a Respublica christiana medieval, com outra formação social, essa linha deveria endereçar-se não rumo à moderna sociedade internacional, que lhe é a clara antítese; mas, se fosse o caso, rumo ao império romano, do qual a primeira representou, definitivamente a continuação e o desenvolvimento, frente às transformações da situação política, econômica, religiosa e social ocorridas na Europa, depois do fim do império romano do ocidente.⁷⁷
A concepção de império passou por múltiplos avatares desde então.⁷⁸ Não somente no Ocidente medieval.
Grandes movimentos, regrupamentos e rupturas transformam, aos poucos, nos mil anos entre o século V e o século XV, o conjunto da Europa medieval rumo à Europa moderna dos estados:⁷⁹ o que se faz como construção conjugada de quadro territorial – a fixação espacial do estado – e quadro institucional – cada estado se dota de conjunto de órgãos da administração, nas suas várias áreas de atuação, inclusive ‘diplomática’, voltada para as relações ‘exteriores’.
Essa construção ‘interna’ se faz ao mesmo tempo em que ocorrem as interações ‘externas’. Não existe a Europa isolada, cortada do mundo. Do ponto de vista comercial, os produtos circulam pelos caminhos da Ásia menor, na qual se cruzam caravanas, e existe grande atividade de intercâmbio entre os habitantes dos diversos estados do Oriente médio, com seus centros principais em Sivas, Sinope e Trebizonda. O comércio pode ter grande parcela concentrada nas mãos de gregos e armênios, mas os venezianos, os genoveses e os provençais obtém direitos, garantidos por meio de tratados com os turcos seldjúcidas e os conservam durante séculos.⁸⁰
Consciente das novidades do seu tempo, GUILHERME DE PLAISIANS, em 1307, assinala quais seriam as fronteiras do reino de FELIPE, o belo: as fronteiras da França se estendem até o Ródano. Tudo o que está no interior dessas fronteiras é da competência do rei, ao menos para a proteção, a justiça e o poder
.⁸¹
Tratava-se, no mesmo movimento, de construir o ‘estado’ e a ‘nação’, no interior dos próprios ‘limites’ do ‘reino’. Como dados característicos dessa transição e mudança de paradigma – do medieval, que então findava, ao moderno, que se anunciava.
Esse conjunto de transformações nos leva do mundo antigo que desaparecera, para, progressivamente, dar lugar ao mundo medieval. Depois de cerca de mil anos deste, passa-se pelo grande florescimento humanista da Renascença para chegar ao mundo moderno.
Esta é a proposta pós-moderna de diálogo com as fontes e de exame das premissas contextuais deste trabalho. Para a compreensão do fenômeno, necessário ir buscar os elementos históricos: mostrar os dados de continuidade e de ruptura; de renovação e de permanência; de criação e de institucionalização do sistema institucional e normativo internacional. E como isso se constrói, ao longo do tempo.
Neste tomo, a análise se dá ao longo do tempo medieval. Vasto e complexo conjunto. Existem, contudo, encadeamento, no sistema internacional, como na história geral e na história das ideias, como na filosofia pura e na filosofia dita ‘política’.
O fato de ser a matéria controvertida torna o tema, assim, mais interessante. É oportuno e necessário considerar essa perspectiva, e mostrar os elementos de tais interações. Porque nesses meandros da história surge e se constrói o direito internacional pós-moderno. E, o que existe no tempo presente não surgiu do nada, mas se fez a partir de conjunto de experiências, de tentativas, de ensaios e erros, numa sucessão de contemporaneidades, que se entremeiam no tempo e nos trazem até os últimos dois séculos.
Cabe lembrar⁸² que a história não é uma ciência exata, ao menos aquela que nós praticamos. Na imensa floresta de doutrinas, nós escolhemos examinar esta ou aquela, um pouco ao acaso, inicialmente, sem estar absolutamente seguro que seja esta a mais importante
.⁸³
O direito é parte da história.⁸⁴ Ambos interagem.
E, o direito internacional como os demais ramos, também se inscreve no marco histórico e cultural, no qual se cria, aplica-se e desenvolve-se: não compreenderemos o caminho do pensamento moderno, se evitamos confrontá-lo com a tradição clássica
.⁸⁵ De tal modo, a polaridade que confusamente percebemos entre a tradição clássica e o pensamento moderno exige ir além da superfície das coisas
.⁸⁶
A seguir, pode-se passar à consideração do direito internacional entre o mundo tardo-antigo e o medieval. O que se põe no marco da longa e penosa mas também grande transição da Antiguidade para a Idade média – nos variados e complexos caminhos da instauração medieval.
Ao mundo de conceitos gerais – ainda em santo TOMÁS DE AQUINO, na esteira de PLATÃO e de ARISTÓTELES – do mundo pautado por gêneros, espécies, naturezas,⁸⁷ causas formais e causas finais, a ‘modernidade’ medieval traz a visão de DUNS SCOT: nesta se substitui o anterior por um mundo de manifestações únicas, de pessoas e de indivíduos.⁸⁸ O que, em GUILHERME DE OCKHAM se configurará como o nominalismo,⁸⁹ que terá inúmeros desdobramentos filosóficos e políticos.
Assim, do antigo se passa ao medieval. Elementos da fase anterior se encontram na seguinte, mas com outros elementos, anteriormente não conhecidos e não praticados.
Depois de cerca de um milênio, pela rota do ‘renascimento’, far-se-á, por sua vez, a transição do mundo medieval para o moderno. E, criam-se as bases, sobre as quais, posteriormente, erige-se o sistema de direito internacional moderno.⁹⁰
⁸ Henri-Irénée MARROU, Qu’est-ce que l’histoire? (in L’Histoire et ses méthodes, dir. de Charles SAMARAN, Paris: Gallimard-Pleiade, 1961, p. 1-33, cit. p. 3): L’histoire existe et sa réalité ne dépend pas du bon plaisir ou de la dextérité du lexicographe. L’histoire est une discipline scientifique, riche de longs siècles d’expérience, et en possession d’une méthode originale élaborée peu à peu et progressivement affinée en contact avec son objet.
⁹ Entre construir meios de adaptação às necessidades da modernidade com elementos antigos e mentir, parece mais adequado indicar as fontes. Fred E. SCHRADER, L’Allemagne avant l’État-nation: le ‘corps germanique’ (1648-1806) (Paris: PUF, 1998, p. 77) falava em ‘construire des moyens d’adaptation aux besoins de la modernité avec des éléments anciens’. O que se pode também aplicar à pós-modernidade.
¹⁰ Cf. Tratado (tomo 5 – Direito internacional no tempo de Francisco de Vitória). ‘Moderno’ aqui não se utiliza como sinônimo de ‘atual’, mas como relacionado à Idade moderna – séculos XV a XVIII – era normalmente enfeixada entre a queda de Constantinopla, em 1453, e a queda da Bastilha, em 1789. Muitas quedas para um período só; muitas outras ocorrerão nesse tempo de grandes mutações, que nos faz a ponte entre o passado antigo e medieval, para os nossos tempos – ditos contemporâneos. Esses marcos inicial e terminal, embora úteis, podem ser questionados; como se verá. Cfr. Modesto FLORENZANO, Lições de história moderna (séculos XV a XX) (São Paulo: Intermeios, 2021, esp. III – Tradição e ruptura no Renascimento e na primeira modernidade, p. 69-84).
¹¹ F. BRAUDEL, Histoire et sciences sociales. La longue durée (orig. publ. em 1958, republicado in Écrits sur l’histoire, Paris: Flammarion/Champs, © 1969, impr. 1984, nova impr. 1989, p. 15-38).
¹² Cf. Tratado (tomos 14 a 17 – Direito internacional no tempo do colonialismo). Ver Albert MEMMI, Le racisme: descriptions, définitions, traitement (nouvelle édition revue
, © 1982, 1994, Paris: Gallimard-Folio actuel, 1994, cap. 2. ‘l’observation’, p. 38-54, cit. p. 45-46): "Le racisme est d’abord une expérience vécue; c’est aussi une expérience commune, très largement partagée; avant d’être utilisée comme une machine idéale a détruire autrui. Les colonisateurs sont souvent racistes, oui, mais les colonisés aussi. Nul manichéisme n’est ici possible: le péché est aussi commis spontanément par les victimes. Le raciste moyen, petit colonisateur, ‘petit-blanc’ ou métropolitain de médiocre culture, n’a pas besoin de lire GOBINEAU ou Mein Kampf pour mépriser l’indigène, le Juif ou l’immigré. Les colonisés ou les minoritaires n’avaient pas besoin, pour être xénophobes, de livres de références ou de leurs textes traditionnels, lesquels les conseillaient plutôt de respecter l’étranger. Il est facile de reconnaître les erreurs des autres, surtout s’ils ont le tort, en outre, d’être puissants, redoutables et privilégiés. Ce l’est moins de les avouer en soi-même et chez les siens, surtout s’ils sont des victimes."
¹³ Como se examina no Tratado (tomo 14 – Direito internacional no tempo do colonialismo, item – colonialismo e hipocrisia da suposta ‘missão civilizadora do homem branco’); v. tb. Albert MEMMI, Portait du colonisé précédé du Portrait du colonisateur (préface de Jean-Paul SARTRE, orig. publ. 1957; nova ed., 1985; Paris: Gallimard-Folio actuel, 2010; respectivamente, p. 97-162 e 27-95). Observa A. MEMMI as razões que o levaram a escrever os precedentes retratos, no seu livro Le racisme (op. cit., 1994, cap. 2. ‘l’observation’, p. 38-54, ‘racisme et colonisation, p. 49-54, cit. p. 50): Il en ressortait, entre autres, à quel point nous étions liés les uns aux autres; de sorte que les traits et les conduites de chacun retentissaient sur ceux des autres. Bref, qu’il existait une relation coloniale, où chacun était nécessairement impliqué. Or je découvris, au cours de cette description méthodique, que le racisme était une des dimensions inévitables de cette relation. [...] Il me paraît encore légitime de conclure que le racisme illustre, résume et symbolise la relation coloniale.
Adiante observa A. MEMMI (op. cit., 1994, cap. 3, ‘l’interprétation’, p. 55-85, cit. p. 61-62): Même l’instituteur, laïc et républicain, dévoué à ses élèves ‘indigènes’, se croyait investi d’une mission: former des petits Français à sa propre image, celle de la civilisation, des bonnes moeurs, du goût et du bien parler... français. Plus tard, en arrivant à la ‘Métropole’ je constatai que ce même instituteur, joyau de la démocratie jacobine, pouvait avoir une attitude semblable à l’égard des paysans de son pays ou même des Bretons ou des Alsatiens. Ce qui n’est presque pas une autre histoire.
¹⁴ A. MEMMI (op. cit., 1994, p. 53) frisa que não basta a existência de diferenças entre os homens – o que pode ser discutido, e até mesmo provado – nem tampouco que estas sejam ditas – porque em tal afirmação das diferenças entre os homens ainda não se incorreu em racismo –, mas aparece o racismo como terceiro dado, mediante o uso que se faça dos dois primeiros, e se faz racista o uso da diferença contra outrem, com o fim de tirar proveito de tal estigmatização: "Affirmer, à tort ou à raison, que tel peuple colonisé est technologiquement inférieur à un autre n’est même pas encore du racisme. Cela se discute et doit être démontré ou infirmé. Mais les colonisateurs ne se sont pas contentés de ce constat ou de cette erreur: ils en ont conclu qu’ils pouvaient, et devaient, dominer le colonisé; et ils l’ont fait. Ils ont expliqué, légitimé leur présence en colonie par les carences du colonisé. C’est tout juste s’il ne fallait pas les remercier de s’être dérangés et dévoués au salut de frères inférieurs. S’il n’y avait pas eu cette utilisation intéressée, la colonisation aurait été, peut être, une entreprise philanthropique, mais elle fut surtout un système de rapines." Toda essa maquinação tinha a finalidade de legitimar e de consolidar o poder e os privilégios dos colonizadores.
¹⁵ A. MEMMI (op. cit., 1994, p. 68).
¹⁶ Nós, brasileiros, que nos considerávamos imunes a esse mal – porque, afinal, os racistas são sempre os outros – expusemos a realidade ao tornar o racismo crime inafiançável
: se foi preciso tipificar, e se é preciso punir, e o fazer de modo particularmente gravoso, confirma-se que o fenômeno é mais presente e frequente do que se teria gostado de admitir. Somos mais sensíveis enquanto vítimas do racismo do que como autores.
¹⁷ Ainda A. MEMMI (op. cit., 1994, cap. 3, ‘l’interprétation’, p. 55-85, cit. p. 59): Une variante curieuse, presque amusante de ce gommage systématique des différences se retrouve dans l’interprétation du racisme chez certains psychanalystes contemporains. Ils veulent bien admettre que le racisme s’édifie, à partir de l’hétérophobie, sur la crainte du différent, donc de l’inconnu; mais, se demandent-ils aussitôt, quelle est cet inconnu? C’est, affirment-ils, notre propre inconscient, qui nous effraie parce qu’il nous semble étrange, et que nous projetons ensuite sur autrui. On voit ici les bénéfices de l’opération: la négation de l’objectivité des traits différentiels permet de rester dans le cadre de la théorie analytique; comme elle permet aux jacobins de sauver leur philosophie de la nation prétendument homogène.
¹⁸ Sintomaticamente, mesmo ao se abrir a perspectiva histórica e cultural para o exame do direito internacional, tanto Wolfgang PREISER (1976) quanto Robert KOLB (2010) falam, respectivamente, em mundo extraeuropeu
e culturas extra europeias
, ou seja, estas outras culturas e civilizações se veem e se examinam a partir da Europa. Se a apresentação desta perspectiva do direito internacional, além da Europa, é salutar e necessária, a ótica pela qual se faz ainda padeceria desse mesmo ‘eurocentrismo’? As considerações da obra original de Wolfgang PREISER, Frühe Völkerrechtliche Ordnungen der aussereuropäischen Welt: ein Beitrag zur Geschichte des Völkerrechts („Sitzungzberichte der Wissenchafltichen Gesellschaft an der Johann Wolfgang Goethe Universität Frankfurt-am-Main – Societas Scientiarum Francofurtensis", Wiesbaden: Franz Steiner, 1976) foram traduzidas e adaptadas por Robert KOLB, Esquisse d’un droit international public des anciennes cultures extra européennes (Paris: Pedone, 2010). Em sentido oposto, ver Y. ONUMA, A Transcivilizational Perspective on International Law (RCADI, 2009, vol. 342; tb. publ. Haia: Pocketbooks of the Hague Academy of International Law, 2010) insiste na necessidade de reconhecer o valor da diversidade cultural e civilizacional.
¹⁹ Gustav MEYRINK, nascido Gustav MEYER (1868-1932), em seu L’ange à la fenêtre d’Occident (do original Der Engel vom westlichen Fenster, 1927, présentation, traduction, chronologie et bibliographie par Jean-Lacques POLLET, Paris: GF – Flammarion, 2005) passa do ocultismo, que pautara as suas primeiras obras romanescas, para dimensão intelectual de reflexão crítica sobre os fundamentos da cultura ocidental – e do questionamento radical desta, na sua vertente europeia, depois da vivência da catástrofe da primeira guerra mundial.
²⁰ H.-I. MARROU (texto cit., 1961, p. 4-5, le mot et la chose
): ceci importe plus encore, et ce n’est pas le mot seulement, c’est aussi la chose qui nous vient de la Grèce antique: avec les mathématiques, la médecine expérimentale, la théorie de la musique et la philosophie, l’histoire compte au nombre des techniques les plus caractéristiques qui, à l’intérieur de la civilisation de l’Occident contemporain, représentent l’héritage de l’Antiquité classique
. De Henri-Irénée MARROU, veja-se também o seu clássico estudo sobre a Histoire de l’éducation dans l’Antiquité (orig. publ. 1948, Paris: Seuil, tome I – le monde grec, 2000; tome II – le monde romain, 2003). E o debate sobre a perda dessas referências culturais básicas para a identidade do Ocidente, em Jean-Marie PAILLER e Pascal PAYEN (éd.), Que reste-t-il de l’éducation classique? – Relire ‘le MARROU’, Histoire de l’éducation dans l’Antiquité (Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 2004).
²¹ V. tb. H.-I. MARROU, De la connaissance historique (orig. publ. 1954; Paris: Seuil, 6e ed. rev. e aumentada, 1973, ‘introduction: la philosophie critique de l’histoire’, p. 9-27, cit. p, 24) depois de resenhar os principais autores que contribuem para a formação da filosofia crítica da história: Quelle que soit l’originalité de chacun de ces penseurs, la variété de leurs prises de position et, je ne l’oublie pas, le caractère toujours ouvert du débat, l’apport de ces trois quarts de siècle révèle bien, à l’examen, une certaine convergence dans la manière de poser le problème comme dans les solutions qui en sont proposées: à partir d’une analyse des servitudes logiques pesant sur l’élaboration de la connaissance historique, on est bien arrivé à constituer une philosophie critique de l’histoire, ou du moins un certain nombre de principes fondamentaux qu’il est permis désormais de tenir pour acquis.
²² HERÓDOTO, História (intr.. e trad. Màrio da Gama KURY, 1985, Brasília: Ed. UnB, 2ª ed., 1988, livro I – Clio, n. 1, p. 19): Os resultados das investigações de Herôdotos de Halicarnassos são apresentados aqui, para que a memória dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo, e para que feitos maravilhosos e admiráveis dos helenos e dos bárbaros não deixem de ser lembrados, inclusive as razões pelas quais eles se guerrearam.
²³ A obra de POLÍBIO se apoia sobre documentação precisa, cuidadosamente estabelecida, e de primeira mão, quer se trate de entrevistas feitas com atores sobreviventes, ou da consulta de documentos: POLÍBIO leu a inscrição que mandara fazer ANÍBAL, sobre placa de bronze, instalada no santuário de Hera, no cabo Lacinium, o que lhe permite reportar, com precisão, até o último elefante, o efetivo do grande chefe militar cartaginês; da mesma forma, ele consultou os arquivos do templo de Júpiter capitolino, e lá encontrou o texto exato dos tratados celebrados entre Roma e Cartago. Comenta MARROU (texto cit., 1961, p. 14): POLYBE, en véritable historien, cherche à déceler l’enchaînement des causes et des conséquences, les structures
. Sua questão central era entender e explicar como, em período de cinquenta anos, os romanos tinham conseguido realizar o feito sem precedentes de se tornarem senhores da quase totalidade do mundo habitado
– entenda-se aí o conjunto da civilização mediterrânea, e como se considerou, também, no Tratado (tomos 3 A – Direito internacional no tempo antigo, 2022 e 3 B – Gregos, romanos, chineses e indianos).
²⁴ H.-I. MARROU, De la connaissance historique (1954; 6e ed., 1973, chap. premier –