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Os varões assinalados: O grande romance da Guerra dos Farrapos
Os varões assinalados: O grande romance da Guerra dos Farrapos
Os varões assinalados: O grande romance da Guerra dos Farrapos
E-book815 páginas11 horas

Os varões assinalados: O grande romance da Guerra dos Farrapos

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Sobre este e-book

No século XIX, no Rio Grande do Sul, os caudilhos Bento Gonçalves da Silva e Antônio de Souza Netto comandaram uma revolução republicana e abolicionista contra o império monárquico. A rebelião durou dez anos, de 1835 a 1845 – a mais longa guerra civil brasileira e uma das menos conhecidas. "Os varões assinalados" narra, com detalhes minuciosamente pesquisados, desde as negociações que fracassaram e precipitaram a sangrenta guerra até as batalhas, as marchas, os desentendimentos, as prisões, as fugas espetaculares, os amores, as paixões, as vitórias, as derrotas e as traições.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de out. de 2023
ISBN9786556664019
Os varões assinalados: O grande romance da Guerra dos Farrapos

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    Os varões assinalados - Tabajara Ruas

    caparosto

    Introdução: A epopeia que faltava

    Paulo Seben*

    Épico desde o título, retirado do primeiro verso de Os lusíadas, de Luís de Camões, Os varões assinalados, de Tabajara Ruas, é o monumento literário que o leitor tem em mãos. Aí estão, de acordo com a clássica definição aristotélica, os grandes feitos dos grandes homens, numa narrativa de guerra como nunca se viu na literatura brasileira. Só encontro paralelo nas refregas de Os sertões, de Euclides da Cunha, e de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.

    A narrativa recria o episódio histórico da Revolução Farroupilha (1835-1845), levante das classes dominantes do Rio Grande do Sul contra a autoridade política da Corte brasileira (dentro da série de movimentos regionais que espo­ca­­ram em todo o País na primeira metade do século XIX), e chegou a envolver, durante um certo perío­do, alguns setores catari­nenses. A insurreição teve como ápice a proclamação, em 1836, da República do Piratini, da qual a República Juliana, proclamada em 1839 em Santa Catarina, foi um similar enfraquecido. Revisi­tando este panorama revoltoso, Tabajara fornece à literatura tipos inesquecíveis, como o breve padre Diogo Feijó, que, pela caracterização recebida, mereceria um romance só seu; os dois Bentos, o Gonçalves e o Manuel, dolorosas imagens num espelho deformado; os cavilosos David Canabarro e Vicente da Fontoura; o gigante Onofre; o dúbio Lucas de Oliveira; os idealistas Tito Lívio, Luigi Rossetti e Garibaldi; um novo e muito mais plausível Caxias; a impressionante existência coletiva do Corpo dos Lan­ceiros Negros, que inexplica­velmente ainda não foi enredo de escola de samba, com o mor­ganfreemanesco sargento Caldeira; e, para meu gosto particular, Teixeira Nunes e Antônio de Souza Netto (os três últimos responsáveis também pela maravilha de Netto perde sua alma, romance que Tabajara publicou em 1995, já transformado, em 2001, em filme de sucesso, com direção do próprio autor e de Beto Souza).

    Só mesmo Tabajara Ruas poderia ter escrito Os varões assinalados. Basta ver a cena real de sua adolescência que adaptou no romance Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez (1990): na varanda de sua casa em Uru­guaiana, cidade na fronteira dos pampas gaúchos com a Argentina, lia ele O continente (a primeira parte da trilogia O tempo e o vento, de Erico Verissimo), emocionado com a figura do Capitão Rodrigo, quando, levantando os olhos, deparou-se com um gaúcho de poncho negro que troteava num cavalo fogoso pela rua vazia. Por um momento, ficção e realidade se misturavam, e o jovem, ao receber o seco e mudo cumprimento do desconhecido, sentiu um sopro épico envolvê-lo. Esta seria uma boa origem mítica para Os varões, se bastasse a psicologia do autor para explicar a emergência de uma obra. Como não basta, pelo menos para nós, dos livros, como dizia Paulo Francis, em 1994 defendi na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) a tese de mestrado A fundação da épica na literatura sul-rio-grandense: Os varões assinalados, de Tabajara Ruas, buscando situar a obra no sistema literário do Rio Grande do Sul.

    Parti de um palpite feliz de Luís Augusto Fischer, escritor, crítico literário e professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sobre a relação que os autores gaúchos (considerando aqui o termo como sinônimo de sul-rio-gran­dense) mantêm com seu passado histórico, enforma­do por guerras longas e cruentas, travadas no próprio Estado, desde o século XVIII, com o desmantelamento das missões jesuíticas, passando pela Guerra Cisplatina (1825-1828), a Guerra dos Farrapos, a Guerra do Paraguai (1864-1870), o episódio dos Muckers (1874) e a Revolução Federalista no século XIX, ou os movimentos federalistas na virada do século XIX para o século XX também em outras regiões, haja vista que foram predominantemente gaúchas as tropas que massacraram os rebeldes do Contestado (1912-1916) e de Canudos (1896-1897), que trilharam o Brasil na Coluna Prestes (1925-1927), que venceram a Revolução de 30 e a Revolução Constitucio­nalista de 32, com um pequeno intervalo para mais matanças internas na Revolução de 1923. A literatura gaúcha amargaria um ressentimento por ter sido derramado tanto sangue sul-rio-grandense à toa, sem que jamais seu povo obtivesse o reconhecimento nos outros Estados do Brasil, com o agravante de que a República de Piratini perdeu para o poder central do Império Brasileiro a maior de todas as guerras, a dos Farrapos.

    Recenseando a narrativa literária gaúcha, constatei que, de fato, se descontarmos os ufanismos, ridículos e por si mesmos dispensáveis, os escritores do Extremo Sul, apesar de constantemente utilizarem material histórico em suas obras, para fugirem a um eterno presente de decadência política e desprestígio político, sempre preferiram se debruçar sobre o passado militar com uma atitude ressentida, quando não de franca denúncia de que as guerras não foram justas, de que os sacrifícios foram em vão, de que os heróis não são heróis, de que as lutas são carnificinas vulgares, não epopeias. Em A divina pastora (1847), por exemplo, e em O corsário (1849), ambos de Caldre Fião, os farroupilhas são apresentados como equivocados ou bandidos, e Garibaldi, como um reles pirata. Ainda no século XIX, na frase final de Os Farrapos, de Oliveira Belo (romance no qual vários dos farrou­pilhas são apresentados como ladrões e assassinos), um dos personagens afirma a respeito do derramamento de sangue e do sacrifício ocorridos na guerra: Para nada, patrício! Imolação antes do tempo! muito heroísmo semeado no rochedo!. Já no século XX, entre tantos exemplos, o grande Simões Lopes Neto, no conto Duelo de Farrapos, faz o conflito entre Bento Gonçalves e Onofre Pires reduzir-se à disputa por uma mulher castelhana; há um general Canabarro ridicularizado por suas próprias tropas em Os amores de Canabarro, de Otelo Rosa (1935); a amargura de O tempo e o vento, de Erico, que, pacifista, foi bem pouco afeito à emoção das cargas de cavalaria ou aos monólogos interiores durante os ardores das batalhas; um homem que se esconde num poço ao lado do qual sua mulher é estuprada durante a Revolução Farrou­pilha, em A ferro e fogo, de Josué Guimarães; e Filhinho, um pusilânime, incestuoso e covarde soldado de um Bento Gonçalves vaidoso e displicente em A prole do corvo, de Luiz Antonio de Assis Brasil. Outros nem tratam da guerra, como Cyro Martins, criador da chocante figura do gaúcho a pé, escorraçado do campo pelo latifúndio.

    Um dos nomes mais importantes da geração de autores brasileiros pós-regime militar a se debruçarem em uma reavaliação histórica sobre o passado (o recente e o mais distante) do País, foi Tabajara Ruas quem começou a romper com esse, digamos, coitadismo sul-rio-gran­dense (e brasileiro, no caso da literatura memorialista pós-ditadura) já em seus romances de estreia, A região sub­mersa (1981) e O amor de Pedro por João (1982). Este, a propósito, foi a primeira obra da literatura brasileira da redemocratização a afirmar que a luta armada não foi um equívoco, mas um ato de bravura, que os guerrilheiros não eram um bando de filhinhos-de-papai distanciados da realidade, mas heróis derrotados militarmente. Em 1985, finalmente, Taba aproveitou uma encomenda do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, que desejava um folhetim literário para comemorar o sesquicentenário da Revolução Farroupilha, e deu vida ao romance que já vinha preparando, tendo lido para tal todas as partes de batalha e as ordens do dia (relatórios militares), produzidos pelos dois exércitos em luta.

    Os varões assinalados fornece uma identidade para todos os brasileiros sul-rio-grandenses e, aos brasileiros de outros Estados, explica por que os times de futebol e os políticos do Rio Grande do Sul sempre se notabilizaram pela combativi­dade: a guerra é fator constituinte do mito formador do homem da fronteira mais belicosa do Brasil. Enfim a mitologia gaúcha alcança a maioridade.


    * Paulo Seben é escritor e professor aposentado de Literatura Brasileira (UFRGS).

    Os varões assinalados

    mapa

    Livro 1: O país dos centauros

    Parte I - Pedras Brancas

    Capítulo 1

    A sentinela abriu a porteira e o grupo avançou num trote parelho através do pátio até o branco vulto da casa. Desmontaram. As esporas afundaram nas poças de água. Um peão afastou os cães que latiam, apanhou as rédeas dos cavalos e conduziu-os em direção ao potreiro. Os quatro homens subiram os quatro degraus da varanda em passos simultâneos. Os ponchos respingavam o chão de madeira.

    O capitão de bigodes encerados recebeu-os.

    – Por aqui, coronel Onofre.

    Onofre Pires da Silveira Canto adiantou-se, enorme, o chapelão negro brilhante de água.

    – Fez boa viagem, coronel?

    – Pegamos chuva todo o caminho.

    Atravessaram uma sala escura. O silencioso relâmpago nas vidraças revelou a mesa, a toalha, a baixela, o castiçal, as cadeiras de espaldar alto. Chegaram ao fim da sala. Sombra imóvel, o charrua montava guarda: cabelo negro, lenço vermelho ao redor da cabeça, lança de guajuvira.

    O capitão de bigodes encerados, magro e de ar cansado, abriu a porta para Onofre passar. O trovão rolou sobre o telhado. Bento Gonçalves da Silva levantou a cabeça, rosto recém-barbeado.

    – Onofre, enfim!

    Abraçaram-se com força.

    – Não paramos a noite toda.

    O secretário de Bento Gonçalves estendeu a mão e Onofre apertou-a. O secretário do coronel era um italiano pálido, de maneiras gentis, esmaecidamente jovem.

    – Vim assim que recebi o aviso – disse Onofre.

    O major Gomes Jardim entrou na sala com um ar afetado de anfitrião, apertou a mão de Onofre e fez um sinal. Todos os gestos do major, mesmo os mais sutis, vinham revestidos de certa majestade. O escravo de doze anos avançou com um garrafão de aguardente. Encheu vários copos. O major Gomes Jardim levantou o seu.

    – À nossa empresa. Salud!

    Estavam amontoados ao redor da mesa. A sala era iluminada por um lampião. As paredes estavam tomadas pelas sombras. Beberam em silêncio.

    Gomes Jardim depositou o copo na mesa.

    – Chegamos ao extremo da tolerância. Esse Braga é um traidor. Assumiu o cargo de presidente da Província porque nós o indicamos, porque o coronel Bento Gonçalves pessoalmente levou seu nome até a Corte. Onofre, como vão as coisas?

    – Estamos prontos. Quatrocentos homens.

    Onofre olhava para a fina mão do secretário de Bento Gonçalves. Na mesa cheia de papéis a branca mão do secretário do coronel empunhava uma pena de ganso. Ao apertar aquela mão, Onofre sentira o desconforto de ter, na sua, dura, essa coisa frágil, quebradiça.

    Bento Gonçalves apontou o dedo para Onofre.

    – Tu és nossa peça mais importante. Tudo está arre­glado.

    Os olhos de Onofre brilharam.

    – Tudo?

    – Tudo. Olha o mapa.

    Empurrou o mapa em direção a ele. Onofre apanhou-o com desconfiança. Era a primeira vez que segurava um mapa. Nas guerras da Cisplatina traçavam os movimentos de tropa e as rotas das marchas no chão, com a ponta das adagas. Examinou-o sem entender. O coronel Onofre Pires não era homem familiarizado com as letras. Bento Gonçalves arrebatou o mapa das mãos dele.

    – Isto não conta.

    O secretário do coronel Bento Gonçalves tomou o mapa e alisou-o cuidadosamente, desfazendo as rugas deixadas pelos dois. Trabalhara nele incansavelmente, com devoção e afinco religiosos desde que aportara por estas terras, há mais de três anos. O mapa gerava nele um orgulho oculto, sem meandros, liso como pedra, próximo do amor. (Seu pai saberia amá-lo.)

    Capítulo 2

    Lívio Zambeccari, o secretário de Bento Gonçalves, era geógrafo por vocação, naturalista por curiosidade e político pelo romantismo que ardia em seu temperamento. O romantismo (segundo as numerosas e esparsas notas que ficaram sobre sua juventude) obrigou-o ao exílio na Espanha, no verão dos vinte anos, e a escrever versos de furor in­can­des­cen­te, recheados de metáforas com pétalas e estrelas. A posteridade foi poupada destes. Tal sorte não tiveram seus colegas da Universidade de Bolonha, onde estudava diplomacia. Na universidade buscou contato com as organizações clandestinas que conspiravam pela unificação da Itália, ocupada e dividida por potências europeias. Em ceri­mônia secreta, num subterrâneo negro ilumi­nado por archotes, recebeu o anel de ferro dos carbonários e solenemente jurou lutar pela liberdade dos povos do mundo. Lívio Zambeccari tinha vinte e dois anos, acreditava que era um poe­ta e percebia sua alma incendiada de amor.

    Os carbonários organizavam-se em grupos denominados vendas. A venda onde o jovem conde conspirava foi descoberta pela polícia. Começou a ser seguido.

    Aconselhado, fugiu para Sevilha, onde, por coincidência, também se conspirava. Foi recebido como irmão pelos rebeldes e nomeado ajudante de ordens no Estado-Maior do coronel Riego. Sua primeira missão foi levar uma mensagem a Gibraltar.

    Durante a viagem permaneceu no tombadilho, aspirando a brisa morna do Mediterrâneo, olhando o enorme mar plácido com um princípio incômodo de medo, como se de­baixo dele espreitasse uma ameaça horrível. Foi com esse pressentimento que penetrou na tarde saturada de doces perfumes africanos, pensando com certo consolo que era um poeta, que vivia o sonho humano da aventura, e que por isso era grato. Por­tanto, compareceu ao encontro marcado na hora exata e com o coração exultante. Acompanhava as contorções da dançarina do ventre através do véu da fumaça de haxixe, no café árabe entupido de gente, quando a voz desconhecida sussurrou em seu ouvido:

    – Fuzilaram Riego. Foge.

    Vagou deprimido pela Inglaterra e França, estudando mineralogia e botânica, matérias menos suscetíveis de pelotões de fuzilamento. Passava dias inteiros na cama, mãos sob a cabeça, olhando o teto da pensão, atormentado em descobrir se era um poeta, um nobre decadente ou um homem disposto a transformar a História com suas ideias.

    Numa tarde de tédio, tomou um barco para o Novo Mundo.

    Capítulo 3

    Na manhã gelada de 1826, o conde Lívio Zambeccari desembarca no porto de Montevidéu sob escuro nevoeiro. Estranha a excessiva cautela dos funcionários da Alfândega. Aluga um quarto na Pousada dos Marinheiros.

    Ao abrir a janela para a rua de pedras, antes de perceber os telhados escuros da cidade cinza, lembrou a distante manhã de Bolonha tomada por essa mesma luz, a distante manhã de Bolonha molhada de chuva, onde, à janela da biblioteca, no segundo andar do palácio, viu o conde Francesco passar voando entre as torres cinzentas, sacudido por uma alegria senil.

    À noite, já discutia política no Café do Porto. Sentou numa mesa com vários italianos exilados como ele. Olhou ao redor com satisfação, examinou os rostos desconhecidos e escutou a algaravia que se espalhava no salão cheio de gente e de fumaça. Estava no Novo Mundo, mas tudo parecia igual ao velho. Era o ano de 1826, o ano em que a guerra estava no ar. Montevidéu estava sitiada: outra coincidência (ou talvez já não fosse mais uma coincidência, cogitou), um exército de patriotas sublevados exigia a retirada das tropas de ocupação do Império Brasileiro.

    Ao ouvir as façanhas dos uruguaios, descobriu a inexorabilidade do seu destino. Sentiu-se irmão daqueles homens. Apertando com força o copo de tinto, propôs um brinde ao desmoronamento de todas as ocupações estrangeiras no mundo.

    – Amigos, muitos homens na terra penam a mesma ferida e lutam contra o mesmo mal!

    Abraçou com emoção o marinheiro sentado a seu lado, que se mostrou um tanto constrangido com as maneiras do conde.

    – Itália, não és somente tu que sangras... – e bebeu o copo de tinto de um só gole.

    Apresentou-se ao chefe do sítio, Don Manoel Oribe. O cau­­dilho achou-o demasiado pálido. Estudou-o, sem pressa, sem desprezo.

    – Que se presente al coronel Lavalleja, en Durazno.

    Em Durazno, Lavalleja ofereceu-lhe o posto de oficial comandante da Artilharia. O conde recusou, consternado, e partiu para Buenos Aires.

    No esplendor do verão, num teatro lotado ressoante de patriotismo (antes da apresentação da tragédia de Alfieri Brutus Primeiro, representada por um grupo francês em excursão ao Novo Mundo) declamou, com a voz oracular que calava os mais veementes, interminável poema louvando a liberdade dos povos, enquanto os portenhos, com­penetrados em suas roupas impróprias para o calor, derre­tiam de transpi­ração e tédio.

    Em 1829 foi visto combatendo na Legião Italiana da 6a Companhia contra o aspirante a tirano Rosas. Rosas deixou de ser aspirante e tornou-se efetivamente El Tirano e Lívio Zambeccari fez novamente as malas. Foi bem recebido em Porto Alegre, onde já tinha amigos. Também na Província de São Pedro do Rio Grande a febre revolucionária acelerava o coração dos homens. Por toda parte conspirava-se contra o presidente da província, Braga. A propaganda republicana era ostensiva.

    O conde tratou de ganhar a vida como agrimensor, fazendo medições de lotes rurais na colônia de São Leo­poldo.

    – Um homem com sua capacidade, meu caro conde, com seus ideais, com sua cultura, não pode perder tempo medindo terra para as ambições grosseiras de camponeses alemães – dizia o visitante, sentado à sombra do umbu, limpando o suor da testa com o lenço de seda branco.

    A voz, insinuante, vinha dos lábios grossos de Pedro Boticário, e o conde se deixou seduzir pelo fascínio do gordo resfolegante, pela paixão sub-reptícia que o fizera viajar até ali, através de serras e penedos, no calor brutal.

    Tito – assim chamavam o conde em Buenos Aires, assim começaram a chamá-lo em Porto Alegre – abandonou a régua de cálculo, as plantas e o teodolito e foi instalar-se na apertada e tonitruante redação de O Continentino. A pena de ganso, em português fluido, corria fácil sobre o papel, pregando reformas e condenando o governo impe­rial. Seus ruidosos colegas porto-alegrenses debatiam com alegre ferocidade, dia e noite, como iluminados. Sonhavam com a glória do combate e da morte. Era mórbido e era romântico. O conde Zambeccari estava em casa.

    Capítulo 4

    – Vosmecê está servido?

    João Congo estendia-lhe a cuia de chimarrão. Recusou com um gesto. Achava estranho aquele negro forte e jovem sendo tão servil. Achava estranho Bento Gonçalves ainda ter escravos. Acha estranha a maneira como Bento Gonçalves sussurra para Onofre num canto da sala.

    – Bento Manuel aderiu. Vai se encarregar de São Borja e Cruz Alta.

    – Não confio nele.

    Bento Gonçalves apanha a cuia que João Congo lhe estende.

    – O João Antônio vai cortar ao meio a 1a Linha de São Gabriel.

    – Não confio no Bento Manuel.

    – Eu sei. Não importa. Ninguém confia no Bento Manuel. Tu conhece alguém que confia no Bento Manuel? Deixa de ser bronco, Onofre. Isto é política! Ouve: Lucas de Oliveira e Teixeira Nunes tomam Piratini. Esses dois são de fé. Vão até o fim.

    – E Bagé?

    – Bagé fica com o Netto. Ele está pronto pra tomar a cidade. Lá ele é que canta de galo.

    – Eu também não confio nesse tal de Netto.

    – Eu gosto dele.

    – Ele me parece que sempre tem uma carta escondida na manga.

    – Onofre, me faz um favor, deixa de ser louco. A coisa não tem mais volta. O Vicente da Fontoura garante Cachoeira. Tudo está arreglado.

    Aproxima o rosto da enorme cara barbuda de Onofre.

    – Ao anoitecer atravessarei o rio.

    Olha para aquele homem procurando ler em seus olhos. Tinham passado a infância juntos. Aprenderam juntos a andar a cavalo, a caçar, a nadar e pescar. Partilharam as primeiras mulheres debaixo das grandes figueiras murmurantes, nas arrastadas tardes de verão da adolescência. Eram primos mas pareciam irmãos.

    – À meia-noite começaremos a deposição de Braga. Tu me espera na Azenha. Quero entrar em Porto Alegre contigo a meu lado.

    O som de uma trovoada chega, distante e ameaçador. Contra sua vontade, Lívio Zambeccari aconchega-se na capa de veludo.

    Talvez façam isso para iludir o medo. Talvez porque têm os hábitos, os ritos, a ilusão da lealdade. Talvez para se encorajarem, tornarem-se mais do que meros cúmplices, para lembrarem as inúmeras vezes em que já estiveram frente a frente com a morte e depois descobriram que isso também não significava nada, que não tinha importância, que não os uniu em nada.

    O anel de ferro dos carbonários brilha em seu dedo médio.

    Capítulo 5

    Ao anoitecer, Bento Gonçalves atravessou o rio Guaí­ba em direção a Porto Alegre, numa barcaça com cem homens armados. O coronel ia na proa da embarcação, enrolado no poncho de lã, em pé, silencioso e solene. A seu lado, o conde Zambeccari disfarçava como podia o arrepio do corpo. Era o frio, mas também o movimento lento da embarcação; o chapear dos remos na água bronzeada, funebremente ritmados, a confusa luz rondando o perfil dos homens.

    Havia uma cerração espessa.

    A canhoneira imperial Dona Carlota rondava o abandonado porto de Pedras Brancas, na estância do major Gomes Jardim, reduto da conspiração. Crescia um crepúsculo sem sol, fruto do dia chuvoso. Bento Gonçalves tocou no braço do conde. Luzes alaranjadas brilhavam na neblina. A brisa trouxe relinchos da costa.

    O conde Zambeccari levantou os olhos para o coronel de quarenta e oito anos que estava começando a desafiar um império.

    A canhoneira foi ficando distante. O conde escutou um suspiro a seu lado. O capitão de bigodes encerados percebeu que suspirara e procurou esconder a demonstração invo­lun­tária. O conde pensou na idade do capitão de bigodes encerados. Vinte e cinco? Vinte e sete? Sabia apenas que se chamava Antunes da Porciúncula e tinha um deus: aquele coronel silencioso, imóvel na proa do barco.

    O conde tem a sensação de que alguma coisa o chama, e volta a cabeça. Encontra o olhar do sargento Tunico Ri­beiro. O sargento tem dentes enormes. Brilham no rosto escuro. O sargento é filho de escravos. Está no exército desde 1811. Aprendeu a profissão de corneteiro quando era um negrinho magricela, assustado com as vozes grossas e as botas pesadas dos oficiais.

    Aproxima o rosto do conde italiano.

    – Tô pensando num guisado de charque, conselheiro.

    Lívio Zambeccari sorri. Bento Gonçalves olha para eles. Lívio Zambeccari sente o precário conforto da capa de veludo. Na outra margem devem estar os soldados de Braga.

    – Vamos chegar – murmura Antunes.

    A Itália está longe. Bolonha está longe. Seu pai, suas invenções desvairadas estão longe. Quem, de sua família, o imaginaria a esta hora neste barco repleto de homens arma­dos, neste rincão perdido do mundo, indo para um levante?

    Percebeu o cheiro do mato próximo. A canhoneira imperial era uma sombra na neblina. (Talvez houvesse soldados de Braga.) Os remos foram recolhidos. O conde Lívio Zam­beccari olha rostos tensos, expressões decididas. Quem são estes homens? De onde vêm? O que buscam?

    Sentiu súbito aperto no coração.

    (Braga, em seu palácio iluminado, também estará com o coração apertado. Quando a barcaça tocar na margem, quando os cem homens se unirem aos quatrocentos de Ono­fre, quando a barra do dia iluminar o horizonte, o conde Zambeccari saberá que o coração de Braga irá diminuir, irá transformar-se num pedaço de gordura, como um pedaço de gordura será triturado pelos dentes de um cão.)

    Capítulo 6

    Antônio Rodrigues Fernandes Braga dá passos nervosos pela sala, espia à janela. Porto Alegre é uma cidade deserta e silenciosa. Todos conspiram. Ninguém em toda a maldita cidade é de confiança. A rua de pedras brilha. O lampião da esquina está envolto numa aura de neblina alaranjada. Ninguém vem acender as velas.

    No espelho, vê o tique nervoso no canto da boca, a gargantilha engomada, a casaca bordô. Ninguém vem acender as velas!

    Atravessa a sala em passos duros. Cada batida dos tacos no assoalho encerado ressoa em seu cérebro. Lembra tambores, cascos de cavalos. Abre a porta com ímpeto.

    – Joaquim! Joaquim! (Onde andará esse negro desgraçado?)

    O vulto no fundo do corredor, enfiado dentro do libré vermelho, ajeitando a peruca branca na cabeça, passos de urubu.

    – Onde te meteste? Não vês que já escureceu? Não cumpres mais com tua obrigação?

    O escravo passa rente a ele, encolhido. Braga toma-o pelo braço, exultante.

    – Eu sabia! Estavas bebendo, negro sem-vergonha!

    Passos no corredor. Escuta, ansioso. Larga Joaquim com um empurrão.

    – Acende as velas.

    Enfia o dedo no colarinho, alarga-o. É preciso sorrir... É necessário mostrar os dentes num arreganho forçado.

    Já ouve os três homens se aproximando. O Prosódia não pode descobrir seu medo. Nem Camamu. Nem seu irmão. Não. Este já sabe. Sempre soube.

    Atrás da grande mesa talhada empunha papéis, arma esse sorriso para os três homens.

    – O doutor Hillebrand já veio?

    A pergunta é de seu irmão Pedro, o chefe de polícia.

    – Esteve aqui.

    Joaquim começa a acender as velas. Prosódia apoia a ponta dos dedos na mesa.

    – E Sebastião Barreto?

    Ninguém responde. O comandante de armas da Província, Sebastião Barreto Pereira Pinto, está longe, com seus cavalos, suas armas, sua voz grossa.

    – Onde está Menna Barreto? – pergunta Braga, procurando mostrar severidade. – Era para estar aqui.

    – No rocio, com as tropas – diz Camamu.

    – As tropas! – geme Braga.

    (As tropas eram um diminuto piquete de cavalaria da 1a Linha mais a Guarda Nacional permanente, ambas num total de setenta homens. A tentativa de reunir uma companhia de Guardas Nacionais a cavalo foi um fracasso. À tarde, en­tregou o comando geral à alta patente do antigo exército, o brigadeiro Gaspar Francisco Menna Barreto. O veterano estufou o peito, apertou o cinturão e saiu arrastando a perna endurecida pela artrite para inspecionar as tropas.)

    – Atravessaram o rio. Estão se reunindo na Azenha – diz Camamu.

    – Quantos? – A voz de Braga está trêmula.

    – Ninguém sabe.

    Pedro Rodrigues sorri com soturna suavidade.

    – Mais de quinhentos, seguramente – diz Camamu.

    – Quinhentos homens é uma força muito superior à que poderemos reunir até a madrugada.

    Camamu dá passos nervosos, mãos às costas.

    – Hillebrand prometeu alguma coisa quando esteve aqui?

    – Diz que organizará a resistência em São Leopoldo.

    – Esse alemão sabe o que diz.

    É a primeira vez que a voz de Prosódia tem um acento otimista. Braga crispa o rosto. A visita do doutor Hillebrand o humilhara.

    Capítulo 7

    Cercado por dois compatriotas alemães, o médico destoa­va dos seus acompanhantes, camponeses rudes, com seu perfil de águia e maneiras afetadas. Foi em pé que leu a proclamação aos colonos de São Leopoldo, escrita momentos antes, numa antessala do gabinete de Braga.

    – Convidado insistentemente pelo Presidente da Província e autorizado pelo Juiz de Paz deste Distrito, passo a comunicar aos meus Patrícios Alemães que um partido pela maior parte composto de Negros e Índios está ameaçando as Autoridades desta Província, legalmente constituídas, tendo por fito derrubá-las ou assassiná-las, conforme as circunstâncias, a fim de proclamar uma república ou governo extralegal, cujo plano já patentearam abertamente através dos passos que principiaram a dar.

    Interrompeu a leitura de pronúncia confusa para examinar a reação de Braga. O doutor Hillebrand usava óculos redondos, pequenos, para defendê-lo da miopia. Os mesmos que cintilaram chamando a atenção das pessoas no cais, na manhã de primavera em que desembarcou do Germânia, dez anos atrás, junto com oitenta imigrantes. Era a segunda leva de colo­nos alemães e a Província estava alvoroçada com a novidade.

    Quando pisou solo gaúcho, Johann Daniel Hillebrand ainda não tinha trinta anos. Ostentava, porém, a glória de ter participado da batalha de Waterloo, a 18 de junho de 1815. Mal saído da adolescência, seus olhos azuis viram a derrota definitiva de Napoleão Bonaparte. Trazia enrolado num canudo o título de Doutor em Medicina da Universidade de Goettinger e um longo e pomposo currículo, escrito em latim, que deixava as pessoas mudas de admiração.

    Tornou-se o líder da Colônia. No dia anterior ao embarque – era natural de Hamburgo –, foi celebrado um concerto na igreja luterana do seu bairro. Na travessia do mar carregou na memória (com a intuição de que fora a última vez que a ouviria) a melodia tortuosa e dourada de um adágio de Bach.

    – Está bem, doutor, não precisa ler o resto, confio no senhor.

    Braga amava cerimoniais, mas estava ansioso. Lembra com ódio o ar superior com que o doutor Hillebrand disse não concluí ainda, excelência e leu em pé, rígido, sem piscar, o resto da proclamação.

    Agora, cercado por Camamu, Prosódia e seu irmão Pedro, Braga perdoa o doutor Hillebrand. Braga sente a necessidade de mais homens como o doutor Hillebrand: transparentes, secos, fiéis.

    – Farei uma excursão pela periferia – está dizendo Camamu. – Quem sabe se uma pequena surpresa nesses... farrapos... – escuta satisfeito o riso dos outros – não mudaria o ânimo dos nossos confrades.

    – Não sei se o brigadeiro Menna Barreto terá condições de ceder-lhe alguns homens.

    – Quero voluntários.

    Prosódia perfila-se. Bate os calcanhares.

    – Aqui tem um, major.

    Suas palavras geram um burburinho de vozes que se animam, tropeçam, sobem sem direção. Fala-se em buscar armas e cavalos, encorajam-se mutuamente, acertam um encontro no rocio dentro de meia hora. Saem em tropel, pisando forte, falando alto, começando a rir.

    Pedro Rodrigues é o último a encaminhar-se para a porta. Olha demoradamente para o irmão mais velho.

    – É melhor reunir a família e fazer as malas.

    Braga percebe: o tique volta.

    – É assim tão grave?

    Dá a volta na mesa, aproxima-se do irmão despindo as máscaras que utilizara para mostrar fortaleza, aproxima-se sem pudor ao desprezo, com a sensação de que poderá cair de joelhos e suplicar ajuda.

    – É assim tão grave?

    Pedro Rodrigues põe o chapéu novo, comprado na Corte.

    – É melhor prevenir. Teu imposto sobre o sal está ficando cada vez mais amargo, meu irmão.

    – Esse imposto não é meu e vosmecê sabe muito bem. Eu fui contra. Isso é coisa do regente.

    – Foi um erro sério.

    Afasta-se carregando o estranho poder que atormenta e fascina o presidente Braga. Outra vez, o tique. Encontra o olhar de Joaquim. Com falsa solenidade, vagarosamente, o negro fecha as duas folhas pesadas, sem o menor ruído.

    Capítulo 8

    A sombra – vela acesa na mão – deslizou pela parede amarela dos corredores e sussurrou algo à outra sombra, numa dependência secundária do palácio.

    A segunda sombra enrolou-se no poncho e saiu para o ar úmido. Montou no cavalo e atravessou o rocio tomado pela tropa do brigadeiro Menna Barreto.

    No portão foi parado pela sentinela.

    – Sou o doutor Magalhães Calvet. Recebi um chamado urgente.

    O sargento da guarda aproximou-se. Conhecia o doutor Calvet. Deixou-o passar e desejou-lhe boa viagem. O doutor agradeceu e fincou as esporas no animal, desaparecendo na neblina.

    Magalhães Calvet tinha pressa. Se não ocorressem transtornos no caminho, levaria meia hora até o acampamento de Onofre. O gigante gostaria de saber da temerária sortida do visconde de Camamu. Afinal, o visconde era um homem famoso.

    Desde que fora nomeado comandante da Legião da Guarda Nacional da comarca, José Gordilho da Barbuda, o visconde de Camamu, tudo fizera para mostrar-se digno do posto. (Um ofício de Braga chama-o valoroso e confirma sua presença constante nos subúrbios de Porto Alegre.)

    À frente de um grupo de vinte ginetes entusiasmados e sem preparo, o visconde cavalga, pensativo. Conhece esse tipo de entusiasmo. É uma experiência inédita em sua carreira a liderança de um contingente composto de funcionários públicos, empregados do comércio e alguns veteranos há muito desligados do ofício. Quando o frio vencer as casacas, os ponchos improvisados, as calças de veludo e as botinas de passear na rua da Praia, o entusiasmo cederá. Começarão os resmungos. Algum mais atrevido perguntará se já não é hora de encerrar a ronda. Não conta com ninguém. Nem mesmo com Antônio José da Silva Monteiro, o Prosódia, seu braço direito na Legião.

    Dono dum pasquim feroz e de façanhas noturnas, che­gado há pouco de Lisboa, o Prosódia já estava metido de corpo e alma na política local.

    A mão enluvada segura as rédeas, a outra pousa no punho da espada. (Não pensa que vai morrer.) Para seu desgosto relembra Lisboa: azulejos nas paredes, seges elegantes, gaivotas no porto fazendo assoada, damas cruzando o paço com sombrinhas coloridas.

    O desgosto transforma-se em rancor quando seus olhos vasculham o mato diluído pela neblina. Aí pode estar oculto um batalhão inteiro, armas embaladas, esperando-os. Estão indefesos, vulneráveis. Os cascos dos cavalos produzem estré­pito no pedregulho.

    Bruscamente, alguma coisa irrompe na estrada e precipita-se na direção deles.

    Sofreia a montaria que ergue as patas dianteiras, relinchando. Alguém perde o chapéu. O pânico propaga-se como aguaceiro.

    – Calma, calma!

    O ânimo mudou. Num segundo – e graças à lebre impre­visível que atravessou num relâmpago a estrada – os funcionários sentem a importância de voltar a seus lares, os veteranos descobrem a saudade do calor das cobertas, os caixeiros lembram que têm o dever de levantar cedo para atender seus armazéns.

    A vontade do visconde vacila. Deveria sentir ódio. Deveria esbravejar. Deveria ameaçar com degredo na África, com outras penas terríveis, mas sua vontade se encolhe, se perturba; sua vontade é um trapo. Vê-se ridículo e só, à frente desses tolos bem-vestidos. Pensa que pode estar sendo obser­vado, que podem estar rindo dele, que em seu acam­pamento esse selvagem do Onofre pode estar dando gargalhadas, preparando ordens devastadoras.

    A manopla de derrubar touros desaba sobre as costas do doutor Calvet, que estremece ao receber o golpe.

    – Bom trabalho, doutor.

    Onofre estende um copo de canha para Calvet, observa-o beber um gole cauteloso, espera a respiração do médico começar a normalizar.

    – Vamos fazer uma surpresa para esses voluntários, doutor.

    Recebe de volta o copo de canha e torna a enchê-lo. Olha para o tenente Sebastião do Amaral, que segura o freio do cavalo de Calvet.

    – Poeta, me manda chamar o Cabo Rocha. Tenho um servicinho feito na medida pra esse índio.

    Capítulo 9

    Em sua égua colorada, à frente dos seus trinta soldados, atrás do seu bigode negro, aquecido no poncho cinza, masti­gando o palheiro apagado, marcha Cabo Rocha. A ordem de Onofre até que veio em boa hora. Estava começando a enjoar, olhando para aquele fogo mortiço. Quando os combates começavam esquecia de tudo e participava com alegria sangrenta. Por isso fora promovido. Os castelhanos lembravam-se dele, bastava perguntar. Tacuarembó, Cerro Largo... Nas guerrilhas de dez anos atrás, com os dois Bentos. Mas ficar parado, ruminando: dali a algumas horas poderia estar carneando alguém – ou pior –, sendo carneado por um ferro frio. Não. Não era coisa de cristão aguentar. Precisava mexer-se, dar ordens, revisar os arreios, verificar a munição, ensebar a lança. Cabo Rocha não era homem de ficar parado não senhor. Nos arredores da Azenha destacou três soldados.

    – Venham comigo até a ponte. Os outros esperem aqui.

    A ponte da Azenha era uma ponte de pedra lançada sobre o arroio e os alagadiços que circundam a cidade e deságuam no rio Guaíba. Foi construída em 1808, destruída e tornada a construir. Imprescindível para a passagem das carroças carregadas de sacos de farinha. A região era povoada por colonos que se dedicavam principalmente à cultura do trigo. Para transformá-lo em farinha construíam moinhos de água, ou azenhas, como diziam em Açores. A grande quantidade dessas azenhas deu nome à região, como até Cabo Rocha podia deduzir.

    Cabo Rocha – capitão Manoel Vieira da Rocha – alisou amorosamente o pescoço da égua colorada e, gesto curto, exigiu silêncio.

    A noite estava absolutamente silenciosa, com exceção do murmúrio onipresente do arroio. Sua percepção de rastreador dizia-lhe que alguém se aproximava. Tornou a levantar o braço e deixou-o no ar – recomendação aos três soldados.

    As lanças emitiam efêmeros brilhos. Temeu que os vissem. Qualquer som se propaga com facilidade na beira da água. O soldado com cara de índio persignou-se. Cabo Rocha cuspiu o palheiro. Não tinha mais dúvida. Alguém se aproximava: cavaleiros.

    Capítulo 10

    Penando de solidão à frente de seus voluntários, o visconde de Camamu aproximava-se da ponte.

    A marcha noturna tornava-se cada vez mais penosa. Depois do incidente com a lebre, o moral reduzira-se de maneira alarmante. Um dos veteranos percebera e tentara consertar as coisas, mas sua intromissão apenas acelerara o processo de desencorajamento do grupo.

    O visconde – por fidalguia – não mandara o brigadeiro Alves Leite calar a boca. O brigadeiro passara há muito dos sessenta anos e participara de tantos combates que já perdera a conta. Isso é o que afirmava em voz bem alta e em tom fanfarrão.

    Acalentava a boa intenção de inculcar ânimo aos demais. O visconde, contrafeito, notava os esforços do veterano produzirem resultado inverso. Quanto mais falava em cargas e degolas, mais silenciosa e soturna tornava-se a plateia.

    O brigadeiro Alves Leite envergava uma vestimenta que o visconde, homem elegante, classificava, no mínimo, de ultrapassada. Botas até a altura das coxas, peitoril de metal oxidado recoberto por malha de aço, capacete espanhol disfarçado por uma barretina imperial. Na mão enrugada, a lança portentosa, a qual insistia em chamar alabarda.

    O visconde media o moral da tropa pelo silêncio do Prosódia. Era a terceira vez que o brigadeiro proclamava que não era homem de morrer na cama e o português escutava a fanfarronice calado. Foi então que viram os vultos na ponte.

    Eram três ou quatro ou muito mais. Como saber com esse nevoeiro? O visconde tem a consciência tranquila: estava começando a dar a ordem para que esperassem quando alguém disparou. O tiro explodiu quase a seu lado e cegou-o momentaneamente. Nunca pôde saber quem foi. Talvez o oficial de gabinete do chefe dos Correios, que tremia sem parar desde que saíram do rocio; talvez o ruivo caixeiro do armarinho da rua da Misericórdia ou até mesmo o duro brigadeiro, pensando em incendiar o ânimo da tropa. Seja como for, a distância era muito grande e o disparo foi inútil. O elemento surpresa – se é que podiam contar com ele – estava perdido. Percebeu os cavalos se agitarem contagiados pelo nervosismo dos homens. Puxou as rédeas, tentando dominar o mouro, quando viu, assombrado, num tumulto de tropel e gritos, surgirem do nevoeiro as lanças apontadas.

    O visconde de Camamu era homem da corte. Afora os exercícios de ordem unida, as paradas em homenagem ao imperador-menino e o aborrecimento do Toque da Alvorada, nunca se envolvera em combate mais violento do que os travados nos saraus por uma valsa com a dama da moda. Naquele lugar escuro, naquele fim de mundo, naquela noite de bruma fria com cintilações de água gelada, o visconde se deparou com o ataque como com uma aparição. Aterrado, viu os vultos – que lhe pareceram gigantescos – avançarem gritando obsce­nidades; viu as lanças: grandes, negras, pesadas, brilhando sinistras; viu os cavalos, espantosos, selvagens, tão decididos quanto os seres que os montavam.

    Mão enfraquecida buscando frear o pânico do mouro, entendeu que seria incapaz de conter isso que começava, fosse o que fosse.

    Fechou os olhos e esporeou com toda força o animal. Esbarrou em alguma coisa dura, brusco arranco tirou-o da sela. Sua sincera coragem, seus dias de caserna, suas aulas com o oficial francês, sua equitação, sua esgrima, seu latim, sua elegância, suas damas perfumadas precipitaram-se num abismo escuro.

    O Prosódia empunhou a espada e enfrentou o ataque. Porém, aquele não era um tipo de luta que conhecesse. Horrorizados, os caixeiros e burocratas viram-no ser atropelado e atravessado por uma lança afiadíssima, derrubado no chão com som de ossos partidos e pisado pelas patas ferradas.

    A montaria do brigadeiro Alves Leite foi prensada contra a amurada de pedra da ponte, junto com outras duas. O brigadeiro esbravejou e intimou e deu ordens, mas era impossível dominar o cavalo. Sentiu cada vez mais que seria derrubado no arroio e pensou no peso de suas vestes, no frio que estava lá embaixo e num esforço supremo esporeou as ilhargas de seu apavorado alazão. Deu um tiro a esmo.

    – Viva o imperador! – gritou. – Viva Dom Pedro II!

    O brigadeiro descobriu, com a intuição refinada em anos de longas guerras, que os atacantes eram apenas quatro, que mergulhar na água gelada significava pneumonia e que a primavera aproximando-se poderia bem ser a última. Ouviu uma voz gritar.

    – Abaixo os caramurus! Abaixo a galegada!

    – Viva o Imperador! Viva o Brasil! – respondeu, porque era seu dever e porque precisava fazer qualquer coisa.

    Os relinchos dos cavalos, o som dos cascos na pedra, as imprecações foram abafados quando mergulhou na água cintilante. Sobre ele desabaram também mais dois cavalos e respectivos cavaleiros.

    Os imperiais, sem comando, recuaram, não sabendo que fazer, e desandaram num galope desesperado.

    – Atrás deles! Não deixem escapar nenhum! – berrava Cabo Rocha.

    O contingente do visconde de Camamu, que viera para surpreender os rebeldes, desfez-se como ovo ao cair sobre uma pedra. Cada um correu para um lado, esporeando as montadas com desespero, sumindo na escuridão. Foi assim que salvaram suas vidas e puderam aparecer em casa noite alta, entrando pelos fundos, batendo nas janelas, cautelosos, narrando, vozes trêmulas, enquanto bebiam chás fumegantes, as peripécias da terrível noite.

    – Bento Gonçalves vem aí – afirmavam estremecendo. – São milhares!

    Uma a uma, luzes acendiam-se nas casas. Pedia-se aos gritos mercúrio-cromo, erva-cidreira, folhas de malva. O medo completou seu ciclo quando o visconde pôde, finalmente, chegar ao palácio iluminado do presidente Braga.

    Chegou depois da lança derrubá-lo do mouro e depois de correr na escuridão, tropeçando, caindo, levantando, atravessando banhados, sentindo a farda bordada em ouro esfran­galhar-se nos espinheiros, sentindo o rosto e as mãos esfranga­lharem-se nos espinheiros. Chegou percorrendo vielas mal iluminadas, andrajoso, sem barretina, sem banda, sem espada, sem penacho. Foi necessário discutir com a sentinela, chamar o sargento, altercar com o tenente.

    O homem pálido, de olhos febris, trêmulo de frio e sangrando de um ombro seria realmente o jovem e arrogante visconde de Camamu?

    Com indescritível arrepio, Braga entendeu que aquela era uma visão que mudava definitivamente seu entendimento do mundo. Soube então que no destino do ser humano está também incluído um misterioso horror, sempre próximo de se tornar realidade. O tique no canto da boca se tornou definitivamente incontrolável, quando viu o visconde entrar em seu gabinete, amparado por dois escravos.

    Capítulo 11

    Bento Gonçalves da Silva entrou em Porto Alegre a 21 de setembro de 1835, à frente das tropas rebeldes, com Onofre a seu lado. Porto Alegre era, nessa época, uma próspera cidade de quinze mil habitantes. Crescia em direção ao Caminho Novo e à Floresta, devido aos moinhos de vento e ao estaleiro. Artigos do Código de Posturas exigiam calçamentos nas ruas e o fechamento de terrenos baldios. Havia uma urgência de progresso, de novidades, de civilização que angustiava e exaltava os cidadãos. As ruas eram largas, razoavelmente limpas. A rua da Praia separava as docas movimentadas das casas residenciais que pontilhavam a suave colina que atravessa a cidade.

    Imponente, no topo da colina, erguia-se o palácio do presidente, com ampla visão do rio e dos telhados. Dali po­dia-se ver também os moinhos de vento e os morros verdes que cercam a cidade. A seu redor a Igreja Matriz e a Prefeitura, num ambicioso estilo neobarroco e o esplêndido solar do visconde de São Leopoldo, onde, às quintas-feiras, para amenizar as incessantes reuniões políticas que se faziam nos seus salões, bebia-se chá e escutava-se a legião de poetas locais recitar com voz dramática alexandrinos sobre corações feridos e donzelas loucas.

    Tudo se fazia com voz dramática, principalmente discursos na Câmara dos Deputados. A política era um assunto à flor da pele. Os jornais eram lidos nos cafés com afã, e desencadea­vam discussões nas esquinas, nas barbearias, nas farmácias.

    Marinheiros percorriam a rua da Praia falando idiomas desconhecidos. No cais, diante do majestoso edifício novo da Alfândega, atracavam embarcações de grande porte, trazendo pedaços do mundo distante, certa coqueteria, certo sabor internacional.

    No porto, os homens fumavam charutos e se sentiam importantes. Negros seminus carregavam fardos pesados. Fiscais do Império examinavam a papelada e verificavam se todos os impostos tinham sido pagos.

    Grupos de colonos alemães, chegados há pouco, espera­vam amontoados num lugar à sombra, olhando com admiração e receio a pele lustrosa dos escravos. Os primeiros colonos foram recebidos com festa pela população e pelo presidente da Província, dez anos atrás. Agora, já eram vistos com indiferença e esperavam dias intermináveis para que se lhes desse um destino qualquer.

    O Teatro da Ópera abria suas portas para receber plateia solidária e entusiasta. Jamais representou uma ópera, mas os concertos dos artistas de passagem para Buenos Aires alentavam os corações.

    Organizavam-se procissões acompanhadas piedosamente pela população. Cantavam-se hinos. Nas sacadas dos sobrados, ornadas com tapeçarias de seda e franjas esvoaçantes, as matronas debruçavam seus decotes para ver passar santos ricamente ornados. Procissões não faltavam: Porto Alegre tinha cinco igrejas, embora escasseassem padres.

    Tinha também dois quartéis, uma alfândega, um hospital, um asilo de pobres e uma cadeia solidamente construída. Não havia nenhuma escola.

    As chuvas intensas do outono e os alagadiços obrigaram a administração a construir pontes. A cidade era cortada por pontes e por boiadas que a invadiam regularmente, a caminho do matadouro. Os peões assustavam os moradores com seus gritos ásperos e suas gargalhadas obscenas. A Prefeitura baixou um decreto determinando o trajeto das boiadas, desviando-as do centro, o que deixou satisfeitos o comércio e a população em geral.

    A população em geral não compareceu para ver a entrada vitoriosa dos conquistadores da cidade. Bento Gonçalves contava com isso.

    As ruas desertas, as janelas fechadas, o silêncio apreen­sivo não o surpreenderam. Imaginava os acontecimentos dos dias anteriores e não se iludia com as consequências da propaganda feita por Braga antes de fugir.

    O dia amanheceu com novo estremecimento de horror. Atrapalhado pelo peso da armadura, prisioneiro de um emaranhado de ramas à beira do arroio, o corpo do brigadeiro Alves Leite foi encontrado por agricultores que se dirigiam a seus moinhos. Levaram-no para a cidade, lívido, duro, no fundo de uma carreta puxada por quatro bois lerdos, seguido por uma multidão que engrossava à medida que chegavam às ruas principais.

    Olhos insones, mão sobre a boca para ocultar o tique, Braga escutava a água do rio bater no casco do barco que o levava a Rio Grande. Antônio Rodrigues Fernandes Braga, antigo juiz de direito da comarca de Rio Grande, amava móveis pesados, perucas de rabicho, casacas, missas solenes e relatórios em letra caprichada. O cargo de presidente dessa província selvagem constituíra-se num suplício.

    Estudara Direito em Coimbra. Da nobre cidade universitária não trouxera apenas a nostalgia das capas negras, das guitarras e do vinho verde. Envolvera-se com a Maçonaria; chegara a pertencer a uma loja chamada A Gruta; lera – sobressaltado – manifestos pela proclamação da república.

    Coisa de rapazes, loucuras da juventude. Tudo isso ficara para trás. A monarquia era instituição secular, abençoada por Deus, justa nos princípios. E, agora – em seu governo! –, surgem esses estancieiros ignorantes, ladrões de gado, assassinos de índios, a conspirar, a ameaçar, a revoltar-se. E o pior de tudo: pregam algo tão inacreditável como uma república. Logo eles: escravistas, atrasados. Será que não entendem a gravidade de seus gestos?

    No dia anterior tomara uma decisão, após a chegada de Camamu: mudara-se do palácio para o Arsenal de Guerra, rodea­do por dezessete oficiais leais. À tarde, embarcara a família a bordo do brigue americano Trafalgar, para pô-la a salvo de algum insulto, conforme escreveu em ofício à Corte.

    Às seis da manhã, exasperado pelo sorriso fixo do irmão, reconheceu que a derrota era completa. Só restavam nove oficiais. E estes eram irredutíveis: queriam unir-se ao comandante de armas Sebastião Barreto e sua tropa, na Campanha.

    – Senhores, antes de partir, devemos destruir os canhões e a pólvora.

    Embarcou quando os farroupilhas entravam na cidade.

    Capítulo 12

    No gabinete de Braga, à luz de suas velas, Bento Gonçalves escreveu longa proclamação explicando os motivos do levante. É um documento sóbrio, respeitoso ao imperador e aos princípios monárquicos, pleno de nobres intenções em relação ao futuro e forte no ataque aos detentores do poder na Província. Na época, com propriedade, estas pessoas eram chamadas de retrógradas. Bento Gonçalves era homem comedido e suas emoções ponderadas. Usou a palavra reacionário apenas uma vez no documento, o qual, por sua vez, tem citações em latim e referências a deuses gregos, o que faz supor o dedo delicado do conde Lívio Zambeccari na sua redação. Isso, entretanto, não é de todo matéria comprovada.

    Bento Gonçalves, ao contrário da maioria de seus confrades – fazendeiros, militares, guerrilheiros do pampa, veteranos das guerras de fronteira –, tivera educação escolar num seminário e não guardava medo à cultura, nem vergonha de manifestar seus conhecimentos. Assim como o conde, escrevia versos; mas, ao contrário deste, não os publicava nem recitava para plateias aflitas. Usou seu talento literário, na maior parte, para escrever cartas.

    Era um infatigável redator de cartas, que escrevia com correção e calor. Estava começando uma – meditada, importante – quando João Congo entrou.

    – O senhor Domingos de Almeida está aí.

    Bento Gonçalves descansou a pena de metal no tinteiro. Domingos de Almeida tinha o dom de fazer seus olhos se alegrarem. O comerciante mineiro estava na meia-idade e pesava menos de sessenta quilos, mas transmitia resistência e fortaleza. Apertaram-se as mãos.

    À luz das velas de Braga, o crepúsculo da primavera invadindo as vidraças, Bento Gonçalves, com um sentimento que o embaraçou, descobriu o que o fascinava particularmente no atencioso mineiro de fala mansa e roupas escuras: o desenho da testa, longa e larga, somente apreciada nas iluminuras dos romances franceses que o conde Zambeccari costumava ler.

    Domingos não tinha visão otimista dos aconteci­mentos. Sabia que era prematuro proclamar uma república e confiar nos vizinhos platinos, mas acreditava que essa possibilidade não deveria ser descartada. Ponderou com muito tato, pois sabia que Bento Gonçalves não era um adepto fervoroso da república. Domingos deixou-lhe a impressão nítida de que tinham posto a funcionar um mecanismo.

    – E agora, meu amigo, esse mecanismo tem força própria.

    Bento Gonçalves ouviu-o durante duas horas. Quando Domingos partiu, Bento aproximou-se da janela. Ficou olhando o rocio deserto. O mundo, lá fora, era hostil. Era isso que buscava nas enervantes noites de conspiração? Essa sala em penumbra, ressoante de ecos, de vozes alteradas ou sussurrantes, era o sonho que

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