Minha Maternidade Atípica
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Minha Maternidade Atípica - Isabel Muniz Corradini
CAPÍTULO I – PRIMEIRA CRISE DE 2019
O número 7, segundo a numerologia do meu nome, era o meu número da sorte. Foi o que me disseram. Nunca fui de superstições, mas era algo com o que simpatizava. Mas foi no mês 7, depois de sete meses sem crises de convulsões, que aconteceu. Quando eu estava relaxada, somente eu e minha filha Lara de três anos, voltando da consulta com a neurologista, pelas 18 horas, chegando ao viaduto do Trevo da Seta, no bairro Rio Tavares, na cidade de Florianópolis, que começou. Ela reclamou e vomitou. Não parava de vomitar, deu umas três golfadas seguidas. Como estava sozinha dirigindo, rapidamente estendi meu braço para trás e tirei o cinto dela. Tinha bastante trânsito, então consegui fazer isso sem precisar parar o carro. Inicialmente achei que era só vômito, então, minha preocupação era que não aspirasse. Fiquei com uma mão no volante e a outra inclinando-a, de modo que a cabeça ficasse mais para frente, projetando o vômito para o carro e não dentro da sua boca. Decidi rapidamente que o melhor era parar numa das lojinhas após o viaduto para atendê-la numa calçada. Quando a tirei da cadeirinha percebi aquele olhar.
Era uma convulsão focal. Os olhos dela viram para o lado, ausentes. A mão direita começa a fazer uns movimentos repetitivos balançando bem rígida, o pé direito vira para dentro e os dedinhos (que não apareciam, mas que sabia como ficavam) estavam em garra, como os dedos da mão. A cabeça ficava virada para o lado direito. Pedi ao atendente que ligasse para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Ela estava febril. Liguei para meu esposo Bruno avisando da situação, mas combinamos de nos encontrar no Hospital Infantil.
Naquela segunda-feira, dia 1º de julho de 2019, antes de sair de casa, quatro horas antes, havia sentido que ela estava quente, temperatura de 37,4ºC, então dei logo o antitérmico para não arriscar. As duas últimas vezes que ela convulsionou, em novembro e dezembro de 2018, já tinham sido crises acima do tempo em que ela, até então, convulsionava como padrão (até três minutos), atingindo crises que duraram de 9 e 15 minutos respectivamente. A partir de novembro de 2018, as crises passaram a ultrapassar este tempo e só paravam quando era injetada medicação. A temperatura alta parecia diminuir o limiar da medicação para aguentar as crises. Como sabíamos disso, sempre que ela atingia 37,2ºC, já medicávamos para prevenir. Mas desta vez não achei necessário levar a medicação, pois damos pelo período de 4 em 4 horas. Serviu para aprender. Liçãozinha difícil. Pedi à funcionária ou dona da loja se tinha algum antitérmico, o qual dei para ela mesmo convulsionando. Já tinha feito isso em outras crises e sabia como fazer para que ela não se engasgasse.
Com o trânsito, o SAMU chegou após 15 minutos do chamado, mas não foi isso que me trouxe surpresa. Fiquei impressionada como os atendentes da loja, após ligarem e verem a minha filha convulsionando, mas sentindo que não poderiam fazer mais nada, voltaram às suas tarefas, atendendo os clientes, que estavam ali, insensíveis a uma criança de três anos convulsionando no colo da mãe.
Quando os profissionais do SAMU tomaram a Lara no colo, eu estava tão nervosa que ficava repetindo que na outra crise tinham dado Idantal, mas que não lembrava do nome da outra medicação (que era Diazepam via retal). Estava furiosa comigo por não lembrar. Senti-me sozinha, segurando-a, enquanto os profissionais estavam tentando pegar a veia. Furaram-na por dez minutos. Eu buscava o olhar dela e falava que ela era forte e que ia ficar tudo bem. Que a mamãe estava ali. E olhava no olhinho dela que, mesmo ausente, estava presente, mesmo que de forma inconsciente. Nestes momentos de perda da vitalidade, da consciência dela, há um misto de desespero e de fé.
Logo que os enfermeiros encontraram a veia e a medicação entrou, seu corpinho foi relaxando e os sintomas da convulsão desaparecendo. Chegando ao hospital, o Bruno estava com nosso outro filho, André, aguardando-nos na porta da ambulância. Entramos perto das 19h, atendidos por dois médicos plantonistas da emergência. Mais uma dose de Diapezam e de Idantal, ambos para conter e evitar nova crise de epilepsia, respectivamente. Começaram os exames de sangue, urina, Raio X.
Mesmo dormindo desde 18h30min, ela demorou até ficar calma, agitava-se frequentemente. O médico falou que, com toda aquela medicação, ela dormiria a noite toda. Bruno fez a ficha de internação e foi levar o André na minha sogra. Voltou para o hospital e informei que só uma pessoa poderia ficar junto com a Lara. Pedi a ele que fosse à nossa casa e buscasse algumas coisas como roupas, o anticonvulsivo dela, cobertor, fraldas, as suplementações e, especialmente, comida, considerando que ela faz uma dieta cetogênica (de maneira simplista, sem farinhas brancas nem açúcar), aliada à ausência de caseína (um tipo de proteína do leite de origem animal) e de glúten. Pedi para trazer frutas para mim, pois tinha apenas almoçado e acompanho a dieta da Lara como forma de apoio a ela.
Fomos liberadas da emergência por volta das 23h30min e instaladas na enfermaria. A informação era que, se não houvesse crises durante a noite, seríamos liberadas no dia seguinte. Todos os esforços para retirá-la da maca e levá-la com todas aquelas luzes brancas acesas até o leito que ela dormiria sem acordá-la foi eficaz. Fiquei muito feliz. As enfermeiras nos alojaram num quarto com mais três crianças, todas acompanhadas de mães ou avós. No quarto, todas dormiam, mas volta e meia as enfermeiras entravam porque as máquinas das medicações apitavam alto quando precisavam repor alguma droga. Sobrou uma cadeira que recostava um pouco para mim. Tudo bem. Quando elas trouxeram o cobertor, eu olhei para a Lara e vi que dormia calmamente, deitei. Mandei uma mensagem para o Bruno avisando das últimas notícias e sentei. Escrevi algumas notas no meu celular:
Cá estou eu, neste lugar que muitos dias me atormentou. Lara tinha apenas 23 dias de vida e viemos passar uma semana internados no Hospital Infantil para o acompanhamento da área neurológica, uma referência aqui no estado catarinense. Era tanto choro de criança, tanta mãe e parentes chorando, que aquele barulho ia entrando na tua pele e fazia tudo desmoronar. A esperança era sair. Saímos. Hoje, três anos e dois meses depois, estamos aqui, novamente internadas , após uma crise convulsiva de 25 minutos (2+5=7 – meu número da sorte) que passei sozinha, com ela no meu carro, seguindo com SAMU até o Infantil. Saímos daquela vez, agora sairemos amanhã.
Não deu nem cinco minutos e a Lara acordou. Era meia noite e vinte. Ela resmungou, aproveitei, enchi a mamadeira de leite de coco que o Bruno havia trazido, tirei-a da cama e trouxe-a para a cadeira comigo, cuidando para que não perdesse o acesso venoso. Ela tomou meia mamadeira, mas não voltou a dormir. Algumas vezes, as enfermeiras entravam e perguntavam se estava tudo bem. Coloquei-a na cama novamente e fiquei sentada com minha mão entre as grades, tocando nela, cantando, conversando, delirando. Estava com frio. Não havia pedido roupas para mim e o ar condicionado estava a 16ºC. Mas a Lara não chorava. Depois de cerca de uma hora e meia, ela começou a resmungar novamente. Retirei-a da cama e voltei a tentar a mamadeira. Ela não queria, mas senti que estava ainda grogue com a medicação, pois não chegava a chorar. Coloquei umas músicas de mantras que tinha no meu celular para ver se ela acalmava ou dormia, mas nada. Depois apelei para músicas infantis mais calmas. Nada a fazia dormir. Coloquei no berço novamente e ficava segurando a mão dela, pois estava determinada a arrancar aquele acesso venoso. Quando a enfermeira voltou, falei sobre isso e ela resolveu colocar uma tala para que não conseguisse arrancar o acesso. Funcionou, mas aquilo irritava mais a Lara. Graças à medicação, ela não chorou como costuma fazer: incansavelmente, berrando e jogando-se para trás. Ela reclamava, levantava. Eu dava a mão para ela, olhava nos olhos dela e falava que estava orgulhosa dela, que ela é uma menina muito forte e que íamos superar tudo aquilo. Segurava as lágrimas. Não me recordo se dormi algum tempo antes, entre as sentadas e levantadas, os burburinhos, as entradas das enfermeiras e choros de outras crianças nos quartos ao lado. Mas vi que eram quatro e vinte da manhã quando ela realmente dormiu. Lembrei do médico falando que ela ia dormir a noite toda, que não precisava pedir para não falar tão alto ou deixar a luz apagada na emergência. Quase senti raiva, mas ninguém conhecia a minha filha como eu e o Bruno. Nos primeiros 21 meses de vida da Lara, minha mãe me ajudou muito, indo na minha casa e ficando diversas vezes sozinha com ela para eu sair, correr, fazer algumas coisas para eu não surtar com tudo aquilo. Depois que a Lara fez dois anos e nos mudamos para o bairro Campeche, mais afastado da casa dos familiares, era praticamente só eu e o Bruno. Minha mãe até se propunha a vir, mas ela acabou tendo umas complicações de saúde e não podia mais carregar a Lara, que já pesava 12kg. Meus sogros também tiveram problemas com a saúde que os limitaram a ficar sozinhos com a Lara por longos períodos. Meu pai e a esposa, quando a Lara já tinha feito três anos, conseguiram, vez ou outra, ficar algumas tardes com ela, mas eles têm uma filha de oito anos e tinham seus compromissos. Tínhamos uma babá que nos ajudava nas férias da Lara, quando íamos trabalhar. De vez em quando a dinda Nanda vinha ou a amiga Angélica. A fisioterapeuta Mariângela também já ficou um dia. Esses momentos eram muito bons para o Bruno e eu, mas eram raros. Pensei nisso alguns dias antes, quando fomos visitar minha cunhada e meu irmão em Lages, para comemorar o aniversário do meu sobrinho e afilhado. Eles tinham gêmeos de um ano e meio e, desde os dois meses do nascimento deles, havia uma senhora que ficava ajudando diretamente com as crianças. Isso seria importante para mim e para o Bruno, pensei. Precisamos de tempo para nós e já havíamos cogitado essa possibilidade. Pensei em retomar essa proposta, mesmo apertados financeiramente. O André, que estava com 7 anos, era mais fácil de deixar com os avós e eles adoravam.
No dia seguinte, pelas oito e meia da manhã, veio a nutricionista do hospital falar comigo. Falei da restrição alimentar da Lara e ela ia ver na cozinha se conseguia o leite de coco e uma fruta, preferencialmente as que eu havia repassado. Mais tarde ela trouxe, mas fiquei pensando se não tivesse trazido o leite, como teria sido difícil passar a noite, ainda mais ela com fome.
Às nove e meia da manhã, o neurologista chegou para avaliá-la. Ela estava sentada na cama, sorridente. Eu falei que não houve convulsões de noite e se poderíamos ir embora. Após a avaliação da pediatra, que receitou outro antibiótico (ela estava com otite), fomos liberadas. Recordo da menina com a idade meu filho que estava na cama ao lado da minha filha, ela estava internada há cinco dias e começou a chorar. Perguntou para a mãe por que ela não poderia ir para a casa dela. Aquilo me cortou o coração. A mãe a tomou nos braços e falou que o médico ia vê-la daqui a pouco e, quem sabe, elas fossem liberadas. Acho que essas palavras trouxeram esperança para a menina, que foi se acalmando. A avó tinha passado a noite com a neta antes de a mãe vir pela manhã. Lembro dela perguntando o que a Lara tinha e falei, sem dar muita explicação, que ela havia convulsionado 25min. Ela respondeu: as crianças não deviam ficar doentes
. Eu concordava plenamente. A menina de sete anos foi infectada por uma bactéria que tinha entrado por uma ferida que ela tinha feito na perna. O bicho tinha se proliferado e ela tinha risco de trombose, entre outras coisas.
Bruno veio nos buscar 11 horas da manhã. Saímos com aquele alívio. Sentimento estranho, tendo em conta que a Lara tem uma doença genética – Encefalopatia Epilética relacionada ao Gene KCNQ2 – que atinge um dos canais de potássio (KCNQ2) e causa epilepsia e atraso no desenvolvimento global. Esta doença ainda não tem cura, então ela toma anticonvulsivo diariamente (sabe-se lá até quando) desde a primeira hora de vida.
A alta do hospital era como um consolo, uma recompensa frágil, diante de uma doença ainda sem cura. Após a saída do hospital, resolvi ficar em casa com ela naquele dia e no dia seguinte. Quinta e sexta-feira eram meus últimos dias antes de sair de férias, precisava finalizar algumas coisas e repassar outras no trabalho. Mas o coração apertava.
SONHO
Fui à praia. A cada pisada, sentia a areia escorregar por entre meus dedos. Sempre gostei da água, do mar. Acalmava. O céu tinha tons de amarelo, de laranja, de vermelho e de azul. As cores misturando, brincando, flertando umas com as outras. Como se estivesse decidindo por si mesmas qual pintura compor. A grandiosidade da natureza conectando a terra, o mar e o céu.
O vento bagunçava meus cabelos soltos e tocava meu rosto. O cheiro salgado, as gaivotas, os últimos raios solares despedindo- se eram um presente para mim.
Senti uma corrente de energia percorrer desde a ponta dos pés até o couro cabeludo. Percebia cada parte de mim, com prazer. Ora fechava os olhos para sentir sem distrações, ora abria-os para apreciar e completar toda aquela experiência que me era oferecida. Uma força gigante tomava conta de mim. eu suspirava absorvendo aquela abundância indelével. E seguia dona dos meus passos. Era maravilhoso.
UM DIA APÓS A CRISE
O dia seguinte à convulsão parece flutuar entre o que pode acontecer e onde tua imaginação está querendo te levar. Tento não cair no abismo do delírio e criar os obstáculos para me manter na sanidade. Abalaram-se os alicerces. A angústia desabrochou. Caminho descalça por pedras pontiagudas. Desisti de escolher onde encosto os pés. Entrego as solas por inteiro, pois preciso sentir essa dor que guardo em meu peito e que insisto em esconder de mim mesma. Mas deixei-a quietinha, naquele canto onde não tem voz, nem vez. Dizem que a opção é ser forte, mas hoje, seja forte ou fraco, libero este leão. Que grite, que sangre, que enterre e desenterre. Quero me permitir sentar naquele canto escuro e chorar todas as lágrimas secas que engoli. Se estou em cacos, piso neles.
Acordo. É cedo. Cedo minha existência.
RESTABELECENDO-ME
Busco uma música que me encaminhe à leveza. Sei que a Lara é muito receptiva às energias, ela sempre sabe quando estou aqui, mesmo em seus estados de ausência durante e após as crises.
Essa nossa dança, regada à melodia, resgata nossos sonhos, confortando-nos, enchendo-me de esperança. O amor cura, o amor transborda, o amor é muito maior que qualquer desesperança em relação à Ciência. O cérebro é pouquíssimo conhecido pelas pesquisas laboratoriais. Tem muita informação válida que não é considerada por estar fora do pensamento tradicional ocidental. Busco sim a Ciência e a medicina ocidental que tanto nos levaram aos avanços. Mas nunca deixo