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A Oficina do Xaile Sagrado
A Oficina do Xaile Sagrado
A Oficina do Xaile Sagrado
E-book805 páginas13 horas

A Oficina do Xaile Sagrado

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Sobre este e-book

Em plena pandemia, um grupo de mulheres reúne-se numa oficina online, para tecer um xaile. Mas não um xaile qualquer, um Xaile Sagrado, o que as leva a embarcar numa viagem ao mais profundo do seu ser, transportando-as ao encontro da sua verdadeira essência, ao resgate da sua criança interior e ao encontro com as suas feridas e sombras, numa viagem de autoconhecimento que passa pelos quatro arquétipos da mulher: Donzela, Mãe, Feiticeira e Anciã.
Entre fios, linhas e novelos, meditações e tomadas de consciência, contos e mantras, risos e lágrimas, partilhas e memórias, vão tecendo o xaile que as representa, o xaile das suas vidas, numa irmandade de mulheres tecedeiras que tecem a própria vida.
Partindo de histórias reais de mulheres reais, onde cada uma assume o arquétipo da Deusa que a caracteriza, acompanhe a jornada de um grupo de mulheres na busca do seu lugar no Olimpo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de ago. de 2023
ISBN9789895722037
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    Pré-visualização do livro

    A Oficina do Xaile Sagrado - Alves Marta Monteiro

    Agradecimentos

    Tenho muitas pessoas a quem agradecer, que me apoiaram na realização desta obra.

    Em primeiro lugar, quero agradecer ao meu marido, Carlos Matos, pelo seu apoio incondicional e por ter estado sempre ao meu lado. Eu sei que muitas vezes não terá sido fácil, muitas noites mal dormidas que levam a manhãs com mau acordar, a dias sem paciência… a sua compreensão e amor são fundamentais no meu equilíbrio como pessoa, tendo a consciência que estar ao seu lado me permite ser mais eu. Dá-me a liberdade para me aventurar nas minhas buscas interiores. Estar ao seu lado acrescenta-me. Com ele, sou mais.

    Um agradecimento também à minha mãe, Mariazinha, o meu fio de ariana nos caminhos da vida. Sem ela, simplesmente não estaria aqui. Bem como aos meus irmãos, Pedro e Patrícia Monteiro Alves, dois pilares fundamentais para ser quem sou.

    Tenho de agradecer ainda à Mariette Capinha, não só por ter tido a ideia de organizar o workshop, como por todo o apoio na concretização deste livro. Desde o primeiro dia, em que lhe confidenciei que estava a escrever, até ao último dia, foi o meu suporte. Esteve sempre lá, dando-me sustentação, força e confiança. Neste processo, ganhei uma amiga.

    Um agradecimento muito especial a todas as minhas companheiras da oficina do Xaile, que, com a sua generosidade, carinho e amizade, forneceram os alicerces essenciais para o surgimento da obra. Um enorme obrigada a Ana S., Andreia T., Carla P., Edite L., Maíra D., Márcia G., Marta C., Nádia T., Natália M., Paula F. e Paula S., gratidão a todas.

    Um agradecimento também à minha amiga Daniela Dinis, que me apresentou os círculos de mulheres, e à Anabela Santos, a facilitadora dos círculos que frequentei primeiramente. Abriram-me as portas a este universo completamente novo, onde, pela primeira vez, assumi em público o sonho de escrever e onde fui imediatamente acolhida, ouvida, nutrida e incentivada na prossecução do meu sonho.

    Por último, um agradecimento a duas grandes amigas muito especiais. Carmen Monteiro, minha amiga desde os tempos da juventude. É a minha grande companheira nos caminhos da vida. Esteve sempre lá, está sempre lá. E, uma vez mais, foi o meu apoio, o meu ombro amigo, a minha confidente. Horas e horas de conversas e desabafos tidos, na maior parte das vezes à noite, ouvindo-me, apoiando-me, sustentando-me. Sou grata pela tua amizade. Aurora Costa, uma grande amiga que me acompanha já há cerca de vinte anos. Muito obrigada pelo teu apoio e carinho, pela tua generosidade e por estares sempre aqui. Muito obrigada por fazeres parte da minha vida.

    Prefácio

    Fazer o prefácio deste livro é, para mim, uma grande honra. Posso dizer que, ao lê-lo, fiz a oficina do Xaile Sagrado, pois lê-lo foi trazer à luz partes de mim. Li-me, ouvi-me, vi-me, senti-me e entrei em processo de autoterapia, como acredito que acontecerá a muitos leitores. Li com o olhar de terapeuta e percebi que é ilusão pensar que, quando fazemos um trabalho com os outros, somos isentos de nós.

    Estive com Deusas mulheres sem perceber que também estava a falar de mim. Das minhas dores, das minhas limitações, das minhas vulnerabilidades, das minhas forças, dos meus dons, talentos e virtudes.

    Partilhei uma história, a minha história, e vi-me refletida na história de todas elas, através dos ensinamentos e aprendizagens de uma vida já vivida. Espelhos de uma ciclicidade em movimento.

    Nas histórias de cada uma é possível vermo-nos, revermo-nos e encontrarmo-nos.

    Na história da Psiquê, encontrei partes de mim. Memórias guardadas em segredo que Psiquê teve a coragem de trazer à luz. Psiquê é a representação da alma humana e do seu esforço para evoluir. É a alma que se revela em todas nós, salva pelo Eros da Irmandade.

    Deméter uma amiga de longa data, uma companheira de jornada, foi trazendo a sua sensibilidade e verdade na sua forma tão especial de ser mãe de família. O orgulho na sua obra de Deusa contemporânea, que muitas vezes foi inspiração para mim.

    Brigitte, revelou a donzela amante da poesia, da música e de todas as formas de arte. Mulher de sensualidade escondida atrás do seu olhar doce e meigo. Uma mulher pronta, masque ainda não sabe, como acontece a tantas de nós. Uma mulher que busca respostas que habitam no seu coração, somente à espera de serem ouvidas.

    Isis é a Deusa que ainda traz consigo o véu da dualidade e a promessa de uma alma ainda adiada que se vai revelando com a força da paixão. Mulher corajosa de enorme potencial que aos poucos vai florescendo.

    Ártemis é a nossa Deusa exploradora. Audaz, destemida, revolucionária e lutadora. Ama com coragem e lealdade. Tem o poder pessoal bem trabalhado e a certeza do que quer. Luta pelo direito à felicidade e alegria. O direito à vida, sem limites, sem medos.

    Hathor uma verdadeira força da natureza, mulher dual nas emoções e na capacidade de grandes recomeços e dolorosos finais. Intensa, verdadeira, sem véus, inteligente, viva e corajosa. Ela é a polaridade do masculino e feminino em conflito, mas sempre em movimento. Ela dança para o medo, para a coragem, para a abundância e para a escassez, para a dor e para a alegria.

    Hera é uma Deusa ainda às voltas com o seu Zeus. Mulher de força que quando vista, ouvida e sentida revela a força de uma companheira leal e presente. Mulher que persegue o seu direito a ser reconhecida como Rainha que é, e a recuperar tudo o que lhe pertence.

    Atena, curiosa, estudiosa, pronta para aprender sobre tudo o que a desperta e ressoa na sua alma. Conhecedora e sempre pronta para dar uma palavra de ajuda no florescer de quem chega a si. Mulher flexível e pronta para os desafios da vida.

    Trebaruna é a aurora dos começos e recomeços. Sorriso aberto e olhar meigo, anunciando de forma tímida a esperança de um novo dia. Ela é o mistério, o calor, a força e a coragem. Traz consigo a frescura e a energia da manhã para o novo dia que sempre chega.

    Bandonga é uma Deusa cautelosa que se vai revelando aos poucos onde mistério e timidez confundem-se, revelando um carisma escondido em virtudes e fortes valores. Mulher de grande sensibilidade e riqueza interior. Uma luz tímida que pacientemente aguarda o seu momento para revelar todo o seu brilho interior.

    Afrodite é uma Deusa com cheiro amar. Mulher que traz com ela o direito aos prazeres da vida. O prazer de ser mulher, amante, mãe, companheira, amiga, tudo. Amiga que sabe reconhecer nos outros aquilo que por vezes não acredita que habita em si.

    Perséfone é uma Deusa por quem tenho um especial carinho e por vezes sinto-me Deméter desta Perséfone que tanto potencial traz para ser revelado. As suas descidas ao mundo de Hades são cíclicas, como acontece a tantas e tantas de nós, mas é assim que vai desabrochando a sua Hécate ainda em construção.

    Em todas elas consegui ver partes de mim pois quando me encontro com o outro tenho sempre noticias de mim

    Quando comecei a ler o livro pensei que seria uma leitura fácil, rápida e indolor, mas não foi.

    Chorei, ri, pensei, escrevi, relembrei, fiz catarse, resolvi, cresci.

    Muitas vezes tive que parar, sentir, integrar, curar.

    Estes trabalhos de alma mexem sempre com memórias, feridas, crenças, padrões e gatilhos. O objetivo é sempre o despertar, a transformação e a cura, mas estes caminhos não se fazem sem alguma dor.

    Lê-lo foi também tomar consciência do impacto que temos nos outros. O que dizemos, o que transmitimos, o que o outro ouve e como ouve, interpreta e processa é algo que nem sempre temos acesso.

    Cresci com o testemunho da Psiquê, como estou certa de que acontecerá com os leitores. Pois ao depararmo-nos com as suas questões, reflexões, dúvidas, inquietações, sonhos e desilusões, tive notícias de mim.

    Sinto que hoje sou mais…

    Expandi e transformei-me. Tornei-me mais consciente, mais humilde, mais humana, mais inclusiva, mais cuidadosa, mais cuidadora e mais atenta.

    Este livro é também um retrato dos círculos de mulheres, onde encontramos verdade sem máscaras e preconceitos. Onde temos lugar para sermos quem somos, com as nossas forças e fraquezas.

    Espero que este livro traga a quem o ler o conhecimento do que são os círculos de mulheres. Círculos onde tiramos o véu e nos despimos da dor, do medo, culpa e vergonha. Círculos onde partilhamos experiências, conhecimentos e sensibilidades e ousar darmo-nos desta forma, numa sociedade que critica, julga, humilha, rejeita, abandona, exige perfeição onde ela não existe, é preciso ter coragem e confiar.

    Espero que este testemunho traga a confiança para aquelas que ainda duvidam que existe irmandade entre mulheres e da existência de lugares onde se praticam medicinas, conhecimento empírico, académico e ancestral. Lugares onde se partilham experiências e memórias, sentimentos e emoções.

    Que as histórias destas mulheres Deusas, seja um testemunho do que é ser Mulher.

    Que a leitura deste livro se transforme numa medicina de experiências e memórias de uma jornada de vida, onde tantas vezes nos revimos e descobrimos as nossas dores, pois somos todos terapeutas da alma.

    Grata a todas estas Deusas maravilhosas.

    Mulheres sagradas e corajosas.

    Mulheres heroínas.

    Mariette Capinha.

    Hécate.

    Quando tu mudas, tudo muda.

    Quando tu mudas, a tua realidade muda.

    Quando tu mudas, o mundo muda.

    PERSONAGENS

    A Oficina

    Psiquê

    Hécate

    Afrodite

    Atena

    Ártemis

    Brigitte

    Deméter

    Hathor

    Hera

    Ísis

    Perséfone

    Trebaruna

    Bandonga

    Família da Psiquê

    Ariadne - Mãe

    Apolo – Pai

    Eros – Marido

    Poseidon - Padrasto

    Loki – filho mais velho do padrasto

    Ares - filho mais novo do padrasto

    Anahita – prima

    Zeus - ex-marido

    Higia - avó materna/ médica obstetra

    Outros

    Atégina -amiga

    Freya - amiga e médica obstetra

    Hipócrates - médico psiquiatra

    INTRODUÇÃO

    Desafiei-me a tecer um xaile. Um xaile sagrado. Um xaile que representa a minha vida. Despertar a tecelã que habita em mim, que habita o interior de cada mulher. E a verdadeira tecelã é aquela que encontra os fios perdidos, as pontas soltas e que, com as suas agulhas, os transforma numa linda obra. Propus-me encontrar os fios perdidos, as pontas soltas que não consegui domar ou que nem sequer consegui perceber e transformá-los num lindo xaile, tecendo assim a minha própria vida. Cada cor, cada quadrado, uma memória, uma emoção, um sentimento, uma etapa. Um xaile que me representa. Para mim é um duplo desafio. Criar um xaile é não só uma viagem ao meu interior, curando, perdoando, integrando e ressignificando memórias, vivências e experiências, mas também a própria criação material do mesmo, que é, só por si, um desafio.

    Nunca teci nada na minha vida. Nunca fui ligada a costura, crochet, tricot. Tenho alguns dons e talentos, mas os trabalhos manuais não são seguramente nenhum deles. Nunca tive jeito, nem sequer apetência ou motivação para as artes manuais. Pelo contrário, a simples ideia de o fazer já é um grande salto, pois é o oposto do que me define como pessoa, o oposto da identidade que construí.

    A Psiquê não tem jeito para nada que seja manual. A Psiquê é mais virada para o lado intelectual. Pregar um botão é uma coisa que nunca me passou pela cabeça. Mas viajar ao meu interior, encontrar respostas, tecer a minha própria existência, para mim, já faz todo o sentido. Nisso revejo a Psiquê. Criar o xaile é enfrentar os nossos demónios, os nossos medos, as nossas memórias, conquistas e fracassos, para renascer inteira, completa, resolvida, consciente e um ser humano melhor. Por isso, inscrevi-me na oficina para criar o meu xaile sagrado. A minha jornada não é feita sozinha, mas na companhia de outras mulheres, cada uma desfiando, criando, tecendo a sua própria vida. Numa irmandade do xaile sagrado, numa irmandade de mulheres tecelãs.

    Como vivemos tempos estranhos, vivemos o tempo da pandemia, os nossos encontros, as nossas reuniões não poderão ser presenciais, pelo que serão, como quase tudo neste novo normal, via internet, via zoom. Vamos ter o nosso primeiro encontro, pelo que a Hécate, a organizadora da oficina, pediu-nos para pensarmos em como nos queremos apresentar. Isso fez-me pensar.

    Quem sou eu? Sim. Quem sou Eu?

    Apresentamo-nos sempre num registo do que fazemos e onde estamos, isto é, profissão, local de residência, estado civil. Mas é isso que nos define? É isso que nós somos verdadeiramente?

    CAPÍTULO I – AO ENCONTRO DA CRIANÇA INTERIOR. A DONZELA.

    14 de janeiro de 2021

    Hoje conheci as mulheres que me acompanham nesta jornada. As minhas companheiras de viagem. Estava expectante e curiosa para as conhecer, para vê-las pela primeira vez. Não sabia que tipo de grupo ia encontrar, mas fiquei agradavelmente surpreendida. A minha primeira impressão foi muito boa.

    A reunião começou com umas palavras da Hécate:

    —Queridas tecelãs, quero, em primeiro lugar, agradecer-vos por estarem aqui e por terem aceitado este desafio. Muito obrigada pela viagem que vamos iniciar em conjunto. Somos um grupo de mulheres muito diferentes, cada uma com a sua história de vida, com as suas lutas internas e externas, as suas vivências e as suas experiências. Mas apesar disso, há uma tecelã que habita o corpo de todas nós. E ela ensina-nos a olhar a vida como um grande novelo de lã, e os nossos dons e talentos como agulhas que dão forma aos nossos projetos e sonhos. Podemos ver a vida como um intrincado novelo de lã, uma intricada meada que vamos tecendo no tear da nossa existência, da melhor forma que podemos e sabemos, e as agulhas como os dons e talentos que possuímos, para tecer a obra que é a nossa própria vida. O desafio que vos proponho é tecer o xaile da vossa vida, pois à medida que o vamos criando, vamos, paralelamente, realizar uma viagem ao nosso interior. Cada uma de vós vai realizar a sua viagem sozinha, na certeza, porém, que não está sozinha no caminho, pois a ideia é que este grupo se constitua como uma verdadeira irmandade de tecelãs. Que nos apoiemos e ajudemos umas às outras. E, no fim, vamos sair daqui mais conscientes, mais fortes, mais empoderadas. - Fez uma ligeira pausa e continuou. -Hoje, no final da reunião, vou-vos enviar uns vídeos que ensinam, em termos práticos, a fazer as rosetas para o nosso xaile, para quem quiser começar já a aprender ou a fazer. Sei que, para algumas, será mais fácil do que para outras, mas a vida é mesmo assim, cada uma tem de crescer com os dons e talentos que tem. Não importa se o xaile fica tecnicamente perfeito. O importante é a nossa postura perante os obstáculos. O que importa aqui, tal como na vida, não é o fim, mas o caminho, a viagem. Por isso, não se preocupem se no início vos parecer muito difícil. Pensem que, neste momento, vocês são como um bebé acabado de nascer e, tal como a ele, o mundo parece um lugar muito diferente, estranho e difícil, também a vocês, no início, o trabalho vos vai parecer difícil. Tal como ele, temos de aprender tudo. Já imaginaram tudo o que um bebé tem de aprender? Comer, beber, andar, falar, reconhecer sons, expressões, sensações, etc. Já para não falar do nascimento em si mesmo.

    Pensei para comigo mesma o quão assustador deve ser nascer! É um pensamento que já me aflorou à mente muitas vezes. Estar num local quente, aconchegado, sem ter de fazer nada, e, de repente, o parto. Dor, frio, desconforto, medo, barulho! Qual será a sua sensação? De morte iminente, certo? Para o bebé, o nascimento, deve parecer-lhe a morte. E é com essa sensação que nós vimos a este mundo. Medo, angústia e insegurança. Estas emoções acompanham-nos desde sempre, são memórias guardadas bem fundo do nosso ser. A sensação de morte persegue-nos desde o nosso nascimento.

    Neste ponto, a Hécate emocionou-se.

    —Peço desculpa. Mas hoje estou um pouco em baixo, porque tive de levar a minha gata ao hospital veterinário, pois estava com dificuldades respiratórias. E teve mesmo de ficar internada. É minha companheira há já onze anos e estou com receio que seja algo grave.

    —Neste momento- continuou- nós somos como o bebé que já fomos um dia. Vamos aprender tudo do zero. E á medida que aprendemos a pegar na agulha e a fazer as rosetas que compõem o xaile, vamos aprender e descobrir muito, não sobre o mundo lá fora, mas sobre o mundo que é cada uma de nós. Vamos ao encontro da criança que ainda mora dentro do nosso coração e vamos resgatar a nossa criança interior. Vamos ao encontro da nossa verdadeira essência. Fez uma ligeira pausa e continuou. - O nosso próximo encontro é daqui a três dias, domingo de manhã. Não se esqueçam de terem à mão as agulhas e as lãs, para iniciarmos o nosso xaile.

    Seguiram-se as apresentações. A irmandade do xaile é formada por treze mulheres. A Hécate, a organizadora, tem cabelo liso, castanho-claro, abaixo dos ombros. É uma mulher bonita, elegante e feminina. Veste uma camisola branca de algodão. Tem um fio de ouro ao pescoço, com uma medalha que não consigo identificar. Tem um sorriso franco, uma expressão doce, voz meiga que inspira confiança. Está sentada ao computador na mesa da sala. Na parede do fundo, encontra-se um aparador elegante, de madeira castanho-escura. Sobre o aparador, um candelabro com velas e, por cima, pendurada na parede, vê-se uma mandala. Uns lindos cortinados brancos, com reposteiros bordeaux, compõem a imagem. É uma sala elegante, sóbria, mas, ao mesmo tempo, moderna. Tem cinquenta e dois anos, nasceu em Lisboa e, atualmente, reside em Vila Nova de Gaia. É casada, pela segunda vez, e tem um filho. Desta segunda relação não tem filhos. Vive em Gaia, porque, segundo a própria, deu um verdadeiro salto de fé. Deixou Lisboa, e a vida toda organizada que tinha, para vir viver com o homem que amava. Mudou-se com o filho pequeno de apenas três anos. Mudou-se para uma cidade onde não conhecia ninguém e começou de novo. Correu bem. Está casada há quinze anos. Foi o primeiro, mas não o único, salto de fé da sua vida. É técnica superior de Farmácia, trabalhou vinte e sete anos numa multinacional, tinha uma vida estável, tanto profissional como financeiramente, mas sentia que aquele não era o seu caminho. Já não se sentia feliz e realizada profissionalmente. Queria mudar. Deu o segundo salto de fé. Seguiu o seu coração e deixou o emprego. Pela segunda vez, seguiu o seu coração para ser feliz. Foi para Glastonbury. Esteve dois anos a tirar o curso de sagrado feminino. Passou a dedicar-se à área do desenvolvimento pessoal e tornou-se terapeuta. Abriu, no ano passado, a Academia Florescer do Ser, no mês anterior a começar a pandemia, e passou a dedicar-se profissionalmente a esta área.

    A seguir apresenta-se a Ísis, amiga da Hécate. Tem cabelo ondulado ruivo e curto. Veste uma camisola azul-água com uma linda écharpe azul-marinha sobre os ombros. Fio e brincos de ouro, está também, sentada na mesa da sala. Ao fundo, um grande quadro de uma natureza morta, por baixo, um aparador. Sobre o aparador, peças em cristal e uma jarra com flores naturais. Uns grandes vasos com plantas compõem a imagem. Tem cinquenta anos, um sorriso lindo e uma expressão doce. Também vai no segundo casamento e tem dois filhos. Tal como a Hécate, também deu um salto de fé, mudou de cidade para ir viver com o homem que amava, mas isto apenas há três anos. Os filhos são do segundo casamento, do primeiro não teve filhos. Acompanhou a Hécate na sua viagem por Glastonbury, fizeram juntas o curso de sagrado feminino. No passado, noutra vida, trabalhou muitos anos numa área que não tem nada que ver com este campo, aliás, refere que já fez muita coisa na vida. Hoje não trabalha, mas quer mudar, está à procura do seu caminho.

    A Afrodite tem trinta e quatro anos, é casada e tem dois filhos. Vive em Gondomar. Não se alonga na apresentação. Não gosta de falar pela internet. Preferia que as reuniões fossem presenciais, mas como, infelizmente, agora isso não é possível, participa nestes encontros online. É linda a Afrodite. Tem um lindo cabelo ruivo cheio de caracóis que lhe rodeiam a face redonda e caiem revoltos sobre os ombros. Tem um ar saudável, um aspeto desportista. Uma simpática ruiva, hippie chic. Veste uma camisola cinza, usa umas lindas argolas nas orelhas e no pulso várias pulseiras. Está confortavelmente sentada num sofá amarelo acastanhado, com as pernas por cima do mesmo, e vê-se, por cima, um quadro de cortiça, repleto de fotos. Ao meio, uma linda fotografia de uma floresta tropical sob um sol cintilante.

    A Hera não está a falar de um computador, mas sim de um telemóvel. Não dá para ver onde está. A imagem dela preenche todo o ecrã. Parece estar sentada num sofá preto. Cabelo preto curto, tem um ar pesado e sofrido. O contraste com a Afrodite não podia ser maior. Tem quarenta e oito anos e apresenta-se numa posição encolhida, parece tensa e nervosa. Veste um kispo preto. Teve um ano difícil. O ano passado foi um ano difícil. Teve de lidar com duas perdas, a morte do pai e o fim do seu casamento. O seu objetivo é aprender a viver sozinha. Aprender que se basta a si mesma, que não precisa de um homem como muleta para ser feliz. Se no campo pessoal está difícil, no campo profissional não está melhor. Tem uma empresa de catering, que, por causa da pandemia, está muito mal. No passado já deu formação de cozinha, mas nem isso agora a ajuda, pois, neste momento, não há cursos a funcionar. Engasga-se a falar, voz trémula e chorosa, as lágrimas escorrem-lhe pela face.

    Segue-se a Bandonga. A Bandonga está de pé, no meio do que parece ser uma sala despida, onde não se consegue perceber nada, apenas paredes brancas. Veste uma camisola vermelha e amarela aos quadrados, usa uns grandes óculos que lhe preenchem as feições. Tem quarenta e cinco anos e vive em Guimarães. Tem um ar misterioso a Bandonga, uma expressão estranha onde não se consegue descortinar qualquer tipo de emoção, o que lhe dá um ar enigmático. Magra, cabelo castanho curto, cara redonda. Neste momento, está desempregada por opção. Casada, anda em busca de se conhecer.

    A Brigitte tem cabelo liso, castanho, meio acobreado, ligeiramente abaixo dos ombros. Tem quarenta e cinco anos e um lindo sorriso. Voz doce, surge na imagem em pé, num canto de uma sala com parede bege, à meia-luz. Num canto, vê-se uma pequena mesinha de apoio com um candeeiro por cima. Traz ao pescoço um fio de bijutaria. Veste uma camisola bege e, por cima, um casaco de malha castanho. Está numa fase de mudança na vida, decidiu mudar de vida e trabalhar com o pai, é motorista de táxi e tem a particularidade de carregar nos rrs.

    Agora é a vez da Deméter. Tem cinquenta e cinco anos e cabelo curto, loiro. Está confortavelmente afundada num canto de um belo sofá de pele preta, com uma manta aos quadrados escoceses em cima das pernas. Nas mãos, uma xicara de chá, que, de quando em quando, leva aos lábios. Camisola de gola alta branca e um lindo xaile sobre os ombros. Sobre o sofá, em cima, na parede, um grande quadro de uma natureza morta. Alegre e muito risonha, o seu discurso é entrecortado por umas belas e sonoras gargalhadas. Vive em Lisboa, é casada e tem duas filhas. As filhas são a sua maior alegria e a sua maior realização é ter as duas já formadas e encaminhadas na vida. A sua maior satisfação é as suas filhas serem duas jovens mulheres bem formadas e felizes. Se as filhas estão felizes, ela está feliz. Considera-se de bem com a vida, muito alegre e otimista. Sorriso aberto e gargalhada fácil. Agora com a pandemia é que está um bocado mais em baixo. A pandemia sim, está a custar-lhe. Custa-lhe não poder conviver como antes. Precisa do convívio, precisa dos outros, de sair, de viajar, de ser livre. Custa-lhe estar fechada em casa, por isso, anda mais deprimida.

    A Hathor é uma mulher elegante e muito bonita. Uma mulher charmosa, com classe. Parece-me ser alta, magra, cabelo liso, comprido, preto. Tem quarenta e sete anos, é socióloga e vive no Pinhão, numa quinta que transformou num projeto de turismo rural, onde produz vinho do Porto. Diz que teve uma vida cheia. Já viveu em várias cidades, para aí umas quarenta e sete, diz, a rir. Viveu três anos em Londres, viveu na Índia, e em mais cidades do mundo. Por isso, já perdeu a conta às vezes que mudou de casa. Teve uma vida cheia e intensa. Ligada às artes, já foi bailarina, já foi professora de dança, entre outras coisas. Divorciada há quatro anos, tem três filhos, um dos quais vive em Londres. Usa uma pequena écharpe preta sobre uma camisola vermelha. Está numa sala muito ampla, ao estilo rústico, com um grande pé direito. Ao fundo, num canto, consegue ver-se uma salamandra. Está sentada perante uma grande e nobre mesa de madeira maciça. Vêem-se ainda grandes vasos com plantas. Considera-se uma mulher muito sensível.

    A Ártemis também é uma mulher muito bonita e elegante. Usa cabelo de comprimento curto, abaixo das orelhas, mas com volume e revolto, o que lhe dá um certo ar selvagem. Tem cinquenta e cinco anos, sorriso franco e aberto. Divorciada e com uma filha. Muito comunicativa e faladora. Considera-se mesmo um pouco tagarela, diz, a rir. Tirou o curso superior de fotografia, sempre esteve ligada às artes. Foi fotógrafa, mas teve uma doença grave, que a levou a mudar o rumo da sua vida e hoje está ligada às medicinas alternativas. Tem o curso de aromaterapia e fez mais formações na área. Vive em Vila Nova de Gaia e é terapeuta. Veste uma camisola de gola alta azul-bebé e um pequeno xaile de lã azul-marinho sobre as costas. Usa colar e brincos de bijutaria cara. Está também sentada à mesa da sala, onde se vê um lindo aparador com 16velas em cima. A sala tem paredes cinza muito claro e um ar elegante e moderno. Do teto, pende um vaso com flores.

    A Perséfone é a mais nova do grupo. Tem vinte e oito anos e está sentada no quarto, em frente a uma secretária com uma grande estante cheia de livros, por trás. Camisola branca de gola alta e cachecol sobre o pescoço. Magra. É formada em Ciências da Comunicação, e está a tirar um segundo curso, Psicologia. Muito simpática e empática. Vive em Felgueiras. Quer aprender com a sua experiência pessoal, mas também com a dos outros.

    Por último, as duas amigas que surgem juntas no ecrã. Estão sentadas lado a lado, a partilhar o pc, e não se percebe onde se encontram. Vê-se apenas uma parede branca. Estão as duas de kispo, coladas uma à outra, quase parece que estão a dividir o mesmo assento. A que se encontra à esquerda chama-se Atena e embarcou nesta viagem à última da hora. Está muito entusiasmada, empolgada mesmo. Para ela, esta aventura faz todo o sentido. Nunca teve jeito para as artes, desenho, o que seja. Na escola, nas aulas de desenho, como demorava muito tempo e não tinha jeito nenhum para a coisa, chegava mesmo a exasperar os professores ao ponto deles lhe dizerem para deixar estar, e acabarem os trabalhos por ela. Para ela, fazer um xaile é, assim, um enorme desafio. (Revejo-me completamente nesta situação). Psicóloga, tem trinta e oito anos, mas aparenta ter menos dez. É muito mais ligada ao lado racional e à leitura do que às artes. Olhos grandes e expressivos, fala com um sotaque meio açucarado que não consigo identificar de onde vem. Divorciada, tem um filho de doze anos. Cabelo comprido, liso, castanho, usa óculos sobre uma cara redonda. Simpática, comunicativa, de sorriso fácil, vive em Espinho.

    Por último, do lado direito, a Trebaruna. É amiga da Atena e embarcaram juntas nesta viagem. Vive em Espinho. É a mais observadora, reservada e pouco faladora. Estava mais a ouvir e, sinceramente, passa de tal forma despercebida, que não me lembro de quase nada da sua apresentação, apenas que tem trinta e cinco anos e tem cabelo preto, comprido.

    E eu? Como será que as outras me viram? Estou sentada à secretária do escritório da minha casa, com uma estante cheia de livros por trás. Uns cortinados brancos com um reposteiro verde-escuro que compõem o enquadramento que surge no monitor do computador. Visto uma camisola de lã cinza mesclada, de gola alta. Estou de óculos, pois preciso deles para ler. Tenho cabelo castanho, ondulado e comprido. Demasiado comprido, há um ano que não vou ao cabeleireiro por causa da pandemia. Estou com ele apanhado num rabo-de-cavalo. Chamo-me Psiquê e tenho cinquenta e três anos. Nasci em Lisboa, mas vivo em Vila Nova de Gaia, por razões familiares, desde os doze anos. Sou casada e não tenho filhos. Sou professora de Economia, mas, por opção, sem exercer há uns cinco anos. Antes da pandemia dava explicações, não por necessidade, mas por vocação e prazer. Adoro ensinar. Adoro aprender. Tenho sede de conhecimento. Estou sempre à procura de respostas. Sou uma mente inquieta e curiosa. A minha vocação é ensinar, estimular o crescimento intelectual e emocional dos jovens. Fazê-los sonhar, alargar os seus horizontes, dar-lhes ferramentas para crescerem e voarem sozinhos. É assim que me realizo, é isso que eu verdadeiramente sou.

    Tive uma vida cheia de desafios, marcada por obstáculos que tive de aprender a ultrapassar. Vários nós envencilharam o novelo da minha vida e nem sempre as minhas agulhas se mostraram à altura. As exigências e circunstâncias da vida conduziram-me a um caminho de transformação interior e crescimento pessoal. Mas esse é um processo contínuo, um trabalho inacabado, esse é um projeto sempre em andamento. Ainda continuo a aprender, continuo a crescer, a tentar melhorar como ser humano e a expandir o meu nível de consciência.

    Adoro conviver. Sou capaz de estar horas a conversar. Preciso dos outros para me sentir bem. O contacto humano para mim é essencial. Gosto essencialmente de pessoas. Adoro o contacto físico, preciso do toque. Preciso do beijo, do abraço e do mimo. Preciso e dou mimo. Sou de afetos.

    Também preciso de estar sozinha. Tenho os meus momentos de recolhimento, de solidão. Adoro ler. Adoro estar à lareira num dia frio. Gosto de escrever. Adoro animais. O que mais adoro é o sol. O mar. A praia. Preciso do sol. Preciso do mar. Ler um bom livro junto à lareira a ouvir o som do mar é pura magia.

    Concluídas as apresentações, a reunião prosseguiu com uma meditação. Uma meditação guiada, que nos levou ao encontro da nossa criança interior. Cada uma de nós transporta consigo a criança que um dia foi. Carregamos as suas memórias, as suas angústias, os seus medos, os seus desafios e as suas vivências. Carregamos as emoções que essa criança viveu. Transportamos as feridas que sentiu. As dores, as frustrações, as mágoas. Essa criança vive dentro de cada uma de nós.

    Visualizei-me com seis anos. Estava um dia lindo de sol, e eu brincava no jardim da casa dos meus tios. Vejo-me ao longe e ouço as gargalhadas daquela criança. Sinto-me tão bem! Sou como o sol. Quente. Cheia de vida. Completa. Inteira. Olhei fundo para os olhos daquela criança. Uma criança com uns expressivos olhos grandes. Uns olhos do tamanho do mundo. Senti um profundo amor e carinho por aquela criança. Ouvi as gargalhadas daquela criança. Senti a felicidade daquela criança. Saltava de cima de um muro interior existente no jardim. Aterrava no chão, corria e subia de novo as escadas de acesso ao patamar superior e tornava a saltar. Estava feliz. Vestia calças de ganga, uma camisola leve e calçava sapatilhas. O patamar de acesso era ladeado por pereiras. Ah! Como eu adorava peras! Era a minha fruta preferida. Continuei a visualizar a criança que brincava sozinha, mas isso não a impedia de estar feliz. Para uma criança o estar sozinha, não é impedimento de brincadeira. O estar sozinha não era sinónimo de solidão. Solidão? Eu nem sequer sabia o que isso significava. Tal como tantos outros sentimentos e emoções me eram, à época, totalmente desconhecidos. A inocência de uma criança é algo verdadeiramente comovente. Estava verdadeiramente feliz.

    De repente, o telefone. O som do telefone a tocar irrompe como uma faca sobre aquela calma manhã de sol. É o meu Apolo. De certeza que é ele. Também lhe quero falar. Quero dar-lhe um beijinho, perguntar quando chega, já estou cheia de saudades! Toda feliz, corro apressadamente para casa. Tenho tanta coisa para lhe contar!

    Não, apeteceu-me gritar-lhe! Não corras para casa! Não vás! Apeteceu-me parar o tempo, congelar o momento. Não vás! Era o momento, aquele momento! Todos nós podemos identificar momentos claramente divisórios nas nossas vidas. Há um antes e um depois desses momentos. Mas, mais uma vez, tal qual como na vida real, o telefone tocou e eu corri para Casa. Vozes alteradas. A paz e a calma acabam. Não imaginava que nunca mais na minha vida me iria sentir assim tão confiante, completa e feliz.

    Aos poucos, vou-me agora aproximando da criança. Ela vira-se para mim e vejo-a. Olhei profundamente para os seus olhos. Tem agora uns olhos tristes. Os seus olhos espelham uma dor profunda. Uma dor tão grande que o seu pequeno corpo não consegue suportar. Toda ela é dor. Toda ela é angústia. Toda ela é medo. Está perdida, atordoada. O que aconteceu? O que isto quer dizer? Senti uma profunda pena e empatia por aquela criança. O que é eu quero dizer a esta criança? O que tenho para lhe dizer? Que eu a percebo. Que eu sei o que sente. Então falo com ela:

    —Tu pensas que ninguém te compreende, que ninguém imagina a dor que sentes. Tu pensas que não és capaz de suportar a dor que sentes. Mas eu estou aqui para te dizer que és capaz. Para te dizer que vais ultrapassar essa dor. Confia em mim. Eu sou o teu futuro. Vês-me? Conseguiste! Não precisas de ter medo da vida. Ela vai ser difícil, não te vou enganar. Mas a dor vai atenuar. A dor que sentes vai-te acompanhar para sempre, mas tu vais aprender a viver com ela. Vês-me? Não precisas de ter medo da morte. Tu não vais morrer. A morte faz parte da vida sim, mas não te pode impedir de viver. O medo da morte provoca uma dor profunda, mas olha, o medo da vida provoca uma dor igualmente paralisante. Olha para mim. Eu sou tu. - Estiquei os braços e dei-lhe as minhas mãos. Ficámos assim, olhos nos olhos, de mãos dadas, num silêncio cúmplice. Não me contive e abracei-a. Envolvi-a no abraço mais profundo que alguma vez dei na vida. Senti toda a sua fragilidade. Toda a sua dor. Sentei-me. Sentei-a no meu colo e assim ficámos abraçadas, num profundo silêncio. Depois, lentamente, aquela criança e o seu pequeno corpo começaram a encolher, diminuindo lentamente de tamanho. A criança foi ficando cada vez mais pequena, mais pequena, tão pequena que cabia na palma da minha mão. Senti uma profunda empatia e ternura por aquele minúsculo ser. Segurei-a com carinho, levei a sua mão com muito cuidado ao meu peito e acolhi-a no meu coração. Acolhi-a dentro de mim. Agora mora no meu coração e vai acompanhar-me nesta jornada. A minha criança mora no meu peito. Está protegida, acolhida, segura. Vai ser nutrida e acarinhada por mim. Está em paz.

    Quando regressei a mim, ao aqui e agora, a este espaço de tempo, estava emocionada, mas em paz. Feliz pelo encontro que tinha acabado de acontecer. Olhei para as minhas companheiras, vi a emoção espelhada na cara de cada uma delas e soube que cada uma tinha experienciado um momento igualmente profundo. E, tal como eu, cada uma acolheu no seu coração a sua criança interior. Um silêncio profundo pairava no ar. A reunião acabou. Imaginei-me a nascer.

    Cada uma destas mulheres reencontrou hoje a sua criança interior. Cada uma de nós está agora a lidar com as memórias e emoções desse encontro. No meu caso, hoje fui dormir em paz, ao som de Lullaby, de Mozart, música que a Hécate enviou para o nosso grupo no WhatsApp. Ao fim da noite, a Hathor enviou uma mensagem:

    —Estou mal! A minha criança interior colapsou! Há dias que terminam da pior forma, mas amanhã é um novo dia. Hoje vieram as sombras, mas a luz está sempre aqui. Obrigada a todas as irmãs.

    —E nós também- respondeu a Atena. -Não te esqueças disso.

    17 de janeiro de 2021

    Ainda não pratiquei nada, nem podia, estou ainda à espera da lã e das agulhas que encomendei. Mesmo assim, vi os vídeos e pareceu-me muito difícil. No que eu me meti! Para quem nunca pegou numa agulha parece uma tarefa hercúlea! Somente o facto de eu achar muitíssimo interessante a conceção intelectual que está associada à confeção do xaile me leva a prosseguir nesta viagem. O xaile é constituído por noventa quadrados. Cada quadrado é formado por uma roseta e por algo a quem como eu que não percebe nada do assunto poderá chamar uma borda que envolve a roseta, de modo a formar um quadrado. Essa borda é composta por duas partes. A roseta começa com um círculo de lã que fica aberto e, ao redor do círculo, vão-se formando pétalas. Oito pétalas para cada roseta. A roseta propriamente dita será como a larva, a primeira parte da borda, a crisálida, e a segunda parte, a borboleta. Assim, cada quadrado é constituído por três partes. No final, teremos de reunir os noventa quadrados, cosendo-os de forma a constituírem-se num corpo único sob a forma de um xaile. Pelo que, no fim, teremos não uma manta de retalhos, mas um xaile de rosetas. Um espelho da nossa vida. Vamos construir as rosetas, tal qual como as memórias, vivências e emoções que construímos na nossa alma. No final, teremos de reunir as rosetas num corpo único que será o xaile, tal como, integraremos, as nossas vivências no corpo que somos nós.

    Eu não pus as mãos à obra, mas algumas das minhas companheiras não só já viram os vídeos, como já começaram a tentar fazer a sua primeira roseta. A primeira a intervir hoje na reunião foi a Bandonga:

    —Eu já comecei a tentar fazer a primeira roseta, mas não está fácil. Vocês vão-se rir, mas a minha grande dificuldade é que a linha fica presa e não consegue passar. Fica presa e assim eu não consigo fazer mais! Não consigo andar mais para frente e avançar fico presa no mesmo sítio…

    —Quantas vezes queremos andar para a frente e sentimo-nos presas? Quantas vezes não conseguimos avançar? - perguntou a Hécate. -Quantas vezes ficamos paradas no mesmo sítio? O segredo para a linha passar é não apertar muito o ponto. Se não se apertar o ponto, a linha corre melhor e não fica presa, flui melhor. Tal qual como na vida, se não formos muito rígidos e inflexíveis, a vida flui melhor.

    —Se deres laçadas maiores, a linha passa sem dificuldade.- disse a Hathor. -Tenta fazer de uma forma mais easy going, faz com calma, vais ver que resulta.

    —Já para o mim o problema é que não sei onde pôr aquele fio do início que fica solto. O que é que eu faço àquela ponta de fio do início que fica pendurada?- perguntou a Ártemis, entre um enorme sorriso. -Não sei o que fazer com ela.

    —Essa ponta fica integrada na roseta. Numa primeira fase, fica assim caída de fora, mas, à medida que se faz a roda da roseta, vai-se integrando a ponta na própria roseta.- explicou a Hécate.

    —Eu já vi os vídeos e para quem nunca fez nada do género pareceu-me muito difícil. Acho mesmo dificílimo! Pelo que pensei se há algum problema de, em vez de fazer rosetas, fazer simplesmente quadrados, tudo a direito. Acredite, Hécate, que mesmo isso é um desafio enorme para mim. Não tenho nenhuma destreza de mãos.- disse eu, a rir.

    —Psiquê, quem consegue tirar um curso superior, consegue fazer uma roseta. Tudo depende do empenho e da vontade. Claro que pode ser mais difícil para ti, mas não é impossível. Pratica e sê mestre, já diz a sabedoria popular. Ninguém espera que vocês se transformem em verdadeiras tecelãs, mas apenas em tecelãs da vossa própria vida.- respondeu calmamente a Hécate, com a sua doce voz.

    —Eu já comecei a fazer e estou-me a divertir imenso. Vou por tentativa e erro.- disse a Perséfone. -Já tentei de muitas formas. De início, fiz elos gigantes- riu-se. -Desfiz tudo e tentei de novo. Começo a ter insights de padrões.

    —Para mim não tem sido nada fácil estes tempos de pandemia e este lado criativo parece que me está a ajudar a lidar melhor com ela. Estou tão concentrada no que estou a fazer que a minha mente esvazia. Não penso em nada.- disse a minha homónima.

    —Para ti está a funcionar como uma terapia. Isso é muito bom, Trebaruna.- Observou a Hécate. -Só não te esqueças que o objetivo é curar as tuas feridas, pelo que tens de visitar as tuas memórias, visitar o teu interior. Mantém o foco.

    —A partir de quando é que posso começar a fazer rosetas diferentes é a pergunta que me ocorre- disse, com uma sonora gargalhada, a simpática Ártemis. -É que fazer noventa rosetas todas iguais é uma monotonia- nova gargalhada.

    —Está descansada- respondeu, também a rir, a Hécate. -No início, têm de ser todas iguais, somos todas bebés a aprender algo novo, depois, quando entrarmos em modo de piloto automático, vocês são livres de darem asas à vossa criatividade. Já terão as ferramentas para voarem sozinhas e escolherem o vosso caminho. Tanto podem continuar a fazer iguais, como inventarem o que quiserem. A única regra é que, no fim, terá de ser um xaile.

    —O meu problema é que nunca chego à fase de piloto automático, tenho sempre vontade de aprender coisas novas, estou sempre a explorar, a iniciar. Depois, quando consigo fazer, parto para outra- respondeu, a rir. -E as rosetas têm de ser todas quadradas? Não podem ser redondas?

    —Têm de ser quadradas. Pelo menos a forma do xaile tem de ser igual, já, digamos, o seu conteúdo é que pode ser diferente Pois a nossa forma é a mesma, somos todas mulheres.

    Seguiu-se a Atena que estava com um semblante carregado.

    —Eu já tive vontade de desistir e fugir. Não é nada fácil este processo. Quis desistir porque não consigo fazer! Vi os vídeos, estive horas a tentar e não consigo- escorrem umas lágrimas pela face. -Parece que só está a reforçar a ideia que tenho sobre mim mesma, é como uma validação que não tenho jeito nenhum para os trabalhos manuais. Às vezes, apetece-me que surja a professora para me livrar deste aperto e fazer por mim. Só não desisti graças ao apoio da Trebaruna e ao espírito de grupo. Pensei que vos estava a trair, a abandonar o barco.

    —Isso não vai acontecer, minha querida- respondeu Hécate. -E eu tenho a certeza de que tu vais fazer as rosetas. Tudo bem, podes ter mais dificuldade, tu, tal como a Psiquê, não têm tanta apetência para estas coisas. Mas não são incapazes! Quando nós queremos muito, conseguimos fazer tudo. Eu não estou a pedir nada impossível. Com a tua persistência e com o nosso apoio, acredita em mim, tu vais fazer as rosetas.

    —Não tenho nada a dizer. Não sinto nada- disse a Afrodite, com um ar ausente, passando a mão pelos seus lindos cabelos ruivos. -Não sei se consigo fazer até abril… já se for até dezembro, talvez. Só sei que estou farta de estar fechada em casa, aborrece-me imenso, preciso de ar puro.

    Ninguém disse nada, mas estou certa de que todas percebemos a nostalgia da Afrodite, todas nós comungamos do mesmo sentimento. Ficou um silêncio no ar que só foi cortado com a intervenção da simpática Ísis.

    —Eu acho que está aqui formado um grupo de mulheres fantástico. Acredito mesmo que vai nascer daqui algo de muito especial. Está aqui um grupo com mulheres muito diferentes, mas já noto que se criou uma grande empatia. Chego a estar emocionada. Eu ainda não tenho agulhas e lã, encomendei online e ainda não recebi. Por isso, quanto à questão prática, não me posso pronunciar, para já.

    —Eu não tenho muito para dizer. Apenas quero dizer que já gosto muito de todas vocês- disse a Brigitte, com um ar doce e olhos brilhantes.

    —E tu, Hera, não dizes nada? Estás tão caladinha- perguntou a Hécate.

    —Pelo que estou a ouvir, o meu caso é diferente, pois eu sei fazer crochet, tricot, costura, tudo. Também tenho muitas linhas e lãs, de todas as cores e tamanhos, uma quantidade enorme. Não sei é qual escolher. Tenho tantas que fica difícil a escolha, fico indecisa. Foi por isso que ainda não comecei. Mas este ponto específico nunca fiz, vamos ver quando começar como corre.

    —Pois, a ti não te falta cordão, não é? Se calhar falta-te é começares a desfazer esses novelos todos que tens, falta-te começar a cortar o cordão e a usares a lã. De que serve teres tanto cordão se não o usares? Toca a crescer, a explorar novas formas de fazer, só tens de desfazer o cordão e aventurar-te noutros pontos, noutras formas de fazer- respondeu, piscando-lhe o olho.

    A intervenção final coube à Hathor.

    —Em verdadeira revolução é assim que eu me sinto. Tenho estado em comunicação com a minha criança interior, desde a primeira reunião, o que me tem causado noites mal dormidas. Mas estou bem. Digo-lhe: Olá, Hathor, como estás?. Eu estou aqui. E é incrível, pois consegui estabelecer contacto com ela, sinto que encurtei a distância. Está muito próxima.

    A Hécate retomou, então, a condução da reunião.

    —Coloquem-se à prova. Vocês estão a aprender a serem felizes, e, às vezes, ser feliz não é fácil. Ser feliz dá trabalho. No início, é natural que as rosetas fiquem mal feitas. Fiquem imperfeitas. Pois estão a dar os vossos primeiros passos. Estão-se a aventurar a andar pela primeira vez. Estão a aprender a ser curandeiras. Tal como uma criança começa a erguer-se com dificuldade, também vocês vão sentir dificuldades para começar. Mas depois passa a cambalear, evolui para andar de mão-dada, até finalmente andar sozinha. Mas, pelo caminho, caiu e levantou-se várias vezes, faz parte do processo. Vocês também estão a aprender, estão num processo. Muito importante quando se sentarem para fazerem as rosetas, concentrem-se, respirem fundo e, de preferência, façam uma meditação antes. Pode ser a meditação da criança interior que fizemos da outra vez, não sei se já todas viram, mas eu mandei-vos a meditação para o nosso grupo do WhatsApp. Depois, enquanto estão a fazer, não se esqueçam de conversarem com a vossa criança interior. Perguntem-lhe: o que se passa? O que é que tu tens? Como te sentes? E respondam-lhe: Eu sei que te sentes triste, incompreendida. Eu sei que os outros meninos não brincam contigo. Eu sei que não gostas de ir para a escola. Eu sei que sentes que não és capaz. Eu sei que não estás bem porque eu não estou bem. Eu sei que não estás bem porque as tuas dores são as minhas dores. Mas não se foquem somente na dor e no negativo. Revisitem também as boas memórias, as vossas pérolas, as vossas conquistas. Façam rosetas representativas das vossas pérolas. Esta roseta é: eu aprendi a andar. Outra: eu aprendi a falar, ou, por exemplo, eu agora já sei comer sozinha, eu já me visto sozinha, eu aprendi a ler, eu aprendi a andar de bicicleta, eu tive a boneca que tanto queria, eu fiz amigos na escola, eu não tenho medo de dormir sozinha no quarto, etc. Nós não temos só mágoas e dores dentro de nós. Temos também muitas conquistas, só que não lhes damos a mesma relevância que damos às feridas. Pois está na hora de mudar isso. As rosetas não representam somente as nossas dores, mas também as nossas conquistas e elas são muitas! Tenham também à mão caderno e caneta, para irem anotando as vossas memórias, pensamentos, emoções. As vossas feridas e as vossas conquistas. Será o diário da vossa viagem interior. E, muito importante, vão ao baú buscar uma fotografia vossa de infância. Uma foto vossa até para aí aos três anos. Levem a fotografia para a mesinha de cabeceira e olhem para ela de manhã, ao acordar, e também antes de deitar. A foto vai-vos acompanhar nesta viagem, não se esqueçam de olhar para ela. Eu vou-vos mandar um link para o Google Drive, lá irei colocando conteúdos adequados a cada etapa. Para iniciar, coloquei o livro do Principezinho. Se calhar, a maioria de vocês já o leu. Mas releiam-no agora. Também criei um ficheiro em branco, onde cada uma pode ir colocando o que quiser, um poema, um conto, uma imagem, um pensamento, uma música, o que for. No final, teremos um registo da nossa jornada, feito com o contributo de todas. Vamos criar um manual do nosso grupo, deste grupo de mulheres.

    Fiquei encantada com a ideia e pareceu-me que as minhas companheiras também.

    —Agora, minhas queridas, é meter mãos à obra e começar a sério o trabalho- continuou. -Para o próximo encontro, cada uma deve ter já feitas, pelo menos, duas ou três rosetas.

    Quando a reunião terminou, fiquei triste, desanimada. Encomendei as agulhas, as lãs, todo o material necessário para iniciar, mas ainda não chegou. Estou à espera. Estive dias online a escolher os materiais. Visitei vários sites, comparei preços, lãs, tudo! Perdi imenso tempo. Agora não tenho o material porque demora a chegar. Não posso dizer que não o sabia, porque está dentro do prazo de entrega indicado. Na altura que encomendei, pensei Não faz mal, começo mais tarde, começo para a semana que vem. Espero pelo material. Quero fazer tudo bem. Tudo perfeito. Com o melhor material possível. Depois recupero o tempo perdido. Mas não. Não. A partilha simultânea não posso recuperar. Dei-me conta que é sempre isto que eu faço na minha vida. Quero sempre tudo perfeito. Idealizo. Sonho. Projeto. Escolho as melhores opções. Sou perfeccionista. Quero sempre o melhor. E depois, se não tenho o que idealizei, adio. Se as coisas não são exatamente como sonhei, perfeitas, adio. Não faço nada. Fico à espera de o ter. Só que, muitas vezes, o perfeito nunca chega e, assim, nunca o faço. Isto aplica-se a muitas coisas na minha vida. Sempre quis escrever um livro. Mas nunca o fiz. Sempre o adiei. Estava sempre a arranjar desculpas. Ou ainda não tinha a história perfeita, ou não era a hora certa, ou não sei escrever bem e o livro não ia ser perfeito. Estou sempre a arranjar desculpas, pretextos, para adiar. A perfeição não existe. Se estiver à espera dela, nunca o farei. Não tem de ser perfeito, só tem de ser verdadeiro, vir de dentro do coração. Agora é o momento, agora é a hora. Não se pode deixar passar o momento. Tenho de o fazer com as ferramentas que tenho e o melhor que souber. Não é perfeito? Não é bom? Não faz mal. É o que é. Mais vale existir do que não existir, mesmo que com imperfeições. Se estiver à espera do momento certo, do material certo, das agulhas perfeitas, nunca será o momento certo, nunca passará do mundo das ideias para a materialização física. Dei-me conta que sou perfeccionista e muito exigente com tudo. Mas principalmente comigo mesma. E tenho medo de falhar. Tenho de me permitir falhar. Ousar errar. Ousar não ser a melhor. Ousar não ser perfeita. Não posso dizer que só agora me dei conta deste aspeto da minha personalidade. Há muitos anos que ganhei essa consciência e pensava mesmo que estava ultrapassado. O que eu ainda não me tinha apercebido é que isso se aplicava aos mais pequenos aspetos da minha vida, às mais pequenas coisas, como fazer um xaile! Apesar de ter essa consciência, sempre o atirei para a feitura de grandes projetos, como o de escrever um livro, por exemplo. Mas agora percebo que esse é o meu modo de funcionar sempre. Se não está tudo perfeito, se não está tudo como imagino, como sonho que vai ser, não faço, adio. Adio até estar. E nunca chega o dia em que está. Mas o que importa verdadeiramente é começar. O importante é caminhar. Não parar. Estar em movimento. Na vida, nada é perfeito. Muito raramente a vida corresponde exatamente ao que idealizamos, ao que sonhamos. Mesmo assim, temos de avançar e fazer o melhor que podemos e sabemos, com o material e as ferramentas que temos. Com a nossa verdade. Vou ultrapassar este meu defeito, este será o meu primeiro desafio. Assim, resolvi pedir emprestado à minha mãe, agulhas e lã e começar a fazer o meu xaile. Vou deitar mãos à obra com as ferramentas da minha mãe. Com as suas agulhas e linhas. E faz todo o sentido! Não foi assim que eu iniciei a minha vida? Dependente da minha mãe, dependente da sua lã, dependente das suas ferramentas? Por isso, faz todo o sentido para mim iniciar o meu xaile, não da forma que eu idealizei, mas com as agulhas e lãs herdadas da minha mãe, depois continuarei com as minhas ferramentas.

    Fui buscar uma fotografia minha de infância e, na verdade, não foi difícil escolher qual a que me vai acompanhar nesta jornada. Aliás, só tive de ir buscar o passpourt ao escritório e levá-lo para o quarto, pois ele já está exposto na estante. Adoro aquela foto. Na verdade, adoro todas as minhas fotografias de infância. Olhei para a foto e vi uma criança linda, alegre e feliz. Extremamente feliz. De facto, em todas as minhas fotos de infância eu estou sempre a rir! Sempre! Tenho uns olhos grandes, muito expressivos, e sempre um grande sorriso na cara. E um ar confiante de quem adora a vida.

    18 de janeiro de 2021

    Tive um sonho a noite passada. Não me recordo de quase nada, afloram-me à mente apenas imagens difusas. Sou pequena, criança e vejo um vulto que segue ao meu lado. Sigo de mão dada com o vulto. De repente, a imagem do vulto vai-se dissipando e eis que reconheço a minha mãe. Seguimos de mão dada. Estou feliz. A rir. Vou dando saltinhos e sinto a felicidade daquela criança. Aos poucos, aquela imagem vai-se desvanecendo e os passos da criança tornam-se curtos, apressados, mais tensos. Parece que lhe custa a andar. A mãe também segue agora mais devagar com um passo mais lento. Custa-lhes caminhar. Estão a caminhar em esforço. Sinto-lhes o cansaço. Sinto-lhes o esforço. E eis que vejo o caminho, surge-me à mente a imagem da estrada que percorrem. É uma enorme estrada íngreme, tão íngreme que têm dificuldade em manterem-se no chão direitas e não caírem. Cada vez a longa estrada que vejo se torna mais íngreme e não lhe vejo o fim. Só uma enorme estrada de asfalto com uma inclinação tão forte, tão forte, que têm dificuldade em caminhar e seguirem de pé. E não vislumbro o final do caminho.

    19 de janeiro de 2021

    Comecei hoje a fazer o meu xaile. Peguei nas lãs e nas agulhas da minha mãe e sentei-me a ver, mais uma vez, o vídeo explicativo. Já vi e revi o vídeo inúmeras vezes! Continua a parecer-me dificílimo. Mas vou fazer, pelo que aqui estou eu sentada, com novelos de lã à minha volta e de agulha na mão. Meu Deus, como é estranho! Não sei porquê, sinto-me desconfortável. Mesmo muito desconfortável. Não consigo fazer nada, nada mesmo, nem sequer sei como pegar na agulha, quanto mais conseguir agarrar a lã! Chamo o Eros para me ajudar, não é incrível? Foi ele que me ensinou como pegar na agulha, que me explicou como passar e agarrar a lã. Não que ele alguma vez o tivesse feito, mas viu-me tão atrapalhada que ele mesmo viu o vídeo e começou a fazer. E conseguiu! Eu não. Sinto-me mesmo uma nulidade. Sinto-me burra. É uma sensação que nunca tinha experimentado, mas, na verdade, sinto-me mesmo burra! Incapaz! No que eu me fui meter, em vez de ultrapassar o meu padrão no que respeita a artes manuais, estou simplesmente a validá-lo! É merecido, Psiquê, pela tua arrogância que consegues fazer tudo a que te propões. Merecido! Porque não aceitas simplesmente que de facto não tens jeito? O que te levou a pensar que desta vez seria diferente? E qual é o problema de não teres jeito? De não conseguires fazer crochet? Sim, qual é o problema? No fundo, querias provar a ti mesma que conseguias e agora sentes-te uma nulidade. Mas não vou desistir, isso não. Vou tentar, vou tentar mesmo. Nem que demore um mês a pegar na agulha direito, eu vou tentar! O que mais me aborrece é esta sensação de desconforto que sinto, uma sensação estranha, nervosismo mesmo. Mas não só. O coração bate mais depressa, parece que o simples pegar na agulha e na lã me faz sentir mal, parece que a agulha queima nas mãos. Sobe um calafrio pelas costas, estou inquieta, tensa. Pergunto-me porquê. Por que motivo me sinto tão desconfortável? Qual a origem do meu desassossego? Devia estar contente, pois, finalmente, vou começar o meu xaile. Tudo bem, um certo nervosismo é de esperar, dado que para mim é uma experiência nova e estou a lutar contra uma ideia preconcebida sobre mim própria. Mas tanto? A falta de jeito é imensa e custa-me muito de facto, mas é motivo para ficar assim tão perturbada? O Eros não ficou. Não, não é só isso, tenho de perceber o que me incomoda tanto. Sinto que é algo mais, algo que não consigo identificar.

    De repente, surge-me na mente um pensamento: "Ao que tu chegaste, Psiquê! Olha para ti a fazer crochet! Se te vissem agora! Não te reconheço. Não és tu. Onde estás tu? Não te conheço.". E veio-me uma identificação imediata com a minha mãe. Já não era eu que estava a fazer crochet, era a minha mãe! Eu era a minha mãe! De repente, percebi. De repente, fez-se luz. O meu desconforto está associado à identificação com a minha mãe. Eu estava a identificar-me com a minha mãe e isso causa-me desconforto. Eu cresci, construi a minha identidade tendo o meu pai como referência, cresci a querer ser igual a ele. A dor da sua perda era tão profunda, o vazio foi de tal ordem, que eu queria mantê-lo vivo em mim. Ele vivia em mim. Eu tinha de ser igual a ele. Se não fosse, ele morria. E eu não podia matá-lo! Esta tomada de consciência não a tive hoje, há muito que o sei. Descobri-o ao longo do meu percurso de vida. A novidade que só tomei consciência hoje, é que, eu tanto quis identificar-me com o meu pai, ele sempre foi o meu exemplo, o meu herói, que não dei hipótese sequer de ter também como modelo a minha mãe. Eu não permiti que a minha mãe fosse para mim uma mãe inteira. Na ânsia de ser igual ao meu pai, eu afastava qualquer aproximação a qualquer coisa que viesse da minha mãe.

    Eu amo mais que tudo a minha mãe, sempre amei. Para mim, ela é uma verdadeira heroína e a luz que sempre iluminou a minha vida. É um verdadeiro exemplo. Mas dou-me conta que a ela só lhe permiti ser mãe e nunca uma referência como pessoa, como Mulher. Dela bebi todo o amor, todo o carinho. Devo a ela hoje estar aqui saudável. Ela sempre esteve lá para mim. Sempre. Sempre pude

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