Baluartes: terra sombria
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Sobre este e-book
No Brasil Colônia de 1780 quando as fronteiras com o mundo sobrenatural ainda são frágeis e criaturas como o Saci, o Curupira, a Mula sem Cabeça e a Cuca não eram apenas histórias sobrenaturais, mas relatos de quem viveu o terror na sua forma mais pura. Assim, uma irmandade milenar secreta recruta jovens com características especiais para proteger os limites entre o mundo real e o mundo sombrio. Jovens que são capazes de enxergar além
dos limites e combater as forças das trevas. Estes escolhidos são conhecidos como Bastianes, ou Baluartes, incumbidos de manter o frágil equilíbrio entre os mundos.
É neste contexto que o português Luís Monteiro é recrutado na universidade de Pavia na Itália para se unir ao petulante Akim Shinedu, um príncipe de Dahomé, e a misteriosa índia Jaciara do Brasil. Os três são jovens e inexperientes, porém têm algo em comum, herdaram de seus ancestrais poderes e artefatos que os tornam especiais, capazes de transitar tanto pelo mundo real, quanto pelo mundo sutil de criaturas além da compreensão humana. Assim, eles partem para o Brasil Colônia para investigar os mistérios mais assustadores onde uma força de vida pode se transformar no poder da morte.
Primeiro livro da série Baluartes, Terra Sombria mostra as primeiras aventuras deste trio improvável de protagonistas que vivem aventuras eletrizantes na companhia de personagens históricos como o músico Mozart e um jovem Napoleão Bonaparte na Europa e Tiradentes no Brasil. Fruto de mais de 12 anos de pesquisa, a série Baluartes está apenas começando."
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Baluartes - Clinton Davisson
Copyright© 2022 Clinton Davisson
Todos os direitos dessa edição reservados à editora AVEC. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos ou em cópia reprográfica, sem a autorização prévia da editora.
Editor: Artur Vecchi
Projeto Gráfico e Diagramação: Vitor Coelho
Design de Capa: Vitor Coelho
Revisão: Gabriela Coiradas
Adaptação para eBook: Luciana Minuzzi
1ª edição, 2022
Dados Internacionais de catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
C 641
Clinton Davisson
Baluartes: Terra Sombria / Clinton Davisson.
– Porto Alegre : Avec, 2022.
ISBN 978-85-5447-115-6
1. Literatura infantojuvenil
I. Título
CDD 869.93
Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura infantojuvenil 028.5
Ficha catalográfica elaborada por Ana Lucia Merege – 4667/CRB7
Caixa Postal 7501
CEP 90430-970 – Porto Alegre – RS
www.aveceditora.com.br
@aveceditora
Sumário
Prefácio Por Christopher Karstermidt A alegria de publicar mais um livro!
As Crianças de Ibitipoca
I - Joaquim e o seu penico
II - A cachoeira
III - Recepção
IV - Lembranças
V - Forças opostas
VI - Onde vivem os curupiras
VII - O maior dos pesadelos
VIII - A volta dos que não foram
O Fantasma de Montaodeo
IX - O galpão de Galvani
X - Sala dos professores
XI - Alojamento de estudantes da Universidade de Pavia
XII - Pesadelos noturnos
XIII - Padre Rivera
XIV - Os vilões e os sonhadores
XV - Os criados e a lenda
XVI - Os quartos
XVII - À noite, no escuro
XVIII - Visitas
XIX - Reunião e poderes
XX - Lorde Andolini
XXI - Mary
XXII - A tragédia de Totti
XXIII - O confronto final
XXIV - Despedidas
Apoiadores
"Sonhar o sonho impossível,
Sofrer a angústia implacável,
Pisar onde os bravos não ousam,
Reparar o mal irreparável,
Amar um amor casto à distância,
Enfrentar o inimigo invencível,
Tentar quando as forças se esvaem,
Alcançar a estrela inatingível:
essa é a minha busca."
— Dom Quixote
Para João Monteiro e Marcelo Monteiro, meus heróis.
Agradeço ao Catarse e todos os apoiadores por proporcionar a oportunidade de concluir esta obra. À Sônia Santos, coordenadora da pós-graduação em Afrocartografias, que fez brotar esta ideia na minha cabeça. À pesquisadora Eliana Granado, que me deu suporte para várias dúvidas sobre a linguagem e os costumes indígenas. Aos amigos do grupo do Rio de Janeiro, Brian, Leo, GG, Rod, Fabiano, Eduardo, Trotta, e especialmente ao Helvécio, que me encorajou a fazer o roteiro que fez o livro engrenar depois de 12 anos emperrado. A Gaby que conseguiu me fazer acreditar em mim novamente e deu voz, rosto e corpo à Jaciara. Ao Fábio M. Barreto e a Luiza por salvarem minha vida e ao Igor Sardinha, que deu um apoio fundamental. Ao Christopher Karstermidt, que abriu caminhos e deu todo o suporte que estava em seu alcance para que eu pudesse concluir o livro. Não posso esquecer meu pai, minha mãe e meu irmão, que deram suporte em momentos cruciais para que o livro ficasse pronto. Enfim, obrigado a todos.
Prefácio
Por Christopher Karstermidt
A alegria de publicar mais um livro!
Sinto-me obrigado a começar este prefácio com os meus parabéns. Além de ter dois romances e muitos contos já publicados, Clinton é um apoiador de longa data da literatura fantástica brasileira, tendo servido uma eternidade (pelo menos deve ter sentido assim) como Presidente do Clube de Leitores de Ficção Científica. Durante seus mandatos múltiplos, uma das suas grandes proezas era trazer de volta o Prêmio Argos, para reconhecer os grandes talentos nacionais na área. Após uma década de queda constante nas vendas de livros, é bom saber que ainda temos guerreiros como Clinton na luta pela literatura. Como diz o livro, A melhor arma para combater as forças das trevas é o conhecimento, sabia?
Viva a leitura!
Por isso, fiquei muito feliz quando Clinton me falou que tinha terminado o livro dele, algo que estava ameaçando fazer há muito tempo. Apoiei com muito prazer o financiamento coletivo que levou este livro – direta ou indiretamente – às suas mãos, caro leitor.
O que nos leva ao livro em si. Se tem algo esquisito na sua vila, quem vai chamar? Caça-fantasmas? Claro que não. Vai chamar os Baluartes!
Gaia na sua sabedoria, criou a pequena morte, chamada sonho. Assim, os homens poderiam ser titãs à noite, e os titãs poderiam ser humanos durante o dia. E quando morressem, os homens se tornaram para sempre os titãs que eles mesmos criaram duran te a vida. Gaia escolhia humanos e titãs que não se esqueciam de quem eram. Que conseguiam transitar pelos dois mundos. Alguns timidamente, outros com mais poderes. A esses ela deu uma função: manter o equilíbrio dos mundos e proteger as fronteiras.
Com habilidade, o autor nos conta a história da origem da formação do trio improvável de Jaciara, Akim e Luís, três titãs
caçadores de monstros no melhor estilo Van Helsing ou Geralt de Rivia. Nunca mais temeu ser surpreendido por monstros. Na verdade, ansiava por isso e tinha a impressão de que eram as criaturas das trevas que o temiam.
Os caçadores de monstros são os grandes heróis que nós precisamos, os nossos escudos contra os monstros nascidos dos nossos medos mais profundos, para nos poupar a necessidade de enfrentá-los sozinhos.
E por que esse trio é tão especial? Porque para enfrentar vários demônios, precisamos de vários deuses.
Neste momento que o nosso mundo fica tão dividido entre nós
e eles
, é bom que ainda possamos imaginar um mundo onde trabalhamos juntos para vencer os monstros que enfrentamos todos os dias. Que este passado fantástico vire o nosso futuro.
Viva a diversidade!
Viva a fantasia!
Viva Clinton!
Christopher Kastensmidt é um escritor norte-americano, residente no Brasil. Conhecido pela sua série A Bandeira do Elefante e da Arara, com suas obras de ficção publicadas em doze países. Foi finalista do prêmio Nebula, um dos mais importantes da literatura fantástica mundial, com a noveleta O Encontro Fortuito de Gerard van Oost e Oludara, em 2011.
As Crianças de Ibitipoca
I
Joaquim e o seu penico
Vila de Ibitipoca, junho de 1780.
O menino acordou de um pesadelo, daqueles bem arrepiantes em que rostos sombrios flutuam pela nossa cama com olhos sem expressão, mas profundos como se pudessem tragar ali toda a sua alma. Os olhos deles encostam nos seus e é ali, por meio daquele olho no olho, que levavam nossa vontade de viver.
Joaquim abriu os olhos no quarto, mas o breu era tanto que mal poderia dizer se estavam realmente abertos, nem se ele ainda estava realmente vivo. Aqueles seres poderiam ter drenado, mastigado, sorvido sua alma como a avó fazia com o prato de sopa. Ela, sem dentes, puxava o líquido quente e fazia um chiado horripilante. Não interessava se a comida era ou não gostosa. O som da avó puxando aquilo da colher para a boca era paradoxalmente intragável, porque era assim que Joaquim imaginava que faces no escuro chupariam sua alma pelos seus olhos.
Embora sentisse medo e seu coração ainda estivesse acelerado, outras funções biológicas falavam mais alto naquele momento. Ele tinha bebido muita água antes de dormir. Precisava urinar. E foi esta prioridade biológica que fez calar os outros medos e fez o menino de seis anos levantar-se no quarto escuro e caminhar em direção à porta.
Em toda parte, ele imaginava olhos sombrios e dentes pontiagudos que apareceriam na sua frente, desprovidos de vida, de emoções, de compaixão. Haveria apenas o desespero, o vazio que o levaria. Eram altas horas da noite. E na pequena vila de Ibitipoca, todos dormiam cedo e acordavam cedo. Mas havia sons do lado de fora do quarto, gemidos, sussurros que gelaram a alma do menino por um tempo que pareceu infinito. Mas ele reconheceu aqueles sons que vinham da cozinha. Eram seus pais.
Eles estavam fazendo aquela coisa que ele não podia ver. Se abrisse a porta, ficariam bravos; se não abrisse, haveria seres medonhos escondidos no escuro e a bexiga apertada. Joaquim girou a maçaneta, então, da forma mais discreta que podia e a luz entrou no quarto
A iluminação da casa é feita com velas e um lampião a óleo. Um forno a lenha solta faíscas da madeira. Leonora, sua mãe, cozinhava um peixe enquanto seu marido, Miguel, a abraçava e beijava. Ambos sorriam. A casa cheirava a peixe e barro. Seus pais eram humildes, mas não passavam necessidade. As paredes eram até decoradas com imagens de santos que testemunhavam as intimidades do casal, talvez não com o mesmo fascínio de Joaquim, mas também silenciosos. Leonora virou-se para beijar o marido de forma ardente e apaixonada. Joaquim não entendia muito das coisas, mas sabia que aquilo, de algum modo, de alguma forma, representava felicidade. Ao menos, seu pai e sua mãe pareciam felizes.
Mas ainda precisava esvaziar a bexiga, e para passar da porta de seu quarto até a porta da sala, não havia solução senão avisar sua presença. Resolveu que a melhor solução era romper o silêncio.
— Mãe...
Miguel parou de beijar a mulher e chamou o nome do filho com tons imperativos.
— Joaquim!
— Me desculpem – disse o menino com um sorriso amarelo.
— O que você está fazendo acordado numa hora destas, menino?
Joaquim, por um daqueles motivos que a gente não consegue explicar, resolveu que não falaria do medo do escuro, nem dos pesadelos. Na verdade, temia por uma repreensão mais severa do pai.
— Eu não consegui dormir. Então, vim pegar um livro...
— Livro para que se tu não sabes ler, Joaquim? – replicou Leonora enquanto abotoava a blusa.
— Eu sei ler! – insistiu o menino.
— Nem eu sei ler, Joaquim! – esbravejou Miguel. — Quanto mais você! Deixa de ser mentiroso!
— Sabe o que acontece com crianças que falam mentiras? A Cuca vem pegar! Sabia? Ela fica à espreita nos telhados das casas esperando as crianças cometerem pecados...
Joaquim agora, além de apertado para urinar, também estava metaforicamente enfezado com as acusações. Ele não estava mentindo.
— Eu sei ler, mamãe. Padre Everaldo me ensinou. — Joaquim pega o livro que deixara cair e lê. – DIVINA COMÉDIA.
O pai e a mãe fazem cara de deboche para a irritação do filho.
— Você me viu falando o nome desse livro – debocha Leonora.
Joaquim pega outro livro no móvel e lê.
— Os Lusíadas, de Luís Vaz de Ca... Camões.
Miguel fica com a cara vermelha e toma o livro da mão de Joaquim.
— Criança não tem que saber ler. Tem que trabalhar e rezar! Você sabe que eu acho que esse negócio de ler não é do bem. Quem precisa disso?
O menino não se dá por intimidado.
— Eu sei. Por isso eu leio escondido.
— Olha a falta de respeito, moleque! — disse Miguel que, lá no fundo, parece começar a sentir uma coisa diferente. Na verdade, a impetuosidade do filho agradava-o.
Leonora também compartilhava sentimentos semelhantes, mas não se deu por vencida. Não estava na hora.
— E o padre Everaldo deveria te falar da Bíblia e de Jesus, e não te ensinar a ler. — Leonora suspirou e lembrou de olhar o peixe que estava preparando para o marido. O filho já havia jantado e ido deitar-se. — Trata de voltar para o seu quarto, agora.
Joaquim, porém, ainda tinha mais para discutir com os pais.
— Por que vocês têm livros se não gostam de livros?
Leonora finalmente sorri e faz um carinho no filho.
— Foi um presente do meu pai. Agora vá dormir, Joaquim.
Joaquim fica parado. Não parece triste, apenas muito decepcionado, na verdade, padre Everaldo já havia alertado que seus pais não entenderiam que o filho tivesse tais pretensões intelectuais, por isso mesmo, ele lia escondido. Mas o menino ficou parado olhando para os pais e depois para a porta.
— O que foi desta vez, Joaquim? – indagou Miguel.
— Eu preciso fazer xixi e o penico tá cheio – disse finalmente o menino.
— Pega lá o penico. Leva lá fora e esvazia — instruiu o pai, também deixando transparecer um sorriso amável. — Aproveita e faz as coisas lá fora e traz o penico vazio.
—Tudo bem. Eu faço isso – diz o menino finalmente.
Miguel dá um suspiro e sorri para a esposa e depois para Joaquim. Depois, pega o lampião e entrega ao menino, que chegou com o penico de louça transbordando.
Então, abre a porta da sala. Quando o menino passa por ele, o pai bagunça seu o cabelo como o máximo de sinal de afeto que ele era capaz de fazer. Ao menos naquela hora.
— Brejeiro! – disse Miguel.
Quando o menino sai, Miguel olha para a esposa. Leonora dá de ombros.
— Quem sabe ele vira padre também. Ou pode até virar professor na capital – sugere a mãe.
— Sei lá, Leonora – suspira Miguel. – Não sei se é bom deixar o moleque sonhar. Neste fim de mundo, o ouro tá acabando. Vai ter uma hora que vai sair briga daquele povo lá de Vila Rica com a corte.
Leonora estende a mão amparando os ombros fortes do marido, que olha para a espada e a pistola penduradas na parede.
Joaquim sai de sua casa sob a vigilância de uma lua cheia imponente que clareia razoavelmente a cidade. Quando se aproxima da pequena casinha onde sua família fazia suas necessidades, percebe um vulto justamente em frente à porta do lugar. O menino arregala os olhos e dá um pulo. Depois usa o lampião para iluminar o vulto. Mas não há nada lá. Mesmo assim, Joaquim acha melhor fazer seu xixi na parede da casa mesmo.
Uma nuvem negra encobre o luar e um véu de escuridão parece avançar sobre a cidade e sobre o menino. Joaquim esvazia o penico ali mesmo, na grama, onde sua mãe reclamaria muito no dia seguinte. Mas ele tem medo e trata de apressar suas necessidades fisiológicas e um jato de urina rega a grama do lado de fora da casa de seus pais. O som fluido da cachoeira em miniatura é fraco, mas é o único som que toma conta do ambiente.
Enquanto urina, Joaquim olha para os lados e usa o lampião para lá e para cá, tentando ver o que tem por perto. Quando olha para trás, parece ter visto algo e o jato de xixi é interrompido.
Joaquim aponta o lampião novamente e percebe algo. Parece uma criança com pernas estranhas, viradas ao contrário. Uma criança com dentes pontiagudos, olhos vermelhos e cabelos de fogo, mas que depois some. Joaquim arregala os olhos, vira o pescoço e o lampião na mesma direção e não vê nada. Mesmo assim, desiste de terminar o xixi e começa a voltar para casa, olhando sempre em volta com o auxílio do lampião. De repente, lá está a criatura de novo, parada na esquina da rua, sorrindo de maneira demoníaca para Joaquim. O menino começa a mover-se cada vez mais apressadamente em direção à porta da sua casa. Vira-se de novo e não há ninguém no lugar onde havia aquela criatura. O menino se apressa. A porta está quase chegando. Sua mão está quase na maçaneta. Quando ele finalmente a alcança e a gira, escuta um grito terrível, tão medonho que parecia ter saído das profundezas do inferno, de seus sonhos mais assustadores. O monstro abre a boca com dentes de piranha, começa a correr e aproximar-se dele com uma velocidade espantosa e com as garras levantadas em direção ao seu pescoço. A corrida desengonçada de pernas viradas para trás. O menino grita e a criatura já está sobre ele, segurando seu pescoço.
Na vila de Ibitipoca, um grito pôde ser ouvido rompendo a noite. Era um berro de pavor extremo de Joaquim quando a criatura finalmente o alcançou. Um gemido agudo, desafinado, desprovido