Sacramentos, práxis e festa
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- Nota: 5 de 5 estrelas5/5Excelente livro!!! Eu recomendo a todos, que estejam interessados em aprofundarem sua fé...
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Sacramentos, práxis e festa - Francisco Taborda
PRIMEIRA PARTE
O PONTO DE PARTIDA:
CRISTIANISMO É COMPROMISSO DE VIDA
Diante da contraposição antes indicada e que deverá ser levada a sério na reflexão, parte-se de que cristianismo é compromisso de vida. Compromisso de vida
é uma entre as muitas categorias e paradigmas que se poderiam usar para expressar o mesmo (embora sempre com matizes diferentes).
Nas CEBs e no movimento popular fala-se muito, por exemplo, da caminhada
do povo. Expressão dinâmica de um projeto de vida, assumido comunitariamente, em vista da realização de um mundo mais justo. Termo de ressonâncias bíblicas que tanto lembra o povo de Israel rumando à Terra Prometida, como a consciência dos primeiros cristãos de terem encontrado em Cristo o caminho para o Pai. Caminho
será, aliás, a primeira e espontânea designação do cristianismo (cf. At 9,2 passim).
Caminho, caminhada colocam na pista de outra categoria básica da tradição cristã: o seguimento de Jesus. A metáfora é aparentada com as anteriores. Mas, enquanto caminhada acentua mais o processo e, por sua ressonância, evoca o êxodo e, portanto, o caráter comunitário de povo em marcha, seguimento de Jesus sublinha antes o rumo e assim especifica melhor a caminhada. Ser cristão não é caminhar a esmo, mas caminhar nas pegadas de Jesus. Jesus não apenas mostra o caminho, como que de fora, à guisa de um sinal de trânsito. Jesus é ele mesmo o Caminho (cf. Jo 14,6). Seguir o Caminho, seguir a Jesus é não apenas uma atitude extrínseca a Jesus, mas comunhão de vida com ele, em comunidade com os irmãos.
Assim se chega a nova categoria para designar o mesmo: Cristianismo é vida. Vida, no entanto, pode reduzir o cristianismo a uma decisão intimista, sem relevância social. O povo que experimenta a vida como um embate árduo forjou outra palavra para designá-la: luta. Luta expressa que a vida não é só um deixar-se viver
, mas uma conquista dura frente a forças de morte que precisam ser vencidas a cada momento. Dentro dessa conotação se poderia dizer: Cristianismo é a luta do povo que vê em Cristo seu ideal e dele confessa receber a força para ir adiante rumo a uma sociedade mais fraterna. Porque vida só é vida, quando todos têm acesso a ela. E para todos terem acesso, numa sociedade que veta à maioria o acesso à vida e mais ainda à qualidade de vida
, é preciso lutar. Mas o bom senso do povo usa o termo luta
, peleja
sem conotar violência ou uso de armas. O termo provém da experiência cotidiana de resistir às forças de morte para sobreviver.
Cristianismo é, portanto, engajamento em prol dos outros, compromisso que é uma forma de amor. Engajamento e compromisso se expressam na participação, na dor do povo e em suas esperanças de transformar a sociedade de forma a que todos tenham vez, a começar pelos hoje sem lugar ao sol.
O compromisso de transformação pode ser ainda significado com a categoria de práxis, práxis histórica, compreendendo desta forma que, quando a sociedade é construída sobre os alicerces do pecado, do egoísmo, da idolatria, o cristianismo se traduz em atuação transformadora, criadora de novas e justas estruturas sociais.
Todas essas categorias enfocam sob ângulos diversos a mesma realidade. As diversas oculares permitem acentuar facetas diferentes, mas todas elas convergem e podem ser resumidas numa expressão tradicional: o Cristianismo é fé, ser cristão é ser pessoa de fé. As diversas categorias usadas dão conta das muitas facetas desse velho conceito teológico: fé. Os diferentes paradigmas acima mencionados lustram e pulem esse conceito tão rico e tão desgastado pelo uso. Sob a influência de uma Escolástica decadente, de tendência racionalista, ele havia perdido bastante de seu brilho; na linguagem comum adquirira um matiz de incerteza e insegurança.
CAPÍTULO I
O CRISTIANISMO SE RESUME NA FÉ
O concílio de Trento, no Decreto sobre a Justificação, sem dúvida um de seus decretos básicos, reconhece a centralidade da fé: "A fé: é o ‘início da salvação humana’, fundamento e raiz de toda justificação, ‘sem a qual é impossível agradar a Deus’ [Hb 11,6] nem chegar à comunhão de seus filhos (DH 1532). A fé é início não meramente num sentido cronológico (vem antes), mas num sentido ontológico de ser
fundamento e raiz". O fundamento é o início da casa, não só porque é o que primeiro se põe na construção, mas por ser o que mantém a casa em pé. A raiz é o início da árvore, não porque está na terra onde fora lançada a semente que lhe dá origem, mas porque é a raiz que tira da terra o alimento que, elaborado em seiva, dá vida à árvore; é a raiz que sustenta a árvore em pé através de todas as ventanias e borrascas. Assim também a fé, na vida cristã.
Mas, se a casa não se pode reduzir aos fundamentos nem a árvore a suas raízes, pode-se sim resumir a vida cristã na fé. Porque o conceito de fé, no sentido bíblico, é muito mais que o tipo de conhecimento obscuro a que fora reduzido pela Teologia da Escolástica. Fé é encontro com o Deus vivo que se revelou em Cristo, é entrega total a ele, vivendo no Espírito. Por isso, Tiago já advertira contra uma fé sem obras, que é morta (cf. Tg 2,17), e Paulo acentuara que o que vale para a salvação é a fé que opera pela caridade
(Gl 5,6). Por sua própria dinâmica interna a fé quer ser viva, exige a companhia da esperança e da caridade (cf. DH 1531).
No uso comum o verbo crer
rege complemento com a preposição em: "Creio em Deus,
creio no que você disse. É uma simplificação da riqueza da língua. O idioma clássico conhecia três regências diferentes que oferecem acesso a três matizes do ato de crer. O Pe. Antônio Vieira, clássico da língua, sabia-o perfeitamente:
Crer em Cristo é crer o que ele é; crer a Cristo é crer o que ele diz: crer em Cristo é crer nele, crer a Cristo é crê-lo a ele. Os judeus nem criam em Cristo, nem criam a Cristo. Não criam em Cristo, porque não criam a sua divindade, e não criam a Cristo, porque não criam a sua verdade".¹ Há, pois, no português clássico três regências distintas do verbo crer
: Crer em Deus, crer Deus, crer a Deus.
"Crer em" significa a entrega completa e total de toda existência ao Deus que se revela em Cristo. Entrega que não pode ser de boca apenas, mas de vida, empenhando-se no sentido do projeto de Deus. Crer em Deus tem uma face concreta: entregar-se ao Pai no seguimento histórico de Cristo pela força do Espírito Santo. Fé é engajamento no caminho de Cristo, é luta pelo Reino que só os violentos arrebatam (cf. Mt 11,12; Lc 16,16). Crer em Deus é, pois, ação, prática do amor ao irmão. E é, ao mesmo tempo, gratuidade, pois entrega pessoal só é verdadeira entrega ao outro, se não provém do interesse, mas do amor. Eis a dimensão pessoal (pessoal, não individual!) própria ao ato de fé. O mergulhar confiadamente no mistério do Deus que se autocomunica a nós. Entrega total, confiante, amorosa, prática.
Mas, se cremos em Deus, nesse movimento de lançarmo-nos em seus braços que se abrem para nos acolher, e por essa confiança nos atrevemos à tarefa de transformar o mundo, é porque cremos Deus, isto é, temos notícia e informação sobre sua ação na história, pela qual nos chama, e a aceitamos como real. É porque conhecemos o plano de Deus para o mundo e seu convite a que participemos dele. Eis a dimensão intelectual da fé, muito exclusivamente acentuada por uma Escolástica de tinturas racionalistas, de forma a reduzir o ato de fé a essa dimensão. Ora, conhecimento é, dentro da perspectiva bíblica, mais que mero ficar sabendo. É sempre um conhecimento que se transcende e se realiza no amor, na fusão amorosa com o objeto de conhecimento. Crer Deus leva, pois, a crer em Deus.
Uma terceira regência do verbo crer
conhece ainda a língua portuguesa: "crer a Deus", dar crédito, aceitar o testemunho. Não cremos simplesmente porque assim nos passa pela cabeça numa veleidade qualquer. Cremos porque o próprio Deus nos assegura da verdade e veracidade de sua intervenção amorosa na história. A fé inclui, portanto, que se aceita esse modo de vida por causa de Deus que garante o que se crê. Ele é a rocha, segundo a metáfora bíblica, que dá firmeza à nossa existência, vale dizer, à nossa resposta de fé, à nossa entrega a ele.²
Quando a fé é vista nessa complexidade e riqueza de significação aqui esboçadas brevissimamente, entende-se melhor porque é possível dizer que o cristianismo se resume na fé, que só a fé
salva. Ela é a presença mesma da salvação já agora na história humana, embora a salvação em plenitude só se realize escatologicamente na visão de Deus. Mas essa mesma multiplicidade de facetas permite que a fé seja vivida diferentemente nas diversas circunstâncias pessoais e nas diferentes épocas históricas. A feição concreta da fé e, portanto, do seguimento de Jesus varia com a situação da pessoa. A fé sofrida do enfermo, a fé combativa do profeta, a fé confiante da mulher do povo, a fé aventureira do missionário, a fé heroica do mártir, a fé dedicada do enfermeiro, a fé ilustrada do teólogo… A feição da fé varia também com a situação histórica: a fé confessora dos primeiros séculos, a fé evidente da Idade Média, a fé conquistadora e missionária do século XVI, a fé contestada e triunfalista do século XIX, a fé humilde e dialogante do século XX… Feições epocais da fé que, no entanto, sempre será entrega a Deus de toda a pessoa e, portanto, de seu ser e agir. Entrega ao Deus que se apresenta e comunica ao homem na história. Entrega que se confia ao testemunho do próprio Deus. Mas entrega que se realiza em diversas circunstâncias, em situações políticas, econômicas, sociais, culturais diferentes, e nelas se tem de traduzir, com elas se articular.
A feição epocal da fé não é a única feição, nem sequer a mais frequente, mas é a que melhor responde aos desafios do momento. Na América Latina, hoje, a práxis histórica libertadora é a feição epocal da fé. Com isso não se está negando o valor e a importância da fé do enfermo incurável que oferece seu sofrimento a Deus, num amor que nossa indiscrição é incapaz de medir. Nem o valor da fé da velhinha do Apostolado da Oração que expressa sua entrega a Deus na fita vermelha ao pescoço e na oração pelas grandes necessidades da Igreja, consumindo seus últimos anos de vida na oração pela humanidade pecadora e sofrida. São também feições da fé. Feições que sempre existiram e sempre existirão. Feições legítimas, plenamente legítimas de que é preciso nunca esquecer. Se se privilegia agora a feição epocal da fé que se traduz em ação transformante da realidade, é porque é a feição mais urgente da fé neste momento histórico, feição paradigmática. Não se desvalorizam nem depreciam as feições menos chamativas e espetaculares, mas sempre necessárias e insubstituíveis. A entrega a Deus não se mede pela eficácia. O óbulo da viúva valeu mais que a esmola do rico (cf. Mc 12,41-44), embora esta pudesse solucionar mais problemas. O pobre a que todo cristão no seguimento de Jesus deve um amor preferencial não é só ou principalmente o pobre útil
, potencial transformador da sociedade, agente de revolução, mas também o pobre inútil
, o lúmpen, o doente inválido, a pessoa com deficiência que em pouco ou nada contribuirá à nova sociedade em gestação. E, no entanto, dedicar-se a eles, respeitá-los em sua dignidade de pessoas, é expressão da fé em Deus que ama o desvalido, não apenas aquele que por sua posição social mina a sociedade injusta, mas também aquele que é totalmente desamparado e não poderá contribuir para uma ação efetiva transformadora da sociedade. Porque o amor de Deus ao pobre é gratuito, desinteressado. Por ser o pobre um desamparado, não por ser bom ou revolucionário. É