Catequese e liturgia: Duas faces do mesmo mistério
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Catequese e liturgia - Vanildo de Paiva
CAPÍTULO I
Nossos pais nos contaram…
O cristianismo pode ser comparado a uma grande árvore que tem suas raízes na tradição judaica. Há nele inúmeros elementos (frutos) que são de origem judaica, alguns reinterpretados por Jesus ou pelas comunidades do início do cristianismo. Nossa Bíblia foi escrita por judeus. Com eles partilhamos a convicção de que Deus se revela, na história, como o Deus da Aliança, que ama fielmente o seu povo, e também cremos que essa revelação deva ser transmitida de geração em geração. Nesse fecundo chão inspira-se nossa liturgia com toda sua riqueza simbólica e sua linguagem. Basta olharmos para a estrutura de nossas orações eucarísticas.
É essa Palavra tão amada pelos judeus e pelos cristãos que ocupa a centralidade nas nossas celebrações litúrgicas, seja nos sacramentos ou em outras formas de rezar, como na Liturgia das Horas, por exemplo. É essa Palavra que nós ouvimos atentamente e à qual respondemos com nossas preces, louvores e intercessões. É dela que bebemos a água boa dos salmos, o vigor da profecia, a riqueza das principais orações de nossa fé, como o pai-nosso e parte da ave-maria.
Vários elementos básicos na fé judaica também são parte importante de nossa fé cristã: a crença no Deus único; a beleza da aliança feita com Abraão, Isaac e Jacó e seus doze filhos; a importância da prática da justiça, do culto, da oração, do amor ao próximo, entre outros. Por isso mesmo, é importante conhecermos como esse povo vivencia, aprofunda e celebra sua fé.
1. A centralidade catequética e litúrgica da Páscoa judaica
Ó Deus, ouvimos com os nossos próprios ouvidos, nossos pais nos contaram a obra que fizestes em seus dias, nos tempos de outrora.
O versículo 2 do Salmo 44(43) coloca-nos no coração da catequese judaica e indica claramente o modo como sempre foi compreendida: como história viva do amor de Deus que se manifesta na história de seu povo, recontada e experimentada de geração em geração. Fazer parte do povo eleito consiste, para o judeu, em viver como sua e sempre atual essa história de libertação um dia vivenciada pelos seus primeiros pais na fé e sempre revivenciada pelo seu povo, em todas as épocas e lugares onde esteja.
A experiência da Páscoa, como fuga do Egito e processo de libertação, tem centralidade nessa tradição. A celebração ritual e anual da Pessach, a Páscoa judaica, que une indiscutivelmente as dimensões catequética e litúrgica do judaísmo, depois de ter percorrido um complexo itinerário histórico, ocupa posição privilegiada na vida do povo. Nas narrações do Primeiro Testamento, ela aparece em momentos decisivos da história dos judeus: noite da Páscoa (cf. Ex 12-13), limiar da terra esperada (cf. Js 5,10-11); reforma de Josias (cf. 2Rs 23,21-23); novo êxodo guiado por Esdras (cf. Esd 6,19-22), para citar alguns.
A celebração da Páscoa é exaltada no ápice da liturgia judaica, que a ela dedicará uma esplêndida haggadah (homilia). E quando vossos filhos vos disserem: Que significa esse rito? respondereis: ‘é o sacrifício da Páscoa, em honra do Senhor, que, ferindo os egípcios, passou por cima das casas dos israelitas no Egito e preservou nossas casas’
(Ex 12,26-27). De fato, o rito da celebração tem um momento forte, quando a criança menor pergunta qual o sentido daquela celebração. Cabe ao mais velho fazer a catequese histórica.
O livro do Deuteronômio, especialmente no trecho 26,5-9, traz um recorte do fato memorável da libertação do Egito, a ser lembrado por todas as gerações: Dirás então em presença do Senhor, teu Deus: meu pai era um arameu prestes a morrer, que desceu ao Egito com um punhado de gente para ali viverem como forasteiros, mas tornaram-se ali um povo grande, forte e numeroso. Os egípcios afligiram-nos e oprimiram-nos, impondo-nos uma penosa servidão. Clamamos então ao Senhor, o Deus de nossos pais, e ele ouviu nosso clamor, e viu nossa aflição, nossa miséria e nossa angústia. O Senhor tirou-nos do Egito com sua mão poderosa e o vigor de seu braço, operando prodígios e portentosos milagres. Conduziu-nos a esta região e deu-nos esta terra de que mana leite e mel
.
A celebração pascal integra, de modo dinâmico, a catequese (narração histórica) e a liturgia (celebração histórica). Passa, de modo natural, da história ao texto litúrgico, da catequese à exortação. A liturgia atualiza dramaticamente
a evocação da história do passado e situa todo judeu no seu contexto de homem ou mulher da aliança. Explicarás então a teu filho: isso é em memória do que o Senhor fez por mim, quando saí do Egito
(Ex 13,8).
A consciência histórica é profunda, e todo judeu aprende desde cedo que a história é o lugar privilegiado para o conhecimento e a celebração de Deus. A compreensão mais coerente de tudo o que Deus fez pelo seu povo, sobretudo o evento êxodo
, exigiu a celebração litúrgica, e o judaísmo a fez sistematicamente, primeiramente em âmbito familiar (cf. Ex 12,3-4), no qual o pai presidia a pequena assembleia, e, mais tarde, no templo, quando houve a centralização dessa festa em Jerusalém.
Perder a dimensão histórica e fundante do rito litúrgico é saltar da memória à repetição vazia e estéril dos seus elementos externos, sob pena de cair em magia ou alienação. O rito litúrgico, se não é constantemente mantido unido ao evento histórico do qual nasceu e do qual é memorial, torna-se ‘mudo’, inexpressivo, ou seja, torna-se uma imagem que não coloca mais em contato com o Senhor que salva na história, com o Senhor vivente
.¹
A Páscoa tinha também uma dimensão social. Dela brotavam consequências éticas sérias em vista da justiça social (cf. Dt 16,5-7). Consciência da libertação no passado e empenho pela libertação das opressões presentes não se separavam. A Páscoa era celebrada com muita fartura. A partilha e a solidariedade geravam compromissos para o enfrentamento e a superação das situações opressoras e das desigualdades sociais. Ela tornou-se o evento primordial para a recuperação da dignidade de vida e a reconstrução do povo judeu, tantas vezes desafiado pela história de dominação e desrespeito à sua identidade.
2. Catequese e liturgia no dia a dia da vida dos judeus
Se a festa anual da Páscoa ocupa um momento especial no calendário judaico, é no dia a dia que essa memória do amor de Deus e da sua presença libertadora na história vai se consolidando. O judaísmo é uma cultura, uma religião que tem na família a sua centralidade, e é dentro do lar e nos costumes inculcados pela família que todo judeu desenvolve sua fé e molda seus comportamentos. A base religiosa da vida dos filhos é de responsabilidade do pai e da mãe. As crianças aprendem pelo exemplo dos pais e desde cedo participam dos ritos tradicionais de seu povo. A iniciação catequética e litúrgica, portanto, acontece prioritariamente em casa e de modo integrado. Não há uma distinção entre o que se sabe sobre Deus e o que se reza a Deus. O conteúdo catequético é o mesmo conteúdo litúrgico.
A família é verdadeira escola de fé, pelo que é dito em casa, pela maneira como os mandamentos de Deus são vividos e pelo espírito orante que marca a vida doméstica. Ela é a guardiã dos preceitos e das tradições. Ensinamentos éticos e valores morais, sobretudo, são amadurecidos dentro do lar. Aí se aprendem a honra aos pais, o zelo pelos pobres, a acolhida e hospitalidade aos estrangeiros, a valorização dos mais velhos, a caridade para com os enfermos e as regrinhas básicas para um relacionamento saudável e equilibrado. É na família que a Aliança deve ser vivida de modo mais pleno, e a experiência da presença de Deus é feita de muitos modos, especialmente nos relacionamentos amorosos entre pais e filhos.
Essa formação catequética e litúrgica não se dá somente pela palavra. A dimensão simbólica é fundamental para a vivência religiosa e cultural do judaísmo. Vários objetos que fazem parte do cotidiano significam muito na construção desse aprendizado. No batente da porta das casas judias, há uma mezuzá (pequeno pergaminho que contém o Shemá (escuta, ó Israel, o Eterno é nosso Deus, o Eterno é Um…
), a ser rezado diariamente como expressão de fidelidade a Deus. Passar pela mezuzá quando se entra ou se sai da casa é entender que toda a conduta deve ter como inspiração as palavras sempre sábias do Eterno. Não se trata de um amuleto protetor, mas de uma afirmação de compromisso e identidade.
Outro objeto bastante significativo é a chamada caixa da caridade
. Trata-se de uma espécie de cofre no qual as crianças depositam o dinheiro que ganham de seus pais às sextas-feiras e que é reservado para a compra de roupas para os necessitados. É uma maneira de honrar o Shabat (o Sábado, o Dia Santo) e construir a noção de que não se pode haver louvor a Deus desvinculado da caridade, especialmente para com os mais pobres.
Outros símbolos, objetos e ritos auxiliam na expressão da fé da família judaica e são fortemente catequéticos: velas que são acesas à chegada do Shabat, comidas apropriadas para as festas, lavar as mãos de forma ritual, os nomes dados aos filhos, as bênçãos e orações apropriadas para cada momento do dia, cerimônias altamente significativas por ocasião dos casamentos e funerais etc.
Digna de menção é a cerimônia da maioridade religiosa dos filhos dos judeus. Aos treze anos, o menino se torna um bar mitzvah (filho dos mandamentos), e a menina, aos doze, uma bat mitzvah (filha dos mandamentos, das obrigações). Por ocasião desse ritual, que se dá em parte na sinagoga, em parte na própria casa, os filhos adquirem as obrigações legais e religiosas dos adultos. A aproximação da vida com a Torah (livros sagrados do Pentateuco), que será lida nas manhãs de sábado na sinagoga, é feita com muita alegria. A Palavra passa a ser parte da vida cotidiana dos adolescentes, simbolizada pelas tiras
contendo duas caixinhas pretas, que o bar mitzvah deverá impor sobre o corpo todas as manhãs. É uma honra, e não um peso, ser filho
ou filha dos mandamentos
. O amor à Palavra é uma das características marcantes da religião judaica.
3. A importância do sábado
O Shabat – o sábado – ocupa lugar preferencial no decurso da semana. É compreendido como uma recapitulação semanal do poder criador de Deus. Por isso os judeus sustentam a convicção de que não é o judeu que guarda o sábado; é o sábado que guarda o judeu
. Guardar o sábado, portanto, não é uma obrigação pesada, mas uma maneira de interromper e dar sentido ao ritmo da vida com o descanso e manter a identidade da comunidade.
Celebrar o sábado e as demais festas do calendário litúrgico possibilita ao povo judeu fazer a memória alegre da presença de Deus no meio do povo. Nessas celebrações, o povo tem a oportunidade de reviver sua história e experimentar, na riqueza da mediação simbólica, quanto a presença sagrada do Eterno permeia a vida de cada um, tanto no presente quanto no passado.
O Shabat tem início na sexta-feira, antes do pôr do sol, e vai até o sábado à noite. Muitos judeus interrompem suas atividades e preocupações da semana para se dedicar a honrar o dia do descanso e do louvor a Deus. A certeza de que suas vidas estão sob o olhar de Deus – e isso é a maior alegria – está presente em todo o simbolismo que cerca o Shabat: roupas especiais, comidas apropriadas para o dia, velas acesas, músicas, histórias, estudo da Torah, visitas aos amigos e, especialmente, a presença na sinagoga. Tudo isso alimenta a vida, refaz a emoção e a força na caminhada e cria laços de fraternidade e amizade.
A sinagoga é a casa da reunião, do estudo, da oração e funciona também como tribunal judaico. Embora os judeus celebrem em todos os momentos e façam de todos os lugares e ocasiões motivos para a oração, é na sinagoga que a assembleia judaica encontra o seu ponto de unidade e coesão. A Palavra ali proclamada e trocada em miúdos sustenta a fé e o entendimento a respeito de Deus e da vida.
4. O jeito judaico de ensinar
Nós, ocidentais, estamos acostumados a uma catequese bastante presa a conceitos, doutrinas e definições. Há muitos catequistas que não se desgrudam dos manuais e, talvez, nem saibam catequizar sem eles. Catequizandos e pais muitas vezes perguntam: Qual o livro de catequese que vamos seguir?
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