Atualização Litúrgica 4
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Atualização Litúrgica 4 - ASLI
Apresentação
A Associação dos Liturgistas do Brasil (ASLI) tem por finalidade incentivar e promover, entre os seus membros, a pesquisa científica de temas que possam contribuir com a reflexão litúrgica. Diante disso, temos a alegria de apresentar o quarto livro da coleção Atualização Litúrgica
.
Neste volume, temos uma importante contribuição de Andrea Grillo, professor de Teologia Sacramental e Filosofia da Religião no Pontifício Ateneu de Santo Anselmo (Roma) e na Abadia de Santa Justina (Pádua), com o texto: Liturgia, Vaticano II e reforma litúrgica: uma urgente releitura. O caminho a ser percorrido passa pelos temas da liturgia da Palavra, Liturgia das Horas, piedade popular, música litúrgica e espaço litúrgico. Cada artigo vai despertando o desejo de seguir adiante, e cada autor tem seus questionamentos e luzes que nos fazem confrontar os desafios da ciência e da prática litúrgica, principalmente da Igreja no Brasil.
Do rito ao anúncio da Palavra: o leigo na vivência do ministério de leitor após o Concílio Vaticano II e a inclusão da mulher no exercício do ministério instituído de leitorado e acolitado pelo papa Francisco. Padre Rogério Lemos convida-nos a aprofundar a participação dos leigos e leigas no ministério de leitores, bem como os novos horizontes que vislumbramos, com a instituição desse ministério também às mulheres, a partir da iniciativa do papa Francisco. Assim destaca o autor: O objetivo da presente reflexão não é apenas dar enfoque ao papel da mulher na ação litúrgica do Rito Romano, mas colaborar na compreensão do papel do leigo na vivência do ministério de leitorado, e redescobrir a sua beleza e contribuição na participação da obra da salvação
.
Com A mistagogia da mesa da Palavra à luz de Neemias 8,1-12, padre Ademilson Tadeu Quirino e padre José Geraldo de Gouveia conduzem-nos a uma belíssima reflexão sobre as origens da catequese mistagógica no ambiente cristão e judaico, despertando para uma reflexão que possibilita a valorização da mesa da Palavra como lugar privilegiado para a evangelização.
Liturgia das Horas no Brasil pós-Vaticano II: contribuições da CNBB à implementação da reforma litúrgica, de Arnaldo Antonio de Souza Temochko, parte dos desafios que temos hoje para vivenciar as celebrações da Liturgia das Horas. O autor apresenta-nos os esforços feitos pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil para uma autêntica reforma litúrgica e a descoberta dos valores e sentidos dessa forma de rezar da Igreja.
No caminho da piedade popular, André Luiz Bordignon Meira traz o tema A contribuição da piedade popular na vida litúrgica das comunidades de comunidades. Destaca a piedade popular trabalhada pelo papa Paulo VI e as cartas conciliares de dom Helder, como uma contribuição riquíssima para a compreensão desta sementeira durante o Concílio, e também para a da Igreja do Brasil
, destaca.
Padre Jayder Oliveira dos Santos ajuda-nos a refletir sobre a música litúrgica, abordando, neste volume, um tema importante e desafiador para nossas comunidades: O canto litúrgico na celebração do matrimônio. Ele destaca que o presente estudo tem por objetivo analisar as possibilidades do canto e da música contidos no Ritual do Matrimônio (RM), considerando os princípios e os critérios conforme os documentos da Igreja, sua função ministerial no rito, e, ainda, considerar a contribuição da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para o repertório litúrgico-musical nesse âmbito
.
Ainda no ambiente da música litúrgica, dom Jerônimo Pereira Silva, osb, apresenta-nos o tema da Reforma litúrgica no ambiente monástico beneditino do Brasil. O autor convida-nos a perceber que a prática litúrgica vivenciada pelos beneditinos não ficou presa ao passado, mas, pelo contrário, contribuiu – e muito – para a reforma litúrgica da Igreja no Brasil.
Concluindo os temas da música litúrgica pertinentes para nossas comunidades, Adenor Leonardo Terra aborda O uso do estilo gospel na música litúrgica: é possível? O artigo pretende trazer à tona essa problemática e, a partir das orientações sobre a música litúrgica contidas nos documentos da Igreja, avaliar a sua admissibilidade ao rito católico romano e, se for o caso, orientá-la, considerando a realidade da Igreja no Brasil
, destaca.
Na área da teologia sacramental, o frei Luis Felipe C. Marques apresenta-nos o tema O quarto sacramento entre dinâmicas, tensões teológicas e surpresas de uma nova época. Uma rica reflexão sobre a prática do sacramento da penitência ao longo da história e os desafios que permanecem no contexto atual.
Por fim, na área do espaço litúrgico, a irmã Lucy Terezinha Mariotti convida-nos ao tema A arte litúrgica: beleza infinita em expressões finitas. A proposta tem como referência a natureza da liturgia enquanto realidade teândrica, ação que nasce da gratuidade divina e movimento de resposta, de quem a acolhe, em forma de celebração
, destaca.
Desejamos que cada artigo possa contribuir com a evolução do pensamento litúrgico na Igreja do Brasil e na prática das comunidades eclesiais. Em nome da diretoria da ASLI, somos gratos a todos que se empenharam na publicação desta obra.
Padre Kleber Rodrigues da Silva
Presidente da Associação dos Liturgistas do Brasil
CAPÍTULO 1
Liturgia, Vaticano II e Reforma Litúrgica: uma urgente releitura
Andrea Grillo¹
Lemos no livro dos Atos dos Apóstolos: Eram assíduos... no partir do pão e nas orações
(At 2,42). A igreja das origens é fotografada
em quatro ações, que qualificaram para sempre a sua identidade: ouvir o ensinamento dos apóstolos, viver a comunhão fraterna, partir o pão e rezar. Desde então, cada uma dessas ações se configurou como um âmbito pastoral
. A primeira corresponde à catequese/anúncio
, a segunda, à diaconia/caridade
e a terceira e a quarta, à liturgia
.
Uma primeira breve consideração deve ser dedicada ao fato de que duas das quatro ações originais se enquadram no âmbito do que chamamos de liturgia
. Essa é, ao mesmo tempo, oração e partir do pão. Precisamente, essa duplicação
tem sido um grande recurso e uma grande ameaça à tradição. Com o passar dos séculos, de fato, a lacuna entre essas duas ações tornou-se tão acentuada que seu vínculo estrutural se perdeu. A oração tornou-se cada vez mais um fato pessoal ou cerimonial (culto interno ou externo
), enquanto as ações sacramentais – com o pão partido da Eucaristia no centro – assumiam uma característica institucional cada vez mais clara e preservavam um conteúdo teológico (sacramento
). A redescoberta da profunda afinidade das duas ações começou há pouco mais de um século e tornou-se uma tarefa eclesial primária. Voltar às raízes da comunidade cristã significa reler, com paciência, o caminho que nos deu, hoje, o grande dom da redescoberta da oração litúrgica
e da missa como oração eucarística e ação ritual
.
O pequeno caminho que hoje gostaria de vos propor para recuperar essa unidade original entre culto e sacramento
– e que se torna um espaço aberto pelo anúncio e disponível para a vida fraterna – compreende três breves etapas. Na primeira, gostaria de reler, em grande síntese, o caminho de dois milênios de vida eclesial, em que uma intensa e penetrante vida litúrgica e orante
nem sempre foi acompanhada por uma elaboração teórica plenamente adequada. Sobretudo nos últimos séculos, a exigência de reunir prática sacramental e vida de oração encontrou obstáculos, devido à inércia dos modelos históricos, cuja força teológica e antropológica, que tinha sido grande, conheceu uma crise grave e profunda. Daí a segunda etapa, com as grandes descobertas que, no campo litúrgico, foram elaboradas ao longo do século XX: a aquisição de uma nova definição da liturgia, de participação nela, e uma nova consciência da comunhão eclesial que surge dela. Essa compreensão permite-nos chegar a uma terceira etapa, na qual procurarei traçar o perfil de um desenvolvimento desejável e plausível, visando resgatar as formas de uma oração comunitária, os espaços de uma elaboração comunitária e individual da linguagem orante, a redescoberta da ação ritual como uma ação elementar
– protológica e escatológica – ligada ao corpo, ao espaço e ao tempo. Esta é a tarefa de recepção da reforma
que ainda temos pela frente.
Uma releitura do passado, uma consideração inescrupulosa do presente e uma certa fantasia na configuração do futuro são condições
para traduzir a tradição. Sobretudo depois da grande pandemia que vivemos neste tempo (2020–2021), se não soubermos traduzir a tradição com sabor e frescor, iremos comprometê-la. Mas, para isso, devemos manter aqueles três is
que o papa Francisco lembrou em um famoso discurso no Colégio de Escritores de La Civiltà Cattolica, em 2017. Devemos sentir inquietação, devemos sentir a incompletude do nosso conhecimento, e devemos alimentar a imaginação para reconfigurar as obras e os dias, as formas e os conteúdos de ser discípulos de Cristo em sua igreja. A tradição litúrgica não existe apenas para nos tranquilizar, para nos satisfazer, para nos dar o que é necessário. Certamente, ai de nós, se mesmo a oração e os ritos eclesiais não interceptam nossas profundas necessidades de paz, plenitude e realidade. Mas a liturgia é também uma abertura ao possível, uma busca do desconhecido, um desejo não inteiramente claro que se torna voz, gesto, toque. Uma oração e uma liturgia também inquietantes, capazes de exprimir o desejo e antecipar o que ainda não existe, são, portanto, um desafio decisivo para a Igreja de hoje e de amanhã.
1. Luzes e sombras do passado: mistério de culto, forma institucional e deriva formalista
O desenvolvimento do culto cristão
– que é, ao mesmo tempo, uma prática orante de iniciação, cura, vocação, com a celebração eucarística em seu ápice e fonte – constitui um caminho muito complexo, no qual se mesclam dados de um elementar imediatismo e delicadíssimas mediações históricas e culturais. Por um lado, de fato, é evidente que a continuidade
com o Kyrios e com o dom do Pneuma é assegurada por dois elementos completamente centrais: a palavra e o sacramento. Esses elementos não só comunicam
o Senhor, mas são
o Senhor Jesus, que se faz encontrar vivo – embora crucificado, morto e sepultado – como princípio de vida e esperança da comunidade que se reúne em torno de sua palavra, do pão partido e do cálice partilhado, como corpo e sangue de Cristo morto e ressuscitado. Esse canal fundamental
da tradição está entrelaçado e unido à oração comunitária
, que marca os tempos e assume diferentes formas em contextos urbanos e seculares, bem como em contextos monásticos e eremíticos. Poderíamos, assim, identificar uma espécie de escala
da experiência litúrgica, com três níveis:
O partir do pão (segundo Lucas) ou a ceia do Senhor (segundo Paulo) torna-se o gesto de memória e atualização da Páscoa do Senhor. A sua repetição dominical, mas também diária, assume uma centralidade decisiva. O último gesto do Jesus histórico com os seus e o primeiro gesto do Ressuscitado com a comunidade nascente, sobrepostos, tornam-se critérios de presença e reconhecimento, de comunhão e de cuidado. O mesmo gesto, feito imediatamente antes da morte e imediatamente após a ressurreição, torna-se o centro do culto cristão;
Os outros sacramentos – antes da formalização que acontecerá somente depois de um milênio – são arranjados à margem da ceia eucarística. Seja porque eles a precedem (o batismo e a confirmação como sacramentos de iniciação), ou porque sanam uma crise e curam a condição de dificuldade (penitência e unção como sacramentos de cura), ou porque asseguram aquela relação com o outro que é vocação e serviço (ordem e matrimônio). O primado da iniciação (com o papel do batismo) sobre os outros e o complexo desenvolvimento de cada um deles constituem o segundo âmbito da liturgia que deve ser considerada;²
Por fim, a grande experiência de rezar, como palavra dirigida a Deus e que assume as mais diversas formas, ligadas às culturas, aos modos de vida e aos ritmos civis e eclesiais. Os tempos de pausa e trabalho da tradição judaica, misturados com aqueles das cidades gregas, das cidades romanas, dos desertos egípcios ou das florestas europeias, contribuem para um terceiro grande espaço de culto cristão, estruturado, sobretudo, em torno do ritmo da oração dos Salmos, vivido como um entrelaçamento original da Palavra de Deus e da palavra do homem.
Cada uma dessas áreas da liturgia conheceu, ao longo da história, uma certa evolução, cuja consideração sintética nos permitirá compreender os desenvolvimentos atuais e as possíveis evoluções futuras. Vamos, portanto, analisar cada uma dessas áreas.
1.1 Fração do pão, ceia do Senhor, Eucaristia, sacrifício, comunhão, missa
A ação ritual por excelência da tradição cristã é um gesto de entrega e intimidade, uma profecia de vida e paz no coração da morte e da discórdia. Jesus se entrega aos seus seguidores no pão partido e no cálice partilhado, e encontra-se, depois da morte, no mesmo gesto que, surgindo da escuta da palavra que aquece os corações, constitui o centro da tradição litúrgica, o que faz do culto cristão a continuação do mistério da Páscoa. A centralidade da ação obviamente atraiu a atenção da reflexão, desde os primeiros séculos. Surgiram, pelo menos, três diferentes formas de conhecimento
, que aqui podemos considerar brevemente:
A ação ritual passou a ser examinada com todo o cuidado necessário e alimentou um saber cerimonial que, depois, tomou forma solene nos tratados de ecclesiasticis officiis
. Desse ponto de vista, a missa tornou-se a principal tarefa dos clérigos. De Isidoro de Sevilha (séc. VI–VII), passando por Amalário de Métis (séc. VIII–IX) e Ruperto de Deutz (séc. XI–XII), até Guilherme Durando (séc. XIII) e o Concílio de Trento (séc. XIII–XVI), quase mil anos de tradição enriqueceram essa forma de perceber a missa e toda a liturgia. A reserva clerical da competência sobre o rito eclesial assumiu também formas disciplinares e espirituais muito particulares. O padre/sacerdote identificava essa ação como tipicamente sua, enquanto a ação se referia, teológica e afetivamente, sobretudo ao padre/sacerdote.
Um segundo aspecto é o do saber teológico e sistemático, que estudou, sobretudo, dois temas: a presença real do Senhor Jesus sob as espécies do pão e do vinho, e a qualidade do sacrifício que a missa adquire sem negar a cruz como único e verdadeiro sacrifício. Grande parte do conhecimento teológico sobre o sacramento da Eucaristia tratou desses dois temas, que tratam da presença do sacrifício do corpo e do sangue no pão e no vinho destinados à comunhão e da relação entre o sacrifício da cruz – único e somente – e a missa, que é sacrifício apenas por participação e por representação em relação à cruz. O primeiro tema é mais antigo, enquanto o segundo se desenvolve sobretudo depois de sua contestação por Lutero.
O terceiro aspecto é o do saber espiritual, que desenvolveu os temas da comunhão e do sacrifício, da devoção e da adoração, construindo práticas, teorias e orações amplamente paralelas ou autônomas no que diz respeito à liturgia. Nesta terceira área, os dois níveis anteriores interagem: a prática clerical da missa é carregada do afeto da oferta e da dedicação, enquanto a contemplação laical da hóstia a ser adorada desenvolve, paralelamente à liturgia, formas de oração e formas de devoção. Assim, esse aspecto espiritual, de certa forma, movimenta os dois primeiros e, de outras maneiras, também sigila a identidade espiritual dos clérigos e dos leigos, de acordo com as diferentes práticas cerimoniais ou noções teológicas de referência.
1.2 Os sacramentos e a gestão
da vida do cristão
O desenvolvimento dos outros sacramentos foi diferente. Na verdade, enquanto a missa não é um rito de passagem (exceto a missa da primeira comunhão), mas o único rito que pode ser repetido no dia a dia, e por isso exerce uma influência prática, teológica e espiritual completamente incomparável, batismo e crisma, penitência e unção, ordem e matrimônio estão carregados, de alguma forma, pelo peso da existência dos sujeitos envolvidos. Poderíamos dizer que esses ritos são em vista de outra coisa, enquanto apenas a Eucaristia é um fim em si mesma. Com o tempo, cada uma das três áreas da experiência sacramental sofreu uma série de transformações e mutações que merecem ser apenas mencionadas:
A iniciação cristã: o ingresso na Igreja, a partir do século IV, tornou-se um fato socialmente decisivo. Fé e batismo se sobrepuseram a tal ponto que o segundo se tornou uma garantia da primeira. No que diz respeito à lógica do batismo, antecipada desde os primeiros dias de vida, a confirmação assumiu, no Ocidente, o papel de realização e amadurecimento espiritual. No entanto, ambos nunca se negaram a alimentar um votum Eucaristiae
(desejo da Eucaristia) que, até um século atrás, era entendido como a saída natural dos dois sacramentos da iniciação. Por isso, pelo menos até Pio X, era normal chegar à primeira comunhão depois do batismo e da confirmação. Hoje, nesse ponto, perdemos quase toda a clareza tradicional, por razões que são tudo, menos triviais.
A cura cristã: a crise por culpa na comunhão cristã deu lugar a um procedimento de readmissão na comunidade dos excomungados, que conheceu vários modelos ao longo da história. Concebido inicialmente como possível apenas uma ou, no máximo, duas vezes na vida, tornou-se muito mais frequente, primeiro anualmente e depois com mais frequência, mesmo como um limiar necessário antes de cada comunhão sacramental. A progressiva formalização dos atos do penitente (de contrição, confissão e penitência em sentido estrito) identificou, muitas vezes, o sentido do sacramento apenas na absolvição, esvaziando de sentido a laboriosidade do sacramento, que é um dado original. Enquanto, paralelamente, as crises não por culpa, mas por doença, que elaboraram a unção dos enfermos
como resposta eclesial, experimentaram uma absorção quase total na lógica da crise por culpa. Assim, o sacramento mudou de nome (extrema-unção) e foi colocado não na contingência de doença grave, mas na iminência da morte. E assim o recebemos até o Concílio Vaticano II.
A vocação e o serviço cristãos: no campo dos sacramentos da ordem e do matrimônio, a história da Igreja e a história do mundo se entrelaçaram de modo ainda mais estreito. A compreensão da autoridade, da família, da dignidade social ou da honra, da sexualidade e da liberdade pessoal condicionou profundamente as formas e os desenvolvimentos da prática e da doutrina. Basta dizer que, se, para a ordem. a atenção às ações rituais, aos conteúdos teológicos e às formas espirituais é muito datada, pelo contrário, para o matrimônio, uma atenção sacramental em sentido estrito só se desenvolve após o Decreto Tametsi, de 1563. Nesses dois sacramentos, o peso do desafio com a modernidade fez sentir os seus efeitos, polarizando toda a tradição anterior sobre os temas da autoridade e da liberdade.
1.3 A oração entre ato privado, forma comunitária e cerimônia pública
Temos um terceiro âmbito, menos exposto, mais discreto, mas igualmente decisivo, que contribui para definir o perfil do que chamamos de liturgia: é a oração. Se nos perguntarmos, de fato, qual é o centro da celebração eucarística e também o objetivo dos sacramentos de iniciação, de cura e de serviço, poderíamos, certamente, responder: a relação com Cristo e com a Igreja. Mas essa relação se alimenta de uma palavra escutada e da palavra rezada. Saber rezar é, portanto, o objetivo da iniciação, o que deve ser recuperado na cura e o que deve ser articulado e contagiado na vocação. Essa terceira área da experiência litúrgica também deve ser considerada sob três aspectos diferentes:
A oração é um ato elementar de qualquer ser não autossuficiente. Então, a partir desse nível elementar de pedir um bem, a oração torna-se um pedido de bem e de perdão, e então se eleva à alegria pelo bem dos outros (louvor), à gratidão pelo próprio bem (ação de graças) e por ter palavras para o bem em vez de para o mal (bênção). Como experiência do sujeito, essa dinâmica da oração – do pedido à bênção – é um componente constitutivo da liturgia cristã;
A oração cristã, todavia, culmina em seu momento de comunidade. Não só porque a oração eucarística é o centro da oração cristã – onde as palavras de Cristo e da Igreja se sobrepõem e se fundem –, mas porque, a partir desse centro, toda oração se torna expressão de uma vida de comunhão, em relação a Deus Pai, Filho, Espírito e com os irmãos;
No entanto, há também um nível de oração público e cerimonial, no qual era fácil diferenciar a oração dentro da mesma unidade do tempo e do espaço. Assim, o estilo comunitário poderia ser substituído pela somatória dos atos públicos realizados pelos ministros, enquanto, em particular e paralelamente, cada fiel realizava sua oração pessoal. Precisamente essa concomitância de ato público e devoção privada constituiu um formidável obstáculo para o desenvolvimento de uma sensibilidade comunitária na liturgia.
A unidade destas três grandes dimensões – da Eucaristia, dos sacramentos e da oração –, graças à grande articulação da experiência que brevemente apresentamos, no momento em que o mundo mudou e chegamos às novas evidências da modernidade tardia – após as grandes revoluções e a ascensão do Estado liberal –, entrou em crise. Aos poucos, foi percebendo que, entre o ofício e a oração, entre o sacramento e a comunhão, entre o sacrifício e a participação ritual, criaram-se distâncias muito fortes, que pareciam quase intransponíveis. Por isso, durante os séculos XIX e XX, esforçaram-se por recuperar essa difícil unidade. Precisamente na era do individualismo, e em reação a ele, nasceram a aspiração e a urgência de recuperar a unidade perdida da liturgia cristã.
2. Evidências e redescobertas do presente: a recuperação da relação eclesial e a dificuldade da ação ritual
A breve investigação que fizemos sobre o desenvolvimento da prática litúrgica destacou um fenômeno típico de todas as grandes tradições. Por um lado, aprofundam as intuições fundamentais que qualificam a transmissão de formas e conteúdos – a centralidade da relação com Cristo, o cuidado com a ação ritual, a elaboração de estilos espirituais e orantes –, mas isso acontece com um duplo risco: de um lado, as tradições tendem a combinar tudo o que a história elaborou em um único ponto – o chamado efeito presépio
³ –, com o resultado de perder o sentido compreensivo por um excesso de sinais; por outro lado, cada singular gesto tende, como consequência, a formalizar-se e permanecer de modo autônomo com respeito ao seu significado. Assim, um duplo fenômeno de perda de sentido é gerado pela sobreposição e/ou separação. Isso é particularmente evidente nas primeiras experiências litúrgicas que consideramos, isto é, na celebração eucarística. A tradição medieval, primeiro, e a tridentina, depois, geraram uma laceração da experiência
, da qual a Igreja e a teologia do século XIX tomaram conhecimento. A missa como sacrifício para assistir, a presença real do sacramento para adorar e a comunhão para consumir estruturaram experiências alternativas, que impuseram diferentes modos de