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A última mentira que contei
A última mentira que contei
A última mentira que contei
E-book467 páginas7 horas

A última mentira que contei

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Sobre este e-book

Há quinze anos, quatro garotas foram passar as férias em um acampamento de verão. Apenas uma delas voltou para casa.

Duas verdades e uma mentira. Quem seria capaz de descobrir qual era a mentira? Era essa a brincadeira que as garotas Vivian, Natalie, Allison e Emma faziam em sua minúscula cabana no Acampamento Nightingale. Mas a diversão chegou ao fim quando Emma, ainda meio dormindo, viu as outras saírem da cabana na calada da noite. Essa foi última vez em que ela, ou qualquer outra pessoa, teve notícia das amigas.

Quinze anos depois, Emma é convidada a voltar ao acampamento, que seria reaberto pela primeira vez desde a tragédia. Ela vê nisso uma oportunidade de tentar descobrir o que realmente aconteceu com as três garotas.

Em meio a rostos conhecidos, cabanas inalteradas e o mesmo lago escuro, objeto de tantas histórias e lendas, ela começa a encontrar misteriosas pistas deixadas por Vivian, mensagens sobre as obscuras origens do acampamento e sua possível relação com os desaparecimentos.

Com o passar dos dias, Emma investiga as mentiras do passado e enfrenta ameaças no presente. Quanto mais se aproxima da verdade, mais ela percebe que desvendar esse mistério pode custar sua própria vida.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de ago. de 2019
ISBN9788582356043
A última mentira que contei

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    As vezes a verdade consiste em manipula a verdade não a mentira....

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A última mentira que contei - Riley Sager

sempre.

É assim que começa.

Você acorda e dá de cara com os raios de sol se derramando nas árvores do lado de fora da janela. A luz é fraca, opaca, levemente acinzentada. A alvorada ainda descamando o manto da noite. Mesmo assim, já está claro o bastante para fazer você se virar para a parede, ouvindo as molas do colchão rangendo sob seu peso. Com o movimento vem aquele instante fugaz de desorientação, aquele milissegundo em que você não sabe onde está. Costuma acontecer após um sono pesado e sem sonhos. Amnésia temporária. Você olha para as farpas finíssimas nas ripas da parede de madeira, sente o odor remanescente da fumaça de fogueira no seu cabelo, e sabe exatamente onde está.

Acampamento Nightingale.

Você fecha os olhos e tenta voltar a dormir, fazendo de tudo para ignorar os ruídos do despertar da natureza que vêm lá de fora. É um barulho irritante, dissonante – criaturas noturnas digladiando com as diurnas. Você capta o zumbido dos insetos, o chilrear dos pássaros, o último chamado fantasmagórico de uma ave solitária ecoando sobre o lago.

A algazarra do lado de fora mascara o silêncio do lado de dentro. Mas naquela breve calmaria antes que o tara-ta-ta-ta de um pica-pau comece a ressoar, você se dá conta de como tudo está tão quieto. De que o único som que percebe é o ressonar tranquilo de sua própria respiração sonolenta.

Então abre os olhos em um ímpeto, apurando os ouvidos para ouvir mais alguma coisa – qualquer coisa – dentro da cabana.

Nada.

O pica-pau retoma o compasso de batidas rápidas e secas, que faz você tirar a cara da parede e olhar para o resto do cômodo. O espaço é pequeno. Comporta apenas dois beliches, um criado-mudo onde repousa uma lanterna e quatro baús de nogueira perto da porta. Com certeza pequeno o bastante para não restar dúvidas de que está vazio.

Dá uma olhada no beliche à sua frente; a cama de cima está impecavelmente arrumada, os lençóis não têm nem um vinco. A de baixo é o oposto – cobertas emboladas, algo enterrado embaixo delas formando um calombo.

Confere o relógio no lusco-fusco da manhã e vê que mal passa das 5 da madrugada. Quase uma hora até o nascer do sol. Essa revelação dispara uma corrente subcutânea de pânico que imediatamente instaura uma sensação irritante e perturbadora.

Começa a imaginar que talvez tenha acontecido alguma emergência. Alguém passou mal de repente. Algum problema na casa de alguém. Até diz a si mesma que talvez as meninas tiveram que sair tão apressadas que nem se importaram em te acordar. Ou quem sabe até tentaram, mas você não acordou de jeito nenhum. Ou até acordou, mas não consegue se lembrar.

Você se ajoelha diante dos baús junto à porta, cada um deles tem entalhados os nomes das campistas que já ficaram ali, e abre todos eles, menos o seu. O interior de cada uma das caixas forradas de cetim está abarrotado de roupas, revistas e artesanatos feitos no acampamento. Os celulares de duas delas estão lá, desligados há dias.

Apenas uma levou o telefone. Você não tem ideia do que aquilo quer dizer.

O primeiro – e único – lugar lógico ao qual as garotas poderiam ter ido, você raciocina, são os sanitários. Um retângulo com paredes de cedro logo atrás das cabanas, instalado bem no limiar da floresta. Talvez uma delas tenha precisado ir ao banheiro e as outras a acompanharam. Já tinha acontecido antes. Você mesma já tinha se juntado a expedições semelhantes. Bem juntas umas às outras, esgueirando-se por uma trilha iluminada por uma única lanterna compartilhada por todas.

Mas a cama perfeitamente arrumada sugeria uma ausência longa e planejada. Pior, sugeria que elas nem tinham dormido ali na noite anterior.

Ainda assim, abre a porta da cabana e, nervosa, vai para fora. A manhã está fria e cinzenta, e você se encolhe e cruza os braços para tentar se aquecer enquanto vai até os sanitários. Lá dentro, checa todas as cabines e os chuveiros. Vazios. As paredes dos chuveiros estão secas. As pias também.

De novo lá fora, para no meio do caminho entre os sanitários e a cabana e inclina a cabeça, apurando os ouvidos para escutar, em meio aos zumbidos, aos gorjeios e ao barulho da água resvalando na margem do lago a cinquenta metros de distância, qualquer ruído que denuncie as garotas.

Nada.

O próprio acampamento está completamente silencioso.

Uma sensação de isolamento pesa sobre seus ombros e, por um momento, você se pergunta se todo o local foi evacuado e só você ficou para trás... Mais cenários horríveis preenchem seus pensamentos. As pessoas saindo às pressas, num frenesi preocupado, e você dormindo no meio de tudo isso.

Então se concentra novamente nas cabanas, andando ao redor de cada uma delas, atenta a qualquer sinal de vida. São vinte cabanas no total, dispostas em um metódico quadrante de floresta desmatada.

Circula cada uma delas, consciente da sua aparência ridícula vestindo somente uma camiseta regata e um par de bermudas boxer, sentindo as folhas secas e pontiagudas dos pinheiros pinicando os pés descalços.

Cada cabana tem o nome de uma árvore.

A sua é a Corniso. A do lado é a Bordo Canadense. Você confere o nome de cada uma delas, tentando escolher uma em que as garotas poderiam ter entrado, imaginando que decidiram dormir fora de última hora. E então espia pelas janelas e abre de leve portas que estão destrancadas, esquadrinhando os beliches em busca de vestígios de outras garotas.

Em uma das cabanas – Abeto Azul –, surpreende uma garota acordada. Ela se senta na cama de baixo do beliche, contendo uma exclamação de susto na garganta.

– Desculpe – você sussurra antes de fechar a porta. – Desculpe.

Então decide ir até o outro lado do acampamento, que normalmente fervilha de atividades do amanhecer ao crepúsculo. Agora, o amanhecer não passa de uma pálida promessa despontando no horizonte. A única atividade em andamento é você marchando na direção do refeitório. Em uma hora, mais ou menos, o aroma de café e bacon frito deve emanar do prédio. No momento, não há cheiro de comida tampouco qualquer barulho.

Tenta abrir a porta. Está trancada. Ao espiar pela janela, só consegue ver o refeitório escuro, as fileiras de mesas compridas com as cadeiras viradas de pernas para cima sobre elas.

Também dá de cara com a porta no prédio de artes e artesanatos.

Tudo trancado. Escuro.

Dessa vez, ao espiar pela janela, vê um semicírculo de cavaletes sustentando as telas ainda inacabadas da aula do dia anterior, na qual você se dedicou a uma natureza morta. Um vaso de flores silvestres ao lado de uma fruteira cheia de laranjas. E agora não consegue se livrar da sensação de que nunca a terminará; as flores eternamente pintadas pela metade, a fruteira para sempre sem frutas.

Ao afastar-se do prédio, pondera sobre seu próximo passo. À direita, fica a trilha de cascalho que leva para fora do acampamento, atravessa a floresta até a estrada principal, mas você se dirige para o lado oposto, em direção ao centro do acampamento, onde fica o prédio de toras de madeira que parece um mamute, bem na extremidade de uma rotatória.

O chalé.

O último lugar onde você espera encontrar as meninas.

Trata-se de um desajeitado prédio híbrido. Mais uma mansão que uma cabana. Um lembrete constante aos hóspedes de seus próprios, diminutos alojamentos.

Ainda está tudo silencioso. Escuro também. A alvorada preguiçosa que nasce por trás da construção deixa a fachada nas sombras, mal permitindo distinguir as janelas chanfradas, a fundação de pedra, a porta vermelha.

Parte de você quer correr até lá e bater na porta até Franny responder. Ela precisa saber que três garotas sumiram. Afinal, é a diretora do acampamento. A responsável pelas garotas.

Você só resiste porque existe a possibilidade de que esteja errada, de que tenha deixado de procurar em algum lugar importante onde as garotas poderiam ter se enfiado, como se tudo não passasse de um jogo de esconde-esconde. E também pelo fato de que está relutante a contar para Franny até que seja absolutamente necessário.

Já a desapontou uma vez e não quer fazer isso de novo.

Prestes a voltar para uma Corniso deserta, algo atrás do chalé chama a atenção. Uma faixa de luz alaranjada um pouco adiante do declive coberto de grama.

O Lago da Meia-Noite, refletindo o céu.

Por favor, estejam lá, é o seu primeiro pensamento. Por favor, estejam seguras. Por favor, deixem-me encontrá-las. É claro que as garotas não estão lá. Não havia nenhum motivo racional pelo qual estariam. Parece um sonho ruim. Daqueles que você menos quer ter ao fechar os olhos à noite. Só que dessa vez o pesadelo é real.

Talvez seja por isso que continua andando ao chegar à beira do lago. Seguindo em frente até adentrar as águas, sentindo as pedras escorregadias sob os pés. Logo a água já bate em seus tornozelos. Ao começar a tremer, não sabe dizer se é de frio por causa da água gelada ou por causa do medo que dá um aperto no peito desde que olhou o relógio ao acordar.

Você gira lentamente dentro da água, examinando os arredores. Atrás está o chalé, cuja frente virada para o lago é iluminada pelo nascer do sol, que tinge as janelas com um reflexo róseo. A margem do lago se estende para longe de ambos os lados, numa linha costeira aparentemente infinita ladeada por pedregulhos e árvores. Seu olhar recai adiante, abarcando a extensão do lago, cuja superfície jaz impassível como um espelho refletindo as nuvens que emergem vagarosamente e um punhado de estrelas que ainda brilham pálidas. E é fundo, mesmo no meio de uma seca que baixou o nível da água, deixando à mostra uma longa faixa de cascalho ressequido ao longo da margem.

O céu brilhante te permite divisar a margem oposta, mesmo que não passe de uma linha parcamente visível em meio à bruma. Tudo isso – o acampamento, o lago, a floresta nos arredores – é propriedade privada, pertencente à família de Franny, e passada de geração em geração.

Tanta água. Tanta terra.

Tantos lugares para desaparecer.

As garotas poderiam estar em qualquer lugar. Você se dá conta disso enquanto está ali parada, com os pés dentro d’água, tremendo violentamente. Elas estão lá fora. Em algum lugar. E pode levar dias até que sejam encontradas. Ou semanas. Talvez nunca sejam encontradas. Essa possibilidade é tenebrosa demais mesmo que não passe de um pensamento e, no entanto, é um pensamento que não sai da sua cabeça. Você as imagina cambaleando pelos bosques densos, desorientadas e sem saber para onde ir, na dúvida se o musgo nas árvores realmente aponta para o norte. Provavelmente estão com fome, com medo e com frio. Imagina as garotas debaixo d’água, afundando na lama grudenta tentando em vão retornar à superfície.

Você imagina tudo isso e então começa a gritar.

PARTE UM

DUAS VERDADES

1.

Pinto as garotas na mesma ordem.

Vivian primeiro.

Então Natalie.

Allison é a última, mesmo que ela tenha sido a primeira a sair da cabana e tecnicamente, portanto, a primeira a desaparecer.

Minhas pinturas geralmente são grandes. Enormes, para dizer a verdade. Randall gosta de falar que são do tamanho de uma porta de celeiro. Mesmo assim, as garotas sempre são pequenas. Marcas inconsequentes em uma tela que é um absurdo de grande. Elas são mensageiras da segunda fase da pintura, depois que já depositei a camada de tinta que compõe o fundo de céu e terra em matizes cujos nomes são apropriadamente sinistros. Preto-aranha. Cinza-sombrio. Vermelho-sangue. E azul meia-noite, é claro. Nas minhas pinturas sempre há uma pincelada de meia-noite...

Então vêm as garotas, às vezes agarradas umas às outras, às vezes espalhadas pelos cantos da tela. Retrato-as em vestidos brancos esvoaçantes como se estivessem correndo de alguma coisa. Normalmente elas estão de costas, de modo que só seus cabelos deixam um rastro atrás de si enquanto fogem. Nas raras ocasiões em que pinto um relance de seus rostos, não passa de um vislumbre de seus perfis, nada além de uma pincelada curvada.

Crio a floresta por último, usando uma espátula para besuntar a tela de tinta, com traços largos e irregulares. Esse processo pode levar dias, até semanas, nas quais fico ligeiramente tonta com o cheiro, à medida que pincelo mais e mais tinta, camada sobre camada, mantendo-a grossa.

Já ouvi Randall se vangloriar a potenciais compradores que minhas telas são como as de Van Gogh, com a tinta formando relevos de até um centímetro sobre a tela. Prefiro pensar que pinto como a natureza, onde superfícies verdadeiramente lisas são um mito, sobretudo nos bosques. As arestas serrilhadas das cascas das árvores. As manchas de líquen sobre as rochas. O legado de folhas de vários outonos acobertando o solo. Esta é a natureza que tento captar com meus arranhões, protuberâncias e espirais de tinta.

Por isso, adiciono mais e mais, cada tela do tamanho de uma parede aos poucos sucumbindo à floresta da minha imaginação. Densa. Proibida. Repleta de perigo. As árvores pairam sombrias e ameaçadoras. As trepadeiras mais do que rastejam; se emaranham, sufocantes. A vegetação rasteira cobre o chão da floresta. Folhas obscurecem o céu.

Pinto até que não reste nem um resquício de tela sem tinta, até que as garotas sejam consumidas pela floresta, enterradas entre árvores e trepadeiras e folhas, até que se tornem invisíveis. Só então sei que uma pintura está terminada; usando a ponta do cabo de um pincel para assinar meu nome no canto inferior direito.

Emma Davis.

Esse mesmo nome, nessa mesma caligrafia quase ilegível, agora ornamenta a parede da galeria, saudando os visitantes que passam pelas enormes portas de correr do antigo armazém no Meatpacking District. Todas as outras paredes estão repletas de pinturas. Minhas pinturas. Vinte e sete delas. Minha primeira exibição numa galeria.

Randall não mediu esforços para o coquetel de abertura, transformando o local em uma espécie de floresta urbana. Há paredes cor de ferrugem e bétulas cortadas de uma floresta em Nova Jersey dispostas em touceiras de muito bom gosto. As batidas etéreas de house music ecoam discretamente ao fundo. Pela iluminação se diria que é outubro, por mais que ainda falte uma semana para o dia de St. Patrick e do lado de fora as ruas estivessem cheias de sujeira, e não de folhas.

A galeria, no entanto, está lotada. Tenho de dar o crédito a Randall. Colecionadores, críticos e apreciadores se acotovelam por espaço em frente às telas, taças de champanhe em mãos, esticando os braços para pegar os croquetes de cogumelos com queijo de cabra, toda vez que as bandejas passam. Já fui apresentada a dezenas de pessoas de cujos nomes me esqueci no instante seguinte. Pessoas importantes o bastante para Randall sussurrar em meus ouvidos quem elas são enquanto aperto suas mãos.

– Ela é do Times – ele diz sobre uma mulher vestida em tons de roxo dos pés à cabeça. Sobre um homem vestindo um impecável terno de alfaiataria e berrantes sapatênis vermelhos, ele apenas murmura: – Da casa de leilão Christie’s.

– Trabalho impressionante – diz o Sr. Christie, dirigindo-me um sorriso torto. – Muito audaz.

Sua voz está carregada de surpresa, como se audácia fosse algo intangível às mulheres. Ou talvez sua surpresa seja oriunda do fato de que, pessoalmente, sou tudo menos audaz. Comparada a outras personalidades expansivas do mundo da arte, eu sou, sem sombra de dúvida, recatada. Nada de trajes unicolores ou sapatos chamativos para mim. O tubinho preto e os sapatos também pretos com salto gatinho são o ápice de sofisticação que consigo alcançar. Passo a maioria dos dias vestindo uma combinação de calça cáqui e camiseta respingada de tinta.

O único adorno é uma pulseira de prata que nunca tiro do pulso esquerdo, com três pingentes, pequeninos pássaros feitos de prata escovada.

Certa vez disse a Randall que me visto tão despretensiosamente porque quero que as minhas pinturas se destaquem, não o contrário. Mas, na verdade, acho que personalidade e estilo audaciosos são pura futilidade.

Vivian era audaciosa em todos os aspectos. E desapareceu mesmo assim.

Durante as apresentações, dou largos sorrisos, conforme fui instruída, aceito elogios e desconverso com falsa modéstia as perguntas inevitáveis sobre o que planejo fazer a seguir.

Assim que Randall esgota seu suprimento de estranhos para me apresentar, afasto-me da multidão, disposta a não checar cada uma das pinturas para ver qual delas têm a plaqueta com o adesivo vermelho de vendido. Em vez disso, cuido de uma taça de champanhe em um canto, sentindo o ramo de uma bétula recém-desmatada bater em meu ombro enquanto olho pelo salão procurando pessoas que realmente conheço. Há várias, o que me faz sentir grata, embora seja estranho vê-las juntas no mesmo lugar. Amigos do ensino médio misturados a colegas da agência de publicidade, colegas pintores ao lado de parentes que pegaram o trem para vir de Connecticut até aqui. Todos, exceto por uma prima, são homens. Isso não é inteiramente por acaso.

Eu me animo um pouco quando Marc chega extravagantemente atrasado, ostentando um sorriso orgulhoso enquanto esquadrinha a cena. Por mais que alegue abominar o mundo da arte, Marc se encaixa perfeitamente nele. De barba, com os cabelos em um adorável desalinho. Um casaco xadrez esportivo jogado por cima de uma camiseta do Mickey Mouse. Tênis vermelhos que angariam uma desapontada segunda olhadela do Sr. Christie. Avançando pela multidão, Marc arrebata uma taça de champanhe e um croquete, que enfia inteiro na boca e mastiga com ar pensativo.

– O queijo é o que salva – ele me informa. – Mas esses cogumelos aguados são uma infração indesculpável.

– Ainda não provei – disse. – Nervosa demais.

Marc coloca a mão em meu ombro para me dar apoio. Exatamente como costumava fazer quando morávamos juntos durante a faculdade de Belas Artes. Todo mundo, em especial os artistas, precisa de alguém que seja capaz de nos acalmar. Marc Stewart é essa pessoa para mim. Minha voz da razão. Meu melhor amigo. E provavelmente seria meu marido se nós dois não gostássemos de homens.

Eu me sinto atraída por romances impossíveis. Mais uma vez, não se trata de mera coincidência.

– Você pode e deve curtir esse momento – ele me diz.

– Eu sei.

– E também pode se orgulhar de si mesma. Não há razão para se sentir culpada. É normal os artistas se inspirarem em suas experiências de vida. Esse é o motor da criatividade.

Marc está se referindo às garotas, é claro. Soterradas no fundo de cada pintura. Além de mim, só ele sabe da existência delas. Eu só não lhe contei por que, quinze anos depois, continuo fazendo com que elas desapareçam repetidamente.

É o único segredo que escondo dele.

Nunca foi minha intenção pintar assim. Na escola de Belas Artes, era atraída pela simplicidade das cores e das formas. As latas de sopa de Andy Warhol. As bandeiras de Jasper Johns. Os quadrados ousados e as linhas pretas rígidas de Piet Mondrian. Até que veio a tarefa de pintar o retrato de alguém que eu sabia que tinha morrido. Escolhi as garotas.

Pintei Vivian primeiro, porque tinha ela mais vívida na memória, com aqueles cabelos loiros dignos de um comercial de xampu. A incongruência daqueles olhos escuros que eram quase pretos dependendo da luz. O nariz arrebitado salpicado de sardas ainda mais evidentes devido ao sol. Eu a retrato em um vestido branco com uma elaborada gola vitoriana estendendo-se sob a linha de seu pescoço de cisne e lhe dou o mesmo sorriso enigmático que ela envergou enquanto saía da cabana.

Você é muito jovem para isso, Em.

Natalie veio na sequência. Testa larga. Queixo quadrado. Cabelos presos num rabo de cavalo apertado. Seu vestido branco tinha uma delicada gola de renda que se estendia pelo pescoço e pelos ombros largos.

Finalmente, veio Allison, com sua aparência saudável. Maçãs do rosto altas e nariz fino. Sobrancelhas dois tons mais escuras que o cabelo castanho-claro, tão finas e perfeitas que pareciam ter sido desenhadas com um pincel. Pintei uma gola elisabetana ao redor de seu pescoço, régia e cheia de babados.

Mas há algo de errado com a pintura finalizada. Algo que me atormentou até a noite anterior à entrega do projeto, quando acordei às 2 horas da manhã e vi as três olhando para mim do outro lado da sala. Vê-las. Esse era o problema. Arrastei-me para fora da cama e me aproximei da tela. Peguei um pincel, molhei em um pouco de tinta marrom e passei sobre os olhos delas. Um galho de árvore que as cega. E mais ramos e galhos se seguem a esse. Então plantas e trepadeiras e árvores inteiras, todas fluindo do pincel para a tela, como se estivessem brotando dele. Ao amanhecer, a maior parte da tela estava sitiada pela floresta. Tudo o que restava de Vivian, Natalie e Allison eram pedaços de seus vestidos brancos, resquícios de pele, mechas de cabelo.

Essa foi a nº 1. A primeira da minha série da floresta. A única em que ao menos uma fração das meninas está visível. Aquela tela, que obteve a nota mais alta da minha turma depois que expliquei seu significado ao meu instrutor, não está exposta na galeria. Está pendurada no meu loft, não está à venda.

A maioria das outras, no entanto, está aqui; cada uma delas ocupando uma parede inteira das múltiplas câmaras da galeria. Ao vê-las assim em conjunto, com seus galhos retorcidos e as folhas vibrantes, percebo como todo o esforço é obsessivo. Saber que passei anos pintando o mesmo tema me deixa irrequieta.

Estou orgulhosa – digo a Marc antes de tomar um gole de champanhe.

Ele vira a taça dele de uma vez e pega mais uma.

– Então o que tá pegando? Você parece incomodada.

Ele diz isso com um débil sotaque britânico, uma personificação precisa de Vincent Price naquele filme de horror trash cujo nome nenhum de nós consegue lembrar. Só sabemos que estávamos chapados quando o assistimos na TV certa noite e uivamos de rir com essa fala. Desde então falamos isso um para o outro com uma certa frequência.

– É que é estranho. Tudo isso – gesticulo com minha taça de champanhe em direção às telas que dominam as paredes, às pessoas que se alinham diante delas, a Randall beijando as duas bochechas de um casal europeu magérrimo que acabou de entrar. – Nunca esperei nada disso.

Não estou bancando a humilde. É verdade. Se aspirasse a uma exposição numa galeria, teria dado um título às obras. Em vez disso, só numerei na ordem em que fui pintando. Da n.o 1 até nº 33.

Randall, a galeria, essa recepção surreal – tudo um feliz acidente. Resultado de estar no lugar certo na hora certa. O lugar certo calhou de ser o bistrô de Marc em West Village. Na ocasião, estava no meu quarto ano como artista interna em uma agência de publicidade. O que não era legal tampouco satisfatório, mas pagava o aluguel de um loft caindo aos pedaços, mas grande o bastante para acomodar minhas telas de floresta. Depois de um vazamento de um cano no alto de uma parede do bistrô, Marc precisou de algo para disfarçar temporariamente o estrago feito pela água na parede. Então, emprestei a nº 8 porque era a maior tela e capaz de cobrir a maior parte da parede.

A hora certa aconteceu uma semana depois, quando o proprietário de uma pequena galeria a alguns quarteirões dali apareceu lá no Marc para almoçar. Ele viu a pintura, ficou convenientemente intrigado e perguntou a Marc sobre o artista.

A resultante dessa pergunta foi uma de minhas telas – nº 7 – exposta na galeria. Ela foi vendida em uma semana. O proprietário me pediu mais telas. Mandei mais três. Uma delas – a nº 13 da sorte – chamou a atenção de uma jovem amante das artes que postou uma foto da tela no Instagram. Essa foto foi curtida por sua empregadora, uma atriz de televisão conhecida por lançar tendências. Ela comprou a pintura e a pendurou em sua sala de jantar, ostentando-a em um jantar para um pequeno grupo de amigos. Um desses amigos, um editor da Vogue, contou a seu primo, dono de uma galeria maior e mais prestigiosa. Esse primo é Randall, que no momento está zanzando pela galeria, de braços dados com todo convidado que vê.

O que nenhum deles sabe – nem Randall, nem a atriz, nem mesmo Marc – é que essas 33 telas são as únicas obras que eu pintei fora meus deveres na agência de publicidade.

Não há novas ideias se infiltrando no cérebro dessa artista, nenhuma inspiração acendendo a centelha da produtividade. Tentei pintar outras coisas, é claro, mais por pressão do senso de responsabilidade do que por desejo de fato. Mas jamais consigo ir além das desmotivadas pinceladas iniciais. Acabo voltando às garotas toda maldita vez.

Sei que não dá para ficar pintando-as para sempre, perdendo as três na floresta repetidamente. Por conta disso, jurei que não pintaria outra. Não haverá uma nº 34 ou nº 45, ou, Deus me livre, uma nº 112.

É por isso que não respondo quando me perguntam no que estou trabalhando agora. Não tenho resposta para dar.

Meu futuro é basicamente uma tela branca, esperando que eu a preencha. A única pintura que fiz nos últimos seis meses foi a do meu estúdio, usando um rolo para convertê-lo de amarelo-narciso para azul-tiffany.

Se tem alguma coisa me incomodando é isso. Sou um prodígio de uma obra só. Uma pintora audaciosa cujo trabalho de uma vida está nessas paredes.

Como consequência, me sinto indefesa quando Marc sai do meu lado para puxar papo com um lindo garçom do buffet, dando a Randall a oportunidade perfeita de agarrar meu pulso e me arrastar até uma mulher magra estudando a nº 30, minha maior tela até agora. Embora não consiga ver o rosto dela, sei que é alguém importante.

Todos os que conheci essa noite foram levados até mim em vez do contrário.

– Aqui está ela, querida – Randall anuncia. – A artista em pessoa. A mulher se vira, fixando em mim um par de amigáveis olhos verdes que eu não via há quinze anos. É um olhar fácil de lembrar. Do tipo que, ao recair sobre você, faz com que se sinta a pessoa mais importante do mundo.

– Olá, Emma – ela diz.

Fico paralisada, incerta quanto ao que devo fazer. Não tenho ideia de como ela vai reagir. Ou do que vai dizer. Nem mesmo por que está aqui. Imaginava que Francesca Harris-White não queria saber de mim.

Ainda assim, ela sorri calorosamente antes de me puxar para perto até que nossas bochechas quase se encostassem. Um semiabraço que Randall testemunha com inveja palpável.

– Vocês já se conhecem?

– Sim – respondo, ainda pasma com sua presença.

– Há séculos. Emma mal passava de uma garotinha. E eu não poderia estar mais orgulhosa da mulher que ela se tornou.

Ela olha de novo para mim. Daquele jeito. E apesar de ainda estar pasma, percebo que estou bastante feliz por vê-la. Não pensava que isso seria possível.

– Obrigada, Sra. Harris-White – eu digo. – É muito gentil de sua parte.

Ela franze o cenho numa expressão de curiosidade.

– Mas que história de Sra. Harris-White é essa? É Franny. Sempre Franny.

Também me lembro disso. Ela diante de nós, usando bermudas cáqui e camisa polo. As pesadas botas de trilha que deixavam seus pés comicamente grandes. Me chamem de Franny. Eu insisto. Aqui, na natureza, somos todas iguais.

Essa igualdade não durou muito. Mais tarde, quando o que aconteceu estampava todos os jornais do país, era o seu nome completo, formal, que era usado. Francesca Harris-White. Filha única do magnata do ramo imobiliário Theodore Harris. Única neta do barão da madeira Buchanan Harris. Viúva muitos anos mais jovem do herdeiro do tabaco Douglas White. Um patrimônio líquido estimado em quase um bilhão, cuja maior parte é dinheiro antigo que remonta à Era Dourada.

E agora ela está diante de mim, com uma aparência intocada pelo tempo, embora já deva estar beirando os 80. Ela enverga sua idade muito bem. Tem a pele bronzeada e radiante. O vestido azul sem mangas realça sua figura delgada. Os cabelos, de um tom entre o loiro e o cinza, estão puxados para trás em um coque francês, exibindo um colar de pérolas em seu pescoço.

Ela se vira para a tela novamente, esquadrinhando sua largura formidável. É um dos meus trabalhos mais sombrios – somente tons de preto, azuis escuros e marrons terrosos. A pintura se agiganta sobre ela, dando a impressão de que está mesmo diante de uma floresta, prestes a ser engolida pelas árvores.

– É um tanto quanto estonteante – ela diz. – Todas são.

Há um quê em sua voz. Uma nota trêmula e incerta, como se conseguisse vislumbrar as garotas em seus vestidos brancos por baixo do matagal de tinta.

– Preciso confessar que vim aqui sob um falso pretexto – ela diz, sem desviar o olhar da pintura, como se fosse incapaz de parar de fitá-la. – Também estou aqui pela arte, é claro, mas tem algo a mais. Vim pelo que talvez você chame de uma proposta interessante.

Finalmente ela interrompe o contato visual com a pintura, fixando em mim aqueles olhos verdes.

– Adoraria discuti-la com você, quando tiver tempo.

Olho instintivamente para Randall, que está atrás de Franny mantendo uma distância discreta. Ele mexe os lábios e, sem emitir som algum, articula a palavra que todo artista anseia ouvir: encomenda.

A possibilidade me faz dizer Claro sem hesitar. Em qualquer outra circunstância, já teria declinado.

– Então venha almoçar comigo amanhã. Que tal umas 12h30? Em minha casa? Assim também podemos colocar o assunto em dia.

Eu me pego concordando, ainda sem entender completamente o que estava acontecendo. A aparição inesperada de Franny. Seu convite ainda mais inesperado para almoçar. A assustadora-porém-tentadora perspectiva de ser contratada para pintar algo para ela. É outro toque surreal a uma noite já estranha.

– Claro – repito, lamentando minha falta de recursos para articular qualquer outra palavra.

– Maravilha – Franny sorri.

E deposita um cartão em minha mão.

Letras em azul-marinho sobre um fundo branco aveludado. Simples e elegante. Mostra seu nome, o telefone e um endereço na Park Avenue. Antes de sair, ela me puxa para outro semiabraço. Então, dirigindo-se a Randall e indicando a nº 30, diz:

– Vou ficar com esta.

2.

É fácil encontrar o prédio de Franny. É o que leva o nome da família dela. Harris.

Condizente com seus moradores, o Harris é decididamente discreto. Nada de mansardas ou espigões ao estilo do edifício Dakota que existem por aqui. Apenas arquitetura modesta elevando-se em plena Park Avenue. Acima da porta de entrada, jaz o brasão da família Harris esculpido em mármore: dois grandes pinheiros cruzados, formando um X, rodeados por uma coroa de louros. Apropriado, considerando que a fortuna da família originou-se do desmatamento de tais árvores.

O interior do Harris parece uma catedral de tão sombrio e silencioso. E eu sou a pecadora que adentra na ponta dos pés. Uma impostora. Alguém que não pertence àquele lugar. No entanto, o porteiro sorri e me cumprimenta pelo nome, como se eu morasse ali há anos.

A calorosa recepção continua conforme sou conduzida ao elevador. Lá dentro, outro rosto familiar do Acampamento Nightingale.

– Lottie? – eu digo.

Ao contrário de Franny, ela mudou bastante nos últimos quinze anos. Está mais velha, é claro. E mais sofisticada. A bermuda e a camisa xadrez que trajava da última vez que a vi foram substituídas por calças sociais e um blazer cinza-escuro sobre uma blusa branca impecável. Seu cabelo, antes comprido e castanho bem escuro, agora é preto-azeviche, num corte chanel mais comprido que emoldura com elegância seu rosto pálido. Mas o sorriso ainda é o mesmo. Tem o mesmo brilho caloroso e amigável, tão vibrante agora quanto era no Acampamento Nightingale.

– Emma – ela diz, me puxando para um abraço. – Meu Deus, que bom te ver de novo.

– Você também, Lottie – retribuo o abraço. – Estava me perguntando se você ainda trabalhava para Franny.

– Ela não conseguiria se livrar de mim mesmo se tentasse. Não que ela já tenha tentado.

De fato, as duas raramente eram vistas separadas. Franny, a líder do acampamento, e Lottie, a devotada assistente. Juntas, elas dirigiam não com mão de ferro, mas com luva de pelica, jamais perdendo a benevolente paciência, nem mesmo quando surpreendidas por uma retardatária como eu. Ainda me lembro do momento em que conheci Lottie. O jeito tranquilo como ela emergiu do chalé quando meus pais e eu chegamos horas depois do esperado. Ela nos cumprimentou com um sorriso, um aceno e um sincero Bem-vindos ao Acampamento Nightingale.

Agora ela me acompanha ao elevador e aperta o botão de cima. Conforme subimos, ela diz:

– Você e Franny vão almoçar na estufa. Espere só até ver.

Balanço a cabeça, dissimulando animação. Lottie percebe. Ela me olha dos pés à cabeça,

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