O esconderijo do pescador
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O esconderijo do pescador - Leandro Mottin
Gigantescas línguas de fogo
Indonésia, 12 de outubro de 2002.
A noite colorida de Kuta cheirava a incenso, gasolina e diversão.
– Obrigado, Justin. Tudo está além do esperado – disse Zion, virando o corpo e apertando a mão do amigo em agradecimento, enquanto caminhavam entre vários transeuntes, por uma viela escura, próxima ao centro de Bali.
Aquela era a oportunidade tão esperada para provar à sua jovem esposa Maya o quanto ela significava para a vida dele, e também para, finalmente, sentarem-se à mesa e resgatarem a sintonia amorosa perdida pela sua maneira egocêntrica de ser. Faltava um pouco mais de uma hora para meia-noite, quando Maya completaria vinte e três anos de vida, cinco a menos do que ele.
– Será uma surpresa e tanto! – Justin respondeu, enxergando de relance o sorriso de satisfação e contentamento no rosto do amigo.
Zion, por sua vez, fazia mentalmente uma breve visita ao passado recente, quando ele e Maya iniciaram o romance e o projeto de uma vida feliz na encantadora ilha de Bali. Fazia um pouco menos de dois anos que o casal se conhecera. Primeiramente, lembrou-se do dia em que celebraram secretamente, e de maneira peculiar, a união matrimonial. Lembrava-se do momento em que ele dirigia a motoneta levando-a na carona. Maya sorria e segurava ao vento um buquê de flores brancas.
Estou tão feliz!
– sussurrou ela, ao pé do ouvido, depois de dar uma gargalhada e sentir um frio na barriga devido à travessura de Zion. Ele tinha recém-acelerado sua moto, guiando-a velozmente ladeira abaixo, já nas proximidades do extremo sul da ilha. Estavam a cinco minutos de Uluwatu.
Foi um dia especial
– lembrava, trazendo à memória o momento em que um grupo de crianças balinesas mostrava seus dentes de leite misturados aos dentes permanentes recém-nascidos e corria paralelamente à motoneta, tentando acompanhar sua velocidade com as mãozinhas estendidas para tocá-los.
O filme continuava com o jovem casal estacionando a motoneta na entrada do templo de Uluwatu. Raios de Sol cruzavam nuvens e incidiam sobre o mar formando uma ilha redonda de luz na sua superfície, como se uma imensa lanterna estivesse ligada no céu. Chegaram durante a tradicional apresentação do teatro balinês, com fogos, música e dança típica que era realizada todos os dias no templo durante o entardecer. Vestiram os sarongs¹ tradicionais hindus e seguiram até o caminho que serpenteia o penhasco, de onde é possível enxergar a imensidão azul do oceano Índico. Dezenas de macacos saltitavam pelas árvores e parapeitos, vieram apanhar os amendoins e as bananas levados por eles. Em sua memória, estava também a delicada mão úmida de Maya, com os dedos entrelaçados aos seus, enquanto caminhavam na direção oposta ao pequeno teatro aberto. Subiram até onde o caminho de pedra encontra a relva rasteira. Mais acima, ainda em direção ao cume, havia um banco de praça simples sob uma pequena cobertura de madeira com palha. A quietude transmitia muita paz àquele local. Daquele ponto era possível ouvir apenas o som das ondas alisando as pedras centenas de metros abaixo.
A Lua subia redonda e parecia atenta àquela cerimônia, em que dois jovens ardiam nas chamas da paixão. Um vento quente acariciou o rosto do casal movimentando seus cabelos para o lado, enquanto ambos permaneciam com os olhos fechados, um de frente para o outro. Era possível ouvir o balanço dos galhos das árvores e o cochicho dos macacos. Maya estava esplendorosamente bela, e sua face era qual a de um anjo, clara e serena. Uma tira com pequenas folhas rodeava a sua cabeça, como se fosse uma singela coroa.
Quando Maya colocou o anel no dedo de Zion, um prolongado beijo aconteceu, testemunhado por duas estrelas cadentes. Uma terceira e quarta também riscaram o quadro azul petróleo da abóbada celestina. Ouviam-se apenas o balanço das águas ao longe e a risada contida dos macacos do templo.
Os meses de paixão e alegria iniciais tinham sido substituídos por um distanciamento que o próprio Zion não entendia. Com a chegada do aniversário de Maya, ele atendia um pedido dela na boate Sari Club, na praia de Kuta: uma pista de dança. A balada mais famosa de Bali estava repleta de jovens de vários continentes, felizes e dourados do Sol. Era uma noite especial na sedutora e lendária ilha da Indonésia, onde todos brindavam à vida e procuravam um pouco de diversão.
Minutos antes, por volta das 22h30, quando ainda estavam dentro da boate, encontraram July e Justin – um casal de amigos. Maya e July ficaram conversando enquanto Zion e Justin inventaram uma desculpa e saíram da boate para ver os preparativos da festa surpresa em homenagem a Maya a poucos quarteirões dali. Justin estava hospedado nas imediações da rua principal onde fica localizada a boate. Discretamente, os dois amigos foram conferir se estava tudo pronto para a chegada dela à meia-noite. Em volta da piscina do hotel, amigos nativos e estrangeiros e também duas primas recém-chegadas à Indonésia estavam à sua espera para surpreendê-la.
No instante em que retornavam à boate Sari Club para buscá-las, ouviram uma explosão próxima ao Paddy’s Bar. Segundos depois, ouviram uma segunda explosão... muito mais forte. Zion sentiu o coração pular pela boca e as pernas amolecerem. Como se um sentido extraordinário comandasse o corpo, correram cerca de cem metros por uma rua lateral onde um amontoado de pessoas, com os olhos arregalados e cor de pânico em fuga, debatiam-se desesperadamente dificultando o acesso de volta à Legian Street. Ao se aproximarem, viram a boate em chamas, enquanto, lá no alto, a fumaça azul-cinzenta se misturava ao céu negro. Uma quantidade enorme de pessoas tinha sido atingida e vários corpos se estendiam no chão. Em meio aos escombros e sucessivas explosões, ambos presenciavam o inferno diante de seus olhos. Um homem demasiadamente ferido gritava pelos seus amigos. Tentaram se aproximar da boate, mas eram obrigados a recuar pelo intenso calor das chamas. Jogavam água no corpo e tentavam novamente se aproximar da boate envolta por gigantescas línguas de fogo. A aflição extrema de Zion fazia-o ignorar por completo a iminência de outra explosão, mas novos estouros de gás e a forte intensidade dos clarões de fogo impediam sua aproximação da boate. Vários corpos sem vida já se espalhavam em meio às labaredas quando Zion sentiu o fogo queimando-lhe o estômago internamente. Gritava por Maya com voz muda de desespero. Rodeado pelo calor intenso que o consumia por dentro e por fora, perdeu-se em meio às flamas. Já não sabia para que lado estava a saída da boate. À sua frente, estava um muro alto de tijolos. Desolado, teve a vontade súbita de cair de joelhos devido ao enfraquecimento de suas pernas. E caiu. Prestes a desmaiar, um par de olhos verdes penetrantes apareceu por entre as labaredas, logo à sua frente. Zion, ao fitá-los, sentiu uma intensidade que o conectava ao fundo da alma e a sensação de ter encontrado um poço d’água em meio ao deserto árido e escaldante que o estava conduzindo à morte. Com os pulmões cheios de fumaça, acompanhou aquele par de olhos até acordar próximo à esquina do outro lado da rua. Com o corpo deitado sobre a calçada, tossia sem parar. Sentindo um nó atado à sua garganta, que lhe permitia apenas um fiapo de oxigênio, Zion, em um átimo doloroso de consciência, despertava para o maior pesadelo de sua vida: Maya estava morta.
No outro lado do mundo, o presidente dos Estados Unidos da América, George W. Bush, preparava-se para o pronunciamento. No ar, pela televisão, a matéria iniciou com o repórter enviado a Bali por uma emissora de TV americana falando:
"Ontem, em Kuta, a imagem era de desolação. Do bar Paddy, sobrou apenas um pedaço de parede. Pouco tempo depois, um carro-bomba foi detonado a poucos metros de distância, destruindo completamente a boate Sari Club. A Sari Club foi transformada num amontoado de escombros e ferros retorcidos. Corpos foram resgatados durante todo o dia e enfileirados no meio da rua. A identificação dos mortos está sendo lenta e penosa, porque a maioria estava inteiramente carbonizada. O Departamento de Estado dos Estados Unidos mandou todos os cidadãos americanos, inclusive os diplomatas, deixarem a Indonésia o mais depressa possível. O presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, classificou o atentado como um ato covarde com o intuito de criar terror e caos e conclamou o mundo a combater a ameaça do terrorismo
.
No aeroporto internacional de Oakland, nos Estados Unidos, o homem mais poderoso do mundo novamente ligou Saddam Hussein com a Al Qaeda, sem citar evidências, e sugeriu que o líder iraquiano poderia ceder armas biológicas, químicas e nucleares à organização terrorista para utilização contra os inimigos. "Nós precisamos pensar que, possivelmente, Saddam Hussein está usando a Al Qaeda para fazer esse trabalho sujo, sem deixar impressões digitais. E acrescentou que
eles estão tentando nos intimidar, mas nós não seremos intimidados".
Céu infinito
Padang Padang, sul de Bali, um mês depois.
Um homem caminhava por uma trilha de paralelepípedos apagados nas primeiras horas da manhã quente e sem vento. O céu mostrava o mesmo tom de cinza sem vida daquela senda que terminava junto ao topo de um penhasco. O caminho seguia estreitando-se por terra batida, delimitado, ao lado esquerdo, por uma vegetação seca, e à direita pela margem do morro, coberta por um conjunto de árvores e plantas com um pouco mais de vida. Logo, o homem avistou uma escadaria íngreme que descia centenas de metros quase que verticalmente da parte superior daquele penhasco desnivelado da praia. Parou e permaneceu por um instante de pé sobre o degrau mais alto da longa escadaria. Contemplou as ondulações que marchavam em linhas regulares vindas do fundo do oceano até beijarem os corais expostos pela maré seca, próximos à areia da praia. Sentiu uma vibração estranha vinda de trás. Quando virou o pescoço, viu que cerca de uma dúzia de macacos cruzavam aquela mesma trilha às suas costas. O bando passou bem próximo a ele, dando-lhe a impressão de que o primeiro da fila colocava o dedo indicador da mão esquerda à frente da boca, enquanto abria o braço direito, sinalizando para que os outros andassem mais lentamente.
O homem desceu alguns degraus à procura de um bangalô. Parou para observar o casebre de madeira e bambu com telhado de colmo na encosta. Deu alguns passos até alcançar o deck da varanda improvisada e reparou que a porta estava entreaberta. Aparentemente, não havia ninguém no interior. O homem entrou. Logo à esquerda, avistou uma pilha de panelas, pratos e copos sujos. Acima da janela que ficava sobre a pia, o armário suspenso estava com as portas entreabertas. Havia um saco de açúcar empedrado rodeado por formigas, pacotes de biscoitos abertos e arroz derrubado. O lixo, com uma pequena nuvem preta de moscas zunindo em volta, estava amontoado no canto da pequena cozinha, ao lado do fogão. Há dias não era recolhido. Migalhas de pão cobriam um pequeno diário que estava sobre a mesa. A estante improvisada com alguns pedaços de pau exibia livros de metafísica, um do Dalai Lama e outro intitulado Livro Tibetano dos Mortos. Na parede, estava pendurada uma foto de Maya sorrindo, sentada sobre a motocicleta abraçada a um buquê de lírios brancos. O homem sentou e abriu o diário à sua frente.
Sétimo dia: o diabo parece não descansar no sétimo dia. Nos primeiros cinco dias após a morte dela, senti todo o corpo queimando por dentro. No sexto, a queimadura foi para a cabeça. Senti, em determinado momento, o fogo percorrendo minha medula espinhal. Nesse último, o sétimo, foi pior. Acordei de súbito, com a cabeça e o corpo em chamas, queimando internamente. Senti um nó na epiglote. Dei um pulo. Corri em círculos até que o ar voltasse a entrar nos meus pulmões. Sinto-me culpado pela morte dela e não consigo parar de chorar. Tive medo de fechar os olhos novamente. Como estava cansado, prestes a adormecer, acendi a luz do lampião. Foi a primeira vez na minha vida que acendi a luz para dormir. Ou para não dormir.
Nas últimas linhas daquela mesma página, era possível ler, com certa dificuldade, a letra trêmula e imprecisa de quatro versos de um poema de Pablo Neruda. A folha tinha pequenas partes enrugadas, como se lágrimas tivessem caído naquela página e secado.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu a amei, e às vezes ela também me amou.
Em noites como esta eu a tive entre meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.
O sofrimento dele é profundo e real
– disse o homem para si mesmo, aprofundando vagarosamente a respiração. Virou mais algumas páginas do pequeno caderno de anotações com seus dedos grossos e sua mão ressecada. Apoiou o queixo sobre a outra mão e continuou a leitura:
Hoje estava com tanto medo da realidade que deitei na areia da praia e dormi. Qualquer espírito que quisesse me levar o faria com facilidade. Estava tão fraco que a pouca energia que sentia parecia estar concentrada na região do tronco. Minhas pernas estão tão frágeis que tenho que socá-las para me manter de pé. Mas algo estranho que eu não tenho a mínima ideia do que seja aconteceu quando eu estava ali, deitado à deriva. No final da tarde, em meio ao céu escuro e às trovoadas, fui até a varanda, levantei o braço e meu polegar riscou o isqueiro parecendo que eu estava sinalizando para alguém nos céus. Não estou bem. Não sei quem sou e nem onde estou. Sinto-me como um fantasma.
O homem desviou o olhar para o chão, que estava coberto de areia, e percebeu a que ponto de miserabilidade pode chegar um ser humano. Avançou mais uma página e leu logo abaixo à data:
Quarta-feira. Passei o dia contemplando o mar. Fiz muitas orações e nada aliviava minha dor. Foi quando disse para mim mesmo: ‘Não adianta’. Estou completamente perdido. Estou completamente perdido. Na volta, um arco-íris bem no alto, de ponta a ponta, apareceu, alegrando meu coração. O que quer dizer isso? Senhor, conte-me onde está Maya, e o que está acontecendo comigo.
O homem fechou os olhos esboçando um semblante misericordioso, largou o livreto sobre a mesa e saiu.
O sonho, a música, a missão
Rio de Janeiro, cinco meses depois.
O silêncio foi rompido por dois sons: o primeiro era da linha cortando o ar, produzindo uma espécie de assobio muito agudo. Em seguida, veio o som da chumbada – que levava consigo o anzol – afundando distante na água salgada do mar. Ambos foram levados pelo vento. Zion permanecia deitado sobre a rocha que tinha a forma de uma baleia jubarte adulta. A rocha se erguia majestosa sobre a beira do mar e se projetava alguns poucos metros água adentro. Poucos metros o separavam de um indivíduo de chapéu de palha entretido com sua carretilha mais abaixo. Zion mantinha os olhos fechados e as costas apoiadas na grande massa de pedra, tendo a sensação de que ele e aquela rocha quente eram uma coisa só. A rocha não parecia uma massa compacta, mas sim algo vibrante, cheio de espaço dentro. Seu corpo estava moldado por aquela superfície e, como estava de olhos fechados, não percebia os últimos raios de Sol daquela tarde incidir sobre seu rosto. Não estava dormindo. Sua mente mantinha-se alerta e serena para ouvir o som do mar que se orquestrava. E como uma orquestra sinfônica, as marolas da beirada, succionadas pelos grossos grãos de areia, pareciam instrumentos de sopro. A água do mar, que brincava de lamber as laterais da rocha e de cobrir e descobrir as pedras mais baixas ao redor, executava sons mais metálicos, como violinos e instrumentos de corda. As ondas retumbantes e fortes da última arrebentação eram as percussionistas e soavam como tambores. Por baixo de tudo isso, estava o maestro: o silêncio.
– Quem tu és? – perguntou a voz ecoante que parecia originar-se detrás das nuvens ou de algum lugar do crepúsculo. Zion permaneceu em silêncio.
A voz prosseguiu:
– Zion, o que você espera da vida?
– Espero voltar no tempo – respondeu.
– Ah sim, o tempo...
– Você pode me ajudar?
Um período prolongado de silêncio oco precedeu a resposta.
– Infelizmente não, mas tente refletir sobre o tempo de outra perspectiva.
– Outra perspectiva? Se não posso voltar no tempo qual outra perspectiva que não seja o sofrimento?
– Só você pode descobrir.
No sonho, Zion imaginava-se numa resoluta velhice, respondendo às perguntas