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05/12/2016

Muitos Sóis e muitas Luas

CULTURA
DOMINGO, 10 JUN 2001

Muitos Sóis e muitas Luas

Festival abre terça-feira e dura até ao Outono, em Portugal, Itália, Espanha e Cabo Verde

165 espetáculos a ter lugar entre Junho e Novembro, 51 localidades, 13 câmaras diretamente envolvidas no projeto. São estes os números do 9º festival Sete Sóis Sete Luas, uma produção da Associazione Culturale Immagini que promove o intercâmbio cultural entre o quadrilátero Portugal, Toscânia, Comunidade Valenciana e Cabo Verde.
            Como tem vindo a acontecer nos últimos anos, o programa é diversificado, apresentando propostas aliciantes nas áreas da música popular e tradicional, teatro de rua e cinema e, este ano, pela primeira vez, a gastromia, equacionada na sua dimensão cultural (ver caixa).
            Hevia, Xosé Manuel Budiño, Enzo Gragnaniello, Riccardo Tesi & Patrick Vaillant, Jovanotti, Khaled, Mercedes Péon, Sally Nyolo e Valentin Clastrier são os principais artistas estrangeiros que irão atuar em Portugal nos próximos meses. No âmbito da Festa Europeia da Música, entre 12 e 24 deste mês, em Santa Maria da Feira, e do ciclo "Mare Nostrum", em Julho, Agosto e Setembro, no Algarve, mas também em concertos singulares programados de Norte ao Sul do país.
            O contingente português que se fará representar este ano, em Julho, em Pontedera, na Toscana italiana, é constituído por Camané, Lula Pena, Rodrigo Leão e Dona Rosa, aos quais se juntarão o cabo-verdiano Bana, o Coro Odemira, a Orquestra de Ponte de Sor, um grupo étnico de violas campaniças e os italianos Riccardo Tesi (para apresentar um novo projeto centrado na "Toscana Minore"), Vox Populi, La Macina e Fratelli Mancuso. Depois das presenças, no ano passado, de Mafalda Arnauth e Cristina Branco, o fado continuará deste modo a marcar presença em Pontedera, desta feita partilhado entre o tradicionalismo assumido até à medula por Camané, autor de "Esta Coisa da Alma", e a panvisão de Lula Pena, que revolucionou o canto fadista há dois anos com o álbum "Phados". Rodrigo Leão levará ao cenário idílico de Villa Malaspina, em Montecastello, o classicismo etéreo do seu novo "Alma Mater". Ainda em Pontedera estará presente o poeta António Osório, que dará dois recitais da sua poesia, e o cineasta Pedro Costa, para acompanhar a projeção do filme "No Quarto de Vanda" e apresentar, em estreia, o documentário "Danièle Huillet, Jean-Marie Straub".
            Hevia (concerto único já no próximo dia 15 em Sta. Maria da Feira) e Xosé Manuel Budiño (julho, em Portimão) são dois dos mais tecnicistas e mediáticos gaiteiros da Espanha céltica, qualquer deles apto a demonstrar como se combina o rock e a música tradicional, respetivamente das Astúrias e da Galiza. Hevia vende milhões, irrita os puristas e usa uma gaita-MIDI mas a verdade é que se torna difícil resistir ao balanço do seu novo álbum, "Al Otro Lado". Budiño, na peugada de Carlos Nuñez, também cedeu ao mainstream, mas o seu discurso na gaita galega continua a ser tão inovador no novo "Arredor" como era no álbum de estreia, "Paralaia".
            Jovanotti (Julho, em Faro) e Enzo Gragnaniello (Junho, na Feira) representam facetas distintas do canto de autor italiano. O primeiro faz vibrar as multidões com a sua pop mascarada pela irreverência do rap. O segundo, autor de uma canção, "O mar e tu", cantada por Andrea Bocelli de parceria com Dulce Pontes, exige uma escuta mais atenta.
            E se a cantora dos Camarões, Sally Noyo (Julho, em Oeiras) e o argelino Khaled, embaixador do "raï" mais comercial, são ambos presenças VIP da world music, o acontecimento musical destes Sete Sóis Sete Luas será uma série de concertos protagonizados por Valentin Clastrier, o Hendrix da sanfona electro-acústica, herdeiro da espiritualidade gnóstica dos cátaros, intérprete iluminado de uma música que funde o séc. XXI na espiritualidade e ascese trovadorescas da Idade Média. Os dias 1, 3, 4, 5 e 6 de Outubro serão todos dias de S. Valentin em Portugal.
            A área da folk traz ainda a Portugal duas bandas a descobrir: os Ximbomba Atómica, das Ilhas Baleares (álbum, notável, "Cabres de Plàstic") e os Muziga, da República Checa (a ouvir, o sussurrante "Hej Lesem"). Interessantes são os Acetre, da Estremadura espanhola, e menos interessantes os Whisky Trail. Para escutar os Barabàn e as suas sonoridades célticas do Norte de Itália, será preciso viajar no dia 2 de Novembro até à Ribeira Grande, em Cabo Verde.
            Mas o Sete Sóis Sete Luas não se esgota nestes concertos, sendo possível assistir ainda a espetáculos de Rão Kyao, Simby (da Guiné Bissau, com Guto Pires, o guitarrista de jazz português, "Dudas", dos Ficções, e Wye Sissoco, ligado aos Super Mama Djombo), Canto Discanto (folk italiana), Mafalda Arnauth, Miguel Poveda (nova estrela do flamenco) e Paranza di Somma Vesuviana (folk da região do Vesúvio).
            A nova biblioteca de Santa Maria da Feira receberá em Setembro o convénio "A Europa das Culturas", com a presença do filósofo Gianni Vattimo, do escritor Francesco Alberoni e do ensaísta Raimon Panikkar. Ainda na Feira, também em Setembro, decorrerá um festival de teatro de rua com os grupos Sarruga, Aerial, Xarxa Teatre, Teatro ao Largo, Transe Express, Generik Vapeur, Les Plasticiens Volants e Vesuvio Teatro. Muitos sóis e muitas luas.

Bifes de Dante
O Sete Sóis Sete Luas abre oficialmente, de garfo e faca, na próxima terça-feira, no castelo de Santa Maria da Feira, com a encenação (e degustação...) de uma refeição sagrada, com a Compagnia del Teatro Lux di Pisa, o encenador Paolo Pierazzini e o cortador de carne Dario Cecchini. O espetáculo, literalmente para meter o dente, chama-se “Antica Macelleria Cecchini” e é uma iniciação aos prazeres da carne, que implicará a transformação – não só estomacal... – dos assistentes. Cecchini, o sublime talhante, trabalhará a carne o e espírito. Alquimista do bife, na variante “chianina”, carne exclusiva da região de Chianti, limpa de priões inoculadores de loucura bovina, Cecchini apresentará aos paladares o mítico “Tonno chiantino”. A acompanhar, lerá excertos, os mais sanguinolentos, do “Inferno”, de Dante Alighieri. A seu lado terá o “chefe” português Luís Soto Mayor, da “Adega do Monhé”, em Santa Maria da Feira, que, a par da confeção culinária, lerá por sua vez poemas de Álvaro Campos. Sangue e músculos do boi e da vaca, poesia, música e teatro combinar-se-ão num cerimonial dionisíaco de enchear a alma e a pança. “Experiência química, denâmica e de interação”, diz o programa, será como “uma poção mágica cujos ingredientes são o olfato, a visão, o ouvido e o paladar”, não uma ocasião de “consumo” mas de “transformação interior” e de “convívio”. Convém ir de espírito aberto e estômago vazio.

22/11/2016

O gaiteiro MIDIático [Hevia]

CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 18 JUN 2001


Crítica Música

O gaiteiro MIDIático

Hevia
Santa Maria da Feira.
Piscinas Municipais, às 22h
Recinto cheio (cerca de 2000 pessoas)

Prometeu e cumpriu. Quando da sua última estadia em Portugal, para participar como convidado na gravação do próximo álbum de Vitorino, Jose Angel Hevia garantira que a folk, a folk pura, não desaparecera por completo do seu programa musical. E que ela regressaria em breve.
Cumpriu-se cedo a promessa deste gaiteiro asturiano, na sua estreia ao vivo no nosso país, em Santa Maria da Feira, no âmbito do Festival Sete Sóis Sete Luas, para uma assistência que encheu por completo o recinto aberto ao lado das piscinas municipais.
Antes tivera lugar no castelo um banquete medieval. Um festim pedia outro. Folk doce, sem corantes nem conservantes, foi sobremesa delicada, um figo engolido à pressa para quem queria sobretudo encher a pança.
Aconteceu mais ou menos a meio de um concerto que primou pela vertente espetacular e pelo imediatismo das batidas eletrónicas “meia bola e força”. Hevia, o gaiteiro que vende milhões e choca os puristas com a sua gaita-de-foles (?) MIDI, mandou baixar as luzes, chamou para o seu lado apenas a irmã, a percussionista Maria Jose Hevia e os dois juntos lavraram aquele que terá sido o momento mais alto da noite. Ele a tocar a verdadeira gaita asturiana com sensibilidade e virtuosismo, mostrando que quem sabe não esquece, ela no tambor, a revelar-se uma notável rufadora.
Nesse instante, logo de seguida atropelado pelo camião da tecnofolk, percebeu-se que Hevia está ligado a dois mundos — o da sociedade tecnológica, do hedonismo e da estilização, que lhe garante a subsistência, e o das suas origens, passadas no convívio com as escolas de gaitas tradicionais. “Al Outro Lado”, título do seu álbum mais recente, reflete essa passagem constante de um para o outro lado.
Quando ambos se encontram, se equilibram, sem mutuamente se aniquilarem, algo brilha, de facto, na música de Hevia.
Mas esse foi o momento de exceção num concerto que rendeu sobretudo o que dele se esperava: um som cheio, insuflado pelos tapetes eletrónicos, duas baterias e um baixo obeso que, por vezes, nada mais deixava ouvir senão a sua respiração asmática e, a redimi-lo, o indiscutível tecnicismo e, melhor ainda, o swing demonstrado pelo principal protagonista, Jose Angel Hevia, com acompanhamento à altura, nas percussões, da sua irmã, Maria Jose Hevia.
Hevia é hoje um valor seguro da world music europeia, mais visível em festivais como o de São Remo, onde atuou recentemente, do que em certames de música tradicional. A música sob a qual se abrigou, registada em disco em “Tierre de Nadie” e “Al Outro Lado”, está longe da ortodoxia evidenciada no álbum de estreia, “Hevia”, produzido em registo acústico em duo com a sua irmã. Essa era uma música para os amantes do folk enquanto a de hoje se destina ao consumo das multidões e a programas do tipo “Top Mais” em qualquer parte do mundo. A que o público de Santa Maria da Feira já conhecida dos clips da televisão e a que Jose Angel Hevia e o seu grupo lhe ofereceram, como fórmula ganha à partida.
Música de fusão, mesclada sobretudo com sonoridades do Norte de África, que alternou temas “calmos” (o gaiteiro manifestou a sua satisfação ao verificar que as pessoas não estavam ali só para dançar e saltar mas também eram capazes de “ouvir”), em tom “new age” céltica de pacotilha, burilada pelo “tin whistle”, e as danças, servidas com a exatidão matemática que a gaita MIDI permite. E aqui, os dois temas que a TV divulgou em quantidades industriais, “Busindre” (de “Tierra de Nadie”, interpretado duas vezes, a última das quais em encore) e “Tanzilla” (do novo de “Al Outro Lado”) revelaram-se imbatíveis.
A questão está em que, embora a razão descortine mil e uma razões para desvalorizar estes sons cuja simplicidade chega a ser desarmante, o corpo aceita-os sem reservas, entregando-se ao balanço imparável e ao sabor da alegria.
Hevia recortou da música tradicional o seu lado mais efetivo e ritual, arrancou-lhe o musgo e as ervas, mas manteve intocáveis as raízes. Será porventura esse o segredo da sua eficácia e da adesão involuntária que provoca. Os ouvidos captam o artifício mas o coração consegue distinguir nela o fogo antigo. Aceso e crepitante.

EM RESUMO

O melhor O diálogo acústico e intimista entre os irmãos Hevia

O pior O simplismo de alguns arranjos e o som demasiado amplificado do baixo elétrico