11/03/2020

Pianos de Abril [Mário Laginha e Bernardo Sassetti]


DESTAQUE – FESTA DO “AVANTE!”
SEGUNDA-FEIRA, 6 SET 2004

Crítica Música


Pianos de Abril

Mário Laginha e Bernardo Sassetti
Quinta da Atalia, Festa do Avante. Sábado. 22h30
Recinto cheio.

Volvidos 30 anos sobre a revolução de Abril o sinal radiofónico que desencadeou as operações militares voltou a soar. Desta feita, porém, não para fazer avançar os tanques e chaimites, mas os dois pianos, de Mário Laginha e Bernardo Sassetti, na estreia oficial, ao vivo, sábado, na Festa do “Avante!”, de “Seis Canções e Dois Pianos”, suite de temas incluída na edição discográfica “Grândolas – A Revolução que começou com música”, alusiva ao 25 de Abril.
Frente a frente, em diálogo de sensibilidades complementares, Laginha e Sassetti arrancaram novas “nuances” a “Grândola, vila morena” e outras canções de José Afonso. Com o “auditório” 1º de Maio à cunha, o fervor revolucionário deu lugar a outra espécie de luta onde a música derrubou a ditadura das notas resignadas. A hora não era de gritos, mas de se ouvir, com novos ouvidos, a música do autor de “O Coro dos Tribunais”. Sob a luz fraca dos holofotes e com o desconforto da enorme tenda de campanha que fez as vezes de auditório, fez-se silêncio para se ouvir um outro Zeca Afonso.
“Chiu” – lançavam alguns mais impacientes perante o entusiasmo mal contido de outros, provocado pela audição de frases musicais mais facilmente identificáveis. Porque Sassetti e Laginha não facilitaram, optando pelo desenvolvimento harmónico em profundidade ao invés da reprodução superficial das melodias que todos conheciam de cor. O jazz ditou as suas leis, como não podia deixar de ser, impregnando arranjos onde a improvisação funcionou como ferramenta adicional de exploração.
De José Afonso os dois pianistas interpretaram “Venham mais cinco”, “Era um redondo vocábulo”, “Traz outro amigo também”, “Filhos da madrugada” e “Grândola, vila morena”, tocando, de permeio, ainda “E depois do adeus” – juntamente com “Grândola” uma das canções que serviu de senha ao golpe militar – e um surpreendente “Hino do MFA” reatado como exemplo de lirismo.
Não se tratou, em suma, de uma reprodução fiel do alinhamento do disco, uma vez que faltou “Canto moço” e apareceram como novidades “Era um redondo vocábulo” e “Filhos da madrugada”, mas de um périplo mais lato pela música de José Afonso, tornada nalguns casos praticamente impossível de identificar fora do enquadramento do refrão, dada a complexidade e natureza dos arranjos. Complexidade muitas vezes presente nas próprias composições do cantautor, como fez questão de acentuar Bernardo Sassetti, salientando, no entanto, a sua omnipresente fluidez.
Houve força e comunhão no concerto. Dos dois pianistas com a música. De um com o outro. Sentiu-se como se fosse um único e imenso intérprete de quatro mãos, de tal forma, as notas de cada um se interligaram na perfeição. Crescendos que derivaram para a quase dissonância, numa assunção do risco que José Afonso nunca desdenhou, insistências e padrões minimalistas, envolvimentos harmónicos em espiral, momentos de contemplação, o fazer e desfazer de “puzzles” rítmicos, criaram a justa medida de uma música que assim se revelou fonte de mil e uma descobertas. Na primeira metade do concerto foi um Laginha Keith Jarrettiano que fez valer a agilidade da sua mão direita, a liderar solisticamente os acontecimentos. Depois trocaram de piano e foi a vez de Sassetti, sob a inspiração de um Bill Evans, se lançar no desenho das linhas melódicas mais em destaque. Em qualquer dos casos sempre, um e outro, em comunicação estreita, oferecendo a cada tema uma carga emocional intensa.
“Grândola, vila morena” foi assim qualquer coisa de secreto, com dinâmica implosiva mas carregada de energia, no anúncio de uma revolução que começa por ser interior e que a História se encarregou de transformar em hino à liberdade.
Entusiasticamente aplaudidos, Laginha e Sassetti tiveram direito a um “encore” e utilizaram-no com “We shall overcome”, um espiritual que pontuou da melhor maneira o movimento dialético do restante concerto.

EM RESUMO
Funcionando como um só, Laginha e Sassetti recriaram de forma superlativa a força e o lirismo da música de José Afonso, acrescentando-lhes a complexidade de arranjos jazzísticos marcados pela intensidade emocional

Tom Zé deu espetáculo total em Sines


CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 2 AGO 2004

Tom Zé deu espetáculo total em Sines

Muito boa música passou pelo sempre esgotado Festival Músicas do Mundo de Sines, que terminou sábado à noite. Mas nenhuma inquietou tanto como a “performance” de Tom Zé. Veio de outro planeta e trouxe consigo uma visão

Tom Zé aterrou no Festival Músicas do Mundo de Sines, sexta-feira à noite, numa “Nave-Maria” de outro planeta, cósmico e baiano, com a sua leitura astral do tropicalismo. “Astronauta libertado/Minha vida me ultrapassa/Em qualquer rota que eu faça”. O brasileiro pesa cada palavra, improvisa frases antes e no meio das canções. E a música brota espontânea, como que por magia, dessas palavras que parecem soltar-se como as folhas de uma árvore. Foi o melhor concerto do festival, que terminou anteontem.
            Um naco do hino americano anunciou “Companheiro Bush”, viagem ao Iraque montado numa bomba de gramática. A faceta interventiva prosseguiu com “Urgente, pela paz”. É “rap”, é conversa, é canção, e Tom Zé foi o cantor-professor-pregador. As músicas misturavam-se, o baiano parecia perder-se, mas percebeu-se que a cada segundo sabe bem onde está e que terrenos pisa. O público entregou-se. Todo o concerto foi construído como uma história contada a primor. Paz e amor. Houve rock pesado, canções leves (e os dois juntos em “Ogodô, ano 2000”) e as letras sempre a dançarem, ora setas, ora lanças, ora lágrimas, ora corações. Pura e simplesmente, Tom Zé cantou o mundo. É isto a música do mundo, a tal “world music”? “Vamos nós ensaiar sozinhos, sem a banda, joga fora a banda!” Querem maior proximidade com o mundo do que esta? Mesmo quando, num golpe de mestre, se autopromove como produto de consumo, mostrando ao público vários discos, num “jingle” de venda do “Tom Zé que vai fazer todos felizes”. É assim o “one-man-show”: Tom Zé a simular um falo com o cinto, a autoflagelar-se como “artista de rock”, a rasgar o casaco, a vestir-se de operário e a fazer, literalmente, luz com uma lixa de amolador, a criar ritmos com marteladas no capacete, a comer um jornal... O grande paradoxo é que se estão presentes na música de Tom Zé todas as músicas, a música, só, não chega para Tom Zé. E, no entanto, tudo foi música.

Entre o frio e o “free”
A abertura da noite coubera a uma Savina Yannatou paradoxal. A grega pertence a uma estirpe de cantoras, como Fátima Miranda, que consegue criar em todos os registos da voz – do grito ao murmúrio –, mas em Sines faltou a centelha da paixão, sobrando a inteligência e uma vertente quase clínica. O périplo pelas músicas do Mediterrâneo, da Andaluzia à Turquia, passando por Itália, Macedónia, Bulgária e, claro, Grécia, que constituiu o seu reportório assumiu, por outro lado, uma componente de risco inusitada, com Savina a fazer valer a sua experiência nos campos da música erudita e do jazz. O problema desta atuação talvez demasiado fria esteve também no maior protagonismo do grupo que a acompanhou, Primavera en Salonica, também ele estendendo a margem de risco, com um desempenho que chegou a raiar a música contemporânea, plena de dissonâncias e intervenções instrumentais pouco usuais em festivais deste tipo. Mas para isto exigia-se um som pristino e tal não aconteceu, antes estava demasiado alto e metálico para o grupo e demasiado baixo para a cantora, cuja voz, por mais de uma vez, se diluiu no “ensemble”. O “encore” arrancado a ferros não chegou para aquecer os ânimos, mas nem tudo pode ser altas temperaturas, em festivais com as características do Músicas do Mundo.
            Ninguém se queixou de frio com o que veio a seguir. Jazz funk crioulo pelo mais recente projeto de David Murray, um “apaixonado por Sines”, como lhe chamou o apresentador. O Creole Project vive da rítmica dos tambores “ka” de Guadalupe e do intercâmbio de tenores entre Murray e o convidado histórico Pharoah Sanders. Murray com o seu jogo de dinâmicas e contrastes extremos, Sanders mais depurado e menos anguloso. Presos ao funk da secção rítmica, por vezes a lembrar o afro beat de Fela Kuti, libertaram-se nos solos e nos diálogos sem acompanhamento instrumental, resvalando com facilidade para o “free”. Folclórica, no sentido mais colorido do termo, a música casou com harmonia jazz e “world”, ritmos abrasivos e as cascatas tórridas dos dois saxofones. Calor sem esplendor. Mas choveram brasas quando Murray se pôs a improvisar sobre uma espécie de “doo wop” vocal obsessivo dos dois tocadores de tambores “ka” guadalupenhos, culminando, a fechar, numa desbunda coletiva alucinante.
            A abrir a noite de sábado, o Septeto de Roberto Rodriguez proporcionou um festim de cores e “swing”. Fusão excelente de ritmos de “guahira” cubana e sonoridades “klezmer”. Se os Penguin Café Orchestra fossem mais sérios e tocassem melhor fariam algo assim. O septeto levou grande música, sem concessões, desembrulhando temas dos álbuns “El Danzon de Moisés” e “Baila Gitano Baila”. O “encore”, com Rodriguez a solar na bateria numa orgia de ritmo, foi bombástico.
            Rokia Traoré veio do Mali para semear a hipnose. Apoiada nos sons do n’goni e do balafone, a cantora estendeu um delicado véu de melodias ondulantes e ritmos que ocasionalmente fizeram lembrar esse outro mestre da hipnose do Mali que é Ali Farka Touré. Com maior ou menor grau de pureza, não importa, é a tradição dos “griots” que nos assombra, nesta música que recria os infinitos cambiantes e padrões de uma tapeçaria de sonhos. Rokia passou por Sines como uma fada de voz dançarina.
            E tudo terminou com o afro-beat de Femi Kuti. Artilharia pesada a despedaçar as últimas resistências ao ritmo. Sob o fogo-de-artifício e o brilho da lua cheia, o castelo veio abaixo. Já se sabia e Femi confirmou-o: o seu grupo é uma formidável máquina de ritmo. O astro mais brilhante, esse já partira na véspera para a sua galáxia. Chama-se Tom Zé e foi a maior estrela a luzir no Músicas do Mundo de Sines.

Sines entre o cante sinfónico e o punk polaco [6º FMM Sines]


CULTURA
SÁBADO, 31 JUL 2004

Crítica Música

Sines entre o cante sinfónico e o punk polaco

6º Festival Músicas do Mundo
SINES Castelo, 29 de Julho, 21h30
Lotação esgotada

Com meia hora de atraso, vento e um discurso politizado do presidente da câmara, começou mais uma edição, a sexta, do Festival Músicas do Mundo de Sines, com o interior do castelo repleto de público na quinta-feira à noite. Na abertura, a desmesura, muitas horas de ensaio e alguma pimbalhice marcaram a apresentação de “Terra de Abrigo”, o mais recente e megalómano projeto da Ronda dos Quatro Caminhos. O palco estava a abarrotar, do estilo “chega-te para lá senão caio”, com os executantes da Orquestra Sinfonieta de Lisboa, dirigida por Vasco Pearce de Azevedo, três grupos de cante, mais os elementos da Ronda. É tudo em grande neste projeto, mas se a junção do “cante” com a orquestra até funciona, pela disciplina e afinação, de maneira a criar o chamado “cante coral sinfónico”, quando a coisa descambou para modas de outras regiões do país o caldo ficou entornado. Mesmo assim, ouviu-se sem sofrimento um tema da aldeia de Duas Igrejas, em Trás-os-Montes, com boa prestação vocal e uma concertina a dançar sobre os acordes da Sinfonieta. O pior foi quando a Ronda se chegou para a frente e a orquestra foi atrás, ao ponto de se meter as cordas eruditas a tocar uma chula: não se faz, fica feio, e não ganha a chula com o remendo sinfónico. A dada altura, o palco foi inundado por ainda mais gente, no caso o Grupo de Cantadores de Saias de Campo Maior, cujas vozes, demasiado secas e estridentes, não ajudaram à festa. E foi assim até ao fim: dignidade sempre que o cante e a orquestra deram as mãos, música popularucha desenfreada quando se saiu de lá. Aplausos moderados e um “encore” ao nível do mais desbragado baile de aldeia (o ritmo de chula, em bruto, é de arrasar a paciência a qualquer um) puseram fim à função.
Os Warsaw Village Band (na foto), da Polónia, são matéria mais séria e energética. Aliam a modernidade e a ancestralidade num estilo ao qual já chamaram “hardcore folk”. Vão buscar o “bialy glos” ou “voz branca” – forma de grito modulado utilizado pelos pastores para comunicarem entre si através de longas distâncias –, mas não descuram a instrumentação fortemente amplificada. Dois violinos, um violoncelo, um saltério (o “suca”) e duas percussões são suficientes para provocar descargas de adrenalina e, nalguns casos, despoletarem uma fúria realmente “hardcore”. “Let’s make some noise” foi a introdução a um dos temas, “Four wild horses”, que veio bem a propósito. Noutro tema, uma sanfona a ameaçar explosão eminente não deixou de fazer lembrar os Hedningarna, pioneiros desta vaga de “violência folk” que alastra atualmente um pouco por toda a Europa.
Os Warsaw Village nunca se cansaram, prosseguindo infatigáveis a sua labuta. O som, demente, foi tomando conta das cabeças e dos corpos. Houve quem não resistisse e se entregasse à dança, empurrado pelos decibéis e pela atitude punk do grupo. Os seis músicos tocam com sofreguidão, parecendo querer engolir o mundo com o “bialy glos” feminino, a trovoada dos tambores e os duelos melódicos dos instrumentos de cordas com o “suca”. E tudo isto mantendo um forte apego à tradição como o demonstra uma “Polka folkisdead”, composta por um construtor de instrumentos de aldeia, mas cujo título paradoxal é bem ilustrativo da atitude do grupo, um misto de respeito e iconoclastia. Os Warsaw Village Band são revolucionários por direito próprio, quebrando com raiva todas as amarras que prendiam e homogenizavam a folk polaca durante o regime comunista. Podem beber no licor da tradição, mas acrescentam-lhe a sua descomunal dose de gás.
O Músicas do Mundo de Sines termina hoje com atuações do Septeto de Roberto Rodriguez, Rokia Traoré e Femi Kuti.

EM RESUMO
A dignidade pautou a fusão do cante alentejano com a Orquestra Sinfonieta de Lisboa. Com a Warsaw Village Band foi sempre a abrir, do princípio ao fim

Poemas de amor e ódio [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 31 JULHO 2004

Três pianos nas mãos de italianos. O périplo solitário de Brotzmann rompe o dique.

Poemas de amor e ódio

Peter Brotzmann é um músico que toca nos limites.  A audição da sua música nunca é, por esse motivo, fácil. Exige-se disponibilidade total e a atenção necessária para se compreender a lógica pessoalíssima deste autor, mesmo quando este afirma pretender soar como Billie Holiday. Tal “boutade” apenas se entende na tristeza que por vezes assola estes exercícios de pura solidão inspirados nos mesmos 14 poemas escritos pelo poeta Kenneth Patchen que Brotzmann leu quando viajava de comboio. Cada tema é composto/improvisado para um único instrumento, sendo utilizados os saxofones barítono, alto e tenor, vários clarinetes e o tarogato. Brotzmann percorre a gama completa do grito ao murmúrio, jogando com as respirações, a embocadura e toda a série de técnicas extensivas que lhe permitem nunca cair na monotonia. Particularmente excitantes são as suas intervenções no sax barítono, de uma profundidade e emotividade quase atrozes. No tema oito, por outro lado, são os agudos mais vibrantes tirados da embocadura, num duelo com a palheta que antecipa a consequente e entrecortada intervenção no sax tenor, a raiar em alguns momentos a pura passagem do ar. “14 Love Poems”, repetimos, não é de apreensão fácil, situando-se numa região do pós-free em que as melodias são estilhaçadas, o ritmo cortado aos pedacinhos e os timbres multiplicados até ao infinito. Entre-se, pois, pé ante pé, na arte, indiscutivelmente maior, deste exagerado alemão para quem o jazz é a voz da mais exacerbada e abstrata das paixões. Poemas de amor e ódio.
            Deitemos, por contraste, água na fervura e sigamos para um jazz mais imediatamente consumível como é o do sexteto de Tommy Smith, um dos tenoristas, juntamente com Joe Lovano, de “Evolution”. O guitarrista é John Scofield e com Lovano a seu lado já se sabe que sai jazz redondo, de textura aveludada e nada que se pareça com cortes epistemológicos. O baterista é Bill Stewart, o baixista John Patitucci e o pianista John Taylor, nomes acima (ou além) de qualquer suspeita mas cuja evolução neste disco dá a entender que a soma não chega a abranger a totalidade das partes. John Taylor toca para dentro e por dentro em “Easter island” e quando as coisas aceleram um pouco, como em “Lisbon earthquake” não chega a haver verdadeiro desmoronamento nem o rebentamento da escala de Richter. Tommy Smith e Scofield brincam à vez com Taylor, a secção rítmica dá saltinhos mas, por mais que se tente dar a ideia de agitação, o “mainstream” aqui é sinónimo de acomodação a fórmulas já totalmente dissecadas, catalogadas e arrumadas, para ouvir de pantufas e barriga cheia. É bom e competente jazz, tocado por velhas raposas, mas passa sem provocar mossa, como uma leve passagem da mão pelo pelo. O mais interessante acontece com as deflagrações e refrações longínquas criadas por Scofield no início de “Siege of Leningrad” e, uma vez mais, um John Taylor a confirmar-se como mestre das notas mais solitárias e intimistas.
            Procuremos territórios mais preenchidos com acontecimentos importantes. Por exemplo, o disco de celebração ao vivo da conquista, por Andrew Hill, em 2003, do Jazzpar, galardão instituído por um júri dinamarquês que desde 1990 já premiou músicos como David Murray, Lee Konitz, Tony Coe, Django Bates, Jim Hall, Chris Potter, Enrico Rava e Aldo Romano, entre outros. Em “The Day the World Stood Still”, Hill é acompanhado pelo Jazzpar Octet, constituído por músicos dinamarqueses, mais uma convidada, a cantora Lenora Zenzalai Helm. Apesar de declarar a impossibilidade de traduzir a sua música por palavras, Hill preenche o “booklet” inteiro com explicações minuciosas sobre si e a sua obra. Em letras mais gordas, são expostas algumas máximas: “A universidade da rua foi importante”, “Verifique em primeiro lugar o ritmo, se for estático isso significa que a música está morta”, “Para mim, as vozes são como ouvir ritmos” e “O foco não está em mim mas na orquestra”. A esta ênfase posta no ritmo corresponde exatamente uma música pujante em que o pianista se resguarda como mais um elemento rítmico no seio do coletivo. Os solos são quase sempre contrapontísticos, funcionando em conjunção com outros instrumentos, numa contínua elaboração de música “camerística”. Não por acaso, o pianista cita numa parte do seu texto Schumann e Chopin, quando teoriza sobre a dicotomia jazz/música clássica. “Yesterday tomorrow”, com os seus 15 minutos de duração é particularmente apelativa, na forma de um crescendo harmónico vigoroso. Em “Do to” e “When peace comes”, o vencedor do jazzpar mostra finalmente o seu outro lado, em frases liquefeitas e um “touching” que, ocasionalmente, não deixa de lembrar Monk ou Bud Powell. Sem ser brilhante, longe disso, “The Day the World Still” é uma saborosa recriação dialética entre um certo classicismo e um africanismo que subliminarmente (partes de “11/8”) roça as raízes de New Orleans.
            Terminemos com um trio de discos que gira em torno de Itália. Um deles trata de “Standards”, pelo Franco D’Andrea Trio, “Standard Time, Chapter III”, no formato clássico piano/contrabaixo (Ares Tavolazzi, o velho baixista dos Área)/bateria (Massimo Manzi). Excelente trabalho do trio em composições tão conhecidas como “Body and soul”, “All the things you are”, “I can’t get started”, “What is this thing called love”, “Sweet Georgia Brown” e “How high the moon”. Excelente trabalho do trio, a tirar partido das possibilidades harmónicas dos temas para, sobre elas, construir improvisações e solos de alto calibre. Franco D’Andrea tem um fraseado límpido, melodicamente claro, com o “ataque” forte mas sempre controlado e conceções rítmicas avançadas, como demonstra em “What is this thing called love”. Jazz bem comportado sem que se dê ao termo qualquer sentido pejorativo.
            A fórmula é semelhante em “Play Morricone 2”, pelo trio Enriço Pieranunzi (piano), Marc Johnson (baixo) e Joey Baron (bateria), desta feita em vez de “Standards”, um segundo volume de composições de Ennio Morricone. A diferença está no estilo mais “bop” e fluido – os dedos mais leves – de Pieranunzio. Para os apreciadores de Morricone, é a possibilidade de escutarem a música do mestre num contexto diferente, já que, em termos melódicos, o trio não opera grandes metamorfoses, o que não é de admirar quando pensamos que é ao nível harmónico que se jogam as principais partidas de xadrez neste tipo de “standardizações”.
            Em “Mi Ritorni in Mente”, o pianista é novamente italiano, Stefano Bollani, mas o líder do trio é o contrabaixista Jesper Bodilsen, um discípulo de Niels-Orsted Pedersen, estando a bateria a cargo de Morten Lund. Curiosamente, em termos pianísticos, Bollani, situa-se entre D’Andrea e Pieranunzio. Tem a fluidez do segundo e o tipo de “ataque” do primeiro, com o coração no “bop”. As improvisações têm vigor e imaginação e, como nos outros dois discos, a tradição não é palavra vã. Tem a mais-valia de uma maior profundidade, muito por graça do inegável talento do contrabaixista, como está bem patente na fantástica conversação a três que mantém em “Someday my prince will come”.

Peter Brotzmann
14 Love Poems
FMP
8 | 10

Tommy Smith Sextet
Evolution
Spartacus
6 | 10

The Andrew Hill Jazzpar Octet + 1
The Day the World Stood Still
Stunt X
7 | 10

Franco D’Andrea Trio
Standard Time! Chapter 3
Philology
7 | 10

Pieranunzi, Johnson, Baron
Play Morricone 2
Camjazz
7 | 10

Jesper Bodilsen Trio
Mi Ritorni in Mente
Sundance
8 | 10

Todos distri. Multidisc

Suecos Hedningarna revolucionam festival Intercéltico de Sendim


CULTURA
SEXTA-FEIRA, 30 JUL 2004


Suecos Hedningarna revolucionam festival Intercéltico de Sendim

Esta é a melhor programação de sempre de um festival que vai já na quinta edição

É a melhor programação de sempre do festival Intercéltico de Sendim, evento que, ano após ano, tem vindo a crescer fruto do cuidado posto nas programações e do excelente ambiente que se vive durante um fim-de-semana. Este ano passarão pelo palco, nos dias 30 e 31 deste mês, os Hedningarna, Milladoiro, La Musgaña, Llangres, Fred Morrison & Jamie McMenemy e Marenostrum.
            Com os Hedningarna é o tudo ou nada do confronto total. Para estes suecos que irão fechar o festival, o “apocalypse” é a palavra de ordem. Só não é o fim da folk porque as raízes tradicionais continuam entrançadas na sua música, mas é folk em estado de alerta nuclear, feita de um jogo de tensões por vezes quase brutais, sustentadas, por exemplo, pela “drone” de uma sanfona eletrificada que parece querer explodir a qualquer instante. Instrumentos acústicos e elétricos combinam-se na música destes iconoclastas de forma inovadora, alargando, e de que maneira, os limites da música tradicional. Numa palavra, os Hedningarna simbolizam a revolução. Álbuns como “Kaksi” e “Tra” estabelecem a fronteira entre um “antes” e um “depois” para a folk europeia.
            No lado oposto, do classicismo, estão os galegos Milladoiro, verdadeira instituição do seu país e uma das mais representativas da música de raiz céltica da Europa. Se os Hedningarna são corte e irrupção, os Milladoiro, que fecham o primeiro dia do festival, são um bosque verde povoado por criaturas mágicas. Das raízes dos primeiros e seminais álbuns “O Berro Seco” e “Galicia de Maeloc” até aos mais recentes “As Fadas de Estraño Nome”, “Aires da Terra”, “Auga de Maio” e “Niño do Sol”, é todo um percurso de depuração e aprofundamento do folclore galego que os Milladoiro abordam de uma perspetiva por vezes quase sinfónica, na forma como arranjam a harpa céltica, as gaitas e demais instrumentos da tradição.
            De Espanha chegam outras duas formações que irão dar que falar. Os La Musgaña, de Castela, e os Llangres, das Astúrias. Dos La Musgaña espera-se o mesmo rigor e alguma excentricidade, tal qual estão patentes em álbuns como “Lubican” e “Las Seis Tentaciónes”. Os LLangres representam a nova tradição asturiana, ora efusivos nas gaitas, ora introspetivos na harpa céltica. Mais gaita-de-foles, mas desta feita a escocesa, far-se-á ouvir através do extraordinário executante que é Fred Morrison, a provar que as “Highland pipes” podem ser algo mais que lamentos ou aterradores gritos guerreiros. Fred Morrison, autor de álbuns como “Broken Chanter” e “The Sound of the Sun, será acompanhado por Jamie McMenemy, no bouzouki, com quem já gravou “Up South”. Os portugueses estão representados pelos Maré Nostrum, vencedores do I Arribas Folk, Concurso Nacional de Música Folk.
            Depois dos concertos haverá um festival paralelo, imprevisível mas necessariamente acompanhado por libações mais ou menos célticas. Na Taberna dos Celtas a música nasce espontânea, com gaiteiros a criarem o pandemónio, sejam eles anónimos ou os Los Yerbatos, das Astúrias, convidados pela organização especialmente para o efeito. Também os Pauliteiros de Valcerto, do Mogadouro, garantirão a animação do recinto, depois de terem atuado na rua de tarde do dia 31. Nas ruas de Sendim atuam ainda, no mesmo dia, atores do grupo Teatro Peripécia.
            Consumados os dois dias de concertos, o dia seguinte, 1 de Agosto, permitirá ainda assistir, na Igreja Paroquial de Sendim, a uma Missa Castelhana, a cargo do grupo Santaren Folk, oriundo de Castela-Leão. No pino do Verão, as Terras de Miranda serão, pelo quinto ano consecutivo, a capital do mundo céltico.

Programa de luxo nos três dias do festival de Sines


CULTURA
QUINTA-FEIRA, 29 JUL 2004

Programa de luxo nos três dias do festival de Sines

Música de todas as cores e para todos os gostos no programa deste ano do Festival Músicas no Mundo

O Festival Músicas do Mundo de Sines deste ano privilegia a diversidade sem cair no populismo. O mesmo é dizer que o programa é de luxo. Ronda dos Quatro Caminhos, Warsaw Village Band, Savina Yannatou, David Murray com Pharoah Sanders, Tom Zé, Septeto Roberto Rodriguez, Rokia Traoré, Femi Kuti. Nomes acima de qualquer suspeita dão garantias de qualidade e pluralidade de estilos. Hoje, amanhã e sábado, como sempre com um cenário condigno, no interior das ameias do castelo, com entrada gratuita e início às 21h30.
            Tudo começará esta noite com a grandiosidade que a junção do “cante” alentejano com uma orquestra proporciona. “Terra de Abrigo” é a proposta ambiciosa que a Ronda dos Quatro Caminhos leva a Sines, um trabalho de fusão que fará subir ao palco do festival os grupos corais alentejanos de Moura, Campo Maior, Évora, Serpa, Baleizão e Aldeia Nova de São Bento e a Sinfonietta de Lisboa, orquestra de 30 elementos com direção de Vasco Pearce de Azevedo.
            Na senda dos suecos Hedningarna, os polacos Warsaw Village Band cultivam a dissidência e a mestiçagem entre as linguagens tradicionais e elementos da pop e da tecno. São três rapazes e três raparigas que um dia se meteram à aventura de descobrir as raízes seguindo por um caminho proibido. Na Mazóvia, coração do país, encontraram o que buscavam, canções de casamento, canções de protesto, baladas de amor. A tradução para os tempos modernos é que se faz de modo alternativo, mesmo que em palco vão estar instrumentos tradicionais como a “Suka” ou que o grupo utilize uma forma peculiar de canto chamada “canto branco”. A finalidade, porém, não é a exibição das peças de um museu mas conseguir provocar no ouvinte, com o recurso a instrumentação acústica, o mesmo tipo de hipnose provocada pela música eletrónica de dança. Já chamaram “biotecno” a este estilo, que pode ser apreciado no álbum “People’s Spring”.

Uma voz cativante
Savina Yannatou vem da Grécia para nos levar para o Olimpo. Quem já a ouviu e viu cantar ao vivo em Portugal há-de sentir de novo um arrepio na espinha, de tal forma o seu canto é arrebatador. A pose hierática de onde se eleva uma voz absolutamente cativante, juntamente com a sua fotogenia, criam a imagem de uma deusa. Savina, autora de álbuns como “Mediterrânea”, “Virgin Maries of the World” e “Terra Nostra”, virá acompanhada do grupo Primavera em Salónica. O canto de Savina é o canto da sereia. Em Sines serão estreados temas do próximo disco.
            David Murray vem ao festival de Sines pela terceira vez. Desta feita na companhia de Pharoah Sanders, um dos mais ilustres herdeiros de Coltrane, para apresentar o “ka” de Guadalupe. Os tambores “ka” suportarão o canto em crioulo e o som quente dos dois saxofones. Tanto Murray como Sanders nunca se afastaram muito das raízes africanas e de uma postura equidistante do jazz e da “world music”. Murray dedicara-se já à música de Guadalupe nos álbuns “Creole”, “Yonn-Dé” e “Gwotet”, este último o seu mais recente trabalho.
            Tom Zé é o mais radical dos tropicalistas brasileiros. Reza a lenda que no final dos anos 80, quando o Brasil parecia tê-lo esquecido, quis voltar para trabalhar na bomba de gasolina do sobrinho. Mas mesmo que tal tivesse acontecido, Tom Zé continuaria a reinventar a sua música, construindo os seus próprios instrumentos. Nasceu na Baía e interessou-se pelo folclore local mas desde cedo aprendeu a misturá-lo com a pop e a música contemporânea. Participou, com os papas do tropicalismo, no álbum-manifesto “Tropicália ou Panis et Circensis”. Posteriormente o mercado ignora-o, acusando-o de demasiado politizado e experimental mas Tom Zé não desiste. Finalmente, em 1989, David Byrne descobre a sua música e convida-o para gravar para a sua editora, a Luaka Bop. O “Best of” que aí grava é considerado pela revista “Rolling Stone” um dos dez melhores discos da década. As suas mais recentes produções são o álbum “Jornalismo Falado” e o DVD “Jogos de Armar”.

O tigre do “afrobeat”
Quando era pequeno, o avô costumava levar Roberto Rodriguez a ver os velhos judeus a dançar ritmos cubanos na praia de Miami. Tanto bastou para que este cubano inventasse um estilo híbrido, mistura do “klezmer” judaico com as “habaneras” cubanas, a salsa-klezmer. Rodriguez, cubano de nascimento, integrou o projeto “Cubanos Postizos”, do guitarrista hebreu americano Marc Ribot, aproximando-se da chamada Radical Jewish Cultura de Nova Iorque, onde o klezmer se entrega a ligações licenciosas com o jazz e o rock. Tocou com John Zorn, outro paladino da cultura ídiche, e gravou os álbuns “Danzón de Moises”, onde combina a “guajira” espanhola com o “danzón” francês para criar uma aproximação bizarra ao tango, e o novo, intitulado “Baila Gitano Baila”, a apresentar no festival.
            Criada musicalmente num caldeirão para onde atiraram o “jazz”, a música clássica e a pop, a cantora Rokia Traoré, do Mali (país natal de Oumou Sangaré e Ali Farka Touré), é sinónimo de delicadeza, mesmo quando na sua música, por vezes minimalista, as palavras falam de temas tabu como infâncias difíceis ou os direitos da mulher africana. Editou os discos “Mouneissa”, “Wanita” e “Bowboi”, premiado pela crítica da BBC.
            “Filho de tigre tigre é”, diz um velho provérbio ioruba. Femi Kuti é filho de um tigre, Fela Kuti, criador do “afrobeat”, mescla de ritmos tradicionais africanos, “funk” e jazz de vanguarda. Femi tocou saxofone alto na banda do pai, os Egypt 80, e é nela que desenvolve o mesmo tipo de postura politicamente interventiva de Fela. Dirigiu o grupo enquanto o pai esteve preso, mas após a sua libertação e regresso à banda Femi abandona-os para formar os The Positive Force. Após a morte de Fela Kuti, em 1997, Femi Kuti prosseguiu, embora de forma mais discreta, a mesma luta, abordando temas como a sida e a corrupção. A sonoridade que caracteriza os seus discos, “Shoki Shoki” e “Fight to Win”, é igualmente herdada do pai, pelo que Sines irá vibrar, sob as luzes e o clamor do fogo-de-artifício, ao som do apelo festivo do “afrobeat”.

02/03/2020

Morreu o mestre da guitarra portuguesa [Carlos Paredes]


DESTAQUE – CARLOS PAREDES 1925-2004
SÁBADO, 24 JUL 2004

MORREU O MESTRE DA GUITARRA PORTUGUESA

A guitarra deixou de tocar. Agora definitivamente. Carlos Paredes partiu ontem de madrugada, deixando a alma portuguesa como um livro ao qual arrancaram as páginas. Ficará a música, para sempre a tocar em movimento perpétuo


Carlos Paredes morreu ontem, às 6h da madrugada, aos 79 anos, na Fundação-Lar Nossa Senhora da Saúde, em Lisboa, onde vivia desde 1993, ano em que lhe foi diagnosticada uma mielopatia, doença que lhe afetou os ossos e o impediu de continuar a tocar guitarra. O funeral realiza-se hoje às 15h30, no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, ficando o corpo em câmara ardente na Basílica da Estrela até uma hora antes de seguir para o cemitério.
            Paredes nasceu em Coimbra a 16 de Fevereiro de 1925. Das lições de violino e piano com que se iniciou, em criança, na aprendizagem da música, passou às cordas dedilhadas e à paixão que nunca deixaria de o consumir até ao fim da vida: a guitarra portuguesa. Com o pai, Artur Paredes, aprendeu o estilo coimbrão e a raça desse instrumento surgido em Inglaterra, mas tornado português por empatia. Carlos Paredes deu à guitarra uma voz própria. Fê-la sua. Homem, guitarra e sonho navegaram juntos e o fado transcenderam, junto às muralhas dos portos interiores onde o grito e o sangue vibram por entre o nevoeiro, nas águas da epopeia interrompida. O avô ensinara-o a “colocar os dedos”. O resto, “como não há nada, é inventado pelo guitarrista”. Esse resto é tudo.
            Durante anos construiu na sombra o que já esqueceramos: a arte de ser português. Uma natural modéstia e a permanente ausência de apoios oficiais impediram que a sua arte alcançasse maior projeção no estrangeiro. Eterno exilado de si próprio, chegou a dizer um dia que das suas mãos nunca poderia “sair nada de muito importante”. O poder, sempre atento às inconfidências, aproveitou, tomando-o à letra...
            Influenciado pela música de câmara da renascença e pelo fado de Coimbra, “músico popular urbano” como a si próprio se definia, desenvolveu ao longo dos anos um estilo pessoal que, a partir da tradição e apoiado no vigor de execução, se soube elevar às alturas de uma portugalidade a um tempo sanguínea e lunar. O contrabaixista Charlie Haden foi sensível à força e à capacidade de improvisação de Paredes. Tocaram e trocaram juntos sons e ideias. Desse diálogo ficou para a posteridade um disco, “Dialogues”, editado internacionalmente no selo Elektra Nonesuch, um dos mais prestigiados da música contemporânea. Mais recentemente o grupo de cordas Kronos Quartet integrou a música de Paredes no seu reportório.

Verdes anos
Da sua discografia principal constam as seguintes obras: “Guitarra Portuguesa” (1967), “Movimento Perpétuo” (1971), “Concerto em Frankfurt” (1983), “Invenções Livres” (1986), com António Vitorino de Almeida, “Espelho de Sons” (1987) e “Dialogues” (1990), com Charlie Haden. Um último e inacabado projeto, “Canção para Titi”, editado em 2000, inclui os derradeiros inéditos. Fundamental é a antologia com a obra integral do autor, “O Mundo segundo Carlos Paredes”, publicada o ano passado.
            Compôs as bandas sonoras dos filmes de Paulo Rocha, “Verdes Anos”, imortalizado pela genial composição do mesmo nome, e “Mudar de Vida”; mais recentemente trabalhou com Manoel de Oliveira e José Fonseca e Costa. Colaborou com o Grupo de Teatro de Campolide e com o Teatro Nacional D. Maria II. Dos seus trabalhos destaca-se ainda a partitura para uma coreografia do Ballet Gulbenkian, “Danças para Uma Guitarra”. Alain Jomy, autor da música dos filmes “O Lugar do Morto” e “Aqui d’El Rey”, de António-Pedro Vasconcelos, realizou o documentário “Pour Don Carlos”, centrado na relação da música de Paredes com a cidade de Lisboa.
            Tocou ao vivo na Aula Magna com os Madredeus, em 1991, acompanhado pela guitarrista Luísa Amaro, com quem partilhou os últimos anos de vida. Carlos Paredes tocou ao vivo, em Maio de 1991, na Aula Magna, com os Madredeus, acompanhado pela guitarra de Luísa Amaro. Em Março de 1992, aconteceu finalmente a homenagem, num espetáculo realizado na Aula Magna em Lisboa, e posteriormente apresentado na televisão. Participaram Luísa Amaro, Fernando Alvim, Rui Veloso, Mário Laginha, Natália Casanova, Paulo Curado e os bailarinos Ofélia Cardoso e Francisco Pedro. O derradeiro concerto teve lugar na Aula Magna, em Lisboa, em 1993.
            Guardamos de Carlos Paredes a imagem da sua figura dobrada sobre a guitarra, como que querendo confundir-se com ela. Conseguiu-o, transcendendo deste modo o fado, o nosso, o dele, o da guitarra: “Para defender um instrumento, a única forma possível é criar uma escola. Se as pessoas souberem utilizá-lo convenientemente, guardam-no. Caso contrário, esquecem-no.” A frase, por estranho que pareça, aplicou-se durante muitos anos à sua vida.

Negros anos
Com o desaparecimento de Carlos Paredes é uma parte de nós todos, como nação e como povo, que se perde. Acostumados que estávamos à sua figura e à sua maneira tímida de ser e de nos dizer com a guitarra o que somos e como somos, impregnados até ao fundo da sua música, habituámo-nos a não reparar nele, a deixar andar, a repetir frases de ocasião como “génio da guitarra portuguesa” e “alma do fado”. Como se isso fosse suficiente, e é sempre, como moeda de troca, e nos deixasse tranquilos com a nossa consciência. Escolhemos embalarmo-nos na nossa mediocridade morna e esquecermo-nos que o “génio” e a “alma” se foi gastando, durante anos a arrumar fichas de radiologia no Hospital de S. José, onde trabalhou durante quase toda a vida.
            Carlos Paredes fez da música e da guitarra portuguesa a sua vida. À esquerda e à direita, a “inteligentsia” reivindicava-o como herói da sua causa. Foi vê-lo (a ele e a outros) atuar de graça por esse país fora, no rodopio do pós-25 de Abril, a cantar a “liberdade” e a “justiça”, em nome de partidos com poucos escrúpulos. Estava encontrado, com despesas reduzidas de manutenção, o “embaixador” do nosso fado e dos valores tradicionais ou o “porta-voz” das classes desfavorecidas na luta pelos amanhãs que cantam, conforme o exigiam a ocasião e os interesses em causa. Ele existia e tocava, tocava sempre, e isso bastava-lhe.
            Agora que Carlos Paredes não voltará a abraçar-se como a uma amante à sua guitarra, que jamais nos transportará até essa ilha de amores dos “Verdes Anos”, agora que as cordas se silenciaram por fim desobrigadas do jugo terno dos seus dedos, vamos sentir por fim a sua falta, imitar os esgares da saudade e lavrar-lhe em ata mil louvores destinados à poeira dos arquivos. Fica a obra.
            Carlos Paredes, como Amália, como Camões, como Pessoa, foi, é português, e desse ser português se ofereceu em arte, se esvaziou de vida por amor a quem lhe retribuiu durante anos com palmadinhas nas costas. Sobre a sua própria música Paredes foi lapidar: “Comove sem fazer chorar.”


“Quando o Carlinhos aparecia para tocar, era um deus”

Paredes transcendeu o fado. Se Amália foi a alma, Paredes foi o espírito. A sua música exprimia o fogo e a liberdade. A entrega e o transe

“Carlos Paredes era de uma dimensão muito difícil de definir. O Carlos vagueava no espaço, um ser etéreo. Ele não estava cá, estava para além e acima de nós. Pairava no espaço. Quando o Carlinhos aparecia para tocar, era um deus”. Foi assim que Luiz Goes, mestre do fado coimbrão e um dos primeiros músicos a tocar com Paredes, definiu a personalidade musical e humana do autor de “Verdes Anos”.
            A música deste “ser etéreo” que parecia pairar no espaço enquanto tocava, queima-nos como uma chama, lançando-nos de forma lancinante para o âmago de uma solidão partilhada com muito poucos. Uma chama que brilhou entre 1958 e 1993, por 35 anos de carreira em que Paredes deixou bem vincada a sua arte, apesar de uma discografia de originais relativamente escassa. A primeira fase é marcada pelo fado de Coimbra e são já visíveis os sinais de génio que se vislumbram no EP “Carlos Paredes” de 1962. A forma como Paredes desenvolvia as melodias, em rapsódia, entram em conflito com os dogmas da guitarra.
            Hugo Ribeiro, engenheiro de som presente em inúmeras gravações, ao ouvi-lo pela primeira vez, comentou: “Ninguém tocava daquela maneira.”
            “Guitarra Portuguesa” (1967) é o álbum de estreia e um marco da música portuguesa. Nele cruzam-se a música tradicional, da Idade Média e da Renascença. Paredes encontrara na guitarra de Fernando Alvim o seu parceiro ideal e os dois parecem dançar na forma como as cordas se entrelaçam num destino comum. Alguns segredos técnicos ajudaram a criar esta obra-prima. Recordava Hugo Ribeiro: “O Paredes não custava nada gravar. A grande dificuldade era conseguir ouvir a guitarra através dos altifalantes e da aparelhagem como se estivesse a um metro de distância. Eu procurava ouvir a guitarra através do microfone do ‘ponto de vista’ dos meus ouvidos em relação ao instrumento. Acabei por arranjar uma solução: fui vendo onde ouvia bem a guitarra, o que era já muito longe de Paredes. E pus lá um microfone.”
            “Movimento Perpétuo”, de 1971, é outro clássico. É o álbum em que a veia improvisadora de Paredes se sedimenta num estilo reconhecível, feito de reminiscências de frases antigas projetadas, paradoxalmente, de acordo com um desejo de superação e descoberta constantes. “Quando entrávamos para estúdio”, segundo Hugo Ribeiro, “o Paredes dizia sempre que íamos fazer experiências, nunca era para gravar. ‘Vamos ver, se calhar, talvez...’, dizia ele, e ficávamos sempre em suspenso. O Paredes tocava por ali fora e no outro dia vinha ouvir. E depois dizia-me: ‘Oh Ribeiro, você tinha razão! Aquilo ficou bem!’ Ele entusiasmava-se a tocar. Aquela força anímica era fenomenal.”
            Em “Na Corrente”, gravado em 1973, Carlos Paredes reformula alguns temas para inclusão nos posteriores, “Concerto em Frankfurt e “Espelho de Sons”, bem como para uma edição exclusiva alemã, “O Oiro e o Trigo”. “É Preciso Um País” (1975), com poemas e voz de Manuel Alegre, e “Que Nunca Mais” (1975), de Adriano Correia de Oliveira, são aventuras mais ou menos marginais no movimento de Paredes.
            A gravação ao vivo de 1982, na Ópera de Frankfurt, que deu origem a “Concerto em Frankfurt”, foi feita sem o conhecimento de Paredes, para não o enervar, e nele encontramos um músico em que a tristeza substituíra já a melancolia romântica e o poder de afirmação de “Guitarra Portuguesa”. É fado, escuridão a escorrer da guitarra. Paredes tocando como se adivinhasse já um desfecho trágico, numa luta titânica contra a tirania das notas, magoando-as porque elas o magoavam. Com o piano de António Victorino d’Almeida fez “Invenções Livres” (1986). Desse encontro, surgido como consequência do interesse manifestado por Paredes em encontrar pontes com outras músicas, resultou acima de tudo, a evidência de duas visões divergentes da música. Paredes tocava voltado para dentro, Victorino d’Almeida voltado para fora. As cascatas de piano afogaram a guitarra. E Paredes exigia, sem querer, subserviência.
            Em “Espelho de Sons” (1987) descobre-se o guitarrista na sua melhor forma, conquistando a música um domínio de si que se estende às mais ínfimas “nuances”. Paredes tornara-se senhor do seu destino enquanto músico. Sente-se a lucidez, a visão e a sabedoria do que antes era intuição. A tragédia é integrada num patamar de existência superior.
            Charlie Haden, nome histórico do contrabaixo no jazz, tentou caminhar ao lado de Paredes em “Dialogues”. O contrabaixista cedeu ao guitarrista o maior espaço possível do alinhamento, remetendo-se a um papel discreto. A improvisação, segundo Paredes, não segue os parâmetros do jazz. Diante da guitarra ergue-se um espelho. Onde se reflete o mundo, mas só à sua imagem. Já fraco e nas mãos da doença, “Canção para Titi”, de 2000, sobrevive finalmente como testemunho pungente de uma arte que procurou – e conseguiu – redimir o mundo da dor.

DISCOGRAFIA EM ÁLBUNS
> Guitarra Portuguesa (1967)
> Meu País-Canções (de Cecília Melo, 1970)
> Movimento Perpétuo (1971)
> É Preciso Um País (com Manuel Alegre, 1975)
> Que Nunca Mais (de Adriano Correia de Oliveira, 1975)
> Concerto em Frankfurt (1983)
> Invenções Livres (com António Victorino d’Almeida, 1986)
> Espelho de Sons (1988)
> Carlos Paredes/Artur Paredes (com Artur Paredes, 1988)
> Dialogues (com Charlie Haden, 1990)
> Na Corrente (1996)
> Canção para Titi - Os Inéditos (2000)

Pequena multidão na despedida a Carlos Paredes


CULTURA
DOMINGO, 25 JULHO 2004

Pequena multidão na despedida a Carlos Paredes

FUNERAL ONTEM

Não foi uma grande multidão aquela que compareceu ao funeral do mestre. Na morte, como na vida, ele foi até ao fim o “gigante”, nobre e discreto, da nossa música. Os sons da sua guitarra perdurarão na nossa memória

Cerca de 500 pessoas acompanharam, ontem, Carlos Paredes, até à sua última morada, no Cemitério dos Prazeres, onde foi a enterrar o mestre da guitarra portuguesa, que faleceu no mesmo dia em que Amália Rodrigues nasceu. Duas referências maiores da música portuguesa irmanadas por esta coincidência.
            A tarde estava tórrida, mas mesmo antes do cortejo chegar a pé da Basílica da Estrela, onde o corpo do guitarrista esteve exposto em câmara ardente, houve quem aguentasse a pé firme a canícula. Joaquim Medeiros, 74 anos, reformado da CP e “alentejano”, como fez questão de frisar, estava à espera no cemitério há mais de duas horas mas não arredou pé. Nas mãos segurava um cravo vermelho. A seu lado, a mulher, tinha uma rosa, também vermelha. Foi assim que se despediram do guitarrista.
            Ao falar de Paredes a voz de Joaquim Medeiros – homem com muitas histórias para contar (além de reformado é também o presidente da Comissão de Utentes da Margem Esquerda do Guadiana) – incendiou-se: “Era um democrata e o que eu lamento neste país é que as pessoas, os grandes democratas, os grandes génios, os grandes talentos, só se fale no nome deles quando é da morte. De Paredes, na vida real pouco se falava dele, só meia dúzia de pessoas. Foi um génio, dos que aparecem de cem em cem anos. Devia dar-se mais valor aos grandes artistas. Trouxe o cravo porque ele também esteve com o 25 de Abril, esteve preso na ditadura de Salazar. É um estímulo.”
            No cemitério, e bem junto ao carro funerário, distinguiam-se as figuras de Carlos do Carmo e, a seu lado, do filho, Gil do Carmo. Estavam visivelmente emocionados. Caminhava-se em silêncio. A “explosão” aconteceu quando o carro parou e a urna foi retirada para o exterior – uma longa, longuíssima torrente de aplausos que só parou quando o padre disse as palavras de despedida. Todos sentiram, como Vera Rodrigues, 37 anos, professora, que “desapareceu um símbolo importante da música portuguesa”. Vera tem pena de não ter “conhecido pessoalmente” o mestre mas garante que jamais esquecerá a sua música, citando a importância de um álbum como “Movimento Perpétuo”: “É fantástico, aconselho toda a gente a comprá-lo!”
            Enquanto fala, as palmas não param. O elogio fúnebre destacou a “amizade” e a “ternura” cultivados pelo autor de “Verdes Anos”. Alguns estudantes ensaiavam baixinho uma canção de adeus ao mestre. “Há muitos anos que ouço a música do Paredes”, diz João Martins, 26 anos, engenheiro eletrotécnico, representante do Grupo de Fados Verdes Anos. “Mais do que ser portuguesa, património de qualquer tipo de expressão nacional, a música de Carlos Paredes tornou-se universal. É com muita pena que o vejo partir apesar de já não o podermos ouvir há mais de dez anos a tocar guitarra portuguesa.”

“Até amanhã camarada!”
O calor tornou-se quase insuportável, enquanto uma bruma escondia a visão do Tejo, para onde Paredes há-de ficar virado. As emoções soltaram-se ainda mais. Não é só o músico nem o homem que são recordados, mas também o cidadão com ideais de esquerda que foi Paredes. Alguém gritou: “Até amanhã camarada!”. “Até amanhã” repete outra voz, enquanto vários punhos fechados se erguem no ar em saudação.
            Marta Barata, 34 anos, “designer”, quis “prestar uma última homenagem a uma pessoa que foi uma referência muito grande da música portuguesa”. Em Paredes viu sempre “uma grande nobreza enquanto pessoa, com um grande espírito artístico”. Também alheio ao burburinho dos punhos erguidos, houve quem, chegado para um canto, vivesse outro tipo de recordações. Como Amílcar Nunes, 79 anos, geógrafo, ex-delegado de propaganda médica: “Conheci o Carlos Paredes durante muitos anos. Foi um amigo de longos anos, convivemos durante muito tempo, encontrávamo-nos com muita frequência e gostava imenso de ir aos concertos dele, mesmo antes do 25 de Abril. Lembro-me de o ver atuar em associações recreativas a acompanhar artistas que declamavam poesia. Toda a obra, toda a vida dele foi dedicada à música.”
            A pequena multidão foi dispersando. Deram-se os últimos beijos e abraços. David Ferreira, diretor da EMI – Valentim de Carvalho guardou um silêncio comovido enquanto Luísa Amaro, companheira dos últimos anos de Paredes, tentava com um sorriso tímido apagar as lágrimas que lhe marejavam os olhos. Rão Kyao, músico, traçou o último retrato do mestre da guitarra portuguesa. “O Carlos é um gigante da nossa música, uma influência muito grande, não só na música portuguesa, na atitude, um homem que nunca tocava nada que não fosse absolutamente sentido, que não passasse completamente pela parte anímica. Mudou a guitarra portuguesa. Foi ele que nos ensinou isso e nos pôs no nosso devido lugar em relação à música. É uma perda incalculável que é compensada por aquilo que a gente tem dele – as memórias e o que está gravado.”
            O local está então quase deserto e o silêncio e o calor pesavam mais do que nunca. Regressou-se pelo mesmo caminho e com uma ideia insistente a bailar, a de que Paredes foi maior do que alguma vez o conseguimos imaginar e mereceu sempre mais do que recebeu. Fica o silêncio, o mesmo silêncio alteroso e oceânico que clamava nas cordas da sua música.

Duke, um pintor de génio [Duke Ellington]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 24 JULHO 2004

Na celebração dos 30 anos da morte do compositor, três reedições mostram a arte maior de Duke Ellington.

Duke, um pintor de génio


Duke Ellington foi imperial. Teve uma visão e pô-la em prática com a convicção e magnitude de um deus. Deram-lhe uma orquestra e todo ele se transformou, usando-a como um instrumento, o mais completo de todos os instrumentos. O jazz de “big band” teve em Duke o seu maior inovador e embaixador. Impossível passar-lhe ao lado. Impossível escapar ao fascínio de uma música composta e tricotada ao pormenor, que tirava partido da mais ínfima “nuance” de cada interveniente da orquestra, retratando ao mesmo tempo o todo (o próprio Duke) e cada uma das partes.
            A sua discografia é vasta e impressionante, mas para comemorar os 30 anos sobre a sua morte, em 1974, a Sony lançou três “extended editions” correspondentes a obras dos anos 50: “Masterpieces by Ellington” (1951), “Ellington Uptown” (1952) e “Festival Session” (1959).
            Após várias tentativas falhadas para se impor, “The Duke” (de seu verdadeiro nome Edward Kennedy Ellington, o cognome foi-lhe posto no colégio) forma um pequeno “ensemble”, The Washingtonians, que toca regularmente no Kentucky Club. Aos poucos, o grupo expande-se até se tornar uma orquestra, cuja estrutura se manterá até ao fim. É contratado para tocar no Cotton Club, no Harlem, frequentado maioritariamente por brancos, mas em cujo palco passaram os maiores músicos negros. É aí que Duke Ellington desenvolve o seu estilo peculiar na utilização da orquestra, conferindo-lhe uma dimensão de cores justapostas, ora harmonicamente compatíveis ora contrastando numa dialética de opostos, das quais emergiam melodias invariavelmente límpidas. É um estilo expressionista que sugere e ao mesmo tempo ilustra, de “flashes” e grandes manchas, que começa, em termos evolutivos, no chamado “jungle style”, até chegar a uma panvisão globalizante e livre que chega a raiar o “free” (ouça-se a obra-prima “The Afro Eurasian Eclipse”, para se perceber até onde se estende a sua modernidade).
            “Ellington citou em dada altura George Gershwin, Stravinsky, Debussy e Respighi como os seus compositores preferidos, uma escolha significativa de nomes para nos lembrarmos, ao escutarmos a sua música. Ela dá a chave da essência que está na sua base: melodia, ritmo, delicadeza e cor”, escreve George Dale nas notas que acompanham (e explicam tudo bem explicadinho) “Masterpieces by Ellington”, a presente reedição, contendo arranjos de concerto de 1950, dos “Standards” “Mood indigo” e “Sophisticated lady”, mais “Solitude” e “The Tattoed bride”, com os temas-extra, composições de 1951, “Vagabonds”, de Juan Tizol, “Smada” e “Rock skippin’ at the Blue Note”, as duas últimas de parceria com Billy Strayorn.
            Esta cor é variada e pode ir da recuperação das raízes africanas até ao convívio com o “free jazz” (já perto do final de carreira, Duke convidou Archie Shepp para tocar a seu lado num concerto). Mas a personalidade do compositor, arranjador e dirigente de orquestra é tão forte que todas as músicas, cada elemento divergente ou assimétrico, é assimilado num todo inconfundível e pessoal. Duke Ellington celebra o mundo sem jamais deixar de ser igual a si próprio. Percorre os extremos, mantendo incólume o centro. Como diz Jean Wagner, em “O Guia do Jazz”: “Imaginemos um compositor clássico que tenha feito a sua estreia no tempo do gregoriano – existe todo um aspeto religioso na obra ellingtoniana – que tenha desabrochado no séc. XVIII e tenha terminado a sua carreira a ouvir atentamente Arnold Schoenberg.” Tal era a largueza de visão de Duke e, ao mesmo tempo, a sua firmeza.
            “Masterpieces by Ellington” beneficiou do facto de ser registado no então novo formato “long-playing”, permitindo ao compositor apresentar pela primeira vez em disco as versões extensas de alguns dos seus clássicos. “Mood indigo”, vocalizado por Yvonne Lanauze e com Billy Strayhorn no piano, destaca-se pelos extraordinários efeitos “wah-wah” no trombone, de Tyree Glenn, quase imitando a voz humana. Toda a construção é representativa do génio de Ellington. Em “Sophisticated lady”, o piano atonal e o clarinete baixo introduzem o tema, ímpar na sobreposição de ritmos e na explanação do ambiente, até a voz de Lanauze apresentar a melodia principal e o piano solar em cascata, ilustrando de forma exemplar a tal combinação de cores contrastantes que toda a música de Ellington evidencia, o mesmo acontecendo com o swingante e efusivo “The tattoed bride”, a tirar partido do máximo que o jogo de metais pode dar, e a balada introspetiva “Solitude”, supostamente escrita em 20 minutos no estúdio.
            “Take the ‘A’ train” (“scatado” a primor por Betty Roche e pianisticamente em levitação) é o tema mais conhecido de “Ellington Uptown”, num alinhamento que inclui três “suites”, “A tone parallel to Harlem (Harlem suite)” (quem disse que as mudanças constantes e abruptas eram exclusivo do rock progressivo?), “The controversial suite” e “The Liberian suite”, qualquer delas exemplo soberbo da arte arquitetural e da pintura paisagística de Duke Ellington. Os traços e o colorido são inconfundíveis, com as explosões e implosões, os gritos modulados, os lagos e oceanos que a cada instante se enchem e esvaziam.
            Favor usar proteção ao ouvir o solo de bateria no final de “Skin deep”. É como ser atropelado por uma locomotiva. Outro tipo de proteção é exigido sempre que se ouvir “The mooche”, tal a sensualidade no modo como Ellington dispõe as peças. Quase uma orgia que vai dos infravermelhos aos ultravioleta. Esta é uma música para se ouvir uma e outra vez, descobrindo-se em cada audição novos pormenores, apesar de, na essência, seguir modelos tradicionais.
            “Festival Session” soa mais aberto e “easy listening”, se quisermos, com Ellington a conceder outra respiração a solistas como Clark Terry (trompete), Johnny Hodges (sax alto) e Paul Gonsalves (sax tenor, magnífico em “Copout extension”). O álbum inclui ainda “Perdido”, do porto-riquenho Juan Tizol, duas pequenas “suites”, “Duael fuel” e “Idion’59”, “Things ain’t what they used to be” e dois inéditos, “V.I.P.’s boogie” e “Jam with Sam”. O jogo de timbres contrastantes é visível nos três movimentos de “Duael fuel”, com a bateria e os trompetes num jogo da apanhada e o piano de Ellington a servir de contraponto até chegar o clarinete de Jimmy Hamilton para desenhar por cima ainda outra melodia. Clarinete que volta a estar em destaque no mais sombrio “Idiom ‘59” bem como um sedutor solo (“o mais longo que alguma vez toquei com Ellington”, segundo Clark Terry) de flugelhorn.
            Tudo se conjuga na perfeição. Ellington, muito mais que “the piano player”, como gostava de se auto-intitular, era o grande jogador que manobrava a seu bel-prazer, valorizando cada parcela de modo a certificar a grandiosidade do todo, cada uma das vozes da orquestra. Três discos fundamentais.

Duke Ellington

Masterpieces by Ellington
9/10

Ellington Uptown
9/10

Festival Session
8/10

Todos Columbia, distri. Sony Music