DESTAQUE – CARLOS PAREDES 1925-2004
SÁBADO, 24 JUL 2004
MORREU O MESTRE DA GUITARRA PORTUGUESA
A guitarra deixou de tocar. Agora definitivamente. Carlos Paredes
partiu ontem de madrugada, deixando a alma portuguesa como um livro ao qual
arrancaram as páginas. Ficará a música, para sempre a tocar em movimento
perpétuo
Carlos Paredes morreu ontem, às
6h da madrugada, aos 79 anos, na Fundação-Lar Nossa Senhora da Saúde, em Lisboa,
onde vivia desde 1993, ano em que lhe foi diagnosticada uma mielopatia, doença
que lhe afetou os ossos e o impediu de continuar a tocar guitarra. O funeral realiza-se
hoje às 15h30, no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, ficando o corpo em câmara
ardente na Basílica da Estrela até uma hora antes de seguir para o cemitério.
Paredes
nasceu em Coimbra a 16 de Fevereiro de 1925. Das lições de violino e piano com que
se iniciou, em criança, na aprendizagem da música, passou às cordas dedilhadas e
à paixão que nunca deixaria de o consumir até ao fim da vida: a guitarra
portuguesa. Com o pai, Artur Paredes, aprendeu o estilo coimbrão e a raça desse
instrumento surgido em Inglaterra, mas tornado português por empatia. Carlos
Paredes deu à guitarra uma voz própria. Fê-la sua. Homem, guitarra e sonho
navegaram juntos e o fado transcenderam, junto às muralhas dos portos
interiores onde o grito e o sangue vibram por entre o nevoeiro, nas águas da
epopeia interrompida. O avô ensinara-o a “colocar os dedos”. O resto, “como não
há nada, é inventado pelo guitarrista”. Esse resto é tudo.
Durante
anos construiu na sombra o que já esqueceramos: a arte de ser português. Uma
natural modéstia e a permanente ausência de apoios oficiais impediram que a sua
arte alcançasse maior projeção no estrangeiro. Eterno exilado de si próprio,
chegou a dizer um dia que das suas mãos nunca poderia “sair nada de muito
importante”. O poder, sempre atento às inconfidências, aproveitou, tomando-o à
letra...
Influenciado
pela música de câmara da renascença e pelo fado de Coimbra, “músico popular
urbano” como a si próprio se definia, desenvolveu ao longo dos anos um estilo
pessoal que, a partir da tradição e apoiado no vigor de execução, se soube
elevar às alturas de uma portugalidade a um tempo sanguínea e lunar. O
contrabaixista Charlie Haden foi sensível à força e à capacidade de improvisação
de Paredes. Tocaram e trocaram juntos sons e ideias. Desse diálogo ficou para a
posteridade um disco, “Dialogues”, editado internacionalmente no selo Elektra
Nonesuch, um dos mais prestigiados da música contemporânea. Mais recentemente o
grupo de cordas Kronos Quartet integrou a música de Paredes no seu reportório.
Verdes anos
Da sua discografia principal constam
as seguintes obras: “Guitarra Portuguesa” (1967), “Movimento Perpétuo” (1971), “Concerto
em Frankfurt” (1983), “Invenções Livres” (1986), com António Vitorino de
Almeida, “Espelho de Sons” (1987) e “Dialogues” (1990), com Charlie Haden. Um
último e inacabado projeto, “Canção para Titi”, editado em 2000, inclui os derradeiros
inéditos. Fundamental é a antologia com a obra integral do autor, “O Mundo
segundo Carlos Paredes”, publicada o ano passado.
Compôs
as bandas sonoras dos filmes de Paulo Rocha, “Verdes Anos”, imortalizado pela
genial composição do mesmo nome, e “Mudar de Vida”; mais recentemente trabalhou
com Manoel de Oliveira e José Fonseca e Costa. Colaborou com o Grupo de Teatro
de Campolide e com o Teatro Nacional D. Maria II. Dos seus trabalhos destaca-se
ainda a partitura para uma coreografia do Ballet Gulbenkian, “Danças para Uma
Guitarra”. Alain Jomy, autor da música dos filmes “O Lugar do Morto” e “Aqui
d’El Rey”, de António-Pedro Vasconcelos, realizou o documentário “Pour Don Carlos”,
centrado na relação da música de Paredes com a cidade de Lisboa.
Tocou
ao vivo na Aula Magna com os Madredeus, em 1991, acompanhado pela guitarrista
Luísa Amaro, com quem partilhou os últimos anos de vida. Carlos Paredes tocou
ao vivo, em Maio de 1991, na Aula Magna, com os Madredeus, acompanhado pela guitarra
de Luísa Amaro. Em Março de 1992, aconteceu finalmente a homenagem, num espetáculo
realizado na Aula Magna em Lisboa, e posteriormente apresentado na televisão.
Participaram Luísa Amaro, Fernando Alvim, Rui Veloso, Mário Laginha, Natália
Casanova, Paulo Curado e os bailarinos Ofélia Cardoso e Francisco Pedro. O
derradeiro concerto teve lugar na Aula Magna, em Lisboa, em 1993.
Guardamos
de Carlos Paredes a imagem da sua figura dobrada sobre a guitarra, como que
querendo confundir-se com ela. Conseguiu-o, transcendendo deste modo o fado, o
nosso, o dele, o da guitarra: “Para defender um instrumento, a única forma possível
é criar uma escola. Se as pessoas souberem utilizá-lo convenientemente, guardam-no.
Caso contrário, esquecem-no.” A frase, por estranho que pareça, aplicou-se
durante muitos anos à sua vida.
Negros anos
Com o desaparecimento de Carlos
Paredes é uma parte de nós todos, como nação e como povo, que se perde. Acostumados
que estávamos à sua figura e à sua maneira tímida de ser e de nos dizer com a
guitarra o que somos e como somos, impregnados até ao fundo da sua música, habituámo-nos
a não reparar nele, a deixar andar, a repetir frases de ocasião como “génio da
guitarra portuguesa” e “alma do fado”. Como se isso fosse suficiente, e é
sempre, como moeda de troca, e nos deixasse tranquilos com a nossa consciência.
Escolhemos embalarmo-nos na nossa mediocridade morna e esquecermo-nos que o
“génio” e a “alma” se foi gastando, durante anos a arrumar fichas de radiologia
no Hospital de S. José, onde trabalhou durante quase toda a vida.
Carlos
Paredes fez da música e da guitarra portuguesa a sua vida. À esquerda e à
direita, a “inteligentsia” reivindicava-o como herói da sua causa. Foi vê-lo (a
ele e a outros) atuar de graça por esse país fora, no rodopio do pós-25 de
Abril, a cantar a “liberdade” e a “justiça”, em nome de partidos com poucos
escrúpulos. Estava encontrado, com despesas reduzidas de manutenção, o
“embaixador” do nosso fado e dos valores tradicionais ou o “porta-voz” das
classes desfavorecidas na luta pelos amanhãs que cantam, conforme o exigiam a
ocasião e os interesses em causa. Ele existia e tocava, tocava sempre, e isso bastava-lhe.
Agora
que Carlos Paredes não voltará a abraçar-se como a uma amante à sua guitarra, que
jamais nos transportará até essa ilha de amores dos “Verdes Anos”, agora que as
cordas se silenciaram por fim desobrigadas do jugo terno dos seus dedos, vamos
sentir por fim a sua falta, imitar os esgares da saudade e lavrar-lhe em ata
mil louvores destinados à poeira dos arquivos. Fica a obra.
Carlos
Paredes, como Amália, como Camões, como Pessoa, foi, é português, e desse ser
português se ofereceu em arte, se esvaziou de vida por amor a quem lhe
retribuiu durante anos com palmadinhas nas costas. Sobre a sua própria música
Paredes foi lapidar: “Comove sem fazer chorar.”
“Quando o Carlinhos aparecia para tocar,
era um deus”
Paredes transcendeu o fado. Se Amália foi a alma, Paredes foi o
espírito. A sua música exprimia o fogo e a liberdade. A entrega e o transe
“Carlos Paredes era de uma
dimensão muito difícil de definir. O Carlos vagueava no espaço, um ser etéreo.
Ele não estava cá, estava para além e acima de nós. Pairava no espaço. Quando o
Carlinhos aparecia para tocar, era um deus”. Foi assim que Luiz Goes, mestre do
fado coimbrão e um dos primeiros músicos a tocar com Paredes, definiu a
personalidade musical e humana do autor de “Verdes Anos”.
A
música deste “ser etéreo” que parecia pairar no espaço enquanto tocava,
queima-nos como uma chama, lançando-nos de forma lancinante para o âmago de uma
solidão partilhada com muito poucos. Uma chama que brilhou entre 1958 e 1993,
por 35 anos de carreira em que Paredes deixou bem vincada a sua arte, apesar de
uma discografia de originais relativamente escassa. A primeira fase é marcada
pelo fado de Coimbra e são já visíveis os sinais de génio que se vislumbram no
EP “Carlos Paredes” de 1962. A forma como Paredes desenvolvia as melodias, em
rapsódia, entram em conflito com os dogmas da guitarra.
Hugo
Ribeiro, engenheiro de som presente em inúmeras gravações, ao ouvi-lo pela
primeira vez, comentou: “Ninguém tocava daquela maneira.”
“Guitarra
Portuguesa” (1967) é o álbum de estreia e um marco da música portuguesa. Nele
cruzam-se a música tradicional, da Idade Média e da Renascença. Paredes
encontrara na guitarra de Fernando Alvim o seu parceiro ideal e os dois parecem
dançar na forma como as cordas se entrelaçam num destino comum. Alguns segredos
técnicos ajudaram a criar esta obra-prima. Recordava Hugo Ribeiro: “O Paredes
não custava nada gravar. A grande dificuldade era conseguir ouvir a guitarra
através dos altifalantes e da aparelhagem como se estivesse a um metro de
distância. Eu procurava ouvir a guitarra através do microfone do ‘ponto de
vista’ dos meus ouvidos em relação ao instrumento. Acabei por arranjar uma
solução: fui vendo onde ouvia bem a guitarra, o que era já muito longe de
Paredes. E pus lá um microfone.”
“Movimento
Perpétuo”, de 1971, é outro clássico. É o álbum em que a veia improvisadora de
Paredes se sedimenta num estilo reconhecível, feito de reminiscências de frases
antigas projetadas, paradoxalmente, de acordo com um desejo de superação e
descoberta constantes. “Quando entrávamos para estúdio”, segundo Hugo Ribeiro,
“o Paredes dizia sempre que íamos fazer experiências, nunca era para gravar.
‘Vamos ver, se calhar, talvez...’, dizia ele, e ficávamos sempre em suspenso. O
Paredes tocava por ali fora e no outro dia vinha ouvir. E depois dizia-me: ‘Oh
Ribeiro, você tinha razão! Aquilo ficou bem!’ Ele entusiasmava-se a tocar.
Aquela força anímica era fenomenal.”
Em
“Na Corrente”, gravado em 1973, Carlos Paredes reformula alguns temas para
inclusão nos posteriores, “Concerto em Frankfurt e “Espelho de Sons”, bem como
para uma edição exclusiva alemã, “O Oiro e o Trigo”. “É Preciso Um País”
(1975), com poemas e voz de Manuel Alegre, e “Que Nunca Mais” (1975), de
Adriano Correia de Oliveira, são aventuras mais ou menos marginais no movimento
de Paredes.
A
gravação ao vivo de 1982, na Ópera de Frankfurt, que deu origem a “Concerto em
Frankfurt”, foi feita sem o conhecimento de Paredes, para não o enervar, e nele
encontramos um músico em que a tristeza substituíra já a melancolia romântica e
o poder de afirmação de “Guitarra Portuguesa”. É fado, escuridão a escorrer da
guitarra. Paredes tocando como se adivinhasse já um desfecho trágico, numa luta
titânica contra a tirania das notas, magoando-as porque elas o magoavam. Com o
piano de António Victorino d’Almeida fez “Invenções Livres” (1986). Desse
encontro, surgido como consequência do interesse manifestado por Paredes em
encontrar pontes com outras músicas, resultou acima de tudo, a evidência de
duas visões divergentes da música. Paredes tocava voltado para dentro,
Victorino d’Almeida voltado para fora. As cascatas de piano afogaram a
guitarra. E Paredes exigia, sem querer, subserviência.
Em
“Espelho de Sons” (1987) descobre-se o guitarrista na sua melhor forma,
conquistando a música um domínio de si que se estende às mais ínfimas
“nuances”. Paredes tornara-se senhor do seu destino enquanto músico. Sente-se a
lucidez, a visão e a sabedoria do que antes era intuição. A tragédia é
integrada num patamar de existência superior.
Charlie
Haden, nome histórico do contrabaixo no jazz, tentou caminhar ao lado de
Paredes em “Dialogues”. O contrabaixista cedeu ao guitarrista o maior espaço
possível do alinhamento, remetendo-se a um papel discreto. A improvisação,
segundo Paredes, não segue os parâmetros do jazz. Diante da guitarra ergue-se
um espelho. Onde se reflete o mundo, mas só à sua imagem. Já fraco e nas mãos
da doença, “Canção para Titi”, de 2000, sobrevive finalmente como testemunho
pungente de uma arte que procurou – e conseguiu – redimir o mundo da dor.
DISCOGRAFIA EM ÁLBUNS
>
Guitarra Portuguesa (1967)
>
Meu País-Canções (de Cecília Melo, 1970)
>
Movimento Perpétuo (1971)
>
É Preciso Um País (com Manuel Alegre, 1975)
>
Que Nunca Mais (de Adriano Correia de Oliveira, 1975)
>
Concerto em Frankfurt (1983)
>
Invenções Livres (com António Victorino d’Almeida, 1986)
>
Espelho de Sons (1988)
>
Carlos Paredes/Artur Paredes (com Artur Paredes, 1988)
>
Dialogues (com Charlie Haden, 1990)
>
Na Corrente (1996)
>
Canção para Titi - Os Inéditos (2000)