O coração batia-lhe ruidosamente no peito e ele perguntou: quem está aí? – Boris Vian
A igreja lotada no domingo, mais do que era de costume. Do púlpito o padre olhou a todos, preparando-se para mais uma pregação. Era muito cedo, e sentia-se cansado. A noite fora cercada de pesadelos nefastos com anjos e demônios disputando o cetro de Deus. Ele acordara ao sentir o peso de um corpo caindo sobre si. Era um demônio, e sorria para ele como velho conhecido. Ao olhar para a sua comunidade sentiu náuseas – mulheres, crianças sonolentas, homens velhos e solitários, as almas de toda uma vida. Revisou os escritos daquela manhã, noite ainda, e teve a certeza de que nenhuma daquelas palavras serviria. Procurou alguma coisa dentro de si mesmo que lhe desse conforto. Tinha perdido a fé, e quem não pode confortar a si mesmo, pouco tem a dizer para o conforto dos demais. Lembrou da releitura recente de Montaigne, o trecho Da Fisionomia, em que o pensador afirma que todos vão para outro lugar e rumo ao futuro, mas que ninguém chega a si mesmo. Olhou para a abóbada uma última vez procurando um ponto de apoio naquelas imagens, um sinal talvez, mas não havia nada. De repente, sua voz se ergueu com decisão:
“Homens e mulheres, este é o nosso último encontro nesta Igreja. A partir de hoje eu não represento mais aquele a quem vocês chamam de Deus Nosso Senhor”.
Poucas pessoas tinham começado realmente a ouvir o que o padre estava dizendo e o espanto delas chamou a atenção das demais. Depois de uma longa pausa, o padre prosseguiu:
“Eu sou um homem sem Fé e trago comigo, para mim, uma nova convicção”.
A onda de cabeças movendo-se para lá e para cá sentenciava, aturdida, a desgraça daquele homem. Talvez por curiosidade humana, que comumente prevale sobre as suas demais necessidades, o burburinho repentinamente se apaziguou em silêncio profundo:
“Eu decidi partir para encontrar algo de mim que perdi em algum lugar, seja o que for, ainda é importante para mim. Eu devo usar o tempo que me resta para acercar-me de mim mesmo. Eu sou o meu único princípio e fim e assim me coloco diante do mundo. Mesmo que no livro de Jeremias esteja escrito: maldito é o homem que confia no homem. Mesmo que eu habite no deserto.”
Algumas pessoas começaram a se levantar e ir embora de forma a proteger seus filhos e senhoras idosas, lentamente, saiam pela imensa entrada da Igreja. No meio da multidão que se erguia em sons de escândalo e vergonha um homem perguntou:
“Padre, qual foi o nosso pecado?”.
O padre procurou em vão a voz. Sentia a mão do demônio que o acordara naquela manhã segurando o seu ombro. A roupa lhe pesava ainda mais e seu corpo suava como se se esforçasse para erguer uma cruz pesada demais, mesmo para o mais santo dos homens.
“O medo foi o vosso maior amigo. Cristo, em seu martírio, suplicou a Deus Pai que os perdoasse, por vocês, supostamente, não saberem o que fazem. Pois eu lhes digo, vocês jamais saberão quem são. E procurando fora de si dão oportunidade para uma vida fora de si. Eu digo que cada homem, de algum modo, venha de onde for, vá para onde for, está certo“.
Dito isso, cerrou seus olhos, e desceu do púlpito despindo-se das vestes sacramentais. Tornou-se homem comum novamente e como homem morreu um dia, depois de uma longa vida. Levava para o túmulo o seu próprio demônio. Se descobriu ou não quem ele era, esta é uma resposta dada apenas a um homem de cada vez, porque está escrito no coração do destino que apenas o homem pode ler a própria alma sem cometer um único erro.
Bratz Elian
enfim! é o que tem pra hoje...