O autocarro segue apinhado de gente e as conversas entre os passageiros passam por mim. Fala-se alto e sem nenhuma reserva porque se supõe que mais ninguém as escuta, a cacafonia geral provoca a sensação que é pouco provável que alguém em particular os consiga escutar. Endireito as minhas costas nas costas do banco, recosto-me devagar, inclino a cabeça para trás e respiro fundo. Deixo as pálpebras descerem como asas de borboletas leves e lentas , como se estivesse a dormitar. Soltam-se gargalhadas longínquas, outras bem próximas.
De repente, eis que:
- ...Sua Santidade, o Papa?! santidade em quê?!
- O Papa representa Deus naTerra!
- Sou ... mas...( as vozes vão para longe, a curva aperta o transporte e o guincho é explosivo) ... representa? Papa nenhum representa Deus!
- Ai não?
- Os Papas de todos os tempos, são homens, apenas isso, homens, como nós ligados à hierarquia da igreja e ao poder ( as vozes aproximam-se e afastam-se, diluem-se por entre os outros sons).
E chegam novos protagonistas:
- ...eles sabem lá o que é o amor!
- Se eles casaram devem saber o que é o amor...
- Não é a celebração que dita o bom estado da relação. É a forma como se dão um ao outro...
- E então?
- Então? a grande maioria desconhece o que é amarem-se um ao outro. Veja bem, o amor não existe. Há ódio, há dor, amor não!
- Que barbaridade é essa? !
- Ah! A verdade é que uma barbaridade? Onde é que vê amor? A observar pelo aumento dos divórcios, de casais que coabitam sob o mesmo teto ou até casados e discutem como doidos, marido e mulher e a violência doméstica? sem falar no resto da família...filhos, irmãos, tios, avós. .. lembre-se do tempo em que toda a gente foi obrigada a ficar trancada em casa. Uma oportunidade rara e única para estarem juntos e que sucedeu?!
- O confinamento correu mal, porque as pessoas ficaram asfixiadas!
- Mas antes queixavam-se da falta de tempo, não havia maneira de se reunir!
- Foi uma situação atípica!
- Muito mal aproveitada, porque lamuriavam-se da distância, dos horários desencontrados mas afinal até gostavam do afastamento, não tinham coragem para admitir! E isto é amor? Repito, não existe amor , nem respeito... os bons sentimentos estão mortos e ninguém ousa abrir a boca para falar a verdade. Preferem acreditar no engano, na ilusão, na mentira que criaram e isto é à escala global!
- O senhor parece um filósofo, padre não! Os padres acreditam no amor...
De novo uma travagem ensurdecedora e acontece uma pausa entre os dois homens.
Neste vai vem de conversas vem ter comigo outra:
- ... essa mulher é o diabo em trajes de gente, ardilosa, uma raposa manhosa.
- E mais, perigosa, a especialidade dela são as tramóias. Acende a fogueira e fica a delirar com os efeitos provocados...
- É isso mesmo!
- Arma as confusões e veste o papel de ingénua, de inocente e mete os outros uns contra os outros!
-Pois, um dia a casa vem a baixo! Um dia ela prova um pouco do próprio veneno que destilou.
- Qual veneno? Aos anos que continua a fazer das dela e vive bem.
- E paz reina naquela casa? Não! E os outros da família são muito semelhantes....
- Lume perto da estaca... o contágio.
- Uma mão lava a outra...
- Uma mão é tão suja quanto a outra. ..
Outra guinada e o carro corre veloz pela estrada adentro, abro o olho para espreitar onde me encontro.
Torno a cerrar as pálpebras, de repente :
-... São novinhas e já tão mal educadas!
- Atenção ao que disse!
- O quê?
- Novas e mal educadas!
- Que tem?
- A má educação vem de onde?
- De casa!
- Do meio familiar. A sociedade é composta por essa massa de gente!
- Por essa razão a nossa sociedade é o que é! E está a mudar sempre para muito pior!
- Eles e elas! Agora é tudo igual!
- Repare, passam a vida a alisar os cabelos, lá em casa observo dessa qualidade! O telemóvel não lhes sai das mãos, as tarefas caseiras não é com elas...
- Eu sei que é! O meu filho é um perdido pelos jogos, é um homem e é pai... e o meu neto segue as mesmas pégadas.
- Vê como o exemplo vem sempre de dentro de casa!
Repentinamente, deixo de os escutar após uma paragem. Talvez tenham saído. Atrás de mim senta-se alguém, uma pessoa já lá estava, de seguida, percebo que são duas mulheres a cumprimentarem-se ruidosamente, os beijos repenicados nas bochechas, snobes, falam muito alto das vidas pomposas, das viagens por ocasiões festivas, uma delas demonstra irritação por ter de se deslocar de transporte público, o carro infelizmente encontra-se em reparação, a outra habitualmente é transportada pelo marido, que naquela altura foi a Espanha, em trabalho. Tagarelam tão alto que as outras vozes se calam, a certa altura, após um espasmo violento do motor, escuto:
- Olha, quando fui a Sintra, a semana passada não imaginas com quem me cruzei?!
- Não faço ideia!
- O André Casal!
- Encontraste o André, o teu ex !? Afinal o mundo é pequeno! Acompanhado?
O tom baixa consideravelmente, como estão muito próximas de mim, ouço nitidamente, talvez se tivessem esquecido desse pormenor:
- Sim, estava acompanhado de outra!
- Conheces a outra?
- Não sei, parece alguém que já vi... talvez da TV, muito rococó! Mais uma vítima como eu. Os homens pertencem todos à mesma estirpe, quando namoram com uma mulher mais nova, salivam, eles, uns velhotes reciclados, mal reciclados ainda por cima, tornam-se parvinhos, tontinhos mesmo. Conheces outra espécie, mais estúpida que a humana? - duplos risos
- Tu ainda és nova cherie, e estás aí para muito, tens o belo Miguel!
- O Miguel é um cafezinho morno ... atraio homens errados...
- O André era um café forte?
- Ui se era, apesar de muito mais velho. Primeiro conheci um cavalheiro, depois revelou-se um grande velhaco deu-me cabo da auto estima, maldito poeta! Sem sentimentos nenhuns, fui parva, criei a ilusão como imensa gente de que são seres especiais. Qual quê, puro teatro, uns fingidos! Tudo se resume a dinheiro, fama e glória! E quem pensa o contrário, desengane-se! Alguns nem sequer demonstram qualquer talento para as artes...mas escolheram os amiguinhos que lhes vão facilitar esse passo, por intermédio das pessoas certas, surgem em programas de TV, é meio caminho percorrido, a seguir, a comunicação social encarrega-se do resto:
- Tu conheceste muita gente do meio naquela altura, chegaste a comentar comigo sobre isso.
- Lembro-me de ter chorado no teu ombro!
- Tempos que já lá vão, cherie!
- Eu e o André viajamos juntos, trabalhamos e convivemos e a conclusão que eu chego hoje é que não existe nenhum fundo de verdade naquelas palavras, nem naquelas bocas banais e mentirosas, qual amor? qual parceria? Traidor e até me chegou a bater! São completamente diferentes das letras das músicas que compõem. O André dedicou-me poemas, depois soube de fonte certa que entre amigos homens não perdia oportunidade de me enxovalhar com piadas porcas, puxou-me o tapete, invejou-me e invejou amigos, falava mal de mim e fazia o mesmo aos amigos
- Quanta mágoa, cherie...
- Não sei se é mágoa, penso que não, revolta sim, do que qualquer outra coisa. Perdi muito tempo na companhia do estafermo. No fim da relação, só me tratava por palavrões , boca podre.
- A chatice é idolatrar, a cegueira faz mal. Endeusar, jamais!
- Isso foi a minha loucura, a minha perdição!
- Afinal o André nem é um poeta como convém.
- Ele desejava copiar os passos do pai, esse sim, escrevia divinamente, ele não, nunca.
- Talvez a tua vida pudesse ser diferente, se me desses uma chance...
- Lá vens tu outra vez com essa conversa... sempre te vi como amiga e conselheira.
- Podíamos ter tentado...
- Sabes que gosto imenso de ti mas não da maneira que gostarias.
- Respeito a tua vontade! Nunca agi de forma a te separar do teu marido, nem te forcei a nada, nem te convenci de nada.
- Gostaria que encontrasses uma mulher bonita como tu e te apaixonasses a sério por ela e ela por ti, tu mereces muito ser amada.
De seguida cumprimentaram-se da mesma forma snob e cheia mimices, uma delas saiu, a outra logo a seguir, eu continuei viagem.
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