terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Viagem IV

 O autocarro segue  apinhado de gente e  as conversas entre os passageiros passam por mim. Fala-se alto e sem nenhuma reserva porque se supõe  que mais ninguém as  escuta, a  cacafonia geral  provoca a sensação que é pouco provável que alguém em particular os consiga escutar. Endireito as minhas costas nas costas do banco, recosto-me devagar, inclino a cabeça para trás e respiro fundo. Deixo as pálpebras descerem como asas de borboletas  leves e lentas , como se estivesse a dormitar.  Soltam-se gargalhadas longínquas, outras bem próximas. 

De repente, eis que: 

- ...Sua Santidade, o Papa?! santidade em quê?! 

- O Papa representa Deus naTerra! 

- Sou ... mas...( as vozes vão  para longe, a curva aperta o transporte e o guincho é explosivo) ... representa? Papa nenhum representa Deus!

- Ai não? 

- Os Papas de todos os tempos, são homens, apenas isso, homens, como nós  ligados à hierarquia da igreja e ao poder ( as vozes aproximam-se e afastam-se, diluem-se por entre os outros sons).

E chegam novos protagonistas: 

- ...eles sabem lá o que é o amor! 

- Se eles casaram devem saber o que é o amor... 

- Não é a celebração que dita o bom estado da relação. É a forma como se dão um ao outro...

- E então? 

-  Então? a grande maioria desconhece o que é amarem-se um  ao outro. Veja bem, o amor não existe. Há ódio, há dor, amor não! 

- Que barbaridade é essa? ! 

- Ah! A verdade é que uma barbaridade? Onde é que vê  amor? A observar pelo aumento dos  divórcios,  de casais que coabitam sob o mesmo teto ou até  casados e discutem como doidos, marido e mulher e  a  violência doméstica?  sem falar no resto da família...filhos, irmãos, tios, avós. .. lembre-se do tempo em que toda a gente foi obrigada a ficar trancada em casa. Uma oportunidade rara e única para estarem juntos e que sucedeu?! 

- O confinamento correu mal, porque as pessoas ficaram asfixiadas!

- Mas antes queixavam-se da falta de tempo, não havia maneira de se reunir! 

- Foi uma situação atípica! 

- Muito mal aproveitada,  porque lamuriavam-se da distância, dos horários desencontrados mas afinal  até gostavam do afastamento,  não  tinham coragem para admitir! E isto é amor? Repito, não existe amor ,  nem respeito... os bons sentimentos estão mortos e ninguém ousa abrir a boca para falar a verdade. Preferem acreditar no engano, na ilusão, na mentira que criaram e isto é  à  escala global! 

- O senhor  parece um filósofo,  padre não! Os padres acreditam no amor...

De novo uma travagem ensurdecedora e  acontece uma pausa entre os dois homens.  

Neste vai vem de conversas vem ter comigo outra:

- ... essa mulher é o diabo em trajes de gente, ardilosa, uma raposa manhosa. 

- E mais, perigosa, a especialidade  dela são as tramóias.  Acende a fogueira e fica a delirar com os efeitos provocados... 

- É isso mesmo! 

- Arma as confusões e veste o papel de ingénua,  de inocente e mete os outros uns contra os outros! 

-Pois, um dia a casa vem a baixo! Um dia ela prova um pouco do próprio veneno que destilou. 

- Qual veneno? Aos anos que continua a fazer das dela e vive bem. 

- E paz reina naquela casa? Não!  E os outros da família  são muito semelhantes....

- Lume perto da estaca... o contágio. 

- Uma mão lava a outra... 

- Uma mão é tão suja quanto a outra. ..

Outra guinada e o carro corre  veloz pela estrada adentro, abro o olho para espreitar onde me encontro. 

Torno a cerrar as pálpebras, de repente :

-... São novinhas e já tão mal educadas!

- Atenção ao que disse! 

- O quê? 

- Novas e mal educadas! 

- Que tem? 

- A má educação vem de onde? 

- De casa! 

- Do meio familiar. A sociedade é composta por essa massa de gente! 

- Por essa razão a nossa sociedade é o que é! E está a mudar sempre  para  muito pior! 

- Eles e elas! Agora é tudo igual! 

- Repare, passam a vida a alisar os cabelos, lá em casa observo dessa qualidade! O telemóvel não lhes sai das mãos, as tarefas caseiras não é com elas...

- Eu sei que é! O meu filho é um perdido pelos jogos, é um homem e é pai... e o meu neto segue as mesmas pégadas. 

- Vê como o exemplo vem sempre de dentro de casa! 

Repentinamente,  deixo de os escutar após uma paragem. Talvez tenham saído.  Atrás de mim senta-se alguém,  uma pessoa  já lá estava,  de seguida, percebo que são duas mulheres a cumprimentarem-se ruidosamente, os beijos repenicados nas bochechas,  snobes, falam muito alto das vidas pomposas, das viagens por ocasiões  festivas, uma delas  demonstra irritação por ter de se deslocar de transporte público, o carro infelizmente encontra-se em reparação,  a outra habitualmente  é transportada pelo marido, que naquela altura foi a Espanha,  em trabalho. Tagarelam tão alto que as outras vozes se calam, a certa altura, após um espasmo violento do motor, escuto:

- Olha, quando fui a Sintra, a semana passada não imaginas  com quem me cruzei?!

- Não faço ideia! 

- O André  Casal! 

- Encontraste o André, o teu ex !? Afinal o mundo é pequeno! Acompanhado? 

O tom  baixa consideravelmente,  como estão muito próximas de mim, ouço  nitidamente, talvez se tivessem esquecido desse pormenor:

- Sim, estava acompanhado de outra! 

- Conheces a outra? 

- Não sei, parece alguém que  já vi... talvez da TV, muito rococó! Mais uma vítima como eu.  Os homens pertencem todos à mesma estirpe,  quando namoram com uma mulher mais nova, salivam, eles, uns velhotes reciclados,  mal reciclados ainda por cima, tornam-se parvinhos, tontinhos mesmo. Conheces outra espécie, mais estúpida que a humana? - duplos  risos 

- Tu ainda  és nova cherie, e estás aí para muito, tens o  belo Miguel! 

- O Miguel é um cafezinho morno  ... atraio homens errados...

- O André era um café forte? 

- Ui se era, apesar de muito mais velho. Primeiro conheci um cavalheiro, depois revelou-se um  grande velhaco deu-me cabo da auto estima, maldito poeta!  Sem sentimentos nenhuns,  fui  parva,  criei a ilusão como imensa gente de que são seres especiais. Qual quê,  puro teatro, uns fingidos! Tudo se resume a dinheiro, fama e glória! E quem pensa o contrário, desengane-se! Alguns nem sequer  demonstram qualquer talento para as artes...mas escolheram os amiguinhos que lhes vão facilitar esse passo, por intermédio das pessoas certas, surgem em programas de TV, é meio caminho percorrido, a seguir, a comunicação social encarrega-se do resto:

- Tu conheceste muita gente do meio naquela altura, chegaste a comentar comigo sobre isso. 

- Lembro-me  de ter chorado no teu ombro! 

- Tempos que já  lá vão,  cherie! 

- Eu e o André  viajamos juntos,   trabalhamos e convivemos e a conclusão que eu chego hoje é que não existe nenhum fundo de verdade naquelas palavras, nem naquelas bocas banais e mentirosas, qual amor? qual parceria? Traidor e até me chegou a bater!  São completamente  diferentes das letras das músicas que compõem. O André dedicou-me poemas, depois soube de fonte certa que entre amigos homens não perdia oportunidade de  me enxovalhar com piadas porcas, puxou-me o tapete, invejou-me e invejou  amigos, falava mal de mim e fazia o mesmo aos amigos

- Quanta mágoa,  cherie...

- Não sei se é mágoa, penso que não, revolta sim, do que  qualquer outra coisa. Perdi muito tempo na companhia do estafermo. No fim da relação,  só me  tratava por  palavrões , boca podre.

- A chatice é idolatrar, a cegueira faz mal. Endeusar, jamais! 

- Isso foi a minha loucura, a minha perdição! 

- Afinal o André  nem é um poeta como convém. 

- Ele  desejava copiar os passos do pai,  esse sim, escrevia divinamente, ele  não, nunca. 

-  Talvez a tua vida pudesse ser diferente, se me desses uma chance...

- Lá vens tu outra vez  com essa conversa... sempre te vi como amiga e conselheira. 

- Podíamos ter tentado...

- Sabes que gosto imenso de ti mas não da maneira  que gostarias. 

- Respeito a tua vontade! Nunca agi de forma a te separar do teu marido, nem te forcei a nada, nem te convenci de nada. 

- Gostaria que encontrasses uma mulher bonita como tu e te apaixonasses a sério por ela e ela por ti,   tu mereces muito ser amada. 

De seguida cumprimentaram-se da mesma forma snob e cheia mimices, uma delas saiu, a outra logo a seguir,  eu continuei  viagem. 


 





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