Era o ano de dois mil e cinquenta, uma segunda feira, em que o meu navio naufragou. Mergulhei no mar e fui dar a uma praia deserta.
Mal supunha eu que a vida me tinha concedido a dádiva de ser eu o mensageiro daquela visão de ilha, situada entre o Atlântico e o Índico. Um autêntico baluarte quase inacessível, onde encontrei uma nova forma de vida.
A nobre gente indígena acolheu-me e graças à hospitalidade deste povo sobrevivi e recuperei para voltar a escrever o meu diário de bordo.
O meu assombro foi maior quando conheci o rei. Um homem cortês e amigável, de fino trato e tolerante.
O monarca e dois fidalgos solicitaram a minha presença para acompanhá-los numa visita ao reino. Julguei-me a sonhar.
Vi ruas limpas, um asseio que não imaginei ser possível. Os ecopontos a brilharem de tão frescos. O lixo depositado nos sítios correctos e sem melgas à volta. Os jardins viçosos e sem pó. Os automóveis circulavam a uma velocidade razoável e sem manobras perigosas.
Depois conduziu-me a uma escola, das muitas que havia no seu reino. Assim que entrei o rei fez questão de sublinhar que as crianças brincavam livremente no recreio. Fiquei mudo e pisquei os olhos para ter a certeza de que não se tratava de um delírio meu. Elas corriam em debandada mas não se agrediam umas às outras. Eu habituado a cenas de pugilismo entre garotos comovi-me com a forma doce com que se tratavam.
Quando lhe falei em aulas de substituição, porque àquela hora os meninos deveriam estar ocupados e mantidos em salas de aula. O rei questionou-me acerca do significado das mesmas. Tentei dar uma justificação sucinta e a mais elucidativa possível. O monarca cofiou a barba e riu-se dizendo que as crianças precisavam brincar, saltar, correr…encantar-se, desencantar-se e sobretudo gastar as energias acumuladas. Segundo as suas palavras, a criança tinha de ser criança. Após uma breve pausa ainda acrescentou:
- Elas precisam de muito colo, de regras precisas e autonomia.
- Mas então o muito colo não estraga a autonomia e as regras? – Lembro-me de ter perguntado.
- Não meu amigo, é precisamente o contrário. Sem colo não existe autonomia. Uma criança amada tem mais sucesso que uma carente. – e continuou - os animais é que são amarrados a uma estaca. E às vezes deviam ser livres porque também pertencem à natureza.
Depois proferiu num tom pensativo que nas suas escolas havia regras precisas. Qualquer pupilo tinha direito a três tentativas, à terceira nunca falhavam. Se por uma fatalidade o educando não se corrigisse os progenitores teriam de se responsabilizar pelo caso.
Haviam casos esporádicos de mau comportamento. Nestas alturas o facto era endereçado imediatamente ao Tribunal de Menores. A escola terminava aqui a sua actuação. O Ensino Especial tinha sido criado para alunos com dificuldades de aprendizagem. Não se aceitavam discentes preguiçosos ou mal educados.
O rei na sua bonomia comentava que a escola não se podia transformar num depósito de “resíduos” de qualquer ordem. A escola proporcionava a instrução, a família a educação. A escola tinha de ser apoiada por outras instituições e associações a ela agregadas para auxiliar em situações mais complexas. Os mestres não podiam resolver assuntos que não eram da sua competência ou tutela.
E sobretudo vincou o facto de pais e professores estarem unidos pela mesma causa. Um futuro digno e mais feliz para todos. Pais, filhos, educadores e todos os que tornam possível o aperfeiçoamento da sociedade.
Ainda o questionei sobre o tal “ranking “, se não havia competição entre as escolas por causa dos resultados escolares dos alunos. O rei refutou que no seu reino as escolas andavam demasiado concentradas no seu trabalho, empenhadas no seu próprio sucesso que nem se lembravam disso. Logicamente os resultados seriam diferentes. No entanto havia apenas a preocupação de fazer mais e melhor com grande qualidade sem recorrer a truques de magia.
Interroguei-o acerca dos programas? O rei não demorou a dizer que isso pertencia aos próprios mestres. Eram homens peritos. Conheciam a realidade dos seus pupilos e por isso faziam os programas adaptados à realidade daquele reino. Valorizavam o conhecimento profundo de tudo o que existia e estabeleciam metas.
Quis saber do abandono escolar, o rei acrescentou que eu deveria vir de um mundo estranho. Ali, quase não havia abandono escolar. Os pupilos frequentavam a escola por gosto. Por amor ao saber. Se um aluno quisesse abandonar o ensino teria de ser informado de todas as consequências dos seus actos e depois podia naturalmente fazê-lo. Ninguém deveria ser forçado a estudar contra a vontade.
Cordialmente o rei pediu-me licença para ir resolver assuntos prementes.
Agradeci o acolhimento prestado e fui, também eu, me preparar para a viagem.
Fiquei maravilhado quando um fidalgo me comunicou que Sua Majestade, o rei, já tinha um navio dispensado para a minha ida e todos os mantimentos de que necessitaria para voltar a casa.
Quando finalmente nos despedimos o rei com os olhos rasos de água falou comovido:
- Meu príncipe, se o meu filho fosse vivo seria da sua idade.
- Oh, lamento muito majestade! – mostrei -me estupefacto por nada saber.
Abraçamo-nos emocionados e larguei o porto. Afastei-me umas milhas da costa.
Voltei-me para olhar uma vez mais aquele reduto de lugar e boquiaberto constatei que nada havia atrás de mim. Utilizei rapidamente o binóculo e não distingui nada. Senti-me confuso e em estado de choque! Segurei-me às cordas e fiquei abismado. Não podia ter sido uma alucinação. Tinha sido demasiado real.
Depois mirei as minhas roupagens e de facto não me pertenciam, e o navio que comandava tinha a marca do rei. Regozijei-me com o episódio.
Havia um fundamento de verdade na minha história. Agarrei o leme do navio e com a bússola no coração abençoei aquele rei e rumei velozmente para casa.
22 de Novembro de 08