A confusão de sentimento que é gerada, cada vez que leio as páginas de um jornal ou, muito simplesmente, vejo os noticiários, foi hoje suavizada pelo texto que li de Manuel António Pina in Jornal de Notícias – última página.
Resolvi partilhar aqui esse texto
“Para além do arco-íris”
A mensagem que Sue Carey fez publicar na Net através do site da BBC pedindo informações acerca do paradeiro de Dorothy Borne Leavitt, de Kenner, no Louisiana, não dá muitos esclarecimentos. Diz apenas que Dorothy tem 93 anos e que, quando o furacão se abateu sobre a região, destruindo tudo à sua passagem, ela se recusou a partir, pois não quis abandonar o seu cão. Sue está muito inquieta com a sorte de Dorothy e pede a quem saiba dele que lhe dê notícias. Nas escassas três linhas da mensagem, Sue escreve duas vezes "por favor" e, talvez por se encontrar muito perturbada, dá um erro de ortografia na palavra "choose" quando diz que Dorothy "choose not to leave" ("escolheu não partir").
O cão de Dorothy teria provavelmente feito o mesmo, teria ficado ao seu lado se tivesse podido fugir e ela não. Mas dos cães, ao contrário dos homens (que usam a expressão "fidelidade canina" em sentido pejorativo), nós esperamos fidelidade. Por isso a decisão de Dorothy nos comove e nos perturba. Que um ser humano como nós tenha, numa situação tão extrema, sido assim fiel, eis o que é capaz de nos reconciliar por um momento connosco mesmos, principalmente quando as notícias que todos os dias nos chegam das cidades devastadas pelo "Katrina" nos dão conta de pilhagens, de assassínios, de violações e de roubos, praticados por seres humanos sobre outros seres humanos, aproveitando-se da sua desorientação e da sua vulnerabilidade (isso, sim, parece-nos próprio de homens).
E lembro-me de outra Dorothy, esta do Kansas, a de "O Feiticeiro de Oz", de Victor Fleming (um filme que é dedicado "aos jovens de coração"), arrastada também por um furacão sem largar dos braços o seu pequeno preto, transportados ambos para um lugar onde não há infelicidade ("Achas que há um lugar assim, Toto? Tem que haver!, / um lugar onde não se vai de barco nem de comboio, / longe, muito longe, para além da lua, para além da chuva, /algures para além do arco-íris").
Até ontem, o apelo de Sue Carey não tinha tido resposta. Mas eu temo mais por nós do que por Dorothy. Talvez ela esteja agora, quem sabe?, "longe da floresta,/ longe do escuro, longe da noite", diante da Cidade Esmeralda onde só alcançam os que têm a coragem do amor. E, surpreendida e feliz, se volte, também ela, para o cão e lhe diga, abraçando-o deslumbradamente " ".
(Manuel António Pina)