A primeira coisa que quero dizer é que não me considero isento de culpas. Por vezes corro o risco, e não só na literatura, de ser ligeiramente elitista. É defeito pessoal, admito, e não me sinto particularmente orgulhoso disso. São coisas que acontecem e que tento evitar, com mais ou menos esforço, dependendo dos dias.
Mas a segunda coisa que quero dizer, é que acho que mereço um desconto. Eu leio de tudo. Ficção científica, horror, crítica social, humor, policial, fantasia, romance histórico... Enfim, de tudo um pouco! E sem me ficar pela prosa, que eu também pego em teatro, em epopeias e em poesia. Algumas coisas mais que outras, é verdade, mas passo por tudo. Mesmo não sendo particular fã, ou sem conhecer, tenha eu os preconceitos que tiver, dou pelo menos uma oportunidade.
E isso é coisa que não acontece com os elitistas. Há pessoas que, do meu ponto de vista, não sabem realmente o que é ler. São aquelas pessoas que desprezam os chamados "géneros menores", como a fantasia, o horror e a ficção científica, por exemplo. Aquelas pessoas que apenas pegam num livro porque o autor ganhou um Nobel, ou porque é um clássico indiscutível, ou porque esse livro é considerado como obrigatório, para um leitor que se preze.
Atenção que não quero menosprezar esses livros. Eu também sou fã deles. Há escritores Nobelizados que aprecio bastante, tenho alguns clássicos entre os meus livros favoritos, e já tive algumas surpresas bastante agradáveis com alguns desses livros "obrigatórios". Mas raramente pego num livro especificamente por pertencer a uma dessas categorias. Pego num livro porque me apetece lê-lo, porque o achei interessante, ou até porque achei a capa engraçada e estava barato, não interessa.
O gosto literário é uma coisa que se vai construindo aos poucos, que é bastante pessoal e que tem defeitos. Posso ter entre os meus autores favoritos alguém que não é nenhum portento literário, mas cujos livros têm algum significado para mim. Ou gostar bastante de um livro pura e simplesmente porque uma das personagens é parecida com alguém que conheço, ou algo do estilo.
Ou seja, o que eu quero dizer é que não gosto de ter que gostar de um livro. Gosto de ter a possibilidade de dizer mal de um clássico, por exemplo. Às vezes parece que é quase sacrilégio. E eu bem sei que faço o mesmo com Tolkien, Lovecraft ou Saramago, só para citar alguns dos meus deuses literários pessoais, mas é diferente, pelo simples facto de eu até acabar por gostar mais de falar sobre esses autores com pessoas que nem são muito fãs. Normalmente é mais interessante do que as conversas que às tantas são simplesmente "epah, é muita bom!", "pois é!".
Mas estou a dispersar um pouco. Qual é, afinal, o meu problema com os elitistas literários? Como eu próprio já disse, o gosto literário é uma coisa bastante pessoal e que tem defeitos. Porque não aceitar que as pessoas que denomino de elitistas literários tenham apenas um gosto literário bastante diferente do meu, por serem pessoas bastante diferentes de mim? A verdade é que aceito isso. O que não aceito é que menosprezem o meu gosto literário.
É que eu cá não me importo que existam por aí pessoas que apenas pegam num livro depois de terem a certeza que o autor ganhou um Nobel. Ou outras que só lêem clássicos com 100 anos de idade, porque a literatura clássica é que é algo a sério. Que sejam felizes, cada um lê o que quer, e tanto uns como outros vão de certeza apanhar muitos livros de uma qualidade completamente alienígena e fora do alcance dos comuns mortais. O que não gosto é que essas pessoas achem que elas é que estão a fazer bem, que o gosto delas é que é o certo por ser à base de Nobeis e de clássicos, e que o meu e de outras pessoas é uma vergonha, limitado, inferior.
"Então mas não é exactamente isso que tu estás a fazer, Rui, ao criticares o gosto literários desses tais elitistas, em favor do teu?", perguntam vocês. Pois bem, talvez seja, mas quero acreditar que não. Acho que consegui transmitir a ideia de que o gosto literário dos outros não me chateia, só não gosto é de ver o meu inferiorizado. E agora chamem-me o que quiserem, mas um gosto literário está sempre longe de ser perfeito, e qualquer tentativa de o elevar acima do de outra pessoa, é pura hipocrisia. O que interessa não é só morrer depois de ler todos os livros de todos os autores Nobeis, é só morrer depois de ter lido coisas que nos marcaram, por uma razão ou por outra.
Não é preciso ser um livro que tenha mudado o Mundo, ou o de alguém que é um marco absoluto na literatura mundial. Pode até ser o guia turístico do supermercado do Zé da Esquina, o que é que isso interessa? Desde que nos tenha marcado, foi uma boa leitura. Há poucas coisas que saibam tão bem como comprar um livro pela capa e ele ser absolutamente fenomenal. Ou ler um livro do qual se desconfia fortemente e ver as expectativas a serem largamente superadas. Porque ler é isso mesmo, é descobrir mundos e explorar universos, chegar à conclusão que aquele autor completamente desconhecido devia ser o próximo Nobel, ou acabar um livro de 1400 páginas com o sentimento de "foram as horas mais bem gastas da minha vida".
Ficar acordado até às tantas porque o livro nos prendeu, acordar cedo para ler, ansiosos pela personagem que estava em risco de morrer, torcer por um desfecho amoroso e chamar nomes ao cavaleiro andante que estragou tudo, gostar mais do vilão ou do moço de estrebaria que só aparece uma vez, ler obras-primas e ler autêntico lixo literário... Ler é conhecer, é pensar, é descobrir, fugir, procurar e encontrar, ler pode até ser amar e odiar. Quando se gosta verdadeiramente de ler, ler pode ser tudo. E é isso que os elitistas não compreendem, e o que me faz dizer que não sabem o que é ler.
Um elitista literário lê grandes livros que lhe permitam elevar a alma e tornar-se num supra-sumo do conhecimento literário "à séria". Um leitor lê porque lhe apetece.