Ontem vivi uma dos dias mais bonitos de minha vida. Um desses dias – dia
e noite, pra ser exato – a cujo fim eu ergui os braços e agradeci, não sei a
quê nem a quem, pelo dom da vida. Isso não a despeito mas em perfeita
consonância com o que esse dia comportou de ruído. Até porque amo os
ruídos... Life is only rock’n’roll, baby, ou então não é vida. Ou, o que vem a dar
na mesma: SAROBÁ!
Mas vamos por partes, como dizia o velho Jack e não cansa de ensinar uma amiga.
1. “Areôtorare”, arte e vida
Foi no fim da tarde que esse dia & noite começou a despontar em seu
esplendor para mim. Mais exatamente quando, contrariando as ameaças de chuva, o
Grupo Imaginário Maracangalha se instalou na Orla Ferroviária (aqui em Campo
Grande-MS) para realizar o espetáculo “Areôtorare”, e antes mesmo de começar
saiu em cortejo pelo estacionamento do supermercado ao lado da “orla”, e voltou
com a mesma alegria radiante com que havia saído.
Desde o início assisti deslumbrado – e pela primeira vez – a esse
espetáculo que, no entanto, é todo ambiguidade e paradoxo: por um lado a
alegria irrefreável da música, da dança, do cortejo, do sorriso radiante dos
atores, e por outro os dramas humanos e sociais pungentes dos fragmentos de
Lobivar Matos, que constituem a base da cenografia trabalhada por Fernando Cruz
e o grupo.
Só ontem tive uma dimensão da grandeza da obra de Lobivar, poeta
corumbaense que, nos distantes anos 30, reivindicava e produzia uma arte
participativa, voltada para a realidade dos pobres e desvalidos – os trabalhadores
oprimidos pela estrutura social, as mulheres trabalhadoras, oprimidas por essa
mesma estrutura e pela estrutura doméstica, os habitantes dos confins,
desprezados pelo Estado e à mercê das enchentes –, uma arte em tudo contrária à
poesia boçal e declamatória, romântico-parnasiana, que se fazia então naquelas
paragens.
Mas uma arte – a de Lobivar Matos – que, como me lembraram e sublinharam
o Fernando e uma das atrizes do grupo, também reivindica a festa popular como
espaço de alternativa e ruptura com as estruturas sociais e as ideologias
dominantes. Uma ação-reivindicação que se sintetiza nessa palavra-chave – não
no sentido acadêmico, mas no sentido de que tem a força de abrir portas, mesmo
– que fecha o longo poema de Lobivar (e que também é o nome da festa periódica
promovida pelo Maracangalha): SAROBÁ!
É essa duplicidade que “Areôtorare”, mais do que captar, potencializa
com sua dramaturgia fortíssima, alimentando a dimensão festeira da poesia
lobivariana com outros cantos e danças e imprimindo a seus textos sociais a
dimensão física e corpórea de atuações tensas, corajosas, acintosas, que
interagem com o público chamando-o para a dança mas também para a dura
realidade encenada. É comovente quando as bandeiras de São João se erguem sobre
nossas cabeças; mas quando a enorme lona preta fazendo as vezes de uma enchente
cobre os atores e até alguns espectadores o efeito é trágico, e talvez num
sentido um pouco mais forte que o Aristotélico, já que estamos tão perto
daquilo.
“Areôtorare” e o Imaginário Maracangalha são forças, eventos,
significações que tocam fundo o coração de quem quer se decida a parar diante,
ou melhor, junto deles, e pelo menos um pouco, quem sabe, o de quem apenas
passa ali ao lado, de ônibus ou mesmo a pé, sem se decidir a parar, ou o
daqueles por quem o próprio Imaginário passa ao lado, num cortejo que, mesmo
convocando para ouvirmos palavras de um morto, não é um cortejo de morte, mas
de vida, porque viva é toda voz que não se cala, viva é toda voz que – como a
de Lobivar Matos, Fernando Cruz e seus atores – reivindica o direito à
liberdade e a dizer o que pensam em quaisquer espaços públicos.
Mas aqui já estou entrando nos domínios do meu próximo talho, que vai
ser um pouco mais longo e, certamente, um pouco mais doloroso; e até por isso
reservei para ele – como fiz quando tentei formular pela primeira vez as
questões que coloco a seguir – a imagem do coração da qual me vali agora há
pouco.
2. Arte Pública e arte de rua
O segundo evento ao qual atribuo uma significação muito especial no dia
– agora já noite – de ontem foi o Seminário na sequência da apresentação do
Maracangalha, conduzido pelo dramaturgo, ator, diretor e professor Amir Haddad,
pessoa de influência decisiva na consolidação e fomentação do teatro de rua –
ou, como ele prefere, Arte Pública – no Brasil.
A explanação de Haddad consistiu justamente – em grande parte, pelo
menos – numa defesa da ideia ou conceito de Arte Pública (que tenho visto
grafado assim, em maiúsculas) como uma espécie de nova etapa do teatro de rua:
uma etapa em que a visão do artista de rua como uma espécie de pária
social (esse “artista” que nem a família apoia, e a quem a mãe pergunta:
“quando é que você vai começar a fazer esse tal de teatro, meu filho?”) cederia
lugar a uma situação mais valorativa da condição do artista (artista público?),
tanto no sentido de sua autoestima quanto na obtenção de condições mais
propícias à realização de suas atividades.
“Quanta coisa conseguimos desde que assumimos a bandeira da Arte
Pública!”, disse aproximadamente Haddad, com isso referindo-se, a meu ver, à
possibilidade de financiamentos públicos – já que a arte sustentada por
particulares ou instituições privadas seria algo a ser evitado ou superado.
A fala de Haddad também comportou outra dimensão importante, e que me
atrevo a denominar uma espécie de dialética ou, melhor ainda, oscilação entre
uma visão pessimista e uma visão otimista em relação ao papel do teatro de rua no mundo de hoje e às
próprias possibilidades de transformação deste mundo.
Em dado momento, por exemplo, Haddad declarou expressamente que “o
teatro de rua [ou a Arte Pública] não vai mudar o mundo”; em outro momento,
chegou a declarar que não há nada a se salvar neste mundo, que o mundo em que
vivemos está podre (ou algo assim) e não há nada a se fazer para salvá-lo.
Outras vezes, no entanto – e quero crer que sejam a maioria –, ele sublinhou o
potencial profunda e radicalmente transformador da Arte Pública, que seria a
semente de um mundo novo e, quiçá, melhor. Ora, a Arte Pública ou o teatro de
rua estão neste mundo, são parte dele.
São esses elementos que tentei abordar em minha fala, motivada não por
qualquer vontade de glamour, mas por uma necessidade entranhada de expor
minhas diferenças quando julgo que isso é importante. Julgo ainda necessário
acrescentar duas coisas: 1) Que antes de me decidir a falar já me havia
decidido a escrever sobre a encenação do Maracangalha e o debate; mas também
decidi falar, talvez sob o influxo de certo espírito de intervenção que
a própria Temporada do Chapéu aguçou em mim, mas sobretudo porque não acho
correto falar pelas costas quando tenho a chance de, mesmo sendo mal
compreendido, falar pela frente e dar a meu interlocutor o direito de resposta.
2) Que antes de pedir o microfone para falar esperei um tempo considerável para
ver se alguém o pediria primeiro, pois previa que minha fala seria
razoavelmente longa.
Comecei declarando minha admiração pela fluidez ou desenvoltura da fala de
Haddad e de quase todas as pessoas envolvidas com Teatro que já vi falar
publicamente, e me desculpando de antemão por minha fala não ter a mesma
desenvoltura. Mas alertei, também, que gostaria de expor minhas questões da
forma mais justa possível, até porque talvez pesasse sobre ela a
suspeita de impertinência. Impertinência nos dois sentidos: do
atrevimento e da não inteira justiça das colocações. Por isso mesmo – por se
tratar de uma questão polêmica – eu tentaria ser o mais justo possível.
Em seguida, expus minha concordância quanto ao valor do conceito de Arte
Pública exaltado pelo palestrante. Declarei a empolgação que cheguei a sentir
no início de sua fala, antes que outros elementos relativizassem essa
empolgação. E foi nessas relativizações que me concentrei. Trata-se de algo
muito simples, mas que ainda assim precisa ser visto na relativa riqueza de sua
dialética. Essas últimas palavras bonitas são todas de agora, e na sequência
tentarei expor meu ponto de vista com mais clareza do que fiz no momento.
A meu ver, o conceito de Arte Pública, tal como exposto por Haddad,
possui duas dimensões e possibilidades, em certa medida complementares mas em
certa medida conflitantes. Por um lado, a ideia de uma transformação radical
dos espaços públicos, de reivindicação dos espaços públicos como lugares
efetivamente públicos (e não, para remeter à bela fala de Natália Siufi dois
dias antes, de mera circulação de mão-de-obra e de mercadorias), nos quais a
beleza, a arte e a vida tenham lugar.
Nesse sentido, e até por investir a atividade do artista de rua de
uma dimensão marcadamente política (ou seja, por concebê-lo como alguém
que atua na polis), tenho para mim que um conceito como o de Arte
Pública possui um conteúdo verdadeiramente revolucionário, no sentido de
propiciar ou fomentar a única revolução que realmente vale a pena, e que é a
revolução pela arte. Pois eu acredito sim que o teatro de rua pode mudar o
mundo, e é por acreditar nisso – e não por vontade de glamour – que eu
quis intervir nesse debate.
Pois o conceito de Arte Pública também comporta, a meu ver – e isso é
tão evidente! – um risco. Esse risco faz parte de seu momento histórico:
não é, portanto, um erro. É uma situação. Aliás, não há situação viva que
não seja situação de risco.
E esse risco, obviamente, é o do deslizamento dessa potência
efetivamente transformadora para uma situação ou um trato institucionais ou
institucionalizantes da arte de rua, já que a questão dos financiamentos
públicos e do trato com os poderes públicos – ou seja, os poderes que regem
os espaços públicos – se coloca aí de forma decisiva.
Como exemplo dessa situação paradoxal – mas, repito, é de contradições e
paradoxos que a vida se nutre – citei como exemplo a própria Temporada do
Chapéu, financiada com dinheiro público. Declarei a importância, a meu ver,
dessa conquista, mas tentei, também, apontar seu limite. E para isso dei
um salto discursivo, tentando imaginar uma situação ideal para a arte de rua em
Campo Grande e no Brasil: argumentei que o ideal é que iniciativas como essa
não fossem necessárias; que a arte pública (que me permito agora grafar
em minúsculas, pois uso o conceito de uma forma que me agrada mais) invadisse cotidianiamente
o cotidiano (essa expressão também é de agora), a despeito de editais e
financiamentos públicos, ou seja, oriundo dos podres públicos (ou seja,
de um Estado que é a base política da realidade social que queremos mudar).
Algo que queria ter dito mas não pude dizer – porque parte do público começou
a censurar minha permanência ao microfone – é que eu acredito que o que se faz
hoje, ou seja, eventos como a Temporada do Chapéu, pode ser, sim, um
passo para isso. Mas para que isso ocorra é necessário a vigilância crítica,
sob pena (também acrescento isso agora) de vivermos algo semelhante ao que se
deu com o Fora do Eixo.
Em algum momento de minha fala recuperei uma imagem da qual Haddad se
valeu, na forma de uma pergunta retórica. Como é que a Arte Pública se comunica
de forma tão viva ao organismo social, ele se perguntou. Eu argumentei que
achava que era porque, antes de ser social, essa comunicação era individual.
Com isso quis dizer que, antes de ser Pública, privada ou qualquer outra coisa,
e a despeito, inclusive, dos financiamentos que a favorecem e/ou orientam, Arte
é arte, arte é Vida. Antes mesmo – e para além – de ser ideologia, arte
é Vida. Senão não é arte, é só ideologia. Não sei o que um Brecht diria
disso, mas é o que penso.
E quis recuperar essa ideia abstrata mas fundamental, da Arte como Vida
acima de tudo, narrando um momento belíssimo da apresentação do Maracangalha
naquela noite: o momento em que um dos atores, que fazia as vezes de um
operário angustiado, dava simbolicamente seu coração a um menino que assistia o
espetáculo junto com a mãe. O menino guardou consigo o “coração” nas mãos por
alguns segundos, minutos talvez, antes de se decidir, com olhos um pouco
aflitos, a pedir socorro à mãe, a quem “entregou” o coração, que ela “recolheu”
e, sorrindo para ele, “guardou” em seu próprio coração.
Essas duas pessoas – sobretudo o menino – foram tocadas pelo Teatro,
foram tocadas pela Arte. E é dessa Arte, que toca os corações, que pode advir a
verdadeira revolução.
Tivesse eu terminado por aí, e investido um pouco mais no tom grandiloquente,
talvez saísse com aplausos. Mas em situações desse tipo – e nisso estou com
nisso Brecht – prefiro deixar sempre uma inquietação do que uma satisfação. E
expus, já sob a impaciência declarada, possivelmente, da maior parte dos
ouvintes, minha derradeira inquietação: a de que as possíveis contradições no
discurso de Haddad tivessem relação com a referida oscilação entre pessimismo e
otimismo (que tentei expor sumariamente) em sua fala.
Não consegui expor o principal dessa ideia: que essa oscilação se dá em
perfeita simetria com a dupla dimensão da ideia de Arte Pública como defendida
por ele: de um lado a arte pública (que prefiro com minúsculas) como potência
efetivamente transformadora e de outro a Arte Pública (com maiúsculas) como
articulação institucional, cujos horizontes ameaçam se estreitar nesse risco.
Terminada minha fala, sentei-me ali perto e passei a ouvir a réplica de
Haddad, que começou falando sobre a condição da arte enquanto arte privada como
uma especificidade do mundo capitalista. É uma questão que eu também gostaria
de debater, mas não agora. O fato é que a fala do palestrante não abordava
diretamente as questões colocadas por mim; por isso senti-me à vontade para dar
atenção à minha amiga e aluna Inayá quando ela se agachou junto à minha cadeira
para externar seu apoio à minha fala, e de agradecer-lhe com uma manifestação
de afeto.
Foi quando Haddad declarou, em tom bastante alterado, que aquilo já era
demais, que eu era um chato (o que é verdade :)) e que ele estava me expulsando
daquele lugar. Não saí, é claro, disse que ele estava se comportando como dono
de um espaço público e sendo igualmente chato, que aquilo era uma cena
desnecessária diante de pessoas que o admiravam e que aquilo não era o melhor
dele. Ele afirmou que era sim, e me mostrou o dedo médio. Um belo dedo, por
sinal, mas eu continuo achando que não é.
De lá fui para um espaço privado onde aconteceu outra
manifestação artística fenomenal – um duplo show de rockabilly, primeiro da Aristocats,
ouro da casa pilotado pela Aline Calixto, e depois da Asteirodes Trio,
banda excelente de São Paulo –, mas sobre isso acho que ninguém vai querer ler
agora, e a ocasião também merece um post à parte.
Sou tão fã de Aline e Cia., e também do Fernando Cruz e do Teatro
Maracangalha (do qual já havia visto o fortíssimo “Tekoha”, sobre a vida e a
morte de Marçal de Souza), como fiquei fã dos Asteróides e do Lobivar ontem, que
até reluto em citar (de memória) a frase ou verso (de Lobivar, suponho) que
ouvi ontem no espetáculo do Maracangalha, e que quase usei como epígrafe deste
post: “Os homens acreditam em deuses, um dia acreditarão em si mesmos”. Deuses,
heróis, ídolos...