VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Uma Crise nos Bancos da Universidade

A vertigem foi o de menos. Na verdade, ela é um aviso.

– Prepare sua mente, estou chegando.

Mas não daquelas vertigens de grávida ou de navio. Foi uma vertigem de expurgo.

Logo a garganta cansada do nó da burocracia e os olhos queimando o que não podia ser dito se levantaram. Sim, se levantaram. O resto fazia parte de outra realidade. Meus pés poderiam dar saudações, não fossem os olhos e a garganta.

Os olhos me mostraram toda a não realidade pelas minhas mãos, braços, pernas e tronco. A escuridão da vertigem de expurgo fez lágrimas desamparadas caírem rasgando. Rasgando. Por que não rasgar no expurgo? O que não rasgar no expurgo?

Mas ali só havia bancos. E eles me diziam que me compreendiam.

Cadê as pessoas nos bancos para me inserir na realidade grotesca, tosca e monótona? Um eco.

– Inayá... Inayá...

O eco traz sua cavalaria. Esperança de branco, controle de vermelho, proteção de verde e alívio de azul.

A cavalaria lutou com a escuridão da vertigem de expurgo. Dominaram a garganta.

– Não consigo me mexer – disse.

– Quer que eu te leve lá pra fora? O que aconteceu? – disse a voz do eco.

– Fui apedrejada pela montanha do coração de alguém.

O eco me levou até outro banco compreensivo. O som insistente da natureza perfurou meus ouvidos. Feito.

Autista, pelo menos eu autista, penso por imagens e sons. Não por palavras. Logo, os passarinhos e o vento me disseram que a escuridão da vertigem de expurgo estava indo. E os olhos que queimavam o que não podia ser dito se abriram em estranheza.

Elda Cunha era o nome do eco. A cavalaria bem que tentou, mas só os pés lhe agradeceram. A única parte do corpo não endurecida pela escuridão da vertigem de expurgo.

Inayá Borba Martini

sábado, 23 de novembro de 2013

Não eu, quem então?

Nos últimos meses andei palpitando (principalmente no Facebook) sobre as questões do público de cinema e da produção cinematográfica em Mato Grosso do Sul: reclamando, por exemplo, que os filmes mais significativos que abordam a realidade do Estado, como Terra vermelha e Cabeça a prêmio, são de diretores e produtores externos, e sugerindo que um curso de Cinema na UFMS (a única capaz de abrigar decentemente um curso desse porte) seria fundamental pra começar a mudar essa realidade; o que me parece urgente, num Estado tão carente de consciência crítica, em vista da importância do cinema enquanto arte que reflete sobre o mundo contemporâneo.

Assim, quando soube que o I FestCine Vídeo América do Sul seria aberto por um longa-metragem legitimamente local, ou seja, realizado por um diretor, atores e produtores sulmatogrossenses, me senti na obrigação de ir à exibição – e, claro, palpitar sobre ela. Não me arrependi, pois assisti a um filme belíssimo e porque tenho a chance, agora, de abordar em outro nível a questão a que me referi, por mais que minha compreensão e, portanto, minha leitura do filme sejam precárias e lacunares. Faço questão de sublinhar isso porque realmente saí da sala com muitas dúvidas, tanto em relação à história quanto a como interpretar o que entendi ou julgo ter entendido dela.

É verdade que Não eu, o belo filme de Breno Benetti de que estou falando, não vale apenas pela história que conta, se é que não há, nele, uma dominância do poético sobre o narrativo. E, de fato, são elementos como a plasticidade e o fluxo das imagens, a expressividade dos atores e a trilha sonora que mais sobressaem no filme, já que seu enredo e seu núcleo dramático são, sem serem necessariamente simples, extremamente condensados: em linhas gerais, Não eu trata da crise sexual do anti-herói (ou, digamos, antiguerreiro) Jorge (Luiz Bertazzo, em interpretação excelente), um jovem professor universitário de origem abastada, filho de um fazendeiro, ao que tudo indica latifundiário (David Cardoso, muito bom, também), cujo conservadorismo extremo parece inibir a homo ou bissexualidade – ou, simplesmente, a sexualidade – reprimida, latente ou titubeante do filho.

O enredo se reduz a alguns poucos eventos, que parecem defrontar o protagonista com as possíveis soluções para sua crise – a hetero, a homo ou a bissexualidade –, e outros tantos gestos que indicam os limites de sua revolta com sua própria condição, sendo o mais significativo deles o desenho de uma face deformada e rabiscada numa cadeira modernosa cujo “design” lembra, sugestivamente, um bidê ou um vaso sanitário; além do gesto de acender um cigarro atrás do outro, sintoma-clichê que cria um humorismo involuntário: o camarada sentado ao meu lado chegou a brincar com isso, dizendo que até o fim do filme o personagem ganharia um câncer ou um enfisema pulmonar (mentira, a ideia do enfisema foi minha, hehe).

Parece muito pouco para um longa-metragem, e, de fato, desde o início eu tive a impressão de que Não eu seria uma espécie de curta estendido além da conta. Além do minimalismo da trama, a própria linguagem poética e experimental, incluindo a fotografia em preto e branco, e um certo clima de iminência constante, como se o filme estivesse sempre prestes a terminar – e o próprio título, que parece mais adequado a um curta –, me deram essa impressão.

Geralmente esperamos de um longa-metragem uma história cuja ambientação ou pano de fundo, por mais mal compostos que sejam, tenham relevo suficiente para dar a impressão de que acompanhamos fatos oriundos de uma certa realidade social, menos ou mais encoberta pelas tintas da ficção. Em Não eu, no entanto, a única realidade que parece significativa é a vida interior do protagonista; todo o resto parece derivado, subordinado ou deformado por ela.

No limite de uma crítica que enverede por esse caminho – mas este é apenas um caminho possível –, o filme de Benetti seria um típico “produto da decadência burguesa” (ou pequeno-burguesa, ou, sei lá, rural-burguesa, levando em conta a condição do personagem). Creio que, se estivesse vivo e se interessasse por cinema de vanguarda, meu eterno mestre George Lukács diria algo assim, acusando Benetti de obscurantismo e subjetivismo antissocial. E é interessante, realmente, notar que não há, no olhar de Jorge  (ou no de Benetti?), um reconhecimento efetivo da alteridade social – nem, aliás, sexual, o que vem de par com a ausência completa ou quase completa (pelo menos não tenho lembrança a respeito) da figura materna.


David Cardoso e Luiz Bertazzo

As figuras que fazem as vezes de tais alteridades são as duas mulheres que assediam o protagonista, mas ambas são nitidamente configuradas como peças-chave em sua problemática psicológica: elas apenas lhe oferecem – uma desinteressadamente e a outra não, mas ainda assim com um belo desconto de 50%  – o amor carnal que não parece interessá-lo muito. Uma delas, naturalmente, é de fato uma prostituta, mas configurada com tal glamour que foge um bocado – propositalmente ou não – a uma representação verossímil, principalmente enquanto figura que alude a uma condição social: trata-se, afinal, de uma prostituta de rua.

E tudo isso confina de tal forma o mundo de Jorge à sua subjetividade que não é de se espantar que essa subjetividade e seu drama não tenham despertado empatia ou solidariedade em alguns espectadores, como é o caso de um amigo com quem conversei depois do filme e mesmo, em parte, o meu caso. A prisão do anti-herói em seu mundinho pequeno-burguês e, mais ainda do que a dificuldade extrema de superar sua crise (não ficou claro, para mim, se ele consegue isso), sua impossibilidade de ver além dos limites desse mundinho, criam um efeito que é quase de antipatia, pelo menos em espectadores para quem essas questões têm alguma importância.

Mas justamente nesse ponto surge o nó górdio da intencionalidade autoral (que talvez o próprio autor se disponha – ou não – a desfazer): Benetti expõe criticamente um ponto de vista de classe, problematizando-o, ou apenas exprime esse ponto de vista?

É nesse ponto, aliás, que convém reiterar que o enredo de Não eu é mínimo mas não simples, pois justamente as lacunas, e mais uma profusão de ambiguidades, tornam a diegese do filme bastante complexa e hermética. Em vários momentos, por exemplo, parece que estamos diante de sonhos, talvez relatados na sessão de psicanálise que entrecorta a narrativa. E justamente o episódio da prostituta generosa e vestida de anjo é um deles, e nesse caso a deformação glamourosa pertenceria à subjetividade do personagem, não ao ponto de vista autoral.

Essa questão também se coloca diante de outro elemento, episódico mas importante, na medida em que é outro momento em que atrevemos uma figuração da alteridade social. Falo da presença, no filme, do Teatro Imaginário Maracangalha, que não apenas emprestou a Benetti uma de suas componentes (Fran Corona, em atuação deslumbrante) como comparece numa cena muda e em câmera lenta, realizando um de seus famosos “cortejos”. O mutismo e a quase fixidez da cena aludem, naturalmente, à distância do personagem em relação à euforia que ele tem diante de si. Mas a alegria é apenas metade do Maracangalha: a outra é a insistência na temática das injustiças e opressões sociais, e esta não comparece na cena. Ou talvez compareça, muito subliminarmente, pelo quê de grotesco – e, portanto, de postura antissocial – que acompanha mesmo as intervenções circenses do grupo.

Luiz Bertazzo, Fran Corona e André Tristão

Outro dado importante, e este marcadamente sociológico, é a própria origem social do protagonista. A crise de sexualidade de um filho de um latifundiário, em plena capital do gado, não pode deixar de respingar simbolicamente na estrutura social e antropológica dessa sociedade, na medida em que ela tem no machismo, no zelo do poder pelo pater familias, um de seus elementos. Ao mesmo tempo, a subordinação quase sempre acovardada de Jorge ao pai parece muito marcada para não marcar de forma incisivamente negativa o personagem.

Ao invés de afrontar a autoridade paterna, Jorge parece esperar dela a permissão para dar vazão a suas pulsões, como sugere uma outra cena ao que tudo indica sonhada, na qual o pai lhe pergunta até onde ele já foi e lhe diz pra seguir adiante. O que no fim das contas sugere limites bem estreitos para esse personagem em crise: como diz ao pai, ele é sociólogo, não socialista. Está empenhado em entender algo obscuro em seu trajeto de vida e dentro de si mesmo, mas não parece capaz de enfrentar esse “algo” de peito aberto, quanto mais de lutar por um processo de transformação que atinja as bases de sua condição existencial.

Em suma, há uma rede de ambiguidades em Não eu que exigiria, no mínimo, outra sessão para que eu pudesse abordá-la de forma um pouco mais consequente. Mas quero deixar claro que não subordino minha admiração pelo trabalho de Benetti a quaisquer respostas às minhas dúvidas. A meu ver, seus méritos são indiscutíveis, e têm a ver não apenas com suas qualidades estéticas e as atuações excelentes, ou seja, com seus aspectos “técnicos”, mas também com sua abordagem corajosa de um tema polêmico. Mais do que um resíduo, seu ar de curta-metragem é fruto de sua proposta: retratar uma solidão psíquica extrema, fruto de uma alienação social objetiva, de classe. O tamanho dessa solidão e dessa alienação de classe pediam, sim, um longa-metragem.

Em seus momentos mais bonitos e expressivos, Não eu me lembrou Limite, de Mario Peixoto, que também sempre me deu a impressão de ser um curta superampliado, sem deixar de ser, por isso, uma obra-prima do cinema brasileiro – aliás, mundial. Mas Não eu, digamos assim, territorializa Limite. A precariedade e a estranheza com que isso ocorre me parecem, ao fim deste post, cada vez mais legítimas. De qualquer forma, que seja nossa amada Bigfield, com suas paisagens e pessoas tão queridas, o lugar onde deveria surgir esse retrato da desolação humana, é um privilégio sobre o qual temos muito que pensar.

* * *

Bem, vou ter que deixar a questão da importância do Curso de Cinema em Campo Grande (ou, por que não, em Corumbá) pra um outro post... Se alguém leu este aqui até o fim só pra chegar nessa discussão, foi maus aí...



Cortejo do Maracangalha antes do evento


sábado, 2 de novembro de 2013

Arte Pública, arte de rua e arte privada



Ontem vivi uma dos dias mais bonitos de minha vida. Um desses dias – dia e noite, pra ser exato – a cujo fim eu ergui os braços e agradeci, não sei a quê nem a quem, pelo dom da vida. Isso não a despeito mas em perfeita consonância com o que esse dia comportou de ruído. Até porque amo os ruídos... Life is only rock’n’roll, baby, ou então não é vida. Ou, o que vem a dar na mesma: SAROBÁ!


Mas vamos por partes, como dizia o velho Jack e não cansa de ensinar uma amiga. 

1. “Areôtorare”, arte e vida
 


Foi no fim da tarde que esse dia & noite começou a despontar em seu esplendor para mim. Mais exatamente quando, contrariando as ameaças de chuva, o Grupo Imaginário Maracangalha se instalou na Orla Ferroviária (aqui em Campo Grande-MS) para realizar o espetáculo “Areôtorare”, e antes mesmo de começar saiu em cortejo pelo estacionamento do supermercado ao lado da “orla”, e voltou com a mesma alegria radiante com que havia saído.

Desde o início assisti deslumbrado – e pela primeira vez – a esse espetáculo que, no entanto, é todo ambiguidade e paradoxo: por um lado a alegria irrefreável da música, da dança, do cortejo, do sorriso radiante dos atores, e por outro os dramas humanos e sociais pungentes dos fragmentos de Lobivar Matos, que constituem a base da cenografia trabalhada por Fernando Cruz e o grupo.

Só ontem tive uma dimensão da grandeza da obra de Lobivar, poeta corumbaense que, nos distantes anos 30, reivindicava e produzia uma arte participativa, voltada para a realidade dos pobres e desvalidos – os trabalhadores oprimidos pela estrutura social, as mulheres trabalhadoras, oprimidas por essa mesma estrutura e pela estrutura doméstica, os habitantes dos confins, desprezados pelo Estado e à mercê das enchentes –, uma arte em tudo contrária à poesia boçal e declamatória, romântico-parnasiana, que se fazia então naquelas paragens.

Mas uma arte – a de Lobivar Matos – que, como me lembraram e sublinharam o Fernando e uma das atrizes do grupo, também reivindica a festa popular como espaço de alternativa e ruptura com as estruturas sociais e as ideologias dominantes. Uma ação-reivindicação que se sintetiza nessa palavra-chave – não no sentido acadêmico, mas no sentido de que tem a força de abrir portas, mesmo – que fecha o longo poema de Lobivar (e que também é o nome da festa periódica promovida pelo Maracangalha): SAROBÁ!

É essa duplicidade que “Areôtorare”, mais do que captar, potencializa com sua dramaturgia fortíssima, alimentando a dimensão festeira da poesia lobivariana com outros cantos e danças e imprimindo a seus textos sociais a dimensão física e corpórea de atuações tensas, corajosas, acintosas, que interagem com o público chamando-o para a dança mas também para a dura realidade encenada. É comovente quando as bandeiras de São João se erguem sobre nossas cabeças; mas quando a enorme lona preta fazendo as vezes de uma enchente cobre os atores e até alguns espectadores o efeito é trágico, e talvez num sentido um pouco mais forte que o Aristotélico, já que estamos tão perto daquilo.

“Areôtorare” e o Imaginário Maracangalha são forças, eventos, significações que tocam fundo o coração de quem quer se decida a parar diante, ou melhor, junto deles, e pelo menos um pouco, quem sabe, o de quem apenas passa ali ao lado, de ônibus ou mesmo a pé, sem se decidir a parar, ou o daqueles por quem o próprio Imaginário passa ao lado, num cortejo que, mesmo convocando para ouvirmos palavras de um morto, não é um cortejo de morte, mas de vida, porque viva é toda voz que não se cala, viva é toda voz que – como a de Lobivar Matos, Fernando Cruz e seus atores – reivindica o direito à liberdade e a dizer o que pensam em quaisquer espaços públicos.

Mas aqui já estou entrando nos domínios do meu próximo talho, que vai ser um pouco mais longo e, certamente, um pouco mais doloroso; e até por isso reservei para ele – como fiz quando tentei formular pela primeira vez as questões que coloco a seguir – a imagem do coração da qual me vali agora há pouco.

2. Arte Pública e arte de rua

O segundo evento ao qual atribuo uma significação muito especial no dia – agora já noite – de ontem foi o Seminário na sequência da apresentação do Maracangalha, conduzido pelo dramaturgo, ator, diretor e professor Amir Haddad, pessoa de influência decisiva na consolidação e fomentação do teatro de rua – ou, como ele prefere, Arte Pública – no Brasil.

A explanação de Haddad consistiu justamente – em grande parte, pelo menos – numa defesa da ideia ou conceito de Arte Pública (que tenho visto grafado assim, em maiúsculas) como uma espécie de nova etapa do teatro de rua: uma etapa em que a visão do artista de rua como uma espécie de pária social (esse “artista” que nem a família apoia, e a quem a mãe pergunta: “quando é que você vai começar a fazer esse tal de teatro, meu filho?”) cederia lugar a uma situação mais valorativa da condição do artista (artista público?), tanto no sentido de sua autoestima quanto na obtenção de condições mais propícias à realização de suas atividades.

“Quanta coisa conseguimos desde que assumimos a bandeira da Arte Pública!”, disse aproximadamente Haddad, com isso referindo-se, a meu ver, à possibilidade de financiamentos públicos – já que a arte sustentada por particulares ou instituições privadas seria algo a ser evitado ou superado.

A fala de Haddad também comportou outra dimensão importante, e que me atrevo a denominar uma espécie de dialética ou, melhor ainda, oscilação entre uma visão pessimista e uma visão otimista em relação ao papel do teatro de rua no mundo de hoje e às próprias possibilidades de transformação deste mundo.

Em dado momento, por exemplo, Haddad declarou expressamente que “o teatro de rua [ou a Arte Pública] não vai mudar o mundo”; em outro momento, chegou a declarar que não há nada a se salvar neste mundo, que o mundo em que vivemos está podre (ou algo assim) e não há nada a se fazer para salvá-lo. Outras vezes, no entanto – e quero crer que sejam a maioria –, ele sublinhou o potencial profunda e radicalmente transformador da Arte Pública, que seria a semente de um mundo novo e, quiçá, melhor. Ora, a Arte Pública ou o teatro de rua estão neste mundo, são parte dele.

São esses elementos que tentei abordar em minha fala, motivada não por qualquer vontade de glamour, mas por uma necessidade entranhada de expor minhas diferenças quando julgo que isso é importante. Julgo ainda necessário acrescentar duas coisas: 1) Que antes de me decidir a falar já me havia decidido a escrever sobre a encenação do Maracangalha e o debate; mas também decidi falar, talvez sob o influxo de certo espírito de intervenção que a própria Temporada do Chapéu aguçou em mim, mas sobretudo porque não acho correto falar pelas costas quando tenho a chance de, mesmo sendo mal compreendido, falar pela frente e dar a meu interlocutor o direito de resposta. 2) Que antes de pedir o microfone para falar esperei um tempo considerável para ver se alguém o pediria primeiro, pois previa que minha fala seria razoavelmente longa.

Comecei declarando minha admiração pela fluidez ou desenvoltura da fala de Haddad e de quase todas as pessoas envolvidas com Teatro que já vi falar publicamente, e me desculpando de antemão por minha fala não ter a mesma desenvoltura. Mas alertei, também, que gostaria de expor minhas questões da forma mais justa possível, até porque talvez pesasse sobre ela a suspeita de impertinência. Impertinência nos dois sentidos: do atrevimento e da não inteira justiça das colocações. Por isso mesmo – por se tratar de uma questão polêmica – eu tentaria ser o mais justo possível.

Em seguida, expus minha concordância quanto ao valor do conceito de Arte Pública exaltado pelo palestrante. Declarei a empolgação que cheguei a sentir no início de sua fala, antes que outros elementos relativizassem essa empolgação. E foi nessas relativizações que me concentrei. Trata-se de algo muito simples, mas que ainda assim precisa ser visto na relativa riqueza de sua dialética. Essas últimas palavras bonitas são todas de agora, e na sequência tentarei expor meu ponto de vista com mais clareza do que fiz no momento.

A meu ver, o conceito de Arte Pública, tal como exposto por Haddad, possui duas dimensões e possibilidades, em certa medida complementares mas em certa medida conflitantes. Por um lado, a ideia de uma transformação radical dos espaços públicos, de reivindicação dos espaços públicos como lugares efetivamente públicos (e não, para remeter à bela fala de Natália Siufi dois dias antes, de mera circulação de mão-de-obra e de mercadorias), nos quais a beleza, a arte e a vida tenham lugar.

Nesse sentido, e até por investir a atividade do artista de rua de uma dimensão marcadamente política (ou seja, por concebê-lo como alguém que atua na polis), tenho para mim que um conceito como o de Arte Pública possui um conteúdo verdadeiramente revolucionário, no sentido de propiciar ou fomentar a única revolução que realmente vale a pena, e que é a revolução pela arte. Pois eu acredito sim que o teatro de rua pode mudar o mundo, e é por acreditar nisso – e não por vontade de glamour – que eu quis intervir nesse debate.

Pois o conceito de Arte Pública também comporta, a meu ver – e isso é tão evidente! – um risco. Esse risco faz parte de seu momento histórico: não é, portanto, um erro. É uma situação. Aliás, não há situação viva que não seja situação de risco.

E esse risco, obviamente, é o do deslizamento dessa potência efetivamente transformadora para uma situação ou um trato institucionais ou institucionalizantes da arte de rua, já que a questão dos financiamentos públicos e do trato com os poderes públicos – ou seja, os poderes que regem os espaços públicos – se coloca aí de forma decisiva.

Como exemplo dessa situação paradoxal – mas, repito, é de contradições e paradoxos que a vida se nutre – citei como exemplo a própria Temporada do Chapéu, financiada com dinheiro público. Declarei a importância, a meu ver, dessa conquista, mas tentei, também, apontar seu limite. E para isso dei um salto discursivo, tentando imaginar uma situação ideal para a arte de rua em Campo Grande e no Brasil: argumentei que o ideal é que iniciativas como essa não fossem necessárias; que a arte pública (que me permito  agora grafar em minúsculas, pois uso o conceito de uma forma que me agrada mais) invadisse cotidianiamente o cotidiano (essa expressão também é de agora), a despeito de editais e financiamentos públicos, ou seja, oriundo dos podres públicos (ou seja, de um Estado que é a base política da realidade social que queremos mudar).

Algo que queria ter dito mas não pude dizer – porque parte do público começou a censurar minha permanência ao microfone – é que eu acredito que o que se faz hoje, ou seja, eventos como a Temporada do Chapéu, pode ser, sim, um passo para isso. Mas para que isso ocorra é necessário a vigilância crítica, sob pena (também acrescento isso agora) de vivermos algo semelhante ao que se deu com o Fora do Eixo.

Em algum momento de minha fala recuperei uma imagem da qual Haddad se valeu, na forma de uma pergunta retórica. Como é que a Arte Pública se comunica de forma tão viva ao organismo social, ele se perguntou. Eu argumentei que achava que era porque, antes de ser social, essa comunicação era individual. Com isso quis dizer que, antes de ser Pública, privada ou qualquer outra coisa, e a despeito, inclusive, dos financiamentos que a favorecem e/ou orientam, Arte é arte, arte é Vida. Antes mesmo – e para além – de ser ideologia, arte é Vida. Senão não é arte, é ideologia. Não sei o que um Brecht diria disso, mas é o que penso.

E quis recuperar essa ideia abstrata mas fundamental, da Arte como Vida acima de tudo, narrando um momento belíssimo da apresentação do Maracangalha naquela noite: o momento em que um dos atores, que fazia as vezes de um operário angustiado, dava simbolicamente seu coração a um menino que assistia o espetáculo junto com a mãe. O menino guardou consigo o “coração” nas mãos por alguns segundos, minutos talvez, antes de se decidir, com olhos um pouco aflitos, a pedir socorro à mãe, a quem “entregou” o coração, que ela “recolheu” e, sorrindo para ele, “guardou” em seu próprio coração.

Essas duas pessoas – sobretudo o menino – foram tocadas pelo Teatro, foram tocadas pela Arte. E é dessa Arte, que toca os corações, que pode advir a verdadeira revolução.

Tivesse eu terminado por aí, e investido um pouco mais no tom grandiloquente, talvez saísse com aplausos. Mas em situações desse tipo – e nisso estou com nisso Brecht – prefiro deixar sempre uma inquietação do que uma satisfação. E expus, já sob a impaciência declarada, possivelmente, da maior parte dos ouvintes, minha derradeira inquietação: a de que as possíveis contradições no discurso de Haddad tivessem relação com a referida oscilação entre pessimismo e otimismo (que tentei expor sumariamente) em sua fala.

Não consegui expor o principal dessa ideia: que essa oscilação se dá em perfeita simetria com a dupla dimensão da ideia de Arte Pública como defendida por ele: de um lado a arte pública (que prefiro com minúsculas) como potência efetivamente transformadora e de outro a Arte Pública (com maiúsculas) como articulação institucional, cujos horizontes ameaçam se estreitar nesse risco.

Terminada minha fala, sentei-me ali perto e passei a ouvir a réplica de Haddad, que começou falando sobre a condição da arte enquanto arte privada como uma especificidade do mundo capitalista. É uma questão que eu também gostaria de debater, mas não agora. O fato é que a fala do palestrante não abordava diretamente as questões colocadas por mim; por isso senti-me à vontade para dar atenção à minha amiga e aluna Inayá quando ela se agachou junto à minha cadeira para externar seu apoio à minha fala, e de agradecer-lhe com uma manifestação de afeto.

Foi quando Haddad declarou, em tom bastante alterado, que aquilo já era demais, que eu era um chato (o que é verdade :)) e que ele estava me expulsando daquele lugar. Não saí, é claro, disse que ele estava se comportando como dono de um espaço público e sendo igualmente chato, que aquilo era uma cena desnecessária diante de pessoas que o admiravam e que aquilo não era o melhor dele. Ele afirmou que era sim, e me mostrou o dedo médio. Um belo dedo, por sinal, mas eu continuo achando que não é.

De lá fui para um espaço privado onde aconteceu outra manifestação artística fenomenal – um duplo show de rockabilly, primeiro da Aristocats, ouro da casa pilotado pela Aline Calixto, e depois da Asteirodes Trio, banda excelente de São Paulo –, mas sobre isso acho que ninguém vai querer ler agora, e a ocasião também merece um post à parte. 

Sou tão fã de Aline e Cia., e também do Fernando Cruz e do Teatro Maracangalha (do qual já havia visto o fortíssimo “Tekoha”, sobre a vida e a morte de Marçal de Souza), como fiquei fã dos Asteróides e do Lobivar ontem, que até reluto em citar (de memória) a frase ou verso (de Lobivar, suponho) que ouvi ontem no espetáculo do Maracangalha, e que quase usei como epígrafe deste post: “Os homens acreditam em deuses, um dia acreditarão em si mesmos”. Deuses, heróis, ídolos...


Fotos de Mara Rojas