VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sábado, 23 de novembro de 2024

O Coringa de Phillips/Phoenix e o fim da picada

 


Atenção, os spoilers começam no segundo parágrafo, e o filme vale muito a pena.

Coringa: delírio a dois (no original, Joker: folie à deux), o aparente remate da breve “franquia” de Todd Phillips (o qual, no entanto, prometeu nada menos que mais quatro ou cinco produtos, se o que eu li não era uma fake news) estava fadado a ser um filme incompreendido, e eu acho impossível que seus realizadores não soubessem disso. Por um lado, a revisão e desconstrução iconoclasta de um ícone tão celebrado da cinematografia pop contemporânea – há poucos dias, alguém muito jovem me exprimiu sua convicção de que se tratava do maior supervilão das grandes franquias de super-heróis – não poderia deixar de gerar o incômodo e a irritação que gerou. Um dos canais do Youtube mais apaixonadamente engajados nesse nicho, o da editora Pipoca e Nanquim, anunciou sua review com o subtítulo “uma decepção que dói nos ouvidos”. A ideia de decepção é bem sintomática do que ocorre aí. Já a propósito do primeiro filme, alguém – também no Youtube, talvez no mesmo canal, ou no Omelete – listava argumentos para mostrar que aquele Coringa não tinha nada a ver com o clássico inimigo do Batman, e que sua história faria mais sentido se fosse a história de um outro louco qualquer. É esse descolamento – ou, se me permitem insistir, essa desconstrução radical – que já então incomodava e agora incomoda muito mais.

Afinal, não é mesmo o fim da picada (na sequência, o primeiro e maior spoiler deste texto), conceder ao maior inimigo do Batman um lugar de protagonismo condizente com sua condição de grande supervilão – outros, menores, têm tido esse privilégio – apenas para matá-lo sem ao menos um único combate entre eles? Não seria o caso, mesmo, de questionar o sentido dessa apropriação abusiva e aparentemente desnecessária do personagem? E, no entanto, é essa desconstrução radical que dá todo ou, pelo menos, grande parte do sentido dessa sequência ou, até prova em contrário, dilogia fílmica: porque, a bem da verdade, o que se consuma no novo filme é o fato de que o Coringa vivido por Joaquin Phoenix é uma máquina desconstrutora, ao mesmo tempo minada e potencializada por um rastilho de pólvora apocalíptico. É, aliás, no encontro desses espíritos tão distintos quanto semelhantes – o desconstrutor e o apocalíptico – que os Coringa de Phillips se constituem ou buscam se constituir como obras de arte.

Mas também essa pretensão estava fadada à incompreensão. Nesse caso, o que pesa é o próprio diálogo com a cultura pop, ou melhor, sua apropriação antropofágica em um produto que, não obstante essa intenção ressignificadora, joga com os elementos dessa cultura com desenvoltura e intimidade suficientes para que a aura de “filme de arte” não o revista naturalmente. Esse jogo, no entanto, é apenas um entre outros: o start nessa máquina que só se detém quando nos conduz, de fato, ao fim da picada a que quer chegar, ao fim da picada – para além, mesmo, de qualquer piada macabra – que encena como encenação de um destino que, na alegoria que aí se erige, não é apenas de seu herói-vilão, mas, talvez, da humanidade. Mas também – e este é, talvez, seu pior lado, seu lado mais triste  da crença da humanidade em si mesma, da crença na dita humanidade da dita espécie humana.

Delírios a dois não é – quem dera fosse, ou melhor, pudesse ser sem ser um filme ruim – uma apologia da anarquia ou do anarquismo, e muito menos da sublevação violenta das massas, mas um filme sobre o fim de tudo: o fim do mundo, o fim, antes de tudo, do filme, do cinema. Não por acaso, ao seu lançamento se sucede, quase imediatamente, o de Megalópole de Coppolla, que eu não vi ainda mas já sei que trata disso, talvez em menor escala, porque mais diretamente centrado na crítica ao estado atual do cinema hollywoodiano, cujo ethos antecipa, de há muito, a ascensão do trumpismo na política norte-americana. Nos Coringa de Phillips e seu parceiro de roteiro Scott Silver, a escala dessa crítica é provavelmente mais ampla, porque eles encenam a desconstrução e destruição mútua dos gêneros, e os gêneros são coisas que geram, degeneram e geram degenerescências com a mesma força proliferante. Ao jogar com gêneros ou subgêneros incompatíveis, Phillips produz uma bola de neve que arrasta consigo o impulso épico, a comicidade e a tragicidade que permeiam sua “franquia” desde o início.

A recusa em situar-se nos limites dos filmes de supervilões – e, portanto, super-heróis –, esse gênero relativamente novo (mas há, por exemplo, o Diabolik dos anos 60) que coroa a ascensão do cinismo como horizonte ético, é visível desde o primeiro filme, e desde aí em certo conluio com a espetacularização coreográfica que no Delirio a dois explode como assunção do gênero musical. Aquele gérmen de vida, da plenitude da vida, que habitava o corpo esquálido de Arthur Fleck/Joaquin Phoenix floresce, agora, sob o impulso do enlace real, breve mas intenso, que, ao contrário do delírio amoroso solitário do primeiro filme, se consuma de fato na relação com a personagem vivida (muito bem, a meu ver) por Lady Gaga, mas só para morrer da forma mais miserável. Não tenho notícia (e gostaria de ter, se fosse o caso) de um musical – porque se trata, sim, de um musical – com um fim tão desolador. E, sim, trágico, porque não é a regra aristotélica do herói elevado que anula a tragicidade desse, no fundo, homem comum. Mais que trágico, porém, desolador: se há algum rastro da dignidade e do sentido catártico que revestem o destino da vítima sacrificial na morte de Arthur Fleck, é porque não pode deixar de haver, já que a tradição pesa imensamente nesse sentido. E tampouco se nega dignidade humana ao personagem, que no entanto se vê devorado pela indignidade da vida da qual ele é parte e que ele fomenta. Eis, talvez, a maior decepção de Delírio a dois para os batmaníacos: o glamour que se entrevia nos passos dançantes de Arthur, como que anunciando o “super” em vias de alçar voo no fim do primeiro filme, rui completamente aqui.

A forma dessa ruína não poderia ser mais sintomática: à desconstrução do musical, do supervilanismo e do super-heroísmo (notando, de passagem, que dessa vez o pequeno Bruce Wayne não é sequer mencionado) cinematográficos, soma-se ainda, em Delírio a dois, a dos chamados filmes de tribunal. Desde o primeiro filme, Coringa invoca questões éticas e morais, e não apenas sociais e psicológicas, com inegável seriedade. A fala de Arthur sobre a efetividade de sua maldade tem um peso que não descola as questões do sentido e da origem da vilania das problemáticas sociais, relacionais e psicológicas, mas coloca a questão da responsabilidade individual para além não só da empatia e da percepção ética como de qualquer diversão e diversionismo estéticos. É com toda seriedade, portanto, que Delírio a dois se vale desse gênero de pretensões tão nobres – lembre-se, por exemplo, de Fúria de Fritz Lang e O veredito de Sidney Lumet – que é o “filme de tribunal”, e, no entanto, não o faz senão para implodi-lo ou, quase literalmente, explodi-lo. Mais que a leitura da decisão do júri que ela interrompe, a explosão do tribunal como que subtrai a própria ideia de justiça do horizonte do filme. No fim das contas, sequer somos informados quantas foram as vítimas, mortos e/ou feridos, o que me parece menos uma falha de roteiro do que um ato proposital, que reencena pelo avesso, ou seja, pelo silêncio, o desprezo pela vida contido e normalizado na assimilação da morte às estatísticas e ao espetáculo.

Na cena que fecha a sequência da fuga de Arthur, Delírio a dois se vale da licença poética típica dos musicais para fazer o personagem se deparar, pela última vez e de forma absolutamente inverossímil, com sua parceira de loucuras na escadaria que marca simbolicamente seu destino desde o primeiro filme, mas somente para conduzi-lo, realística e paradoxalmente, de volta à prisão. O “musical” se encerra sem o fim que o cenário promete, assim como a “piada” do assassino e, a seu modo, pupilo de Arthur termina com o esgar e o olhar parado deste, silenciando para sempre seu riso patológico. A lei, mesmo endossando a seu modo a máquina mortífera na qual Arthir e seu algoz estão imersos, é como que suplantada por ela na própria execução a que se outorga. O fim de Delírio a dois é o fim da piada, mas também dos sonhos e delírios de amor e justiça, social ou de qualquer tipo. O fim da picada. No limite, do mundo, pelo menos desse mundo onde matar e morrer se tornou banal demais para que se possa extrair algum sentido da morte de quem quer que seja, culpado ou inocente. Se algo sobra, se é que sobra, é a autenticidade dos sentimentos de Arthur, mau e bom, algoz e vítima, humano e desumano como nós. É muito pouco, em todo caso, para um filme hollywoodiano. Minha impressão é que Phillips se valeu da licença propiciada pelo sucesso algo equivocado do primeiro filme para produzir um fracasso calculado, e que tê-lo realizado com esmero é seu maior sucesso. Hollywood e os cultores de suas franquias (sem aspas) precisavam e precisam disso: antes uma bomba simbólica que uma bomba real.

Para não fechar assim, apoteoticamente, permito-me contrastar a situação de Delírio a dois com a de Furiosa, prequela de Mad Max: estrada da fúria cujo fracasso nas bilheterias foi amplamente lastimado pelos cultores da franquia, e que não obstante é um filme ruim, que dilui o sentido crítico do anterior e guarda dele sobretudo o messianismo ambíguo, espetaculoso e, agora, singularmente cruel. “Feminista” ou não, George Miller se avizinha aí nitidamente do fascismo. Cirúrgico e proliferante a ponto de minar as bases do cinema como espetáculo, o aparente niilismo de Phillips me parece muito superior a isso.

Um quase pós-escrito: alguém aventou a possibilidade de que o “verdadeiro Coringa” seria o filho de Arthur que a personagem de Gaga diz trazer no ventre (o que, inclusive, inverteria e diminuiria a disparidade etária com Bruce Wayne). Não é impossível, e nesse caso talvez eu esteja redondamente enganado. Ou não. O fato é que, dado o fracasso estrondoso de Delirio a dois, dificilmente saberemos.

Agora sim, um p.s.: minha leitura, sobretudo no que tange à questão dos gêneros, é muito influenciada pela de Jacques Derrida da narrativa La folie du jour, de Maurice Blanchot, no ensaio A lei do gênero. Para quem se interessar, segue o link do texto:

https://revistas.uepg.br/index.php/tel/article/download/13793/209209213291/209209224584


P.s. tardio, de horas depois da postagem

Só agora assisti alguns reviews mais compreensivos e esclarecedores de Delírio a dois, que, para além das diferenças de leitura, apontam coisas que me escaparam total ou parcialmente, além de elementos que ignorei por preguiça ou esquecimento, como a animação que abre o filme, Para não reescrever meu texto, como tenho vontade, contento-me em deixar os links de dois deles, recomendando fortemente a belíssima resenha de Isabel Boscovi (o primeiro) e a análise minuciosa de P. H. Santos (o segundo), a mais próxima de minha leitura; já o terceiro, do canal Sessão Nerd, traz uma enxurrada de easter eggs, quase todos interessantes, um deles produzindo um plot twist espectral sobre a questão do “verdadeiro Coringa”:

https://www.youtube.com/watch?v=Z_fEN4sT6-Q

https://www.youtube.com/watch?v=vpyMtPD1Mjc

https://www.youtube.com/watch?v=rhi-CAJ0Y0w


segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Burning Universe sobre as cinzas de Big Field

Este blog já está há tanto tempo parado que só mesmo em caso de incêndio pra dar sinal de vida. E olha que o Cólera passou como um furacão por Campo Grande e eu não me animei a celebrar o fato aqui. Mas ver a Burning Universe novamente, depois de mais de dois anos, foi o estopim pra que eu finalmente escrevesse sobre essa banda que há mais de uma década faz o Caos e o Cosmos arderem em Big Field; tanto que é de se espantar que este vasto pasto ainda esteja de pé (ou não, e nós é que nos iludimos dentro da Matrix).

Vale notar que, na noite em que a revi, a Burning tocou na sequência de uma banda – a excelente Atropelo, de Rio Brilhante – que também impressiona pela potência sonora e pela performance, com uma teatralidade radical à base de maquinários industriais e pirotecnias agressivas. Confesso que temi que, depois disso, a Burning não fosse dar conta do recado, mas me enganei redondamente: a banda campograndense não só fez uma de suas apresentações mais impactantes como deixou claro que sua mistura de reflexão, agressividade e primor musical está cada vez melhor e mais explosiva.

Com um EP (O espectador do tempo, 2013), um CD (O esquizofrênico curado, 2015), alguns singles recentes e incontáveis shows memoráveis no currículo, a banda formada por Danilo Leal (voz e guitarra), José Roberto (guitarra), Lincoln Keiser  (bateria) e, agora, Disney Filho no baixo (posto que já foi de Eziel de Oliveira e de Tomaz Leal) se define como post-hardcore, o que certamente diz muito, já que seu trabalho consiste basicamente na energia precisa e veloz do hardcore a serviço de uma sonoridade mais burilada, graças principalmente ao jogo das guitarras.

Já as letras de Danilo, se inserem na linha de reflexão social e existencial que o hardcore herda diretamente do punk, revelando o discípulo de Redson, Jello Biafra, Enrique D.D.O. e outros poetas marginais do rock underground. A alienação, a ostentação, a intolerância, a solidão e a falta de sentido de um mundo doente despontam como temas quase obsessivos em canções como “Engrenagens”, “A solução”, “Círculo vicioso”, “Congelamento global” e, com um acento intimista, “O espectador do tempo”:

As imagens cada vez mais bonitas,
Escondendo os enredos cada vez mais sujos
E não se esqueça de registrar o momento
Segurando um copo de felicidade descartável
(“Círculo vicioso”)

Quero injetar em suas veias as minhas verdades
Eu não posso aceitar que eles pensam diferente de mim
Gradativamente enlouquecendo, coletivamente
São retratos de uma humanidade em estado terminal
(“A solução”)

Você não quis ouvir ninguém
E o tempo insistiu em passar
Sem você perceber
Que a doença tomou conta de você
E é cada vez mais difícil levantar
E eu vejo em seu semblante vontade de chorar
(“O espectador do tempo”)

Uma sonoridade feroz e trampada amplifica a urgência desses versos. Enquanto Danilo despeja suas letras ácidas em berros altenados com partes cantadas perfeitamente inteligíveis, a maquinaria pesada de Lincoln e Disney se encarrega do massacre sonoro. Mas enquanto as letras expõem seus dramas vivos, o som é, mais que catártico, libertador. Visceral e explosivo mas ainda assim melódico, cheio de nuances harmônicas e variações rítmicas, o trabalho musical da Burning cumpre o que a letra de “Engrenagens” promete: a libertação efêmera (e, portanto, potencialmente viciante) proporcionada pela própria música:

Este ensaio precisa ser rápido
A vida urge
Depressa
Pegue esse arranjo e vamos dançar
Ao som dos berros daqueles que ainda têm tempo de sentir
Feche os olhos
Balance sua cabeça como se ela fosse sair de seu corpo
Aproveite enquanto essa droga faz efeito
Pois amanhã, todos nós voltaremos para dentro do relógio

A própria trituragem acústica, com a assistência do baixo furioso e poderoso, ajuda a abrir as portas da percepção “daqueles que ainda têm tempo de sentir”, e o jogo de harmonias e texturas sonoras das guitarras e das variações vocais cria um sentimento realmente cósmico: a explosão furiosa de uma psicodelia punk-hardcore. A Burning Universe faz jus a seu nome.

E também o impacto visual desse nome se plasma de diversas formas no trabalho da Burning, desde as capas fortemente conceituais – a de O espectador do tempo tematizando a alienação midiática e a de O esquizofrênico curado emulando a estética steampunk –, passando pelos elementos cinematográficos das letras até as explosões musicais dos registros e, mais ainda, das apresentações da banda: além do impacto sonoro duplicado, que em seus grandes momentos cria um clima quase transcendental, há as performances arrasadoras de Danilo, com suas caretas medonhas acompanhando os guturais e seus saltos incríveis. E como nem ele nem os outros são exatamente pequenos, é quase uma batalha titânica o que assistimos no palco.

Mas esse titanismo juvenil  quase infantil, pode-se dizer, no sentido de uma pureza primal  não se separa da sobriedade que rege o lado conceitual da banda. A batalha não é apenas contra a lei da gravidade ou os limites dos corpos com seus instrumentos, mas contra tudo o que torna essa libertação catártica não só bem-vinda como urgente. Caso se reduzissem à sonoridade potente e burilada, talvez as canções e apresentações da Burning fossem apenas mais uma peça na imensa engrenagem de vícios e compensações que a música e a cultura undeground não deixam de integrar. Mas a aposta sonoro-conceitual da banda é outra: incendiar as mentes e explodir as amarras da percepção pra libertar o ser pensante da Matrix que se multiplica em bolhas cada vez maiores.


Fotos de Maurício Costa (primeira foto, em p&b) e Josi Grenge.

P.s.1 - Se eu tivesse tempo, este texto seria também sobre o retorno da cena underground em CG: as festas lotadas, as rodas animadas como nunca, a presença marcante, embora ainda pequena, de um público feminino, as bandas persistentes mandando tanto ou mais do que antes e as novas ocupando a cena pra valer, com destaque no primeiro caso para a formação mais básica da Bravo e Meio (ex-Bravo), com o vocal mais rascante de Guilherme Teló, e no segundo para o horror-punk com temática local da Pata de cachorro.

P.s.2 -  Prestes a concluir este texto, tenho acesso em primeira mão à capa sóbria e angustiante, dramática e friamente cinematográfica, do novo CD da Burning, Estado terminal. Como o nome e os singles já revelam, as novas letras insistem em tocar nas feridas abertas de nosso tempo.

Burning Universe no bandcamp: https://burninguniverse.bandcamp.com/

sábado, 29 de junho de 2019

Um Brasil procê ver (ABrazylForYouSee)



I

Chegaram quase no fim da tarde, num horário em que já era perigoso entrar na Mata. Sem falar que, apesar das carnes rijas e das peles de bebê, eram Velhos (Oldyes): ele beirava os cem, ela os cento e vinte. No dia seguinte, garantiu-lhes o guia, teriam todo o tempo do mundo.

– AllRyght, respondeu o Velho.

O guia foi dormir tranquilo, mas eles não. WhatTheFückey, não tinham cruzado o AbismoDoPanamá pra dormir! E tanto melhor, livrarem-se logo do guia. Teriam de fazer isso cedo ou tarde, e, de qualquer forma, o GuiaQuântico (QGuyde) era muito mais confiável.

Saíram às escondidas, depois de pegarem as mochilas com os Apetrechos (Apparatus), incluindo o DespistadorQuântico (QDeceyver), que os ocultaria dos rastreadores e câmeras de segurança. Um mecanismo polêmico, mas eles tinham licença de uso: eram pais e avós de AgentesFederais.

Foram a pé, confiantes na saúde, no ânimo e nos Apetrechos. Em todo caso, estes incluíam relaxadores quânticos de última geração. Tudo nos conformes para viverem uma verdadeira GrandeAventura (BygAdventure), conforme combinaram e selaram com um aperto de mãos, olhos nos olhos, faros apurados. Cheiravam a óleos.

Ele ia na frente, por pura convenção. Sabia que quem guiava, de fato, era ela, que pisava mais duro. Nunca expressaram a menor consciência disso, mas uma determinada pisada dela o fazia parar, outra mover-se, outra virar à esquerda, outra à direita.

Seguiam pela RotaDasPedrasRetorcidas, o caminho mais longo e mais árduo. Queriam apreciar a paisagem devastada. Quando alcançaram a Mata já era noite.

Na Aldeia, o Pai disse ao Filho:

Estão vindo. Vai.

E o Filho foi.

II

Não muito longe da entrada da Mata, os Velhos encontraram um EspécimeAnimal e mataram-no. Há meses não viam um, pelo menos desse porte, em seu habitat natural. Conforme o rodízio, coube ao Velho a primeira tentativa. Mas ele tinha mania de não usar os RecursosQuânticosDePrecisão (QPrecysyonTools) em caçadas, por isso o bicho fugiu; por sorte, ela foi rápida e eficaz o bastante para abatê-lo.

Cumpre notar que agiam dentro da lei, aliás, faziam-na valer: há mais de um século, mamíferos e aves só podiam viver em cativeiro ou em campos de caça privados. Não era o caso da MataDoNorte do GrandeDomínioSul (BygSouthDomayn), administrado pelos ClarosSulistas (SouthmenPale), os legítimos descendentes dos AntigosSenhores da EraAntiga (AntyquosEra), mas que ainda continha vestígios de PovosPréAntigos, os SemiHumanos, principalmente nas regiões dizimadas pela DerradeiraGuerra (UltymateWarUWar).

Com uma hora e pouco de caminhada, chegaram a uma gruta, a primeira e última indicada no GuiaQuântico. Dali em diante, tudo era incerto: desde a UWar, as instabilidades magnéticas e radioativas da área, uma vasta ÁreaInstável de milhares de quilômetros, impediam que o QGuyde atualizasse o mapeamento. Na verdade, ele o atualizava e, ao mesmo tempo, incluía uma miríade de potenciais eventos futuros no resultado, gerando um caos indecifrável.

Não era isso, naturalmente, que os havia atraído até ali, e sim os boatos, sempre desmentidos mas nunca refutados, acerca de um Brasil (Brazyl) incrustado naquela ÁreaInstável. Por muito tempo os cientistas da BAN (BygAmerycanNatyon) sequer reconheceram a existência dos Brasis, atribuindo-os às mitologias nativas da região, mas nas últimas décadas vários exemplares haviam sido registrados e mesmo apreendidos para fins de estudo e exibição pública.

Acamparam na entrada da gruta: o QGuyde indicava a presença de substâncias desconhecidas, potencialmente tóxicas, no interior. O ar nauseante da selva os excitava, por isso fizeram SexoProgramado: sob hipótese alguma ela viajava sem o QSex. Escolheram, como quase sempre, o Programa112, ou VórticeExtático, também chamado de CavalgadaGiratória. Quando ela chegou ao orgasmo, ele já estava há meia hora no 100% automático, roncando sonoramente. Esquecera de trazer o InibidorSônico, o idiota.

A vários quilômetros dali, o Filho apurava os sentidos, confirmando a direção indicada pelo Pai.

III

Acordaram com o alerta do QGuyde tão logo este identificou a presença do CorpoEstranho no limite do seu raio de ação, ou seja, a menos de cem metros da gruta.

O Velho foi o primeiro a ver o Filho. Dessa vez não vacilou: ativou o AparatoBélicoCompleto (ApparatusBellicusCompletusABC), incluindo os Recursos DePrecisão.

– Paygun!, gritou.

– Pagan, corrigiu a Velha.

Não! No, no! Khrystyan!

O Filho exibia a DuplaSaudaçãoDaTerraUnida: uma continência com a mão direita e, com a esquerda, o GestoDaTrindade (TrynytyHand), vulgarmente conhecido como UmDoisTrês (OneTwoThree).

Impressionado com a perfeição da pronúncia e do gesto (os três dedos firmemente arqueados para trás), o Velho passou o Aparato do ModoPréAtivo para o ModoDeAlerta.

– OnKnees!, gritou.

O Filho se ajoelhou.

– YouKhrystyan?

– Yes, respondeu o Filho.

– Swear!

– YSwear!

– YnLat'Englysh!

– YTestor!

– YnNamenyPatry!

– YTestor!

– YnNamenyFylly!

– YTestor!

– YnNamenyMöney!

– YTestor!

– VeryWell... NowYKyllYou!!

Não! Eu tenho um Brasil procê... Sorry! ABrazylForYouSee!

– What?!, fez o Velho.

– ABrazylForYouSee, repetiu o Filho.

– OhYes!, fez a Velha.

– KallMeSyr!, gritou o Velho para o Filho.

– YesSyr! SorrySyr!

O Pai o havia instruído muito bem.

IV

Os Velhos seguiram tranquilos, confiantes e em boa velocidade até o LimiteDeSegurança. Valiam-se de seus AceleradoresQuânticos (QAcceleretors); o Filho ia entre os dois, meio que correndo para não ser totalmente arrastado. A partir dali, no entanto, os Apetrechos não funcionariam mais; não em condição seguras, pelo menos.

– TooLong?, inquiriu o Velho.

– NoSyr!, respondeu o Filho, repetindo a DuplaSaudação.

Aconselhou-os, então, a deixarem ali os Apetrechos, que pesavam um bocado, principalmente o AparatoBélico. Eram impermeáveis, mesmo a chuvas ácidas, e inamovíveis por terceiros. Mas os Velhos se recusaram energicamente. Sobretudo ele, que amava terrivelmente seu Aparato: seu NúcleoFamiliar (FamylyarNukleus) havia feito fortuna fabricando MiniBombasAtômicas (MynyABombs) no período conhecido como EstadoDeLoucura (KrazyState).

Dois quilômetros adiante, porém, atingiram o GrandeRioMorto (BygDeadRyver) que atravessava e estendia-se para além da Mata. Era um vasto e caudaloso rio de lama química, semissólida e intensamente colorida.

– OhWonderful!, exclamou a Velha.

Ambos olhavam devidamente embasbacados, com os queixos caídos e os punhos nas cinturas. Ele, na verdade, fingia: era insensível à beleza, como ela constatara inúmeras vezes. Mas seguia fielmente as convenções.

O fato é que ali tiveram de deixar os Apetrechos. O trajeto fazia-se pelos pontos menos instáveis do lamaçal, alguns arriscados, embora em outros fosse possível até montar acampamento, conforme garantiu o Filho. Mas não era a ideia: queriam chegar à Aldeia até a LuaAlta (HyghMoon). O Filho teria preferido descansar, mas lhes assegurou que conseguiriam.

V

Foi uma travessia lenta e difícil, agravada pela discussão dos Velhos acerca do cheiro do rio, que ele afirmava ser fétido e ela Wonderful, além da pouca destreza dele. A certa altura, deu um mau passo e enfiou-se na lama até a cintura.

– OhMyGödey! YDyyng! HelpPlease! ForMyMöney!

Ela arrancou-o de lá de qualquer jeito, ardendo de vergonha do Filho, que se manteve discreta e educadamente de costas.

O Velho se desculpou: sentia-se desamparado sem os Apetrechos. Ela o mandou calar a boca: se estivesse com os Apetrechos, teria afundado até o pescoço.

Ambos, então, quedaram pasmos: ela nunca o havia advertido – muito menos ofendido – daquela forma. Não, pelo menos, em voz alta o suficiente para que ele ouvisse. Lembraram-se, então – ela primeiro que ele –, da costumeira advertência acerca das InstabilidadesPsíquicas provocadas pela permanência excessiva em ÁreasInstáveis.

Ele teve medo. Ela tomou a dianteira, apertando o passo.

VI

Não houve mais incidentes até a Aldeia. Chegaram, de fato, com a LuaAlta luzindo, só e esverdeada, sobre suas cabeças.

Esverdeadas, também, as paredes de concreto da Aldeia, tanto pelo avanço das trepadeiras quanto pela corrosão do ar. O Pai os aguardava sob um grande PórticoAntigo.

O Velho amava a ArquiteturaAntiga, e deplorou encontrar a construção, que conhecia de imagens anteriores à UWar, em condições tão lastimáveis. Mesmo sabendo da condição inabitável das ÁreasInstáveis, nunca entendera como os PovosAntigos puderam abandonar obras e lugares tão magníficos nas mãos dos SemiHumanos. No alto do Pórtico, uma EstátuaVendada, cujo significado se perdera na DerradeiraGuerra, empunhava sua EspadaPréAntiga e sua enigmática EngrenagemDePratos.

Mesmo esgotado, o Velho deu início imediato ao RitoDeCumprimentoDiferencial:

– OnKnees!

– Non'This, disse o Pai. WeSendHere!

A pronúncia era ainda melhor que a do Filho. Indeciso, o Velho olhou para a Velha. Esta sacou um recipiente alongado dos seios fartos, no qual se lia, em letras douradas, o LemaSagrado da BANYnGödey AndMöneyWeTrust, e que, aberto, revelou um novo brilho esverdeado, e muito mais intenso que o da lua.

– QDöllars!

Eles deviam saber, a julgar pelo NívelLinguístico e de ConhecimentoDosRitos, que as MoedasQuânticas dependiam da emanação dos SinaisVitais de seus Fiadores para terem Valor.

– WeNoNeedMöney, respondeu o Pai.

Ela gelou.

– NoEatHumansToo.

Ela suspirou.

O Velho tinha se borrado todo. O tecido nanotecnológico do Uniforme estava desregulado, e, ao invés de absorver as fezes, banhou-o com elas.

– K'mon, disse o Pai. SeeTheZyl.

– Zyl?!, fez a Velha.

– Zyl, Brazyl.

– OhYes!

Seguiram por uma trilha espinhenta. Os Uniformes, ao invés de protegerem do incômodo das espetadas, intensificava-o. O Velho tentou se coçar mas a Velha impediu-o com um tapa.

– Quyet!

Ele recuou, assustado e acanhado.

Depois subiram por um MorroDeEntulho, na verdade um GrandeAnelDeEntulhoDerretido cuja vista se perdia de ambos os lados. Os Uniformes passaram a absorver e intensificar a radioatividade do ambiente, de modo que o Velho e a Velha tiveram de livrar-se deles. Seguiram nus, como o Pai e o Filho que iam à frente.

Fizeram, então, a travessia das AreiasPretas, longa e tensa, imersos no breu absoluto afora o brilho verde da lua. Alguns quilômetros adiante, chegaram a outro AnelAtômicoGeológico, dessa vez na forma de uma leve depressão que exalava uma umidade nauseabunda. Na iminência de adentrá-la, a Velha curvou-se, dobrou os joelhos e vomitou. O Velho, que vinha transtornado e excitado atrás dela, penetrou-a sofregamente, com o produto de sua primeira ereção espontânea em quase trinta anos, fazendo-a atirar-se urrando na depressão. O Pai e o Filho precisaram socorrê-la.

O Velho, confuso mas afoito, lambuzado de esperma e outras coisas, seguiu em frente:

K'monBastards!

– KeepKalm! Yt'sKlose, assegurou o Pai.

Uma hora depois de ultrapassarem a ravina, ordenou:

– Stop!

O Filho já havia estacado a dois passos. Os Velhos, arrastando-se atrás, deixaram a cabeça descansar no pó vermelho do ChãoImpuro.

VII

Os primeiros raios solares, pálidos e acinzentados, tremulavam no horizonte. No fundo da cratera, o enorme CarvãoAceso ardia com uma violência trêmula e estéril, agonizando em seu próprio calor. Não demoraria trinta anos para se apagar, certamente dando origem a um DiamanteMorto (DyamondDye). O decepcionante nos Brasis era isso: tão logo se extinguiam, seus núcleos se tornavam DiamantesMortos, de BrilhoZero. Ainda assim, eram sempre impressionantes. Para muitos, o maior espetáculo da Terra.

Os Velhos já haviam visto Brasis maiores, mas jamais numa ÁreaInstável e, muito menos, Impura como aquela: Brasis que ardiam em GrandesMostras, caríssimas, para muito poucos, mas não exclusivamente para eles e seus olhos ávidos.

Empenharam-se em obter a Visão (Vysyon). A Velha, como sempre, foi a primeira a vislumbrar o EspíritoBraseiro (BrazyerSpyryt) no âmago da imensa pedra ardente. Mas logo o Velho também o distinguiu, sentindo-se excitar de novo.

O Espírito, no cerne do Brasil, agitava-se num frenesi de saltos descontrolados, lançando mãos, pés e joelhos para o alto como um ServoAutômato em pane, girando sobre si mesmo como um SimuladorDeFuracões, vibrando como um VibradorQuântico, mas com tal leveza e graça, com tal promessa de ÊxtaseArdente, que fazia quem quer que o visse querer juntar-se a ele. Por isso as grades de proteção eram obrigatórias nas GrandesMostras.

– ALyttleAndBeautyDevyl, balbuciou o Velho.

– ABygAndBeautyAndLovelyDevyl, corrigiu a Velha.

Nunca, antes, tinham sentido sua FrialdadeInterior se aquecer de forma tão intensa como diante daquela Visão. Ela pulou primeiro. Ele ainda vacilou um instante, mas o Pai ajudou-o, de leve, com o bico do pé.

O Filho, exausto e um pouco melancólico, perguntou qual dos corpos deveria ser destinado a GRANDDANU, o GrandeDeusDoAbismoNuclear. O Pai respondeu, sem vacilar e em bom português:

O dele, claro. O Brasil merece o melhor.

quarta-feira, 15 de março de 2017

Selvagens alquimias no Rock MS (Parte II)


Finalizar essa postagem sobre as “selvagens alquimias” na atual cena roqueira de Campo Grande foi um pouco mais difícil do que eu pensei que seria. Talvez pelo fato de que escrever sobre Os Alquimistas é um desafio que eu tento encarar desde que os vi pela primeira vez. Na verdade, desde que os ouvi, pois antes disso alguém já me havia me mostrado os três então garotos de ar meio nerd, meio junkie, sem que eu tivesse conseguido acreditar que eles tocavam tanto quanto se dizia.

Pois é, foi preciso ver e ouvir pra crer. De formação atípica – baixo (Perin), teclados (Leota) e bateria (Boloro) –, os Alquimistas são pura energia, mas energia oriunda de muita habilidade instrumental. Com uma cozinha destruidora – a marcação forte e os fraseados curtos do baixo de Perin e a bateria de ar caótico mas precisa de Boloro –, sobre a qual o teclado de Leota viaja em melodias nervosas e solos virtuosísticos com toques psicodélicos, os meninos, no início, mandavam principalmente covers enfezados de Beatles, Stones, Kinks, Mutantes e às vezes até um Raul, e várias coisas que eu não conheço. Que eu me lembre, a única música autoral do repertório era uma colagem de ditos populares.

Mas de repente, como que do nada, as canções autorais começaram a aparecer. Rock songs tão básicas quanto as que inspiraram a banda no início, de letras curtas e divertidas mas nem por isso menos sinceras. Sinceras e só aparentemente banais, pois condensam, em pequenos insights poéticos, as demandas de uma parcela importante da juventude de hoje.

De fato, os temas de Perin exprimem as experiências e os questionamentos daqueles a quem se costuma chamar, preconceituosamente, de “rebeldes sem causa” (como se o que mais sobrasse, em todo lugar, não fosse motivo pra rebeldia). Mas justamente por serem sinceras, por não fugirem dos temas reais desse universo, é que as canções dos Alquimistas podem extrair dele um tipo de arte: uma arte muito crua mas de um vigor que também traduz um tipo de grandeza, um tipo de genialidade que pode parecer puramente instintiva mas que é também conceitual, porque esses garotos sabem muito bem o que fazem e do que falam.

De classe média ou não, Os Alquimistas são jovens – e porta-vozes de outros jovens – que decidiram não abrir mão da integridade de seu ser, e lutam de alguma forma, ainda que às vezes contraditória, por ela. Jovens, sobretudo, que se recusaram e se recusam a vender ou tolher sua liberdade. Jovens de classe-média que preferem repartir seus transbordamentos musicais delirantes e amorosos com jovens como eles do que fazer de tudo pra se tornarem profissionais bem pagos.

E não é preciso que as letras de Perin digam essas coisas expressamente pra que exalem tudo isso, nas reivindicações mais prosaicas, por exemplo, de relações livres e de pessoas e uma cidade que sejam melhores do que são hoje:

Eu gosto mesmo de você
Ah, isso eu não vou negar
Mas eu não quero andar
De mãos dadas com ninguém por aí
..........................................................
Eu gosto de você, mas
Quem precisa de duas sombras?
Eu não
(Duas sombras)

Eu já não sei mais para onde vou
Pois todo lugar que eu vou
Pra mim é batido
Pra mim é batido

Eu já não sei mais com quem conversar
Pois todo mundo com quem converso
Acaba o assunto
Acaba o assunto
(Cidade pequena)

Não me venha com esse papo outra vez
Pois toda essa babaquice me deixou maluco pra burro
Se ao menos você fosse uma pessoa do tipo
Que procura entender um assunto profundo a fundo

Nós poderíamos conversar
Nós poderíamos conversar
Mas não dá
Não dá, não dá
(Não me venha com esse papo outra vez)

Só quem mora numa cidade pequena (não importa o número de habitantes) e tem plena consciência disso compreende o alcance desses versos. Só quem tem esse incômodo pode entender o quanto essas letras retratam, em pinceladas rápidas mas precisas, a “vida íntima” de todo um universo social. Pra falar mais claramente, a realidade social e cultural de um campo que pode ser grande, mas o resto não é tanto.

E, no entanto, é com algo muito próximo da magia, com uma alma que exala beleza e liberdade, que as canções dos Alquimistas exprimem tudo isso. Aliás, antes mesmo de exprimir, elas já nos lavavam disso, pois só pode ser esse o efeito de uma música tão livre numa realidade tão pequena. 

É verdade que essa alma era mais sensível no início, quando o repertório de covers era explorado com alegria quase infantil, os meninos se lançando de forma quase alucinada aos instrumentos, imersos no prazer corporal e espiritual de saber brincar tão bem de música. Mas a verdade é que Os Alquimistas ainda estão começando...

E depois de rasgar tanta seda pra eles, nem sei ainda se tenho forças pra falar do seu subproduto chamado Sexy Burger...

Subproduto no bom sentido, porque a banda capitaneada pelo alquimista Boloro, e que agora conta com o também alquimista Leota nas baquetas e ainda o ex-outras coisas Diego Reinhardt na guitarra e a estreante mas desde sempre musa Mariana no baixo, não deixa de ser uma evolução em relação aos Alquimistas, pelo menos no sentido de que traz um repertório mais raro e seleto, com destaque para a cena protopunk novaiorquina.



Pra falar da Sexy Burger é preciso falar do Boloro, e se eu fosse definir o Boloro diria que ele é uma mistura de Lou Reed com Iggy Pop, mas com uma alma de Peter Pan por trás dessa velharada toda. Pra não pegar tão pesado, vamos substituir o Peter Pan, sei lá, pelo Ringo Starr. O fato é que Boloro sempre foi ao mesmo tempo o mais soturno e o mais leve, quase etéreo, dos Alquimistas, e é ele quem está à frente na Sexy Burger, com sua voz grave e rasgada, peculiarmente bêbada e vigorosa.

O contraponto e complemento perfeito dessa voz é a guitarra solo rascante e alucinada de Diego, à qual a cozinha do baixo, da bateria e da guitarra base do próprio Boloro dão sustentação perfeita. Leota, o tecladista alucinado dos Alquimistas, vira um monstro na bateria, distribuindo com fartura pancadas secas de dar dó.

O que falta agora à Sexy Burger é a produção autoral. Além de namorar, o casal Boloro e Mariana podia topar esse desafio. Ou, de repente, todos eles juntos. Aí, quem sabe, nascerá no céu de Campo Grande uma estrela capaz de brilhar sabe-se lá em quantos continentes e sistemas solares... ou, não importa, uma estrela pouco conhecida (eu, pelo menos, não conhecia) como a Big Star adorada pelo Boloro, mas de grandeza única.

Algo, em todo caso, que a gente percebe que está brotando na cena cultural de Campo Grande – e, claro, de outros lugares –, pelas mãos dos artistas que integram as bandas de que falei nesses dois posts e ainda outras, como a Macumbapragringo, projeto instrumental de Rafael Omar com outro corumbaense radicado em Campo Grande, Jean Santos, ou o projeto solo do próprio Omar, ou ainda a precocemente finada The Linquentes e outras coisas que estão começando a acontecer. Porque os selvagens alquimistas não param de chegar.