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24 de setembro de 2008

Bens públicos, abusos privados 

Por Vital Moreira

Nada como as viagens domésticas de Verão para nos darmos conta não somente da riqueza patrimonial e paisagística do nosso país, mas também das nossas desventuras cívicas e dos nossos atrasos civilizacionais.
Há dias, o PÚBLICO dava conta dos prejuízos ambientais resultantes da invasão de autocaravanas na costa protegida do Alentejo, ocupando abusivamente praias e falésias, degradando o meio e gerando problemas de sustentabilidade ambiental. Infelizmente, a proliferação do autocaravanismo selvagem nas zonas litorais protegidas é somente um exemplo da degradação e da depredação dos bens públicos de uso colectivo em Portugal.
O desmazelo e o abuso individual dos bens públicos constituem dois dos mais deprimentes sintomas do atraso social e de incultura cívica no nosso país. Desde o abandono de lixo por tudo quanto é sítio até à pura e simples ocupação de espaços colectivos por construções clandestinas, tudo vale entre nós. Sem margem para esperanças indevidas, nada parece melhorar com o passar dos anos, antes pelo contrário.
Em primeiro lugar, será difícil encontrar um sítio público neste país isento de detritos da presença humana. Nem o local mais prístino da serra do Gerês ou o recanto mais inacessível de uma praia do Sudoeste alentejano está livre de sacos de plástico, de latas de cerveja ou de garrafas de água. Há dias, numa praia algarvia, aliás dotada de recipientes de depósito de lixo, uma campanha de limpeza conseguiu reunir numa tarde um montão de objectos de plástico deixados nos areais ou trazidos pelo mar, desde embalagens de iogurte a pneus! Isto sem falar das lixeiras clandestinas que vamos encontrando à beira das estradas e caminhos e dos rios e ribeiras, mesmo nos locais turisticamente mais prezados.
Em segundo lugar vem a ocupação individual dos espaços públicos, prejudicando o uso colectivo para que são destinados. O caso mais notório entre nós continua a ser o estacionamento automóvel nos passeios e placas de praças urbanas, impedindo ou dificultando o seu uso pedestre. Mas o mesmo vai sucedendo com a invasão de praias e albufeiras por embarcações e motas de água, mesmo em zonas de banhistas, contra todas as proibições, bem como a referida propagação das autocaravanas em zonas protegidas.
O grau mais abusivo de aproveitamento individual do espaço público - descontado o vandalismo de equipamentos públicos (como cabinas telefónicas, bancos de jardim e carruagens de comboios) - consiste seguramente na ocupação de terrenos do domínio público para habitação privativa, como se verificou (e ainda se continua a verificar) em várias ilhas e ilhotas da ria Formosa - que tem o estatuto de parque natural! - e noutros locais públicos, perante a indiferença e inacção geral das autoridades competentes.
Mesmo se fenómenos semelhantes a estes não sejam exclusivos nossos no espaço europeu, podendo encontrar-se noutros países do Sul da Europa, é improvável que eles revistam a intensidade e extensão que atingem no nosso país. Não é uma situação de que nos possamos alhear, antes pelo contrário. Ela revela um enorme défice civilizacional e um intolerável descaso pelo património colectivo.
As razões são conhecidas. Antes de mais, é uma questão de falta de educação e de cultura cívica. Apesar de algumas iniciativas de educação e de sensibilização ambiental, faz falta determinante uma disciplina de educação cívica geral nas escolas, desde o ensino básico. Sem educação cívica vencem o atavismo e a inércia das práticas sociais herdadas. Segundo, trata-se de uma questão de irresponsabilidade social. Tendemos a hiperbolizar a propriedade individual e a desconsiderar o que é de todos, como se não fosse de ninguém. Sem um apurado sentido de responsabilidade individual pelos bens colectivos, nada de comum é possível preservar. Por último, sobressai a ineficácia dos meios de prevenção e de repressão das infracções. Sem uma determinada política de fiscalização e de punição, o resultado é a sensação geral de impunidade e a irresponsabilidade consequente.

O modo como os cidadãos cuidam, ou não, do património comum e dos bens públicos constitui um dos mais notórios padrões de cidadania e de modernização de um país.
Por um lado, não existe cidadania integral sem educação cívica nem responsabilidade social. A cidadania não consiste somente em reivindicar e em exercer direitos, cada vez mais exigentes. Compõe-se também da assunção e do cumprimento de deveres e de obrigações para com os outros e para com a colectividade. É altura de equilibrar a cultura dominante de hipertrofia de direitos com uma cultura de deveres e de obrigações cívicas.
Por outro lado, a modernização do país constitui uma tarefa prioritária de qualquer governo responsável. Ora, a modernização não se reduz à dotação de infra-estruturas materiais e tecnológicas, ou à reforma do Estado, da administração pública e dos serviços públicos em geral, ou ainda à segurança alimentar e económica, ainda que tudo isso seja incontornável.
Não pode haver cidadania nem modernidade sem luta contra as práticas e comportamentos sociais lesivos do património público, de depredação irresponsável dos equipamentos colectivos, de espoliação individual de bens comuns. Não pode considerar-se civilizado nem moderno um país onde cada um abusa do património colectivo em proveito próprio, degradando o ambiente, devastando o espaço público, apropriando-se do que é de todos em proveito próprio.
A defesa dos bens públicos exige o combate aos abusos privados.
(Público, 3ª feira, 19 de Agosto de 2008)

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