25 de agosto de 2008
Feminismos, precisam-se
por Ana Gomes
Oitenta anos. Foi o tempo que passou desde o anterior congresso. Ao juntar, entre 26 e 28 de Junho, mais de 600 pessoas (entre as quais estive, com orgulho), o Terceiro Congresso Feminista evidenciou a sede de debater questões de género, frequentemente deixadas na sombra, e a existência de uma alargada pluralidade de feminismos na nossa sociedade.
Foram oitenta anos durante os quais as mulheres portuguesas invadiram a vida pública, afirmando a sua capacidade em todas as profissões.. Mas apesar de termos hoje uma massa crítica de mulheres qualificadas em todas as actividades, ainda não conseguimos romper os "tectos de vidro" dos cargos de topo no processo de decisão político e económico. Aí, a discriminação (muitas vezes indirecta) persiste.
Muito está ainda por fazer no que diz respeito ao percurso simétrico: aquele que os homens têm que palmilhar para se estabelecerem plenamente na esfera privada, onde a igualdade deve ser também atingida (pois "o privado é político"). Quantos homens portugueses partilham tarefas domésticas ou usufruem de licenças de paternidade de duração semelhante às das companheiras? No país real, muito poucos... E é inegável que o desequilíbrio na repartição das tarefas domésticas e as dificuldades na conciliação entre a vida profissional e familiar demovem muitas mulheres de se lançar em carreiras políticas ou almejar mais responsabilidades nas empresas ou na administração pública.
Hoje, apesar de mecanismos anti-discriminação aplicados no seio do PS, BE e PCP, ainda não temos 30% de mulheres como deputadas na Assembleia da Republica. E no actual governo socialista contam-se apenas duas ministras e quatro secretárias de Estado, menos mulheres do que nos últimos governo PSD/PP... Hoje temos pela primeira vez uma mulher como líder do PSD, o que é de saudar. Mas ela só arrastou mais duas mulheres para a direcção do seu partido .
Claro que apoio a "Lei da Paridade", em que se empenhou o PS. Mas ela não basta. Espero que o próximo governo seja socialista, mas também paritário - o que quer dizer ter um mínimo de 40% de mulheres (pois verdadeira paridade é assegurar a representação de um máximo de 60% e um mínimo de 40% de qualquer dos sexos). Mesmo aqui ao lado, Zapatero tem um governo paritário, incluindo uma ministra da Defesa que, grávida, passou revista às tropas! Em Espanha, a liderança socialista já compreendeu que o desafio da legitimidade passa pela participação das mulheres na tomada de decisões. Em Portugal, esgrime-se essa retórica mas tomam-se medidas a meio caminho, tardando em acções determinantes.
Boa parte da responsabilidade cabe também às mulheres. Há muitas que são alérgicas a certas medidas e legislação, em especial em relação às quotas. Dizem preferir as meritocracias. Eu também: o problema é que não me parece nem 'natural', nem por acaso, que, constituindo mais de metade da população, as mulheres estejam tão sub-representadas em cargos de poder. Por isso, acho que ainda precisamos de medidas temporárias que promovam a igualdade. Não acredito que existam tão poucas mulheres qualificadas em Portugal como aquelas que chegam a posições de topo. Sei que é cultura "cultivada" reservar os 'jobs' para os 'boys': isso é que impede a meritocracia. Muitos dirigentes partidários, e não só, estão amuralhados em círculos concêntricos de "old boys networks", que os impedem de ver, reconhecer e puxar por mulheres competentes (mais facilmente puxam por incapazes e decorativas, para que elas nada ponham em causa e eles afivelem cumprir os apregoados objectivos da "paridade"...)
Mas esta questão não se reduz a números.. As mulheres podem e devem fazer a diferença pela forma como estão na política e contribuem para definir as agendas. Não se confinando às áreas em que já lhes vão sendo confiadas responsabilidades (a saúde, a educação, os assuntos sociais...): é fundamental que façam a diferença em tudo o que afecta a organização da sociedade, incluindo as questões da paz e da guerra, da segurança e defesa, do combate ao terrorismo e à criminalidade organizada, etc...
Este Terceiro Congresso Feminista pode revelar-se um instrumento de mudança. Ninguém como aquele/as que se ali reuniram para pedir contas aos responsáveis políticos sobre o que têm feito para promover a igualdade de género.
Tanto mais que as desigualdades continuam também a medir-se, astronomicamente, nas diferenças salariais, nas condições de precariedade no trabalho, nas taxas de desemprego e pobreza, na distribuição de tarefas domésticas e familiares, na violência doméstica, na prostituição e por aí fora. É, por isso, fundamental manter as questões de género na agenda, sensibilizar a opinião pública, fomentar o debate sobre feminismos, adoptar medidas que promovam a igualdade de género... e não deixar passar nem sequer 8 anos antes de se fazer o Quarto Congresso Feminista.
Jornal de Leiria, 10 de Julho de 2008
Oitenta anos. Foi o tempo que passou desde o anterior congresso. Ao juntar, entre 26 e 28 de Junho, mais de 600 pessoas (entre as quais estive, com orgulho), o Terceiro Congresso Feminista evidenciou a sede de debater questões de género, frequentemente deixadas na sombra, e a existência de uma alargada pluralidade de feminismos na nossa sociedade.
Foram oitenta anos durante os quais as mulheres portuguesas invadiram a vida pública, afirmando a sua capacidade em todas as profissões.. Mas apesar de termos hoje uma massa crítica de mulheres qualificadas em todas as actividades, ainda não conseguimos romper os "tectos de vidro" dos cargos de topo no processo de decisão político e económico. Aí, a discriminação (muitas vezes indirecta) persiste.
Muito está ainda por fazer no que diz respeito ao percurso simétrico: aquele que os homens têm que palmilhar para se estabelecerem plenamente na esfera privada, onde a igualdade deve ser também atingida (pois "o privado é político"). Quantos homens portugueses partilham tarefas domésticas ou usufruem de licenças de paternidade de duração semelhante às das companheiras? No país real, muito poucos... E é inegável que o desequilíbrio na repartição das tarefas domésticas e as dificuldades na conciliação entre a vida profissional e familiar demovem muitas mulheres de se lançar em carreiras políticas ou almejar mais responsabilidades nas empresas ou na administração pública.
Hoje, apesar de mecanismos anti-discriminação aplicados no seio do PS, BE e PCP, ainda não temos 30% de mulheres como deputadas na Assembleia da Republica. E no actual governo socialista contam-se apenas duas ministras e quatro secretárias de Estado, menos mulheres do que nos últimos governo PSD/PP... Hoje temos pela primeira vez uma mulher como líder do PSD, o que é de saudar. Mas ela só arrastou mais duas mulheres para a direcção do seu partido .
Claro que apoio a "Lei da Paridade", em que se empenhou o PS. Mas ela não basta. Espero que o próximo governo seja socialista, mas também paritário - o que quer dizer ter um mínimo de 40% de mulheres (pois verdadeira paridade é assegurar a representação de um máximo de 60% e um mínimo de 40% de qualquer dos sexos). Mesmo aqui ao lado, Zapatero tem um governo paritário, incluindo uma ministra da Defesa que, grávida, passou revista às tropas! Em Espanha, a liderança socialista já compreendeu que o desafio da legitimidade passa pela participação das mulheres na tomada de decisões. Em Portugal, esgrime-se essa retórica mas tomam-se medidas a meio caminho, tardando em acções determinantes.
Boa parte da responsabilidade cabe também às mulheres. Há muitas que são alérgicas a certas medidas e legislação, em especial em relação às quotas. Dizem preferir as meritocracias. Eu também: o problema é que não me parece nem 'natural', nem por acaso, que, constituindo mais de metade da população, as mulheres estejam tão sub-representadas em cargos de poder. Por isso, acho que ainda precisamos de medidas temporárias que promovam a igualdade. Não acredito que existam tão poucas mulheres qualificadas em Portugal como aquelas que chegam a posições de topo. Sei que é cultura "cultivada" reservar os 'jobs' para os 'boys': isso é que impede a meritocracia. Muitos dirigentes partidários, e não só, estão amuralhados em círculos concêntricos de "old boys networks", que os impedem de ver, reconhecer e puxar por mulheres competentes (mais facilmente puxam por incapazes e decorativas, para que elas nada ponham em causa e eles afivelem cumprir os apregoados objectivos da "paridade"...)
Mas esta questão não se reduz a números.. As mulheres podem e devem fazer a diferença pela forma como estão na política e contribuem para definir as agendas. Não se confinando às áreas em que já lhes vão sendo confiadas responsabilidades (a saúde, a educação, os assuntos sociais...): é fundamental que façam a diferença em tudo o que afecta a organização da sociedade, incluindo as questões da paz e da guerra, da segurança e defesa, do combate ao terrorismo e à criminalidade organizada, etc...
Este Terceiro Congresso Feminista pode revelar-se um instrumento de mudança. Ninguém como aquele/as que se ali reuniram para pedir contas aos responsáveis políticos sobre o que têm feito para promover a igualdade de género.
Tanto mais que as desigualdades continuam também a medir-se, astronomicamente, nas diferenças salariais, nas condições de precariedade no trabalho, nas taxas de desemprego e pobreza, na distribuição de tarefas domésticas e familiares, na violência doméstica, na prostituição e por aí fora. É, por isso, fundamental manter as questões de género na agenda, sensibilizar a opinião pública, fomentar o debate sobre feminismos, adoptar medidas que promovam a igualdade de género... e não deixar passar nem sequer 8 anos antes de se fazer o Quarto Congresso Feminista.
Jornal de Leiria, 10 de Julho de 2008
Afeganistão: trabalho para uma geração
por Ana Gomes
Participei numa delegação do Parlamento Europeu que foi ao Afeganistão no fim de Abril. Voltei tocada pelo povo sofredor e pela paisagem extraordinária. E mal impressionada com o balanço de segurança, reconstrução e desenvolvimento. Voltei a pensar que o Afeganistão não pode ser largado a meio, à mercê da rapacidade e do tribalismo dos senhores da guerra, do fanatismo assassino da Al-Qaeda e dos seus apoiantes entre os taliban e do flagelo da produção e tráfico de droga.
Foi o 11 de Setembro de 2001 que voltou a pôr o Afeganistão no mapa geoestratégico ocidental, depois de uma década de negligência. Mas a Europa, os EUA e os seus aliados e ainda os países vizinhos precisam de se mobilizar realmente para reconstruir o Afeganistão de forma mais eficaz e mais rápida. Por razões tanto políticas, como humanitárias: a miséria, a violência e a impunidade que marcam as vidas dos afegãos são as raízes dos males que dali projectam insegurança para o exterior, quer através do terrorismo, quer do ópio. Nunca haverá segurança no Afeganistão sem desenvolvimento e sem Estado de direito. E as bases de um e de outro não estão ainda minimamente lançadas.
Sem a presença internacional, o Afeganistão resvalaria de novo para o mais profundo dos obscurantismos. Sem a intervenção militar de 2001 e a NATO não haveria hoje espaço humanitário para as ONG, por exemplo, poderem fazer o seu trabalho. A presença internacional contribuiu para alguns sucessos, especialmente na área da saúde e da educação. Por exemplo, mais de um terço das 6 milhões de crianças que vão hoje à escola são raparigas - a mais alta percentagem da história do país (sob regime taliban, entre 1996 e 2001, elas foram totalmente excluídas das escolas). E a taxa de mortalidade infantil, sendo ainda das mais elevadas do mundo, baixou 24 por cento desde a queda dos taliban.
Mas estes avanços são ensombrados pela percepção generalizada da degradação da situação de segurança nos últimos anos. O atentado contra o Presidente Karzai numa parada militar em Cabul, durante a nossa visita, evidenciou a colaboração de elementos dentro das forças de segurança afegãs com a Al-Qaeda. Mais recentemente, o atentado bárbaro contra a embaixada da Índia ilustrou de forma horripilante a insegurança que paralisa o país. O próprio Presidente Karzai, apesar de respeitado por elementos progressistas da sociedade afegã, é visto como figura fraca, luta pela sobrevivência política e física, e não tem força para impor uma visão estratégica para o país. A fragilidade das instituições em geral e a total ineficácia do sistema judicial, em particular, explicam o clima de absoluta impunidade em que operam os agentes da corrupção e da criminalidade, profundamente enraizados em ministérios como o do Interior e na polícia e entre os senhores da guerra, reciclados em ministros, parlamentares, juízes ou governadores de províncias. Por exemplo, os juízes, na maior parte iletrados, ganham 50 dólares por mês - metade do salário de um polícia ou de um soldado. Nem uns, nem outros demonstram evidentemente interesse em pôr fim a práticas pedófilas e à violência contra as mulheres, ambas culturalmente enraizadas.
A presença da Europa no país é importante, financeiramente. Mas no total, apenas 15.000 milhões dos 25.000 milhões de dólares de ajuda prometidos pela comunidade internacional desde 2002 se materializaram. Mais grave ainda é a maneira como estes e outros fundos europeus são gastos no Afeganistão. Por exemplo, as equipas de reconstrução provinciais (PRT) da NATO, muitas sob a responsabilidade de países europeus, revelam-se descoordenadas e ineficazes. É absurdo pensar que se ganham "cabeças e corações", com soldados a fazer de ONG de desenvolvimento! As actividades das tropas da NATO-ISAF devem centrar-se antes na criação do espaço de segurança para que as ONG, as instituições afegãs e outras possam actuar de forma estratégica na reconstrução e desenvolvimento do país. A crise identitária da ISAF (força de manutenção da paz ou braço armado da ajuda à reconstrução?) está directamente ligada aos famigerados caveats: uma série de países europeus impõem limitações geográficas e funcionais à utilização dos seus contingentes militares. A Alemanha, por exemplo, tem cerca de 3500 efectivos no terreno, mas recusa-se a pô-los em funções de combate no Sul do país, onde são mais precisos. Em vez disso, dedicam-se à "reconstrução" no Norte pacificado...
Quando é que governos e populações europeias assumem que o combate militar é uma das dimensões, por vezes necessária, da gestão de crises e que quem escolheu ser soldado decidiu arriscar a vida?
Tanto a ajuda ao desenvolvimento como as operações de combate da ISAF devem ser postas ao serviço de uma estratégia política coerente, que torne a democracia possível no Afeganistão. E no contexto afegão os taliban não podem ser eliminados: representam uma fatia considerável da etnia pachtun indispensável para qualquer solução política para o conflito, tanto quanto representaram uma reacção contra a criminalidade da Aliança do Norte, ainda hoje fortemente ressentida pela população afegã. Os recentes esforços do Reino Unido e do Governo afegão em estabelecer plataformas negociais com alguns dos líderes taliban vão na direcção certa: importa dividir os taliban, incluindo os moderados no processo político e isolando e combatendo aqueles cuja agenda maximalista, determinada pela Al-Qaeda, torna o diálogo impossível. E, como todos os interlocutores afegãos sublinham, não é possível continuar a política de avestruz da Administração Bush relativamente ao papel dos militares paquistaneses no apoio à Al-Qaeda e aos taliban nas zonas tribais fronteiriças.
Tudo isto significa que o envolvimento da comunidade internacional no Afeganistão é um compromisso para uma geração, no mínimo.
A Europa tem feito muito, mas não deixa verdadeira marca estratégica, por razões já conhecidas de outros cenários: por um lado, ausência de uma visão estratégica alternativa à dos EUA e insuficiente coordenação entre as actividades dos Estados europeus com a Comissão Europeia; por outro, um obsoleto desconforto com a utilização de meios militares, mesmo quando legitimados por claro mandato das Nações Unidas, o que coloca os actores europeus na ISAF à margem das decisões estratégicas. O sucesso da comunidade internacional no Afeganistão passa por um papel acrescido da Europa. Mas todos - europeus, americanos, japoneses, canadianos, e também o povo afegão- vamos precisar de longo fôlego e de muita coragem política, para construir um Afeganistão diferente.
Público, 15 de Julho de 2008
Participei numa delegação do Parlamento Europeu que foi ao Afeganistão no fim de Abril. Voltei tocada pelo povo sofredor e pela paisagem extraordinária. E mal impressionada com o balanço de segurança, reconstrução e desenvolvimento. Voltei a pensar que o Afeganistão não pode ser largado a meio, à mercê da rapacidade e do tribalismo dos senhores da guerra, do fanatismo assassino da Al-Qaeda e dos seus apoiantes entre os taliban e do flagelo da produção e tráfico de droga.
Foi o 11 de Setembro de 2001 que voltou a pôr o Afeganistão no mapa geoestratégico ocidental, depois de uma década de negligência. Mas a Europa, os EUA e os seus aliados e ainda os países vizinhos precisam de se mobilizar realmente para reconstruir o Afeganistão de forma mais eficaz e mais rápida. Por razões tanto políticas, como humanitárias: a miséria, a violência e a impunidade que marcam as vidas dos afegãos são as raízes dos males que dali projectam insegurança para o exterior, quer através do terrorismo, quer do ópio. Nunca haverá segurança no Afeganistão sem desenvolvimento e sem Estado de direito. E as bases de um e de outro não estão ainda minimamente lançadas.
Sem a presença internacional, o Afeganistão resvalaria de novo para o mais profundo dos obscurantismos. Sem a intervenção militar de 2001 e a NATO não haveria hoje espaço humanitário para as ONG, por exemplo, poderem fazer o seu trabalho. A presença internacional contribuiu para alguns sucessos, especialmente na área da saúde e da educação. Por exemplo, mais de um terço das 6 milhões de crianças que vão hoje à escola são raparigas - a mais alta percentagem da história do país (sob regime taliban, entre 1996 e 2001, elas foram totalmente excluídas das escolas). E a taxa de mortalidade infantil, sendo ainda das mais elevadas do mundo, baixou 24 por cento desde a queda dos taliban.
Mas estes avanços são ensombrados pela percepção generalizada da degradação da situação de segurança nos últimos anos. O atentado contra o Presidente Karzai numa parada militar em Cabul, durante a nossa visita, evidenciou a colaboração de elementos dentro das forças de segurança afegãs com a Al-Qaeda. Mais recentemente, o atentado bárbaro contra a embaixada da Índia ilustrou de forma horripilante a insegurança que paralisa o país. O próprio Presidente Karzai, apesar de respeitado por elementos progressistas da sociedade afegã, é visto como figura fraca, luta pela sobrevivência política e física, e não tem força para impor uma visão estratégica para o país. A fragilidade das instituições em geral e a total ineficácia do sistema judicial, em particular, explicam o clima de absoluta impunidade em que operam os agentes da corrupção e da criminalidade, profundamente enraizados em ministérios como o do Interior e na polícia e entre os senhores da guerra, reciclados em ministros, parlamentares, juízes ou governadores de províncias. Por exemplo, os juízes, na maior parte iletrados, ganham 50 dólares por mês - metade do salário de um polícia ou de um soldado. Nem uns, nem outros demonstram evidentemente interesse em pôr fim a práticas pedófilas e à violência contra as mulheres, ambas culturalmente enraizadas.
A presença da Europa no país é importante, financeiramente. Mas no total, apenas 15.000 milhões dos 25.000 milhões de dólares de ajuda prometidos pela comunidade internacional desde 2002 se materializaram. Mais grave ainda é a maneira como estes e outros fundos europeus são gastos no Afeganistão. Por exemplo, as equipas de reconstrução provinciais (PRT) da NATO, muitas sob a responsabilidade de países europeus, revelam-se descoordenadas e ineficazes. É absurdo pensar que se ganham "cabeças e corações", com soldados a fazer de ONG de desenvolvimento! As actividades das tropas da NATO-ISAF devem centrar-se antes na criação do espaço de segurança para que as ONG, as instituições afegãs e outras possam actuar de forma estratégica na reconstrução e desenvolvimento do país. A crise identitária da ISAF (força de manutenção da paz ou braço armado da ajuda à reconstrução?) está directamente ligada aos famigerados caveats: uma série de países europeus impõem limitações geográficas e funcionais à utilização dos seus contingentes militares. A Alemanha, por exemplo, tem cerca de 3500 efectivos no terreno, mas recusa-se a pô-los em funções de combate no Sul do país, onde são mais precisos. Em vez disso, dedicam-se à "reconstrução" no Norte pacificado...
Quando é que governos e populações europeias assumem que o combate militar é uma das dimensões, por vezes necessária, da gestão de crises e que quem escolheu ser soldado decidiu arriscar a vida?
Tanto a ajuda ao desenvolvimento como as operações de combate da ISAF devem ser postas ao serviço de uma estratégia política coerente, que torne a democracia possível no Afeganistão. E no contexto afegão os taliban não podem ser eliminados: representam uma fatia considerável da etnia pachtun indispensável para qualquer solução política para o conflito, tanto quanto representaram uma reacção contra a criminalidade da Aliança do Norte, ainda hoje fortemente ressentida pela população afegã. Os recentes esforços do Reino Unido e do Governo afegão em estabelecer plataformas negociais com alguns dos líderes taliban vão na direcção certa: importa dividir os taliban, incluindo os moderados no processo político e isolando e combatendo aqueles cuja agenda maximalista, determinada pela Al-Qaeda, torna o diálogo impossível. E, como todos os interlocutores afegãos sublinham, não é possível continuar a política de avestruz da Administração Bush relativamente ao papel dos militares paquistaneses no apoio à Al-Qaeda e aos taliban nas zonas tribais fronteiriças.
Tudo isto significa que o envolvimento da comunidade internacional no Afeganistão é um compromisso para uma geração, no mínimo.
A Europa tem feito muito, mas não deixa verdadeira marca estratégica, por razões já conhecidas de outros cenários: por um lado, ausência de uma visão estratégica alternativa à dos EUA e insuficiente coordenação entre as actividades dos Estados europeus com a Comissão Europeia; por outro, um obsoleto desconforto com a utilização de meios militares, mesmo quando legitimados por claro mandato das Nações Unidas, o que coloca os actores europeus na ISAF à margem das decisões estratégicas. O sucesso da comunidade internacional no Afeganistão passa por um papel acrescido da Europa. Mas todos - europeus, americanos, japoneses, canadianos, e também o povo afegão- vamos precisar de longo fôlego e de muita coragem política, para construir um Afeganistão diferente.
Público, 15 de Julho de 2008
19 de agosto de 2008
A questão do SNS
Por Vital Moreira
Passou injustamente despercebida a recente entrevista da ministra da Saúde à revista Visão, aliás em contraponto com a perspectiva dos representantes do sector privado. De facto, a entrevista é tão importante pelo que diz como pelo que ficou por dizer. Se o SNS é uma inquestionável responsabilidade pública, também é verdade que ele tem de se justificar em termos de eficiência e de sustentabilidade.
Ana Jorge tem toda a razão em destacar a prioridade do SNS na política de saúde. Trata-se de uma incumbência constitucional e política, para mais tratando-se de um Governo de esquerda. É por via do SNS que se realiza o direito aos cuidados de saúde, como direito universal independentemente dos meios económicos de cada um. De acordo com a lógica do sistema de saúde de tipo britânico - que Portugal adoptou -, o SNS é um serviço público organizado e prestado directamente pelo Estado, sendo financiado por via dos impostos.
Dada a vocação universal e geral do sistema de público de saúde, o sector privado depende essencialmente das insuficiências ou deficiências daquele, para além da preferência que uma elite social pode sempre ter por cuidados de saúde mais sofisticados, mesmo que seja quanto a aspectos relativamente marginais à qualidade daqueles, como é por exemplo a hotelaria. No caso português, o sector privado alimenta-se também dos chamados "subsistemas de saúde", a começar pela ADSE, o subsistema de saúde privativo da função pública - cuja existência, aliás, é tudo menos justificável -, os quais obviamente não está vinculados a comprar cuidados ao SNS.
Não faz nenhum sentido o argumento de que o Estado não deveria dar nenhuma preferência ao SNS em matéria de política de saúde, invocando um pretenso paralelismo com o que se passa no sector empresarial do Estado, onde as empresas públicas, como por exemplo a CGD, estão em concorrência com os operadores privados em pé de igualdade. A verdade é que, enquanto essas empresas públicas operam em áreas sujeitas ao mercado, não podendo o Estado dar-lhes nenhuma preferência - aliás, por imposição da UE -, os cuidados de saúde constituem um serviço social, ou um "serviço de interesse social geral" na terminologia comunitária europeia, que por isso pode ficar "fora do mercado" e da lógica da concorrência, especialmente quando constitucionalmente constitui uma prestação a cargo do próprio Estado.
Neste contexto, o Estado não tem somente a incumbência de organizar um SNS abrangente e auto-suficiente, como tem o dever de explorar os meios e recursos existentes no sistema público antes de contratar prestações ao sector privado. Por isso, é em princípio inatacável a afirmação da ministra segundo a qual "se tenho capacidade de resposta no SNS, (...) tenho de usar". Podia mesmo ter acrescentado que, por princípio, o SNS deve ter capacidade de resposta para todas as necessidades, não sendo admissíveis as lamentáveis e duradouras lacunas em áreas como Oftalmologia, Urologia, Estomatologia, entre outras, que foram sendo sub-repticiamente objecto de uma espécie de "privatização furtiva"...
Contudo, se isso deveria ser incontroverso à luz da filosofia do SNS, deveria ser igualmente indiscutível que este não pode falhar o teste da eficiência na utilização dos recursos públicos que lhe são afectados, tirando o melhor partido destes. E isso deveria merecer o mesmo destaque no discurso e na prática política.
Os piores adversários do SNS não são os liberais que preconizam o mercado e a liberdade de escolha na prestação de cuidados de saúde. O que mais mina a sustentabilidade política e ideológica do sistema público de saúde (tal como os demais serviços públicos prestacionais) é a ineficiência e o desperdício, sobretudo quando comparados com o sector privado.
É evidente que o SNS tem custos adicionais, como os da formação profissional (internatos), da manutenção de serviços de urgência e de cuidados primários, da própria exigência de "serviço universal", que não lhe permite seleccionar os utentes, como sucede com o sector privado. Mas todos esses custos deveriam ser devidamente segregados para efeitos de financiamento, de modo a permitir a comparabilidade de preços dos cuidados de saúde idênticos. Quando os hospitais do SNS não conseguem competir com os privados no fornecimento de cuidados de saúde aos "subsistemas", ou existe deficiente alocação contabilística de custos ou existe ineficiência e défice de produtividade.
Ora, é indiscutível que, apesar dos esforços recentes para melhorar a eficiência do SNS - a começar pela empresarialização hospitalar -, permanecem notórias ineficiências e desperdícios, bastando comparar a produtividade por médico em termos de consultas e de cirurgias, ainda por cima tratando-se por vezes dos mesmos médicos, em acumulação no sector público e no sector privado. As deficiências de organização e gestão que justificam as falhas de eficiência do SNS não podem permanecer tanto tempo como durou por exemplo o escandaloso incumprimento de horários de trabalho médico ou os casos de irresponsável redundância de instalações e de equipamentos.
Apesar da crescente procura e do aumento dos custos de novos meios de tratamento, o país não pode permitir-se aumentar sem limites a parte do orçamento dedicada à saúde. Os ganhos em saúde, tanto em quantidade como em qualidade, têm que resultar antes de mais dos ganhos de eficiência e da economia nos gastos. O SNS será tanto mais forte quanto mais eficiente for, e tanto mais vulnerável quanto mais desperdício alimentar.
Quando se aproximam novas eleições e o PSD já deu claros sinais de abandonar o seu compromisso com o SNS, o destino deste está cada vez mais ligado à sua sustentabilidade financeira e à sua capacidade de fazer melhor com os recursos disponíveis. Quem julga o contrário ajuda a sua condenação a prazo.
(Público, 3ª feira, 12 de Agosto de 2008)
Passou injustamente despercebida a recente entrevista da ministra da Saúde à revista Visão, aliás em contraponto com a perspectiva dos representantes do sector privado. De facto, a entrevista é tão importante pelo que diz como pelo que ficou por dizer. Se o SNS é uma inquestionável responsabilidade pública, também é verdade que ele tem de se justificar em termos de eficiência e de sustentabilidade.
Ana Jorge tem toda a razão em destacar a prioridade do SNS na política de saúde. Trata-se de uma incumbência constitucional e política, para mais tratando-se de um Governo de esquerda. É por via do SNS que se realiza o direito aos cuidados de saúde, como direito universal independentemente dos meios económicos de cada um. De acordo com a lógica do sistema de saúde de tipo britânico - que Portugal adoptou -, o SNS é um serviço público organizado e prestado directamente pelo Estado, sendo financiado por via dos impostos.
Dada a vocação universal e geral do sistema de público de saúde, o sector privado depende essencialmente das insuficiências ou deficiências daquele, para além da preferência que uma elite social pode sempre ter por cuidados de saúde mais sofisticados, mesmo que seja quanto a aspectos relativamente marginais à qualidade daqueles, como é por exemplo a hotelaria. No caso português, o sector privado alimenta-se também dos chamados "subsistemas de saúde", a começar pela ADSE, o subsistema de saúde privativo da função pública - cuja existência, aliás, é tudo menos justificável -, os quais obviamente não está vinculados a comprar cuidados ao SNS.
Não faz nenhum sentido o argumento de que o Estado não deveria dar nenhuma preferência ao SNS em matéria de política de saúde, invocando um pretenso paralelismo com o que se passa no sector empresarial do Estado, onde as empresas públicas, como por exemplo a CGD, estão em concorrência com os operadores privados em pé de igualdade. A verdade é que, enquanto essas empresas públicas operam em áreas sujeitas ao mercado, não podendo o Estado dar-lhes nenhuma preferência - aliás, por imposição da UE -, os cuidados de saúde constituem um serviço social, ou um "serviço de interesse social geral" na terminologia comunitária europeia, que por isso pode ficar "fora do mercado" e da lógica da concorrência, especialmente quando constitucionalmente constitui uma prestação a cargo do próprio Estado.
Neste contexto, o Estado não tem somente a incumbência de organizar um SNS abrangente e auto-suficiente, como tem o dever de explorar os meios e recursos existentes no sistema público antes de contratar prestações ao sector privado. Por isso, é em princípio inatacável a afirmação da ministra segundo a qual "se tenho capacidade de resposta no SNS, (...) tenho de usar". Podia mesmo ter acrescentado que, por princípio, o SNS deve ter capacidade de resposta para todas as necessidades, não sendo admissíveis as lamentáveis e duradouras lacunas em áreas como Oftalmologia, Urologia, Estomatologia, entre outras, que foram sendo sub-repticiamente objecto de uma espécie de "privatização furtiva"...
Contudo, se isso deveria ser incontroverso à luz da filosofia do SNS, deveria ser igualmente indiscutível que este não pode falhar o teste da eficiência na utilização dos recursos públicos que lhe são afectados, tirando o melhor partido destes. E isso deveria merecer o mesmo destaque no discurso e na prática política.
Os piores adversários do SNS não são os liberais que preconizam o mercado e a liberdade de escolha na prestação de cuidados de saúde. O que mais mina a sustentabilidade política e ideológica do sistema público de saúde (tal como os demais serviços públicos prestacionais) é a ineficiência e o desperdício, sobretudo quando comparados com o sector privado.
É evidente que o SNS tem custos adicionais, como os da formação profissional (internatos), da manutenção de serviços de urgência e de cuidados primários, da própria exigência de "serviço universal", que não lhe permite seleccionar os utentes, como sucede com o sector privado. Mas todos esses custos deveriam ser devidamente segregados para efeitos de financiamento, de modo a permitir a comparabilidade de preços dos cuidados de saúde idênticos. Quando os hospitais do SNS não conseguem competir com os privados no fornecimento de cuidados de saúde aos "subsistemas", ou existe deficiente alocação contabilística de custos ou existe ineficiência e défice de produtividade.
Ora, é indiscutível que, apesar dos esforços recentes para melhorar a eficiência do SNS - a começar pela empresarialização hospitalar -, permanecem notórias ineficiências e desperdícios, bastando comparar a produtividade por médico em termos de consultas e de cirurgias, ainda por cima tratando-se por vezes dos mesmos médicos, em acumulação no sector público e no sector privado. As deficiências de organização e gestão que justificam as falhas de eficiência do SNS não podem permanecer tanto tempo como durou por exemplo o escandaloso incumprimento de horários de trabalho médico ou os casos de irresponsável redundância de instalações e de equipamentos.
Apesar da crescente procura e do aumento dos custos de novos meios de tratamento, o país não pode permitir-se aumentar sem limites a parte do orçamento dedicada à saúde. Os ganhos em saúde, tanto em quantidade como em qualidade, têm que resultar antes de mais dos ganhos de eficiência e da economia nos gastos. O SNS será tanto mais forte quanto mais eficiente for, e tanto mais vulnerável quanto mais desperdício alimentar.
Quando se aproximam novas eleições e o PSD já deu claros sinais de abandonar o seu compromisso com o SNS, o destino deste está cada vez mais ligado à sua sustentabilidade financeira e à sua capacidade de fazer melhor com os recursos disponíveis. Quem julga o contrário ajuda a sua condenação a prazo.
(Público, 3ª feira, 12 de Agosto de 2008)
Um pretenso "bloco central"
Por Vital Moreira
Há dias, o Diário de Notícias, fazendo a contabilidade da sessão legislativa passada, concluía pela existência de um "bloco central" legislativo, visto que o PSD aprovou mais de metade das leis ao lado do PS. Todavia, uma análise mais fina mostra que a conclusão é precipitada e enganadora. O contrário é que é verdade.
A própria peça jornalística desqualifica a conclusão política, ao registar que uma parte importante das leis foi aprovada só pelos socialistas, com oposição do PSD (e de outras bancadas) e que entre elas constam "alguns dos mais emblemáticos diplomas da sessão", a começar no Orçamento do Estado, continuando pela gestão e avaliação do desempenho da administração pública, as alterações ao Estatuto do Jornalista, a lei de segurança interna ou a da organização e investigação criminal. Ou seja, nas matérias politicamente mais importantes e mais sensíveis, não existiu afinal nenhum "bloco central", antes uma marcada diferença de fundo entre os dois principais partidos.
Se se fizesse a contagem das leis em relação a toda a actual legislatura, iniciada em 2005, também seria fácil concluir que, embora a maior parte das leis tenha sido aprovada com votos do PSD (sem esquecer as que foram aprovadas também por outros partidos, incluindo muitas aprovadas por unanimidade, já as leis politicamente mais importantes, designadamente as que efectivaram as principais reformas do actual Governo, não tiveram o seu apoio do PSD, mas sim em geral a sua oposição.
Foi assim no caso das leis que consubstanciaram a importante reforma das finanças públicas, no sentido da disciplina financeira e do reequilíbrio orçamental. Aí se contam designadamente a Lei das Finanças Locais, a Lei das Finanças Regionais, a extinção dos regimes especiais do sector público em matéria de segurança social e de saúde, sem esquecer obviamente os três orçamentos anuais, sem os quais nada teria sido possível. Por conseguinte, o Governo não pôde contar com o PSD na sua principal tarefa política.
O mesmo sucedeu nas leis de reforma do Estado e da Administração, a segunda grande reforma do Governo Sócrates. O PSD esteve contra o novo regime do emprego público, o regime disciplinar da função pública e o contrato de trabalho em funções públicas. Sem essas leis, porém, nada de relevante teria sido feito na modernização do Estado, no sentido de eficiência e da qualidade dos serviços públicos.
Outro tanto ocorreu nas mudanças do sector social, desde a decisiva reforma da segurança social (porventura a mais profunda desta legislatura, pelos seus efeitos na consolidação do sistema público de segurança social), passando pelas reformas na educação (onde o PSD apoiou oportunisticamente a luta sindical contra elas) até às reformas na saúde (onde o PSD fez coro com todas as movimentações populistas contra a consolidação do SNS).
Desnecessário se torna dizer, por último, que também não tiveram o apoio do PSD as leis que despenalizaram o aborto, no seguimento do respectivo referendo, nem a recente revisão do regime do divórcio. Em ambas as matérias, o que veio ao de cima foi a evidente deriva conservadora do PSD em matéria de liberdade individual e de regime das relações familiares.
A oposição do PSD foi ao ponto de fugir ao cumprimento de dois acordos estabelecidos com o Governo, a saber, em matéria de justiça e de sistema de governo das autarquias territoriais, tendo votado contra as leis que davam expressão aos compromissos que tinha publicamente assumido. Ou seja, nos poucos casos em que entendeu associar-se a certas mudanças, logo se arrependeu, incluindo num caso em que o seu voto era necessário - a lei eleitoral autárquica -, por se tratar de uma lei que carece de aprovação por maioria de 2/3. Pela mesma razão também não avançou a revisão da lei eleitoral para a AR, onde até se poderia antecipar alguma convergência de interesses...
Neste quadro, aliás incompleto, não faz nenhum sentido falar num "bloco central" em matéria legislativa. Pelo contrário, o que se verificou ao longo desta legislatura foi uma acentuada diferenciação político-ideológica entre os dois partidos, desde a gestão das finanças públicas até ao regime dos serviços sociais, desde a reforma do Estado e da justiça até às questões civilizacionais. De resto, dado que o PSD raramente ficou sozinho na sua intransigência oposicionista, é fácil concluir que se não fosse a sua maioria absoluta, o PS não teria conseguido levar a cabo nenhuma das grandes reformas que encetou e em boa parte concluiu, pelo menos no plano legislativo.
Por isso, não têm fundamento as apressadas especulações sobre uma suposta falta de determinação oposicionista do PSD (alguém chegou a falar numa "oposição de opereta") e sobre a "natural predisposição" de ambos os partidos para uma coligação de governo, caso a necessidade o imponha. A realidade desta legislatura mostra, ao invés, que o PSD optou por acentuar as suas divergências políticas em relação ao PS, sendo evidente que, quando apresentou propostas alternativas (como no caso da segurança social e na saúde), o PSD abandonou o próprio consenso político em que se baseou a construção do "Estado social" entre nós desde 1976, em favor de opções claramente mais liberais.
De resto, por muito que pese aos extremos políticos, só o preconceito pode apagar as diferenças entre esquerda e a direita, mesmo na sua versão moderada. Admitindo embora que o PS é hoje menos "socialista" e mais social-democrata, o PSD foi-se tornando sociologicamente mais conservador e mais liberal nas políticas sociais. Por isso, contrariando uma ideia corrente, há razões para crer que doravante não vai ser menor do que até agora a confrontação política entre os dois partidos de alternância governativa em Portugal.
(Público, 3ª feira, 5 de Agosto de 2008)
Há dias, o Diário de Notícias, fazendo a contabilidade da sessão legislativa passada, concluía pela existência de um "bloco central" legislativo, visto que o PSD aprovou mais de metade das leis ao lado do PS. Todavia, uma análise mais fina mostra que a conclusão é precipitada e enganadora. O contrário é que é verdade.
A própria peça jornalística desqualifica a conclusão política, ao registar que uma parte importante das leis foi aprovada só pelos socialistas, com oposição do PSD (e de outras bancadas) e que entre elas constam "alguns dos mais emblemáticos diplomas da sessão", a começar no Orçamento do Estado, continuando pela gestão e avaliação do desempenho da administração pública, as alterações ao Estatuto do Jornalista, a lei de segurança interna ou a da organização e investigação criminal. Ou seja, nas matérias politicamente mais importantes e mais sensíveis, não existiu afinal nenhum "bloco central", antes uma marcada diferença de fundo entre os dois principais partidos.
Se se fizesse a contagem das leis em relação a toda a actual legislatura, iniciada em 2005, também seria fácil concluir que, embora a maior parte das leis tenha sido aprovada com votos do PSD (sem esquecer as que foram aprovadas também por outros partidos, incluindo muitas aprovadas por unanimidade, já as leis politicamente mais importantes, designadamente as que efectivaram as principais reformas do actual Governo, não tiveram o seu apoio do PSD, mas sim em geral a sua oposição.
Foi assim no caso das leis que consubstanciaram a importante reforma das finanças públicas, no sentido da disciplina financeira e do reequilíbrio orçamental. Aí se contam designadamente a Lei das Finanças Locais, a Lei das Finanças Regionais, a extinção dos regimes especiais do sector público em matéria de segurança social e de saúde, sem esquecer obviamente os três orçamentos anuais, sem os quais nada teria sido possível. Por conseguinte, o Governo não pôde contar com o PSD na sua principal tarefa política.
O mesmo sucedeu nas leis de reforma do Estado e da Administração, a segunda grande reforma do Governo Sócrates. O PSD esteve contra o novo regime do emprego público, o regime disciplinar da função pública e o contrato de trabalho em funções públicas. Sem essas leis, porém, nada de relevante teria sido feito na modernização do Estado, no sentido de eficiência e da qualidade dos serviços públicos.
Outro tanto ocorreu nas mudanças do sector social, desde a decisiva reforma da segurança social (porventura a mais profunda desta legislatura, pelos seus efeitos na consolidação do sistema público de segurança social), passando pelas reformas na educação (onde o PSD apoiou oportunisticamente a luta sindical contra elas) até às reformas na saúde (onde o PSD fez coro com todas as movimentações populistas contra a consolidação do SNS).
Desnecessário se torna dizer, por último, que também não tiveram o apoio do PSD as leis que despenalizaram o aborto, no seguimento do respectivo referendo, nem a recente revisão do regime do divórcio. Em ambas as matérias, o que veio ao de cima foi a evidente deriva conservadora do PSD em matéria de liberdade individual e de regime das relações familiares.
A oposição do PSD foi ao ponto de fugir ao cumprimento de dois acordos estabelecidos com o Governo, a saber, em matéria de justiça e de sistema de governo das autarquias territoriais, tendo votado contra as leis que davam expressão aos compromissos que tinha publicamente assumido. Ou seja, nos poucos casos em que entendeu associar-se a certas mudanças, logo se arrependeu, incluindo num caso em que o seu voto era necessário - a lei eleitoral autárquica -, por se tratar de uma lei que carece de aprovação por maioria de 2/3. Pela mesma razão também não avançou a revisão da lei eleitoral para a AR, onde até se poderia antecipar alguma convergência de interesses...
Neste quadro, aliás incompleto, não faz nenhum sentido falar num "bloco central" em matéria legislativa. Pelo contrário, o que se verificou ao longo desta legislatura foi uma acentuada diferenciação político-ideológica entre os dois partidos, desde a gestão das finanças públicas até ao regime dos serviços sociais, desde a reforma do Estado e da justiça até às questões civilizacionais. De resto, dado que o PSD raramente ficou sozinho na sua intransigência oposicionista, é fácil concluir que se não fosse a sua maioria absoluta, o PS não teria conseguido levar a cabo nenhuma das grandes reformas que encetou e em boa parte concluiu, pelo menos no plano legislativo.
Por isso, não têm fundamento as apressadas especulações sobre uma suposta falta de determinação oposicionista do PSD (alguém chegou a falar numa "oposição de opereta") e sobre a "natural predisposição" de ambos os partidos para uma coligação de governo, caso a necessidade o imponha. A realidade desta legislatura mostra, ao invés, que o PSD optou por acentuar as suas divergências políticas em relação ao PS, sendo evidente que, quando apresentou propostas alternativas (como no caso da segurança social e na saúde), o PSD abandonou o próprio consenso político em que se baseou a construção do "Estado social" entre nós desde 1976, em favor de opções claramente mais liberais.
De resto, por muito que pese aos extremos políticos, só o preconceito pode apagar as diferenças entre esquerda e a direita, mesmo na sua versão moderada. Admitindo embora que o PS é hoje menos "socialista" e mais social-democrata, o PSD foi-se tornando sociologicamente mais conservador e mais liberal nas políticas sociais. Por isso, contrariando uma ideia corrente, há razões para crer que doravante não vai ser menor do que até agora a confrontação política entre os dois partidos de alternância governativa em Portugal.
(Público, 3ª feira, 5 de Agosto de 2008)
Contra-refroma
Por Vital Moreira
Entre as muitas medidas do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE) de 2006 contou-se a reorganização dos serviços da acção social complementar da Administração Pública, no sentido da sua (tendencial) unificação e homogeneização. Infelizmente, antes de consolidada a reforma, já começou a contra-reforma.
Até à sua revisão legal em 2007, a acção social complementar da Administração Pública era caracterizada pela dispersão orgânica, pela heterogeneidade e pela desigualdade. Mesmo sem considerar os regimes especiais de protecção da saúde e de aposentação (como nas forças armadas e no Ministério da Justiça), havia serviços de acção social privativos em diversos ministérios. As prestações e apoios disponíveis não eram homogéneos, sem nenhum respeito pelo princípio da igualdade de tratamento. Em alguns casos, as regalias incluíam a prestação directa de cuidados de saúde, de creches e infantários, havendo mesmo casos de oferta de supermercados!
O quadro geral era uma espécie de "feudalismo sectorial", em que cada ministério – e, em alguns casos, cada serviço público – se afadigava em proporcionar aos seus funcionários regalias sem paralelo nos restantes, à custa de verbas orçamentais ou de receitas próprias. Se havia uma demonstração da falta de racionalidade na organização administrativa e nos gastos públicos, bem como de captura da Administração pelos interesses dos seus funcionários, a acção social complementar era um caso exemplar.
A referida reforma veio unificar vários dos serviços sociais dispersos, reunindo-os num único serviço – os Serviços Sociais da Administração Pública (SSAP) –, bem como uniformizar tendencialmente os diferentes regimes prestacionais, aproveitando para extinguir várias modalidades sem razão de ser. Entre as actividades findas contaram-se os "equipamentos sociais relativos à educação pré-escolar, creches, residências do ensino superior e postos e centros de saúde", os quais deixaram de integrar o âmbito da acção social complementar.
Eis senão quando, surpreendentemente, um recente diploma legal veio estabelecer que "os institutos públicos podem, (...) mediante autorização prévia dos ministros das Finanças e da tutela, desenvolver iniciativas de acção social complementar relativas a educação pré-escolar e creches (...)".
Trata-se de uma medida estranha a vários títulos. Primeiro, a faculdade de criação de creches ou jardins de infância é autorizada somente em relação aos institutos públicos, excluindo, sem nenhuma explicação, os serviços da administração directa do Estado. Segundo, a criação de tais serviços fica na dependência de autorização discricionária do ministério da tutela, sem indicação quando aos critérios a observar, abrindo caminho para o casuísmo arbitrário. Terceiro, o diploma atribui-se eficácia retroactiva, indício seguro de que visa cobrir "a posteriori" uma situação-de-facto ilegal, que não se entendeu oportuno revogar.
Tudo indica, portanto, estarmos perante uma "lei ad hoc" para solucionar um problema pontual, o que já de si seria pouco canónico em termos de Estado de Direito. O que, porém, sucede usualmente nestes casos é que essas medidas excepcionais são a fresta por onde se fazem valer outras iniciativas idênticas, que acabam por proliferar. Aliás, por que é que tal benesse há-de ficar confinada a um certo instituto público, ficando vedada aos demais?
Seja como for, a excepção ora aberta não merece aplauso, antes pelo contrário. Primeiro, a disponibilização de creches e jardins infância deve ser um incumbência pública em relação a toda a população, e não apenas em relação aos funcionários públicos, que não carecem propriamente de nenhuma prerrogativa nesta matéria. Segundo, ficando reservada para certos institutos públicos, fica de fora a generalidade dos funcionários públicos, com violação do princípio da igualdade de tratamento e criação de situações de privilégio que nada justifica. Terceiro, a iniciativa em causa vai implicar um aumento de gastos públicos com o pessoal, ao arrepio do esforço de contenção das despesas administrativas. Por último, mas sobretudo, põe-se em causa justamente o espírito da reforma de 2007, no sentido da unificação e da homogeneidade da protecção social na função pública, reintroduzindo o "feudalismo" administrativo que vigorou até há um ano.
A reforma da acção social complementar da função pública é somente uma pequena peça na reforma global da Administração Pública. Mas as contra-reformas costumam escolher justamente os elos mais fracos ou menos expostos, para depois avançar para outros alvos. Reformar é difícil, contra-reformar é fácil. Basta começar...
(Diário Económico, 13 de Agosto de 2008)
Entre as muitas medidas do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE) de 2006 contou-se a reorganização dos serviços da acção social complementar da Administração Pública, no sentido da sua (tendencial) unificação e homogeneização. Infelizmente, antes de consolidada a reforma, já começou a contra-reforma.
Até à sua revisão legal em 2007, a acção social complementar da Administração Pública era caracterizada pela dispersão orgânica, pela heterogeneidade e pela desigualdade. Mesmo sem considerar os regimes especiais de protecção da saúde e de aposentação (como nas forças armadas e no Ministério da Justiça), havia serviços de acção social privativos em diversos ministérios. As prestações e apoios disponíveis não eram homogéneos, sem nenhum respeito pelo princípio da igualdade de tratamento. Em alguns casos, as regalias incluíam a prestação directa de cuidados de saúde, de creches e infantários, havendo mesmo casos de oferta de supermercados!
O quadro geral era uma espécie de "feudalismo sectorial", em que cada ministério – e, em alguns casos, cada serviço público – se afadigava em proporcionar aos seus funcionários regalias sem paralelo nos restantes, à custa de verbas orçamentais ou de receitas próprias. Se havia uma demonstração da falta de racionalidade na organização administrativa e nos gastos públicos, bem como de captura da Administração pelos interesses dos seus funcionários, a acção social complementar era um caso exemplar.
A referida reforma veio unificar vários dos serviços sociais dispersos, reunindo-os num único serviço – os Serviços Sociais da Administração Pública (SSAP) –, bem como uniformizar tendencialmente os diferentes regimes prestacionais, aproveitando para extinguir várias modalidades sem razão de ser. Entre as actividades findas contaram-se os "equipamentos sociais relativos à educação pré-escolar, creches, residências do ensino superior e postos e centros de saúde", os quais deixaram de integrar o âmbito da acção social complementar.
Eis senão quando, surpreendentemente, um recente diploma legal veio estabelecer que "os institutos públicos podem, (...) mediante autorização prévia dos ministros das Finanças e da tutela, desenvolver iniciativas de acção social complementar relativas a educação pré-escolar e creches (...)".
Trata-se de uma medida estranha a vários títulos. Primeiro, a faculdade de criação de creches ou jardins de infância é autorizada somente em relação aos institutos públicos, excluindo, sem nenhuma explicação, os serviços da administração directa do Estado. Segundo, a criação de tais serviços fica na dependência de autorização discricionária do ministério da tutela, sem indicação quando aos critérios a observar, abrindo caminho para o casuísmo arbitrário. Terceiro, o diploma atribui-se eficácia retroactiva, indício seguro de que visa cobrir "a posteriori" uma situação-de-facto ilegal, que não se entendeu oportuno revogar.
Tudo indica, portanto, estarmos perante uma "lei ad hoc" para solucionar um problema pontual, o que já de si seria pouco canónico em termos de Estado de Direito. O que, porém, sucede usualmente nestes casos é que essas medidas excepcionais são a fresta por onde se fazem valer outras iniciativas idênticas, que acabam por proliferar. Aliás, por que é que tal benesse há-de ficar confinada a um certo instituto público, ficando vedada aos demais?
Seja como for, a excepção ora aberta não merece aplauso, antes pelo contrário. Primeiro, a disponibilização de creches e jardins infância deve ser um incumbência pública em relação a toda a população, e não apenas em relação aos funcionários públicos, que não carecem propriamente de nenhuma prerrogativa nesta matéria. Segundo, ficando reservada para certos institutos públicos, fica de fora a generalidade dos funcionários públicos, com violação do princípio da igualdade de tratamento e criação de situações de privilégio que nada justifica. Terceiro, a iniciativa em causa vai implicar um aumento de gastos públicos com o pessoal, ao arrepio do esforço de contenção das despesas administrativas. Por último, mas sobretudo, põe-se em causa justamente o espírito da reforma de 2007, no sentido da unificação e da homogeneidade da protecção social na função pública, reintroduzindo o "feudalismo" administrativo que vigorou até há um ano.
A reforma da acção social complementar da função pública é somente uma pequena peça na reforma global da Administração Pública. Mas as contra-reformas costumam escolher justamente os elos mais fracos ou menos expostos, para depois avançar para outros alvos. Reformar é difícil, contra-reformar é fácil. Basta começar...
(Diário Económico, 13 de Agosto de 2008)
1 de agosto de 2008
Justiça retributiva
Por Vital Moreira
Não era preciso o FMI vir lembrar que o principal problema endógeno da economia portuguesa, que os actuais choques exógenos tornam ainda mais notório, continua a ser o “crescimento anémico da produtividade”. Conjugando baixa produtividade com elevados custos relativos do trabalho – apesar do nível comparativamente baixo dos salários –, o resultado só pode ser a reduzida competitividade da economia portuguesa em muitas áreas, que trava o crescimento económico, limita o emprego, desequilibra a balança comercial e fomenta a dívida externa.
Enquanto não forem superadas as causas estruturais da baixa produtividade global – ligadas designadamente a défices de qualificação do trabalho e de eficiência empresarial –, a única maneira de melhorar a competitividade, dizem os economistas, é a contenção dos custos, incluindo os custos do trabalho. Na falta de moderação salarial assumida, a alternativa só pode ser mais desemprego – por perda de mercados e incapacidade de competição das empresas nacionais, quer no mercado externo quer no mercado interno –, o qual acabará por pressionar os salários para baixo, sobretudo para os jovens à procura do primeiro emprego.
É neste contexto que assumem importância crucial não somente as políticas de qualificação acelerada do emprego e de formação profissional – que no entanto demoram tempo a produzir efeitos –, mas também as medidas no campo das relações laborais, quer as que passam pela flexibilização do tempo de trabalho a nível da empresa, aumentando a eficiência e permitindo alguma poupança de sobrecustos com trabalho suplementar, quer as que estabelecem uma correlação obrigatória entre a melhoria de remuneração e os níveis de desempenho e de produtividade.
Todavia, por mais racional que seja o discurso da moderação salarial em homenagem à competitividade das empresas e à criação de emprego, ele só pode aparecer como politicamente cínico e socialmente indefensável num país, como o nosso, onde existe uma das maiores desigualdade entre os rendimentos mais baixos e os mais altos. Como é que se pode pedir contenção salarial à generalidade dos trabalhadores com baixas remunerações médias – quando comparadas com a média da UE –, se as remunerações mais elevadas (profissionais liberais, gestores, altos quadros de empresas) não cessam de subir bem acima do crescimento económico e da produtividade das empresas e da economia?
Seguramente que está fora de causa tornar vinculativo o exemplo da administração da TAP – que decidiu reduzir a sua própria remuneração para sensibilizar os trabalhadores para as dificuldades da empresa – ou sugerir um “tecto legal” para as remunerações no sector privado (embora não fosse nada escandaloso no sector público). Mas se o Governo – este ou qualquer outro – pretender obter resultados na política de contenção de rendimentos, verá votados ao insucesso todos os seus esforços, se não der mostras de fazer partilhar a moderação remuneratória pela generalidade dos agentes económicos, desencorajando ou pelo menos onerando as remunerações demasiado elevadas.
É certo que o actual governo criou um escalão adicional no IRS sujeito à taxa de 42%. Mas essa medida está longe de atingir todos os rendimentos mais elevados, não somente porque os rendimentos de capital estão sujeitos a uma “taxa liberatória” fixa de apenas 20%, mas também porque a actual legislação permite a migração da tributação em IRS para a tributação em IRC – muito mais baixa –, através do abuso da forma societária, sobretudo na prestação de serviços. Acresce que a progressividade nominal do IRS é muito afectada pela subdeclaração de certos rendimentos, bem como pelos consideráveis benefícios fiscais de que aproveitam sobretudo os altos rendimentos (por exemplo, despesas de saúde e de educação fora dos respectivos serviços públicos). Tampouco se compreende, por exemplo, a falta de qualquer iniciativa para desincentivar os níveis luxuriantes da remuneração (directa e indirecta) dos gestores em algumas empresas, quando em vários países europeus estão em estudo ou em curso iniciativas para condicionar os valores mais escandalosos.
Numa economia de mercado, por menos desregulada que seja, são sempre limitados os instrumentos para apertar o leque dos rendimentos, sobretudo nos níveis mais elevados. Mas existem. Mesmo que não seja de seguir a recente (e ousada) sugestão de Fernando Ulrich de criar um escalão suplementar no IRS, existem outras medidas, tanto no plano fiscal como no plano regulatório, de que o Estado, querendo, não deve abdicar.
Quando se trata de pedir morigeração salarial, convém não esquecer um módico de equidade social.
(Diário Económico, 30 de Julho de 2008)
Não era preciso o FMI vir lembrar que o principal problema endógeno da economia portuguesa, que os actuais choques exógenos tornam ainda mais notório, continua a ser o “crescimento anémico da produtividade”. Conjugando baixa produtividade com elevados custos relativos do trabalho – apesar do nível comparativamente baixo dos salários –, o resultado só pode ser a reduzida competitividade da economia portuguesa em muitas áreas, que trava o crescimento económico, limita o emprego, desequilibra a balança comercial e fomenta a dívida externa.
Enquanto não forem superadas as causas estruturais da baixa produtividade global – ligadas designadamente a défices de qualificação do trabalho e de eficiência empresarial –, a única maneira de melhorar a competitividade, dizem os economistas, é a contenção dos custos, incluindo os custos do trabalho. Na falta de moderação salarial assumida, a alternativa só pode ser mais desemprego – por perda de mercados e incapacidade de competição das empresas nacionais, quer no mercado externo quer no mercado interno –, o qual acabará por pressionar os salários para baixo, sobretudo para os jovens à procura do primeiro emprego.
É neste contexto que assumem importância crucial não somente as políticas de qualificação acelerada do emprego e de formação profissional – que no entanto demoram tempo a produzir efeitos –, mas também as medidas no campo das relações laborais, quer as que passam pela flexibilização do tempo de trabalho a nível da empresa, aumentando a eficiência e permitindo alguma poupança de sobrecustos com trabalho suplementar, quer as que estabelecem uma correlação obrigatória entre a melhoria de remuneração e os níveis de desempenho e de produtividade.
Todavia, por mais racional que seja o discurso da moderação salarial em homenagem à competitividade das empresas e à criação de emprego, ele só pode aparecer como politicamente cínico e socialmente indefensável num país, como o nosso, onde existe uma das maiores desigualdade entre os rendimentos mais baixos e os mais altos. Como é que se pode pedir contenção salarial à generalidade dos trabalhadores com baixas remunerações médias – quando comparadas com a média da UE –, se as remunerações mais elevadas (profissionais liberais, gestores, altos quadros de empresas) não cessam de subir bem acima do crescimento económico e da produtividade das empresas e da economia?
Seguramente que está fora de causa tornar vinculativo o exemplo da administração da TAP – que decidiu reduzir a sua própria remuneração para sensibilizar os trabalhadores para as dificuldades da empresa – ou sugerir um “tecto legal” para as remunerações no sector privado (embora não fosse nada escandaloso no sector público). Mas se o Governo – este ou qualquer outro – pretender obter resultados na política de contenção de rendimentos, verá votados ao insucesso todos os seus esforços, se não der mostras de fazer partilhar a moderação remuneratória pela generalidade dos agentes económicos, desencorajando ou pelo menos onerando as remunerações demasiado elevadas.
É certo que o actual governo criou um escalão adicional no IRS sujeito à taxa de 42%. Mas essa medida está longe de atingir todos os rendimentos mais elevados, não somente porque os rendimentos de capital estão sujeitos a uma “taxa liberatória” fixa de apenas 20%, mas também porque a actual legislação permite a migração da tributação em IRS para a tributação em IRC – muito mais baixa –, através do abuso da forma societária, sobretudo na prestação de serviços. Acresce que a progressividade nominal do IRS é muito afectada pela subdeclaração de certos rendimentos, bem como pelos consideráveis benefícios fiscais de que aproveitam sobretudo os altos rendimentos (por exemplo, despesas de saúde e de educação fora dos respectivos serviços públicos). Tampouco se compreende, por exemplo, a falta de qualquer iniciativa para desincentivar os níveis luxuriantes da remuneração (directa e indirecta) dos gestores em algumas empresas, quando em vários países europeus estão em estudo ou em curso iniciativas para condicionar os valores mais escandalosos.
Numa economia de mercado, por menos desregulada que seja, são sempre limitados os instrumentos para apertar o leque dos rendimentos, sobretudo nos níveis mais elevados. Mas existem. Mesmo que não seja de seguir a recente (e ousada) sugestão de Fernando Ulrich de criar um escalão suplementar no IRS, existem outras medidas, tanto no plano fiscal como no plano regulatório, de que o Estado, querendo, não deve abdicar.
Quando se trata de pedir morigeração salarial, convém não esquecer um módico de equidade social.
(Diário Económico, 30 de Julho de 2008)