29 de setembro de 2008
1º debate: Obama convenceu
John McCain deu o dito por não dito e apareceu, afinal, no debate. Que foi esclarecedor: na economia e na política externa ficaram nítidas as diferenças entre os candidatos.
Obama privilegia a redistribuição através dos impostos para salvar a classe média e promete seleccionar as despesas do Estado a reduzir, para relançar a economia com reformas estruturais: investimento nas energias alternativas, reforço do sistema educativo, reforma dos serviços de saúde, redução das despesas de guerra em favor da “inteligencia humana” necessária contra o terrorismo e a proliferação nuclear. Para ele a crise resulta das políticas desreguladoras de Bush que Mc Cain sempre apoiou. Quer ajuda urgente a quem está em risco de perder as casas por causa dos empréstimos “tóxicos” da banca e opõe-se a que os contribuintes gastem mais em “paraquedas dourados” para os executivos que levaram Wall Street à bancarrota.
McCain continua atido à política de cortar impostos que beneficia sobretudo os ricos, a pretexto de ajudar as empresas. Aposta na redução drástica das despesas do Estado. Furar os EUA a procurar petróleo é a sua receita para reduzir a dependência energética do exterior. Mas também se opõe a que os executivos financeiros saquem mais dinheiro ao Estado – denuncia mesmo a corrupção e criminalidade por detrás da ganância, excessos e falta de supervisão que levaram à crise em Wall Street (chato, muito chato para os neo-liberais lusos que teimam em ver na origem da crise políticas “socialistas” de promoção da propriedade imobiliária...). Ambos candidatos concorrem agora na necessidade de mais intervenção estatal sobre a actividade financeira, mais regulação e supervisão.
Na politica externa, McCain invoca a sua experiência para rotular Obama de ingenuidade, mas este não se fica e denuncia o falhanço das políticas de Bush que McCain sempre apoiou: a invasão do Iraque, que reforçou o Irão e desviou meios da captura de Bin Laden e do Afeganistão, abrindo o caminho à Al Qaeda no Iraque; o apoio à ditadura de Musharaff que tornou a ameaça de proliferação nuclear mais acessível aos terroristas e os reforçou no Afeganistão e Paquistão; a recusa de dialogar com o “eixo do mal” que só estimulou Teerão e Piongyang a prosseguirem a aquisição de armas nucleares; o retorno da atitude “guerra-fria” que McCaine advoga face à Russia, a pretexto da Geórgia. Um McCain que embuchou quando Obama lhe recordou que pusera em causa receber um aliado NATO, Zapatero.
Ambos os candidatos concordaram, no entanto, que os EUA precisam de recuperar credibilidade no mundo e para isso é fundamental acabar com a tortura em que Bush os enlameou (chato, muito chato para o embaixador americano em Portugal, que acha que é tudo invenção....).
O debate não teve o drama de outros, porque nenhum dos candidatos escorregou, como alguns no passado, frente às câmaras da televisão.
Mas produziu um ganhador: Barack Obama. Embora com menos traquejo nas técnicas do debate, a calma, o conhecimento dos temas, a capacidade de ser ofensivo sem ser agressivo, tornaram-no convicente e “presidencial”.
O perdedor foi John McCain, que era quem precisava de ganhar com vantagem este debate, no final de uma semana desastrosa. Surgiu agressivo, paternalista e agarrado ao passado. E na economia, sobretudo, não convenceu sequer os seus próprios apoiantes. E a economia é, sem dúvida, o que agora mais preocupa os eleitores americanos.
(parte deste meu texto foi publicado no Jornal de Noticias a 28.9.08)
Obama privilegia a redistribuição através dos impostos para salvar a classe média e promete seleccionar as despesas do Estado a reduzir, para relançar a economia com reformas estruturais: investimento nas energias alternativas, reforço do sistema educativo, reforma dos serviços de saúde, redução das despesas de guerra em favor da “inteligencia humana” necessária contra o terrorismo e a proliferação nuclear. Para ele a crise resulta das políticas desreguladoras de Bush que Mc Cain sempre apoiou. Quer ajuda urgente a quem está em risco de perder as casas por causa dos empréstimos “tóxicos” da banca e opõe-se a que os contribuintes gastem mais em “paraquedas dourados” para os executivos que levaram Wall Street à bancarrota.
McCain continua atido à política de cortar impostos que beneficia sobretudo os ricos, a pretexto de ajudar as empresas. Aposta na redução drástica das despesas do Estado. Furar os EUA a procurar petróleo é a sua receita para reduzir a dependência energética do exterior. Mas também se opõe a que os executivos financeiros saquem mais dinheiro ao Estado – denuncia mesmo a corrupção e criminalidade por detrás da ganância, excessos e falta de supervisão que levaram à crise em Wall Street (chato, muito chato para os neo-liberais lusos que teimam em ver na origem da crise políticas “socialistas” de promoção da propriedade imobiliária...). Ambos candidatos concorrem agora na necessidade de mais intervenção estatal sobre a actividade financeira, mais regulação e supervisão.
Na politica externa, McCain invoca a sua experiência para rotular Obama de ingenuidade, mas este não se fica e denuncia o falhanço das políticas de Bush que McCain sempre apoiou: a invasão do Iraque, que reforçou o Irão e desviou meios da captura de Bin Laden e do Afeganistão, abrindo o caminho à Al Qaeda no Iraque; o apoio à ditadura de Musharaff que tornou a ameaça de proliferação nuclear mais acessível aos terroristas e os reforçou no Afeganistão e Paquistão; a recusa de dialogar com o “eixo do mal” que só estimulou Teerão e Piongyang a prosseguirem a aquisição de armas nucleares; o retorno da atitude “guerra-fria” que McCaine advoga face à Russia, a pretexto da Geórgia. Um McCain que embuchou quando Obama lhe recordou que pusera em causa receber um aliado NATO, Zapatero.
Ambos os candidatos concordaram, no entanto, que os EUA precisam de recuperar credibilidade no mundo e para isso é fundamental acabar com a tortura em que Bush os enlameou (chato, muito chato para o embaixador americano em Portugal, que acha que é tudo invenção....).
O debate não teve o drama de outros, porque nenhum dos candidatos escorregou, como alguns no passado, frente às câmaras da televisão.
Mas produziu um ganhador: Barack Obama. Embora com menos traquejo nas técnicas do debate, a calma, o conhecimento dos temas, a capacidade de ser ofensivo sem ser agressivo, tornaram-no convicente e “presidencial”.
O perdedor foi John McCain, que era quem precisava de ganhar com vantagem este debate, no final de uma semana desastrosa. Surgiu agressivo, paternalista e agarrado ao passado. E na economia, sobretudo, não convenceu sequer os seus próprios apoiantes. E a economia é, sem dúvida, o que agora mais preocupa os eleitores americanos.
(parte deste meu texto foi publicado no Jornal de Noticias a 28.9.08)
25 de setembro de 2008
Angola – para haver democracia, eleições não bastam
por Ana Gomes
O mais positivo e determinante de tudo o que se passou no processo eleitoral em Angola é que o povo acorreu massivamente a votar, de forma ordeira, no dia 5 de Setembro. Depois de um período de campanha eleitoral em que, graças aos discursos moderados de todas as forças políticas, os angolanos deram passos decisivos no processo de reconciliação nacional.
No período de tabulação e divulgação dos resultados eleitorais foi surpreendente a contenção e normalidade vivida em Luanda: não se viam festejos do MPLA ou manifestações de protesto suscitadas por forças da oposição.
A elevada participação de mulheres foi outro exemplo positivo que Angola ofereceu ao mundo: não apenas como eleitoras e candidatas (41% de mulheres nas listas do MPLA), mas também como membros das mesas de voto, funcionárias eleitorais, representantes partidárias e observadoras nacionais.
O aspecto mais negativo do dia 5 de Setembro foi a desorganização da votação, em Luanda. Uma desorganização que pressenti «organizada». Por não ignorar que o voto dos bairros pobres de Luanda era o que mais inquietava o MPLA, nem que “aparatchiks” com excesso de zelo abundam naquele partido e nas estruturas do Estado angolano, incluindo a Comissão Nacional de Eleições (onde o MPLA domina).
Tendo em conta os resultados eleitorais, a relação de forças entre o MPLA e a UNITA em Cabinda é mais equilibrada do que no resto do país. Houve um voto útil, com base num acordo feito pelos activistas cabindas com a UNITA, em troca de passarem a ter porta-vozes no parlamento angolano. Um acordo que resulta da aposta dos cabindas mais críticos de Luanda no processo democrático. Por isso, estes resultados não são apenas importantes para os cabindas: devem ser uma oportunidade a não desperdiçar pelo MPLA para afastar definitivamente a luta armada, corrigindo as políticas de negligência, repressão e discriminação que estão na base do ressentimento dos cabindas.
Nunca tive dúvidas de que nestas eleições o MPLA ganharia e ganharia largamente. Teria ganho melhor até, se tivesse ganho por menos – a nenhuma democracia, a nenhum partido, em qualquer ponto do globo, um resultado de 80% dos votos dá saúde. O MPLA teria ganho também indiscutivelmente melhor se não tivesse recorrido aos métodos condenáveis de “enquadramento” dos eleitores a que recorreu (além do agoniante controle e abuso dos media estatais, a compra de votos abundou...).
A UNITA estava condenada a baixar na votação relativamente a 1992. Não tanto por causa da propaganda, dos meios desiguais e dos métodos do MPLA, mas antes por razões respeitantes ao próprio processo histórico, em especial, as responsabilidades que, aos olhos da maioria dos angolanos, teve na guerra, incluindo o retorno às armas depois das eleições de 1992.
No relatório preliminar que a Missão de Observação da UE divulgou, pode verificar-se que a Missão não se coibiu de indicar as irregularidades, ilegalidades e falhas que marcaram o processo eleitoral, incluindo as que estão ainda em apreciação pelas instâncias de recurso previstas na lei. O relatório final, a divulgar dentro de semanas, deverá detalhar os factos em que se baseiam as críticas e fazer recomendações: para evitar que os mesmos problemas se repitam nas eleições presidenciais que deverão ter lugar em 2009.
A percepção dos portugueses sobre estas eleições em Angola foi envenenada por uma acção da exclusiva responsabilidade do poder angolano: a recusa de vistos a jornalistas de alguns órgãos de comunicação social portugueses. Uma atitude inaceitável, reveladora de que continua poderosa no MPLA uma linha arrogante e autista, incapaz de compreender o que a democracia realmente implica e até de perceber quando está a dar tiros no próprio pé.
O MPLA “enquadrou” e esmagou. A UNITA reclamou, mas aceitou os resultados. Os outros partidos mal se ouvem - o que não é bom para o funcionamento democrático. Mas o povo angolano votou pacificamente e mostrou querer democracia, desenvolvimento e distribuição equitativa da riqueza do país.
Quem se diz amigo de Angola não pode apenas salivar pelos negócios que a paz, a reconstrução e os prodigiosos recursos angolanos prometem. Tem que frisar que eleições são passo sine qua non, mas a democracia não existe se não houver respeito pelos direitos e liberdades mais básicas, em especial a de informação e de expressão, se não funcionar a justiça e se se impedir a sociedade civil de se desenvolver, intervir e pedir contas ao poder.
Angola conta: para Portugal, para África, para a UE, os EUA, a China e para o mundo inteiro, cada vez mais. E tanto mais quanto o seu exemplo seja recomendável.
O MPLA esmagou. Esmagadora é também a acrescida responsabilidade que agora vai assumir.
Jornal de Leiria, 18 de Setembro de 2008
O mais positivo e determinante de tudo o que se passou no processo eleitoral em Angola é que o povo acorreu massivamente a votar, de forma ordeira, no dia 5 de Setembro. Depois de um período de campanha eleitoral em que, graças aos discursos moderados de todas as forças políticas, os angolanos deram passos decisivos no processo de reconciliação nacional.
No período de tabulação e divulgação dos resultados eleitorais foi surpreendente a contenção e normalidade vivida em Luanda: não se viam festejos do MPLA ou manifestações de protesto suscitadas por forças da oposição.
A elevada participação de mulheres foi outro exemplo positivo que Angola ofereceu ao mundo: não apenas como eleitoras e candidatas (41% de mulheres nas listas do MPLA), mas também como membros das mesas de voto, funcionárias eleitorais, representantes partidárias e observadoras nacionais.
O aspecto mais negativo do dia 5 de Setembro foi a desorganização da votação, em Luanda. Uma desorganização que pressenti «organizada». Por não ignorar que o voto dos bairros pobres de Luanda era o que mais inquietava o MPLA, nem que “aparatchiks” com excesso de zelo abundam naquele partido e nas estruturas do Estado angolano, incluindo a Comissão Nacional de Eleições (onde o MPLA domina).
Tendo em conta os resultados eleitorais, a relação de forças entre o MPLA e a UNITA em Cabinda é mais equilibrada do que no resto do país. Houve um voto útil, com base num acordo feito pelos activistas cabindas com a UNITA, em troca de passarem a ter porta-vozes no parlamento angolano. Um acordo que resulta da aposta dos cabindas mais críticos de Luanda no processo democrático. Por isso, estes resultados não são apenas importantes para os cabindas: devem ser uma oportunidade a não desperdiçar pelo MPLA para afastar definitivamente a luta armada, corrigindo as políticas de negligência, repressão e discriminação que estão na base do ressentimento dos cabindas.
Nunca tive dúvidas de que nestas eleições o MPLA ganharia e ganharia largamente. Teria ganho melhor até, se tivesse ganho por menos – a nenhuma democracia, a nenhum partido, em qualquer ponto do globo, um resultado de 80% dos votos dá saúde. O MPLA teria ganho também indiscutivelmente melhor se não tivesse recorrido aos métodos condenáveis de “enquadramento” dos eleitores a que recorreu (além do agoniante controle e abuso dos media estatais, a compra de votos abundou...).
A UNITA estava condenada a baixar na votação relativamente a 1992. Não tanto por causa da propaganda, dos meios desiguais e dos métodos do MPLA, mas antes por razões respeitantes ao próprio processo histórico, em especial, as responsabilidades que, aos olhos da maioria dos angolanos, teve na guerra, incluindo o retorno às armas depois das eleições de 1992.
No relatório preliminar que a Missão de Observação da UE divulgou, pode verificar-se que a Missão não se coibiu de indicar as irregularidades, ilegalidades e falhas que marcaram o processo eleitoral, incluindo as que estão ainda em apreciação pelas instâncias de recurso previstas na lei. O relatório final, a divulgar dentro de semanas, deverá detalhar os factos em que se baseiam as críticas e fazer recomendações: para evitar que os mesmos problemas se repitam nas eleições presidenciais que deverão ter lugar em 2009.
A percepção dos portugueses sobre estas eleições em Angola foi envenenada por uma acção da exclusiva responsabilidade do poder angolano: a recusa de vistos a jornalistas de alguns órgãos de comunicação social portugueses. Uma atitude inaceitável, reveladora de que continua poderosa no MPLA uma linha arrogante e autista, incapaz de compreender o que a democracia realmente implica e até de perceber quando está a dar tiros no próprio pé.
O MPLA “enquadrou” e esmagou. A UNITA reclamou, mas aceitou os resultados. Os outros partidos mal se ouvem - o que não é bom para o funcionamento democrático. Mas o povo angolano votou pacificamente e mostrou querer democracia, desenvolvimento e distribuição equitativa da riqueza do país.
Quem se diz amigo de Angola não pode apenas salivar pelos negócios que a paz, a reconstrução e os prodigiosos recursos angolanos prometem. Tem que frisar que eleições são passo sine qua non, mas a democracia não existe se não houver respeito pelos direitos e liberdades mais básicas, em especial a de informação e de expressão, se não funcionar a justiça e se se impedir a sociedade civil de se desenvolver, intervir e pedir contas ao poder.
Angola conta: para Portugal, para África, para a UE, os EUA, a China e para o mundo inteiro, cada vez mais. E tanto mais quanto o seu exemplo seja recomendável.
O MPLA esmagou. Esmagadora é também a acrescida responsabilidade que agora vai assumir.
Jornal de Leiria, 18 de Setembro de 2008
Concorrência nos aeroportos?
Por Vital Moreira
Recentemente, a Comissão da Concorrência britânica concluiu que a exploração de certos aeroportos do Reino Unido pela mesma empresa (a BAA, uma empresa privatizada controlada pela Ferrovial espanhola), concretamente os de Londres e os de Glasgow e Edimburgo na Escócia, se traduz em prejuízo para as companhias aéreas e os seus clientes. Por isso, recomenda a alienação de alguns desses aeroportos, de modo a introduzir concorrência entre eles. Será que esta filosofia se aplica noutras geografias, concretamente no caso dos aeroportos de Lisboa e do Porto, como se apressaram a argumentar os defensores da privatização separada do aeroporto do Porto, desagregando-o do universo da ANA?
Antes de mais, tal como os portos e outras infra-estruturas de transportes (incluindo as linhas ferroviárias e as auto-estradas), os aeroportos entram claramente na noção de "monopólios naturais", em que normalmente não se justifica nem faz sentido, em termos de racionalidade económica (nem em termos ambientais), a livre instalação e a oferta alternativa. Salvo em caso de saturação e impossibilidade de expansão dos existentes, não se constrói um aeroporto ao lado de outro, só para estabelecer competição entre eles. Ora, onde não há monopólios naturais não pode haver concorrência em sentido próprio, designadamente no preço dos serviços, por falta de alternativa disponível. Nesse caso, a regulação imperativa supre a falta de concorrência.
Todavia, quando haja efectivamente oferta alternativa no mesmo território relevante, então pode fazer todo o sentido beneficiar das vantagens da concorrência, impondo a exploração competitiva dessas infra-estruturas. É esse o caso dos referidos aeroportos britânicos, situados a pequena distância entre si, e servindo portanto o mesmo universo de utentes. Fora dessas situações, porém, as companhias aéreas utilizam os aeroportos das cidades e regiões onde haja procura para os seus voos, e não trocam os trocam por aeroportos distantes só por causa do nível das suas tarifas e outras vantagens competitivas.
Tal não é manifestamente o caso de Lisboa e do Porto, que distam mais de 300 quilómetros entre si, e que servem universos populacionais essencialmente distintos, salvo a zona central do País, mais ou menos equidistante dos dois aeroportos. Não concorrem portanto pela mesma procura, a não ser em termos marginais. Aliás, dada a sua limitada base de captação populacional, como aeroporto regional, não se vê como é que o Porto pode competir com Lisboa na atracção de muitos voos intercontinentais ou mesmo de voos regionais para destinos menos frequentados. E sem procura assegurada não há oferta de voos pelas transportadoras. Por conseguinte, o argumento concorrencial não procede.
Mas isto não quer dizer que não possa haver um racional alternativo para a exploração separada de aeroportos não alternativos (o do Porto ou de qualquer outro), sobretudo na perspectiva da sua privatização. Não é só a eventual concorrência que pode justificar a gestão autónoma de infra-estruturas de transporte, como aliás sucede entre nós no caso dos portos, onde os problemas não são muito diferentes, os quais têm gestão desagregada, apesar de todos continuarem no sector público.
Entre as vantagens da exploração descentralizada podem arrolar-se a comparabilidade da eficiência da gestão de cada unidade (permitindo estabelecer "benchmarking" comparativo), a exploração de sinergias e de vantagens relativas a nível local ou regional, o aproveitamento de capacidades de investimento regional, de outro modo desaproveitadas, etc. Nem é preciso grande exercício de imaginação para admitir que um aeroporto mais eficiente pode oferecer serviços menos onerosos, permitindo que as companhias aéreas ofereçam viagens mais em conta, aumentado a procura local ou regional de transporte aéreo.
Em vez do fictício argumento da concorrência com Lisboa, a defesa da exploração autónoma do aeroporto do Norte seria bem mais convincente se provasse que ela seria mais vantajosa em termos de eficiência, de satisfação das necessidades de transporte aéreo a nível local e regional e, em última instância, do interesse público na rentabilidade dos investimentos aeroportuários. Sem uma argumentação convincente nessa perspectiva, a tese da concorrência com Lisboa não passa de mais um fácil tropo regionalista, do tipo daquele que já ditou o infeliz alinhamento do Norte com a oposição ao novo aeroporto em Lisboa, com o extraordinário argumento de que ele impedirá o crescimento do aeroporto do Porto, como se fossem alternativos.
Pode haver boas razões para "regionalizar" a exploração do aeroporto do Porto. Mas se as há, é preferível não invocar as más...
(Diário Económico, quarta-feira, 3 de Setembro de 2008)
Recentemente, a Comissão da Concorrência britânica concluiu que a exploração de certos aeroportos do Reino Unido pela mesma empresa (a BAA, uma empresa privatizada controlada pela Ferrovial espanhola), concretamente os de Londres e os de Glasgow e Edimburgo na Escócia, se traduz em prejuízo para as companhias aéreas e os seus clientes. Por isso, recomenda a alienação de alguns desses aeroportos, de modo a introduzir concorrência entre eles. Será que esta filosofia se aplica noutras geografias, concretamente no caso dos aeroportos de Lisboa e do Porto, como se apressaram a argumentar os defensores da privatização separada do aeroporto do Porto, desagregando-o do universo da ANA?
Antes de mais, tal como os portos e outras infra-estruturas de transportes (incluindo as linhas ferroviárias e as auto-estradas), os aeroportos entram claramente na noção de "monopólios naturais", em que normalmente não se justifica nem faz sentido, em termos de racionalidade económica (nem em termos ambientais), a livre instalação e a oferta alternativa. Salvo em caso de saturação e impossibilidade de expansão dos existentes, não se constrói um aeroporto ao lado de outro, só para estabelecer competição entre eles. Ora, onde não há monopólios naturais não pode haver concorrência em sentido próprio, designadamente no preço dos serviços, por falta de alternativa disponível. Nesse caso, a regulação imperativa supre a falta de concorrência.
Todavia, quando haja efectivamente oferta alternativa no mesmo território relevante, então pode fazer todo o sentido beneficiar das vantagens da concorrência, impondo a exploração competitiva dessas infra-estruturas. É esse o caso dos referidos aeroportos britânicos, situados a pequena distância entre si, e servindo portanto o mesmo universo de utentes. Fora dessas situações, porém, as companhias aéreas utilizam os aeroportos das cidades e regiões onde haja procura para os seus voos, e não trocam os trocam por aeroportos distantes só por causa do nível das suas tarifas e outras vantagens competitivas.
Tal não é manifestamente o caso de Lisboa e do Porto, que distam mais de 300 quilómetros entre si, e que servem universos populacionais essencialmente distintos, salvo a zona central do País, mais ou menos equidistante dos dois aeroportos. Não concorrem portanto pela mesma procura, a não ser em termos marginais. Aliás, dada a sua limitada base de captação populacional, como aeroporto regional, não se vê como é que o Porto pode competir com Lisboa na atracção de muitos voos intercontinentais ou mesmo de voos regionais para destinos menos frequentados. E sem procura assegurada não há oferta de voos pelas transportadoras. Por conseguinte, o argumento concorrencial não procede.
Mas isto não quer dizer que não possa haver um racional alternativo para a exploração separada de aeroportos não alternativos (o do Porto ou de qualquer outro), sobretudo na perspectiva da sua privatização. Não é só a eventual concorrência que pode justificar a gestão autónoma de infra-estruturas de transporte, como aliás sucede entre nós no caso dos portos, onde os problemas não são muito diferentes, os quais têm gestão desagregada, apesar de todos continuarem no sector público.
Entre as vantagens da exploração descentralizada podem arrolar-se a comparabilidade da eficiência da gestão de cada unidade (permitindo estabelecer "benchmarking" comparativo), a exploração de sinergias e de vantagens relativas a nível local ou regional, o aproveitamento de capacidades de investimento regional, de outro modo desaproveitadas, etc. Nem é preciso grande exercício de imaginação para admitir que um aeroporto mais eficiente pode oferecer serviços menos onerosos, permitindo que as companhias aéreas ofereçam viagens mais em conta, aumentado a procura local ou regional de transporte aéreo.
Em vez do fictício argumento da concorrência com Lisboa, a defesa da exploração autónoma do aeroporto do Norte seria bem mais convincente se provasse que ela seria mais vantajosa em termos de eficiência, de satisfação das necessidades de transporte aéreo a nível local e regional e, em última instância, do interesse público na rentabilidade dos investimentos aeroportuários. Sem uma argumentação convincente nessa perspectiva, a tese da concorrência com Lisboa não passa de mais um fácil tropo regionalista, do tipo daquele que já ditou o infeliz alinhamento do Norte com a oposição ao novo aeroporto em Lisboa, com o extraordinário argumento de que ele impedirá o crescimento do aeroporto do Porto, como se fossem alternativos.
Pode haver boas razões para "regionalizar" a exploração do aeroporto do Porto. Mas se as há, é preferível não invocar as más...
(Diário Económico, quarta-feira, 3 de Setembro de 2008)
Liberdade de voto "versus" facilidade de voto
Por Vital Moreira
A direita política, com o PSD à cabeça, reagiu veementemente contra a proposta do PS de acabar com o voto por correspondência na votação das eleições parlamentares no estrangeiro. Faz sentido essa oposição?
Ao contrário do que sucede hoje nas demais eleições em que participam os residentes no estrangeiro - ou seja, nas eleições presidenciais e nas europeias -, nas eleições parlamentares, desde sempre, a votação é feita por correspondência nos dois círculos eleitorais do estrangeiro (um na Europa, outro no resto do mundo), recebendo os eleitores inscritos com antecedência os boletins de voto no seu endereço postal.
A primeira razão para abandonar o voto por correspondência nas eleições parlamentares é evidentemente a consistência de soluções, não se compreendendo o dualismo de soluções quanto à mesma questão. A segunda razão é o enorme custo financeiro e administrativo da votação por correspondência, que implica o envio de boletins de voto e de sobrescritos, por correio registado, para todos os eleitores inscritos, muitas dezenas de milhares (mesmo que depois a participação eleitoral se fique por percentagens muito baixas). Mas a principal objecção ao voto por correspondência decorre evidentemente de este não assegurar alguns princípios básicos de qualquer eleição digna desse nome, que são a pessoalidade e o sigilo do voto. De facto, o voto por via postal não garante que a votação seja feita pelo próprio eleitor nem muito menos que o voto seja secreto. A coabitação com outras pessoas, bem como razões familiares ou outras, pode constranger ou inibir a pessoalidade e a liberdade do voto.
Fácil também é perceber, por isso, que o voto por correspondência envolve um risco de fraude eleitoral, se as forças políticas se decidirem a "organizar" a votação dos seus militantes e simpatizantes, recolhendo os boletins de voto e procedendo ao seu preenchimento e envio colectivo. Mesmo que a margem de possível fraude seja em geral despicienda em termos de resultados eleitorais, não deixa de ser comprometedora para a lisura e a genuinidade das eleições.
Em contrapartida, a favor do voto por correspondência perfila-se também um forte argumento, que é o de que ele facilita o exercício do direito de voto, enquanto o voto presencial impossibilitará ou dificultará o voto daqueles eleitores que residem em locais distantes dos consulados e embaixadas, como frequentemente sucede no estrangeiro. A comparação do número de votantes nas eleições parlamentares, onde existe o voto por correspondência, e nas recentes eleições presidenciais, onde a votação no estrangeiro é feita de modo presencial, mostra que a participação eleitoral nas primeiras é consideravelmente mais elevada.
É claro que essa diferença pode ser muito reduzida pela multiplicação das mesas de voto, onde haja concentrações razoáveis de eleitores, bem como pelo prolongamento da votação por vários dias, como propõe em ambos os casos o projecto socialista. Todavia, embora essas medidas possam atenuar a abstenção, dificilmente replicarão inteiramente a facilidade de voto que o voto por correspondência proporciona.
Mas se o aumento da abstenção, já de si elevada, constitui um forte argumento contra o abandono do voto por correspondência, já não se compreende o argumento que a mudança prejudicaria uns partidos (supostamente o PSD) em favor de outros (supostamente o PS), como insinuou explicitamente o primeiro. Sendo evidente que, em condições normais, as preferências eleitorais dos eleitores são proporcionalmente as mesmas, independentemente do modo de votação, então é evidente que uma menor participação eleitoral não vai prejudicar nem beneficiar ninguém, pois o número de deputados é fixo e os mandatos são atribuídos de forma proporcional. O referido argumento torna-se assim pelo menos intrigante, deixando pairar a dúvida sobre que desvantagens é que o PSD teria com o fim do voto por correspondência. Decididamente, há argumentos que comprometem...
Vistos os argumentos, tudo se resume a saber se a vantagem de uma provável maior participação eleitoral deve pesar mais do que as desvantagens do voto postal, designadamente a violação dos princípios da pessoalidade e do sigilo do voto, incluindo o risco de fraude eleitoral. A isso se deveria resumir o debate político sobre o assunto, sendo estranha a súbita paixão posta pelo PSD na oposição à mudança, sobretudo tendo em conta que esse partido aprovou a adopção do voto presencial tanto nas eleições presidenciais como nas eleições europeias.
O zelo do PSD nesta matéria pode, inclusive, criar um sério embaraço ao Presidente da República na hora de decidir sobre a promulgação, ou não, do diploma. De facto, tratando-se de matéria eleitoral, essa lei integra a esfera de matérias sobre as quais o Presidente tem um especial poder de controlo, dado o seu papel de supervisão do funcionamento do sistema político. Não é por acaso que a Constituição inclui as leis eleitorais entre aquelas em que o veto presidencial tem um valor reforçado, só podendo ser superado por uma maioria de 2/3 no Parlamento. Por isso, havendo oposição dos partidos da direita parlamentar, o veto presidencial significaria o chumbo definitivo da lei.
Todavia, essa mesma circunstância pode inibir fortemente o exercício do poder de veto neste caso. Em primeiro lugar, um eventual veto não se afigura de fácil fundamentação, tendo em conta a vulnerabilidade do voto por correspondência aos argumentos de infracção de princípios eleitorais básicos (aliás, com assento constitucional) e do risco de fraude eleitoral. Em segundo lugar, não será propriamente confortável para Belém vetar politicamente uma lei a pedido do PSD (que já o requereu explicitamente), em nome de um suspeitoso argumento sobre uma alegada desvantagem eleitoral que ele sofreria com o fim do voto por correspondência, que ninguém vislumbra onde possa estar.
(Público, terça-feira, 23 de Setembro de 2008)
A direita política, com o PSD à cabeça, reagiu veementemente contra a proposta do PS de acabar com o voto por correspondência na votação das eleições parlamentares no estrangeiro. Faz sentido essa oposição?
Ao contrário do que sucede hoje nas demais eleições em que participam os residentes no estrangeiro - ou seja, nas eleições presidenciais e nas europeias -, nas eleições parlamentares, desde sempre, a votação é feita por correspondência nos dois círculos eleitorais do estrangeiro (um na Europa, outro no resto do mundo), recebendo os eleitores inscritos com antecedência os boletins de voto no seu endereço postal.
A primeira razão para abandonar o voto por correspondência nas eleições parlamentares é evidentemente a consistência de soluções, não se compreendendo o dualismo de soluções quanto à mesma questão. A segunda razão é o enorme custo financeiro e administrativo da votação por correspondência, que implica o envio de boletins de voto e de sobrescritos, por correio registado, para todos os eleitores inscritos, muitas dezenas de milhares (mesmo que depois a participação eleitoral se fique por percentagens muito baixas). Mas a principal objecção ao voto por correspondência decorre evidentemente de este não assegurar alguns princípios básicos de qualquer eleição digna desse nome, que são a pessoalidade e o sigilo do voto. De facto, o voto por via postal não garante que a votação seja feita pelo próprio eleitor nem muito menos que o voto seja secreto. A coabitação com outras pessoas, bem como razões familiares ou outras, pode constranger ou inibir a pessoalidade e a liberdade do voto.
Fácil também é perceber, por isso, que o voto por correspondência envolve um risco de fraude eleitoral, se as forças políticas se decidirem a "organizar" a votação dos seus militantes e simpatizantes, recolhendo os boletins de voto e procedendo ao seu preenchimento e envio colectivo. Mesmo que a margem de possível fraude seja em geral despicienda em termos de resultados eleitorais, não deixa de ser comprometedora para a lisura e a genuinidade das eleições.
Em contrapartida, a favor do voto por correspondência perfila-se também um forte argumento, que é o de que ele facilita o exercício do direito de voto, enquanto o voto presencial impossibilitará ou dificultará o voto daqueles eleitores que residem em locais distantes dos consulados e embaixadas, como frequentemente sucede no estrangeiro. A comparação do número de votantes nas eleições parlamentares, onde existe o voto por correspondência, e nas recentes eleições presidenciais, onde a votação no estrangeiro é feita de modo presencial, mostra que a participação eleitoral nas primeiras é consideravelmente mais elevada.
É claro que essa diferença pode ser muito reduzida pela multiplicação das mesas de voto, onde haja concentrações razoáveis de eleitores, bem como pelo prolongamento da votação por vários dias, como propõe em ambos os casos o projecto socialista. Todavia, embora essas medidas possam atenuar a abstenção, dificilmente replicarão inteiramente a facilidade de voto que o voto por correspondência proporciona.
Mas se o aumento da abstenção, já de si elevada, constitui um forte argumento contra o abandono do voto por correspondência, já não se compreende o argumento que a mudança prejudicaria uns partidos (supostamente o PSD) em favor de outros (supostamente o PS), como insinuou explicitamente o primeiro. Sendo evidente que, em condições normais, as preferências eleitorais dos eleitores são proporcionalmente as mesmas, independentemente do modo de votação, então é evidente que uma menor participação eleitoral não vai prejudicar nem beneficiar ninguém, pois o número de deputados é fixo e os mandatos são atribuídos de forma proporcional. O referido argumento torna-se assim pelo menos intrigante, deixando pairar a dúvida sobre que desvantagens é que o PSD teria com o fim do voto por correspondência. Decididamente, há argumentos que comprometem...
Vistos os argumentos, tudo se resume a saber se a vantagem de uma provável maior participação eleitoral deve pesar mais do que as desvantagens do voto postal, designadamente a violação dos princípios da pessoalidade e do sigilo do voto, incluindo o risco de fraude eleitoral. A isso se deveria resumir o debate político sobre o assunto, sendo estranha a súbita paixão posta pelo PSD na oposição à mudança, sobretudo tendo em conta que esse partido aprovou a adopção do voto presencial tanto nas eleições presidenciais como nas eleições europeias.
O zelo do PSD nesta matéria pode, inclusive, criar um sério embaraço ao Presidente da República na hora de decidir sobre a promulgação, ou não, do diploma. De facto, tratando-se de matéria eleitoral, essa lei integra a esfera de matérias sobre as quais o Presidente tem um especial poder de controlo, dado o seu papel de supervisão do funcionamento do sistema político. Não é por acaso que a Constituição inclui as leis eleitorais entre aquelas em que o veto presidencial tem um valor reforçado, só podendo ser superado por uma maioria de 2/3 no Parlamento. Por isso, havendo oposição dos partidos da direita parlamentar, o veto presidencial significaria o chumbo definitivo da lei.
Todavia, essa mesma circunstância pode inibir fortemente o exercício do poder de veto neste caso. Em primeiro lugar, um eventual veto não se afigura de fácil fundamentação, tendo em conta a vulnerabilidade do voto por correspondência aos argumentos de infracção de princípios eleitorais básicos (aliás, com assento constitucional) e do risco de fraude eleitoral. Em segundo lugar, não será propriamente confortável para Belém vetar politicamente uma lei a pedido do PSD (que já o requereu explicitamente), em nome de um suspeitoso argumento sobre uma alegada desvantagem eleitoral que ele sofreria com o fim do voto por correspondência, que ninguém vislumbra onde possa estar.
(Público, terça-feira, 23 de Setembro de 2008)
24 de setembro de 2008
A revolução no ensino
Por Vital Moreira
Na semana passada, um semanário usava a expressão "revolução em marcha" para caracterizar as mudanças em curso no sector da educação desde 2005, especialmente no ensino básico e secundário. Que a "revolução" é real, e começa a produzir resultados, poucos poderão contestar com convicção. Não menos importante, porém, é perceber a sua filosofia e os seus objectivos.
Analisando globalmente as reformas - desde o reordenamento da rede à oferta de novas aprendizagens, desde o plano tecnológico do ensino ao aumento do tempo escolar, desde o estatuto dos professores ao estatuto dos alunos e à acção social escolar, etc. -, há três ideias motrizes que permitem tornar coerente a sua leitura.
A primeira ideia-chave é o novo discurso sobre a escola, como organização e instituição dotada de identidade e de missão própria, de poderes e competências próprios, de governo e de responsabilidade próprios. A escola deixou de ser um mero estabelecimento do Estado prestador de serviços ao público, como os outros, para passar a ser uma instituição com o seu próprio sentido e densidade.
O conceito já vinha de trás, sem porém vingar no terreno. Agora passou a ser realidade.
Para isso contribuíram decididamente o alargamento da autonomia escolar em geral (e em especial da autonomia contratualizada com cada escola) e o novo sistema de autogoverno, que substituiu o anterior modelo de autogestão dos professores por um modelo de governo plural, fazendo intervir como stakeholders não somente os professores mas também os pais e os municípios, em cujas comunidades as escolas se inserem.
Não é por acaso que se institucionalizou e se passou a privilegiar a comunicação directa e interactiva entre o ME e as escolas, através do novo "conselho de escolas", o que lhes confere o estatuto de parceria política na definição e implementação das políticas de ensino, em alternativa aos sindicatos.
A segunda trave mestra da filosofia da "revolução" escolar consistiu na inequívoca centralidade agora conferida aos alunos. Há aqui uma evidente deslocação de um paradigma centrado sobre os professores para uma focagem fortemente apontada sobre os destinatários da acção educativa. O critério supremo da política educativa e da escola passou a ser o "melhor interesse do aluno".
Nada ilustra tão bem esta nova centralidade do aluno do que a noção de "escola a tempo inteiro" e as aulas de substituição, aliás das primeiras medidas a serem tomadas, com sintomática reacção dos sindicatos. Devemos ler ainda nessa mesma perspectiva outras medidas claramente correlacionadas, como o estudo acompanhado, os planos de reinserção escolar, as "aulas de recuperação" para os alunos que não tenham podido frequentar as aulas regulares, a remodelação do chamado "ensino especial", o grande upgrade da acção social escolar, bem como a consideração do aproveitamento dos alunos como elemento de avaliação dos professores, que tanta contestação injusta mereceu.
A terceira ideia motriz da filosofia da reforma do ensino consistiu manifestamente na valorização do desempenho e na ênfase nos resultados, bem como na avaliação de escolas e dos professores em função de um e de outros. Não se trata somente de buscar o necessário retorno do grande investimento público na educação - numa lógica de responsabilidade para com os contribuintes - mas também de melhorar a eficiência educativa, no sentido de tirar o melhor proveito possível dos recursos disponíveis, de modo a obter melhor ensino para mais alunos. Quando se pensa, por exemplo, na escandalosa pobreza de resultados do sistema de ensino especial ao longo dos anos, apesar dos seus elevadíssimos custos, então compreende-se como se podem obter enormes "ganhos de ensino", até com menores custos.
Face à notória discrepância que se verificava entre os elevados gastos do sistema de ensino entre nós e os seus parcos resultados em termos de aprendizagem, importa fazer o melhor de cada euro investido no ensino, valorizar o mérito e premiar o desempenho dos melhores.
Não se trata de "economicismo", como querem alguns críticos mais vocais, mas sim de bom governo das instituições públicas e de elementar responsabilidade democrática no bom uso de recursos públicos.
A "revolução do ensino" não significa somente benefícios para os alunos e para o ensino em geral. Um efeito colateral virtuoso é também a reabilitação da escola pública, como base incontornável do sistema de ensino, desde logo por imposição constitucional.
Ao longo destes 34 anos, desde o 25 de Abril, pareceu por vezes que a escola pública estava a perder importância na hierarquia da política de ensino. O pior inimigo da escola pública era a degradação do parque escolar, o seu atraso tecnológico, o seu funcionamento a tempo parcial, a degradação da sua qualidade média, os altos índices de insucesso e de abandono escolar, a sua captura pelos interesses profissionais dos professores.
Não admira, por isso, que a tendência fosse para a perda relativa da atractividade da escola pública face à escola privada, que a exploração acrítica dos rankings das classificações escolares mais fazia acentuar. Para um crescente número de pessoas, a escola pública deixava de se recomendar.
É incontestável que as coisas estão a mudar também nesse aspecto. Tal como no caso de outros serviços públicos, a reforma tornou-se condição de sustentabilidade e de requalificação da escola pública. Por isso, quem defende a escola pública é quem, através dela, promove o aumento da escolaridade, a universalidade e equidade no acesso, a redução da exclusão e do abandono escolar, o mérito e o prestígio público do corpo docente, o rigor e a qualidade da gestão escolar, a preeminência dos interesses dos alunos, a busca da excelência e da relevância social do seu ensino.
(Publico, terça-feira, 16 de Setembro de 2008)
Na semana passada, um semanário usava a expressão "revolução em marcha" para caracterizar as mudanças em curso no sector da educação desde 2005, especialmente no ensino básico e secundário. Que a "revolução" é real, e começa a produzir resultados, poucos poderão contestar com convicção. Não menos importante, porém, é perceber a sua filosofia e os seus objectivos.
Analisando globalmente as reformas - desde o reordenamento da rede à oferta de novas aprendizagens, desde o plano tecnológico do ensino ao aumento do tempo escolar, desde o estatuto dos professores ao estatuto dos alunos e à acção social escolar, etc. -, há três ideias motrizes que permitem tornar coerente a sua leitura.
A primeira ideia-chave é o novo discurso sobre a escola, como organização e instituição dotada de identidade e de missão própria, de poderes e competências próprios, de governo e de responsabilidade próprios. A escola deixou de ser um mero estabelecimento do Estado prestador de serviços ao público, como os outros, para passar a ser uma instituição com o seu próprio sentido e densidade.
O conceito já vinha de trás, sem porém vingar no terreno. Agora passou a ser realidade.
Para isso contribuíram decididamente o alargamento da autonomia escolar em geral (e em especial da autonomia contratualizada com cada escola) e o novo sistema de autogoverno, que substituiu o anterior modelo de autogestão dos professores por um modelo de governo plural, fazendo intervir como stakeholders não somente os professores mas também os pais e os municípios, em cujas comunidades as escolas se inserem.
Não é por acaso que se institucionalizou e se passou a privilegiar a comunicação directa e interactiva entre o ME e as escolas, através do novo "conselho de escolas", o que lhes confere o estatuto de parceria política na definição e implementação das políticas de ensino, em alternativa aos sindicatos.
A segunda trave mestra da filosofia da "revolução" escolar consistiu na inequívoca centralidade agora conferida aos alunos. Há aqui uma evidente deslocação de um paradigma centrado sobre os professores para uma focagem fortemente apontada sobre os destinatários da acção educativa. O critério supremo da política educativa e da escola passou a ser o "melhor interesse do aluno".
Nada ilustra tão bem esta nova centralidade do aluno do que a noção de "escola a tempo inteiro" e as aulas de substituição, aliás das primeiras medidas a serem tomadas, com sintomática reacção dos sindicatos. Devemos ler ainda nessa mesma perspectiva outras medidas claramente correlacionadas, como o estudo acompanhado, os planos de reinserção escolar, as "aulas de recuperação" para os alunos que não tenham podido frequentar as aulas regulares, a remodelação do chamado "ensino especial", o grande upgrade da acção social escolar, bem como a consideração do aproveitamento dos alunos como elemento de avaliação dos professores, que tanta contestação injusta mereceu.
A terceira ideia motriz da filosofia da reforma do ensino consistiu manifestamente na valorização do desempenho e na ênfase nos resultados, bem como na avaliação de escolas e dos professores em função de um e de outros. Não se trata somente de buscar o necessário retorno do grande investimento público na educação - numa lógica de responsabilidade para com os contribuintes - mas também de melhorar a eficiência educativa, no sentido de tirar o melhor proveito possível dos recursos disponíveis, de modo a obter melhor ensino para mais alunos. Quando se pensa, por exemplo, na escandalosa pobreza de resultados do sistema de ensino especial ao longo dos anos, apesar dos seus elevadíssimos custos, então compreende-se como se podem obter enormes "ganhos de ensino", até com menores custos.
Face à notória discrepância que se verificava entre os elevados gastos do sistema de ensino entre nós e os seus parcos resultados em termos de aprendizagem, importa fazer o melhor de cada euro investido no ensino, valorizar o mérito e premiar o desempenho dos melhores.
Não se trata de "economicismo", como querem alguns críticos mais vocais, mas sim de bom governo das instituições públicas e de elementar responsabilidade democrática no bom uso de recursos públicos.
A "revolução do ensino" não significa somente benefícios para os alunos e para o ensino em geral. Um efeito colateral virtuoso é também a reabilitação da escola pública, como base incontornável do sistema de ensino, desde logo por imposição constitucional.
Ao longo destes 34 anos, desde o 25 de Abril, pareceu por vezes que a escola pública estava a perder importância na hierarquia da política de ensino. O pior inimigo da escola pública era a degradação do parque escolar, o seu atraso tecnológico, o seu funcionamento a tempo parcial, a degradação da sua qualidade média, os altos índices de insucesso e de abandono escolar, a sua captura pelos interesses profissionais dos professores.
Não admira, por isso, que a tendência fosse para a perda relativa da atractividade da escola pública face à escola privada, que a exploração acrítica dos rankings das classificações escolares mais fazia acentuar. Para um crescente número de pessoas, a escola pública deixava de se recomendar.
É incontestável que as coisas estão a mudar também nesse aspecto. Tal como no caso de outros serviços públicos, a reforma tornou-se condição de sustentabilidade e de requalificação da escola pública. Por isso, quem defende a escola pública é quem, através dela, promove o aumento da escolaridade, a universalidade e equidade no acesso, a redução da exclusão e do abandono escolar, o mérito e o prestígio público do corpo docente, o rigor e a qualidade da gestão escolar, a preeminência dos interesses dos alunos, a busca da excelência e da relevância social do seu ensino.
(Publico, terça-feira, 16 de Setembro de 2008)
A vitória de Angola
Por Vital Moreira
Com a realização das primeiras eleições parlamentares depois do fim da guerra civil em 2002, Angola pode finalmente retomar e concluir o processo de transição democrática iniciado no princípio dos anos 90 do século passado com as mudanças constitucionais, o acordo de paz e as eleições pluripartidárias de 1992, processo brutalmente interrompido pelo reacendimento da luta armada pela UNITA, depois da sua derrota eleitoral.
Se bem que as deficiências logísticas do processo eleitoral em Luanda tenham manchado a exemplaridade que o Governo pretendia conferir a estas eleições, elas em nada afectaram a liberdade e a lisura do acto eleitoral nem a genuinidade dos resultados, até porque logo rectificadas pelo prolongamento da jornada eleitoral para o dia seguinte. Todo o processo eleitoral, desde o recenseamento eleitoral há alguns meses, passando pela campanha eleitoral, até à votação e apuramento dos resultados, foi objecto de permanente escrutínio público dos partidos da oposição, de ONG nacionais e internacionais e, na sua fase terminal, de missões oficiais da União Africana, da CPLP e da União Europeia. Poucas eleições africanas em ambiente democrático terão sido disputadas com tanta liberdade, pluralismo e transparência como estas eleições angolanas, o que é, desde logo, um triunfo para Angola.
Quanto aos resultados eleitorais, só quem não acompanhe minimamente a situação política em Angola é que pode surpreender-se com a inequívoca vitória do MPLA nestas eleições, se bem que a sua expressão esmagadora, muito maior do que em 1992, tenha ficado além do previsto. É uma vitória tanto mais expressiva quanto se estendeu a todas a províncias, incluindo Cabinda, o que tem especial relevo para a coesão e unidade política nacional angolana. Por sua vez, a UNITA sofreu um desaire eleitoral muito maior do que há 16 anos, tendo mesmo deixado de ser o segundo partido em várias províncias.
Não é difícil perceber por que é que o resultado não poderia ter sido muito diferente, ainda que o MPLA não beneficiasse das vantagens de deter o poder, tanto nas instituições como nos media públicos. A sua vitória deve-se essencialmente tanto às suas próprias forças como às fraquezas da oposição. A favor do MPLA pesou principalmente o facto de ele continuar a ser nacionalmente identificado como o partido da independência nacional e da construção da nação e do Estado, bem como a prosperidade nacional que a riqueza petrolífera e mineral proporcionou desde o fim da guerra civil, permitindo a reconstrução e a modernização do país, bem como um elevado crescimento económico que começa a beneficiar, ainda que de forma incipiente, camadas cada vez mais largas da população. Do lado dos derrotados, especialmente a UNITA, pesou negativamente a sua responsabilidade primordial na segunda guerra civil e na consequente destruição do país, bem como a sua incapacidade para se desligar inteiramente da sua base étnico-regional e de se tornar um partido de expressão nacional, o que, aliado à sua crónica falta de quadros qualificados, lhe retirou credibilidade e atractividade como alternativa de governo.
Estas eleições legislativas não completam o ciclo político que relança a transição democrática em Angola. De facto, tendo o sistema de governo angolano uma forte componente presidencial, as eleições presidenciais, previstas para 2009, não são menos importantes do que as eleições parlamentares, diferentemente do que sucede entre nós e noutros sistemas ditos semipresidencialistas, onde as eleições presidenciais não são muito relevantes para a definição das políticas governamentais.
De resto, com a enorme maioria parlamentar que agora obteve, o MPLA ficou com mãos livres para proceder a uma revisão constitucional imediata, a fim de reconfigurar o sistema de governo, de modo a torná-lo mais assumidamente presidencialista, como preconizam muitos agentes e observadores políticos em Angola. Se tal for o caso, então as eleições presidenciais tornam-se ainda mais importantes do que já são, sendo decisivas para efeitos do governo do país.
Se é lícito tirar ilações das eleições parlamentares, então parece fácil antecipar que o candidato do MPLA ganhará as eleições presidenciais sem grande dificuldade, sobretudo se ele for José Eduardo dos Santos. Aliás, a vitória do MPLA nas eleições parlamentares deveu uma parte da sua grande expressão ao próprio Presidente. Contrariando a ideia dominante na imprensa portuguesa - onde prevalece ainda o ressentimento de algumas "viúvas de Savimbi" -, José Eduardo dos Santos goza de incomparável prestígio e apoio popular, que nenhum outro dirigente político na oposição pode desafiar. Em condições normais, se não havia dúvidas quanto ao desfecho das eleições legislativas, também as pode haver em relação às presidenciais.
Com a concentração do poder político no MPLA, agora reforçado pela sua esmagadora relegitimação eleitoral, mais necessário se torna contrabalançá-lo com instituições e práticas de escrutínio e de moderação política, desde o reforço dos direitos da oposição até à descentralização territorial nos municípios e provinciais, desde a independência do poder judicial até ao pluralismo dos media, incluindo os órgãos de comunicação públicos. Eleições livres e justas são princípio e condição essencial de uma efectiva consolidação democrática, mas não bastam como mecanismos de efectivo e regular controlo do poder. Prouvera que essa preocupação não ficasse de fora da revisão constitucional e das novas leis da reforma política, bem como da prática do próprio poder político.
Com instituições democraticamente legitimadas de forma insofismável e com recursos económicos invejáveis, Angola tem todas as condições para uma bem sucedida consolidação democrática, na base da estabilidade política, da prosperidade económica e de um mínimo de bem-estar para todos os angolanos. Importa não ficar aquém desse objectivo.
(Público, terça-feira, 9 de Setembro de 2008)
Com a realização das primeiras eleições parlamentares depois do fim da guerra civil em 2002, Angola pode finalmente retomar e concluir o processo de transição democrática iniciado no princípio dos anos 90 do século passado com as mudanças constitucionais, o acordo de paz e as eleições pluripartidárias de 1992, processo brutalmente interrompido pelo reacendimento da luta armada pela UNITA, depois da sua derrota eleitoral.
Se bem que as deficiências logísticas do processo eleitoral em Luanda tenham manchado a exemplaridade que o Governo pretendia conferir a estas eleições, elas em nada afectaram a liberdade e a lisura do acto eleitoral nem a genuinidade dos resultados, até porque logo rectificadas pelo prolongamento da jornada eleitoral para o dia seguinte. Todo o processo eleitoral, desde o recenseamento eleitoral há alguns meses, passando pela campanha eleitoral, até à votação e apuramento dos resultados, foi objecto de permanente escrutínio público dos partidos da oposição, de ONG nacionais e internacionais e, na sua fase terminal, de missões oficiais da União Africana, da CPLP e da União Europeia. Poucas eleições africanas em ambiente democrático terão sido disputadas com tanta liberdade, pluralismo e transparência como estas eleições angolanas, o que é, desde logo, um triunfo para Angola.
Quanto aos resultados eleitorais, só quem não acompanhe minimamente a situação política em Angola é que pode surpreender-se com a inequívoca vitória do MPLA nestas eleições, se bem que a sua expressão esmagadora, muito maior do que em 1992, tenha ficado além do previsto. É uma vitória tanto mais expressiva quanto se estendeu a todas a províncias, incluindo Cabinda, o que tem especial relevo para a coesão e unidade política nacional angolana. Por sua vez, a UNITA sofreu um desaire eleitoral muito maior do que há 16 anos, tendo mesmo deixado de ser o segundo partido em várias províncias.
Não é difícil perceber por que é que o resultado não poderia ter sido muito diferente, ainda que o MPLA não beneficiasse das vantagens de deter o poder, tanto nas instituições como nos media públicos. A sua vitória deve-se essencialmente tanto às suas próprias forças como às fraquezas da oposição. A favor do MPLA pesou principalmente o facto de ele continuar a ser nacionalmente identificado como o partido da independência nacional e da construção da nação e do Estado, bem como a prosperidade nacional que a riqueza petrolífera e mineral proporcionou desde o fim da guerra civil, permitindo a reconstrução e a modernização do país, bem como um elevado crescimento económico que começa a beneficiar, ainda que de forma incipiente, camadas cada vez mais largas da população. Do lado dos derrotados, especialmente a UNITA, pesou negativamente a sua responsabilidade primordial na segunda guerra civil e na consequente destruição do país, bem como a sua incapacidade para se desligar inteiramente da sua base étnico-regional e de se tornar um partido de expressão nacional, o que, aliado à sua crónica falta de quadros qualificados, lhe retirou credibilidade e atractividade como alternativa de governo.
Estas eleições legislativas não completam o ciclo político que relança a transição democrática em Angola. De facto, tendo o sistema de governo angolano uma forte componente presidencial, as eleições presidenciais, previstas para 2009, não são menos importantes do que as eleições parlamentares, diferentemente do que sucede entre nós e noutros sistemas ditos semipresidencialistas, onde as eleições presidenciais não são muito relevantes para a definição das políticas governamentais.
De resto, com a enorme maioria parlamentar que agora obteve, o MPLA ficou com mãos livres para proceder a uma revisão constitucional imediata, a fim de reconfigurar o sistema de governo, de modo a torná-lo mais assumidamente presidencialista, como preconizam muitos agentes e observadores políticos em Angola. Se tal for o caso, então as eleições presidenciais tornam-se ainda mais importantes do que já são, sendo decisivas para efeitos do governo do país.
Se é lícito tirar ilações das eleições parlamentares, então parece fácil antecipar que o candidato do MPLA ganhará as eleições presidenciais sem grande dificuldade, sobretudo se ele for José Eduardo dos Santos. Aliás, a vitória do MPLA nas eleições parlamentares deveu uma parte da sua grande expressão ao próprio Presidente. Contrariando a ideia dominante na imprensa portuguesa - onde prevalece ainda o ressentimento de algumas "viúvas de Savimbi" -, José Eduardo dos Santos goza de incomparável prestígio e apoio popular, que nenhum outro dirigente político na oposição pode desafiar. Em condições normais, se não havia dúvidas quanto ao desfecho das eleições legislativas, também as pode haver em relação às presidenciais.
Com a concentração do poder político no MPLA, agora reforçado pela sua esmagadora relegitimação eleitoral, mais necessário se torna contrabalançá-lo com instituições e práticas de escrutínio e de moderação política, desde o reforço dos direitos da oposição até à descentralização territorial nos municípios e provinciais, desde a independência do poder judicial até ao pluralismo dos media, incluindo os órgãos de comunicação públicos. Eleições livres e justas são princípio e condição essencial de uma efectiva consolidação democrática, mas não bastam como mecanismos de efectivo e regular controlo do poder. Prouvera que essa preocupação não ficasse de fora da revisão constitucional e das novas leis da reforma política, bem como da prática do próprio poder político.
Com instituições democraticamente legitimadas de forma insofismável e com recursos económicos invejáveis, Angola tem todas as condições para uma bem sucedida consolidação democrática, na base da estabilidade política, da prosperidade económica e de um mínimo de bem-estar para todos os angolanos. Importa não ficar aquém desse objectivo.
(Público, terça-feira, 9 de Setembro de 2008)
Novas territorialidades
Por Vital Moreira
Enquanto os assaltos e a "rentrée" pós-estival monopolizam a atenção dos media e dos comentadores, vão passando indevidamente despercebidas importantes reformas políticas, como as novas leis sobre as entidades intermunicipais e sobre as áreas metropolitanas, recentemente publicadas.
Embora o associativismo municipal não seja um fenómeno novo, vindo desde antes de 1974, a nova lei das "comunidades intermunicipais" (CIM) constitui, porém, uma considerável inovação na filosofia intermunicipal, ao estabelecer legalmente um critério territorial para a sua criação, abandonando a geografia variável das entidades intermunicipais que prevaleceu até aqui. Doravante, as entidades intermunicipais correspondem necessariamente à divisão territorial das NUTS III do Continente (excluídas as que integram as duas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto), o que confere homogeneidade e consistência territorial à nova geografia intermunicipal. Por vontade dos municípios interessados, as CIM podem abranger mais do que uma dessas unidades territoriais, desde que contíguas e pertencentes à mesma unidade territorial NUTS II (as cinco "regiões-plano").
Embora a criação das CIM não seja obrigatória, os municípios têm todo o interesse na sua formação, não somente para poderem desempenhar em conjunto determinadas tarefas comuns, mas também para poderem participar na gestão dos investimentos do QREN e, por último, para beneficiarem da descentralização de tarefas estaduais que sejam directamente atribuídas às CIM, e não individualmente aos municípios. De facto, desde a revisão constitucional de 1997, é possível confiar tarefas públicas directamente às associações de municípios, e não singularmente aos municípios. Por isso, é de esperar uma cobertura universal das CIM.
No caso das "áreas metropolitanas" (AM), a nova lei regressou (e bem) à ideia de que só há duas regiões metropolitanas (a de Lisboa e a do Porto), abandonando uma das mais infelizes inovações da reforma de 2003, que foi a livre criação de áreas metropolitanas, dependendo somente do número de municípios e da população envolvida, o que levou à proliferação de várias "áreas metropolitanas" fictícias.
Resistindo à demagógica pressão transpartidária para a eleição directa dos órgãos das AM - o que faria delas verdadeiras autarquias supramunicipais -, o Governo conservou-as como uma manifestação específica do fenómeno intermunicipal, sendo os seus órgãos constituídos a partir dos órgãos próprios dos municípios. Frustrou-se assim a deriva autonomista das áreas metropolitanas, que aliás não fazia nenhum sentido, a não ser que se quisesse promover sub-repticiamente a criação de duas autarquias regionais centradas em Lisboa e no Porto, antecipando a regionalização parcial do país, à margem da Constituição e da actual divisão regional do Continente.
Com a presente reforma das entidades intermunicipais, nas suas duas variantes, deu-se um importante passo para a legibilidade e racionalidade da organização administrativa do território, a seguir ao alinhamento da administração territorialmente desconcentrada do Estado com a divisão das NUTS II e das NUTS III, que ocorreu ao longo desta legislatura. Doravante haverá homogeneidade e consistência na divisão territorial, tanto para efeitos da administração periférica do Estado como para efeitos da administração intermunicipal.
Antes de mais, as novas CIM e AM consolidam decididamente a institucionalização das unidades NUTS III, não somente como base da administração territorial do Estado (investimentos do QREN, serviços de saúde, organização judicial, etc.), mas também como substrato territorial da cooperação intermunicipal institucionalizada.
Além disso, essa opção territorial constitui mais um passo a caminho de uma futura regionalização autárquica com base na actual divisão territorial das cinco NUTS II, que pertencem à mesma matriz e filosofia territorial daquelas, visto que umas congregam as outras. Aliás, no caso do Algarve, que compreende uma só unidade NUTS III, coincidente com a NUTS II regional, a respectiva CIM terá poderes legais reforçados, de natureza regional, o que prefigura claramente uma proto-região administrativa, com poderes próprios e órgãos de governo próprios (embora não directamente eleitos, como ocorrerá nas futuras autarquias regionais). De resto, o mesmo pode suceder teoricamente noutras regiões, visto que a lei permite a fusão das várias CIM/NUTS III dentro da mesma NUTS II...
Com esta nova filosofia da administração territorial, torna-se cada mais exótica e bizarra a manutenção dos distritos administrativos. Compreende-se cada vez menos a manutenção de um nível intermédio de administração periférica do Estado entre o nível sub-regional das NUTS III (28 no Continente) e o nível regional das cinco NUTS II. E menos ainda se entende que a divisão distrital seja discrepante com a nova divisão das CIM (NUTS III) e das regiões administrativas (NUTS II), cavalgando as respectivas fronteiras.
Não podendo os distritos ser formalmente extintos, por efeito de um impedimento constitucional, nada obsta porém ao seu tendencial esvaziamento funcional nem muito menos à adaptação da sua divisão territorial, de modo a superar pelo menos a discrepância com os limites das cinco regiões administrativas (NUTS II), o que afecta uma meia dúzia dos actuais 18 distritos do Continente. Doravante, os distritos não são somente testemunho de uma arcaica divisão administrativa do território, mas também uma sobrevivência cada mais exótica e injustificável na nova racionalidade territorial do país.
A extinção administrativa e política dos distritos é a reforma que fica por fazer, e que perde pela demora...
(Público, terça-feira, 2 de Setembro de 2008)
Enquanto os assaltos e a "rentrée" pós-estival monopolizam a atenção dos media e dos comentadores, vão passando indevidamente despercebidas importantes reformas políticas, como as novas leis sobre as entidades intermunicipais e sobre as áreas metropolitanas, recentemente publicadas.
Embora o associativismo municipal não seja um fenómeno novo, vindo desde antes de 1974, a nova lei das "comunidades intermunicipais" (CIM) constitui, porém, uma considerável inovação na filosofia intermunicipal, ao estabelecer legalmente um critério territorial para a sua criação, abandonando a geografia variável das entidades intermunicipais que prevaleceu até aqui. Doravante, as entidades intermunicipais correspondem necessariamente à divisão territorial das NUTS III do Continente (excluídas as que integram as duas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto), o que confere homogeneidade e consistência territorial à nova geografia intermunicipal. Por vontade dos municípios interessados, as CIM podem abranger mais do que uma dessas unidades territoriais, desde que contíguas e pertencentes à mesma unidade territorial NUTS II (as cinco "regiões-plano").
Embora a criação das CIM não seja obrigatória, os municípios têm todo o interesse na sua formação, não somente para poderem desempenhar em conjunto determinadas tarefas comuns, mas também para poderem participar na gestão dos investimentos do QREN e, por último, para beneficiarem da descentralização de tarefas estaduais que sejam directamente atribuídas às CIM, e não individualmente aos municípios. De facto, desde a revisão constitucional de 1997, é possível confiar tarefas públicas directamente às associações de municípios, e não singularmente aos municípios. Por isso, é de esperar uma cobertura universal das CIM.
No caso das "áreas metropolitanas" (AM), a nova lei regressou (e bem) à ideia de que só há duas regiões metropolitanas (a de Lisboa e a do Porto), abandonando uma das mais infelizes inovações da reforma de 2003, que foi a livre criação de áreas metropolitanas, dependendo somente do número de municípios e da população envolvida, o que levou à proliferação de várias "áreas metropolitanas" fictícias.
Resistindo à demagógica pressão transpartidária para a eleição directa dos órgãos das AM - o que faria delas verdadeiras autarquias supramunicipais -, o Governo conservou-as como uma manifestação específica do fenómeno intermunicipal, sendo os seus órgãos constituídos a partir dos órgãos próprios dos municípios. Frustrou-se assim a deriva autonomista das áreas metropolitanas, que aliás não fazia nenhum sentido, a não ser que se quisesse promover sub-repticiamente a criação de duas autarquias regionais centradas em Lisboa e no Porto, antecipando a regionalização parcial do país, à margem da Constituição e da actual divisão regional do Continente.
Com a presente reforma das entidades intermunicipais, nas suas duas variantes, deu-se um importante passo para a legibilidade e racionalidade da organização administrativa do território, a seguir ao alinhamento da administração territorialmente desconcentrada do Estado com a divisão das NUTS II e das NUTS III, que ocorreu ao longo desta legislatura. Doravante haverá homogeneidade e consistência na divisão territorial, tanto para efeitos da administração periférica do Estado como para efeitos da administração intermunicipal.
Antes de mais, as novas CIM e AM consolidam decididamente a institucionalização das unidades NUTS III, não somente como base da administração territorial do Estado (investimentos do QREN, serviços de saúde, organização judicial, etc.), mas também como substrato territorial da cooperação intermunicipal institucionalizada.
Além disso, essa opção territorial constitui mais um passo a caminho de uma futura regionalização autárquica com base na actual divisão territorial das cinco NUTS II, que pertencem à mesma matriz e filosofia territorial daquelas, visto que umas congregam as outras. Aliás, no caso do Algarve, que compreende uma só unidade NUTS III, coincidente com a NUTS II regional, a respectiva CIM terá poderes legais reforçados, de natureza regional, o que prefigura claramente uma proto-região administrativa, com poderes próprios e órgãos de governo próprios (embora não directamente eleitos, como ocorrerá nas futuras autarquias regionais). De resto, o mesmo pode suceder teoricamente noutras regiões, visto que a lei permite a fusão das várias CIM/NUTS III dentro da mesma NUTS II...
Com esta nova filosofia da administração territorial, torna-se cada mais exótica e bizarra a manutenção dos distritos administrativos. Compreende-se cada vez menos a manutenção de um nível intermédio de administração periférica do Estado entre o nível sub-regional das NUTS III (28 no Continente) e o nível regional das cinco NUTS II. E menos ainda se entende que a divisão distrital seja discrepante com a nova divisão das CIM (NUTS III) e das regiões administrativas (NUTS II), cavalgando as respectivas fronteiras.
Não podendo os distritos ser formalmente extintos, por efeito de um impedimento constitucional, nada obsta porém ao seu tendencial esvaziamento funcional nem muito menos à adaptação da sua divisão territorial, de modo a superar pelo menos a discrepância com os limites das cinco regiões administrativas (NUTS II), o que afecta uma meia dúzia dos actuais 18 distritos do Continente. Doravante, os distritos não são somente testemunho de uma arcaica divisão administrativa do território, mas também uma sobrevivência cada mais exótica e injustificável na nova racionalidade territorial do país.
A extinção administrativa e política dos distritos é a reforma que fica por fazer, e que perde pela demora...
(Público, terça-feira, 2 de Setembro de 2008)
A questão dos transportes públicos urbanos
Por vital Moreira
A imprensa da semana passada dava conta, mais uma vez, do enorme endividamento das empresas públicas de transportes, designadamente dos transportes urbanos de Lisboa e do Porto. Pior do que isso, o défice não pára de crescer, agravando continuamente os encargos financeiros. Trata-se de uma situação insustentável.
Não pode obviamente pretender-se que os transportes urbanos sejam financeiramente auto-suficientes, por meio das respectivas tarifas. Mais do que outros "serviços de interesse geral", eles comportam consideráveis "externalidades" positivas, tanto sociais como ambientais, as quais - independentemente da sua forma de provisão, pública ou privada - devem ser suportadas pela colectividade em geral, e não só pelos utentes. Por isso, o subsídio público faz necessariamente parte da equação financeira dos transportes colectivos urbanos, devendo ser tanto maior quanto mais valor atribuído aos referidos benefícios colaterais.
O que, porém, não é defensável é a situação que se vive entre nós desde há décadas, em que, por um lado, se impõe um política de tarifas deliberadamente baixas, designadamente através dos "passes sociais" - que ficam muito aquém da cobertura dos custos de exploração, não falando dos custos de investimento -, enquanto, por outro lado, não se procede às transferências financeiras suficientes para cobrir os necessários défices, obrigando desse modo as empresas a endividarem-se cada vez mais, agravando as suas contas com crescentes encargos financeiros, numa espiral viciosa, em que o endividamento gera mais endividamento. É preciso cortar esse nó górdio, a começar pela transparência no cálculo dos "custos de serviço público" e pela sua adequada remuneração às empresas, para o que se impõe a sua contratualização.
É evidente, porém, que os transportes públicos urbanos nunca serão financeiramente sustentáveis sem uma política tarifária realista e sem o aumento da procura do transporte colectivo. Só que nem uma nem outra se obtêm sem corajosas decisões políticas, que não são propriamente populares. Sendo desnecessário elaborar especialmente sobre os custos políticos do aumento real das tarifas, também não é difícil perceber as dificuldades do favorecimento do transporte colectivo, o qual, para além da melhoria da qualidade do transporte público (o que tem sucedido), só pode passar pelo desfavorecimento do transporte individual.
Infelizmente, pouco ou nada se tem feito para contrariar a utilização automóvel nas áreas urbanas, incluindo as áreas metropolitanas, como Lisboa e o Porto, apesar do crescente congestionamento e da contínua degradação da qualidade de vida nas cidades, pejadas de automóveis por tudo quanto é sítio. E no entanto são bem conhecidos os factores que facilitam e os que dificultam a utilização automóvel nas cidades.
Entre os primeiros conta-se o estacionamento gratuito - incluindo o oferecido por estabelecimentos públicos e empresas ao seu pessoal - e a complacência com o estacionamento ilegal, incluindo sobre passeios pedestres. O mesmo sucede com a generosa distribuição de automóveis por entidades públicas ou privadas aos seus funcionários, muitas vezes acompanhados de provisões para combustível, o que constitui um forte incentivo à sua utilização individual. Em vez da oferta de viaturas automóveis e de estacionamento gratuito, que deveriam ser contrariados, as entidades públicas e privadas deveriam ser incentivadas a oferecer ao seu pessoal "passes" de transporte público, como já sucede em alguns casos.
Mais cedo ou mais tarde, porém, hão-de ter de se encarar medidas duras de restrição de tráfego automóvel nas cidades, incluindo a portagem de entrada, inaugurada há vários anos em Londres e entretanto replicada em várias outras cidades europeias, apesar de ela penalizar os residentes fora das cidades face aos residentes. Além da restrição à utilização automóvel, a portagem urbana gera uma apreciável receita que pode ser utilizada para financiar a melhoria dos transportes públicos, como é a norma nos exemplos citados. Dupla virtude, portanto.
No entanto, entre nós as condições culturais e políticas estão longe de maduras para a aceitação dessas medidas. Aliás, temos feito justamente o contrário, como afastar para longe da entrada das cidades o ponto de portagem das auto-estradas de penetração, ou de isentar de portagens auto-estradas em zonas metropolitanas, como sucedeu inicialmente na CREL e hoje sucede ainda em várias auto-estradas da área metropolitana do Porto. Pior era impossível em termos de favorecimento do transporte individual.
Por último, urge cessar a responsabilidade estadual, incluindo financeira, pelos transportes urbanos de Lisboa e do Porto. Os transportes urbanos são um serviço local, que deve ser de responsabilidade municipal ou intermunicipal, e não nacional, devendo a respectiva sustentação financeira caber essencialmente às respectivas colectividades territoriais, a nível municipal, intermunicipal ou metropolitano, conforme os casos. A exploração estadual dos transportes urbanos de Lisboa e do Porto viola ostensivamente o princípio da descentralização na atribuição de tarefas públicas, constitui uma forma iníqua de distribuição "vertical" da despesa pública (colocando os contribuintes a nível nacional a financiar serviços locais) e facilita a irresponsabilidade financeira dos transportes urbanos nas duas maiores cidades, quebrando a necessária ligação entre beneficiários e financiadores dos serviços públicos.
Se a exploração dos transportes públicos de Lisboa e do Porto fosse essencialmente uma responsabilidade municipal ou intermunicipal, como sucede noutros municípios, é fácil perceber que o défice não atingiria a dimensão que alcançou. Aquilo que todos pagam fica barato para os respectivos beneficiários. Urge também quebrar a conspiração de silêncio político a este respeito.
(Público, terça-feira, 26 de Agosto de 2008)
A imprensa da semana passada dava conta, mais uma vez, do enorme endividamento das empresas públicas de transportes, designadamente dos transportes urbanos de Lisboa e do Porto. Pior do que isso, o défice não pára de crescer, agravando continuamente os encargos financeiros. Trata-se de uma situação insustentável.
Não pode obviamente pretender-se que os transportes urbanos sejam financeiramente auto-suficientes, por meio das respectivas tarifas. Mais do que outros "serviços de interesse geral", eles comportam consideráveis "externalidades" positivas, tanto sociais como ambientais, as quais - independentemente da sua forma de provisão, pública ou privada - devem ser suportadas pela colectividade em geral, e não só pelos utentes. Por isso, o subsídio público faz necessariamente parte da equação financeira dos transportes colectivos urbanos, devendo ser tanto maior quanto mais valor atribuído aos referidos benefícios colaterais.
O que, porém, não é defensável é a situação que se vive entre nós desde há décadas, em que, por um lado, se impõe um política de tarifas deliberadamente baixas, designadamente através dos "passes sociais" - que ficam muito aquém da cobertura dos custos de exploração, não falando dos custos de investimento -, enquanto, por outro lado, não se procede às transferências financeiras suficientes para cobrir os necessários défices, obrigando desse modo as empresas a endividarem-se cada vez mais, agravando as suas contas com crescentes encargos financeiros, numa espiral viciosa, em que o endividamento gera mais endividamento. É preciso cortar esse nó górdio, a começar pela transparência no cálculo dos "custos de serviço público" e pela sua adequada remuneração às empresas, para o que se impõe a sua contratualização.
É evidente, porém, que os transportes públicos urbanos nunca serão financeiramente sustentáveis sem uma política tarifária realista e sem o aumento da procura do transporte colectivo. Só que nem uma nem outra se obtêm sem corajosas decisões políticas, que não são propriamente populares. Sendo desnecessário elaborar especialmente sobre os custos políticos do aumento real das tarifas, também não é difícil perceber as dificuldades do favorecimento do transporte colectivo, o qual, para além da melhoria da qualidade do transporte público (o que tem sucedido), só pode passar pelo desfavorecimento do transporte individual.
Infelizmente, pouco ou nada se tem feito para contrariar a utilização automóvel nas áreas urbanas, incluindo as áreas metropolitanas, como Lisboa e o Porto, apesar do crescente congestionamento e da contínua degradação da qualidade de vida nas cidades, pejadas de automóveis por tudo quanto é sítio. E no entanto são bem conhecidos os factores que facilitam e os que dificultam a utilização automóvel nas cidades.
Entre os primeiros conta-se o estacionamento gratuito - incluindo o oferecido por estabelecimentos públicos e empresas ao seu pessoal - e a complacência com o estacionamento ilegal, incluindo sobre passeios pedestres. O mesmo sucede com a generosa distribuição de automóveis por entidades públicas ou privadas aos seus funcionários, muitas vezes acompanhados de provisões para combustível, o que constitui um forte incentivo à sua utilização individual. Em vez da oferta de viaturas automóveis e de estacionamento gratuito, que deveriam ser contrariados, as entidades públicas e privadas deveriam ser incentivadas a oferecer ao seu pessoal "passes" de transporte público, como já sucede em alguns casos.
Mais cedo ou mais tarde, porém, hão-de ter de se encarar medidas duras de restrição de tráfego automóvel nas cidades, incluindo a portagem de entrada, inaugurada há vários anos em Londres e entretanto replicada em várias outras cidades europeias, apesar de ela penalizar os residentes fora das cidades face aos residentes. Além da restrição à utilização automóvel, a portagem urbana gera uma apreciável receita que pode ser utilizada para financiar a melhoria dos transportes públicos, como é a norma nos exemplos citados. Dupla virtude, portanto.
No entanto, entre nós as condições culturais e políticas estão longe de maduras para a aceitação dessas medidas. Aliás, temos feito justamente o contrário, como afastar para longe da entrada das cidades o ponto de portagem das auto-estradas de penetração, ou de isentar de portagens auto-estradas em zonas metropolitanas, como sucedeu inicialmente na CREL e hoje sucede ainda em várias auto-estradas da área metropolitana do Porto. Pior era impossível em termos de favorecimento do transporte individual.
Por último, urge cessar a responsabilidade estadual, incluindo financeira, pelos transportes urbanos de Lisboa e do Porto. Os transportes urbanos são um serviço local, que deve ser de responsabilidade municipal ou intermunicipal, e não nacional, devendo a respectiva sustentação financeira caber essencialmente às respectivas colectividades territoriais, a nível municipal, intermunicipal ou metropolitano, conforme os casos. A exploração estadual dos transportes urbanos de Lisboa e do Porto viola ostensivamente o princípio da descentralização na atribuição de tarefas públicas, constitui uma forma iníqua de distribuição "vertical" da despesa pública (colocando os contribuintes a nível nacional a financiar serviços locais) e facilita a irresponsabilidade financeira dos transportes urbanos nas duas maiores cidades, quebrando a necessária ligação entre beneficiários e financiadores dos serviços públicos.
Se a exploração dos transportes públicos de Lisboa e do Porto fosse essencialmente uma responsabilidade municipal ou intermunicipal, como sucede noutros municípios, é fácil perceber que o défice não atingiria a dimensão que alcançou. Aquilo que todos pagam fica barato para os respectivos beneficiários. Urge também quebrar a conspiração de silêncio político a este respeito.
(Público, terça-feira, 26 de Agosto de 2008)
Bens públicos, abusos privados
Por Vital Moreira
Nada como as viagens domésticas de Verão para nos darmos conta não somente da riqueza patrimonial e paisagística do nosso país, mas também das nossas desventuras cívicas e dos nossos atrasos civilizacionais.
Há dias, o PÚBLICO dava conta dos prejuízos ambientais resultantes da invasão de autocaravanas na costa protegida do Alentejo, ocupando abusivamente praias e falésias, degradando o meio e gerando problemas de sustentabilidade ambiental. Infelizmente, a proliferação do autocaravanismo selvagem nas zonas litorais protegidas é somente um exemplo da degradação e da depredação dos bens públicos de uso colectivo em Portugal.
O desmazelo e o abuso individual dos bens públicos constituem dois dos mais deprimentes sintomas do atraso social e de incultura cívica no nosso país. Desde o abandono de lixo por tudo quanto é sítio até à pura e simples ocupação de espaços colectivos por construções clandestinas, tudo vale entre nós. Sem margem para esperanças indevidas, nada parece melhorar com o passar dos anos, antes pelo contrário.
Em primeiro lugar, será difícil encontrar um sítio público neste país isento de detritos da presença humana. Nem o local mais prístino da serra do Gerês ou o recanto mais inacessível de uma praia do Sudoeste alentejano está livre de sacos de plástico, de latas de cerveja ou de garrafas de água. Há dias, numa praia algarvia, aliás dotada de recipientes de depósito de lixo, uma campanha de limpeza conseguiu reunir numa tarde um montão de objectos de plástico deixados nos areais ou trazidos pelo mar, desde embalagens de iogurte a pneus! Isto sem falar das lixeiras clandestinas que vamos encontrando à beira das estradas e caminhos e dos rios e ribeiras, mesmo nos locais turisticamente mais prezados.
Em segundo lugar vem a ocupação individual dos espaços públicos, prejudicando o uso colectivo para que são destinados. O caso mais notório entre nós continua a ser o estacionamento automóvel nos passeios e placas de praças urbanas, impedindo ou dificultando o seu uso pedestre. Mas o mesmo vai sucedendo com a invasão de praias e albufeiras por embarcações e motas de água, mesmo em zonas de banhistas, contra todas as proibições, bem como a referida propagação das autocaravanas em zonas protegidas.
O grau mais abusivo de aproveitamento individual do espaço público - descontado o vandalismo de equipamentos públicos (como cabinas telefónicas, bancos de jardim e carruagens de comboios) - consiste seguramente na ocupação de terrenos do domínio público para habitação privativa, como se verificou (e ainda se continua a verificar) em várias ilhas e ilhotas da ria Formosa - que tem o estatuto de parque natural! - e noutros locais públicos, perante a indiferença e inacção geral das autoridades competentes.
Mesmo se fenómenos semelhantes a estes não sejam exclusivos nossos no espaço europeu, podendo encontrar-se noutros países do Sul da Europa, é improvável que eles revistam a intensidade e extensão que atingem no nosso país. Não é uma situação de que nos possamos alhear, antes pelo contrário. Ela revela um enorme défice civilizacional e um intolerável descaso pelo património colectivo.
As razões são conhecidas. Antes de mais, é uma questão de falta de educação e de cultura cívica. Apesar de algumas iniciativas de educação e de sensibilização ambiental, faz falta determinante uma disciplina de educação cívica geral nas escolas, desde o ensino básico. Sem educação cívica vencem o atavismo e a inércia das práticas sociais herdadas. Segundo, trata-se de uma questão de irresponsabilidade social. Tendemos a hiperbolizar a propriedade individual e a desconsiderar o que é de todos, como se não fosse de ninguém. Sem um apurado sentido de responsabilidade individual pelos bens colectivos, nada de comum é possível preservar. Por último, sobressai a ineficácia dos meios de prevenção e de repressão das infracções. Sem uma determinada política de fiscalização e de punição, o resultado é a sensação geral de impunidade e a irresponsabilidade consequente.
O modo como os cidadãos cuidam, ou não, do património comum e dos bens públicos constitui um dos mais notórios padrões de cidadania e de modernização de um país.
Por um lado, não existe cidadania integral sem educação cívica nem responsabilidade social. A cidadania não consiste somente em reivindicar e em exercer direitos, cada vez mais exigentes. Compõe-se também da assunção e do cumprimento de deveres e de obrigações para com os outros e para com a colectividade. É altura de equilibrar a cultura dominante de hipertrofia de direitos com uma cultura de deveres e de obrigações cívicas.
Por outro lado, a modernização do país constitui uma tarefa prioritária de qualquer governo responsável. Ora, a modernização não se reduz à dotação de infra-estruturas materiais e tecnológicas, ou à reforma do Estado, da administração pública e dos serviços públicos em geral, ou ainda à segurança alimentar e económica, ainda que tudo isso seja incontornável.
Não pode haver cidadania nem modernidade sem luta contra as práticas e comportamentos sociais lesivos do património público, de depredação irresponsável dos equipamentos colectivos, de espoliação individual de bens comuns. Não pode considerar-se civilizado nem moderno um país onde cada um abusa do património colectivo em proveito próprio, degradando o ambiente, devastando o espaço público, apropriando-se do que é de todos em proveito próprio.
A defesa dos bens públicos exige o combate aos abusos privados.
(Público, 3ª feira, 19 de Agosto de 2008)
Nada como as viagens domésticas de Verão para nos darmos conta não somente da riqueza patrimonial e paisagística do nosso país, mas também das nossas desventuras cívicas e dos nossos atrasos civilizacionais.
Há dias, o PÚBLICO dava conta dos prejuízos ambientais resultantes da invasão de autocaravanas na costa protegida do Alentejo, ocupando abusivamente praias e falésias, degradando o meio e gerando problemas de sustentabilidade ambiental. Infelizmente, a proliferação do autocaravanismo selvagem nas zonas litorais protegidas é somente um exemplo da degradação e da depredação dos bens públicos de uso colectivo em Portugal.
O desmazelo e o abuso individual dos bens públicos constituem dois dos mais deprimentes sintomas do atraso social e de incultura cívica no nosso país. Desde o abandono de lixo por tudo quanto é sítio até à pura e simples ocupação de espaços colectivos por construções clandestinas, tudo vale entre nós. Sem margem para esperanças indevidas, nada parece melhorar com o passar dos anos, antes pelo contrário.
Em primeiro lugar, será difícil encontrar um sítio público neste país isento de detritos da presença humana. Nem o local mais prístino da serra do Gerês ou o recanto mais inacessível de uma praia do Sudoeste alentejano está livre de sacos de plástico, de latas de cerveja ou de garrafas de água. Há dias, numa praia algarvia, aliás dotada de recipientes de depósito de lixo, uma campanha de limpeza conseguiu reunir numa tarde um montão de objectos de plástico deixados nos areais ou trazidos pelo mar, desde embalagens de iogurte a pneus! Isto sem falar das lixeiras clandestinas que vamos encontrando à beira das estradas e caminhos e dos rios e ribeiras, mesmo nos locais turisticamente mais prezados.
Em segundo lugar vem a ocupação individual dos espaços públicos, prejudicando o uso colectivo para que são destinados. O caso mais notório entre nós continua a ser o estacionamento automóvel nos passeios e placas de praças urbanas, impedindo ou dificultando o seu uso pedestre. Mas o mesmo vai sucedendo com a invasão de praias e albufeiras por embarcações e motas de água, mesmo em zonas de banhistas, contra todas as proibições, bem como a referida propagação das autocaravanas em zonas protegidas.
O grau mais abusivo de aproveitamento individual do espaço público - descontado o vandalismo de equipamentos públicos (como cabinas telefónicas, bancos de jardim e carruagens de comboios) - consiste seguramente na ocupação de terrenos do domínio público para habitação privativa, como se verificou (e ainda se continua a verificar) em várias ilhas e ilhotas da ria Formosa - que tem o estatuto de parque natural! - e noutros locais públicos, perante a indiferença e inacção geral das autoridades competentes.
Mesmo se fenómenos semelhantes a estes não sejam exclusivos nossos no espaço europeu, podendo encontrar-se noutros países do Sul da Europa, é improvável que eles revistam a intensidade e extensão que atingem no nosso país. Não é uma situação de que nos possamos alhear, antes pelo contrário. Ela revela um enorme défice civilizacional e um intolerável descaso pelo património colectivo.
As razões são conhecidas. Antes de mais, é uma questão de falta de educação e de cultura cívica. Apesar de algumas iniciativas de educação e de sensibilização ambiental, faz falta determinante uma disciplina de educação cívica geral nas escolas, desde o ensino básico. Sem educação cívica vencem o atavismo e a inércia das práticas sociais herdadas. Segundo, trata-se de uma questão de irresponsabilidade social. Tendemos a hiperbolizar a propriedade individual e a desconsiderar o que é de todos, como se não fosse de ninguém. Sem um apurado sentido de responsabilidade individual pelos bens colectivos, nada de comum é possível preservar. Por último, sobressai a ineficácia dos meios de prevenção e de repressão das infracções. Sem uma determinada política de fiscalização e de punição, o resultado é a sensação geral de impunidade e a irresponsabilidade consequente.
O modo como os cidadãos cuidam, ou não, do património comum e dos bens públicos constitui um dos mais notórios padrões de cidadania e de modernização de um país.
Por um lado, não existe cidadania integral sem educação cívica nem responsabilidade social. A cidadania não consiste somente em reivindicar e em exercer direitos, cada vez mais exigentes. Compõe-se também da assunção e do cumprimento de deveres e de obrigações para com os outros e para com a colectividade. É altura de equilibrar a cultura dominante de hipertrofia de direitos com uma cultura de deveres e de obrigações cívicas.
Por outro lado, a modernização do país constitui uma tarefa prioritária de qualquer governo responsável. Ora, a modernização não se reduz à dotação de infra-estruturas materiais e tecnológicas, ou à reforma do Estado, da administração pública e dos serviços públicos em geral, ou ainda à segurança alimentar e económica, ainda que tudo isso seja incontornável.
Não pode haver cidadania nem modernidade sem luta contra as práticas e comportamentos sociais lesivos do património público, de depredação irresponsável dos equipamentos colectivos, de espoliação individual de bens comuns. Não pode considerar-se civilizado nem moderno um país onde cada um abusa do património colectivo em proveito próprio, degradando o ambiente, devastando o espaço público, apropriando-se do que é de todos em proveito próprio.
A defesa dos bens públicos exige o combate aos abusos privados.
(Público, 3ª feira, 19 de Agosto de 2008)
12 de setembro de 2008
Sobre a intervenção presidencial
Por Vital Moreira
Transcrevo aqui o texto completo da minha resposta a perguntas do Diário Económico, parcialmente publicada na edição de hoje:
1. A "cooperação estratégia" [entre o PR e o Governo] terminou definitivamente?
R. - Nos termos em que o conceito foi definido pelo PR logo como candidato (com que aliás não concordo), penso que nada mostra que tal cooperação tenha terminado ou esteja em vias de o ser. O PR continua manifestamente apostado em emprestar a sua autoridade aos desígnios governamentais de desenvolvimento e modernização do País no plano interno, bem como às grandes opções da política externa (UE, Palops, etc.). Julgo que continua a existir uma forte base de entendimento estratégico com o Governo.
2. Nota alguma estratégia concreta nas intervenções presidenciais? Há uma regra nos avisos sectoriais?
R. - No que respeita às suas declarações públicas, o PR parece apostado num equilíbrio entre apoios e incentivos e alertas e avisos ao Governo. Não vejo aí nenhuma regra, expressa ou oculta, salvo a de marcar pontualmente as suas convergências e distanciamentos em relação às políticas governamentais, de acordo com a sua própria apreciação.
Não tenho nenhuma ideia conspirativa sobre as manifestações políticas externas do PR.
3. Considera que em algum caso, e tendo em conta os poderes que lhe são atribuídos constitucionalmente, o Presidente se excedeu nas apreciações? Em quais?
R. - É manifesto que Cavaco Silva tem um entendimento "activista" da função presidencial, explorando uma interpretação possível da Constituição (embora eu seja adepto de uma maior contenção presidencial). Considero, porém, que uma intervenção pública demasiado frequente e dispersa, como tem sucedido por vezes, corre o risco da banalização da função presidencial.
Há também alguns casos em que Cavaco Silva se tem pronunciado em termos concretos sobre assuntos específicos da esfera governamental, o que me parece de evitar.
No que respeita ao exercício do seu poder de veto político, só no caso da lei do divórcio é que se manifesta um entendimento menos pacífico desse poder, já que em todos os demais estavam em causa diplomas que tinham a ver com o Estado, directa ou indirectamente, pelo que caem na esfera de actuação do seu papel de supervisão do sistema político.
4. Qual o real peso da palavra do Presidente? Pode ou deve o Governo seguir todas as orientações que lhe chegam de Belém?
R. - O papel do Presidente em relação ao Governo é essencialmente o de conselho e de alerta. O seu peso depende essencialmente da força política dos seus argumentos e opiniões. Mas o clima das relações com o Primeiro-Ministro também pode ter aqui um papel.
Não existe obviamente nenhuma obrigação do Governo ou da maioria parlamentar de seguirem as opiniões ou objecções presidenciais. Nem o PR pode esperar isso. O Governo é que responde politicamente pela sua própria acção, perante o parlamento e perante os eleitores.
O mesmo se aplica aos vetos políticos das leis parlamentares. Aliás, a meu ver os vetos presidenciais foram quase sempre pertinentes e bem fundamentados (salvo no caso do veto da lei do divórcio). Diversas vezes, o veto político encontrou eco na maioria, embora por vezes aquém do desejável.
Há uma outra forma de influência presidencial de que conhecemos pouco ou nada, que é a que decorre dos conselhos ou pressões exercidos em privado, incluindo nas audiências semanais com o Primeiro-ministro. Mas quero crer que não é despicienda.
5. Esta segunda metade do mandato presidencial pode ficar marcada por uma maior politização do cargo por Cavaco Silva?
R. - Não creio que o PR vá alterar significativamente a sua orientação e prática com o aproximar do termo da legislatura. Não há nenhuma vantagem em aumentar a sua visibilidade, muito menos em se deixar associar de algum modo à estratégia político-eleitoral do seu partido de origem, mesmo que o PSD o tente, como pode suceder.
Os períodos eleitorais não se prestam a grande intervencionismo presidencial, dado o seu melindre político. O que avulta a partir daqui é seu papel de árbitro discreto e imparcial da dialéctica entre o Governo e a oposição, que há-de culminar nas eleições. O Presidente tem de se resguardar de qualquer acusação fundada de favorecimento da oposição contra o Governo, ou vice-versa.
Ao contrário do que sucede nos regimes propriamente semipresidenciais (como a França), entre nós o PR não é parte no jogo político entre o Governo e a oposição.
Transcrevo aqui o texto completo da minha resposta a perguntas do Diário Económico, parcialmente publicada na edição de hoje:
1. A "cooperação estratégia" [entre o PR e o Governo] terminou definitivamente?
R. - Nos termos em que o conceito foi definido pelo PR logo como candidato (com que aliás não concordo), penso que nada mostra que tal cooperação tenha terminado ou esteja em vias de o ser. O PR continua manifestamente apostado em emprestar a sua autoridade aos desígnios governamentais de desenvolvimento e modernização do País no plano interno, bem como às grandes opções da política externa (UE, Palops, etc.). Julgo que continua a existir uma forte base de entendimento estratégico com o Governo.
2. Nota alguma estratégia concreta nas intervenções presidenciais? Há uma regra nos avisos sectoriais?
R. - No que respeita às suas declarações públicas, o PR parece apostado num equilíbrio entre apoios e incentivos e alertas e avisos ao Governo. Não vejo aí nenhuma regra, expressa ou oculta, salvo a de marcar pontualmente as suas convergências e distanciamentos em relação às políticas governamentais, de acordo com a sua própria apreciação.
Não tenho nenhuma ideia conspirativa sobre as manifestações políticas externas do PR.
3. Considera que em algum caso, e tendo em conta os poderes que lhe são atribuídos constitucionalmente, o Presidente se excedeu nas apreciações? Em quais?
R. - É manifesto que Cavaco Silva tem um entendimento "activista" da função presidencial, explorando uma interpretação possível da Constituição (embora eu seja adepto de uma maior contenção presidencial). Considero, porém, que uma intervenção pública demasiado frequente e dispersa, como tem sucedido por vezes, corre o risco da banalização da função presidencial.
Há também alguns casos em que Cavaco Silva se tem pronunciado em termos concretos sobre assuntos específicos da esfera governamental, o que me parece de evitar.
No que respeita ao exercício do seu poder de veto político, só no caso da lei do divórcio é que se manifesta um entendimento menos pacífico desse poder, já que em todos os demais estavam em causa diplomas que tinham a ver com o Estado, directa ou indirectamente, pelo que caem na esfera de actuação do seu papel de supervisão do sistema político.
4. Qual o real peso da palavra do Presidente? Pode ou deve o Governo seguir todas as orientações que lhe chegam de Belém?
R. - O papel do Presidente em relação ao Governo é essencialmente o de conselho e de alerta. O seu peso depende essencialmente da força política dos seus argumentos e opiniões. Mas o clima das relações com o Primeiro-Ministro também pode ter aqui um papel.
Não existe obviamente nenhuma obrigação do Governo ou da maioria parlamentar de seguirem as opiniões ou objecções presidenciais. Nem o PR pode esperar isso. O Governo é que responde politicamente pela sua própria acção, perante o parlamento e perante os eleitores.
O mesmo se aplica aos vetos políticos das leis parlamentares. Aliás, a meu ver os vetos presidenciais foram quase sempre pertinentes e bem fundamentados (salvo no caso do veto da lei do divórcio). Diversas vezes, o veto político encontrou eco na maioria, embora por vezes aquém do desejável.
Há uma outra forma de influência presidencial de que conhecemos pouco ou nada, que é a que decorre dos conselhos ou pressões exercidos em privado, incluindo nas audiências semanais com o Primeiro-ministro. Mas quero crer que não é despicienda.
5. Esta segunda metade do mandato presidencial pode ficar marcada por uma maior politização do cargo por Cavaco Silva?
R. - Não creio que o PR vá alterar significativamente a sua orientação e prática com o aproximar do termo da legislatura. Não há nenhuma vantagem em aumentar a sua visibilidade, muito menos em se deixar associar de algum modo à estratégia político-eleitoral do seu partido de origem, mesmo que o PSD o tente, como pode suceder.
Os períodos eleitorais não se prestam a grande intervencionismo presidencial, dado o seu melindre político. O que avulta a partir daqui é seu papel de árbitro discreto e imparcial da dialéctica entre o Governo e a oposição, que há-de culminar nas eleições. O Presidente tem de se resguardar de qualquer acusação fundada de favorecimento da oposição contra o Governo, ou vice-versa.
Ao contrário do que sucede nos regimes propriamente semipresidenciais (como a França), entre nós o PR não é parte no jogo político entre o Governo e a oposição.
1 de setembro de 2008
Completa rendição a Obama
por Ana Gomes
Desci a rampa do estádio, em Denver, rodeada de gente que ria, sorria ou chorava, largando interjeições emocionadas: "Oh my God! We've got to elect him." "He is great, great, great!" "He must be President!" Eu estava sem fala e dava-me também para sorrir, cabeça e coração fervilhantes de admiração, contentamento e esperança. Não era só da excitação de sentir que estava a assistir à história e ao sonho de Martin Luther King a realizar-se.
A coreografia da sessão final da convenção do Partido Democrático para o discurso de aceitação do candidato fora impecável e espectacular, diante de uma moldura compacta de 75.000 pessoas (nunca vista na América), revelando a meticulosa organização da campanha.
Mas o que pusera o estádio em delírio fora o discurso galvanizador de Barack Obama. Um discurso em tom lincolniano, ora intimista, ora aguerrido, em que Obama afirmou magistralmente de onde vinha, ao que vinha e por que vinha. E o que o diferenciava do opositor McCain: experiência de vida, valores, julgamento e programa. Sem receio de tocar nos temas mais sensíveis: do controlo das armas ao patriotismo, do aborto aos direitos dos homossexuais. Anunciando medidas e assumindo compromissos: sobre a recuperação da economia através duma revolução energética; sobre o apoio social do Estado aos cidadãos; sobre a diplomacia reforçada e a construção de parcerias internacionais para combater as ameaças à segurança americana e global, do terrorismo à pobreza, das pandemias às alterações climáticas; sobre o mundo livre de armas nucleares por que trabalhará; sobre a recuperação da credibilidade internacional dos EUA e o retorno ao respeito pela Constituição americana.
"Esta eleição nunca foi sobre mim: é sobre vocês!" (...). "A mudança não vem de Washington, vai para Washington, porque o povo americano a exige" (...). "O que nos faz ricos não é a riqueza, o que nos faz fortes não é o poderio militar, tecnológico, ou as melhores universidades do mundo; mas sim o espírito americano que nos une, apesar das diferenças, e que nos impele a avançar para o futuro juntos, sem desistir da esperança."
A audiência estava presa pela garra, sensibilidade, patriotismo, humanidade, determinação e extraordinária capacidade de comunicar de Obama. As adversidades por que passou e o percurso político até chegar a esta campanha mostram que não é de plástico; nem de aviário, atamancado por uma qualquer aparelhagem partidária. A qualidade do que propõe revela substância, convicções, reflexão, visão estratégica, disciplina e muito, muito trabalho por detrás, dele e da sua equipa. Obama é um líder progressista de tipo novo: inspira confiança, inspira orgulho, inspira as pessoas puxando pelo que nelas há de melhor. Os americanos têm de o eleger: todos ficaremos a ganhar. Porque a grande mudança que Obama quer trazer à América porá ao alcance de toda a humanidade um mundo melhor, mais seguro e mais justo.
Público, 30 de Agosto de 2008
Desci a rampa do estádio, em Denver, rodeada de gente que ria, sorria ou chorava, largando interjeições emocionadas: "Oh my God! We've got to elect him." "He is great, great, great!" "He must be President!" Eu estava sem fala e dava-me também para sorrir, cabeça e coração fervilhantes de admiração, contentamento e esperança. Não era só da excitação de sentir que estava a assistir à história e ao sonho de Martin Luther King a realizar-se.
A coreografia da sessão final da convenção do Partido Democrático para o discurso de aceitação do candidato fora impecável e espectacular, diante de uma moldura compacta de 75.000 pessoas (nunca vista na América), revelando a meticulosa organização da campanha.
Mas o que pusera o estádio em delírio fora o discurso galvanizador de Barack Obama. Um discurso em tom lincolniano, ora intimista, ora aguerrido, em que Obama afirmou magistralmente de onde vinha, ao que vinha e por que vinha. E o que o diferenciava do opositor McCain: experiência de vida, valores, julgamento e programa. Sem receio de tocar nos temas mais sensíveis: do controlo das armas ao patriotismo, do aborto aos direitos dos homossexuais. Anunciando medidas e assumindo compromissos: sobre a recuperação da economia através duma revolução energética; sobre o apoio social do Estado aos cidadãos; sobre a diplomacia reforçada e a construção de parcerias internacionais para combater as ameaças à segurança americana e global, do terrorismo à pobreza, das pandemias às alterações climáticas; sobre o mundo livre de armas nucleares por que trabalhará; sobre a recuperação da credibilidade internacional dos EUA e o retorno ao respeito pela Constituição americana.
"Esta eleição nunca foi sobre mim: é sobre vocês!" (...). "A mudança não vem de Washington, vai para Washington, porque o povo americano a exige" (...). "O que nos faz ricos não é a riqueza, o que nos faz fortes não é o poderio militar, tecnológico, ou as melhores universidades do mundo; mas sim o espírito americano que nos une, apesar das diferenças, e que nos impele a avançar para o futuro juntos, sem desistir da esperança."
A audiência estava presa pela garra, sensibilidade, patriotismo, humanidade, determinação e extraordinária capacidade de comunicar de Obama. As adversidades por que passou e o percurso político até chegar a esta campanha mostram que não é de plástico; nem de aviário, atamancado por uma qualquer aparelhagem partidária. A qualidade do que propõe revela substância, convicções, reflexão, visão estratégica, disciplina e muito, muito trabalho por detrás, dele e da sua equipa. Obama é um líder progressista de tipo novo: inspira confiança, inspira orgulho, inspira as pessoas puxando pelo que nelas há de melhor. Os americanos têm de o eleger: todos ficaremos a ganhar. Porque a grande mudança que Obama quer trazer à América porá ao alcance de toda a humanidade um mundo melhor, mais seguro e mais justo.
Público, 30 de Agosto de 2008
Democratas decididos a restaurar a imagem e a liderança dos EUA no mundo
por Ana Gomes
Na véspera do 45.º aniversário do Reverendo Martin Luther King ter emocionado a América com um discurso começado pelas palavras I have a dream, descrevendo o sonho de uma sociedade sem segregação racial, o negro de nome árabe Barack Hussein Obama foi nomeado candidato à presidência dos EUA, por aclamação dos delegados à Convenção do Partido Democrata.
O sonho está a cumprir-se.
E a consciência da grandeza do salto histórico, de que eram actores nesse momento de apoteose, fez correr lágrimas pelas faces de muitos delegados.O partido mostrou já entender que precisa de se unir para partir com redobrada energia para a última jornada do combate que visa "recuperar o país" e "operar a mudança" proposta por Obama e tornada indispensável por oito anos de desastroso desgoverno.
Hillary, num discurso electrizante, e Bill Clinton e John Kerry protagonizaram o apelo à união em torno de Obama e Joe Biden e refutaram convincentemente as acusações de impreparação e inexperiência que a propaganda republicana tem procurado colar a Obama.
"Recuperar o país" implica para os democratas também restaurar a imagem e a liderança dos EUA no mundo: porque sem recuperar a credibilidade moral e política através da exorcização de Guantánamo e da tortura (prioridade de uma Administração Obama, segundo Richard Holbrooke), sem voltar a "liderar pelo exemplo" nos direitos humanos, no respeito pela lei e sem se empenharem no diálogo e articulação diplomática com aliados e parceiros, os EUA não poderão liderar, nem promover a democracia (que não se "impõe", frizou Madeleine Albright), nem sequer garantir a sua própria segurança, quanto mais a global. Isso mesmo martelaram Albright, Holbrooke, Tom Daschle, Tim Wirth, Joe Biden e outros especialistas em assuntos internacionais.Contra as ilusórias "alianças de democracias" propostas por McCain, os democratas preferem reinvestir na ONU e outras instituições multilaterais que "funcionaram sempre que os EUA se empenharam". Pela segurança global também identificam hoje tanto a necessidade de combater a pobreza no mundo (tema de um debate promovido à margem da Convenção pelo NDI, Instituto de Assuntos Internacionais - "impensável há dez anos", sublinhou Albright), como a de mobilizar esforços para travar as mudanças climáticas. Este último tema é também determinante para outro projecto que galvaniza os democratas: a necessidade de os EUA reduzirem rapidamente a dependência do petróleo importado ("temos de cessar o absurdo de pedirmos dinheiro emprestado à China para comprar petróleo aos sauditas", sublinhou Hillary), investindo em tecnologias que assegurem eficiência energética e fontes de energia alternativas, renováveis e limpas. Um projecto que vai além do desígnio de alavancar a recuperação da economia americana, incluindo a criação de emprego qualificado (como o Estado do Colorado já exemplarmente protagoniza): tem inevitáveis consequências para a política externa americana em todos os azimutes e, de facto, para a segurança e a economia de todo o planeta.
Público, 29 de Agosto de 2008
Na véspera do 45.º aniversário do Reverendo Martin Luther King ter emocionado a América com um discurso começado pelas palavras I have a dream, descrevendo o sonho de uma sociedade sem segregação racial, o negro de nome árabe Barack Hussein Obama foi nomeado candidato à presidência dos EUA, por aclamação dos delegados à Convenção do Partido Democrata.
O sonho está a cumprir-se.
E a consciência da grandeza do salto histórico, de que eram actores nesse momento de apoteose, fez correr lágrimas pelas faces de muitos delegados.O partido mostrou já entender que precisa de se unir para partir com redobrada energia para a última jornada do combate que visa "recuperar o país" e "operar a mudança" proposta por Obama e tornada indispensável por oito anos de desastroso desgoverno.
Hillary, num discurso electrizante, e Bill Clinton e John Kerry protagonizaram o apelo à união em torno de Obama e Joe Biden e refutaram convincentemente as acusações de impreparação e inexperiência que a propaganda republicana tem procurado colar a Obama.
"Recuperar o país" implica para os democratas também restaurar a imagem e a liderança dos EUA no mundo: porque sem recuperar a credibilidade moral e política através da exorcização de Guantánamo e da tortura (prioridade de uma Administração Obama, segundo Richard Holbrooke), sem voltar a "liderar pelo exemplo" nos direitos humanos, no respeito pela lei e sem se empenharem no diálogo e articulação diplomática com aliados e parceiros, os EUA não poderão liderar, nem promover a democracia (que não se "impõe", frizou Madeleine Albright), nem sequer garantir a sua própria segurança, quanto mais a global. Isso mesmo martelaram Albright, Holbrooke, Tom Daschle, Tim Wirth, Joe Biden e outros especialistas em assuntos internacionais.Contra as ilusórias "alianças de democracias" propostas por McCain, os democratas preferem reinvestir na ONU e outras instituições multilaterais que "funcionaram sempre que os EUA se empenharam". Pela segurança global também identificam hoje tanto a necessidade de combater a pobreza no mundo (tema de um debate promovido à margem da Convenção pelo NDI, Instituto de Assuntos Internacionais - "impensável há dez anos", sublinhou Albright), como a de mobilizar esforços para travar as mudanças climáticas. Este último tema é também determinante para outro projecto que galvaniza os democratas: a necessidade de os EUA reduzirem rapidamente a dependência do petróleo importado ("temos de cessar o absurdo de pedirmos dinheiro emprestado à China para comprar petróleo aos sauditas", sublinhou Hillary), investindo em tecnologias que assegurem eficiência energética e fontes de energia alternativas, renováveis e limpas. Um projecto que vai além do desígnio de alavancar a recuperação da economia americana, incluindo a criação de emprego qualificado (como o Estado do Colorado já exemplarmente protagoniza): tem inevitáveis consequências para a política externa americana em todos os azimutes e, de facto, para a segurança e a economia de todo o planeta.
Público, 29 de Agosto de 2008