28 de abril de 2005
A aldeia de Asterix
Na pacatez do nosso canto, sempre considerámos as atitudes euro-cépticas de alguns países do norte da Europa como manifestações de identidade e orgulho nacional. Os suecos e os dinamarqueses desconfiam da União porque receiam que os seus avançados sistemas de protecção social sejam postos em causa. Os ingleses porque, na verdade, não se crêem europeus e têm mais confiança na libra esterlina do que em notas decoradas com monumentos imaginários. Alguns, como os suíços, os noruegueses e os islandeses, preferem mesmo ficar de fora. Mas a França, trave-mestra da construção europeia, pátria de Jean Monet e Jacques Delors, o que a move na mais que provável recusa da constituição comum? O que se passa com os gauleses?
Dos países do sul e do leste europeu não se esperam surpresas. O Club Med é um aliado firme de Bruxelas. Durante muitos anos, Portugal, Espanha e Grécia (além da Itália, em menor medida) mantiveram-se à margem do progresso político e económico das velhas democracias do norte e agora, regressados à família europeia, sentem-se bem. Vêem mais oportunidades do que ameaças no espaço comum, porque têm menos a defender e mais a esperar dos fundos de coesão, pelo menos por enquanto. O receio da concorrência dos novos irmãos do leste, esse já foi largamente descontado pelos agentes económicos meridionais. Já todos perceberam que, afinal, não são os rivais da Baratónia que vão impedir a caminhada galopante do investimento estrangeiro para o Império do Meio.
Pela mesma ordem de razões, os países do ex-bloco soviético não deixarão de exprimir a sua adesão ao projecto europeu, ratificando tranquilamente o texto constitucional. Os motivos de preocupação vêm das três grandes potências europeias - a Alemanha, o Reino Unido e a França. Os alemães parecem ter resolvido o problema furtando-se ao referendo popular (tal como os suecos), mas os britânicos e os franceses não abdicam da consulta popular. Como não se imagina os súbditos de Sua Majestade a sufragarem o sim, ocorra o referendo quando ocorrer, nem se vislumbra uma mudança repentina da opinião dos franceses, o futuro da constituição europeia fica seriamente ameaçado.
Ora, se a fatalidade do não britânico ainda poderia ser acomodada durante algum tempo sem fazer perigar o trilho da integração europeia, já a recusa gaulesa representa um sério revés para a União. Por paradoxal que pareça, são os gauleses mais pobres e mais idosos os que maioritariamente se opõem à Europa. O velho anseio de um continente próspero e pacífico parece ter sido vencido pelo receio de uma uniformização dos costumes, das práticas sociais e dos mecanismos crescentemente liberais da economia.
Alguns sectores da intelectualidade francesa hostis à constituição europeia brandem outro tipo de argumentos. Descontados o habitual folclore trotsquista e o oportunismo político de Laurent Fabius, muitos são os que se opõem ao texto por razões artístico-filosóficas. Num recente editorial, o director do Courier International, Philippe Thureau-Dangin, lamentava-se da pobreza literária da prosa constitucional e da sua manifesta falta de panache. De facto, o termo de comparação é arrasador: "O Povo francês proclama solenemente a sua adesão aos direitos do homem e aos princípios da soberania nacional definidos pela declaração de 1789 (...)", assim reza o vigoroso preâmbulo da lei fundamental dos franceses. Alguém imagina que um texto iniciado por "Sua Majestade, o Rei dos Belgas", repleto de considerandos inúteis e de atropelos à língua de Molière possa vir a merecer a simpatia popular? O argumento de Thureau-Dangin é interessante, tanto mais que provém de um defensor do sim, mas denota a irresistível queda gaulesa pela primazia da forma.
Suspeito, porém, que os motivos da rejeição popular são mais do foro digestivo do que do literário. O francês comum orgulha-se de só engolir o que quer e não o que lhe impingem. Recusa-se obstinadamente a ceder a modos, línguas e culturas estrangeiras. Não troca um kir por um shot, uma andouille por um hot dog, ou um Lelouch por um Spielberg. Duvida da supremacia americana, faz chacota com os costumes dos ingleses, despreza os hábitos rudes dos alemães e outros bárbaros, ridiculariza os belgas e demais francófonos, inveja os italianos e ignora o resto do mundo. Não será desta que a irredutível aldeia gaulesa abre brechas, por Toutatis!
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 28 de Abril de 2005
Dos países do sul e do leste europeu não se esperam surpresas. O Club Med é um aliado firme de Bruxelas. Durante muitos anos, Portugal, Espanha e Grécia (além da Itália, em menor medida) mantiveram-se à margem do progresso político e económico das velhas democracias do norte e agora, regressados à família europeia, sentem-se bem. Vêem mais oportunidades do que ameaças no espaço comum, porque têm menos a defender e mais a esperar dos fundos de coesão, pelo menos por enquanto. O receio da concorrência dos novos irmãos do leste, esse já foi largamente descontado pelos agentes económicos meridionais. Já todos perceberam que, afinal, não são os rivais da Baratónia que vão impedir a caminhada galopante do investimento estrangeiro para o Império do Meio.
Pela mesma ordem de razões, os países do ex-bloco soviético não deixarão de exprimir a sua adesão ao projecto europeu, ratificando tranquilamente o texto constitucional. Os motivos de preocupação vêm das três grandes potências europeias - a Alemanha, o Reino Unido e a França. Os alemães parecem ter resolvido o problema furtando-se ao referendo popular (tal como os suecos), mas os britânicos e os franceses não abdicam da consulta popular. Como não se imagina os súbditos de Sua Majestade a sufragarem o sim, ocorra o referendo quando ocorrer, nem se vislumbra uma mudança repentina da opinião dos franceses, o futuro da constituição europeia fica seriamente ameaçado.
Ora, se a fatalidade do não britânico ainda poderia ser acomodada durante algum tempo sem fazer perigar o trilho da integração europeia, já a recusa gaulesa representa um sério revés para a União. Por paradoxal que pareça, são os gauleses mais pobres e mais idosos os que maioritariamente se opõem à Europa. O velho anseio de um continente próspero e pacífico parece ter sido vencido pelo receio de uma uniformização dos costumes, das práticas sociais e dos mecanismos crescentemente liberais da economia.
Alguns sectores da intelectualidade francesa hostis à constituição europeia brandem outro tipo de argumentos. Descontados o habitual folclore trotsquista e o oportunismo político de Laurent Fabius, muitos são os que se opõem ao texto por razões artístico-filosóficas. Num recente editorial, o director do Courier International, Philippe Thureau-Dangin, lamentava-se da pobreza literária da prosa constitucional e da sua manifesta falta de panache. De facto, o termo de comparação é arrasador: "O Povo francês proclama solenemente a sua adesão aos direitos do homem e aos princípios da soberania nacional definidos pela declaração de 1789 (...)", assim reza o vigoroso preâmbulo da lei fundamental dos franceses. Alguém imagina que um texto iniciado por "Sua Majestade, o Rei dos Belgas", repleto de considerandos inúteis e de atropelos à língua de Molière possa vir a merecer a simpatia popular? O argumento de Thureau-Dangin é interessante, tanto mais que provém de um defensor do sim, mas denota a irresistível queda gaulesa pela primazia da forma.
Suspeito, porém, que os motivos da rejeição popular são mais do foro digestivo do que do literário. O francês comum orgulha-se de só engolir o que quer e não o que lhe impingem. Recusa-se obstinadamente a ceder a modos, línguas e culturas estrangeiras. Não troca um kir por um shot, uma andouille por um hot dog, ou um Lelouch por um Spielberg. Duvida da supremacia americana, faz chacota com os costumes dos ingleses, despreza os hábitos rudes dos alemães e outros bárbaros, ridiculariza os belgas e demais francófonos, inveja os italianos e ignora o resto do mundo. Não será desta que a irredutível aldeia gaulesa abre brechas, por Toutatis!
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 28 de Abril de 2005