O Beijo Na Parede

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| | Waitara tit Para que serve 0 homem? Para estrumar flores, Para tecer contos? Para servir 0 homem? Para criar Deus? Sabe Deus do homem? Carlos Drummond de Andrade “Desculpai-me esta morte. £ que nao pude evité-la, a gente aceita tudo porque ja beijou a parede’” Clarice Lispector ‘Ao Eduardo Cabeda, ao Paulo Cezar Dias Rodriguez e ao Sidnei Schneider pelas leituras atentas sinceras. Para Jodo, meu filho, que ja sabe onde fica o sertao. Digitalizado com CamScanner Eu estava tomando café da manha quando vi o Airton Senna se espatifar na curva Tamburello, Era 1° de maio. Um ano depois, no mesmo dia, minha avé também se arrebentou num poste na Av. Protasio Alves. Ela estava num taxi, era um fusca. Batida feia. Seu Ramiro, que é muito experiente, disse que no fim das contas todo mundo um dia vai bater de frente numa parede. Disse também que devemos nos preocupar com isso desde o inicio, pois mal aprende- mos a limpar a bunda e jd temos que saber que as pessoas quebram mesmo a cara, e que depois de aguentar uma vida inteira somos colocados num buraco ¢ enterrados para sempre. Até o Airton Sen- na foi para um buraco, e isso que ele era campedo do mundo. O engracado é que quando se esta vivo, com satide, ninguém pensa nessas coisas. Ja notei que as pessoas chegam até a acreditar que sao eternas. E pensam dessa forma porque tém necessidade disso para viver. Antes de a minha mae morrer eu nao conhecia a tristeza. Mas, quando ela se foi, deixei de ser ignorante nesse assunto. Também acho isso engracado, porque ela morreu acreditando que eu seria feliz, que eu teria uma vida pela frente para ser o que quisesse. E ha uma infinidade de coisas que se pode fazer no futuro. Fico muito impressionado com os planejamentos que as pessoas fazem a toda hora. Vai ver é por isso que elas dao tanta importancia para ele. Mas quero dizer a vocés que nao gosto do futuro, Nem dos planejamen- tos. Também quero acrescentar que sou um menino meio precoce. E quando a gente ganhar mais intimidade, eu conto por que fiquei assim. Se vocés acharem que vale a pena, eu conto. 7| Digitalizado com CamScanner Desde cedo aprendi que chorar nao resolve muita coisa, embo- ra o seu Ramiro tenha me dito certa vez que nao ha como escapar, pois, de uma forma ou de outra, temos sempre que carregar alguma dor. Mas é preciso dar um desconto pra ele, porque além de ser uma pessoa de idade, cle também é triste. E depois que se tornou velho a Unica coisa que soube fazer foi aprender a doer. Nao estou acostumado com as pessoas interessadas em Também nunca fui urgente para alguém, Isso me preocupa um pou- co. Sei que a preocupagio faz mal para a cabeca. Por isso estou con- tando minha vida, pois nao quero me tornar uma pessoa atacada dos nervos como a Estela ou como a dona Dinorah. Hoje em dia as criangas siio todas atacadas dos nervos. Fui um aluno fraco e lerdo, Sei porque eu via isso na cara dos professores e eles tinham pena da minha lerdice. Achavam até que eu possuia uma espécie de autismo. Ou talvez que eu fosse retar- dado mental. Por conta disso, colecionei muitos boletins lamenté- veis. E na escola aprendi que professores nao acreditam em alunos lerdos. Eu era perseguido pela escola até em casa, quando ligavam para minha mie e solicitavam a presenga dela, Os professores re- clamavam que eu era um menino lento para a aprendizagem e que o motivo das minhas reprovagées era causado pela minha desa- tencao. Demorei trés anos na primeira série para entender que “b” com “a” dava “ba”. Trés anos. E sério. Trés anos para fazer uma coisa besta dessa. Sempre fui um aluno fraco, mas nao vou me esticar neste assunto. Mais tarde voltarei a falar disso, pois pretendo contar quem € o responsével pela fraqueza dos homens. Quando me tornei maior, mudei meu comportamento na es- cola, dai fui acusado de ser hiperativo. Alids, todos os meus colegas resolveram ser hiperativos. O que era bom, porque quando a gente aprontava era s6 colocar a culpa na hiperatividade. Minha mae e meu pai nunca me bateram por causa disso. Meu pai porque bebia e, as vezes, se esquecia de mim. Minha mie porque era muito doce. E s6 depois de algum tempo que nos damos conta de que a mie da gente é doce e amivel. Antes disso somos idiotas, porque fica- mos muito mal-acostumados chorando e esperneando por qualquer [8 Digitalizado com CamScanner coisa, Acho que sempre fui lento, $6 fiquei esperto mesmo depois que ela morreu. Um dia, até pensei que eu fosse eterno. E ha uma quantidade imensa de bobagens que a gente pensa quando se é ignorante. Nao vou encher vocés falando de todos os lugares onde mo- rei, Sei que esto interessados em saber outras coisas - os adultos sempre se interessam por coisas esquisitas. Mas acho que vale a pena dizer que a gente morava em Copacabana, na Ladeira dos ‘Tabajaras. E também que estudava na escola Cicero Pena, na AV. Atlantica. Na terceira série, depois que j4 havia superado “ba’, aprendi a matar aula para dar uns mergulhos na praia. Confesso que nunca achei nada de mais no mar. No entanto sempre gostei dos mergulhos e de sujar 0 corpo todo de areia para tirar na agua. Aqui em Porto Alegre é que ouco as pessoas dizendo que o mar é isso e aquilo. Mas eu sinceramente nao acho. E se é por questao de gua ainda prefiro a chuva, Se bem que quando chovia na Ladeira dos Tabajaras era um deus nos acuda, Nossa casa nio tinha ameaca de cair morro abaixo, mas os vizinhos da parte mais alta vinham buscar abrigo na nossa sala. Sem contar os alagamentos no pé da ladeira, que deixavam todo mundo ilhado. E esse foi um dos moti- vos que fez a gente se mudar para a Lapa. Eu disse que foi um dos motivos porque, além dos alagamentos, havia também 0s tiroteios por causa das brigas dos traficantes. E, como eu jé disse, minha mie queria que eu tivesse um futuro. Entao fomos para a Lapa ter um futuro. Foi meu padrinho que nos convidou. Ele j4 morava 14 um tempao. Vocés devem saber que a maioria das criangas tem padri- nhos. No entanto, algumas tém anjos em vez de padrinhos. Mas anjos nao sio muito bons porque nao dao presentes. E s6 servem mesmo pra gente rezar quando estamos nos fodendo na vida. Meu padrinho se chamava Cléudio, e nao costumava me dar presentes, mas era uma boa pessoa. E acho que na vida é isso que conta. Ele era cabeleireiro, trabalhava em Copacabana, Eu estudava pela ma- nha ea tarde ficava com ele. O salao era dentro de uma galeria na ‘Av. Nossa Senhora de Copacabana. Na galeria tinha de tudo: saldo 9| Digitalizado com CamScanner d . le beleza, bazar, assisténcia técnica de televisa mante. Havia também a sala d: i iar ka bac care a a sala das prostitutas. Mas eu ni re 8. Mas eu nao chegava Bees la porta, até porque eu vivia na ignordncia ¢ nao able ao © que aquels of a que aquelas mogas faziam, mas como eu ja disse, sou um l a n , ino melo precoce ¢ depois eu digo quando fiquei de pau duro pela primeira vez, se 7 Se isso iver alguma importancia pra vocés, Gap eectinniee velho, negro, magro, os cabelos rigoro- arados. Néo gostava de sorrir. Era uma pessoa séria, elegante ¢ profissional. Antigamente ele era barbeiro, 56 cortava cabelo de homens e nao havia tanta frescura. Mas os tempos mu- daram e ele teve que se adaptar. Muitos homens passaram a querer ser jovens para sempre. E também queriam 0 mesmo tratamen- to de cabelo que as mulheres, ¢ néo estou falando dos travestis, mas dos homens que nao aceitam ser feios. “Os homens mudaram muito” E era isso que meu padrinho vivia repetindo para si. Aos poucos ele viu sua clientela mudar. Antigamente pediam para ele aparar o cabelo, fazer as sui¢as, passar a navalha “A contrafeita’. Depois tudo mudou: eles entravam querendo que o padrinho fi- zesse desenhos nas cabecas deles, pediam escovas, reflexos, rela- xamentos e chapinhas. Com essas novas tendéncias meu padrinho foi obrigado a se adaptar. Entéo ele resolveu fazer uma sociedade com a dona Ivone do salao da frente. Dona Ivone sabia tudo sobre relaxamentos e chapinhas. Era uma mulher realmente muito gorda ea sua bunda ocupava duas poltronas. Nunca pensei que alguém pudesse ter uma bunda tao grande. Além disso, era uma pessoa que suava bastante ¢ também era muito gritona. Ficou combina- do que meu padrinho sé cortaria cabelo e faria as barbas. Todo o resto ficaria a cargo de dona Ivone. Alids, ela arrumava 0 cabelo de muita gente, inclusive de algumas atrizes da TV. Na verdade, nao eram bem atrizes, pois elas s6 faziam pontas e figuragdes. Era o caso da dona Gema, que também nao aceitava a velhice e toda semana tentava ser jovem no salto do meu padrinho. Dona Gema se orgulhava de ter aparecido d 1 Fera Ferida. Ele era uma das pessoas que cami de rua. Agora, ela foi convidada para ap Juas vezes na novel: nhavam pra la e pr arecer na novel: acd nos cenarios la Coragoes Digitalizado com CamScanner Solitdrios. Disse também que ia fazer 0 papel de uma vendedora de cachorro-quente. Ela ia aparecer por 20 segundos vendendo um cachorro-quente para o Anténio Fagundes, E nesse momento © saléo parava porque dona Gema dizia que era muita amiga do Antonio Fagundes. E que ele até ja a tinha convidado pessoalmen- te para fazer uma novela, na qual ele seria um miliondrio, e ela, a governanta da casa. E sinceramente até hoje ainda nao sei para que servem as governantas. Nesse momento a mulherada do saléo fica- va de boca aberta. Mas havia as outras que nao acreditavam muito naquela conversa. “Antonio Fagundes. Sei. Se ele é tio teu amigo por que vocé nao pede pra ele te tirar do Méier? Hahaha’, disse uma delas. Mas dona Gema nfo deixava por menos. “Uma coisa nfo tem nada a ver com a outra, Sou uma atriz profissional. Nao misturo as coisas, queridinha.” “Profissional? Hahaha!” “TA rindo de qué? Pelo menos nao preciso mentir que moro em Botafogo” “Mas eu moro em Botafogo.” “Mora coisa nenhuma. Vocé mora na Vila Kennedy!” E logo quando ia comegar um bate-boca, meu padrinho in- tervinha: “Oh, gente! Assim nao da! Assim eu me desconcentro” Era a tnica coisa que meu padrinho sabia dizer nesses mo- mentos. E mesmo depois da cara feia dele a discussao continuava baixinho. Naquela galeria era muito divertido. Eu tinha um carrinho de fricgdo e ficava no corredor brincando com ele pra lé e pra ca. Até ahora de a minha mae chegar. A gente esperava o meu padrinho terminar o servico dele para irmos juntos. Minha mae vinha sem- pre muito cansada. Ela era caixa de supermercado na Rua Siqueira Campos. Meu pai nunca estava em casa quando a gente chegava porque estava na rua ou pelos bares. Nos fins de semana era bom porque todo mundo se encon- trava de folga no cortico da Lapa. Menos meu pai, que ainda anda- 11| Digitalizado com CamScanner va por ai, A fungio no corti¢o comegava cedo com o barulho dos bondes, pois 0 prédio localizava-se exatamente embaixo dos arcos da Lapa. Havia também a cachorrada. E de vez em quando algum vizinho discutia, principalmente por causa do tanque e Por causa do espaco para estender a roupa. A unica coisa ruim era quando eu tinha dor de barriga. O prédio tinha trés andares, uns mil quar. tos, mas sé um banheiro, que vivia sujo. Minha mie, que era uma pessoa muito asseada, me obrigava a cagar num penico vermelho, Eu cagava atras do sofa, pois tinha vergonha de que alguém me visse, até porque eu ja tinha oito anos, e € nesse tempo que a gente comegaa ter dignidade. Eu cagava cantando. A gente tinha uma vi- zinha que escutava o som nas alturas. E quase sempre era a mesma musica. Com 0 tempo até passei a gostar dela. Se quiserem posso cantar um pouquinho: Nada consigo fazer Quando a saudade aperta Foge-me a inspira¢ao Sinto a alma deserta Um vazio se faz em meu peito E, de fato, eu sinto em meu peito um vazio Me faltando as suas caricias As noites séo longas E eu sinto mais frio Procuro afogar no alcool a tua lembranca Mas noto que é ridicula A minha vinganga Vou seguir os conselhos de amigos E garanto que nao beberei nunca mais E, com o tempo, esta imensa saudade Que sinto se esvai Desculpe se sou desafinado. Mas a miisica era assim: triste ¢ bonita. Entao eu cagava e cantava. E isso era muito bom. Até me vinha um assomo de chorar, mas como eu disse para vocés, chorat Digitalizado com CamScanner nem me: mo quando a gente vai chorar por algo ado pela dor. Nao resolve se tempo que apa que nao seja Foi por ¢: uum livro no chéio do nos- so quarto, No sei bem como ele foi parar 14, mas ele servia para equilibrar o pé da mesa que havia quebrado. Como eu nio tinha muitos brinquedos, precisava dar um jeito de me divertir. Tirei o livro que apoiava a mesa ¢ botei um tijolo no lugar. Era um livro de capa dura, vermelha, com dois cavaleiros desenhados em doura- do, Passei a inventar historias para me distrair, Eu ainda nao sabia ler muito bem, ¢ as criangas sempre precisam de uma ilusio. Mais tarde, quando aprendi a ler, descobri que era um livro besta. Posso dizer que, num primeiro momento, achei que se tratava da historia mais idiota que alguém ja escreveu. preciso ser muito atento para perceber quando a tristeza chega perto da gente, Nesse caso a minha mie nao era muito aten- ta, pois volta e meia eu a pegava chorando pelos cantos, Eu sa- bia que era por causa do meu pai. Ele nao parava muito em casa, chegava sempre tarde, cheio de trago. Foi nesse tempo que minha mae comegou a perder a meméria. As vezes ela esquecia 0 que tinha feito ha alguns minutos, depois ela comecou a esquecer até o meu nome. Entao eu me fazia de pai dela. Com o tempo aprendi que as maes gostam um bocadinho de serem tratadas como filhas, Ela deitava a cabeca no meu colo, Eu passava a maos nos cabelos ctespos dela. Depois inventava um pouco de histéria €, as vezes, eu cantava, mas era sé pra fazé-la sorrir, Pois, como sabem, sou meio desafinado, Digitalizado com CamScanner Grande pessoa era o meu pai. O velho me ensinou duas coisas: a primeira foi carregar tra~ Ihas, ea segunda foi deixar de chorar. Ainda pretendo descobrir para que serve um pai - ndo achei nenhuma utilidade para ele. Mas um dia vou saber tudo, vou ser um homem, ter filhos e uma casa. E assim, est4 no programa. Enquanto isso vou me virando para me enquadrar. Outra coisa que meu pai sabia fazer era partir. Cada vez que ia embora, minha mae morria um pouco. As vezes, ela sentava no sofé e ficava me olhando. “Teu pai é um canalha! Joao!’, dizia ela, “E um homem que nao aprendeu a ser homem.” E quando eu lhe dava algum desgosto, afirmava que eu era igual a ele. Eu nao acreditava, porque eu ainda nao o considerava um ca- nalha, Eu ainda tinha uma visio boa dele. E ficava imaginando que meu pai voltaria com muito dinheiro ¢ iria nos salvar da fome e da tristeza, Acontece que meu pai sempre voltava, mas sem dinheiro e muito triste. Minha mie estava doente. De vez em quando ela sentia uma forte dor na cabeca. As vezes desmaiava e ao acordar custava para Jembrar as coisas, Nao lembrava nem do meu pai, o que era até um bom negécio, pois assim ela esquecia um pouco do desgosto. No meu aniversdrio de dez anos meu pai resolveu ir embora, © que me deixou muito puto da cara. Eles passaram a noite bri- gando. Meu pai arrumou as coisas e saiu sem ao menos me olhar. 15| Digitalizado com CamScanner Aquele foi o dia mais triste da minha vida, E nao foi 4 4 ner i 20 meu aniversirio, Até porque essa coisa de idade nag tana? sa nenhuma para quem vive se ferrando. Mas Porque, as, “crea. A 7 : > ASSiy ele se mandou, minha mae desmaiou no m péda escada, Com ece, desceu, Chamatam yn gritar e rapidamente o Pessoal do cortigo mM uma ambulancia, Naquela noite, cu e meu pai ficamos no hospital. A certa hora os médicos mandaram chamé-lo. B eu ja estava até Preparado para 9 Pior, pois é assim que acontece nas novelas e nos filmes; 0s mé. dicos mandam chamar alguém para contar a tragédia toda, Em se- guida, comeca uma misica de violino muito triste. E foi exatamen- te assim que aconteceu. Minha mie tinha um cancer na cabeca, E © cancer nao costuma dar muitas chances. Vi de longe o rosto der- rotado do meu pai. E veio a maldita misica de violino na cabeca, Fiquei imaginando as coisas em camera lenta. Devo sofrer de uma doenga muito grave, porque sempre que acontecem coisas tristes vejo tudo em camera lenta, como nos filmes, Mas aquilo nao era um filme. Era a minha mae que morria. E eu ali inventando uma misica triste. Meu pai veio em minha direcao, “Tua mae morreu’, disse, Depois sentou do meu lado. Colocou os cotovelos nos joe- Thos. Apoiou a testa nas maos, Nao disse nada. Nao chorava. Na minha cabe¢a a musica do violino ficava mais forte e meu cora¢ao comegou a doer. Os meus olhos se encheram gua. Chorei um pouquinho. Mesmo nao querendo, as lagrimas desciam pelo meu rosto, e eu solucei; meu nariz escorria. Acho que foi isso que irritou meu pai, pois ele levantou bruscamente, me segurou pelos ombros e disse: “Para de chorar, Joao, Chorar nao resolve nada, entendeu?!” Ele me deu apenas uma sacudida. E esse foi meu consolo. Uma sacudida. Senti seu bafo de cachaga. Parei de chorar. Depois ele sentou novamente. Passou as maos nos cabelos, one iD esti- vesse com dor de cabe¢a. Mas o pior de tudo é que a mtsica do violino persistia. E o pensamento da gente é assim mesmo: quan- Digializado com CamScanner do a gente nao quer que ele pense, dai é que ele pensa. E pensa mais forte. E pensa mais dificil. Depois desse dia foi tudo muito complicado. Meu pai nao queria morar mais na Lapa, porque ficava lembrando toda hora dela, mesmo o meu padrinho dizendo que a gente poderia mudar de quarto, No entanto, a lembranga é pior que a morte, Ea gente pode até mudar de quarto, mas nio podemos mudar de tristeza. Meu pai nasceu no Rio Grande do Sul. Aos 16 anos se man- dou para o Rio de Janeiro porque queria vencer na vida e ficar rico. Mas como podem ver, meu pai se enganou. E na vida acho que todos nos enganamos. Acontece que meu pai se enganou muitas vezes, Entéo, para fugirmos das lembrancas de minha mie, e dos enganos dele, viemos parar aqui no sul. Quanto a mim, nao tive es- colha. Evitava lembrar minha mae. Para nao chorar eu pensava em coisas que fossem melhores que a vida, isso é€ uma coisa dificil, mas se a gente pensar bem acaba encontrando. Gastamos um dia inteiro de énibus para chegar a Porto Ale- gre. Nunca tinha visto tanto morro, pasto € vacas durante a via- gem. Antes de chegar, a tinica coisa que eu sabia é que era um lugar frio, pois meu pai vivia me contando sobre a sua infancia triste na Cidade Baixa, que eles nao tinham isso e nao tinham aquilo, que 0 frio era de rachar e um dia até nevou por aqui. Ai perguntei se na sua infancia ele havia feito bonecos de neve. “Nao seja besta, garo- to, vocé acha que eu tinha tempo para estas coisas. No meu tempo a gente s6 tinha tempo para trabalhar. E mais, em Porto Alegre nao neva’, ele respondia com muito rancor. E nao ha nada pior do que escutar o pai da gente contando uma histéria com rancor. Dai por diante meu pai desfilava sua vida miserdvel no frio do sul. Mas vou dizer a vocés que Porto Alegre nao é s6 uma cidade fria. E também uma cidade triste. Nao cheguei a essa conclusao pelas histérias do meu pai, nem porque chovia naquele dia em que cheguei aqui, até porque, como jé disse, prefiro a chuva ao mar. Nao sei dizer qual 0 motivo da tristeza desta cidade, mas acho que as coisas nao preci- sam de motivos para serem tristes. Meus tios moravam em Viamio. E eram todos brancos. 17| Digitalizado com CamScanner Esqueci de dizer por que tenho esta cor. E que meu Pai nag ra negro, mas minha mie era, Por isso tenho esta cor meio cinza meio marrom, entendem? Na familia do meu pai, como ea disse, cram todos brancos, ¢ depois cu soube que eles niko aueram: ter {um parente pretinho como eu por perto, o que s6 descobri depois que cresci e fiquei menos bocd. ; ; Moramos com meus tios por pouco tempo, pois meu Pai re. solveu brigar com um deles, Naquela casa ninguém conseguia tra. balho, sa mulher do tio Roberto, a Maria de Lourdes, que passaya 0 dia limpando casas das madames no bairro Moinhos de Vento, Apenas ela que botava dinheiro para dentro de casa. Meu Pai vivia saindo com meus tios para beber. Enquanto isso, meus primos co. locavam os bragos deles do lado do meu para ficar comparando a nossa cor. E me perguntavam por que eu tinha saido daquele jeito, “Porque minha mée era negra’, eu respondia, Entdo eles cafam na gargalhada, E aquilo era a coisa mais besta que me acontecia na casa dos meus tios. Meu pai sempre voltava muito bébado e depois dormia no chao da sala mesmo. Um dia, a Maria de Lourdes 0 chamou num canto, Falou que havia muita gente naquela casa e que a gente ti- nha que procurar outro lugar. Meu pai ficou furioso e disse que tla nao mandava nada. Depois a mandou tomar no cu, Dai 0 meu tio Roberto néo gostou nada do jeito que ele falou com a Maria de Lourdes. Meu pai disse também que ela eta uma piranha, E ele até tinha uma certa razio nisso, pois cansei de ver a Maria de Lourdes dando pelota pro meu Pai. Mas isso nao vem ao caso. Acontece que © meu tio nao esperou muito tempo para acertar um soco nele, E nunca tinha visto meu pai apanhar. Ele apanhava Principalmente No rosto. Senti muita raiva. Por isso Peguei um pedaco de madeira € parti para cima do tio Roberto, Lembrei que nessas horas a gente eu tio Roberto no joelho, Esqueci de primos, todos maiores que eu. 10 € que isso terminou, mas nao se iguém. $6 houve uma vez que qua- jora nao é hora de falar sobre isso. Preocupem porque nao matei nin; Se Precisei matar alguém. Mas ag [1s Digitalizado com CamScanner Saimos do pronto-socorro As seis da manha, Pela primeira e unica vez meu pai me olhou com orgulho, e apenas com um olho, pois 0 outro estava enfai Mas estava tudo bem. Meu pai nao sabia para onde iriame conhecidos em Alvorada, Mas desistiu d que ele nao fal ado, Eu nao podia mexer meu queixo. . Ele disse que tinha uns a ideia. Fazi a muito tempo ya com eles. Tinhamos um pouco de dinheiro que meu pai conseguiu no jogo do bicho. Passamos o dia procurando um lugar para ficar. Desconfio que meu pai pensou em me deixar num abrigo para menores, mas acho que ele era atacado pelo re- morso ao lembrar de minha mie. Alugamos um quarto no centro. Era um muquifo terrivel. Meu pai escolhia esses lugares a dedo. Ficamos dois dias por la. Nao sei como meu pai conseguiu alugar uma casinha entre a Vo- luntarios da Patria ea Av, Farrapos. Se é que se pode chamar aquilo de casa, pois era tudo muito precario. Assim que nos acomodamos, meu pai come¢ou a ter sorte no jogo do osso e também na canas- tra. E poralgum tempo a gente conseguiu se manter longe da fome. Eu fui para a escola por minha conta e risco, pois se fosse esperar pelo meu pai, nada acontecia. Eu ia a pé, mesmo a escola ficando a alguns quilémetros de onde a gente morava. Posso dizer a vocés que foi na escola que soube pela primeira vez que eu era negro. Até entao eu também era ignorante nesse assunto. Na escola Cicero Pena, em Copacabana, meus colegas fa- ziam muitas piadas sobre negros. No comego eu até achava graca. E digo a vocés que é terrivelmente ruim viver na ignorancia. E a gente nunca é negro por acaso, porque antes de ser negro a gente tem que aceitar, entender que a gente tem uma cor preta, e que isso faz diferenca na vida, Um dia eu tive uma professora que me expli- cou tudo sobre a escravidio, Disse que nds, os negros, fomos tra zidos acorrentados em navios negreiros. Que os negros eram tra- tados como animais, que os negros levavam chibatadas, que foram Passivos e que se deixaram escravizar. Assistimos a muitos filmes Sobre as senzalas, sobre os quilombos, e sempre que isso acontecia meus colegas brancos me apontavam na tela e me chamavam de 19| Digitalizado com CamScanner escravo, O problema é que na infancia nio se pode fazer muita coi. 8aa respeito da nossa cor. Todos me ensinavam que eu sé Podia Ser preto, ¢ nio me deixavam ser simplesmente uma pessoa, MAS jury que quando ficar maior vou poder ser apenas ne pessoa, € Pron. to, Outro dia, a professora disse que houve a Lei Aurea ea Princesa Isabel deixou os negros serem livres. Tomei coragem e pergunte; g que aconteceu depois que os negros puderam ser livres, ¢ a profes. sora nao respondeu ¢ encerrou a aula, mas desconfio que aquela professora loira até sentia pena de nés, os negros. Acontece que 0s professores nao gostam de determinados assuntos, e talvez isso aconte¢a porque ndo querem deixar de falar da escravidao, nem das senzalas, nem das chibatadas e nem da princesa Aurea, ou seri princesa Isabel? Nao importa agora, mas um dia, quando eu for homem, eu vou I e pergunto pra ela. Eu sei que nao sou muito organizado para contar minha his- toria, mas espero que vocés tenhham Paciéncia e nao me virem as Costas. Embora eu esteja acostumado com isso, pois tenho uma lista enorme de Pessoas que ja me dispensaram. O primeiro da lista foi Deus, mas nao me importo com isso. Nem eu nem 0 seu Rami- To nos importamos com Deus, porque garanto a vocés que existe coisa pior do que ser abandonado Pelo ser mais Piedoso do uni- Verso, € agora estou usando uma expressio que ouvi certa vez de 'm disse que esqueceu de Deus e que Pra ele est muito bem assim. Ele achava que Deus nao teve uma boa ideia quando Tesolveu fazer o mundo. Mas, Por outro lado, se pd nae ea abe, Porque era a tinica coisa 3 ‘ive uma ideia genial, portanto eu estava mesmo ferrado, E na vida, se Vocé nao tem uma ideia genial, Vocé ¢ esquecido Pra sempre, © que um homem Precisa para se dar Digitalizado com CamScanner n deboche do meu pai, porque o cavalo ava muito do Campedo, Principalmente quando montava nel fcava brincando de cavaleiro. Meu pal nao gostava dessas brincadeiras, porque eu poderla cansar 0 pobre ani- mal, Mas 0 negdcio ¢ que 0 Campeao ja nasceu cansado. Ele ja tinha uma pata meio avariada, ¢ a sua barriga era muito grande para o resto do corpo magro. Comegamos catando papel nas Tuas. Depois passamos a fazer a mudanga das pessoas, ou entao levava- mos compras para elas, A gente trabalhava dia e noite. Acho que faziamos isso para esquecer minha mae. Meu pai era triste. Mas nem sempre. As vezes, ele parecia feliz emelevava para o bar. Ai, para mostrar sua felicidade, ele me man- dava molhar a boca na espuma da cerveja para que eu fosse me acostumando a tomar o lugar dele como chefe da familia. “Porque a tua me jd morreu, daqui a pouco sou eu, ¢ a vida é assim, guri, a vida é assim? Em seguida, ele sorria para os amigos que estavam na mesa, como quem diz que o filho de dez anos j4 era um homem. Mas a alegria do meu pai, nessas ocasides, durava bem pouco. Ia até o quarto copo. Depois ele baixava os olhos, se calava e se esque- cia de mim. Eu gostava quando chovia. Sei que jé disse isso, mas acho até que a chuva foi meu primeiro amigo. No entanto, nao gostava dos trovées, pois eu achava que Deus nao precisava assustar as pessoas com tanto barulho sé para avisar que vai chover - mesmo 0 nosso telhado, que estava todo quebrado e quase jé nao fazia diferenca nenhuma chover na rua ou dentro de casa. Eu gostava da chuva, gostava do barulho dos pingos, dos pingos batendo no vidro da janela e escorregando, assim, um atrds do outro, Meu pai alugou uma casa velha porque era o que gente po- soni ie te sa mais nada, Parecia que tinha desistid ‘ ‘ aa ae Sve = expertnla, mas comeceia nota que exisem posse oe gene ‘ar que existem pessoas que ja nao querem mais viver, mas também nao querem morrer. assim era o meu pai, : ro que “Campedo” era un era um pangaré. Eu gost E acho que A minha cama nio era das piores, era macia ai Digitalizado com CamScanner € quente. O que me irritava mesmo eram os barulhinhos que ey escutava embaixo dela, Eu sabia que eram os camundongos que ficavam roendo algum resto de comida que eles encontravam na cozinha e vinham justamente comer em baixo da minha cama, Um dia decidi pegar um deles, Montei uma arapuca com uma caixg de sapato do meu pai, juntei um graveto ¢ enrolei um pedacinho de queijo nele. Deixei a caixa apoiada no graveto de um jeito que qualquer toque faria a caixa cair em cima do camundongo, Dito e feito, Peguei-o. Fiz uns furinhos na caixa para poder vé-lo. Era pequeno e agressive, pois dava saltos dentro da calxa. O camundongo passou a me fazer companhia; eu colocava a caixa em cima da cabeceira, Duas vezes por dia eu levava um pedacinho de queijo ou de pao para ele nao morrer, e também fiz um buraquinho maior e coloquei 4gua. Quando eu ficava muito triste, eu pegava o livro que eu havia encontrado quando moraya na Lapa. Segurava-o com for¢a. Depois abria em qualquer pagina e fingia ler uma histéria para o camundongo. Volta e meia meu pai me pegava mentindo leituras. Ele me olhava e dizia que eu estava doido igual a minha mie. Eu fazia siléncio. Esperava ele sair e de- pois eu chorava. Num outro dia meu pai encontrou o camundongo na minha caixa e ficou nervoso, Disse que eu estava doente. Que eu Precisava de um psiquiatra, tomar uns remédios para ndo ficar biruta igual a minha a mie. E disse ainda que isso era uma doenga heredita- tia. No dia seguinte levantamos cedo. Estava escuro. Nao tomamos café porque nao deu tempo, e também Porque nao tinha muita comida. A fila do posto de satide era grande. Fazia frio, parecia que ia chover. As sete da manhi eles comecaram a distribuir as senhas. Depois disso a gente tinha que esperar umas duas ou trés horas. Disse ao meu pai que estava com muita fome. Ele dizia para néo Pensar em comida que daqui a pouco a fome passava, Entao eu nio ae Acontece que o “daqui a pouco” nunca chegava e o meu 89 ndo queria nem saber e continuava doendo. © doutor fee Ie aoe cra uma pessoa simpatica, “Fagundes” era o nome "/"n2 primeira vez. que ele me viu, Parecia até preocupado [22 Digtaliado com CamScanee comigo. As pessoas mais velhas tm a mania de mentir para as criangas dizendo que esto prestando atencao nelas, mas é menti- ra. O doutor Fagundes no era assim; ele me olhava de verdade. E quando perguntou como eu estava, ele realmente queria saber. No entanto, eu nao podia dizer que eu sentia dores no est6mago devi- do a fome. Meu pai me fulminava a todo o momento com os olhos. O doutor Fagundes era careca e tinha um bigode que quase tomava conta de todo o seu rosto ~ eu sempre achei muito engracado as pessoas carecas com bigode. “Bom, doutor, o negécio é 0 seguinte: eu acho que este guri esté ficando doido”, dizia meu pai. “Veja o senhor que agora ele deu para andar com ratos dentro de uma caixa. Quando no € isso, fica pra la e pra cd com um livro velho e falando sozinho.” O doutor Fagundes nos olhava sereno; um olhar de quem ja sabe alguma coisa sobre a vida. Af ele pediu para meu pai con- tar um pouco sobre a gente. Depois procurou saber quando € que a minha “loucura” havia comegado. Meu pai respondeu que nao sabia exatamente, mas que talvez fosse uma coisa hereditaria da minha mie. O doutor continuou nos olhando. “Olhe, senhor José, o seu filho perdeu a mae hé pouco tempo. Ainda est4 se acostumando. F dificil para ele, e acho que para o senhor também. Digamos que a caixa com ratos pode parecer algo um pouco estranho, mas 0 livro... 0 senhor devia até se orgulhar” “Ora, me orgulhar do qué? Ele nao sabe ler, doutor, £ tudo inventado por ele” Nesse momento o doutor Fagundes olhou para mim e sorriu, € era um sorriso tao terno e tio atencioso que eu quase esqueci a minha fome. “Senhor José, este menino precisa de uma escola, aprender a ler” Eu sei’; disse meu pai, “mas este guri é que é preguicoso. Nao gosta de estudar. Eu ja disse pra ele: quem nfo estuda no vence na vida. O senhor nao concorda, doutor?” O doutor Fagundes concordou. precisa 231 Digitalizado com CamScanner “Pois entao, doutor, vamos fazer o seguinte: 0 ae eee bei je man algum remédio pra cabeca dele, que eu me encarrego ar ele pra escola” . ‘ames, porque pela No fim das contas 0 doutor s6 pediu uns a eae ; et : : minha magreza era bem possivel de estar com te uns pollnha. Fomos fazer os exames. Tive que cagar ¢ m1) jejum, mas isso para mim lene ‘Tumba HH ¢ ficar em jejum, - de plasticos, Também tive qu costumado a nao ter nada r jd estava a nao era problema, porque eu ja estar nth para recolher men no estémago. Depois me enfiaram uma Ad i i a sangue. Quem fez isso foi uma senhor: fio pa elha. cara para nao parecer ve ae “Nao vai doer nada, E s6 uma plese sori Bg E era mesmo s6 uma picadinha. A senhora s . E gosto muito quando as pessoas sorriem. Bla pasion’ algodao. aela que tirar sangue nao déi nada e vai ver que € por we ae Buns dos meus vizinhos tiram sangue algumas vezes, p O18 vo he ae 0s vejo com seringas. Eles sentam nas calgadas € tiram 0 proprio sangue. Nesse momento a senhora me olhou com tristeza e Pe guntou onde eu morava. Eu respondi. Ai ela mostrou Preocupacéo e disse para eu ficar longe dessas pessoas, pois eram pessoas ruins, Eu nao quis dizer nada, mas acabei achando que eu também era uma pessoa ruim por tirar sangue. $6 mais tarde é que fui compre- ender que aqueles caras 14 perto de casa nao faziam exames coisa nenhuma. E digo a vocés que isso é viver na ignorancia; antes a gente vive na felicidade. No entanto, nao é uma coisa boa viver na felicidade, pois a todo momento podem passa-lo para tras. Voltamos ao médico. Novamente ele nos atendeu muito bem, embora meu pai tenha ficado desapontado com meus exames por- que no diziam nada relativo & minha cabega, apenas que eu tinha ses Ean ne comet a mas naquele aaa ae no tem hora para cheget “Seu filho Precisa comer by ea ah em para curar esta anemia. Vou receit itami citar umas vitaminas e temédios para os vermes” Meu pai estava impaciente. , loira que pintava muito a |24 Digitalizado com CamScanner “B quanto a cabeca dele, doutor?” O doutor estava preenchendoa receit: carinho e perguntou: : “Como ele tem reagido a falta da mae? Ele tem chorado? “Chorado? Nao, doutor, ele nunca chora. Este guri parece fala. Acho que ele vai ficar a. Depois me olhou com uma parede. Ele nio chora, nao ri, nao igual 4 mac dele” Em seguida enchi os meus olhos d’4gua ouvindo meu pai fa- lar daquela maneira. Baixei minha cabeca para que nao percebes- sem nada, O doutor Fagundes disse para meu pai ficar tranquilo, pois as coisas que eu fazia eram normais para uma crianga da mi- nha idade. Fomos embora. Eu até fiquei alegre por ser uma crianga nor- mal para minha idade. Mas meu pai estava insatisfeito. Estava con- vencido de que eu tinha alguma doenga na cabega. Passamos na farmécia. O remédio que o doutor Fagundes pediu era um pou- co caro, por isso meu pai resolveu comprar apenas um purgante. Ele disse que tinha o mesmo efeito do remédio para vermes. Me mandou tomar dois de uma sé vez. No comego nao senti nada. Mas depois de algumas horas comecei a cagar feito um condenado. Passava quase todo o dia no banheiro. Meu pai dizia para nao dar descarga porque ele queria conferir a minha merda. Fiquei mais fraco. Tudo o que eu comia ia direto para a privada. Entéo quando comecei a sair da ignorancia, passei a nao tomar mais os malditos purgantes, Consequentemente, parei de ir ao banheiro toda hora. Meu pai comegou a ficar desconfiado. Quando ia ao banheiro, ele ficava na porta, me esperando. Havia dias que eu estava sem von- tade de cagar, mas ficava embromando no banheiro. E quando saia pouca merda, meu pai dizia que eu tinha que aumentar a dose. £ claro que eu nao tomava. Fingia que engolia os purgantes e depois botava fora, Foi entdo que tive a ideia de comprar merda do Miudi- nho, Miudinho era um guri que morava na esquina da minha casa. A gente combinou que em troca da merda eu dava trés bolinhas de Pers bolr oo jp manna Nowe tn sieoene oe . Noutras, eu ganhava na forca 25| Digitalizado com CamScanner a nos va deles. O Miudinho tai atia res ¢ pegava deles. ; : quando eu batia nos meno peg a aon bém nao cagava muito bem, e em alguns 0 cag ; M fo cachorro. & cada dia era ung dos irmios dele, dos primos ¢ até €o merda diferente. O bom é que por um to minha ceria jncomodar, E aos poucos foi desistindo ler mania de beljar a Fo nesse mesmo tempo oe nH se tem ninguém para des, Que é até um bom negdcio quan fi ‘brava da minha mae, j aman Toda aver que cu bejjava, eu MES No comecei com as paredes do quarto, porque eram mais limpas. \; paredes do 4! » P 1p on it tempo, scolher mais, porque pare: nto, com 0 de ' i que além de beij parede em qualquer lugar Mais oe orate See una a 2 gente também podia se aoe es eee nieces de repente todas aquelas pareces a ene deixavam de pay minha cabeca ¢ passaram a ser as gurias af duro. Eu nao tinha hora para beijar. Bastava eu ficar sozinho ou ro meu coracao doer e eu tascava um beijo melecado. Garanto que, se meu pai me pegasse com mais essa, iria arrebentar minha cabeca. Mas eu sinceramente acho que meu pai devia beijar uma parede, acho que todo mundo um dia devia beijar uma parede. Passei a ir a escola pela merenda. Mas 0 fato é que nao tinha muita paciéncia com os professores. Quando se é hiperativo, porém, as atengées se voltam todas para a gente € a coisa fica até divertida, pois os professores se incomodam com alunos agitados. Lembro- -me da professora Ernestina, que ja estava para se aposentar. Ela ja tinha suportado o ensino por muito tempo. Estava cansada. E dizia que a culpa era nossa, pois a gente nao tinha respeito e também nao estévamos interessados. E todo dia a gente escutava a mesma coisa. E deve ser por isso que o ensino deixa os professores cansados. A professora Ernestina tentava explicar 0 portugués pra gente. Enchia ohn gue cones 5 “tu’, “ele, “nds, “vos’, “eles”. A gente f hia quem ficava na frente Wate, in re ened para o quadro: “Ey edi u Pro esscra) Ernestina dizia apontando a, “tu vendias’, “ele vendia’. Dai algue™ tinha que repetir: epetir: Pec Me repetir: “eu vend, “tu vendias”, “ele vendia”.. € assi™ passei a nao é sent a) |26 Digitalizado com CamScanner por diante. Depois ela escolhia outra da frente ¢ fazia um puxa-saco repetir “eu Ii’, “tu leste’, “ele leu’, “nds lemos”... “Professora’, interrompi, um dia, bruscamente, A professora nesse momento parou a aula e arrumou seus éculos de professora - nés dizfamos que os culos a faziam ficar mais jovem. Af ela me disse para nao atrapalhar porque se eu ndo queria aprender a conjugagao tinha muita gente que queria. O que nao era verdade, pois era s6 dar uma boa olhada na turma para perceber que ninguém estava a fim de conjugar coisa nenhuma. “Mas, professora’, insisti, “eu li” “Ora, Joao, nao se meta nas leituras dos colegas.” “Nao estou me metendo, professora, s6 estou dizendo que eu lium livro? “Como assim?!” perguntou ela. “Eu li um livro” “Que livro?”, perguntou cabreira. “Dom Quixote’, eu disse. Nessa hora a professora Ernestina me olhou meio desconfia- da, Perguntou onde eu tinha arranjado 0 livro para ler. Eu respondi que, quando eu morava na Lapa, 0 livro apareceu sem eu saber, e que ele servia para nao deixar a nossa mesa cair no chao. Mas acontece que os professores néo conseguem escutar os alunos por muito tempo, principalmente os hiperativos como eu. Ai ela foi logo mudando de assunto, dizendo que agora nao era hora de historinhas, e continuou com o “ele vendia”. De vez em quando a professora Ernestina desistia da conjuga- gio e passava a falar da vida dela, da infincia. Coisas que, para nés, eram de muitos séculos atrés, Um dia perguntei a ela por que nunca tinha se casado. Dona Ernestina me olhou atravessado, e ia comecar asua lista de sermées. Mas me salvei dizendo que ela aparentava ter sido uma mulher muito bonita quando jovem. E que muitos rapazes devem ter sido apaixonados por ela. Rapidamente dona Ernestina mudou seu semblante, sentiu-se envaidecida e até mexeu no cabelo como se ainda fosse moga. Daf ela disse que ja tinha se casado uma vez, mas que nao deu muito certo. Nao teve filhos porque nao quis. 27| Digitalizado com CamScanner Depois disse que a vida ¢fita para passarmos sem perceber que ja estamos vivendo, Assim 0 tempo passou para ela € dona Ernestina no teve tempo de conhecer o amor novamente. i i i i ii s a nossa tur- Aquilo foi a coisa mais triste de se ouvir. Mesmo ito hiperativa, fi ontade de chorar. Menos ma, que era muito hiperativa, ficou com v Luizinho, que gostav: a do, mas que pelo menos tel E lebochar de tudo, q e gostava de d A i hidos dele. E ficou quieto, dando os grun! é uma coisa que a gente i é rumo daquela conversa, porque a tristeza pe nio deve ficar procurando, Perguntei a ela com: ina li ‘imas e se entu- de estudante. A professora Ernestina limpou as pee oseent siasmou, dizendo que no seu tempo, para apren cra % nao tinha toda essa mordomia, nao, de ter uma escola pertinho nem ela. ter uma professora boa que ; 7 “No meu tempo’, ela dizia, “eu tinha que viajar de carroca por uma hora, atravessar um rio numa canoa € depois caminhar no meio do mato para fazer os estudos, € ai de nds se alguém chegasse atrasado: a professora logo nos chamava de burro e man- dava a gente ajoelhar no milho ou dar a mao para ela bater com arégua” Embora a gente achasse engracado tudo aquilo que ela dizia, ninguém ria, porque, por via das dtividas, a professora Ernestina conservava uma régua bem grossa de madeira em cima da mesa. Ela nunca nos castigou, nem nos chamava de burro. Eu sentia que, mesmo sendo chata, ela gostava de nds. As vezes a gente bagungava mesmo, nao fechava a boca, levantava toda hora, e a professora Er- nestina ia tomando irritagao, pedia siléncio, e a gente continuava, até que ela pegava a régua e batia com toda a forca na mesa. Depois ela comegava o discurso que todos nés quase ja sabiamos de cor, Steer zr gun manda que esté 0 respeito, Em See ee Me iw Neon ae colocava as duas mos na ane i Para sua mesa, tirava os éculos, sentiamos uma pena, ¢ até on i = quase chorava. Nesse momento, Co de respito pra ela, Depois a professors ch fee een aes que nao era paga para cuidar de crinn sora choramingava dizendo ga mal-educada. |28 Digitalizado com CamScanner

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