A Arqueologia em contextos urbanos tem-se revelado, nos últimos anos, uma poderosa ferramenta para o entendimento das práticas e vivências passadas, sobre as quais a documentação escrita pouco fala. Um desses campos é o das louças...
moreA Arqueologia em contextos urbanos tem-se revelado, nos últimos anos, uma poderosa ferramenta para o entendimento das práticas e vivências passadas, sobre as quais a documentação escrita pouco fala. Um desses campos é o das louças domésticas no Brasil Colônia.
Pretende-se, aqui, correlacionar os dados oriundos de escavações em contextos urbanos nas cidades de Salvador e Rio de Janeiro, nomeadamente os acervos cerâmicos recolhidos e que remetem tanto para produções europeias de faianças (portuguesas, espanholas, italianas e holandesas) como para porcelanas chinesas. As áreas em foco se beneficiavam de uma localização central e privilegiada na malha urbana, ocupadas pelo alto funcionalismo régio e religioso, bem como pela rica classe mercadora.
A Praça da Sé em Salvador da Bahia desde cedo se constituiu como praça pública de excelência no espaço urbano da capital, orientada para o mar e sobranceira à escarpa que ainda hoje divide a cidade em parte baixa e parte alta. Como praça intermédia entre o Terreiro de Jesus e a Praça do Palácio do Governador, no extremo oposto da cidade, situava-se no centro político, administrativo e religioso da capital, para ela convergindo as principais artérias urbanas que serviam o Palácio do Governador, a Câmara e a Cadeia, a Santa Casa da Misericórdia e o Colégio Jesuíta. No entanto, nem a sua função como adro da Sé primacial evitou que fosse utilizada pelos escravos para descarte de lixos domésticos das habitações ao seu redor, obrigando mesmo à promulgação de legislação que proibia esses descartes, os quais acabaram por produzir uma zona arqueologicamente muito rica.
Por seu lado, no Rio de Janeiro, no coração daquele que se tornou, a partir do século XVII, o centro político, religioso e econômico da cidade – o entorno do Largo do Paço, atual Praça XV de Novembro - junto ao prédio da Cadeia, do Palácio dos Vice-Governadores, do Convento do Carmo, da antiga Sé e do principal cais de embarque e desembarque da cidade, além de outras expressões do poder civil e religioso, a denominada Rua da Cadeia, hoje Rua da Assembleia, tornou-se uma artéria importante na malha urbana da cidade nos séculos XVIII e XIX, ao dar acesso à rua Direita, ligando-a ao convento franciscano no Morro de Santo Antônio. Em escavaçoes realizadas em terreno nessa rua foram recuperados materiais provenientes do despejo de unidades domésticas do século XVIII, com destaque para a expressiva quantidade de faianças europeias e porcelanas orientais.
A correlação das louças exumadas destas duas áreas permite apresentar um elenco representativo das produções europeias e orientais que faziam parte do aparato móvel de habitações abastadas das duas cidades entre os séculos XVII e XVIII, revelando circuitos comerciais de aquisição bastante similares em ambas as cidades, destinadas a alimentar um gosto particular por um serviço de mesa de qualidade, profusamente decorado, intensamente colorido e brilhante.