Estudos
clássicos:
desdobramentos
Adílio Junior de Souza
ESTUDOS CLÁSSICOS: DESDOBRAMENTOS
Organizador
1
Adílio Junior de Souza
(Organizador)
Araraquara
Letraria
2022
Estudos clássicos:
descobramentos
PROJETO EDITORIAL
Letraria
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
Letraria
CAPA
Letraria
REVISÃO
Letraria
SOUZA, Adílio Junior de. (org.). Estudos
clássicos: desdobramentos. Araraquara:
Letraria, 2022.
ISBN: 978-65-86562-90-3
1. Estudos clássicos. 2. Latim.
3. Mundo romano. 4. Línguas.
CDD: 470 – Língua latina
Os textos aqui publicados são de inteira responsabilidade
de seus autores e organizadores.
Esta obra ou parte dela não pode ser reproduzida por
qualquer meio, sem autorização escrita dos autores e
organizadores.
Conselho editorial
Ana Maria César Pompeu (UFC)
José Alberto Miranda Poza (UFPE)
Soraya Paiva Chain (UFAM)
Dedicatória
Ao meu eterno magister, muito querido, Prof. Dr. Francisco
Gomes de Freitas Leite. Agradeço por ter me ensinado
as primeiras letras latinas e por ter me mostrado o quão
maravilhoso é a história do mundo romano.
SUMÁRIO
Prefácio
6
Apresentação
9
A Gigantomaquia latina de Claudiano – uma análise
11
Robson Rodrigues Claudino
O papel de Ceres na (re)organização cósmica: a criação das estações do ano,
Livro V das Metamorfoses, de Ovídio
42
Letícia Maria Quintella Viana
Literatura em podcast: a adaptação da obra A Eneida, de Virgílio, para o
audiodrama
58
Isadora Lima Ramalho
Sobre A Divina Comédia, de Dante Alighieri
69
Cícero Émerson do Nascimento Cardoso
Retórica e Filosofia no pensamento de Isócrates
90
Marta Maria Aragão Maciel
Ângela Lima Calou
As inscrições parietais da Memoria Apostolorum: uma reflexão sobre grafites
e fórmulas votivas
101
Vanessa de Mendonça Rodrigues
Sobre o organizador
117
Sobre os autores
119
7
Prefácio
Esta coletânea, intitulada Estudos Clássicos: desdobramentos, tão competente e zelosamente
organizada pelo Dr. Adílio Junior de Souza, tem múltiplos méritos, dos quais um é a valorização
do imanente lastro humanístico, necessário não só ao universo das Letras, mas também à
formação de leitores de outros universos do saber.
Ao encontro desse escopo epistemológico vem o feliz título desta coletânea, no qual o
primeiro componente, os Estudos Clássicos, partindo da cultura grega e da latina, alcança a
universal Divina Comédia, de Dante Alighieri, antes de chegar à contemporaneidade do podcast.
Esse escopo literário-cultural foi oferecido brilhantemente pelos autores dos textos aos leitores.
Se esse primeiro componente do título dependeu exclusivamente dos autores dos textos,
o segundo, Desdobramentos, dependerá exclusivamente da recepção dos leitores, no que
concerne ao que podem incorporar à sua visão de mundo e de homem.
Dessarte, para além desse encontro entre autor e leitor, a leitura desta obra, com esse
caráter humanístico, é de suma importância não só para a formação intelectual, mas também
para o estímulo à reflexão sobre o mundo, sobre o homem, sobre o próprio leitor, pelo que
serve a este de oportunidade de aperfeiçoamento dos valores universais.
Outra virtude desta obra é o fato de ela oferecer ao ambiente intelectual-acadêmico uma
das facetas da diversidade cultural, propugnando, assim, uma visão plural sobre o pensar e o
agir humanos, porque a realidade é intrinsecamente complexa.
Diante de todos os méritos embutidos nesta obra, se é verdade que seu organizador, Dr.
Adílio Junior de Souza, e todos os autores dos textos estão de parabéns, pelo engajamento
sociocultural e intelectual, não é menos verdade que seus leitores também estão, pela
oportunidade de reflexão e consequente elevação intelectual-espiritual.
Ex corde!
Prof. Dr. Josenir Alcântara de Oliveira
Universidade Federal do Ceará
Fortaleza, 10 de novembro de 2021
8
Apresentação
Passado pouco tempo do lançamento da obra Estudos Clássicos e Filológicos, igualmente
publicada pela Letraria Editora, decidi trazer à luz uma outra coletânea. Dessa vez, com foco
específico nos estudos de vertente clássica, o que não deixa de ser também um empreendimento
filológico, já que a Filologia é uma ciência muito antiga que, originalmente, era voltada para o
exame de obras literárias, com ênfase nos poemas homéricos.
A obra Estudos Clássicos: desdobramentos é, assim como outras que estão em produção
nesse momento, resultado frutífero do projeto de pós-doutoramento Tópicos avançados de
Linguística Românica: o uso do latim como fonte para a Linguística Histórica, realizado no
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (PPGL/
UFPE-2021-2022), em que conto com a supervisão do prof. Dr. José Alberto Miranda Poza.
Tendo em vista a divulgação científica, acredito que abrir o caminho para jovens (e promissores)
estudiosos, é uma atitude imperativa, principalmente em tempos de obscurantismo, em que
a Educação perde cada dia mais seus recursos. Investir na produção acadêmica, portanto,
é indispensável. Uma obra como esta, que ora apresento, retoma estudos sobre a Literatura
Latina, Teoria Literária, Filosofia e Retórica, áreas tão necessárias à formação acadêmica.
Os estudos que integram a obra são oriundos de pesquisadores das seguintes instituições
de ensino superior brasileiras: Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade
Regional do Cariri (URCA), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Federal da
Paraíba (UFPB), Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Universidade Federal da Bahia
(UFBA) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
No capítulo de abertura desta coletânea, intitulado A Gigantomaquia latina de Claudiano – uma
análise, Robson Rodrigues Claudino realiza uma análise do poema mitológico Gigantomaquia
latina, de autoria do poeta alexandrino Cláudio Claudiano. O texto, cuja data de composição é
controversa, narra a batalha entre os deuses do Olimpo e os gigantes, filhos da deusa Terra. A
análise proposta visa explorar as construções de imagens presentes no texto original, que são
típicas do modus scribendi de Claudiano, isto é, o uso de recursos sonoros, símiles, abundância
de recursos imagéticos que conferem vivacidade à narrativa do poema, dentre outros pontos,
o que torna a obra um grande quadro a ser contemplado pelo leitor.
No capítulo seguinte, Letícia Maria Quintella Viana nos presenteia com O papel de Ceres
na (re)organização cósmica: a criação das estações do ano, Livro V das Metamorfoses, de
Ovídio, em que analisa a passagem compreendida entre os versos 341 e 571, do Livro V,
das Metamorfoses, buscando entender como Ceres, deusa que representa a fertilidade das
lavouras, é responsável por fazer com que Júpiter, na condição de mantenedor da ordem,
suprima a duração da primavera e estabeleça as estações do ano tal como as conhecemos.
9
A autora busca compreender os recursos imagéticos utilizados por Ovídio que evidenciam a
concomitância na qual ocorrem a depreciação de ambos, Ceres e o cosmos, bem como realiza
a análise da maneira pela qual suas ações levam Júpiter a instituir o labor aos homens da raça
de prata.
Em Literatura em podcast: a adaptação da obra A Eneida, de Virgílio, para o audiodrama,
Isadora Lima Ramalho desenvolve um estudo a partir da radionovela Eneida é uma fanfic,
uma adaptação que a autora fez da epopeia de Virgílio. O estudo analisa, a partir do primeiro
capítulo do drama radiofônico, as diferenças e semelhanças entre as duas obras, levando em
consideração os distintos gêneros (epopeia e radiodramaturgia) e contextos históricos culturais.
Entre as descobertas da pesquisa, a autora conclui que o conceito de fidelidade dentro de
uma adaptação é problemático, principalmente, quando a obra fonte e a obra de chegada se
encontram em contextos e gêneros distintos.
No capítulo Sobre A Divina Comédia, de Cícero Émerson do Nascimento Cardoso, o autor
apresenta, de forma panorâmica, a primeira parte dessa obra: o Inferno. Em seguida, ele realiza
uma leitura crítica do Canto XXVI, ocasião em que observa aspectos estruturantes da obra e
reflete acerca da sistematização de valores da tradição judaico-cristã em harmonia com valores
da Antiguidade Clássica.
Em seguida, no capítulo sobre Retórica e Filosofia no pensamento de Isócrates, Marta
Maria Aragão Maciel e Ângela Lima Calou buscam refletir acerca do pensamento de Isócrates
– em particular no texto Contra os sofistas –, autor que tematizou a Retórica como um saber
fundamental para a vida política. Aliás, tal reflexão evidencia que a oposição e afastamento que
a posteridade estabeleceu entre Retórica e Filosofia se mostra, na origem, como antinatural.
Para as autoras, Retórica e Filosofia constituem saberes fundamentais surgidos na Antiguidade
Clássica, contexto no qual uma e outra, no cenário da pólis, surgem como filhas do logos, do
discurso racional.
E, finalizando a coletânea, em As inscrições parietais da Memoria Apostolorum: uma
reflexão sobre grafites e fórmulas votivas, Vanessa de Mendonça Rodrigues discorre acerca
dos grafites, em especial, aqueles que são realizados em grupo e apresentam o emprego
de fórmulas. A partir de uma breve análise do conjunto epigráfico do monumento cristão à
Memoria Apostolorum (Roma, século III), a autora busca demonstrar como esse tipo de fonte
pode apresentar informações valiosíssimas no que tange aos estudos históricos e aos estudos
linguísticos.
Prof. Dr. Adílio Junior de Souza
Universidade Federal de Pernambuco
Recife, 01 de novembro de 2021
10
A Gigantomaquia latina de
Claudiano – uma análise
Robson Rodrigues Claudino
Introdução
O final do século IV e o início do V da era comum configuraram uma Roma quase totalmente
cristã, envolta em guerras internas, entre cristãos e pagãos, e externas, com as inúmeras
tentativas de invasões de povos bárbaros. É nesse contexto que Cláudio Claudiano irá iniciar
sua carreira na urbe.
Visto como o último grande poeta do império romano, Claudiano, mesmo com a decadência
das letras e literatura latina no contexto da antiguidade tardia, se mostrará um mestre na
composição dos diversos poemas aos quais irá se dedicar ao longo de sua atividade poética.
Sua produção se alterna com maestria entre os variados gêneros. Claudiano vai do épico ao
epitalâmio, dos epigramas aos poemas invectivos, cartas, versos fesceninos. O poeta também
alterna a métrica, ora compõe em hexâmetros, ora em dísticos elegíacos.
Ademais, é importante ressaltar que, embora sua produção poética seja vasta em questão
de gênero, foi por meio da propaganda do general Estilicão que o poeta atingiu a fama e
recebeu inúmeros favores, e essas produções foram, por muito tempo, usadas como fontes
por historiadores que buscaram se debruçar sobre esse recorte temporal no qual o poeta está
inserido.
Contudo, faz-se necessário destacar que, como mencionado acima, embora os poemas
de cunho propagandista tenham levado o poeta à fama, é nos carmina minora, como afirma
Casón (2018), que toda a originalidade do poeta é ressaltada.
Os carmina minora são um conjunto de 53 composições de temáticas e metros variados,
atribuídas ao poeta. O último poema que fecha esse grupo de composições é o objeto deste
trabalho, a Gigantomaquia Latina.
Assim, o objetivo do estudo é apresentar a análise do poema Gigantomaquia Latina. Iremos
nos valer dos apontamentos feitos por Cameron (1970) acerca do estilo e das técnicas do
poeta, a fim de entendermos seu modus scribendi. Em seguida, recorreremos aos tópicos de
análise de poemas explorados por Candido (2006), além de consultarmos os artigos de Novak
(1996) e Natividade (2010), cujas propostas de análise estabelecem um estudo das estruturas
do poema, dos efeitos sonoros e das imagens criadas a partir das construções oracionais.
12
1 Sobre Cláudio Claudiano e suas obras – um
breve histórico
Mesmo as glórias e os favores oferecidos a Cláudio Claudiano não foram suficientes para
impedir que o poeta caísse no desconhecimento, e cabe a nós, estudiosos modernos, torná-lo
conhecido em nosso tempo.
É desconhecida, outrossim, sua data de nascimento. Cameron (1970, p. 1, apud CERQUEIRA,
1991, p. 7) nos diz ser impossível determinar a data exata do nascimento do poeta, mas
especula-se que ele teria nascido em 370 d. C. Diferentemente do que possamos supor ao
ouvirmos o nome Claudius Claudianus, o nosso poeta não era de Roma nem de outra parte
do império. Natural de Alexandria, no Egito, o autor tinha como língua materna o grego, e não
o latim, e teria mudado para a capital do império em 394.
A origem egípcia de Claudiano nos é atestada por meio de menções a Alexandria em
alguns de seus poemas: em Epistula ad Gennadium exproconsule (Carta para o ex procônsul
Genádio), o poeta faz referência ao rio Nilo (nostro cognite Nilo, v. 3). No poema Deprecatio
ad Hadrianum (Pedido de desculpas a Adriano), Claudiano faz alusão a Alexandre Magno, ao
mencionar “este fundador da pátria” (conditor hic Patriae v. 20). Ainda no mesmo poema, ele
cita a ilha de Faros (nota Pharos, v. 57) e novamente o Nilo, no v. 58.
Outro dado sobre o alexandrino merece destaque: uma das fontes mais antigas a mencionálo, Santo Agostinho (1996, p. 546), faz apenas uma breve referência a Claudiano, colocando-o
como um poeta pagão. Entretanto, essa informação ainda é assunto de divergência entre os
estudiosos modernos, pois há considerações, como aponta Claudino (2020, p. 137), sobre a
possibilidade de Claudiano ter se convertido ao cristianismo. Sobre essa suposição, Gonzáles
(2014, p. 486) afirma: “[...] em uma sociedade predominantemente cristã, um pagão dificilmente
seria acolhido por uma das mais importantes famílias da época, ascenderia à aristocracia
romana e, mais tarde, tornar-se-ia propagandista oficial da corte ocidental do império”.
O contexto em torno da sua chegada a Roma conspirava para que o poeta não conseguisse
êxito em seus propósitos, considerando o momento conturbado pelo qual o império passava.
As constantes intrigas internas entre cristãos e pagãos e as frequentes tentativas de invasões
bárbaras conturbavam o cotidiano dos romanos, tornando-os muitas vezes hostis aos estrangeiros.
Mas aconteceu exatamente o contrário: Claudiano deixou Alexandria por volta de 394 e logo foi
acolhido por uma das principais famílias cristãs da sociedade romana: os Anício. Provavelmente
o poeta levara consigo uma carta de referência de algum preceptor de Alexandria. Em Roma,
ele rapidamente fez amizade com dois membros dessa família ilustre, os irmãos Olíbrio e
Probino. O poeta passa até a se denominar sodalis (companheiro, amigo) de Olíbrio.
13
Além disso, essa amizade entre o alexandrino e os irmãos e futuros cônsules possibilitou
que o poeta iniciasse sua carreira. No ano seguinte à sua chegada, em 395, Olíbrio e Probino
se tornaram cônsules conjuntos, e tal acontecimento levou Cláudio Claudiano a compor e recitar
sua primeira obra em latim, um panegírico em honra dos dois irmãos e amigos (Panegyricus
dictus Probino et Olybrio consulibus), conforme comenta Claudino (2021).
Faz-se importante, ainda, uma rápida consideração sobre a carreira do poeta. A fluidez com
a qual escrevia, a competência ao trabalhar com determinados gêneros poéticos, e a forma
clássica, imitatio dos antecessores Virgílio e Ovídio, por exemplo, são traços que chamam
atenção em sua criação, e certamente chamaram a atenção também dos antigos. Essa habilidade
do poeta de Alexandria em desenvolver textos tão clássicos quanto os dos grandes vates que
vieram antes dele se dera não pela inspiração das Musas, mas pelo fato de Claudiano ter sido
um poeta profissional. Ele fora um homem culto que, mesmo falante natural do grego, tinha
profundo conhecimento da língua e literatura latina e manejava muito bem as técnicas da poesia
da língua do Lácio. Sobre isso, Bejarano (1993, p. 17-18) comenta:
Claudiano sem dúvida passaria alguns anos estudando em Alexandria. Astronomia, matemática
e medicina foram as especialidades desta cidade, além de gozar de grande reputação nas
disciplinas mais tradicionais como retórica e filosofia. Mas também é bem possível que ele tenha
estudado em Atenas, Antioquia ou Constantinopla.
No mesmo ano em que ocorreu a recitação do panegírico, o imperador Teodósio, o Grande,
morre, e o império acaba sendo repartido entre seus dois filhos. Arcádio ficou com a parte
Oriental do império, cuja capital era Constantinopla, enquanto Honório se estabeleceu na parte
Ocidental. Essa mudança afetou a vida de Claudiano, que foi convidado a integrar a corte de
Honório, em Milão. Assim se inicia a carreira de propagandista do poeta. O general Estilicão,
tutor dos jovens imperadores, a fim de contornar a desconfiança do povo e convencer de que
Teodósio o designara para a tarefa de tutor dos jovens, convidou nosso poeta para, por meio
de poemas, enaltecer seus feitos e persuadir o povo.
Desse modo, Claudiano permaneceu em Milão entre 395 e 400. Seguindo sua agenda
propagandista, em fevereiro de 400, segundo Bejarano (1993, p. 21), o poeta foi a Roma para
recitar o De consulatu Stilichonis III (Sobre o terceiro consulado de Estilicão). Graças ao status
que alcançara enquanto poeta propagandista, entre maio e junho de 402, Claudiano ganhou
uma estátua, que foi erguida em sua honra no fórum de Trajano. Continuando suas viagens,
o poeta, entre 400 e 401, esteve na África e lá se casou com uma moça, filha de um dono de
terras que residia no norte do continente, provavelmente na Líbia. Claudiano retornou a Roma
em 402 e recitou, no templo de Apolo, seu épico De bello Getico (Sobre a guerra gética). Alguns
meses depois, ainda em Roma, ele recitou o Panegyricus de sexto consulatu Honorii Augustii
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(Panegírico sobre o sexto consulado de Honório Augusto). Depois da recitação desse poema,
no ano de 404, nos deparamos com o silêncio de Claudiano. Acredita-se que ele morrera
nesse ano, aos 35 anos e no auge de sua carreira, pois, com toda certeza, ele teria celebrado
o segundo consulado do general Estilicão em 405.
Considerando que o poeta tenha se tornado célebre e notório por meio de seus poemas
puramente políticos, devemos ressaltar que suas obras vão além da temática política. Claudiano
se debruçou sobre gêneros e temáticas diversas, compondo desde poemas épicos a poemas
de circunstância. Suas obras estão organizadas em dois grupos: o dos carmina maiora, e o
dos carmina minora1.
Estabelecendo um breve esquema, encontramos no primeiro grupo:
1. Os poemas históricos: que compreendem os panegíricos, poemas invectivos e os
épicos. No geral, são textos que celebram os feitos dos irmãos Olíbrio e Probino, do
general Estilicão e do imperador Honório, além dos poemas que atacavam os rivais
do general e de Augusto;
2. O poema mitológico O rapto de Prosérpina: um épico mitológico que narra o mito do
rapto da deusa Prosérpina por seu tio, Plutão, e a saga da mãe Ceres em busca de
sua filha. A obra contém 3 livros, sendo considerada incompleta.
Os carmina minora englobam:
1. Um grupo de 53 composições com metros e temáticas heterogêneas. Encontramos
cartas em versos, epigramas, panegíricos, ecphraseis, e a Gigantomaquia Latina,
objeto deste trabalho;
2. O Apêndice dos poemas ilegítimos ou suspeitos (Carminum uel spuriorum uel
suspectorum appendix), composições de origem duvidosa que são atribuídas a
Claudiano;
3. Carmina graeca, um grupo de poemas em grego cuja data de composição acreditase ser anterior a ida de Claudiano a Roma.
A Gigantomaquia Latina é um poema de temática mitológica composto em hexâmetros
datílicos. A narrativa se dá em torno da guerra entre os deuses e os gigantes, que foram gerados
pela deusa Terra. Ela estava compadecida dos sofrimentos dos Titãs no Tártaro e declarou
guerra aos céus. O texto original chegou incompleto aos nossos dias, contendo apenas 128
versos que encerram abruptamente a narração dos fatos.
1 Cf. Claudiano (1993, p. 24-26).
15
Ademais, é importante ressaltarmos que as informações que chegaram até nós sobre
o poema são bastante escassas. A data de composição, por exemplo, é incerta. Cameron
(1970) defende que a composição do texto é anterior à morte do autor, por isso a inconclusão
do poema. Contudo, críticos modernos, como Fargues (s.d., p. 18, apud CAMERON, 1970)
defendem que a Gigantomaquia Latina antecede a chegada de Claudiano a Roma, pois
alguns elementos “joviais”, tais como, hipérboles e técnicas de composição semelhantes, são
encontrados igualmente na Gigantomaquia Grega, também de Claudiano. Assim, a obra estaria
incompleta porque Claudiano interrompeu a composição por causa da sua ida a Roma.
Apesar da consideração feita por Fargues, as observações apresentadas por Cameron
nos soam mais convincentes. Se levarmos em conta o contexto da sociedade romana da
época, veremos que o império enfrentava diversos confrontos contra povos bárbaros. Conforme
Claudino (2021) comenta, eram comuns os usos de metáforas envolvendo tanto o imperador
Honório e o general Estilicão quanto os povos inimigos. Além das metáforas, o tema da batalha
entre os deuses olímpicos e os gigantes funcionava como uma alusão ao triunfo da ordem
sobre o caos. Sobre isso, Coombe (2018, p. 96) tece o seguinte comentário:
No entanto, nas circunstâncias de sua composição poética, a Gigantomaquia ressoa de mais
maneiras do que simplesmente adotar os níveis mais elevados do poético e do heroico: ao invés
de ser simplesmente uma alusão, o engajamento das situações universais e políticas dos poemas
com uma recriação do mito da Gigantomaquia fornece um amplo escopo para a representação
de poder harmonizado versus poder descontrolado, os deuses, heróis e monstros do mundo da
história e do mundo real, e o triunfo final do bem sobre o mal.
Em suma, os deuses representavam o bem – os romanos, enquanto o mal era associado
aos bárbaros – os gigantes. E a Gigantomaquia representava a guerra entre o caos e a ordem,
com o triunfo da ordem, dos deuses, dos romanos.
2 A Gigantomaquia Latina: análise
O poema Gigantomaquia Latina pode ser visto como um grande quadro incompleto,
construído pela soma de outros quadros menores. A principal justificativa para essa forma de
ver o poema se dá por Claudiano ser um poeta que tem como uma das principais características
de suas obras, em especial as épicas, a maneira como cria imagens descrevendo as cenas
e narrando a história. Casón (2018, p. 21) tece um breve comentário sobre essa técnica do
poeta: “a intenção do autor é entrelaçar diferentes unidades dentro da obra, passando de
uma composição narrativa, entremeada por diálogos, a uma puramente descritiva”. Também
destacamos como traços imagéticos do autor alguns recursos de estrutura do próprio poema,
como a escolha de palavras, a posição das palavras no hexâmetro e recursos sonoros causados
por aliterações e assonâncias, por exemplo.
16
O primeiro quadro se inicia no verso 1 e vai até o verso 5:
Terra parens quodam caelestibus inuida regnis
Titanumque simul crebros miserata dolores
omnia monstrifero conplebat Tartara fetu,
inuisum genitura nefas, Phlegramque retexit
5 tanta prole tumens et in aethera protulit hostes.
A mãe Terra, certo dia, com inveja dos reinos celestes
e, ao mesmo tempo, compadecida do sofrimento incessante dos Titãs
preenchia todo o Tártaro com uma ninhada monstruosa;
um crime inédito geraria, e revelou o Flegra,
5 entumecida com uma prole gigantesca, e lançou inimigos contra o céu.
A abertura do poema se dá com a palavra Terra, que aqui se refere à deusa Terra. Ela é
tida como figura central da narrativa e é a causadora de toda a ação que será desenvolvida ao
longo da obra. Logo nos dois primeiros versos, Claudiano nos dá os motivos que remetem ao
nome do poema: A Gigantomaquia – a batalha entre deuses e gigantes. Esses motivos estão
expressos nos versos 1 e 2, pelo adjetivo inuida, “invejosa”, “com inveja”, e pelo particípio
passado miserata, “compadecida”, ambos estando ligados ao substantivo Terra. Essas duas
formas adjetivas ainda nos revelam que a divindade se encontra dividida entre dois sentimentos
distintos: no verso 1 ela é adjetivada como caelestibus inuida regnis, “com inveja dos reinos
celestes”, enquanto no verso 2 ela está Titanum... crebros miserata dolores, “compadecida
do sofrimento incessante dos Titãs”, que foram condenados à prisão e a castigos penosos no
Tártaro logo após a Titanomaquia. Mesmo inuida e miserata sendo sentimentos bem diferentes,
a forma como aparecem no poema nos dá a impressão de que a Terra os sente ao mesmo
tempo, e essa noção de simultaneidade fica expressa pelo advérbio simul, no verso 2.
Aponto, no verso 4, para o verbo conplebat, “preenchia”, no imperfeito do indicativo e que
traz a ideia de que a ação era contínua antes de ser interrompida. Melhor explicado: pelo fato de
a genitora estar “com inveja” e “compadecida”, temos a impressão de que a ação de preencher
o Tártaro não só estava sendo planejada havia algum tempo, como também executada. Um
ablativo no verso 3, monstrifero...fetu, “com uma ninhada monstruosa”, nos revela a matéria
com que o Tártaro era preenchido: os gigantes.
Sobre a prole da genitora, nos versos em que é mencionada, Claudiano faz uso de dois
ablativos que nos remetem a como é essa prole, mesmo que de forma não explícita. No verso
3, os gigantes são descritos como monstrifero... fetu, que poderia estar referindo-se à sua
aparência: uma ninhada monstruosa, horrenda. A segunda construção em ablativo aparece no
17
verso 5, tanta prole, fazendo menção ao tamanho, então sabemos que se trata de criaturas
monstruosas e gigantescas.
A primeira descrição física da Terra nos é dada, no verso 5, por meio da forma tumens,
“entumecida”, “inchada”, resultado da ação que estava sendo praticada no verso 3, durante um
tempo que não aparece descrito na obra, mas sabemos que é anterior ao início da narrativa
por causa do tempo de conplebat. Tumens é uma forma verbal, particípio presente de um verbo
intransitivo, não exigindo complemento, que se comporta como um adjetivo e está ligado à
Terra, e aparece acompanhado por um ablativo de instrumento, tanta prole. Como ação final, os
gigantes saem do interior da Terra, e como verbo principal temos protulit (v. 5), cujo sentido é o
mesmo que “levar para adiante”, “tirar para fora”, “impelir”, e que traduzimos por “lançou”, por
causa da presença de in aethera (v. 5), “contra os céus”, um acusativo regido pela preposição
in que indica movimento em direção a algum lugar: os hostes (v. 5), “inimigos”, ou seja, os
gigantes, foram lançados contra os céus.
A saída dos filhos da Terra de seu interior se deu de forma violenta ou barulhenta, como
nos fica expresso no próximo quadro, que vai do verso 6 ao 8:
fit sonus: erumpunt Erebo necdumque creati
iam dextras in bella parant superosque lacessunt
stridula uoluentes gemino uestigia lapsu.
Um barulho se fez; rompem do Érebo e os ainda não nascidos
já preparam as destras para a guerra e provocam os Súperos,
movendo seus passos sibilantes com o duplo deslizar.
O momento da saída é marcado por um barulho logo no início do verso: fit sonus, “um
barulho se fez” (v. 6), que nos é reforçado tanto pelo verbo erumpunt, “rompem” (v. 6), que,
segundo algumas traduções dadas por Saraiva (p. 432), tem o mesmo sentido de “atirar-se
violentamente”, “sair com violência”, quanto pela aliteração de consoantes oclusivas bilabiais
e da vogal /u/ em erumpunt Erebo, “rompem do Érebo” (v.6), o que nos remete, de forma
mimética, ao som causado pela saída violenta dos gigantes do interior da Terra.
Ainda no verso 6, temos uma menção à outra região dos infernos, sendo a primeira, Tartara,
“o Tártaro”, lugar onde os Titãs estão presos e que a deusa escolheu para gerar sua nova
prole, sendo o ponto de início de muitas coisas, como do ressentimento da deusa Terra pelos
súperos e da vida de sua nova ninhada, por exemplo.
O ablativo Erebo, “do Érebo” (v. 6), diferentemente do acusativo plural Tartara, que pode
ser lido como um ponto de convergência, nos indica o ponto de partida, o local por onde os
necdum... creati, “ainda não criados” (v. 6), vão sair.
18
O principal objetivo da Terra, ao gerar os Gigantes, é combater os deuses como forma de
vingança por todo o sofrimento que eles causam aos Titãs, e para que isso aconteça, ela da à luz
um exército de monstros que já nascem armados, como está expresso no verso 7, iam dextras...
parant, “já preparam as destras”. Dextras faz menção à mão usada para atacar o inimigo durante
o combate, a mão em que se empunha o gládio ou com que se segura a lança, reforçando,
assim, a ideia de que já nasceram armados e prontos para as guerras, in bella (v. 7).
Ao verso 8 cabe uma observação: Claudiano mimetiza o andar dos Gigantes por meio da
aliteração da consoante fricativa /s/ ao lado da líquida /l/ em stridula uoluentes gemino uestigia
lapsu, “movendo seus passos sibilantes com o duplo deslizar”, que nos leva a imaginar o efeito
sonoro provocado pela locomoção dos gigantes, que possuíam serpentes no lugar de seus
membros inferiores.
No próximo quadro, que vai do verso 9 até metade do verso 12, vemos uma alteração astral
causada logo após a saída dos gigantes do interior da Terra:
pallescunt subito stellae flectitque rubentes
10 Phoebus equos docuitque timor reuocare meatus.
Oceanum petit Arctos inocciduique Triones
occasum didicere pati.
Empalidecem subitamente as estrelas, e Febo desvia os cavalos
10 flamejantes, e o medo ensinou a retroceder os caminhos.
A Ursa Menor se dirige ao Oceano, e ambas as Ursas que não se põem
aprenderam a suportar o ocaso.
O evento mencionado nos versos anteriores fez com que os corpos celestes alterassem
suas rotinas e agissem de forma diferente perante os inimigos dos deuses – que agora andavam
livremente sobre a terra.
Observemos de início que nesse grupo de versos há a predominância de palavras que
fazem referência aos astros celestes: stellae, “as estrelas” (v. 9), Phoebus, Febo (v. 10), Arctos,
a Ursa, e Triones, as Ursas (v. 11). Note que todas elas se encontram no caso nominativo,
sendo, assim, o sujeito das ações contrárias descritas. O medo causado pela aparição dos
monstros os levou a agir de forma diferente do que seria de costume, e toda essa descrição
nos apresenta um quadro de caos.
Outro detalhe que nos chama atenção é que os versos são formados por orações curtas;
a partícula –que, equivalente a et, posta no final dos verbos, indica o término de uma oração
e o começo de uma nova, o que também nos cria sucessões rápidas de ações, como se os
19
astros tivessem pressa em alterar suas rotinas. Toda essa rapidez de ações pode nos remeter
ao escurecer, e algumas palavras reforçam essa ideia, como o verbo pallescunt, “escurecem”
(v. 9), inoccidui, “que não se põem” (v. 11) e Occasum, “ocaso” (v. 12), ou simplesmente pelo
retroceder dos cavalos flamejantes guiados por Febo. Sabemos que, na mitologia, Febo guia
o carro do Sol e faz o percurso que dura um dia: vai do nascer ao pôr do sol. Então esse
retroceder, reuocare (v. 10), nos mimetiza uma cena de escurecer.
Do verso 12b ao 35, temos o primeiro discurso do poema, proferido pela deusa Terra, no
qual ela incentiva o combate dos Gigantes contra os deuses e faz promessas aos recémgerados.
tum feruida natos
talibus hortatur genetrix in proelia dictis:
“O pubes dominatura deos, quodcumque uidetis,
15 pugnando dabitur; praestat uictoria mundum.
sentiet ipse meas tandem Saturnius iras,
cognoscet quid Terra potest, si uiribus ullis
uincor, si Cybele nobis meliora creauit.
cur nullus Telluris honos? cur semper acerbis
20 me damnis urgere solet? quae forma nocendi
afuit? hinc uolucrem uiuo sub pectore pascit
infelix Scythica fixus conualle Prometheus;
hinc Atlantis apex flammantia pondera fulcit
et per canitiem glacies asperrima durat.
25 quid dicam Tityon, cuius sub uulture saeuo
uiscera nascuntur grauibus certantia poenis?
sed uos, o tandem ueniens exercitus ultor,
soluite Titanas uinclis, defendite matrem.
sunt freta, sunt montes: nostris ne parcite membris;
30 in Iouis exitium telum non esse recuso.
ite, precor, miscete polum, rescindite turres
sidereas. rapiat fulmen sceptrumque Typhoeus;
Enceladi iussis mare seruiat; Otus habenas
Aurorae pro Sole regat; te Delphica laurus
35 stringat, Porphyrion, Cirrhaeaque templa tenento.”
20
Então a genitora ardente
encoraja os nascidos para o combate com tais ditos:
“Ó jovens que hão de subjugar os deuses, tudo o que vedes,
15 ser-vos-á dado combatendo; a vitória toma o mundo.
Enfim o próprio Satúrnio sentirá as minhas iras,
saberá o que a Terra pode, se sou vencida
por alguma força, se Cibele criou coisas melhores que nós.
Por que é nula a honra da Terra? Por que sempre com penosos
20 prejuízos costuma oprimir-me? Que forma de fazer mal
faltou? De um lado, o infeliz Prometeu, imóvel no vale da Cítia,
alimenta a ave sob seu peito em carne viva;
do outro, a cabeça de Atlas suporta pesos flamejantes,
e pelo branco cabelo gelo aspérrimo endurece.
25 O que direi de Tício, cujas entranhas, combatendo sob um abutre cruel,
nascem para o penoso castigo?
Mas vós, ó exército vingador que vem, por fim,
soltai os Titãs da prisão, defendei a genitora.
Há mares, há montes: não poupai nossos membros;
30 não me recuso ser a flecha para a ruína de Jove.
Ide, peço, desordenai o pólo, destruí as torres
divinas. Que Tifeu roube o trovão e o cetro;
que o mar obedeça às ordens de Encélado; que Oto guie
as rédeas de Aurora diante do Sol; que uma coroa délfica de louros
35 te estreite, Porfirião, e que e que tomai os templos da Cirra.”
A segunda parte do verso 12 nos apresenta outra adjetivação atribuída à divindade: no
verso 1, ela é descrita como inuida, “invejosa”, “com inveja”, tendo “cruel” e “atroz”, como
outros significados, enquanto no verso 12, a Terra é descrita como feruida, “ardente”. Outras
traduções dadas por Saraiva (s.d., p. 482), como “violenta” e “agitada”, nos mostram que ambos
os adjetivos têm sentidos bastante próximos, firmando, assim, a divindade como sendo ardente
de inveja, cruel.
A Terra, genitrix (v.13), encoraja ou excita os gigantes, natos... hortatur (v. 12-13), e fazlhes promessas. Do verso 14 até metade do 17, encontramos alguns verbos e formas verbais
que indicam tempo futuro: destaquemos o particípio futuro dominatura, “que hão de dominar”
(v.14), que é atribuído aos recém-gerados; eles serão os jovens que hão de submeter, dominar
21
os deuses, O pubes dominatura deos (v. 14), e observe-se que essa oração abre o discurso
da genitora.
A Terra promete o mundo e seus governos aos seus filhos, quodcumque uidetis (v. 14),
mas é apenas por meio do combate contra os deuses, pugnando (v. 15), que tudo isso será
dado a eles, dabitur (v. 15).
No verso 16, em sentiet ipse meas tandem Saturnius iras, “Enfim o próprio Satúrnio sentirá
as minhas iras”, temos aliteração da fricativa /s/ e assonância em /a/ que imita o falar repleto
de ira da deusa em relação aos súperos. Temos, em Saturnius, uma sinédoque para se referir
a Júpiter, o rei dos deuses. O adjetivo pode ser lido como “de Saturno”, e costuma ser usado
para referir-se a algum deus olímpico que seja filho de Saturno, como Juno (cf. Virg, En, 4.
537), por exemplo, e, nesse caso, Júpiter.
A deusa está inflamada, irada, faz ameaças, sentiet... meas... iras (v. 16), e ainda enaltece
as suas potências, cognoscet quid Terra potest (v. 17), com verbos no futuro, como quem
estivesse certa da vitória e previsse as ruínas para seus inimigos.
O ablativo de comparação no verso 18, nobis, “que nós”, coloca a Terra e seus filhos em
comparação às criações de Cíbele, ou seja, os deuses, si Cybele nobis meliora creauit (v. 18),
posto na condicional, cuja oração principal se encontra no início do verso anterior.
No verso 19, iniciam-se os questionamentos da divindade; as aliterações em /r/ e /s/ no
mesmo verso nos sugerem a ideia de um falar repleto de rancor, esse causado pela falta de
honras, nullus... honos (v. 19), e com os penosos danos, acerbis... damnis (v. 19-20), com que
os deuses sempre costumam oprimi-la, ... semper... me... urgere solet. (v. 19 20). A tradução
aqui dada a urgere é “oprimir”, mas o verbo apresenta outros sentidos, tais como, “apertar”,
“pesar sobre”, “ameaçar”, e nos transmite a noção de castigar: os deuses castigam a Terra,
mas de forma indireta, castigando os Titãs, e alguns desses castigos, ou forma nocendi, “forma
de fazer mal” (v. 20), são descritos nos versos seguintes.
Dos versos 21 a 26, a Terra irá apresentar os seus filhos Titãs e os castigos que pairam
sobre eles, que sofrem desde a derrota na Titanomaquia, ainda com o objetivo de persuadir
os gigantes a enfrentarem os súperos como forma de revanche. Hinc, “de um lado” (v. 21), é
um advérbio de lugar e aqui aponta para o Titã Prometeu, que padece imóvel, fixus (v. 22), e
alimenta, pascit (v. 21), uma ave sob seu peito em carne viva, uolucrem uiuo sub pectore (v. 21).
A quebra do ablativo uiuo pectore pela inserção da preposição sub no meio dessa construção
nos remete ao estado do peito de Prometeu: dilacerado, em carne viva, como se a construção
pintasse a imagem descrita pelo poeta.
22
Seguindo com a cena de sofrimento narrada pela Terra, temos a apresentação do Titã
Atlas, que suporta pesos flamejantes sobre sua cabeça, Atlantis apex flammantia pondera
fulcit (v. 23); ele sustenta o mundo sobre seus ombros. Temos, no verso 24, a descrição do
cabelo de Atlas: todo ele está coberto por gelo e a construção em acusativo de extensão per
canitiem, “pelo branco cabelo” nos desenha a imagem, como se todo o seu cabelo estivesse
congelado. Não deixemos de notar também a presença de sinestesia; ao longo do verso, se
manifestam sensações ligadas ao tato: esse gelo (glacies, 24) que endurece (durat, 24) é
duríssimo (asperrima; 24), áspero e frio e se mescla à brancura do cabelo do Titã – tato e visão.
No verso seguinte, (v. 25), a divindade muda o foco do seu discurso para o sofrimento
de Tício, que é mantido preso nos infernos com um abutre que devora suas entranhas. A
construção quid dicam, “o que direi” (v. 25), reflete um tom de preocupação no falar da deusa,
como se não houvesse palavras que pudessem descrever o sofrimento de seu filho, além de
fazer parte do jogo de persuasão da Terra, pois ela quer, a todo custo, convencer seus novos
filhos a enfrentarem os deuses olímpicos.
A construção em ablativo uulture saeuo (v. 25) nos aponta o causador do eterno sofrimento
do Titã: o abutre cruel. Saeuo, o adjetivo que qualifica a ave, também pode ser traduzido por
“feroz”, “sevo”, comportamento típico dessas “aves de rapina”, outra tradução possível para
uulture. O abutre devora as entranhas combatentes do Titã, as quais, por sua vez, nascem
e se regeneram, uiscera nascuntur... certantia (v. 26) fadadas a repetirem o eterno ciclo dos
graves castigos aos quais foram destinadas, grauibus... poenis (v. 26).
No verso 27, o discurso muda de foco. Não é mais a narrativa do sofrimento dos Titãs, mas
o apelo da mãe aos filhos, aos quais ela se dirige como o “exército vingador que finalmente
chega”, o tandem ueniens exercitus ultor. Há ainda o emprego do pronome pessoal uos, “vós”,
no início do verso, usado para dar ênfase aos seus interlocutores.
As formas verbais no modo imperativo marcam os anseios da genitora: que os gigantes
libertem os Titãs de suas prisões, soluite Titanas uinclis (v. 28) e que, também, a protejam,
defendite matrem (v. 28).
No v. 29, a Terra oferece seus membros, membris, como armas contra os deuses. Há
mares, sunt freta (v. 29), e montes, montes (v. 29), e nada deve ser poupado no combate, ne
parcite (v. 29). No v. 30, temos expresso seu desejo pela ruína de seus inimigos. A Terra não
se importa em servir como arma contra os súperos, e seus membros, já oferecidos, terão esse
destino.
Dos versos 31 a 35, a mãe faz as últimas exigências aos filhos; ela pede, precor, que eles
levem desordem e, depois, destruição aos reinos celestes. O verbo no imperativo plural miscete
23
(v. 31), “desordenai”, de misceo, nos apresenta outros significados, tais como, “misturar”,
“confundir”, e, a partir daí, temos a ideia do caos: eles devem primeiro pôr os reinos olímpicos
em confusão, para depois derrubar, rescindite (v. 31) as torres ou castelos divinos, turres
sidereas (v. 31-32).
Nos próximos versos (32-35), vemos os anseios da genitora para os filhos. São usadas
formas no modo subjuntivo optativo como maneira de expressar esses desejos de glórias para
a sua prole. Observemos que, para cada gigante mencionado, a deusa quer atribuir o reinado
de algum deus. A Typhoeus, “Tifeu” (v. 32), ela deseja que ele tome o trovão e o cetro, rapiat
fulmem sceptrumque (v. 32), símbolos de Júpiter, ocupando, assim, o lugar do rei dos deuses.
Ela deseja que o mar, mare (v. 33), sirva, siruiat (v. 33) às ordens de Encélado, Enceladi iussis
(v. 33), atribuindo a ele os reinos de Netuno, enquanto a Oto, Otus (v. 33), ela deseja que ele
tome o lugar do Sol e guie as rédeas da Aurora, ...habenas Aurorae pro Sole regat (v. 33-34). A
preposição regente do caso ablativo pro, “diante”, “na frente”, “no lugar de”, nos oferece duas
leituras possíveis: a primeira, já mencionada e como se encontra na tradução, e uma segunda,
na qual a Terra deseja que Oto guie as rédeas da Aurora no lugar do Sol, atribuindo, assim, a
função do Sol ao gigante. Encerrando o discurso da genitora, ela deseja que Porfirião receba
uma coroa de louros délficos, te Delphica laurus stringat, Porphyrion (v. 35), o que simbolizaria
a vitória dos gigantes sobre os deuses.
Dos versos 36 a 41, temos a imaginação do efeito causado pelo discurso ardente da
genitora:
His ubi consiliis animos elusit inanes,
iam credunt uicisse deos mediisque reuinctum
Neptunum traxisse fretis; hic sternere Martem
cogitat, hic Phoebi laceros diuellere crines;
40 hic sibi promittit Venerem speratque Dianae
coniugium castamque cupit uiolare Mineruam.
Quando com esses conselhos enganou as almas vazias,
já creem ter vencido os deuses e ter arrastado
Netuno preso do meio dos mares. Este cogita abater
Marte; esse, arrancar o mutilado cabelo brilhoso de Febo;
40 aquele se promete Vênus e espera a união de Diana
e deseja violar a casta Minerva.
24
Os gigantes são convencidos e já acreditam ter vencido a luta contra os deuses e passam
a cogitar quais destinos dariam a eles. Nesse grupo de versos, temos um verbo central que
descreve a ação responsável por influenciar os gigantes, as “almas vazias”, animos inanes
(v. 36), a terem certeza de sua vitória: elusit, “enganou” (v. 36). Na segunda metade do verso
37 e no início do 38, Claudiano nos mostra o efeito causado pelo discurso fervoroso da mãe:
tomados pela euforia, os gigantes se viam arrastando Netuno, preso, do meio dos mares,
mediisque reuinctum/Neptunum traxisse fretis (v. 37-38). Observe que o início da nova oração,
que está na metade do verso 37 e o final dela, na metade do verso seguinte, são marcados
por duas palavras no caso ablativo e que estão ligadas: mediis... fretis, e entre elas temos
reuinctum Neptunum, como se a posição das palavras nos dois versos desenhasse a cena de
Netuno preso e sendo arrastado do meio do mar. Os ablativos envolvem as demais palavras,
como o mar que envolve quem está em seu meio.
Adiante, temos uma enumeração causada pela repetição do demonstrativo hic... hic... hic,
traduzidos como “este”, “esse” e “aquele”, nos versos 38, 39 e 40, que retomam elementos
citados anteriormente, no caso os gigantes. A estrutura do verso 39, assim como a do 37 e do
38, brinca ao mimetizar o cabelo brilhoso e mutilado de Febo, Phoebi laceros diuellere crines
(v. 39), que é representada pela separação da expressão laceros crines, “cabelo brilhante
mutilado”, com a inserção do verbo diuellere, “arrancar”, entre o adjetivo e o substantivo que
formam essa expressão. Uma última observação sobre esse quadro: a predominância de
orações curtas, cujos finais são marcados ou pela presença de sinais de pontuação, ...hic
sternere Martem cogitat, hic Phoebi... (v. 38-39), ou pela inserção da partícula –que, hic sibi
promittit Venerem, speratque Dianae coniungium castamque... (v. 40-41), representa a euforia
sentida pelos gigantes após ouvir tantas promessas vindas de sua mãe.
Dos versos 42 a 52a, temos o quadro da convocação divina, ou concilium deorum. O
Concílio dos Deuses é um episódio recorrente na poesia épica. Um recurso narrativo típico da
poesia homérica, ou uma cena típica, na qual os deuses, de todos os lugares do mundo, se
reúnem para discutir alguma questão. Eis o quadro:
Interea superos praenuntia conuocat Iris,
qui fluuios, qui stagna colunt, cinguntur et ipsi
auxilio Manes; nec te, Proserpina, longe
45 umbrosae tenuere fores; rex ipse silentum
Lethaeo uehitur curru lucemque timentes
insolitam mirantur equi trepidoque uolatu
spissas caeruleis tenebras e naribus efflant.
ac, uelut hostilis cum machina terruit urbem,
25
50 undique concurrunt arcem defendere ciues,
haud secus omnigenis coeuntia numina turmis
ad patrias uenere domos.
Nesse momento, a mensageira Íris convoca os Súperos
que habitam os rios, que habitam os lagos, e armam-se os próprios
Manes em auxílio; nem a ti, ó Prosérpina,
45 guardaram por muito tempo as portas sombrias; o próprio rei daqueles
que fazem silêncio é levado no carro do Letes, e os cavalos,
temendo, admiram-se com a luz insólita e, por causa do voo agitado,
espessas trevas da escura narina exalam.
E, assim como quando a máquina hostil aterrorizou a cidade,
50 de todos os lados cidadãos correm em massa para defender a cidadela;
não diferentemente, divindades se aliando em batalhões de todas as espécies
vieram aos lares pátrios.
A mensageira Íris convoca as mais diversas divindades para se juntarem aos súperos, desde
deuses aquáticos, qui fluuios, qui stagna colunt (v. 43), até os que governam o mundo dos
mortos, Proserpina, (v. 44), rex ipse silentum (v. 45). Há, ainda, a predominância de palavras
que remetem ao escuro, ao mundo dos mortos: Manes, “os Manes” (v. 44), divindades ligadas
aos espíritos dos antepassados; Lethaeo, “do Letes” (v. 46), umbrosae, “das sombras” (v. 45);
e tenebras, “trevas” (v. 48).
Nos versos 46, 47 e 48, temos a descrição dos cavalos de Plutão: eles temem, tementes
(v. 46), a luz que lhes é insólita, lucem... insolitam (46-47), uma vez que eles vêm das regiões
sombrias dos infernos. Suas narinas são escuras, caeruleis... naribus (v. 48), e delas exalam
trevas espessas, densas, spissas... tenebras efflant (v. 48), por causa do susto com o voo.
Sobre o verso 48, faço uma última observação: ele é todo construído sobre uma aliteração
em /s/ spissas caeruleis tenebras e naribus efflant, como se o jogo sonoro tentasse, de forma
mimética com o sibilar, repetir o som produzido pelos cavalos assustados que expiram as
sombras densas de seu nariz.
Nos versos seguintes (49–52), faz-se uma comparação, um símile, entre os ataques a uma
cidade e os cidadãos que, em conjunto, correm para protegê-la, com os deuses que vêm de
vários lugares e se juntam em batalhões de várias espécies, omnigenis... turmis (v. 51), para
defenderem o céu.
26
A respeito desse símile, Bejarano (1993, p. 108), que o classifica como “símile de atividade
humana”, afirma que
Esta é uma comparação muito simples sobre uma questão militar. Isso só confirma a grande
variedade de temas, vindos dos mais diversos mundos, que nosso poeta inclui em suas
comparações. A motivação dos cidadãos em defesa da sua cidade é algo muito frequente tanto
na realidade como na literatura.
Do verso 52b ao 59, temos o discurso de Júpiter aos deuses:
tum Iuppiter infit:
“O numquam peritura cohors, o debita semper
caelo progenies, nullis obnoxia fatis,
55 cernitis ut nostrum Tellus coniuret in orbem
prole noua dederitque alios interrita partus?
Ergo quot dederit natos, tot funera matri
reddamus. longo maneat per saecula luctu,
tanto pro numero paribus damnata sepulchris.”
Então Júpiter começa a falar:
“Ó coorte que jamais perecerá, ó raça sempre
destinada ao céu, sujeita a nenhuns fados,
55 vedes que a Terra conspira contra o nosso mundo
com uma nova prole e, impávida, deu outras ninhadas?
Pois quantos nascimentos ela deu, tantos funerais à mãe
retornemos. Que permaneça em longo luto pelos séculos,
por causa do tão grande número, condenada, ao mesmo tanto de sepulturas.”
O rei dos deuses adverte sobre os planos da Terra e o futuro desejado para sua prole
monstruosa. O discurso se inicia com dois vocativos nos versos 53 e 54, com os quais o pai dos
súperos os qualifica: numquam peritura cohors/debita... progenies. Ao mesmo tempo, ambos
os vocativos podem ser vistos como palavras proféticas ou de conforto: eles são a “corte que
jamais perecerá” e também a “raça sempre destinada ao céu”. Temos o particípio futuro peritura
(v. 53), que qualifica o substantivo cohors (v. 53); temos a presença do advérbio numquam,
“jamais” (v. 53), que reforça o tom de conforto/profecia; além disso, encontramos outro particípio
qualificando os deuses: debita, “destinada” (v.53), que também está acompanhado de um
advérbio, semper, “sempre”.
27
Observe que ambos os advérbios acabam por formar uma oposição: numquam/semper,
“jamais/sempre”. Eles jamais perecerão e estarão sempre destinados aos reinos celestes. Há,
ainda, no verso 54, a forma adjetiva, obnoxia, que também qualifica os deuses, transmitindo
algum conforto: nullis obnoxia fatis, “sujeita a nenhuns fados”. Fatis, mesmo que esteja traduzido
por “fados”, também pode ser lido como “fatalidades”, “vaticínio” ou “profecias”. Os deuses não
serão submetidos a nenhuma fatalidade ou vaticínio provindo da mãe Terra e do seu exército
monstruoso.
Ademais, o ablativo prole noua, “com uma nova prole” (v. 56), nos revela que ela é o
instrumento com o qual a Terra coniuret, “conspira” (v. 55); esses gigantes são as armas da Terra
contra os deuses. O acusativo preposicionado nostrum in orbem, “contra nosso mundo”, nos
aponta o alvo do ataque dos novos filhos da Terra: o lar dos deuses. No verso 58, a construção
em acusativo de extensão per saecula, “pelos séculos”, tem noção temporal: o tempo que
Júpiter deseja que a Terra fique de longo luto, longo... luctu (v. 58), pelos funerais que eles
darão a ela, funera matri reddamus (v. 58), como castigo às ameaças feitas pela divindade. O
discurso se encerra com sepulchris, “sepulturas” (v. 59), que aponta para o destino que aguarda
os gigantes; há alguns correspondentes semânticos: funera, “funerais” (v. 57) e luctu, “luto”
(v. 58).
Temos o quadro da preparação dos combates que se passa do verso 60 ao 65:
60 Iam tuba nimborum sonuit, iam signa ruendi
his Aether, his Terra dedit, confusaque rursus
pro domino Natura timet. discrimina rerum
miscet turbo potens: nunc insula deserit aequor,
nunc scopuli latuere mari. quot litora restant
65 nuda! quot antiquas mutarunt flumina ripas!
60 Já a tuba das nuvens soou, já os sinais de atacar
deu a estes o Céu, àqueles, a Terra, e mais uma vez
a Natureza confusa teme por seu senhor. O turbilhão potente confunde os
limites das coisas: ora a ilha abandona o mar,
ora os rochedos se escondem no mar. quantas praias ficam
65 desprotegidas! Quantos rios mudam as margens antigas!
Os sinais de início do combate são dados aos deuses e à Terra por uma tuba de nuvens,
tuba nimborum (v. 60). Logo na primeira oração do verso 60, temos uma aliteração na bilabial
/b/ e assonância em /u/ Iam tuba nimborum sonuit, cujas sonoridades nos remetem ao barulho
produzido ao tocar da tuba.
28
No verso 61, os demonstrativos his... his no dativo plural traduzidos por “estes” e “aqueles”
indicam atribuição e se referem a ambos os lados do combate: o céu deu a estes, his Aether...
dedit (v. 61), ou seja, os deuses, e a Terra àqueles, his Terra dedit (v. 61), os gigantes, os sinais
de atacar, signa ruendi (v. 60).
A partir do verso 62, temos descrita a cena de uma nova desordem espacial, mas, dessa
vez, causada pelos preparativos para o confronto e a terra. O turbilhão potente, turbo potens
(v. 63), mistura, confunde o limite das coisas, discrimina rerum miscet (v. 62- 63); praias ficam
desprotegidas, litora restant (v. 64), os rios têm suas margens mais antigas alteradas, antiquas
mutarunt flumina ripas (v. 65), e a Natureza está assustada com o que está havendo.
Sobre turbo potens cabe uma observação: Miguel Castillo Bejarano (1993, p. 316), em sua
tradução em espanhol da Gigantomaquia, nos apresenta a expressão la poderosa muchedumbre
de monstruos, “a poderosa multidão de monstros”, bem como na inglesa, de Maurice Platnauer
(1990, p. 285), em que lemos the puissant company of the giants, “a companhia poderosa dos
Gigantes”. Saraiva, entre as várias possibilidades de tradução, nos oferece, como significados
para turbo presentes em Claudiano: “onda de gente” e “multidão em movimento”, tornando,
assim, possível a leitura de turbo potens como “multidão poderosa de gigantes”. Lembremos
que, no quadro que equivale aos versos 9-12, no qual presenciamos uma desordem astral,
esta é causada logo após a saída dos Gigantes do interior de sua mãe, e agora, dos versos 62
a 65, temos um evento semelhante, o que valida a segunda leitura proposta para a expressão.
Nos versos 62 e 63, há duas orações simétricas cuja construção espelha o que está sendo
dito pelo poeta: nunc insula deserit aequor, “ora a ilha deixa o mar”, nunc scopuli latuere mari,
“ora os rochedos se esconderam no mar”. A mesma ordem é mantida em ambas as orações,
sendo substituídos apenas os nominativos, os verbos e os complementos. O mar continua sendo
o ponto convergente entre duas orações, expresso, entretanto, por duas palavras diferentes
e em casos diferentes, por reflexo da transitividade verbal: aequor, “mar”, acusativo, e mari,
“mar”, ablativo.
Os versos seguintes, do 66 ao 74, nos mostram os Gigantes se armando para atacar os
deuses:
hic rotat Haemoniam praeduris uiribus Oeten;
hic iuga conixus manibus Pangaea coruscat;
hunc armat glacialis Athos; hoc Ossa mouente
tullitur; hic Rhodopen Hebricum fonte reuellit
70 et socias truncauit aquas summaque leuatus
rupe Giganteos umeros inrorat Enipeus:
29
subsidit patulis Tellus sine culmine campis,
in natos diuisa suos. Horrendus ubique
it fragor et pugnae spatium discriminat aer.
Este atira o Eta tessálio com força rija;
esse, tendo feito esforço, com as mãos, o cimo Pangeu agita;
àquele, o glacial Atos dá arma, e, com estoutro movendo-se, o Ossa
é arrancado; este quinto arrebata o Ródope com a nascente do Ebro
70 e cortou as águas unidas, e o Enipeu erguido
orvalha, do topo mais alto da rocha, os ombros gigantescos:
a Terra, com vastos campos sem cume, aplana-se,
dividida entre seus filhos. Um estrondo terrível vai
por toda a parte, e o ar separa os espaços da guerra.
Esse conjunto de versos nos mostra os gigantes obedecendo às ordens da mãe, quando ela
diz, no verso 29: sunt freta, sunt montes: nostris ne parcite membris, “há mares, há montes: não
poupai nossos membros”; os montes perdem suas funções e passam a servir de armamento
contra os deuses. Esse quadro também nos proporciona uma dimensão imagética do quão
grande pode ser essa nova ninhada gerada pela Terra: são enormes a ponto de atirar montes,
hic rotat Haemoniam praeduris uiribus Oeten (v. 66), “Este atira o Eta tessálio com força rija”,
e de, com as mãos, agitar os cimos, hic iuga... manibus Pangaea coruscat (v. 67), “esse... com
as mãos, o cimo Pangeu agita”.
Nos versos 69 e 70, um dos gigantes arrebata o monte Ródope, onde está localizada a
nascente do rio Ebro, e essa ação causou a divisão das águas do rio que, até então, eram
unidas. Claudiano nos constrói essa imagem com uma brincadeira com a sintaxe, na qual ele
coloca o verbo principal da oração, truncauit (v. 70) entre o substantivo e o adjetivo que formam
o objeto direto, socias... aquas (v. 70), nos dando, na construção do verso, a representação
das águas que foram cortadas.
No verso 72, nos é apresentada a Terra após a preparação de seus filhos para os combates.
Se antes ela estava entumecida (v.5) e com montes (v.29), agora ela nos aparece sem cume e
com campos vastos, patulis... sine culmine campis. A Terra está totalmente plana e o que antes
delimitava os espaços da guerra, agora está nas mãos de seus filhos, por isso ela se encontra
dividida entre eles, in natos diuisa suos, (v. 73), lembrando que os montes são seus membros,
assim como os mares, como ela mesma afirma no verso 29. Sem os montes entre os gigantes
e os deuses, o único elemento que paira sobre o espaço de guerra, assim o delimitando, é o
ar, et pugnae spatium discriminat aer (v. 74), “e o ar separa os espaços da guerra”.
30
Do verso 75 ao 128, temos, por fim, a batalha entre os gigantes e os deuses, a Gigantomaquia.
Para uma melhor análise, optamos por subdividir o quadro em três cenas, sendo a primeira
do verso 75 ao 91, nos quais entra em cena a figura de Marte, deus da guerra; a segunda, do
91 ao 113, marcados pela grande participação da deusa Minerva no decorrer do combate, e
a última, do verso 114 ao 128, nos quais temos a ilha de Delos personificada, rogando ajuda
a Febo perante a ameaça de Porfirião.
Eis o primeiro fragmento:
75 primus terrificum Mauors non segnis in agmen
Odrysius inpellit equos, quibus ille Gelonos
siue Getas turbare solet: splendentior igni
aureus ardescit clipeus, galeamque nitentes
arrexere iubae. tum concitus ense Pelorum
80 transigit aduerso, femorum qua fine uolutus
duplex semiferi conectitur ilibus anguis,
atque uno ternas animas interficit ictu.
dum superinsultans auidus languentia curru
membra terit multumque rotae sparsere cruoris,
85 accurrit pro fratre Mimans Lemnumque calentem,
cum lare Vulcani spumantibus eruit undis,
et prope torsisset, si non Mauortia cuspis
ante terebrato cerebrum fudisset ab ore.
ille, uiro toto moriens, serpentibus imis
90 uiuit adhuc stridore ferox et parte rebelli
uictorem post fata petit.
75 Primeiro Marte, não lento contra o horroroso exército,
impele os cavalos odrísios, com os quais ele costuma perturbar
os gelonos ou os getas: o escudo de ouro arde
mais brilhante que o fogo, e a juba nitente
eriçou o elmo. Então, agitado,
80 com espada inimiga transpassa o Peloro, na região das coxas por onde
duas cobras enroladas se unem às virilhas do ser monstruoso,
e com um golpe destrói três vidas.
Enquanto, saltando ávido, destrói com o carro
os membros lânguidos, e as rodas espalharam uma grande quantidade de sangue,
31
85 em defesa do irmão, Mimas acorre e arranca a Lemnos ardente
com o lar de Vulcano das ondas espumantes,
e quase a teria lançado se o dardo de Marte não tivesse
antes espalhado o cérebro da boca vazada.
Aquele, morrendo em toda a sua parte humana, nas serpentes, na parte de baixo,
90 ainda vive, feroz, com estridor e com a parte revoltosa,
ataca o vencedor após as fatalidades.
No verso 75, entra em cena o deus Marte, que representa a guerra violenta e desordenada,
e esses traços serão descritos na sequência, com o desenrolar do conflito. O deus tem pressa
para o combate, ele é rápido, e podemos ver isso no verso inicial: Marte avança, mas não de
forma lenta, contra o exército inimigo, primus Mauors non segnis in agmen (v. 75). Essa pressa
para o combate também fica explícita por meio da forma como ele comanda seus cavalos: o
verbo principal inpellit, “impele” (v. 76), que também significa “lança”, “atira com força”, “empurra”,
nos remete a essa urgência para os combates. Mais detalhes sobre o deus nos são dados
ao longo dos versos: para sua defesa, ele carrega um escudo de ouro que arde mais do que
o fogo, como fica expresso pelo comparativo de superioridade splendentior, “mais brilhante”
(v. 77) e pelo verbo arcescit, “arde” (v. 79). Seu cabelo é brilhante, nitentes... iubae (v. 78-79)
e ele usa um elmo (clipeus (v. 78) em sua cabeça.
Sobre a natureza de Marte, há algumas observações que podem ser feitas: no verso 79,
vemos que o deus está agitado, excitado, concitus, e desfere um golpe contra um gigante que
segura o monte Peloro, o qual é transpassado pela espada do deus. Mais uma vez, Claudiano
mimetiza a cena com um jogo com a sintaxe: Marte, com sua espada, transpassa o Peloro,
ense Pelorum transigit aduerso (v. 79-80). Note que o ablativo ense... aduerso é quebrado e
passa a envolver o restante da oração; e o verbo principal, transigit, posto após o acusativo,
Pelorum, mostra a arma passando o monte, como se nos fizesse ver as extremidades da
espada do deus, que o perfurou. Esse único golpe foi responsável por acabar com três vidas,
... uno ternas animas interficit ictu (v. 82) ao atingir o gigante na região das coxas, local por
onde duas cobras, que formam suas pernas, se unem às virilhas do gigante. Ainda no verso
há a presença de aliteração de sibilantes /x/ e /s/ que remetem às serpentes: duplex semiferi...
ilibus anguis.
A expressão ternas animas (v. 82) faz referência à natureza dupla dos gigantes, que, no
lugar das pernas, possuíam serpentes – e elas eram mais do que simples membros inferiores,
como veremos no decorrer do poema.
32
Nos versos que se seguem, podemos ver o quão sanguinolento Marte pode ser. Outro
traço de sua natureza, que fica expresso no verso 83, é que o divo salta ávido, auidus (v. 83),
e o que se vê a seguir é uma ação típica do deus: com o carro, curru (v. 83), um ablativo de
instrumento, a divindade vai destruir os membros do inimigo, suas serpentes, ...membra terit
(v. 84), fazendo com que as rodas do carro espalhem o sangue dos membros destruídos.
Para vingar a morte do irmão, o gigante Mimas arranca a ilha de Lemnos e ameaça jogála, mas sua ação é interrompida por Marte. Temos aí uma oração condicional, si non Mauortia
cuspis ante terebrato cerebrum fudisset ab ore (v. 87-88), por meio da qual nos é mostrada a
interrupção do divo à ação pretendida pelo gigante. No mesmo verso, o ablativo regido pela
preposição ab, terebrato... ab ore (v. 88), nos marca um ponto de partida que faz parte de uma
imagem forte destacada na cena: é da boca vazada, furada pelo dardo de Marte, Mauortia
cuspis (v. 87), que se espalha o cérebro do gigante Mimas.
No verso 89, os ablativos nos confirmam a natureza dupla dos gigantes: o primeiro, uiro toto,
“em toda a sua parte humana”, é referente à parte humanoide, e ela está morrendo, moriens
(v. 89); o outro ablativo, serpentibus imis, “nas serpentes na parte de baixo”, além de nos
remeter à metade monstruosa dos gigantes, nos entrega uma informação importante: ela tem
vida, uiuit adhuc (v. 90) e, ao que nos parece, tem vontade própria, pois mesmo com a morte da
parte humanoide, as serpentes atacam Marte. O ablativo parte rebelli, “com a parte revoltosa”
(v. 90), qualifica as serpentes e nos reforça essa impressão dada de elas independerem do
lado humanoide.
No final do verso 91, entra em cena a figura da deusa Minerva, que, diferentemente de
Marte, seu irmão, representa a guerra organizada.
Tritonia uirgo
prosilit ostendens rutila cum Gorgone pectus;
aspectu contenta suo non utitur hasta
(nam satis est uidisse semel) primumque furentem
95 longius in faciem saxi Pallanta reformat.
ille procul subitis fixus sine uulnere nodis
ut se letífero sensit durescere uisu
(et steterat iam paene lapis), “quo uertimur?”
inquit, “quae serpit per membra silex? quis torpor inertem
100 marmorea me peste ligat?” uix pauca locutus,
quod timuit, iam totus erat; saeuusque Damastor,
ad depellendos iaculum cum quaereret hostes,
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germani rigidum misit pro rupe cadauer.
Hic uero interitum fratris miratus Echion,
105 inscius auctorem dum uult temptare nocendo,
te, dea, respexit, solam quam cernere nulli
bis licuit. meruit sublata audácia poenas
et didicit cum morte deam. sed turbidus ira
Palleneus, oculis auersa tuentibus atrox,
110 ingreditur caecasque manus in Pallada tendit.
hunc mucrone ferit dea comminus; ac simul angues
Gorgoneo riguere gelu corpusque per unum
pars moritur ferro, partes periere uidendo.
A virgem Tritônia
salta, mostrando o peito com a Górgona brilhante;
contente da sua visão, não usa a lança
(na verdade é o suficiente vê-la uma só vez) e de longe
95 transforma em figura de pedra Palante o primeiro que se enfurecia.
Ele, a grade distância, imóvel por causa dos súbitos nós, sem ferida
quando se sentiu endurecer por causa do olhar mortal
(e parara já quase pedra): “Em que estou me transformando?”
pergunta: “Que pedra serpenteia pelos membros? Que torpor me ata inerte
100 com peste marmórea?” Ditas essas poucas coisas com custo,
agora todo era o que temeu; e o sevo Damastor,
como procurasse um dardo para afastar os inimigos,
atirou o cadáver rijo do irmão em vez de uma montanha.
Então, de fato, Equínon espantou-se com a morte do irmão,
105 enquanto, ignorante, deseja atacar o responsável fazendo mal,
volveu os olhos só a ti, ó deusa, que a ninguém foi permitido
ver duas vezes. A audácia soberba mereceu os castigos
e conheceu a deusa pela morte. Mas, conturbado de ira,
Paleneu, com os olhos vigiando as coisas adversas, furioso,
110 avança e estende as mãos escondidas contra Palas.
A deusa o fere, de perto, com a ponta da lança; e ao mesmo tempo, as cobras
endureceram devido ao gelo da Górgona, e em um único corpo
uma parte morre pela espada, e as outras partes perecem pelo olhar.
34
Se Marte é agitado, concitus (v. 79) e ávido auidus (v. 83), Minerva é o seu oposto: no verso
93, o adjetivo que a qualifica é contenta “contida”, “contente”, “satisfeita”, e logo entenderemos
o porquê. A diferença entre ambas as divindades continua: o deus se apressa para o combate
e age de forma brutal, dilacerando os membros do inimigo já morto; Minerva, porém, se limita
e não usa a lança, non utitur hasta (v. 93), servindo-se da cabeça da Górgona para petrificar
seus inimigos; por isso, ela se mantém contida, pois olhá-la apenas uma vez é o suficiente
para que qualquer gigante seja morto sem muito esforço, nam satis est uidisse semel (v. 94).
Os versos que se seguem descrevem uma metamorfose: ao saltar e exibir a cabeça da
Górgona, que está em seu peito, Minerva, de longe, longius (v. 95) transforma em figura de
pedra, in faciem saxi... reformat (v. 95) o gigante Palante. O verbo principal, reformat, nos
apresenta outras possibilidades de tradução, tais como, “fazer de novo”, “mudar”, “reformar”,
“alterar”, e deixa bem explícito o processo de mudança sofrido por Palante: ele está sendo
alterado, feito de novo, em uma nova forma: de pedra, como expressa o genitivo de matéria
saxi (v. 95).
Entre os versos 95 e 97, temos a consequência do olhar mortal da Górgona e a descrição
de como ocorre a metamorfose do gigante em pedra. A primeira observação a ser feita é que
Palante não apresenta ferida, sine uulnere (v. 96); o olhar não o machuca, mas ele sente como
se muitos nós o mantivessem fixo, imóvel e, a partir daí, ele se sente endurecer, subitis fixus...
nodis... se... sensit durescere (v. 96-97). Tudo isso acontece, entretanto, não próximo à deusa.
Não foi preciso Minerva estar perto do gigante para que o olhar letal o alcançasse; o advérbio
procul (v. 96) nos revela quão poderosa a cabeça da Górgona pode ser, a ponto de transformálo “de longe”. No verso 98, aponto para a oração que abre o discurso de Palante, na qual
traduzo, na oração, o plural quo uertimur pelo singular “em que estou me transformando”. O
uso da forma verbal, em latim, no plural, nos remete ao que foi dito anteriormente: a natureza
dupla dos Gigantes. Palante, ao se perguntar em que estão se transformando, se dirige às
serpentes, unidas a ele, como seres independentes.
A descrição da metamorfose continua, agora expressa no discurso do gigante. No verso 99,
o acusativo de extensão per membra, “pelos membros”, nos mostra a mudança na matéria de
seu corpo, que passa da carne para pedra. Observe que os nominativos que abrem e fecham
a interrogativa tornam sua estrutura bastante envolvente: quae serpit per membra silex? ‘que
pedra serpenteia pelos membros?’, como se a imagem da transformação fosse pintada diante
de nossos olhos; a pedra vai serpenteando, se espalhando, serpit (v. 99), envolvendo, assim,
os membros de Palante.
Os momentos finais antes de concluir-se a transformação são marcados por uma sensação
de dormência, torpor, que envolve o gigante, e é expressa pelo nominativo torpor (v. 99), que
35
o deixa imóvel, ata-o inerte, inertem (v. 99). No verso 101, temos, por fim, a metamorfose
concluída, sendo ele, agora, o que temia ser. Ainda no mesmo verso, aponto para a adjetivação
dada ao gigante Damastor, que é tido como saeuus. Algumas traduções do adjetivo são “sevo”,
“cruel” ou “desumano”, e essa natureza do gigante nos é mostrada no verso, quando, para
manter os inimigos afastados, ele atira o cadáver petrificado do irmão Palante em vez de uma
montanha, germani rigidum misit pro rupe cadauer (v. 103), o que denota uma ação desumana,
bárbara, desprovida da pietas perante um corpo que não recebeu as devidas honras fúnebres.
As adjetivações aos gigantes continuam, e é importante observá-las, pois elas poderão ser
entendidas como reflexo de suas ações, como visto com Damastor.
No verso 105, o gigante Equínon, ignorante, descuidado, inscius, com o desejo de fazer
mal como vingança pelo irmão, acaba cometendo um erro fatal: olhar para Minerva, a deusa
que a ninguém foi permitido olhar mais de uma vez, ... quam cernere nulli bis licuit (v. 106-107),
pois é ao olhar para o busto da Górgona que os inimigos perecem transformados em pedra.
Sua ação descuidada o levou à morte.
No verso 108, temos Peleneu, descrito como conturbado de ira, turbidus ira, e, mais adiante,
furioso, atrox (v. 109); ele tenta tocar Minerva com as mãos escondidas, caecas... manus
(v. 110), ou seja, violar sua castidade. Os versos seguintes, que descrevem a forma como
o gigante é morto, mais uma vez nos remetem à natureza dupla desses seres: a deusa fere
sua parte humanoide com a ponta da lança, hunc mucrone ferit dea (v. 112), e, por causa do
gelo da Górgona, as serpentes tornam-se pedra, ac... angues Gorgoneo riguere gelu (v. 112),
morrendo uma parte ao ser ferida pela lança e, a outra, ao olhar para a Égide que Minerva
carrega consigo. Essas mortes acontecem simultaneamente, como está expresso pelo advérbio
simul (v. 111), e em um único corpo, corpusque per unum (v. 112).
Uma última observação sobre o verso 109: ele é todo construído sobre aliterações das
fricativas /s/ e /x/ e assonância em /u/, Palleneus, oculis auersa tuentibus atrox.
A partir do verso 114, entra em cena a figura do rei dos Gigantes, Porfirião:
Ecce autem medium spiris delapsus in aequor
115 Porphyrion trepidam conatur rumpere Delon,
scilicet ad superos ut torqueat inprobus axes.
horruit Aegaeus; stagnantibus exilit antris
longaeuo cum patre Thetis desertaque mansit
regia Neptuni famulis ueneranda profundis.
120 exclamant placidae Cynthi de uertice Nymphae,
Nymphae quae rudibus Phoebum docuere sagittis
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errantes agitare feras primumque gementi
Latonae struxere torum, cum lumina caeli
parturiens geminis ornaret fetibus orbem.
125 implorat Paeana suum conterrita Delos
auxiliumque rogat: “si te gratissima fudit
in nostros Latona sinus, succurre precanti.
en iterum conuulsa feror.”
Eis que, no entanto, escorregando com os anéis de serpentes para o meio do mar,
115 Porfirião tenta arrancar a assustada Delos,
isto é, perverso para lançar às abóbadas superiores.
O Egeu temeu; das cavernas que estagnam salta para fora
Tétis com o seu pai idoso, e o palácio venerando
pelos servos das profundezas de Netuno ficou deserto.
120 As plácidas ninfas gritam do cume do Cinto,
as ninfas que ensinaram Febo a
agitar as feras errantes com rudes dardos e construíram o primeiro
leito para Latona, que gemia, no momento em que, gerando as luzes do céu,
enfeitou o orbe com filhos gêmeos.
125 Delos, apavorada, implora a Peão e seu auxílio
roga: “se a ti a gratíssima Latona deu à luz
em nossos seios, socorre a suplicante.
Eis que, pela segunda vez, separada violentamente sou trazida.”...
Porfirião toma para si o adjetivo inprobus (v. 116), “mal”, “perverso”, e sua presença causa
terror em quem está próximo: a ilha de Delos está assustada perante a ameaça de ser arrancada
do meio do mar pelo ser monstruoso, trepidam... Delon (v. 115), pois o gigante pretende lançála contra o céu, ad superos... axes (v. 116); o mar Egeu temeu a presença do monstruoso
gigante, horruit Aegaeus (v. 117); Tétis abandona a caverna com seu pai já idoso, ... exilit
antris longaeuo cum patre Thetis (v. 117-118); os servos de Netuno abandonam seu palácio,
deixando-o vazio, deserta... mansit regia Neptuni... (v. 118 119), e as ninfas gritam, exclamant...
Nymphae (v. 120).
Nos versos seguintes, temos a ilha de Delos personificada, rogando ajuda a Febo. Há aqui
algo importante a ser apontado: a referência ao passado de Delos e os favores prestados por
ela a Latona e ao próprio deus – as ninfas que ensinaram Febo a caçar, Nymphae quae rudibus
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Phoebum docuere sagittis errantes agitare feras (v. 121-122), gritavam de cima do monte Cinto,
do cume, como mostra o ablativo e, em especial, a preposição em Cynthi de uertice. Mais sobre
Delos nos é revelado: essas mesmas ninfas que gritavam de pavor foram as que prepararam o
leito para Latona, que estava prestes a dar à luz Febo e Diana, em Delos, ilha criada por Netuno
para abrigar Latona, que não encontrava descanso nos domínios pertencentes à deusa Terra,
depois de um acordo dessa com a rainha dos deuses, Juno. Foi em Delos que se originaram
as luzes do céu, lumina caeli (v. 123), Apolo, o Sol e Diana, a Lua.
Em seu discurso, a ilha invoca memórias do passado como argumentação para que o
deus a socorra: ela acolheu Latona em seus seios, in nostros... sinus (v. 127), e agora implora
para que o deus reconheça o favor prestado e a socorra, pois ela está conterrita, “apavorada”
(v. 125), e precanti, “suplicante” (v. 127). Seu discurso, assim como o poema, é interrompido
abruptamente no verso 128.
Considerações finais
Levando em conta o período de decadência da cultura romana que remonta ao final do
século IV e início do século V da era cristã, Claudiano foi, certamente, o último suspiro de uma
longa tradição clássica que sucumbia no contexto cristão do império romano. A diversidade
de textos deixados pelo poeta, em pouco tempo de atividade, considerando que ele falecera
aos 35 anos de idade, deixa evidente que ele foi um mestre não apenas na composição e na
recitação, mas também na manipulação dos diversos gêneros. Bejarano (1993) afirma que
o alexandrino nos legou uma tradição poética baseada na fusão entre a poesia épica e os
panegíricos, e entre o épico e os textos invectivos.
Porém, essa fusão não se limita apenas ao plano dos gêneros poéticos. Claudino (2020,
p. 139) nos diz que “de modo igual, podemos notar a fusão de cunho ideológico, pois Claudiano
une elementos míticos pagãos, em um contexto cristão, às estruturas usadas pelos clássicos
e às ideias filosóficas transcendentais, como sugere Gonzáles”.
Ou seja, Claudiano nos fornece um poema de temática mitológica pagã num contexto
totalmente cristão. Ele certamente se vale de metáforas que relacionam o povo romano às
antigas divindades rejeitadas pelos adeptos da nova religião. E além da retomada dos antigos
mitos, há também o resgate do estilo clássico em suas construções. Cerqueira (1991, p. 20),
em seu breve estudo sobre o estilo de Claudiano no De raptu Proserpinae, faz uma observação
sobre estruturas clássicas usadas que pode ser perfeitamente aplicada à Gigantomaquia. Ele
diz:
O latim utilizado é de primeira água, tão clássico como o dos épicos da época imperial [...] O
estilo, como vimos, imita também o dos autores do período áureo e argênteo da literatura latina.
38
A ordem das palavras na frase, nomeadamente, apresenta uma estrutura que, arrancando da
disjunção virgiliana e da callida iunctura de Horário, é nitidamente decalcada sobre Estácio:
o adjetivo aparece quase sempre antes e afastado do substantivo de que é atributo, ficando
normalmente este no final do verso, enquanto o verbo e eventualmente outros sintagmas tomam
lugar entre os dois.
Para ilustrar esse dito, retornemos a alguns exemplos já vistos ao longo da análise do
poema:
“omnia monstrifero conplebat Tartara fetu” (v. 3)
Neste verso, o complemento do verbo conplebat, o acusativo omnia Tartara, se mostra
dividido, estando o adjetivo no início e o substantivo no fim do verso. O verbo se coloca entre
a estrutura, bem como outro adjetivo (monstrifero). O segundo adjetivo, que está no caso
ablativo, também se encontra afastado do substantivo que ele qualifica (fetu).
Outro exemplo no verso 8:
stridula uoluentes gemino uestigia lapsu.
E, por fim, este último verso, cuja força imagética nos arrebata quando lemos:
“mediisque reuinctum / Neptunum traxisse fretis” (v. 37-38)
Temos, no início e no fim, uma construção em ablativo que está separada por outros
elementos. Essa divisão, como já mencionado, mimetiza Netuno no meio do mar (mediis fretis),
ou seja, envolve os demais elementos, assim como a água do mar envolve o deus.
Em suma, observamos que A Gigantomaquia Latina, mesmo inconcluso, é um poema
riquíssimo de detalhes que colaboraram para seu estudo. Podemos considerar a obra como
um grande quadro incompleto, formado por quadros menores. Entendemos o texto assim por
causa do modo como Claudiano tece a narrativa e estabelece a mudança de foco dos episódios.
Por ser um “quadro”, é um poema imagético, e isso se mostra claro por meio das construções
apresentadas na obra, assim como a forma como o autor brinca com a estrutura: ele forma
imagens. Esses recursos, entretanto, não se limitam apenas à sintaxe, mas os encontramos
também nos efeitos sonoros, nas figuras retóricas e nas descrições feitas pelo poeta.
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39
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H Garnier – Livreiro Editor, s.d.
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O papel de Ceres na (re)
organização cósmica:
a criação das estações
do ano, Livro V das
Metamorfoses, de Ovídio
Letícia Maria Quintella Viana
Introdução
A fim de entendermos quão relevante era o mito na sociedade greco-latina arcaica, é
necessário que nos afastemos do costume hodierno, como diria Viana (2019, p. 200), de tratá-lo
como “ficção, fantasia ou inverdade”, posto que ele representa uma estrutura indissociável da
linguagem desse povo e é partícipe de seu constructo religioso e civilizatório, “ora simbolizando o
desconhecido, explicando acontecimentos naturais anômalos, ora traduzindo reações humanas
extraordinárias, a exemplo da ira”.
Logo, é forçoso que notemos a necessidade de entendermos o mito como parte constituinte
de uma realidade – uma linguagem, como diria Brandão (2015), fazendo parte da racionalidade
daquele homem; embora nos pareça, hoje, muito mais alegórico do que proveniente de qualquer
cientificidade ou razoabilidade possível.
Conforme observamos em Viana (2019, p. 201), por muito tempo, o mito não era considerado
algo oposto à razão, mas, diferentemente, ele evoluiu junto à racionalidade humana:
A concepção e a definição acerca do divino evoluíram proporcionalmente ao pensamento humano.
Conforme o aumento da capacidade de observação e percepção do mundo ao seu redor, o homem
se tornou cada vez mais curioso a respeito da origem dos fenômenos naturais, e necessitado de
explicações reconfortantes a respeito da vida, do destino e da morte, pois estava progressivamente
mais ativo diante das atuações externas a si.
Daí, Viana (2019, p. 201) continua afirmando que:
Quando o pensamento humano concebeu a tais deuses formas, vontades e emoções, fez com que
se tornassem cada vez mais antropomorfos e singulares. A consciência humana, imergida no mito,
passou a cristalizar as deidades em decorrência da cultura oral, fazendo com que a imagem de
um “deus particular” se tornasse comum e, a partir desta, fossem difundidas maneiras diferentes
de adoração, com rituais específicos a cada divindade que fosse cultuada por determinadas
famílias e/ou cidades.
Contudo, como frisado acima, é preciso que façamos uma autorreflexão, no sentido de
estabelecermos que não há como inferirmos uma concepção plena de algo que está muito
distante de nós. A ideia de que um raio cairá dos céus e todos os jornais e as revistas da internet
irão culpar um deus acaba se tornando risível, mas é por isso mesmo que não poderíamos,
jamais, olhar para o mundo desse homem greco-latino arcaico da forma como observamos
nosso próprio universo.
Para Cassirer (2013, p. 35), os mitos foram importantes na vida do homem ao passo em
que figuravam entidades sobre-humanas agindo “no atuar ordenado e duradouro do homem”,
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como causa e produto de toda uma realidade: a natureza, a vida humana e animal etc., tudo
era explicado – ou complementando – pelo mito.
Conforme observamos em Viana (2020, p. 13):
Apesar de não podermos datar com precisão em que momento essa concepção mítica, acerca
do mundo, passou a se desenvolver, estabelece-se, a partir dos fatores supracitados, que o
homem sentiu necessidade do mito desde que precisou entender, com maior logicidade, a si
mesmo e à natureza que o cercava. Portanto, percebemos que o mito foi tão importante quanto
o pensamento racional, para o desenvolvimento das civilizações.
Portanto, não há como estudar essa sociedade prescindindo a realidade mítica na qual este
homem estava inserindo. De acordo com Campbell (2015, p. 11): “O filósofo Giambattista Vico
(1688–1744) sugere que a primeira ideia de divindade fora suscitada ante o impacto produzido
pelo ruído do trovão. Esse estrondo é a primeira sugestão da existência de um poder superior
ao da comunidade humana”.
Além dessas questões concernentes à presença/participação do mito nessa sociedade,
é preciso pontuar que a agricultura liderou a economia romana durante séculos, sendo
potencializada durante o período republicano (509-27 a.C.), quando Roma dominou a Península
Itálica e derrotou Cartago, controlando as rotas comerciais do Mediterrâneo ocidental e tornandose um centro comercial (BEARD, 2020; FUNARI, 2002).
De fato, ao explorar as terras conquistadas, se utilizando de trabalho escravo e cobrança de
impostos, sobretudo em cima da venda de cereais, Roma prosperou e se fortaleceu – apesar
da grande diferença de classes que tal organização econômico-social gerou (BEARD, 2020;
FUNARI, 2002).
Por conta dos benefícios que a agricultura e o comércio de grãos trouxeram para a cidade,
este tema pode ser encontrado em diversos textos da literatura latina, a exemplo das Geórgicas,
de Virgílio, em que o poeta traz uma série de ensinamentos agrícolas, discorrendo, em cada
um dos quatro livros que compõem a obra, sobre um tipo de trabalho rural diferente.
Diante de tal cenário, concebemos que as divindades ligadas à agricultura eram muito
importantes para a sociedade romana, que era muito religiosa e prestava uma série de cultos
aos deuses os quais protegiam a cidade e poderiam beneficiá-la (ELIADE, 2018; RUTHVEN,
2010; BRANDÃO, 2015).
Conforme notamos em Viana e Costrino (2020), a deusa Vesta, ligada à castidade e à
proteção, era uma das deusas mais importantes do panteão romano, porque era conhecida
por proteger a cidade de maus augúrios e castigos vindos de outros povos ou, até mesmo,
dos deuses. Portanto, havia cultos prestigiosíssimos a ela, organizados pelas Vestais, as quais
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recebiam a incumbência de cuidar do templo da deusa e alimentar o fogo sagrado de seu
templo, assegurando sua benevolência.
Assim, apontamos para uma seriedade latente acerca dos cultos da cidade e seus deuses.
Segundo Viana (2020, p. 13-14):
Em Mito e Realidade (2016), Mircea Eliade ainda afirma que o homem da civilização Greco-Latina
Antiga precisava do mito, porque era através dele que se conectava com o mundo. O homem
enxergava, como diz Eliade (2016), em sua natureza, a natureza das florestas e dos animais, e
entendia que sua respiração era tão essencial quanto o vento que soprava as copas das árvores,
e seus ossos, tão vitais para sua sustentação quanto as montanhas o eram para o solo.
Em meio a tais deidades, podemos observar a relevância de Ceres na cultura romana,
em muitos dos poemas a que temos acesso. Retomando o exemplo das Geórgicas, podemos
encontrar uma menção muito importante a ela, no livro I (vv. 147-154):
prima Ceres ferro mortalis uertere terram
instituit, cum iam glandes atque arbuta sacrae
deficerent siluae et uictum Dodona negaret.
mox et frumentis labor additus, ut mala culmos
esset robigo segnisque horreret in aruis
carduus; intereunt segetes, subit aspera silua
lappaeque tribolique, interque nitentia culta
infelix lolium et steriles dominantur auenae.
Ceres foi a primeira a determinar que os mortais lavrassem a terra
com o ferro, quando as glandes e os medronhos já faltavam
à sagrada floresta e Dodona negava o alimento.
Logo, o labor lançou-se também aos cereais:
como a maléfica ferrugem devorasse as hastes
e o cardo improdutivo se eriçasse nos campos;
morrem as searas, introduz-se espinhosa vegetação
– Bardanas e abrolhos – e, entre campos bem cultivados,
imperam joio infecundo e aveias estéreis
(VIRGÍLIO, Geórgicas, I, v. 147-154, tradução nossa).
Diante disso, percebemos que Ceres é tida como responsável para que os homens possam
cultivar – logo: a agricultura, tão importante em Roma, é fornecida por ela.
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Assim mesmo, encontramos nas Metamorfoses, vv. 341-43, através da narração atribuída,
pelo poeta, a Calíope:
Prima Ceres unco glaebam dimouit aratro,
prima dedit fruges alimentaque mitia terris,
prima dedit leges; Cereris sunt omnia munus.
Primeiramente Ceres abriu o solo com o arado recurvo;
foi a primeira que deu os grãos e o fecundo alimento às terras,
a primeira que deu as leis. Todas as coisas são dádiva de Ceres
(OVÍDIO, Metamorfoses, V, vv. 341-343, p. 292, tradução nossa).
Nessa passagem, podemos perceber que Calíope2 atribui a Ceres todas as coisas existentes
na natureza – fazendo menção às leis que regem a natureza como sendo dádiva da deusa.
Tais leis ainda seriam vistas como uma alusão à imposição do labor aos homens, pois ela é
uma deusa de grãos rígidos, como o trigo e a cevada, que precisam ser plantados pelo homem
a fim de que este colha os benefícios e possa se alimentar.
Daí, Calíope diz que Ceres foi a primeira a rasgar a terra, remetendo ao fato de o homem
precisar, de fato, se esforçar para se beneficiar do que a deusa lhe oferta. Em Viana (2019,
p. 201-202), temos que:
Um exemplo de deusa que fora muito cultuada nessa época em que a conscientização acerca da
singularidade divina começou a moldar-se é Ceres: deusa das terras cultivadas que representa
a fecundidade das lavouras, sua importância destaca-se porque, assimilada a Deméter, faz-se
imprescindível para a alimentação e para o comércio, visto que o grão era muito consumido
por se tratar de uma sociedade agrícola e navegadora. Os gregos, a partir do século VIII a.C.,
cultivaram o que chamamos de “potaria”, prática que consistia na fabricação e utilização de
potes para conservação dos alimentos, o que intensificou a necessidade do produto, valorando
os cultos à deusa.
Notando a recorrência da importância desta deusa na literatura latina, decidimos analisar o
mito narrado no livro V das Metamorfoses, de Ovídio, que trata do rapto de Prosérpina3, filha de
Ceres e Júpiter4, por Plutão5, o que gera uma grande depreciação de Ceres e, consequentemente,
da natureza, pois esta deixa de hidratar-se para procurar a filha e pune a natureza pelo que
está sofrendo, acreditando que ninguém é digno de sua bondade.
2 Musa responsável pelo canto.
3 Deusa símile a Perséfone, responsável pela germinação das terras.
4 Deus símile a Zeus; senhor dos deuses e do Olimpo; mantenedor da ordem.
5 Divindade símile a Hades, irmão de Júpiter; senhor do mundo ínfero.
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Destarte, temos o objetivo de extrair os recursos imagéticos que evidenciam o desfecho da
narrativa, mesmo antes do livro V, e entender como a deusa fez parte do processo de divisão do
ano em estações. Na primeira seção, discutiremos brevemente a respeito das Metamorfoses,
de modo que possamos esclarecer a natureza da narrativa estudada; na segunda, analisaremos
o mito do rapto de Prosérpina, buscando contemplar a finalidade da pesquisa.
1 Metamorfoses e os mitos etiológicos
A obra Metamorfoses, de Ovídio, escrita no ano 8 d.C., inicia-se com uma cosmogonia,
tratando, em seguida, da transformação das coisas desde a origem do mundo até os tempos
em que o poeta viveu, conforme ele evidencia no proêmio:
In noua fert animus mutatas dicere formas
corpora; di, copetis (nam uos mutastis et illas)
aspirate meis primaque ab origine mundi
ad mea perpetuum deducite tempora carmen.
O ânimo [me] leva a dizer as formas mudadas
para novos corpos; deuses, pois vós as mudastes também,
Favorecei ao meu empenho e conduzi meu canto perpétuo
desde a primeira origem do mundo até os meus tempos
(OVÍDIO, 2017, Metamorfoses, I, vv. 1-4, tradução nossa).
A obra trata da cosmogonia apenas no primeiro livro, quando fala sobre temas como a
natureza em Caos (vv. 5-9); a separação dos elementos (vv. 21-25); e a divisão dos habitats
naturais para cada tipo de animal (vv. 72-75). De acordo com Viana (2019, p. 206):
Entre os versos 3 e 4 do proêmio, quando retrata: ab origine mundi ad mea tempora, que, em
tradução operacional própria, expressa: da origem do mundo até os meus tempos; Ovídio delimite
o recorte de tempo que utilizará dentro da obra, e vai além: ao utilizar a preposição de ablativo
[...] ‘ab’, marca um ponto de origem e, utilizando a preposição de acusativo [...] ‘ad’, estabelece
uma direção. Por utilizá-las em contraposto, o autor delimita o caminho que a narrativa percorrerá,
desenhando o movimento que será traçado pelo canto contínuo (perpetuum carmen, v. 4).
Do livro II ao XV, Ovídio traz narrativas de caráter etiológico, que não explicam mudanças
da ordenação do Cosmos, mas servem para apontar a causa ou motivo para fenômenos do
cotidiano, a exemplo do mito de Narciso, narrado no livro III, vv. 339-510, o qual é utilizado
para elucidar de onde vem o nome da tal planta de flores amareladas.
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Uma das grandes diferenças entre as duas partes constituintes do poema seria que: na
seção cosmogônica, ele fala de coisas jamais presenciadas por homem algum, sobre tempos
longínquos, em que a vida sequer era possível na Terra.
Após o proêmio, Ovídio dá continuidade à exegese apontando a existência do Caos primordial,
dizendo que, nele, tudo estava misturado e, por isso, a Terra encontrava-se em estado de
disformidade total, onde não se diferenciavam céu, terra e mar, noite e dia, ou mesmo o frio do
quente, o seco do úmido, o mole do duro e o pesado do leve (vv. 5-20), tudo era representado
por uma massa uma, inabitável, que impedia a proliferação de qualquer tipo de ser vivo mortal
(VIANA, 2019, p. 2016).
Já na etiológica, ele narra histórias condizentes a elementos do cotidiano, como o fato
de a folha de louro ser utilizada como símbolo de glória, que tem sua origem narrada no livro
I, após o momento cosmogônico, no mito de Apolo e Dafne (vv. 452-567). Porém: “Embora
a etiologia não necessite de uma explicação aprofundada a respeito de suas causas, Ovídio
a utilizará, por vezes, para explicar o que fora narrado no livro cosmogônico da obra, por
este não permitir maior profundidade acerca de determinadas minuciosidades” (VIANA, 2019,
p. 207).
Em meio ao corolário de mitos etiológicos que o poeta narra, encaixa-se o mito do rapto de
Prosérpina, o qual iremos analisar. Pois ele servirá para que ilustremos o que levou Júpiter a
findar a primavera, a qual, até então, era perpétua, impondo as estações do ano e reordenando
o Cosmos.
Enquanto narra o mito das quatro idades, Ovídio dirá entre os versos 113 e 116, que, durante
a transição da raça de ouro para a de prata, Júpiter reduziu a duração da antiga primavera,
mas não explicará o motivo por que o deus tenha tomado tal atitude. No livro V, porém, no
excerto compreendido entre os versos 341 e 571, enquanto narra o rapto de Prosérpina e suas
consequências, o poeta traz o motivo para que Júpiter tenha tomado a ação naquele momento,
criando uma ponte entre o início do livro e o mito etiológico. (VIANA, 2019, p. 207).
Portanto, pretendemos entender como o mito do Rapto de Prosérpina, na condição de
narrativa etiológica, pode nos elucidar as causas que levam Júpiter, na narrativa cosmogônica,
a cometer o ato de romper com a primavera – mais precisamente, buscaremos pôr à luz a
participação de Ceres nesse processo, indicando serem fulcrais suas ações, haja vista que a
ordem não pode prescindir de uma desordem.
Aqui, vale ressaltar que:
Júpiter, executando a função de mantenedor da ordem, que lhe é atribuída desde o mito das
quatro idades, envolve-se na trama do rapto de Prosérpina para estabelecer um pacto entre
Plutão e Ceres, a fim de apaziguar a irmã e não ferir a lei das Parcas, divindades assimiladas
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às Moiras que impediam que alguém deixasse os Infernos após quebrar o jejum. O resultado
do pacto, narrado entre os versos 564 e 571, faz com que se explique o motivo para que Júpiter
tenha tornado a primavera findável e o rapto de Prosérpina seja um forte exemplo de como a
etiologia é utilizada pelo poeta para explicar acontecimentos que ocorrem no livro I. (VIANA,
2019, p. 207).
No entanto, apesar de ter agido como medianeiro entre Ceres e Plutão, por fazer parte dos
ditames de seu atuar divino, Júpiter não é o responsável pela imposição do labor aos homens,
que vem a partir desta incumbência de fecundar as terras.
Mas, do contrário: conforme observamos, Ceres é quem obriga os homens a empunhar
o curvo arado e trabalhar a terra. Ela impossibilita que as terras floresçam e os grãos brotem
espontaneamente. Logo, Ceres é a grande causadora disso tudo. Sem que ela destruísse as
lavouras e impedisse os homens da raça de outro de se alimentarem das terras, as quais ela
tornara secas, eles não poderiam mais consumir frutas e raízes de maneira passiva, como
estavam costumados.
Destarte, tudo ocorre pelos feitos e pelo atuar de Ceres, e é isso que pretendemos elucidar
nesta pesquisa, analisando o mito do rapto de Prosérpina, no qual ela aparece como responsável
por toda essa transformação na natureza – Se Júpiter findou a primavera, foi Ceres que, antes,
impediu a terra de brotar.
2 Análise do mito do rapto de Prosérpina
Conforme mencionado anteriormente, quem narra o enredo do rapto de Prosérpina é
Calíope. Na passagem anterior à narração deste mito (livro V, vv. 250-340), as musas contam
a Minerva, deusa da sabedoria, sobre um embate musical que tiveram com as Piérides – nove
moças, filhas de Piério e Evipe, que acreditavam poder superar as musas (GRIMAL, 2000) – e
pedem para Calíope simular o canto entoado durante a disputa.
As musas dizem para Minerva que a primeira Piéride cantou a respeito da Titanomaquia6
de maneira deturpada (v. 319 e 320), e que se indignaram porque elas atribuíram glórias aos
Gigantes. Porquanto, as musas indicam Calíope, por excelência, para demonstrar a narrativa
cantada; e é assim, ao som da lira, que ela inicia a exegese, enaltecendo Ceres, e deixando
clara, desde o princípio, a importância da deusa para os romanos e para a transformação
etiológica, ocorrida ao final da narrativa (GRIMAL, 2000).
Após fazer a exortação a Ceres, Calíope fará menção à Titanomaquia, aludindo, mais
precisamente, à última batalha travada, ocorrida entre Júpiter e Tifeu. O deus, tendo derrubado a
6 Guerra entre deuses e titãs. Júpiter saiu vitorioso e fez imperar a ordem.
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criatura, causou tão grande estrondo, que Plutão – citado pela primeira vez no verso 356 através
do epíteto rex silentum, o rei dos silenciosos, fazendo referência ao fato de ele imperar sobre
o submundo onde ficam os mortos – ascende à superfície para ver o que estava acontecendo,
com medo de que a causa do barulho pudesse interferir nos Infernos.
Nesse ínterim, ela diz que estava Vênus lamentando-se ao seu filho Cupido, dizendo que o
seu império, que seria o Amor, estava sendo desprezado tanto por homens quanto por deuses:
‘Arma manusque meae, mea, nate, potentia’ dixit,
‘illa, quibus superas omnes, cape tela, Cupido,
inque dei pectus celeres molire sagittas,
cui triplicis cessit fortuna novíssima regni.
tu súperos ipsumque Iouem, tu numina ponti
victa domas ipsumque regit qui numina ponti.
Tartara quid cessant? cur non matrisque tuumque
imperium profers? agitur pars tertia mundi.
et tamen in caelo (quae iam patientia nostra est!)
spernimur ac mecum uires minuuntur Amoris. [...]’
‘Filho, minhas armas e meus braços, meu poder’, disse,
‘toma aqueles dardos com que tudo superas, Cupido,
e agita as céleres setas no peito do deus
a quem coube em sorte a última parte do tríplice reino.
Tu subjugas os deuses celestiais e o próprio Júpiter, as vencidas
divindades do mar e mesmo aquele que rege as divindades do mar.
Por que esperam os Tártaros? Por que não estendes o teu poder
e de tua mãe? Trata-se da terceira parte do mundo.
E, todavia, no céu (Que paciência é a nossa até agora!)
somos desdenhados; e comigo os poderes do Amor são diminuídos [...]’ (OVÍDIO, Metamorfoses,
V, 365-374, tradução nossa).
Vênus, em seu discurso, refere-se a Cupido como extensão de si, sendo o seu poder o dela
mesma. A deusa diz que céus e mares estão subjugados a ele, de modo a colocar a si própria
também como superior às demais deidades. Mostra que a subjugação se dá em relação aos
céus e mares, e indaga por que os Infernos devem esperar para também serem subjugados,
fazendo menção àquele que reina no mundo subterrâneo, Plutão. Dessa forma, ela, através
do filho, dilataria o seu poder, de que nenhum ser, mortal ou imortal, estaria livre. Mas critica
que, ainda assim, tomam-na por menor poder.
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Em seguida, vv. 375-379, Vênus fala sobre Palas7 e Diana8 terem se afastado dela, se
referindo ao fato de que as deusas são virgens, e como ela tem essa representação do amor
erótico, ela quer que ao menos Prosérpina não se mantenha casta. Assim, ela exorta Cupido
a infligir no coração de Plutão uma paixão funesta por Prosérpina. No momento em que a
vê, Plutão se apaixona perdidamente, raptando-a no mesmo instante. É assim que Calíope
descreve o acontecimento:
frigora dant rami, uarios humus umida flores;
perpetuum uer est. quo dum Proserpina luco
ludit et aut uiolas aut candida Lilia carpit,
dumque puellari studio calathosque sinumque
implet et aequales certat superare legendo,
paene simul uisa est dilectaque raptaque Diti;
usque adeo est properatus amor. dea territa maesto
et matrem et comites, sed matrem saepius, ore
clamat, et ut summa uestem laniarat ab ora,
collecti flores tunicis cecidere remissis.
Os ramos dão frescor, a terra úmida, flores púrpuras;
a primavera é perpétua. Enquanto Prosérpina brinca neste
lugar e colhe ora violetas, ora cândidos lírios,
e enquanto com entusiasmo de menina enche os açafates e o colo,
rivaliza as iguais, buscando superar suas iguais na colheita,
quase simultaneamente é vista, desejada e raptada por Dite;
a tal ponto é apressado o Amor! A deusa, aterrorizada,
chama pela mãe e pelas companheiras com voz aflita,
mas mais frequentemente pela mãe. E, como a veste
rasgara desde a borda mais alta, as flores
colhidas caíram da túnica afrouxada
(OVÍDIO, Metamorfoses, V, 390-399, tradução nossa).
Da queda das flores colhidas, é possível inferirmos a primeira imagem das futuras folhas
caídas com o fim da primavera, que ocorrerá ao final de cada ciclo. Primeiro Calíope mostra
a importância da umidade para a produção das flores, e essa informação será crucial para
7 Palas Atena, símile a Minerva, deusa da sabedoria e da astúcia guerreira.
8 Irmã de Apolo, deusa da caça.
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percebermos o que o poeta pretende mostrar mais adiante, pois ele vai estabelecer uma
ligação direta entre a autodepreciação de Ceres e a destruição da natureza, mostrando-a tão
devastada e seca quanto a deusa, que se abstém de tudo que a vivifique.
Quando é dito que a primavera é perpétua, o poeta vai colocar esse mito em paralelo ao mito
das quatro raças narrado no livro I do poema, porque até o momento em que Júpiter extirpou
a raça de ouro e instituiu a de prata, Ovídio diz expressamente que a primavera era perpétua:
a primavera era eterna, e os calmos Zéfiros de brisa morna / afagavam as flores nascidas sem
serem semeadas (OVÍDIO, Metamorfoses, I, 107-108), e que deixou de ser no momento exato
da imposição da raça de prata, que seria justamente a raça laboriosa que, segundo o louvor
feito por Calíope, Ceres instituiu:
Postquam Saturno tenebrosa in Tartara misso
sub Ioue mundus erat, subiit argentea proles,
Auro deterior, fuluo pretiosor aere.
Iuppiter antiqui contraxit tempora ueris
perque hiemes aestuque et inaeqalis autumnos
et breue uer spatiis exegit quattuor annum.
Depois que, tendo sido Saturno enviado ao tenebroso Tártaro,
o mundo estava submetido a Júpiter, a raça de prata surgiu,
inferior à de ouro, mais prestigiosa que a do fulvo bronze.
Júpiter contraiu os tempos da antiga primavera;
e por meio de invernos, verões, outonos desiguais
e uma primavera breve, estabeleceu o ano em quatro estações
(OVÍDIO, Metamorfoses, I, 113-118, tradução nossa).
A prolepse apresentada no livro I acerca do surgimento da raça de prata, e com ela, o do
ciclo da natureza que torna possível o cultivo da terra, antecipa o mito do rapto de Prosérpina.
Ceres concederá aos homens grãos que precisam ser plantados e cuidados para que sejam
consumíveis, diferentemente da condição anterior, em que a natureza, em perpétua primavera,
fazia tudo brotar espontaneamente.
O prelúdio narrado por Calíope pode ser observado no momento do rapto, pois quando ela
descreve as flores caindo do colo de Prosérpina, perfazendo um movimento desde a borda
mais alta ao chão, se faz concebível, uma vez que ela é a deusa da germinação das terras, que
o poeta esteja antecipando a descida de Prosérpina aos Infernos e a consequente queda das
folhas. Ele demonstra, através da narração de Calíope, a futura interrupção da perpetuidade
da primavera.
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Seguindo, quando Plutão pretende descer aos Infernos com a deusa, Cíane, uma ninfa do
rio, tenta impedi-lo e acaba por ofendê-lo ao dizer que ele não deveria raptá-la por estar numa
posição de inferioridade em relação à Ceres; sua atitude leva o deus a metamorfoseá-la em
uma fonte de água da Sicília. A menção às ninfas ao longo da narrativa pode ser vista como
uma forma de o poeta situar-nos geograficamente – técnica utilizada ao longo de toda a obra.
Então, como Prosérpina havia gritado pedindo socorro, Ceres vai escutar e começar a
procurá-la incessantemente, e assim é narrada toda sua fraqueza, pois ela se priva tanto do
néctar quanto da ambrosia enquanto está em busca da filha, tornando-se desnutrida. Nesse
momento, notamos a primeira consequência que se reflete na natureza, pois a umidade de
antes (v. 390) não existe mais.
Após ter errado por todos os cantos existentes, a deusa volta à Sicília, onde tudo havia
começado, e vai até a fonte em que Cíane havia se transformado. Como a ninfa não pode
mais falar, mas quer muito explicar o que houve, faz com que o cinto de Prosérpina emerja à
superfície para que a mãe reconheça que ela fora raptada, e assim ocorre. Ao entender o dolo
cometido, Ceres começa a descabelar-se e destruir os arados da terra, imprecando todos os
cantos do mundo e dizendo que nada nem ninguém continua digno de sua fertilidade, extirpando
todo tipo de proliferação da natureza, principalmente na região Sicília:
Nescit adhuc ubi sit; terras tamen increpat omnes
ingratasque uocat nec frugum munere dignas,
trinacriam ante alias, in qua uestigia damni
repperit. ergo illic saeua uertentia glaebas
fregit aratra manu parilique irata colonos
ruricolasque boues leto dedit arauaque iussit
fallere depositum uitiataque semina fecit.
Até então desconhece onde esteja; no entanto increpa todas as terras
e chama ingratas, nem da dádiva dos grãos dignas,
Antes de outras, a Trinácria, onde descobriu vestígios do rapto.
Logo, com a mão irada, destruiu ferozmente os arados que
revolvem as terras e deu morte igual a fazendeiros e bois.
Ordenou as terras cultivadas a violar as sementes
depositadas e igualmente estragou as sementes
(OVÍDIO, Metamorfoses, V, 474-480, tradução nossa).
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Tal cena figura muito bem as emoções de Ceres, as quais refletem diretamente na harmonia
da natureza. Tudo de fato estava subjugado a ela, sequer se diferenciando homens e animais.
Tanto é assim que o quadro seguinte traz a imagem do Caos estabelecido por ela, tornando
necessária a intervenção de Júpiter como mantenedor da ordem (OVÍDIO, Metamorfoses, V,
481-486). Após esse momento, Aretusa entra em contato com Ceres e tenta amolecer o peito
irado da deusa ao dizer que ela é mãe tanto de Prosérpina quanto da terra, como se estivesse
querendo mostrar-lhe que ela não deveria punir a terra privando-a de fertilidade, mas deveria
cuidar dela tanto quanto estava cuidando de Prosérpina:
‘o Toto quaesitae uirginis orbe
et frugum genetrix,, immensos siste labores,
neue tibi fidae uiolenta irascere terrae;
terra nihil meruit patuitque inuita rapinae. [...]’
‘Ó mãe da virgem procurada em todo o orbe
edas searas, sustém os imensos labores,
e não enraiveça violentamente da terra fiel a ti;
a terra nada mereceu e se abriu forçada ao rapto [...]’
(OVÍDIO, Metamorfoses, V, 489-492, tradução nossa).
Então a ninfa diz ter visto Prosérpina no golfo estígio, rio que banha os Infernos, com
aparência triste, e revela ser Plutão seu raptor. Enfurecida, Ceres vai a Júpiter e suplica que ele
reverta o ocorrido, utilizando o argumento de Prosérpina também ser sua filha e não merecer
casar com Plutão, principalmente forçada:
‘pro’ que ‘meo ueni supplex tibi, Iuppiter’ inquit,
‘sanguine proque tuo; si nulla est gratia matris,
nata patrem moueat, neu sit tibi cura, precamur,
uilior ilius, quod nostro est edita partu.
en quaesita diu tandem mihi nata reperta est,
se reperire uocas amittere certius, aut si
scire ubi sit reperire uocas. quod rapta, feremus,
dummodo reddat eam: neque enim praedone marito
filia digna tua est, si iam mea filia non est.’
‘É por meu sangue, Júpiter, e pelo teu’, disse,
‘que vim suplicante a ti. Se nenhuma é a graça da mãe,
54
a filha comova o pai; que não seja para ti, suplico,
cuidado de menor preocupação do que ele, porque
nossa descendência é elevada.
Eis que a filha a muito procurada por mim é encontrada,
isto é, se chamas encontrar estar certo de perder
ou se chamas encontrar saber onde esteja. Que foi raptada,
sofreremos, contanto que a devolva: nem mesmo
tua filha, se já não é minha, é digna de ter por marido um ladrão
(OVÍDIO, Metamorfoses, V, 514-522, tradução nossa).
Após a súplica, Júpiter vai dizer que não acha Plutão um genro indigno e lhe atribui o
mérito de ser seu irmão, mas concorda em intervir desde que Prosérpina não tenha rompido
o jejum. A questão do jejum é levantada porque, apesar de ser muito poderoso, Júpiter tinha
restrições quanto ao seu poder, não podendo se impor sobre os domínios dos demais deuses
e divindades. Os Infernos eram regidos, além de por Plutão, pelas Parcas9, e elas tinham suas
próprias regras estabelecidas que não deveriam ser transgredidas; uma delas era essa: caso
alguém rompesse o jejum nos Infernos, jamais poderia deixá-lo eternamente.
Sendo assim, Ceres se anima por acreditar que a filha não haveria de ter se alimentado,
porém, uma vez que lá estão, Ascálafo informa que Prosérpina havia consumido sete grãos
de romã, e em meio à ira por ele ter delatado sua filha, Ceres vai transformá-lo em pássaro de
mau agouro.
Portanto, em vista do ocorrido, Júpiter institui um pacto entre Plutão e Ceres, de modo a não
transgredir a lei das Parcas, não ferir o poder de Plutão e apaziguar, ainda que parcialmente,
Ceres, fazendo com que Prosérpina passe metade do ano com a mãe, e metade com o marido:
At medius fratrique sui maestaeque sororis
Iuppiter ex aequo uoluentem dividit annum;
nunc dea, regnorum numen commune duorum,
cum matre est totidem, totidem cum coniuge menses,
vertitur extemplo facies et mentis et oris;
Mediador do seu irmão e da sua aflita irmã,
Júpiter dividiu o ano cíclico em partes iguais;
agora a deusa, divindade comum dos dois reinos,
está com a mãe e com o marido durante o mesmo número de meses
(OVÍDIO, Metamorfoses, V, 564-568, tradução nossa).
9 Divindades símiles às Moiras gregas.
55
Ceres aceita o acordo, no entanto, sempre que está perto de sua filha descer aos Infernos,
a terra começa a ficar infértil e as folhas a caírem, sinal tanto da tristeza de Ceres quanto
da privação da terra em relação à germinação fornecida por Prosérpina, e uma vez que ela
desce de fato ao submundo, temos a continuidade do outono e o inverno, que abre espaço à
primavera quando Prosérpina volta ao seio materno.
Considerações finais
O pronto principal da pesquisa é observar a importância de Ceres em todo esse processo
que envolve a separação do ano em estações, a imposição do labor aos homens e a ligação
dela com o estado da natureza, buscando perceber sua figura como preceptora dos homens,
mostrando que ela possibilitava o cultivo e consequentemente a sobrevivência humana, regendo
a natureza e dispondo da fertilidade de suas terras. Nesse sentido, a organização das estações
foi positiva para a humanidade, essa sucessão de climas fez com que o homem começasse a
se adaptar à natureza e a desenvolver técnicas de plantio, colheita e estocagem, tornando-o
capaz de se desenvolver ainda em outras áreas.
Também pretendemos entender o caráter etiológico das Metamorfoses, onde o mito funciona
como explicação da causa das coisas, trazendo o mito do rapto de Prosérpina como explicação
etiológica para que Júpiter tenha encerrado a perpetuidade da primavera na transição das
raças de Ouro e Prata, e buscamos analisar como se faz importante que ocorra uma desordem
para que a ordem se restabeleça e se configure de maneira diferente, proporcionando uma
evolução constante do cosmos, onde a presença de Júpiter como mantenedor de tudo isso é
crucial.
Este mito, então, explicita, além de todas as importâncias de Ceres para a sociedade e para
a subsistência humana, que foram citadas do decorrer do texto, as características primordiais
de Júpiter, pois ele é visto novamente como o mantenedor da ordem. As ações que Plutão
cometeu sob a influência do Cupido e tudo o que Ceres causou à natureza trouxeram de volta
a desordem cósmica que Júpiter impôs após a Titanomaquia. Sua menção por Calíope no
primeiro momento se faz imprescindível para figurar que desde os primórdios a característica
fundamental de Júpiter é a de estabelecer e manter a ordem, fazendo com que percebamos
que toda a resolução deste mito nada mais é do que ele, mais uma vez, exercendo este papel
crucial para a existência da vida.
Se os cultos a Ceres são vitais por sua capacidade de privar o homem e os animais
de alimentos através da infertilidade das lavouras, os cultos a Júpiter se tornam essenciais
por causa da necessidade de que ele esteja sempre cuidando da conservação da ordem da
natureza. Assim, percebemos como a cooperação entre dois deuses tão venerados pelos
Romanos contribuiu para a reorganização cósmica.
56
Referências
AVELLAR, J. B. C. de. Linguagem, trabalho e cultura: imagens do labor nos livros I e III das
“Geórgicas” de Virgílio. Cadernos Cespuc, n. 25, 2014. Disponível em: http://periodicos.
pucminas.br/index.phpcadernoscespuc/article/view/11117. Acesso em: 21 jul. 2020.
BEARD, M. SPQR: uma história da Roma Antiga. 2. ed. São Paulo: Crítica, 2020.
BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. v. 1. 26. ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2015.
CAMPBELL, J. As transformações do mito através do tempo. Tradução Heloysa de Lima
Dantas. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 2015.
ELIADE, M. O sagrado e o profano. Tradução Rogério Fernandes. 4. ed. São Paulo: Ed.
WMF Martins Fontes, 2018.
FUNARI, P. P. Grécia e Roma. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2002.
GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução Victor Jabouille. 4. ed. Rio
de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2000.
OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução Domingos Lucas Dias. São Paulo: Ed. 34, 2017.
RUTHVEN, K. K. O mito. Tradução Esther Eva Horivitz. São Paulo: Perspectiva, 2010.
VIANA, L. M. Q. Vicissitudes da natureza: as ações de Ceres que favorecem a
reorganização do cosmos, livro V das Metamorfoses de Ovídio. Mosaico, v. 18, n. 1, p. 198219, 2019.
VIANA, L. M. Q. Interculturalidade e tradição: as acepções de Vênus e Afrodite no
Pervigilium Veneris. 2020. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Letras
Clássicas) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba,
Joaõ Pessoa, 2020.
VIANA, L. M. Q.; COSTRINO, A. Castidade, poesia e declamação: comentários ao excerto
6,8 das controvérsias de Sêneca, o Velho. Letras Escreve, v. 10, n. 2, p. 97-110, 2020.
57
Literatura em podcast:
a adaptação da obra
A Eneida, de Virgílio,
para o audiodrama
Isadora Lima Ramalho
Introdução
Das adaptações da obra virgiliana se destacam Le aventure di Enea (1974) de Franco
Rossi e La leggenda di Enea (1962) de Giorgio Venturini. A primeira adaptação, de Rossi, foi
realizada numa época em que estavam em voga produções de caráter histórico, nacionalista
e literário. Por isso, de acordo com Rodrigues (2019), havia uma preocupação em “reclamar”
a origem italiana do poema épico, existindo ligações entre evidências histórico-arqueológicas
e a narrativa em questão. Enquanto a segunda produção pertencia ao gênero Western. Sendo
assim, Enéias, o protagonista, foi interpretado pelo ator americano Steve Reeves que, “quieto
e reservado, contrastava com o revanchismo político que sucedeu a Primeira Guerra Mundial”
(POMEROY, 2017).
Além disso, o rádio promovia o acesso indireto à literatura ao tornar audível a voz dos
personagens e suas ambiências emocionais, o que de certa forma trazia o texto literário para
perto do cotidiano dos potenciais futuros leitores (REIS, 2018).
Dessa forma, este texto tem como objetivo analisar o primeiro capítulo da radionovela A
Eneida é uma fanfic e mostrar a diferença entre as duas recepções (visual e auditiva). Vale
ressaltar que, quando se fala de tradução intersemiótica, não é apenas a transmutação de um
conteúdo de um meio de expressão para outro. Existem outros fatores que devem ser levados
em consideração, como o gênero (épico e radiofônico), e o contexto sociocultural no qual
as obras estão inseridas. Este estudo tem como base as teorias da tradução intersemiótica
como de Stam (2000), Plaza (1987), além de teorias voltadas para a dramaturgia e linguagem
radiofônica como Vicente (2018) e Ferrareto (2014).
1 A tradução intersemiótica
Antes da análise acerca da versão radiofônica da epopeia de Virgílio, é importante definir
ou esclarecer o que poderia ser “fidelidade” dentro de uma adaptação. Para Stam (2000), o
uso da palavra “fidelidade” é problemática e pode ser questionado a partir do momento em que
a adaptação e a obra fonte pertencem a meios distintos, ou seja, são linguagens diferentes
e são formas diferentes de passar uma mensagem. Além disso, essa palavra denota uma
ideia de hierarquia que não deve existir a partir do momento que adotamos o ponto de vista
anteriormente exposto. Dessa forma, de acordo com Stam, uma adaptação pode ser vista como
um diálogo entre textos. Assim, esse dialogismo refere-se a abertas possibilidades geradas
por práticas discursivas em uma cultura. Deste modo, de acordo com Balogh (2018), como se
trata de dois textos estéticos, a coesão entre esse conteúdo permite o trânsito textual e, ao
mesmo tempo, uma expressão diversa que o atualiza. Isso abre espaço para a criação de um
59
novo produto. Em Plaza (2003), a hibridização ou o encontro de dois ou mais meios constitui
um momento de revelação do qual nasce uma forma nova.
A partir deste ponto, pode-se considerar que a leitura de um texto (que é algo pessoal e,
consequentemente, pode gerar infinitas adaptações) é influenciada pelo contexto sociocultural
no qual o leitor está inserido e atua na composição/tradução de um texto de partida. Assim, uma
poesia épica composta na Roma Antiga no século 19 a.C. não pode ter as mesmas referências
e os mesmos objetivos de uma adaptação feita no Brasil no século XXI.
2 Da epopeia para a radiodramaturgia
2.1 O gênero épico
Em resumo, a Eneida conta o mito da formação de Roma, e consequentemente do povo
romano. Enéias, após ver Troia, a sua cidade natal, ser destruída, recebe uma missão dada pelo
destino: chegar à Itália e fundar a “Nova Troia”. Para Fuhrmann (1985, p. 91, grifo e tradução
nossos10), a poesia épica apresenta as seguintes características:
A poesia épica greco-romana evidencia, além das formas básicas elementais da narração (relato,
descrição, cena, discurso pessoal), uma série de convenções e tipos de exposição que são
especialmente característicos da mesma. Sua característica fundamental é que os acontecimentos
terrenos sejam sempre ultrapassados por uma ação divina. Por isso, a epopeia pode ser definida
como um gênero literário que abarca as ações divinas, heroicas e humanas. Os relatos épicos
de combates se dividem em lutas individuais, nas quais são expostas as façanhas de um heroi,
e lutas grupais, nas quais se misturam entre si as pelejas de vários campeões.
Dessa forma, além de colocar em evidência “fatos heróicos vividos por personagens humanos
excepcionais, manipulados, de certa maneira, pelo poder dos deuses” (CARDOSO, 2011,
p. 6), a epopeia veio com a necessidade de fixar as histórias que foram passadas de geração
em geração. Com o advento da escrita, essas narrativas foram imortalizadas em versos.
A épica, entretanto, está presente em quase todas as culturas. Raros são os povos que não têm
suas histórias, que não cultuam seus heróis e não procuram preservar a lembrança dos fatos que
viveram. O registro desses fatos só foi possível, até bem pouco tempo, pela palavra. Como, porém,
a palavra oral se desgasta e se corrompe com frequência, tornou-se necessário o encontro de
formas que lhe garantissem afixação. A escrita só apareceu tardiamente entre as civilizações; o
meio encontrado para fixar a narrativa foi, então, o verso. Fechado em sua rigidez, memorizável
10 No original: “La poesía épica greco-romana evidencia, por encima de las formas básicas elementales de la narración (relato, descripción,
escena, discurso personal), una serie de convenciones y de tipos de exposición que son especialmente característicos de la misma. Pertenece
a sus rasgos fundamentales el que los acontecimientos terrenos sean siempre sobrepujados por una acción divina. Por ello pudo ser definida
la epopeya como un género literario que abarca Las acciones divinas, heroicas y humanas. Los relatos épicos de com batesso dividen en
luchas individuales, en las que se exponen las gestas de un héroe, y com bates en cadena en los que se enlazan entre sí las peleas de varios
campeones”.
60
com facilidade graças ao ritmo melódico de que se constitui e aos recursos mnemônicos de que
se vale, o verso assegura sua própria permanência e sua quase total imutabilidade. (CARDOSO,
2011, p. 6).
Por fim, era através da literatura que, segundo Cardoso, as crianças tinham as primeiras
noções de história, geografia, ética, mitologia e religião. Para Fuhrmann (1985, p. 91), o poema
épico se converteu em um meio de auto manifestação nacional. Costa (2017) diz que, segundo
Bakhtin, a epopeia possui três características: o passado nacional épico (origem dos romanos),
a lenda nacional (Enéias) e a história sendo retratada isoladamente do tempo do escritor.
Vale frisar que a epopeia representava uma espécie de campanha política do imperador
Augusto, pois, segundo Costa (2017), ao escrever sobre a história de Enéias, Virgílio escreveria,
também, sobre o princeps romano que se autoproclamava descendente do príncipe troiano.
Em Pires (2016), a Eneida fazia parte de um contexto cultural cujo objetivo era promover uma
produção literária equivalente à grega. Além do mais, havia uma necessidade do governo
Augustano de redefinir a identidade de Roma perante o mundo. Vale ressaltar que a incorporação
da produção literária ou de qualquer elemento cultural estrangeiro fazia parte da dominação do
Império Romano. Assim, Fuhrmann afirma que os romanos incorporaram gêneros da literatura
grega que tinham destaque na vida social, como a tragédia e a comédia.
2.2 O radiodrama
Assim como a poesia épica, a dramaturgia também apresenta, desde as radionovelas,
uma importante função social. Da mesma maneira que a Eneida era uma campanha política
do imperador Augusto e transmitia os valores morais e filosóficos vigentes da época, como o
estoicismo, as radionovelas não apenas entretinham o público, como também retratavam os
interesses das classes dominantes.
[...] entre os protagonistas masculinos, eram predominantes os empresários e profissionais liberais,
enquanto grande parte das “protagonistas femininas está na categoria ‘sem ocupação definida’,
fato compreensível, pois, na maioria das vezes, essa posição é ocupada pelas personagens
jovens, que são cuidadas por seus pais. Não é comum que o romance principal se passe com
personagens de meia-idade ou mais velhos. (CALABRE, 2006, p. 156).
Fica patente, deste modo, o protagonismo das classes dominantes e a posição submissa
da mulher, o que coincide com as afirmações de Goldfeder acerca da função dos programas
como sendo de reforçar o sistema de valores vigente (VICENTE, 2018). Entretanto, houve uma
atualização na estrutura do conteúdo da dramaturgia, ainda nas radionovelas na década de 50.
De acordo com Vicente (2018), o autor Dias Gomes passou a incorporar elementos da cultura
popular em suas produções. Além disso, classes sociais que até então passavam despercebidas
61
nas histórias ganharam protagonismo como mendigos, camponeses e desempregados, fora
as novas ambientações que mostravam uma vida mais realista longe das luxuosas “mansões”.
Deste modo, para Severo (2017), a marca distintiva da telenovela brasileira é a inserção de
cenas de modo explícito e pedagógico.
Quanto à estrutura do roteiro, onde desenvolve-se a jornada do herói, os protagonistas
devem desempenhar provações físicas e espirituais semelhantes para adquirirem complexidade
e motivação (JENKINGS, 2015). Ademais, o roteiro pode conter subtramas que se cruzam
dando dinamicidade à história.
A estrutura do melodrama é simples, bipolar, com personagens opostos – entre vício e virtude
–, alternando momentos de extremo desespero e desolação com momentos de serenidade e
euforia. O enredo geralmente apresenta elasticidade na trama, cujo traço principal é a surpresa
(o clímax) e os temas frequentemente entrelaçados de reparação, justiça e busca pela realização.
(REIS, 2013, p. 42).
Para atribuir uma maior dinamicidade à radionovela, foram compactados no primeiro capítulo
os três primeiros livros da Eneida, sendo retirados trechos que faziam referências s outras obras
anteriores, como a Odisseia (visto que alguns ouvintes podiam desconhecer) e trechos que
faziam referências a fatos, pessoas e lugares que poderiam atrapalhar a fluidez da experiência.
Além disso, algo comum na adaptação de obras literárias para o audiovisual é a criação de uma
espécie de maniqueísmo, isto é, são explorados apenas os aspectos bons dos protagonistas
(virtudes), como o herói Enéias, e os aspectos ruins dos vilões (vícios), a deusa Juno, que
tem o papel de impedir a sua chegada na Itália e o triunfo dos troianos no Lácio. Por fim, uma
observação importante é que o público-alvo influencia a maneira como ocorre essa construção
de roteiro, que será abordado no tópico a seguir.
3 Análise da radionovela
A radionovela A Eneida é uma fanfic está voltada, sobretudo, para um público jovem que
ainda não teve acesso à obra literária; isso justifica algumas decisões que foram tomadas
no momento da elaboração do roteiro. Assim, neste tópico, serão analisados os sistemas
expressivos (narração, música, efeito sonoro) e a composição da história, mais precisamente
a construção do protagonista Enéias.
3.1 Sistemas expressivos
Os sistemas expressivos dão o caráter sensorial à radionovela e fazem o público imergir na
história. A música, a narração, os efeitos sonoros e, até mesmo, o silêncio podem comunicar
62
uma mensagem. Começando pela narração, ou a palavra radiofônica, que pode ser definida
como “uma integração entre o texto escrito e oral com um tratamento sonoro pela voz no que
se refere à intensidade, ao volume, ao intervalo e ao ritmo” (REIS, 2013). Para Ferrareto (2014),
a narração não pode ter linguagem coloquial ou jargões, por exemplo; deve ser clara e objetiva
para que o ouvinte não tenha dúvidas da informação recebida. Entretanto, como a Eneida é
uma fanfic é voltada para o público jovem e possui um tom humorístico, coube a escolha de
expressões de uso popular.
Quadro 1. A Guerra de Troia
Texto Literário
Radionovela
Narrá-los vou. Repulsos, quebrantados
Pós tantos anos de fatais reveses
[...]
Próspera à sombra do priâmetro cetro;
Hoje ermo porto, às quilha mal seguro:
Numa abra ali se escondem. Nós os cre
mos
Velejando na rota de Micenas.
Teûcria do largo nojo enfim respira:
(Eneida. II, v.15- 30)
[Cena 11]
Narradora: Talarico: uma pessoa amável, rápida, prática e
objetiva. Talarico é aquele que tenta conquistar uma pessoa
comprometida. Pois é... em pensar que essa história toda
começou com uma talaricagem. Exatamente, queridos ouvintes.
Páris, o príncipe de Tróia, achou que seria uma boa ideia talaricar
Menelau, o rei de Esparta e deu no que deu: os gregos declararam
guerra à pátria de Enéias. E depois de 10 anos de guerra, houve
uma sensação de paz. Os pobres troianos, aliviados com o fim
da batalha, contemplavam um grande cavalo de madeira, que o
exército de Ulisses teria “deixado” diante dos portões. “Deixado”
entre aspas né? Porque nós sabemos muito bem que os gregos
estavam escondidos lá dentro. Ah, gente, não existe spoiler de
obra antiga, existe informação não repassada, é diferente. Bom,
o que interessa é que Lacoonte, o sacerdote de Apolo, já estava
suspeitando de tudo.
(A Eneida é uma fanfic, p. 7)
No texto literário, esse trecho pertence ao Livro II, enquanto na radionovela já aparece no
primeiro capítulo. Esse extrato mostra as consequências da Guerra de Troia para os troianos e
de que maneira o território foi destruído. Existem três aspectos que podem ser destacados. O
primeiro é que na obra fonte, o Livro II é inteiramente narrado pelo protagonista Enéias; por outro
lado, na obra radiofônica a figura do narrador se mantém. Em segundo lugar, visto que a Eneida
faz uma referência aos acontecimentos da Ilíada de Homero, deve ser levado em consideração
que uma parte do público não conhece esse cânone, logo existiu uma necessidade de resumir
a obra Homérica e ao mesmo tempo explicar o porquê de Enéias e seus companheiros estarem
refugiados. Por último, como foi dito anteriormente, há a presença da linguagem coloquial, como
a palavra “talarico”. Por conta da escolha do público alvo e do tom humorístico da radionovela,
houve essa liberdade.
A música também é considerada um sistema expressivo, para Silva (2007) aquilo que cria o
“clima emocional” ou a “atmosfera sonora” nas narrativas é denominado “trilha sonora”. Ocorre
a substituição da mimese visual e literal pelo realismo da subjetividade e pela sensualidade do
pensamento (STAM, 2003).
63
Quadro 2. Amor à primeira vista
Texto Literário
Radionovela
Mal acabava, a nuvem circunfusa
Se rompe e funde nos delgados ares.
Um deus na espalda e vulto, à claridade
Resplende Enéias; que num sopro a
Deusa
Ao filho a cabeleira em fulgor banha
[...]
Da presença do herói pasma a Fenisa,
Tal sucesso a comove [...]
(Eneida. I, v. 615- 646)
Narradora: Enéias, emocionado com tais palavras,
resolve sair da névoa que o cobria. (música do casal)
Dido, ao ver sua imagem resplandecente de luz e seus
cabelos magníficos como da deusa Vênus, achou que
estava diante de um deus. É ouvinte, vai rolar e não
é pouco
(A Eneida é uma fanfic, p. 6)
Os trechos acima mostram como o casal protagonista da primeira parte da Eneida se vê
pela primeira vez. Na obra literária, Dido fica impressionada com o herói, ficando pasma diante
de sua presença e dando indícios de que a atração teria se iniciado nesse ponto. Na adaptação,
a presença da música romântica já sugere o despertar do sentimento, fazendo com que o
ouvinte intua o vindouro romance, antes mesmo da confirmação dada pela narração.
3.2 Narrativa dramática
O roteiro foi escrito a partir de dois tipos de espectadores: os espectadores em tempo real,
que estão tendo contato com o texto pela primeira vez e que precisam encontrar suspense
e satisfação em cada um dos episódios, e os navegantes, os quais já leram a obra literária e
têm o prazer em acompanhar as conexões entre as diferentes partes da história e os diversos
arranjos do mesmo material (JENKINS, 2015). Vale destacar que a composição de um roteiro
adaptado leva em consideração não só o público-alvo (no caso, um público mais jovem, como
adolescentes), mas também o contexto sócio-histórico no qual o tradutor/adaptador está
inserido. Dessa maneira, segundo Severo (2017), o roteiro precisa apresentar verossimilhança,
iconização e o receptor precisa se sentir representado.
64
Quadro 3. A morte de Anquises
Texto Literário
Radionovela
Ah! Perco o genitor, na angústia e penas
Meu só conforto: a mim desconsolado
Ai! Tu, de riscos mil vamente ileso,
Aqui, ótimo pai, tu me abandonas.
Tais lutos, augurando Heleno horrores,
Não mos predisse, nem a infausta Harpia
Eis o último trabalho, eis a baliza
De navegações longas. Deste porto
(Eneida. III, v. 739-745)
Anquises: Ô meu filho, bem que Cassandra já
anunciava o que iria nos acontecer.
Enéias: Não fale mais nada, descanse. Pedi para
Palinuro parar no porto mais próximo para procurarmos
um médico.
Anquises: Não há mais tempo. Aquele Profetisa, do
templo de Apolo, falou que meus dias estavam no fim.
E não é que o desgraçado acertou?
Enéias: Pai, estamos perto da Itália.... falta tão pouco.
Eu quero o senhor do meu lado quando chegarmos
lá, quando construirmos as primeiras casas... Quando
Ascânio crescer.
Anquises: Quem disse que não estarei? Sempre vou
acompanhar os seus passos.
Enéias: Estamos chegando no porto. O senhor não
vai morrer.... Eu não quero perder mais ninguém.
Anquises: Enéias, seja forte. Escute minhas palavras:
Seja o líder que esses homens precisam e lembre-se
de uma coisa: o seu destino é onde o seu coração
estiver.
(A Eneida é uma fanfic, p. 16)
Quadro 4. A morte de Creúsa
Texto Literário
Radionovela
Ei-la afável me alenta e assim me acalma:
“Que vale a dor sobeja, ó doce esposo?
Sem nume isto não é: levar Creúsa
Te veda o fado, o regedor sublime
Do Olimpo o não consente. Em longo exílio
Tens de arar vasto pego até a Hespéria […]
Um reino ali te espera e uma princesa.
Nem eu, dardânia e de Vênus nora,
Irei servir as téssalas altivas,
Nem dolopeias damas: cá me impede
A grande mãe Cibele. Adeus, Eneias;
Todo na prenda nossa o amor emprega”.
(Eneida. II, v. 808-825)
Creúsa: Não precisa mais me procurar. Infelizmente,
não pertenço mais a esta terra.
Enéias: O quê? Mas...
Creúsa: Não se preocupe, não sofri. Minha sogra não
permitiu. Agora vá! Você deve ficar exilado por um
tempo. Além do mar, você terá riquezas... e uma rainha
te espera.
Enéias: O que eu fiz? A culpa foi minha! Eu devia ter
te protegido, devia ter prestado atenção em você.
Creúsa: Você não tem culpa de nada, meu querido,
você só me deu alegrias. Você precisa ir agora! Não
chore mais por mim.
Enéias: Eu sinto tanto. O que vai ser do nosso filho?
O que vai ser de mim?
Creúsa: Vocês são os homens mais fortes que eu
conheço. E agora, adeus, diga para o nosso filho que
sempre o amarei.
Enéias: Creúsa... Nããão!
(A Eneida é uma fanfic, p. 12)
65
Um exemplo disso é a construção do Enéias, protagonista da narrativa. Na obra fonte,
Virgílio lhe atribuiu a função de carregar consigo as marcas de comportamento ideal do homem
romano (PIRES, 2019). Aliás, não só o Enéias, os personagens da obra eram utilizados como
símbolo de virtuosidade e inspiração para os leitores. De acordo com Souza (2015), Dido e
Enéias representam Cleópatra e Augusto. Enquanto a primeira é o símbolo da rainha estrangeira,
extravagante e que perece por conta da loucura de amor, o segundo resiste à tentação mantendo
sua virtude e espírito forte, preceitos do estoicismo, que estava em voga.
Entretanto, o Enéias do drama radiofônico apresenta algumas diferenças em sua construção.
Nos momentos que ele perde alguém importante, como a morte da sua primeira esposa Creúsa
e do seu pai Anquises, Enéias revela toda a sua vulnerabilidade (Quadros 3 e 4). Diferentemente
do que ocorre na obra fonte, o protagonista da radionovela se permite sentir a paixão (o que é
condenado pelo estoicismo) e luta para viver o seu amor (enfrenta até os deuses). A mensagem
que fica no primeiro capítulo e que vai se confirmando ao longo da narrativa, ter sentimentos e
ser vulnerável, está longe de ser uma fraqueza; ao contrário, as paixões tornam os personagens
mais potentes.
Considerações finais
A partir do que foi analisado, percebe-se que é possível adaptar uma obra literária que
marcou o período imperial da Roma antiga, para o formato de podcast. Assim, a poesia épica
e a dramaturgia funcionam como uma espécie de conto de fadas, sendo criadas para envolver
o público, com a estrutura da literatura oral, e apresentando sucesso popular. Entretanto, a
epopeia latina apresenta valores de uma sociedade do império augustano, isto é, que não existe
mais. Destarte, a principal marca da dramaturgia é carregar valores que estejam em evidência
dentro de um determinado contexto histórico-cultural. A partir deste ponto, é perceptível que
A Eneida é uma fanfic apresenta alterações não só na composição dos personagens, como
também na forma de contar a narrativa.
Vale a pena frisar que uma obra literária e uma radionovela são vinculados através de meios
de expressão diferentes, sendo problemático falar sobre “fidelidade” de uma adaptação com
um conteúdo sendo narrado com ferramentas distintas. Assim, é possível falar em autoria da
adaptação.
Por fim, o projeto da radionovela possui uma importância pedagógica, pois não só promove
a leitura da obra A Eneida, como também pode difundir a literatura latina nas escolas, por
exemplo, e em todos os lugares que o cânone ainda não tenha alcançado, tornando-o popular.
66
Referências
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2. ed. São Paulo: Annablume, 2018.
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Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2006.
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FERRARETO, L. Rádio: Teoria e Prática. Editora Summus. São Paulo, 2014.
FUHRMANN, M. A Literatura Latina. Tradução Rafael de la Vega. Madrid: Gredos, 1985.
JENKINS, H. Cultura da convergência. Tradução Susana Alexandria. São Paulo: Aleph, 2015.
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REIS, D. D. S. Da tradução intersemiótica: Claude Gueux de Victor Hugo no rádio. Revista
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Latina. Trabalhos em Linguística Aplicada, [s.l.], v. 57, n. 1, p. 49-70, abr. 2018.
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SEVERO, S. D. Análise semiótica do roteiro da telenovela Cheias de Charme. 2017.
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67
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Universidade de Sao Paulo, Agência USP de Gestão da Informação Acadêmica (AGUIA),
São Paulo, 2018.
68
Sobre A Divina Comédia,
de Dante Alighieri
Cícero Émerson do Nascimento Cardoso
Introdução
Este texto discorre sobre A Divina Comédia, de Dante Alighieri, com ênfase em dois pontos:
1) observação de aspectos estruturantes da obra e 2) reflexão acerca da sistematização de
valores da tradição judaico-cristã em harmonia com valores da Antiguidade Clássica.
Nossa proposta, desse modo, é apresentar, de forma panorâmica, o Inferno, que constitui
a primeira parte da obra, e realizar, em seguida, leitura crítica do Canto XXVI.
Sendo uma obra das mais significativas da literatura ocidental, A Divina Comédia é um
monumento de erudição seja no plano linguístico, seja no plano literário. Trazê-la à tona é sempre
um desafio e, ao mesmo tempo, algo instigante. Estamos na perspectiva de uma produção
artístico-literária que reúne a ideologia cristã, impregnada de perspectivas do medievo, aos
aspectos constitutivos da Antiguidade Clássica. Além disso, compreender essa obra em suas
especificidades é ter acesso a um texto que concentra amplas possibilidades polissêmicas,
dados os diversos componentes configuradores dessa obra seja na forma, seja no conteúdo.
Para nossa reflexão, recorremos a autores que debatem essa obra em linhas diversas.
Enquanto Otto Maria Carpeaux (2016) a considera, equivocadamente, uma narrativa sem
ação, Erich Auerbach (2004) afirma o contrário e desenvolve uma análise notável sobre um
dos Cantos do Inferno. No plano da forma, György Lukács (2000) a vislumbra como uma obra
que representa uma transição entre a epopeia e o romance. No plano linguístico, Urbano
Zilles (1988) afirma que ela, ao reunir o mundo antigo à ideologia medieval, estabelece um
reavivamento dos valores greco-latinos.
Neste capítulo, apontamos caminhos de reflexão que nos possibilitam compreender algumas
especificidades dessa obra singular de nossa literatura ocidental. Para isso, observamos os
componentes que a estruturam enquanto texto, isto é, recorremos à análise textual, ainda que
de modo sucinto, de um dos Cantos.
1 Da estrutura, do enredo e da ação
Escrita entre 1307 e 1321, de acordo com Helder da Rocha (1999), a Comédia de Dante
(1265–1321), que é intitulada A Divina Comédia somente após Giovanni Boccaccio (13131375) a denominá-la assim, apresenta um narrador autodiegético que descreve sua jornada
pelo mundo dos mortos. Ele atravessa, na companhia do poeta clássico Virgílio, três espaços: o
Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Essa jornada é contada por meio de tercetos que apresentam
70
versos decassílabos e dispõem de um tipo de rima criada por Dante – a terza rima11. No final
de cada Canto, no entanto, o poeta acrescenta um verso estabelecendo, assim, um quarteto.
Esse poema dispõe de 100 Cantos que estão distribuídos da seguinte forma: 1) 33 Cantos
no Inferno (com acréscimo de um Canto introdutório), 2) 33 Cantos no Purgatório e 3) 33
Cantos no Paraíso. Há uma recorrência do algarismo três e seus múltiplos, sendo o nove
um algarismo recorrente: 1) há nove círculos no Inferno, 2) há nove terraços no Purgatório e
3) nove Céus e nove círculos angélicos no Paraíso.
Essa obra apresenta versos que, de acordo com Lukács (2000, p. 58-59), trazem as
características da balada12 para a epopeia. O teórico menciona, nesse sentido, que Dante
transforma as baladas13 em cantos típicos da epopeia e, com isso, sua obra representa uma
possível transição da epopeia para o romance.
Além desse teórico, que vê essa obra como significativa se pensamos a “evolução” do
gênero épico, Auerbach (2004, p. 164), em estudo acerca do Canto V, da primeira parte do
poema, afirma:
A Comédia é, entre outras coisas, um poema didático enciclopédico, no qual são apresentadas
conjuntamente as ordens universais físico-cosmológica, ética e histórico-política; é, também, uma
obra de arte imitativa da realidade, na qual aparecem todos os campos concebíveis da realidade:
passado e presente, grandeza sublime e desprezível vulgaridade, história e lenda, tragédia e
comédia, homem e paisagem; é, finalmente, a história do desenvolvimento e da salvação de um
único homem; Dante, e, como tal, uma história figurativa da salvação da humanidade em geral.
[...] E todo este realismo não se movimenta dentro de uma só ação, mas numa pletora de ações
que se revezam nos mais diferentes níveis de tom.
De fato, trata-se de um texto, conforme Auerbach, de amplas proporções polissêmicas.
Dante, que figura para o teórico como alguém que representa a “salvação da humanidade em
geral”, pode ser visto, acrescentamos, como representativo da esperança, assim como Virgílio
pode representar a razão e Beatriz a fé.
A obra inicia in medias res, como nas epopeias clássicas, isto é, Dante está perdido numa
“selva escura” quando o encontramos no texto e, em seguida, por intermédio de Beatriz, ele se
encontra com o poeta clássico Virgílio, que o auxilia a sair da selva e o conduz por uma longa
11 Segundo Azevedo (1997, p. 209): “Terça rima – Tradução de terza rima italiana, esse termo designa o poema composto de tercetos, como
Dante os dispõe na Divina comédia, com as rimas ABA / BCB / CDC / EDE, etc., sendo sempre a rima do meio a das extremidades do terceto
seguinte, terminando o poema com um quarteto com rimas em ABAB, podendo o último verso ir isolado”.
12 José Marcos Mariani de Macedo (2000, p. 58) comenta em nota que, para Lukács: “O termo balada [...] sempre pende para o lado da
epopeia, como se o gênero fosse parte integrante de uma unidade épica maior, da qual ele é capaz de figurar como fragmento”.
13 Salvatore D’Onofrio (2000, p. 100) afirma sobre a balada que: “O que distingue essa forma poemática é a confluência de três gêneros
literários: o lírico, por ser expressão de sentimentos; o narrativo, porque balada é uma canção-história, contém em seu bojo uma pequena
fábula; o dramático, porque a substância factual não é contada nem por um narrador onisciente nem pelo eu poemático, mas é revelada pelo
diálogo entre as personagens”.
71
jornada. Nesta jornada, Dante deverá passar por três lugares: 1) o Inferno, 2) o Purgatório e
3) o Paraíso. Virgílio o acompanha apenas até o Purgatório, tendo em vista que ele está no
Limbo (espaço localizado no Primeiro Círculo do Inferno), o que o impede de ir à morada de
Deus.
Apesar de não saber como foi atirado em cenário tétrico e ameaçador, Dante traz em si
uma meta. Diante dos inúmeros perigos que se descortinam à sua frente, ele pede a Virgílio
que o auxilie a chegar à “porta de São Pedro” (Canto I, v. 122–136). Virgílio dispõe-se a ajudálo, em atendimento a uma solicitação de Beatriz, o que lhes proporciona uma viagem repleta
de cenários pavorosos. Após atravessarem o Inferno, Dante e Virgílio seguem pelo Purgatório.
Como Virgílio não poderia entrar no Paraíso, eles se despedem e somente Dante adentra o
espaço celestial onde tem encontros gloriosos com os habitantes celestes.
No Canto I, que se caracteriza como uma espécie de introdução do poema, Virgílio elabora
uma súmula que consiste nas ações que eles executarão no enredo da obra até que a meta
existencial de Dante seja realizada. Como resposta, o herói pede ao poeta que o conduza ao
Paraíso, como constatamos no trecho:
Portanto, pra teu bem, penso e externo
que tu me sigas, e eu te irei guiando.
Levar-te-ei para lugar eterno
de condenados que ouvirás bradando,
de antigas almas que verás, dolentes,
uma segunda morte em vão rogando;
e outro verás também que estão contentes
no fogo, na esperança de seguir,
quando que seja, pra as beatas gentes.
Às quais depois, se quererás subir
alma terás mais digna do que eu:
deixar-te-ei com ela ao meu partir;
que o imperador que reina lá no Céu,
porque para a sua lei fui herege,
nega-me conduzir-te ao reino seu.
72
Em toda parte impera e lá ele rege,
lá é sua cidade e está seu alto foro.
Feliz aquele que ali ele elege!
E eu, a ele: “Poeta, eu te imploro,
por esse Deus que tu não conheceste,
pra fugir deste, ou mal pior que ignoro,
que me conduzas lá aonde tu disseste.
A porta de São Pedro então verei
e aqueles que tão mestos descreveste”.
Moveu-se então, e eu o acompanhei.
(Canto I, v. 122-136)
A sequência de ações que constituem o enredo dessa obra está organizada da seguinte
forma: 1) no Paraíso, Santa Luzia adverte Beatriz sobre a situação de Dante (primeira ação);
2) Beatriz sai do Paraíso e vai ao Primeiro Círculo do Inferno, onde se localiza o Limbo, pedir
a Virgílio que salve Dante (segunda ação); 3) Virgílio aceita o pedido de Beatriz e promove
o salvamento de Dante, que estava quase sendo devorado por uma das três feras que lhe
aparecem na selva (terceira ação); 4) Virgílio conduz Dante pelo mundo dos mortos com as
implicações que isto representa (quarta ação).
Carpeaux (2016, p. 8), no entanto, afirma, no prefácio da edição d’A Divina Comédia que
utilizamos para nossa discussão, que essa obra não dispõe de ação narrativa. Para ele, essa
obra “não tem ação; não tem enredo”.
Ao fazer essa consideração, nos questionamos: o que Carpeaux considera ser “ação”
e “enredo”? Já Auerbach, no trecho que citamos acima, teve a preocupação de dizer que o
realismo da obra de Dante “não se movimenta dentro de uma só ação, mas numa pletora de
ações que se revezam nos mais diferentes níveis de tom”.
Para ampliarmos nossa discussão sobre o assunto, recorremos ao que Lopes e Reis (1988)
afirmam sobre o conceito de “ação” e “enredo”. Eles (REIS; LOPES, 1988, p. 190) dizem, de
forma resumitiva, que: “Componente fundamental da estrutura da narrativa, a ação integrase no domínio da história e remete a diversos outros conceitos que com ela se relacionam de
forma mais ou menos estreita: a intriga, o tempo, a composição da história, etc.”.
Nesse sentido, conforme os autores apresentam, a ação mantém estreita relação, dentre
outros pontos, com a intriga que, para eles, deve ser considerada, além da “sucessividade e do
73
consequente enquadramento temporal dos eventos”, a partir de dois aspectos: 1) “tendência
para apresentar os eventos de forma encadeada”, de modo a instigar o interesse no leitor, e
2) “o fato de tais eventos se encaminharem para um desenlace que inviabiliza a continuação
da intriga”. A intriga, nesta perspectiva, deve ser pensada a partir do seguinte: “enquadramento
temporal dos eventos” que concentra: 1) eventos encadeados e 2) encaminhamento para um
desenlace.
Lopes e Reis (1988, p. 211-212) ponderam que, “se toda intriga é uma ação, não pode
simetricamente dizer-se que toda a ação é uma intriga”. Uma intriga cria o universo necessário para
a constituição de uma ação por tratar-se, segundo os autores, da “organização macroestrutural
do texto narrativo”, que se caracteriza por apresentar eventos de acordo com certas estratégias
discursivas especificamente literárias.
A ação, para Lopes e Reis (1988, p. 190), deve ser compreendida como um processo
de desenvolvimento de “eventos singulares, podendo conduzir ou não a um desenlace
irreversível”. Para sua constituição, ela deve apresentar três itens: 1) “um (ou mais) sujeito(s)
diversamente empenhado(s) na ação”, 2) “um tempo determinado em que ela se desenrola” e
3) “as transformações evidenciadas pela passagem de certos estados a outros estados”.
A partir dessa explanação rápida, partimos da ideia de que a afirmação de Carpeaux,
apontada anteriormente, é equivocada. A Divina Comédia, em seu plano geral, dispõe de uma
ação que se desenvolve de modo, inicialmente, simples: o herói, sem saber de que forma teria
chegado àquele ambiente, depara-se com a necessidade de sair dele. Há a possibilidade, além
disso, de chegar ao Paraíso, onde o espera Beatriz e, possivelmente, Deus.
Constatamos que Dante tem uma meta heroica a ser cumprida. Ele dispõe de auxílio direto
e indireto, as personagens têm motivações e há mudança de planos no interior da narrativa.
Trata-se, em suma, de uma obra cujo desenrolar enredístico está atrelado ao deslocamento
do herói que age para que sua travessia se desenvolva sem muitas interferências – o que se
mostra impossível de acontecer. A cada descoberta de um novo Círculo renova-se a incerteza
do que poderá ser vislumbrado à frente.
Na linha do que Auerbach propõe, pensamos ser pertinente considerar as ações que se
desdobram em cada espaço por onde Dante e Virgílio passam. Cada Círculo, ou Terraço ou
Céu traz personagens que vivem suas respectivas ações, seja no plano do acontecimento
que se descortina diante dos viajantes, seja no plano das lembranças que essas personagens
trazem de suas vidas na terra.
Dentre as narrativas que localizamos no passeio de Dante pelo Inferno, faremos uma breve
explanação sobre a que é apresentada no Canto XXVI. Antes de remetermo-nos a ela, porém,
apresentamos um quadro resumitivo do espaço que constitui a primeira parte do livro.
74
2 Dante desce aos infernos
A viagem de Dante e Virgílio tem início na Selva, como já mencionamos, quando eles
se encontram pela primeira vez. Ainda nesse local, Dante tem que lidar com três feras que
apresentam sentidos alegóricos. O mundo e suas vicissitudes incitam o homem ao pecado.
Desse modo, cabe a ele não sucumbir à incontinência (a onça), à violência (o leão) e à fraude
(a loba). Em seguida, vem a lição bíblica vinculada à ideia de que Deus vomita os mornos,
quando o herói e seu companheiro entram no Vestíbulo.
Após o Vestíbulo, primeiro cenário dentre os muitos que surgem para causar impacto
em Dante e, consequentemente, no leitor, vêm o Rio Aqueronte e o Primeiro Círculo, no qual
localizamos o Limbo ― e seguem-se a este outros oito Círculos (o Inferno dispõe de Nove
Círculos ao todo), cada um mais aterrador do que o outro.
Mauro (2016, p. 29) comenta que: “O Inferno [...] é constituído por uma imensa cratera
escavada nas profundezas do globo terrestre na queda do corpo do anjo rebelde expulso do
Paraíso”. Helder da Rocha elabora uma ilustração que nos possibilita constatar, imageticamente,
como se dá essa cratera e onde ela se localiza em relação aos demais espaços percorridos
por Dante.
Figura 1. Mapa da Terra mostrando o Inferno e Purgatório
Fonte: https://www.stelle.com.br/pt/inferno/mapa5.html
Com maior detalhamento, Helder da Rocha nos apresenta o Inferno, desde o Mundo Exterior
até o centro da Terra, local em que Lúcifer reina. Sobre a cratera que constitui o Inferno, Mauro
75
(2016, p. 29) comenta: “Começa nas proximidades da ‘selva selvagem’ essa ampla cratera e
vai se afinando até o centro da Terra onde se encontra o próprio Lúcifer que aí tem o encargo
de Rei do Inferno”.
Figura 2. Mapa do Inferno superior
Fonte: https://www.stelle.com.br/pt/inferno/mapa1.html
Na sequência, elaboramos um quadro panorâmico que nos possibilita compreender,
didaticamente, como se dá a estrutura do Inferno. Apresentamos também a imagem O Abismo
do Inferno, de Botticelli, para em seguida explanarmos a disposição dos componentes que
constituem a primeira parte da obra de Dante.
Figura 3. O Abismo do Inferno
Fonte: https://pt.wahooart.com/@@/8Y33WK-Sandro-Botticelli-o-abismo-do-inferno
76
Quadro 1. Uma panorâmica do Inferno
Introdução
A Selva
Onça
(incontinência)
Leão
(violência)
Loba
(fraude)
O Monte
(Sol = Graça Divina)
Inscrição no Portal do Inferno
(“Deixai toda esperança, ó vós que entrais”.)
Vestíbulo
(Os ignavos, covardes, indecisos, mornos)
(Punição: correm atrás de uma espécie de bandeira enquanto são picados por vespas e acometidos
por vermes nos pés)
I – Rio Aqueronte
(O barqueiro Caronte aparece para levar as almas ao Inferno)
INCONTINÊNCIA
Primeiro Círculo
(Limbo)
(Sem batismo, sem esperança de ver Deus)
Segundo Círculo
(Luxuriosos)
(Punição: os amantes são arrastados de um lado ao outro pelo vento)
Terceiro Círculo
(Gulosos)
(Punição: estendidos na lama e na chuva incessante espancados por Cérbero)
Quarto Círculo
(Avarentos e Pródigos)
(Punição: são divididos em grupos opostos e empurrando com os peitos nus grandes pesos, perfazem
cada qual meia volta do círculo em sentidos opostos até se embaterem, para recomeçarem a meia
volta do círculo)
Quinto Círculo
(Iracundos e Raivosos)
(Punição: as almas ficam nuas nas lamas do Rio Estige, esmurrando-se mutuamente)
II – Rio Estige
(Pessoas furiosas e orgulhosas)
Cidade dos domínios de Dite
O Castelo de Dite
(Descida para a pior parte do Inferno)
Sexto Círculo
(Heréticos)
(Punição: ficam sujeitos ao fogo estando ainda em suas sepulturas)
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VIOLÊNCIA E BESTIALIDADE
Sétimo Círculo
(Dispõe de Três Giros)
GIRO I
Violência contra o próximo
GIRO II
Violência contra si próprio
GIRO III
Violência contra Deus
III – Rio Flegetonte
(Rio de Sangue Fervente)
GIRO I
(Tiranos e Assaltantes)
(Punição: são mergulhados no Flegetonte, rio de sangue fervente, sob vigilância dos Centauros que
atiram flechas em quem tenta levantar a cabeça)
GIRO II
(Suicidas e Perdulários)
(Punição: os suicidas viram sementes que dão origem a arbustos que servem de alimento para as
Harpias e os perdulários são perseguidos por raivosas cadelas que dilaceram suas presas)
GIRO III
(Blasfemos = supinos ao chão = deitados de costas)
(Usurários = sentados)
(Sodomitas = caminhando continuamente)
(Punição: as almas estão em um areão ardente atravessado por um riacho de águas vermelhas e
ferventes, e chovem chispas de fogo sobre elas)
FRAUDE SIMPLES
Oitavo Círculo
Malebolge
(Dispõe de Dez Valas)
(Gerião é um monstro que vigia os fraudulentos)
Vala 01
(Rufiões e Sedutores)
(Punição: em duas filas eles circulam eternamente pelo vale em sentido contrário enquanto são
surrados sem trégua)
Vala 02
(Aduladores)
(Punição: estão imersos em fezes e esterco)
Vala 03
(Simoníacos)
(Punição: de cabeça para baixo, em estreitos buracos, apenas com as pernas para fora, recebem
fogo sobre a planta dos pés)
Vala 04
(Magos e Adivinhos)
(Punição: têm a cabeça torcida em relação ao corpo, o que os obriga a caminhar para trás)
Vala 05
(Traficantes)
(Punição: são atirados em substância pegajosa fervente)
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Vala 06
(Hipócritas)
(Punição: eles desfilam lentamente, vestidos de pesadas capas de chumbo, douradas externamente)
Vala 07
(Ladrões)
(Punição: vala cheia de serpentes de toda espécie que atacam os danados e os submetem a
profundas transformações)
Vala 08
(Maus Conselheiros)
(Punição: estão presos em chamas que se movem continuamente e os envolvem por inteiro)
Vala 09
(Cismáticos/Intrigantes)
(Punição: são forçados a percorrer constantemente a vala e são cruelmente estraçalhados por um
diabo armado de espada)
Vala 10
(Falsários)
(Punição: têm o corpo coberto de sarnas, de odor apodrecido, e são quase incapazes de se movimentar)
TRAIÇÃO
Nono Círculo
(Dispõe de Quatro Giros)
(Lago do Cocito)
I – CAÍNA
(Traição contra Parentes)
(Punição: imersos no gelo só com a cabeça para fora)
Caim
(Traiu o irmão e o matou)
II – ANTENORA
(Traição contra a Pátria)
(Punição: imersos no gelo só com a cabeça para fora)
Antenor
(Ancião troiano que traiu seu país em favor dos gregos)
III – PTOLOMEIA
(Traição contra Hóspedes)
(Punição: imersos no gelo, mas com os rostos para cima, o que faz com que suas lágrimas congelem,
impedindo-lhes a sequência do pranto)
Ptolomeu
(Herói bíblico, do Livro I dos Macabeus, que convida Simão e seus dois filhos e, quando eles estão
embriagados, corta-lhes as cabeças)
IV – JUDECA
(Traição contra Benfeitores)
(Punição: são mastigados pelas três bocas de Lúcifer)
Judas Iscariotes
(Por trinta moedas de prata traiu Jesus Cristo)
Fonte: Próprio autor
79
3 Leitura do Canto XXVI do inferno
Conforme foi proposto, dentre as narrativas que localizamos no passeio de Dante pelo Inferno,
realizamos leitura da que é apresentada no Canto XXVI. Já sabemos que antes de alcançar
sua meta heroica, que é chegar ao Paraíso, Dante depara-se com cenários escatológicos em
sua viagem pelo Inferno. O herói atravessa Círculos nos quais flagra as punições diversas
aplicadas contra as almas de seres cujos comportamentos não atenderam aos valores morais
judaico-cristãos conforme a Idade Média os concebe.
Zilles (1988) menciona que a ideologia judaico-cristã, que é basilar para a configuração
dessa obra, não deixa de assimilar componentes da Antiguidade Clássica. Para o autor, Dante
conhece e reaviva o mundo antigo. Os mitos e os heróis gregos estão em confluência com
a compreensão cristã do mundo. Nessa perspectiva, percebemos que ele retoma Aquiles
e Odisseus, heróis épicos, e atira-os no Inferno: o primeiro está no Segundo Círculo (dos
Luxuriosos); o segundo está no Oitavo Círculo (na Oitava Vala, a dos Maus Conselheiros).
Realizamos breve leitura, neste caso, do Canto XXVI. Nele, encontramos a imagem
de Odisseus que, depois de ter retomado sua vida com os familiares em Ítaca, termina por
empreender nova viagem e sofre um naufrágio. Ele encontra-se, após a morte, como apontamos,
na Oitava Vala, a dos Maus Conselheiros.
No Canto XI da Odisseia, o herói desce ao Hades, o mundo dos mortos da Mitologia Grega,
sob orientações da deusa Circe. No Hades, ele se encontra com Tirésias, que lhe apresenta
vaticínios e dá-lhe conselhos.
O primeiro conselho consiste na ideia de que Odisseus, quando estiver na ilha da Trinácia,
não poderá tocar nos bois e nas ovelhas do deus Sol, do contrário ele e sua tripulação jamais
conseguiriam retornar para Ítaca. Seguindo essas recomendações, Odisseus poderia finalmente
chegar em casa, mas deveria enfrentar os pretendentes de sua esposa Penélope (que o
esperava fielmente desde sua ida para a Guerra de Troia).
Após reestabelecer-se em seu reino, Odisseus, segundo os vaticínios de Tirésias, deverá
partir para a terra onde estão (Canto XI, v. 123-124): “homens que na comida não misturam
sal, / nem conhecem as naus de bordas vermelhas”. Ao deparar-se com um viandante do local,
Odisseus deveria oferecer (Canto XI, v. 130-131) “belos sacrifícios ao soberano Posêidon, /
um carneiro, um touro, um javali que acasalou com porcas”, depois poderia retornar para casa
e ficar tranquilo, pois morreria apenas na velhice cercado pelos seus entes queridos.
A Odisseia conclui com seu herói já em Ítaca, tendo lutado contra os pretendentes, sob
proteção da deusa Palas-Atena. Ele luta ao lado do filho Telêmaco, alegra o pai Laertes com
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sua presença e conforta sua esposa Penélope que tanto o ama. Seu reino, desse modo, está
restituído.
N’A Divina Comédia, reencontramos Odisseus, desta feita, morto – e no Inferno. Ele está
no Oitavo Círculo, na Oitava Vala. Herói dos mil ardis, sempre astuto e estrategista de guerra,
foi Odisseus quem deu a ideia e as instruções para que o Cavalo de Troia fosse realizado.
Essa armadilha foi determinante para a derrota dos troianos.
Por isso, Odisseus foi designado por Minos, guardião e distribuidor das punições do Inferno,
para a Vala dos Maus Conselheiros. A punição para quem é enviado a esse lugar infernal está
descrito por Dante no Canto XXVI:
Como o aldeão que no morro repousa
– nessa estação em que aquele que aclara
o mundo já mais tarde a face pousa,
e a mosca cede ao mosquito a seara –,
vê que de vaga-lumes se alumia
o vale onde quiçá ele colhe ou ara,
assim vi que de chamas resplendia
esse oitavo bolsão, quando chegaram
meus pés aonde o seu fundo aparecia.
E como aquele, que os ursos vingaram,
de Elias a carruagem viu partindo
quando os corcéis pro céu se levantaram,
e só podia co’os olhos ir seguindo
dele não mais do que a restante chama
como uma nuvenzinha que ia subindo,
aqui assim cada chama se movia
continuamente, pra esconder sua presa,
que é um pecador que dentro custodia.
(Canto XXVI, v. 193–194)
Conforme percebemos neste trecho, o narrador inicia seu relato com um símile. Ele cria a
imagem de um aldeão que percebe o sol fugindo tardio (tardio porque é verão) para dar espaço
81
à noite. Além do símile, temos a criação de uma prosopopeia à medida que ele menciona que
a mosca, inseto diurno que se vai com o pôr do sol, dá espaço para o mosquito que, por sua
vez, tem hábitos noturnos. Ele menciona, também, outro inseto de hábito noturno: o vaga-lume.
Este inseto aclara a noite do aldeão que deixa mais um dia de trabalho e vai para seu lar em
busca de repouso.
A imagem do vaga-lume brilhando na noite, por analogia, nos possibilita compreender
como se dá a cena que se mostra ao narrador na Oitava Vala do Oitavo Círculo. Nela, tudo
seria escuridão se não houvesse, como vaga-lumes que clareiam a noite, chamas de fogo
resplandecentes. Cada chama, no entanto, sempre em movimento, corresponde a um pecador
que está sob punição: arder no fogo eternamente.
Mauro (2016, p. 194), em nota sobre a analogia que Dante constrói com base na figura
da personagem bíblica Elias, afirma: “Eliseu, o profeta que chamou os ursos para vingá-lo da
zombaria de uma multidão de rapazes, viu seu mestre Elias ser raptado por um carro de fogo
que subiu para o céu”. As chamas que fustigam os maus conselheiros ardem como o fogo do
carro de Elias, eis mais um símile que o narrador constrói. O narrador prossegue em sua tétrica
descrição do cenário:
Estava eu sobre a ponte em tal surpresa
que tombei quase, não fosse a ventura
de me agarrar, da rocha, a uma aspereza.
E o meu guia, ao me ver nessa procura:
“Há um espírito”, disse, “em cada fogo,
Que se enfaixa daquilo que o tortura”.
E eu: “Mestre meu, após ouvir-te, logo
fiquei mais certo do que havia intuído
que assim fosse, e dizer-me ora te rogo
quem está nesse fogo, dividido
nas pontas, que eu creria surgir da pira
em que Etéocles foi co’o irmão ardido?”.
E ele: “Lá sofrem essa pena dira
Diomedes e Ulisses: juntamente
à pena vão como à arrostada ira:
82
dentro daquela chama se ressente
o logro do cavalo, que foi porta
pra a dos romanos garbosa semente;
e lamenta-se o ardil pelo qual, morta,
Deidâmia ainda por Aquiles chora;
e por Paládio a pena se comporta”.
(Canto XXVI, v. 194-195)
Percebemos que Dante e Virgílio andam sobre uma ponte através da qual visualizam os
pecadores que sofrem com o fogo. Depois de quase cair, Dante estabelece um diálogo com
Virgílio. Ele está curioso para saber quem poderia estar nas chamas móveis, sobretudo quando
vê uma chama cujo fogo está “dividido nas pontas”.
Uma nova analogia é criada, desta feita com a menção a heróis que aparecem na tragédia
de Sófocles: Etéocles e Polinices, filhos de Édipo. Eles de tal modo entraram em conflito um
contra o outro que acabaram por matarem-se, a ponto de que, como Mauro (2016, p. 194)
observa: “Em sua pira funerária comum, até as chamas dividiram-se em duas”.
Na chama de duas pontas, sendo punidos juntos pelo mau conselho da construção do Cavalo
de Troia, estão Odisseus (que na tradição latina é mencionado como Ulisses) e Diomedes
(um combatente dos mais corajosos da Guerra de Troia). Eles estão lá não somente pela
destruição de Troia que o engodo proporcionou, estão lá pelas consequências desse mau
conselho, conforme é apontado por Mauro (2016, p. 194): “Ulisses e Diomedes, autores do
logro do cavalo de Troia, do ardil que levou Aquiles para as armas abandonando Deidâmia e
do furto da estátua de Palas que afiançava a inexpugnabilidade de Troia”.
Foi o Cavalo de Troia que possibilitou: 1) a destruição de Troia, 2) a violação de Cassandra,
por Ájax, o Menor, no templo da deusa virgem Palas-Atena, 3) a morte de Aquiles, deixando
Deidâmia abandonada e pranteando seu amado, 4) o roubo do Paládio, que correspondia a
imagens sagradas, dentre elas a de Palas-Atena, que garantiam invencibilidade aos troianos
etc.
Dante deseja falar com Odisseus e pede a Virgílio que lhe permita fazê-lo, ao que ele atende
prontamente com a recomendação de que ele mesmo deveria tratar com Ulisses, conforme
apreendemos do trecho (Canto XXVI, v. 73–75):
deixa a fala pra mim, que entendi bem
o que queres; porque do teu falar,
sendo gregos, talvez tenham desdém.
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Percebemos, neste trecho, um traço cultural do povo grego. Qualquer outra forma de cultura,
que não a grega, era considerada bárbara, portanto vulgar e inferior. Isso se manifesta, desse
modo, no âmbito da língua. Tendo Virgílio provável domínio do grego, ele, e não Dante, pôde
falar com Odisseus. Em meio ao diálogo que se segue, temos a narração, por parte do próprio
Odisseus, do modo como tragicamente ele e seus companheiros de viagem foram mortos,
provavelmente, ainda pela necessidade de vingança que o deus Posêidon guardava em si por
Odisseus ter furado o olho de seu filho, o gigante Polifemo.
O diálogo inicia com a invocação de Virgílio, em tom solene, que utiliza como mecanismo de
convencimento, para ouvir o relato do herói grego, da notoriedade de sua própria obra literária.
Posteriormente à retórica de convencimento e ao uso de uma linguagem solene, Virgílio é
incisivo e direto em sua interpelação:
“Ó vós que estais os dois numa só chama,
se de vós mereci, no meu viver,
se de vós mereci alguma fama,
os altos versos meus por escrever,
não vos moveis, e um de vós me diga
aonde, perdido, foi para morrer”.
Logo, a ponta maior da chama antiga
começou a agitar-se, murmurando,
como faz a chama que o vento fatiga:
depois, de cá pra lá a ponta ondulando,
como se fosse a língua que falasse,
jogou pra fora a voz e disse: “Quando
decidi que de Circe me afastasse,
que um ano me enleou lá por Gaeta,
antes que Enéas assim a nomeasse,
nem do filho ternura, nem afeta
pena do velho pai, nem justo amor
que alegraria Penélope dileta,
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em mim puderam vencer o fervor
que me impelia a conhecer o mundo,
e dos homens os vícios e o valor;
e me atirei ao mar aberto e fundo,
com um só lenho e a pequena companha
que inda era o meu haver fido e jucundo.
De costa a costa fui até a Espanha,
até o Marrocos e a ilha dos sardos,
e outras que aquele mar à volta banha.
Éramos, eles e eu, velhos e tardos
ao chegarmos do angusto estreito à frente,
onde Hércules ergueu os seus resguardos
para que o homem mais além não tente.
Já os mares de Sevilha transcendidos,
como os de Ceuta, à esquerda mão jazente:
‘Ó irmãos’, disse eu, ‘que por cem mil, vencidos,
perigos alcançastes o Ocidente;
a esta vigília dos nossos sentidos,
tão breve, que nos é remanescente,
não queirais recusar esta experiência
seguindo o Sol, de um mundo vão de gente.
Considerai a vossa procedência:
não fostes feitos pra viver quais brutos,
mas pra buscar virtude e sapiência’.
Meus companheiros fiz tão resolutos
pra viagem, com tão curta oração,
que não seriam mais dela devolutos.
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Voltada a popa pra a manhã, já são
asas os nossos remos, na ousadia,
do voo, apontado pra sinistra mão.
Do outro polo as estrelas todas via
agora à noite, enquanto, rebaixado,
do chão do mar o nosso não surgia.
Cinco vezes reaceso e cancelado
fora o lume que a lua de baixo banha,
depois do fundo passo ultrapassado,
quando surgiu-nos diante uma montanha,
pela distância, escura, e alta tanto
que nunca eu conhecera outra tamanha.
Nossa alegria logo volveu-se em pranto,
que um remoinho dela levantou,
e feriu o lenho num fronteiro canto.
Três vezes, co’a água toda, ele rodou;
na quarta, erguida a popa, foi arrojado,
proa abaixo, como alguém agradou;
até que o mar foi sobre nós fechado”.
(Canto XXVI, v. 195-198)
Diferentemente do que colhemos dos vaticínios de Tirésias, que Odisseus, como já
apontamos, obteve por ocasião de sua descida ao mundo dos mortos, o herói termina por
sucumbir estando em alto mar. Ao mencionar que a navegação caiu em redemoinho que a
destroçou, ele menciona “como alguém agradou”, o que nos dá a pista de que esse alguém
poderia ser, provavelmente, o deus Posêidon.
Durante o trajeto de retorno para Ítaca, após a guerra de Troia, Odisseus cega o filho do
deus dos mares e faz questão, por vaidade, de dizer seu nome. Contrariar os deuses, como a
Mitologia Grega demonstra em exemplos vários, é uma falha imperdoável. Odisseus não morre
velho em seu próspero reino, hipotetizamos, por descumprir as recomendações de Tirésias, e
por não considerar que poderia ser alvo da vingança do deus dos mares.
86
Seria Odisseus punido, além do mau conselho para construção do Cavalo de Troia, por ele
ter aconselhado seus companheiros a segui-lo, já envelhecidos, a mais uma jornada marítima
quando, em verdade, deveria permanecer em casa e ser feliz com seus parentes queridos?
Ou foi punido por não ter cumprido as recomendações de Tirésias? O texto de Dante não traz
respostas a esse respeito. Nele é mencionada, apenas, a culpa de Odisseus na criação do
cavalo de Troia.
Sobre o relato de Odisseus, é possível perceber nele um flashback, pois sua narrativa,
que é desenvolvida dentro de outra narrativa, muito ao estilo da epopeia, rememora fatos já
acontecidos, o que torna a obra de Dante um reduto criativo em vários níveis.
Repleta de ações, essa obra (que na concepção de Lukács é uma “transição” entre a
epopeia e o romance) consegue ser inovadora em vários aspectos. Percebemos nesse Canto,
por exemplo, uma significativa menção ao universo da língua, que ocorre quando Dante atribui
a Virgílio o conhecimento da língua grega, portanto passível de aceitação no diálogo com
Odisseus.
Dante constrói sua obra utilizando-se do “dialeto florentino”, conforme observa Carpeaux
(2016, p. 18), e, com isto, cria “uma nova língua, a língua italiana”. Por esse ângulo, quando
Virgílio aponta que ele não seria aceito pelos gregos por utilizar uma língua que não a deles,
também possibilita uma reflexão numa perspectiva da língua. Dante recorre não ao latim,
ou outra língua clássica, para realizar seu poema, mas ao “dialeto florentino”, portanto uma
língua vulgar, o que mostra uma compreensão formal inegável por parte desse autor. Além da
grandiosa arquitetura artístico-literária construída por ele, sua preocupação com a linguagem
o torna singular.
Nesse sentido, vem a calhar o comentário que Auerbach (2004, p. 158) tece acerca do que
A Divina Comédia comporta em se tratando da língua: “Dante dispõe de meios estilísticos tão
ricos como nenhuma língua europeia vulgar conheceu antes dele; e não os emprega somente
isolados, mas os coloca em ininterrupta relação mútua”.
Em seguida, Auerbach (2004, p. 159) diz que, “se partirmos de seus predecessores, a
linguagem de Dante parece um milagre quase inacreditável”. Ainda nessa perspectiva, o teórico
alemão menciona:
Entre eles houve certamente grandes poetas, mas o estilo de Dante, comparado ao deles,
possui muito mais riqueza, presença, força e maleabilidade, conhece e utiliza uma quantidade
muito maior de formas, compõe os mais diversos fenômenos e conteúdos com tanta segurança
que necessariamente se chega à convicção de que este homem, através da sua linguagem,
redescobriu o mundo.
87
Com isso, fica claro que essa comédia (no sentido aristotélico do termo), além de uma
narrativa que apresenta um herói cuja meta é complexa, mas realizável, temos a criação de
um estilo que lega às letras ocidentais um dos maiores exemplares da criação artístico-literária
em seu sentido mais profundo. O trabalho com a linguagem, a preocupação formal (como fica
patente com a criação de tercetos que apresentam a inovadora terza rima etc.), a expressividade
das imagens que dão vida ao processo de fabulação, a sistematização de valores da tradição
judaico-cristã em harmonia com valores da Antiguidade Clássica, dentre outros pontos, tornam
essa obra uma das mais significativas e instigantes do Ocidente.
Considerações finais
Neste trabalho, buscamos refletir sobre a estruturação d’A Divina Comédia e observar a
sistematização de valores judaico-cristãos em consonância com valores da Antiguidade Clássica
presentes nessa obra.
Apresentamos, nesse sentido, um quadro panorâmico acerca da primeira parte da obra,
isto é, o início do itinerário percorrido por Dante e Virgílio numa longa jornada. Do Inferno ao
Purgatório, do Purgatório ao Paraíso, temos uma jornada densa, complexa e profunda. Esse
percurso heroico constitui o enredo d’A Divina Comédia. Centramos nossa discussão, portanto,
nessa primeira parte, que consideramos a mais instigante pela construção imagética e pela
acuidade formal realizada pelo autor.
Na sequência, apresentamos uma leitura crítica do Canto XXVI, ocasião em que nos
detivemos a observar, no plano textual, de que maneira o autor traz para a composição da
obra os valores judaico-cristãos em harmonia com os valores clássicos. Para exemplificarmos,
remetemo-nos ao referido Canto. Nele, temos a retomada de dois heróis épicos que, por terem
sido “maus conselheiros”, vivenciam uma punição infernal: eles estão presos em chamas que
lhes envolvem em movimento contínuo.
Ulisses e Diomedes, heróis gregos, são punidos no mundo infernal que é plasmado pela
ideologia cristã. Com isso, fica nítido que o mundo grego e o mundo cristão se encontram.
Disso resulta a harmonia desses dois construtos ideológicos. Assim, quando Ulisses, preso na
chama por ter idealizado o Cavalo de Troia, conta a Virgílio, seu interlocutor, como se deu sua
morte, temos o herói homérico em diálogo com os dois poetas latinos, isto é, temos o mundo
arcaico grego em diálogo com o mundo cristão medieval.
Nosso estudo, que se pretende sucinto, aponta para um dos muitos caminhos que esse
texto possibilita quando a questão é discutir os aspectos polissêmicos constitutivos dessa
obra atemporal. Do conteúdo à forma, passando por outros componentes, A Divina Comédia
concentra perspectivas diversas e valores incomensuráveis.
88
Referências
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Mauro. São Paulo: Editora 34, 2016.
AUERBACH, E. Farinata e Cavalcante. In: AUERBACH, E. Mimesis. 5. ed. São Paulo:
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AZEVEDO, R. S. de. Para uma teoria do verso. Fortaleza: EdUFC, 1997.
CARPEUX, O. M. Sobre A Divina Comédia. In: ALIGHIERI, D. A Divina Comédia. 3. ed.
Tradução, comentários e notas de Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 7-18.
D’ONOFRIO, S. Teoria do texto 2 – Teoria da lírica e do drama. São Paulo: Ática, 2000.
GALLIAN, D. Divina Comédia: do desespero à esperança. 2017. Disponível em: https://
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HEISE, P. Literatura Fundamental 01: A Divina Comédia. Disponível em: https://www.
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Knox. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
LUKÁCS, G. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande
épica. Tradução, posfácio e notas José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas
Cidades / Ed. 34, 2000.
MACEDO, J. M. M. de. Notas. In: LUKÁCS, G. A teoria do romance: um ensaio históricofilosófico sobre as formas da grande épica. Tradução, posfácio e notas José Marcos Mariani
de Macedo. São Paulo: Duas Cidades / Ed. 34, 2000.
MAURO, I. E. Notas. In: ALIGHIERI, D. A Divina Comédia. 3. ed. Tradução, comentários e
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REIS, C.; LOPES, C. M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988.
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ZILLES, U. A Divina Comédia de Dante Alighieri. Letras de Hoje, Porto Alegre, PUCRS, v.
23, n. 03, p. 55–71, set. 1988.
89
Retórica e Filosofia
no pensamento de
Isócrates
Marta Maria Aragão Maciel
Ângela Lima Calou
Introdução
A relação, no mesmo passo, de atração e repulsa entre Retórica e Filosofia inicia-se já na
Antiguidade grega, data e local de nascimento de ambas. Tal como ficou explicitado ao longo
da tradição ocidental, os caminhos tomados pela Filosofia acabaram por expulsar, do contexto
da reflexão filosófica, o interesse pela tradição retórica. O que tivemos como fato inescapável
foi certo desconhecimento da cultura retórica, salvo certos contextos histórico-geográficos,
ainda que a filosofia e a retórica, desde os seus primórdios, se ocupem das mesmas questões,
a saber, as coisas humanas.
Assim, ao longo da tradição ocidental, a Filosofia e a Retórica passaram a existir como duas
formas de saber distintas, tal como se pode depreender do “diálogo” que pode ser estabelecido
entre Isócrates (436-338 a.C.) e Platão (428/427-348/347), seu contemporâneo. Em todo caso,
torna-se necessário compreender que essa cisão não corresponde a uma antítese natural e
necessária. É nessa perspectiva que, com base numa reflexão em torno do pensamento de
Isócrates – um autor tão fundamental quanto desconhecido –, o presente texto tem por escopo
debater a relação entre Filosofia e Retórica, com o intuito de esclarecer alguns aspectos que
permeiam a proximidade e a distância de ambos os saberes da tradição humanística ocidental.
Em tal reflexão, consideraremos, em particular, o texto Contra os Sofistas.
Isócrates é, provavelmente, o mais destacado representante da tradição retórica em seu
surgimento na Grécia antiga. Desde já, é válido precisar que, na relação entre Retórica e
Filosofia, aparece como fulcral o debate – ocorrido no cenário da vida política grega – permeado
pela antítese entre Platão e Isócrates. Na leitura realizada por Werner Jaeger (2010, p. 1062),
tal confronto “precede e desencadeia o duelo entre a filosofia e a retórica nos séculos futuros”.
Aliás, vale considerar, antes de mais nada, o debate e diálogo (explícita ou implicitamente) que
tanto Isócrates como Platão realizaram com a sofística.
Com os sofistas entende-se, com efeito, que se iniciou o entendimento da Retórica como
arte vinculada à persuasão, como discurso persuasivo. Em linha direta a tal concepção, o
discurso sofístico foi lido como desprovido de verdade, de maneira que o logos se transforma
em discurso que se funda unicamente na persuasão, estando, pois, incapaz de criar o consenso
ou a verdade. Em suas especificidades, vale anteciparmos que tanto na filosofia platônica como
no pensamento isocrático encontramos a crítica ao movimento sofístico.
91
1 A retórica e a filosofia entre Platão e Isócrates
No Górgias, Platão comparece, provavelmente, como o mais radical crítico da retórica.
Nesse texto, vemos estabelecida a oposição entre a Retórica e a Filosofia. Sendo um autor que
“nunca se bate com coisas mortas” (JAEGER, 2010, p. 1063), a crítica do autor da República
evidencia o quanto a tradição sofística e retórica estavam ainda vivas em seu tempo. O interesse
platônico aparece, pois, como tentativa de mostrar não somente a oposição, mas, sobretudo,
a superioridade da Filosofia (e da dialética) sobre a Retórica.
No texto platônico, a retórica é apresentada como uma técnica incapaz de proporcionar a
verdade aos homens, sendo fundada apenas na persuasão, na aparência de verdade. Fundada
meramente na persuasão, o texto platônico diz ter a retórica como objeto o justo e o injusto.
Para o pensador grego, contudo, há duas espécies de persuasão, qual seja, uma que gera
crença, e outra que gera ciência. A retórica, evidentemente, é tida como um saber que produz
crença, persuasão, aparência de verdade: “O orador, nos tribunais e nas outras assembléias,
não instrui sobre o justo e o injusto, limita-se a fazer com que os outros creiam. A verdade é que
ele não poderia em pouco tempo instruir tanta gente sobre matérias tão complexas” (PLATÃO,
1973, p. 45).
Se o sofista Górgias14 diz ter a Retórica como objeto de seu saber a justiça15, Platão coloca
na boca de Sócrates, seu mestre, o intuito de refutar tal tese por meio do método dialético.
Para Platão, com efeito, o objeto da retórica de modo algum é a verdadeira justiça, pois não
se funda no conhecimento (no sentido platônico, ou seja, conhecimento racional e universal)16.
Assim, a retórica é entendida como mera atividade empírica:
Sustento que ela não é uma arte17, mas uma atividade empírica, por que não tem na sua base um
princípio racional que permita justificar as várias formas do seu procedimento no que respeita à
sua natureza e às suas causas. Ora, eu não chamo arte a uma atividade que não esteja fundada
na razão. (PLATÃO, 1973, p. 64).
14 Vale considerar que Górgias teria sido mestre de Isócrates. O Contra os Sofistas de Isócrates aparece de certo modo tanto como crítica
ao Górgias platônico como de defesa da retórica.
15 Cf. Platão (1973, p. 56).
16 É por tal razão que, no entender de Platão, a retórica e a sofística às vezes se confundem. No dizer do autor, “dada [...] a estreita relação
que existe entre elas, sofistas e oradores confundem-se, ao realizar o seu trabalho no mesmo domínio, sobre os mesmos assuntos sem
conhecerem exatamente a natureza das suas funções e com idêntica ignorância a seu respeito por parte dos outros homens” (Cf. PLATÃO,
1973, p. 64-65).
17 Uma tese fundamental que Sócrates (Platão) tenta refutar no texto é a afirmação segundo a qual seria a retórica uma arte (no grego,
techne). Vale ressaltar que a palavra arte não exprime de modo adequado a palavra grega, tendo em comum a referência a algo de ordem
prática e ao conhecimento/saber referente a essa atividade. A palavra arte/techne “significa que estas tarefas práticas ou estas atividades
profissionais não correspondem à mera rotina, mas baseiam-se em regras gerais e conhecimentos sólidos; neste sentido, o grego techne
corresponde frequentemente, na terminologia de Platão e Aristóteles, à moderna palavra teoria, sobretudo nos passos em que se contrapõem
à mera experiência. Techne, por sua vez, distingue-se, como teoria, da “teoria” no sentido platônico de “ciência pura”, já que aquela teoria (a
techne) é sempre concebida em função de uma prática” (Cf. JAEGER, 2010, p. 653).
92
Desta feita, a Retórica, no entender de Platão, é uma atividade empírica que “nada tem de
científico” (PLATÃO, 1973, p. 61). Somente a Filosofia, com efeito, fundada no conhecimento
racional, seria capaz de apreender a verdade em seu caráter absoluto e universal.
Na contramão do que pensa Platão, o retórico Isócrates se diz filósofo. Para o autor do
discurso Contra os sofistas, “filosofia é cultura geral, centrada na arte oratória; numa palavra:
retórica” (REBOUL, 2004, p. 12). O pensamento isocrático aparece como recusa do ideal
socrático-platônico de cultura e educação e, mesmo criticando também o movimento dos
sofistas, tal como escreve Werner Jaeger, “no fundo, Isócrates é um sofista autêntico, [...] é o
homem que verdadeiramente vem coroar o movimento da cultura sofística” (JAEGER, 2010,
p. 1064).
O Contra os Sofistas representa uma espécie de programa escrito por Isócrates ao fundar
sua escola de retórica na Atenas do século IV. É no contexto da democracia ateniense que,
tendo a palavra a preeminência política, as pretensões “filosóficas” de Isócrates centram-se
na necessidade de professar a arte do discurso. O filosófico aqui não aparece, com efeito,
em oposição à Retórica. Como escreve em seu texto ao fazer apologia a seu ideal educativo,
afirma que “aqueles que se dedicam à filosofia chegarão à sua meta” (ISÓCRATES, 1982,
p. 38).
Isócrates nomeava Filosofia o projeto do qual era partidário, um projeto, vale dizer, ao
mesmo tempo filosófico, político e educativo ou, o que dá no mesmo, retórico. Desse modo,
torna-se claro que o pensador grego atribui à Filosofia um sentido distinto daquele apregoado
por Platão. Na compreensão de Jaeger, no contexto da atuação de Isócrates e Platão, o
significado de palavras como filosofia ainda não havia sido cristalizado. Assim, compreende
o historiador helenista que “Na pretensão de ambas as partes reivindicando para si o termo
filosofia e no sentido totalmente diverso que uma e outra lhe dão, se expressa de maneira
simbólica o duelo da retórica e da Ciência a ver qual delas devia ter a hegemonia no reino da
educação e da cultura” (JAEGER, 2010, p. 1066).
A fundação da escola isocrática dá-se no contexto da proximidade temporal da Academia
platônica18. Ora, quem são os sofistas19 contra os quais Isócrates se dirige em seu discurso? A
crítica realizada em Contra os sofistas direciona-se, com efeito, não somente aos sofistas, mas
também e, sobretudo, à tradição socrático-platônica que, em uma obra como Górgias, conhecida
por Isócrates, recusa o primado filosófico da Retórica. Desse modo, Contra os sofistas aparece
18 A Academia de Platão é fundada por volta de 387 a.C. A escola isocrática é fundada em 393 a.C., de modo que, ao fundar sua escola de
retórica, Isócrates já era conhecedor de textos platônicos como o Górgias e o Protágoras. (Cf. CODONER, 1979, p. 31).
19 Vale considerar que, no uso do termo sofista, Isócrates se vale de um sentido genérico do termo, ou seja, em seu sentido mais arcaico,
significando sábio. Não se trata, pois, do sentido adquirido a partir do século V, quando a palavra passa a ganhar um sentido pejorativo, em
referência aos professores estrangeiros. Esse sentido, com efeito, passa a existir e preponderar a partir de obras platônicas como o Protágoras
e o Mênon. (Cf. JAEGER, 2010, p. 1064).
93
igualmente como uma réplica ao Górgias, no qual Platão “não atacava somente Górgias, mas
a retórica em todas as suas variantes” (JAEGER, 2010, p. 1078).
2 Isócrates e seu texto contra os sofistas: a
relevância da retórica
Em um primeiro momento, Isócrates recusa a educação sofística, levada a efeito por
professores que, no quadro da vida política realizada no contexto do espaço público realizado
na ágora e na eklésia, vendiam a possibilidade de bem discursar em troca de dinheiro. Em
Contra os sofistas, podemos ler:
Esses indivíduos chegaram a tamanho atrevimento que pretendem convencer aos jovens de que,
se conviverem com eles, saberão o que se deve fazer e, por meio desta ciência, serão felizes.
Se estabelecendo como mestres e donos de bens tão importantes, não se envergonham de pedir
por isso três ou quatro minas. (ISÓCRATES, 1982, p. 33-34)..
Logo na abertura de seu discurso, Isócrates critica os que “dedicam seu tempo às disputas
verbais” (ISÓCRATES, 1982, p. 33) e que nada mais fazem senão vender mentiras. Assim como
Platão, o autor de Elogio de Helena critica os chamados erísticos, ou seja, aqueles indivíduos
que, no contexto da vida pública, tinham por intenção a discussão por si mesma, interessados
meramente na capacidade de convencer e tornar defensável qualquer tese, seja ela verdadeira
ou falsa, boa ou má:
Se todos os que intencionam educar quisessem dizer a verdade e não se comprometessem mais
do que podem cumprir, não lhes tomaria em mal conceito o cidadão comum. Porém, os que se
atrevem a se vangloriar irrefletidamente fazem parecer que decide mais sensatamente quem
escolhe a indolência do que aqueles que dedicam seu tempo à filosofia. (ISÓCRATES, 1982,
p. 33).
Isócrates acusa ainda esses polemistas, os erísticos (oradores)20 – sábios versados na
arte da oratória, que escrevem discursos políticos – de “escrever piores discursos do que os
indivíduos comuns seriam capazes de improvisar. Sem embargo prometem a seus alunos
que os tornarão oradores de tal categoria que não passará por alto nada do que existe em
cada assunto” (ISÓCRATES, 1982, p. 35).. Se, por um lado, a crítica de Isócrates direciona-se
aos erísticos, por outro ela representa uma recusa ao discurso filosófico platônico. Se Platão
recusava o primado da Retórica como saber a medida de sua impossibilidade de conhecer
20 Na Atenas do tempo de Platão e Isócrates, além dos oradores e sofistas cujos discursos estavam voltados à política, havia também aqueles
mestres de oratória que se dedicavam a áreas como astronomia e geometria. Tais discursos não receberam o interesse de Isócrates, pois
considerados inúteis para a vida prática, cotidiana, da pólis. A oratória a qual se dedica Isócrates é o discurso político. Trata-se, de fato, de
um autor que quer dar conta de problemas de ordem prática, do âmbito da vida civil, política, dos homens.
94
a verdade absoluta, é precisamente o ideal platônico do conhecimento aquele que a retórica
isocrática recusa como possível.
O discurso retórico isocrático se ocupa da política, ou seja, das ações, da vida prática e
coletiva dos homens no interior de uma comunidade política. Ao se reportar à importância
dessa vida prática (política), Isócrates conclui que “até os homens comuns melhor se dão conta
[do primado da vida prática] do que os que proclamam ter ciência [...], pois esses desprezam
essas ocupações e as julgam charlatanice e mesquinharia do espírito, porém não cuidado com
a alma” (ISÓCRATES, 1982, p. 35).
Aqui nos deparamos com a distinção entre ciência (epistéme) e opinião (dóxa) estabelecida
nas obras de Platão e Isócrates. Para esse último, na vida político-prática dos homens, somente
é possível a transmissão de opiniões (dóxa). Nessa direção, percebemos que Isócrates se opõe
radicalmente a Platão, para quem a opinião é pura aparência, sendo sem valor no âmbito do
conhecimento tal como se desenha na República, obra na qual é sinônimo falar de Filosofia,
epistéme, conhecimento e verdade absoluta 21. No dizer de Werner Jaeger (2010, p. 1204),
É precisamente aqui que se revela até que ponto o seu pensamento se encontra dependente do
de seu adversário. [...] Que é, pois, a formação do homem, ou filosofia, interpretando a palavra
no verdadeiro sentido e não no sentido que lhe dá Platão? Também aqui Isócrates recolhe coisas
ditas anteriormente, procurando exprimir com maior clareza os seus pensamentos. Para ele o
ponto decisivo é e continua a ser este: à natureza humana não lhe é dado alcançar uma autêntica
ciência – no estrito sentido da episteme platônica – do que devemos fazer ou dizer, duas coisas
que para Isócrates formam uma unidade.
Em Elogio de Helena, escrito logo após Contra os sofistas, sempre sem nomear diretamente
a quem a crítica se dirige, Isócrates parece proferir uma crítica a Platão e sua visão da política
– tal como esboçado em seu tratado República – no seguinte comentário:
Buscar a verdade e ensinar a seus discípulos os sistemas de governo pelos quais nos regemos,
e exercitar sua experiência nesses [na política] pensando que é muito mais importante ter uma
opinião razoável sobre coisas úteis que saber com exatidão coisas inúteis [...], que de nada
servem para a vida. (ISÓCRATES, 1982, p. 44).
Em Elogio de Helena, Isócrates tematiza a antítese entre conhecimento (epistéme, ciência)
e opinião (dóxa). Vale ressaltar, mais uma vez, a recusa isocrática do ideal platônico de ciência
e, portanto, de Filosofia (o que, para um grego, dá no mesmo), a medida da impossibilidade
de se fundar uma verdade e um saber absoluto na vida humana. Tal não significa, contudo, se
21 Daí dizer Platão, pela boca de Sócrates, que além de ser “impossível que a multidão seja filósofo” (PLATÃO, 2010, p. 282), diz ainda que
“os filósofos são aqueles que são capazes de atingir aquilo que se mantém sempre do mesmo modo, e que aqueles que o não são, mas se
perdem no que é múltiplo e variável, não são filósofos” (PLATÃO, 2010, p. 265).
95
cair no puro subjetivismo. Fazendo seu o ideal de Protágoras ao compreender que o homem é
a medida de todas as coisas, e ao recusar um ideal de verdade absoluta, o autor compreende
que, por meio de uma opinião acertada (ou seja, aquela proveniente do indivíduo bem formado),
na vida político-prática os homens podem bem deliberar acerca do melhor para si mesmos:
É por isso que para ele só existe uma verdadeira sabedoria. A essência desta consiste em
descobrir com acerto, de modo geral e à base da simples opinião, o que é melhor para o homem.
Por conseguinte, é ao homem entregue a estes esforços, pelos quais pode colher os frutos desta
“phronesis”, que deve dar-se o nome de filósofo. [...] A opinião certa não é para ele um problema
de conhecimento exato, mas sim de gênio, e como tal inexplicável e refratário a ser transmitido
por meio do ensino. (JAEGER, 2010, p. 1204-1205).
Mas, afinal, o que de novo a retórica isocrática traz frente aos seus contemporâneos? Ora,
é o próprio pensador que afirma que “é preciso não somente criticar os demais, senão também
esclarecer minha própria maneira de pensar” (ISÓCRATES, 1982, p. 37). A novidade que o
próprio pensador aponta em seu pensamento pode ser apreendida quando em sua reflexão
conclui que
Muitos dos que se dedicaram à filosofia acabaram sendo simples aficcionados, enquanto outros,
sem nunca ter contato com os sofistas, chegaram a ser hábeis em oratória e em política. Pois a
capacidade de fazer discursos e todas as demais empresas surge nos indivíduos bem dotados
e nos que se educam mediante a experiência. (ISÓCRATES, 1982, p. 37).
A crítica que Isócrates dirige à atuação dos sofistas vincula-se diretamente aos elementos
novos de sua retórica, na base da qual aparece o trinômio experiência, natureza e conhecimento.
A partir desse trinômio, o pensador grego aparece como crítico de uma oratória que surge a
partir de regras fixas, aplicáveis de modo igual a todo e qualquer indivíduo. Por tal razão, diz
se espantar ao ver
Que são considerados dignos de ter discípulos quem, sem dar-se conta eles mesmos, apontam
uma técnica fixa como exemplo de uma atividade criadora. [...] Os discursos não podem ser
belos se não se dão neles a oportunidade, o adequado e o novo. [...]. Em razão disso, seria
muito mais justo que os que se servem de exemplos semelhantes devam dar dinheiro em lugar
de recebê-lo, porque intentam educar quando são eles mesmos os que necessitam educar-se.
(ISÓCRATES, 1982, p. 38-39).
O que Isócrates entendia como a filosofia apropriada para a formação do jovem está no
trinômio natureza, educação e experiência, na base da qual se daria a formação do homem
político. Com efeito, além da paidéia isocrática (ensino/educação) e da experiência (o treino,
a prática por parte do aluno), a natureza ou talento natural aparece como elemento fulcral,
96
fundamental para o indivíduo constituir-se como bom orador22. De todo modo, mesmo aquele
desprovido de talento natural pode, por meio do ensino e da experiência, tornar-se melhor.
Conforme explicita Jaeger, a educação de Isócrates “dirige-se à polis inteira e procura incitála a realizar ações que a tornem feliz e libertem os outros gregos das suas dores” (JAEGER,
2010, p. 1184). Numa direção não platônica, o que podemos chamar de “filosofia” isocrática
tem como finalidade, em suma, a formação do homem político virtuoso, tal como transparece
em seu texto A Nicocles23, discípulo e dirigente político recém chegado ao poder:
Compenetrado dessas virtudes, dedique a sua força de espírito a colocar-se, pelas suas virtudes,
acima dos outros homens, tanto quanto os supera pela posição; e não creia que o cuidado e
a aplicação, tão valiosos em todas as outras situações da vida, nada possam para tornar-nos
melhores e mais sábios. Não condene a humanidade à desgraça tal que, havendo já encontrado
meios de amansar os instintos dos animais e ampliar a sua inteligência, não tenhamos influência
suficiente sobre nós mesmos para aprender a virtude. Ao contrário, convença-se de que os
cuidados e a educação têm grande poder para aprimorar a nossa natureza. (ISÓCRATES, 1998,
p. 37).
O pensador retórico se opõe a uma oratória que busca meramente, por meio da palavra,
provar qualquer discurso, seja ele falso ou verdadeiro. É nessa perspectiva que, em Elogio
de Helena, o autor reafirma a crítica já ensaiada em Contra os sofistas, ao dizer que “a essas
pessoas seria necessário abandonar essas charlatanices que fingem convencer com palavras,
mas que nos fatos, porém, estão refutadas há muito tempo, e buscar a verdade” (ISÓCRATES,
1982, p. 44). A Retórica, pois, no entender de Isócrates, considera elementos éticos e a formação
do homem virtuoso. Logo, ela não pode ser julgada pelo mau uso que alguns indivíduos fazem
dela. Em sua visão, a Retórica somente é válida se considerar causas nobres e honestas.
22 Tal como escreve Olivier Reboul, Isócrates “ensina sempre recorrendo à reflexão do aluno e fazendo seus grandes discípulos cooperarem
na gênese de seus próprios discursos, que lêem, discutem e corrigem com o mestre. Aliás, opondo-se aos sofistas, que se vangloriavam
de capacitar qualquer um, ele mostra que o ensino não é todo-poderoso. A seu ver, para ser orador, são necessárias três condições. Para
começar, aptidões naturais. Depois, prática constante. Finalmente, ensino sistemático. Prática e ensino podem melhorar o orador, mas não
criá-lo”. (Cf. REBOUL, 2004, p. 11).
23 O texto em questão, dedicado ao filho do antigo rei de Chipre (que teria estudado na escola de Isócrates) quando da morte do pai, faz
recomendações ao novo rei. Tal texto é expressão de um gênero literário novo que alcançará sua expressão mais marcante n’O Príncipe de
Maquiavel. Com efeito, o retórico dirige a palavra e dá conselhos ao discípulo que subiu ao poder. Essa literatura surgida no século IV a.C
traz como elemento central o questionamento acerca da possibilidade da cultura e da educação influir na política e no Estado, problema esse
colocado igualmente na famosa República platônica. O texto isocrático faz postulações acerca da ideia de governo e sobre os deveres do
governante. Na obra podemos ler o seguinte conselho: “Dedique-se ao povo e, sobretudo, a fazê-lo gostar da sua autoridade, convicto de
que, entre todos os governos, sejam eles oligárquicos ou de outra natureza, os mais duradouros são os que melhor sabem resguardar os
interesses do povo. Você exercerá ao povo nobre e útil influência se não permitir que insulte qualquer pessoa, nem que seja insultado; e se,
reservando sempre as honras aos mais dignos, cuidar de proteger os outros cidadãos contra a injustiça. Esses são os primeiros princípios,
os princípios mais essenciais do bom governo” (Cf. ISÓCRATES, 1998, p. 37-38). Ora, no texto dedicado a Nicocles, o pensador grego
apresentou um ideal de paidéia baseado na justiça como fundamento para julgar um bom governo, provavelmente antes mesmo que Platão
apresentasse o problema na obra A república. (Cf. JAEGER, 2010, p. 1122-1123).
97
Desta feita, aqui nos deparamos com o intuito de Isócrates de tornar a retórica um saber
fundamental para o âmbito da vida política, não podendo se resumir à mera arte de convencer24.
Trata-se, com efeito, da necessidade de bem falar no interior da vida política efetuada no
espaço público, mas também do cultivo da reflexão, de tal modo que o mestre em retórica
deve conduzir seu discípulo não somente a falar de modo belo, mas também ao pensamento
rigoroso. É nessa perspectiva que, na compreensão de Mikkola (apud ISÓCRATES, 1979,
p. 32), “o cultivo da razão e a retórica andam juntos”. Assim, é fundamental reafirmar, mais
uma vez que, no interior desse pensamento, o sábio, o homem virtuoso, ou em outros termos
o filósofo, é aquele capaz de opinar sobre o melhor.
Considerações finais
Malgrado o esquecimento a que o pensamento de Isócrates tem sido historicamente
relegado, trata-se de pensador fundamental, em particular em razão de seu ideal de paidéia,
palavra grega de múltiplos sentidos, significando, ao mesmo tempo, todo um ideal de cultura
e educação voltado à formação de um indivíduo que é visto – e se vê – enquanto membro de
uma comunidade política. É nesse universo cultural que a Retórica é vista como tão relevante.
Autor que, ele próprio, por sua timidez, não exerceu com toda a sua força e diretamente a
atuação como orador, por outro lado formou toda uma geração de grandes políticos e oradores
que marcaram a vida política na Atenas do século IV a. C. A retórica isocrática representa o
elogio da palavra em seu vínculo direto e inelutável com o logos. A palavra comparece como
a mais eminente capacidade humana, sendo o que, em seu sentido mais alto, é elemento
diferenciador do homem em relação aos outros animais. É nessa não dissociação que a retórica
isocrática deve ser compreendida como um elogio da palavra e, ao mesmo tempo, do logos,
palavra grega também ela de múltiplos sentidos e que, de modo algum, pode ser lida como
vinculada somente à faculdade racional do homem. O logos é, pois, o discurso, a palavra
racional:
Os restantes dons que possuímos não nos tornam superiores aos animais; pelo contrário, somos
até inferiores a muitos destes em rapidez, em força e em todas as demais qualidades. Mas a
capacidade, em nós depositada, de nos convencermos uns aos outros e de chegarmos a mútuo
entendimento acerca de tudo o que queremos, não só nos liberta do tipo de vida dos animais,
mas permite agruparmo-nos para vivermos em comum, fundarmos Estados, criarmos leis e
inventarmos arte. [É o logos] que nos permite acusar os maus e reconhecer os bons. É graças a
ele que educamos os ignorantes e conhecemos os inteligentes. A capacidade discursiva é, pois,
24 Nesse aspecto, Isócrates seria o responsável por levar à ruptura do elo inevitável que se estabeleceu entre a sofística e a retórica, de
modo que a retórica não se restringiria ao mero convencimento e ao uso da palavra como instrumento de poder, sem interesse quanto ao
saber. Por outro lado, as próprias temáticas isocráticas fazem dele um pensador que recebeu amplamente a influência dos sofistas, bastando
lembrar de Górgias, um de seus mestres.
98
o sinal mais importante da razão humana. O emprego verdadeiro, justo e legal da palavra é a
imagem de uma alma boa e digna de confiança. (ISÓCRATES apud JAEGER, 2010, p. 1119).
Assim, Isócrates quer não apenas criticar seus contemporâneos, mas propor seu projeto
como o mais adequado à vida política grega, o que não se separa do ideal de formação do
cidadão. Conforme já esclarecido, aquilo que devemos entender por educação e formação deve
ser compreendido com base no que Isócrates pensa ser a Filosofia: uma educação retórica e,
pois, uma educação política que, para o autor, estaria superando os problemas existentes nos
pensadores por ele denominados “sofistas”.
Com efeito, ao criticar tais pensadores, o que Isócrates objetiva é apontar sua filosofia
como o método adequado para formar o homem bom, o homem público, enfim, para preparar o
jovem ateniense para a vida política e, pois, para a resolução prática dos problemas existentes
em seu tempo. Como bem esclarece Jaeger (2010, p. 1207),
É certo que, como já dissera antes Isócrates, não existe um saber infalível que conduza à virtude;
mas, dando ao espírito um objeto digno de que se preocupar, é possível, isso sim, ir modificando
e enobrecendo gradual e involuntariamente todo o ser do homem. E é precisamente a cultura
retórica a que pode fazê-lo. Isto quer dizer que, no pensar de Isócrates, quando Platão a julga
indiferente em matéria da moral e até um estímulo ao abuso, não compreende os efeitos da
verdadeira retórica.
Do debate surgido na Antiguidade entre Platão e Isócrates, ficou evidente que, ao longo
dos séculos, a posição platônica predominou. Com efeito, as teses defendidas no Górgias e na
obra platônica foram assimiladas pela tradição filosófica ocidental como modelo de verdade e de
conhecimento. Aliás, a ideia de Filosofia que predominou ao longo da história foi precisamente
o conceito platônico. De todo modo, malgrado seu esquecimento, é Isócrates que parece fazer
cada vez mais sentido em um tempo como o nosso, morada de indivíduos cada vez mais
atomizados e que tendem a uma fuga da dimensão política, tão cara ao indivíduo cidadão da
pólis grega.
Referências
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Porto: Universidade do Porto/FIAMFAAM, 2013.
ISÓCRATES. Conselhos aos governantes. Coleção Clássicos da Política. Senado Federal:
Brasília, 1998.
99
ISÓCRATES. Contra los sofistas. In: ISÓCRATES. Discursos. Tradução do espanhol Juan
Manuel Guzmán; introdução Juan Signes Codoner. Madri: Editorial Gredos, 1982a. p. 156164.
ISÓCRATES. Elogio de Helena. In: ISÓCRATES. Discursos. Tradução do espanhol Juan
Manuel Guzmán; introdução Juan Signes Codoner. Madri: Editorial Gredos, 1982b.
ISÓCRATES. Discursos. Introdução, trad. e notas Juan Manuel Guzmán. Madri: Editora
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JAEGER, W. Paideia: A formação do homem grego. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo:
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PAGOTTO-EUXEBIO, M. S. O corpo de Helena e o texto de Isócrates. Revista
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PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação: a Nova Retórica.
Trad. Maria Ermantina de Almeida. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
PLATÃO. Górgias. O Banquete; Fedro. Tradução do português Manuel de Oliveira
Pulquério, José Rubens Siqueira e Maria Teresa Schiappa de Azevedo. Lisboa: Editorial
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PLATÃO. República. Tradução e notas Maria Helena da Rocha Pereira. 12. ed. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2010.
REBOUL, O. Introdução à retórica. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
TOULMIN, S. E. Os usos do argumento. Tradução Reinaldo Guarany. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
100
As inscrições parietais
da Memoria Apostolorum:
uma reflexão sobre
grafites e fórmulas votivas
Vanessa de Mendonça Rodrigues
Introdução
X kâl(endas) iulias / Pa`u´le Petre in mente / habete Sozomenum / et tu qui leges
(- ICVR 12980)
As fontes epigráficas são material valiosíssimo para os estudos históricos e linguísticos.
Se, por um lado, conservam os testemunhos de pessoas comuns, por outro, nos apresentam
traços da língua corrente mais dificilmente encontrados nos escritos literários. Podemos definir
Epigrafia como o estudo das inscrições em suportes duradouros, como pedra, cerâmica, metal
(D’ENCARNAÇÃO, 2010), e isso significa que temos uma pluralidade de tipos de registros
epigráficos que vão desde inscrições monumentais, passando por epitáfios, grafites, até marcas
de produção das oficinas e lâminas de chumbo com feitiços mágicos. O trabalho com essas
fontes, entretanto, não deve concentrar-se apenas em decifrar o texto epigráfico, mas em
investigar seu contexto material e sociocultural de produção e recepção: analisar historicamente
seus usos e significados para a sociedade que produziu e leu esse texto. Conforme afirma o
professor D’Encarnação, por isso, há uma íntima relação entre Epigrafia e História: o historiador
deve ser um pouco epigrafista, e o epigrafista, um pouco historiador (D’ENCARNAÇÃO, 2010).
Em nossa investigação, que se situa entre a Epigrafia e a História, selecionamos um corpus
epigráfico formado por um tipo específico de inscrição: os grafites. Definir um grafite, contudo,
não é tarefa fácil. Partindo do fato de que este é um meio de transmissão de enunciados e
considerando que enunciados podem ser expressos tanto por meio de palavras, quanto por
meio de imagens, começamos definindo que os grafites também são compostos tanto por
palavras quanto por imagens, ou, ainda, por uma mistura de ambos. No caso específico dos
grafites cristãos, por exemplo, temos o emprego de diversos signos que fazem parte desse
universo simbólico, como o monograma de Constantino, os pães, os peixes. Além do código
empregado – linguístico ou imagético –, os grafites possuem conteúdos variados: podem ter
conteúdo político (críticas, campanhas, etc.), religioso, literário, ou mesmo conter um registro
cotidiano semelhante aos hoje realizados em redes sociais, como fez o autor da inscrição “XIII
K(alendas) Maias panem feci” (CIL, IV, 8972), um grafite encontrado em Pompéia que registrou
uma atividade trivial cotidiana, a cozinha, que pode ser traduzido como “19 de abril eu fiz pão”.
No esforço de contemplarmos os múltiplos usos do recurso do grafite pelos antigos,
encontramos no livro Ancient Graffiti in Context, de Jennifer Baird e Claire Taylor, algumas
discussões muito pertinentes: no intuito de definir o grafite, elas começam questionando-se
acerca das técnicas utilizadas para gravar o texto em seu suporte, o que poderia ser feito
arranhando a superfície dura com um instrumento pontiagudo ou marcando a mensagem com
102
algum tipo de pigmento ou carvão. Mas, essas mesmas técnicas também eram empregadas
na gravação de outros tipos de enunciados, com maior ou menor grau de sofisticação e, por
isso, a técnica de gravação da mensagem no suporte não pode ser o critério para a definição
de um grafite (BAIRD; TAYLOR, 2010). Ainda assim, de forma geral, podemos apontar algumas
características que, normalmente, distinguem grafites de outras inscrições: a ausência de
delimitação de um campo epigráfico, a falta de cuidado com a padronização das letras –
tamanho, paginação, tipo de fonte – e a possibilidade de uso de uma letra que podemos chamar
cursiva, e não a letra capital usada comummente na Epigrafia.
A autora Kristina Milnor, por sua vez, apresenta em seu livro Graffiti and the Literary
Landscape in Roman Pompeii outra possibilidade de pensar a questão: para a autora, a voz
privada é a marca que distingue os grafites, em contraste com a voz pública e de autoridade que
outros enunciados possuiriam (MILNOR, 2014). Essa distinção abre um campo interessante de
possibilidades para se compreender o fenômeno do grafite, pois, embora este não possuísse
a conotação negativa e marginalizada que possui hoje para a nossa sociedade, tampouco
costumava ser veículo de uma voz de autoridade. Ann Marie Yasin, em seu texto “Prayers on
site: the materiality of devotional graffiti and the production of the early christian sacred space”,
afirma que o que existia no mundo romano era uma “culture of unofficial public writing” (YASIN,
2015, p. 38) – “cultura de escrita pública não-oficial”, em tradução livre, o que dialoga com a
proposta de Milnor, marcando a questão do grafite no mundo antigo em torno dos binômios:
público x privado; oficial x não-oficial. Entretanto, ficar preso a isso exclui toda a complexidade
desse tipo de inscrição, já que, muitas vezes, o grafite encontra-se em local não tão visível ou
de baixa circulação de pessoas, como no interior de casas; outras vezes, como no caso dos
grafites cristãos, fica restrito a uma determinada comunidade, dentro de espaços e santuários
e não em vias e locais públicos de ampla circulação. Por isso, para abrangermos todas as
possibilidades de ocorrência de grafites, é mais interessante considerarmos a proposta de
Milnor, para quem essa prática pode ser considerada, dentro da sociedade romana, como a
manifestação de uma “wall-writing culture” mais abrangente (MILNOR, 2014, p. 12), ou seja,
uma prática de escrita mural em geral.
Mas o que, então, definiria um grafite? A palavra de ordem é, para Baird e Taylor, “contexto”,
o que inclusive nos remete ao aforismo enunciado no primeiro parágrafo sobre a relação entre
Epigrafia e História: esse contexto, no sentido epigráfico, seria o local ocupado pela inscrição
e sua relação com o espaço, com a circulação de pessoas, com os elementos que a cercam,
com a intenção e o significado da mensagem; do ponto de vista histórico, seria a relação desta
com uma conjuntura sociocultural específica de produção e recepção. Para as autoras, o grafite
deve ser visto como um evento que produz um objeto:
103
Pode-se, então, ver os resquícios materiais como um objeto que foi criado por este evento, e,
portanto, ver a escrita de grafites como uma relação particular entre uma superfície, um texto, uma
imagem, o autor e a audiência. Se escrever é um evento que gera um objeto, a interpretação do
grafite torna o objeto um evento novamente. (BAIRD; TAYLOR, 2010, p. 6-7, tradução nossa25).
A inscrição, dessa forma, é o resultado material de um determinado “evento”, ou seja, o
objeto duradouro resultante de uma conjuntura social e cultural específica que levou à sua
gravação. Por exemplo, ao selecionarmos como corpus a ser analisado o conjunto de cerca
de 500 grafites votivos realizados em um monumento devocional dedicado a Pedro e Paulo –
a Memoria Apostolorum –, estamos considerando que esses grafites são o resultado material
de um ato de devoção e o registro da comunicação efetuada entre o humano e o divino
eternizada nas paredes do edifício. O evento, contudo, não é unicamente o desencadeador da
produção do objeto epigráfico, mas também a sua recepção é um evento: a epígrafe é lida, e,
por se tratar de um objeto duradouro, sua recepção e significado se inserem na longa duração,
sendo alterados ao longo do tempo; conforme a conjuntura muda, a recepção muda. Por isso,
quando as inscrições perdiam seu significado social, poderiam, por exemplo, ser empregadas
na construção de novos edifícios, diferentemente de hoje, quando, dotadas de valor histórico,
ao invés de serem reutilizadas, são recuperadas e transformadas em acervo de museus e em
objeto de estudo.
Para além de seu valor histórico, os grafites possuem ainda um importante valor para os
estudos linguísticos: uma vez que são produzidos por pessoas comuns e não por profissionais,
eles acabam por registrar elementos da língua corrente que escapam às gramáticas tradicionais.
De fato, os grafites são uma importantíssima fonte para o que se chama convencionalmente
de “Latim Vulgar”: Bruno Bassetto, no primeiro volume de sua primorosa obra Elementos de
Filologia Românica, confere aos grafites, especialmente aos corpora de Pompéia e Herculano,
uma relevância fundamental para os estudos de linguística histórica (BASSETTO, 2013). Esses
dois sítios, sepultados pelo Vesúvio em 79 d.C., nos revelam o cotidiano de duas cidades
romanas quase paradas no tempo, e nos apresentam uma ideia da popularidade da prática
do grafite no mundo romano: somente em Pompéia, há mais de 15.000 grafites de todos os
tipos e abordando todos os assuntos. Há mesmo um grafite sobre o hábito de fazer grafites,
um versinho: adimiror, paries, te non cecidisse ruinis, qui tot scriptorum taedia sustineas (CIL,
IV, 1904), que, de acordo com a tradução de Bassetto, diria “Admiro-me, parede, não teres
caído em ruínas, tu que aguentas o tédio de tantos escritores”.
25 No original: “One might then see the material remains as an object which has been created by this event, and therefore view graffiti-writing as
a particular relationship between a surface, text, image, author and audience. If writing is an event which becomes an object, the interpretation
of graffiti turns the object into an event again”.
104
O autor chama a atenção para o fato de que essas fontes deixam transparecer elementos
do Latim Vulgar, de modo que, não havendo uma descrição sistematizada do que seria a
língua falada cotidianamente, os grafites, juntamente com outras fontes epigráficas, são uma
forma de observarmos de maneira incidental, por meio de aparentes equívocos da escrita,
as características da língua falada (BASSETTO, 2013). Além de preciosas fontes para a
compreensão do Latim vivo, os grafites e demais fontes epigráficas ainda são testemunhos de
fenômenos linguísticos decorrentes do contato entre o Latim e as outras línguas com as quais
este interagiu. Se por um lado, pouco restou do substrato das línguas ocidentais eclipsadas
pelo Latim, por outro, o Grego, detentor de maior prestígio e tradição, funcionou como adstrato
ao idioma latino, manifestando-se a partir desse contato diferentes graus de bilinguismos que
testemunham a inventividade dos indivíduos em matéria de língua, escrita e comunicação.
É a partir dessas considerações iniciais que pretendemos apresentar o estudo de caso do
corpus de grafites encontrado no monumento cristão à Memoria Apostolorum, em um esforço
interdisciplinar entre língua e História que busque relacionar aspectos linguísticos, culturais e
sociais a fim de compreender como todos estes elementos estão envolvidos nos eventos de
produção e recepção dos grafites.
1 O monumento à Memoria apostolorum
O monumento à Memoria Apostolorum foi construído por cristãos em homenagem aos
apóstolos-mártires Pedro e Paulo na segunda metade do século III d.C., tendo recebido grafites
votivos de 260 d.C. a 330 d.C. (FELLE, 2012). Trata-se de um pequeno edifício em formato de
triclia, com três paredes fechadas e bancos adjacentes e uma quarta parede aberta sustentada
por colunas. A construção ficava à nível do solo, à beira da Via Ápia Antiga, e a cerca de 2,4
quilômetros das portas antigas; essa era, inclusive, uma das mais relevantes vias de acesso à
cidade, e, também, uma das mais cristianizadas, tendo importantes necrópoles cristãs como a
Ad Catacumbas (atual Catacumba de São Sebastião) e a Catacumba de São Calisto, e estando
próxima às Catacumbas de Balbina e São Pretextato.
Não se sabe ao certo as razões que levaram os cristãos a construir o monumento, mas
este está relacionado ao contexto das perseguições: durante os três primeiros séculos da era
cristã, o Cristianismo não era uma religião lícita, e, em determinados períodos, isso acabou
gerando uma perseguição aos fiéis. O principal motivo para tal era o fato de eles se recusarem
a participar do Culto Imperial, o que era considerado um crime de lesa-majestade e tornava o
grupo um potencial perigo para o Império. As perseguições, por vezes, chegavam às vias de
fato, quando os cristãos eram mortos por sua fé: esses são os chamados mártires, indivíduos
especiais que, performando o sacrifício de Cristo, davam sua maior prova de fé, preferindo morrer
105
a negar sua crença. Pedro e Paulo, os maiores apóstolos da cristandade, foram martirizados,
segundo a tradição, em Roma durante a década de 60 d.C., sob o governo do Imperador Nero
(54 d.C. – 68 d.C.), e enterrados na cidade: Pedro na Via Cornélia e Paulo na Via Óstia, onde,
inclusive, estão hoje suas Basílicas.
Esses mártires, por serem símbolos máximos de fé e coragem, tiveram seus túmulos
considerados locais de devoção, lugares para leitura, reuniões, orações e para a rememoração
de seus sacrifícios. No entanto, com o tempo, eles acabaram se tornando para as comunidades
indivíduos especiais, capazes de realizar uma espécie de ligação entre os fiéis e seu Deus:
os mártires, por sua morte sacrificial, tinham um lugar especial reservado no Reino dos Céus,
e, por estarem próximos a Deus, tornaram-se intercessores para os fiéis terrenos, enquanto
seus túmulos e suas relíquias corporais converteram-se em fonte de poder divino na terra,
segundo Peter Brown (1981), manifestando aqui porções da glória e da misericórdia divinas
desfrutadas por suas almas no além. A Memoria Apostolorum, assim, seria um desses locais,
onde terra e céu se ligariam e onde os cristãos poderiam se comunicar com Pedro e Paulo
a fim de transmitir a eles suas orações, pedindo que mantivessem estas diante de Deus por
meio da inscrição de suas demandas nas paredes do santuário.
A questão que se coloca em torno da construção do monumento é justamente a ausência
de registros arqueológicos que comprovem a estada dos corpos dos apóstolos no sítio, fato
que justificaria sua elevação à condição de ponto de contato entre céu e terra. A principal teoria
para explicar a existência da Memoria afirma que, por causa das perseguições, os restos dos
apóstolos teriam sido transportados para o local, a fim de que fossem protegidos de potenciais
violações (GUARDUCCI, 1986). A própria existência desse memorial dedicado aos apóstolos
fora, por muito tempo, apenas sugerida por documentos textuais, sendo finalmente comprovada
por meio das escavações arqueológicas realizadas a partir de fins do século XIX. É interessante
ressaltar que, nesse caso, as fontes epigráficas são de suma importância para comprovar a
própria existência do local de devoção, e, embora não comprovem com certeza a estada dos
corpos no local, afirmam a existência de uma comunidade devocional que, acreditamos, teria
suas razões para existir.
Além do testemunho da existência da Memoria, o historiador-epigrafista do presente tem um
conjunto com cerca de 500 grafites votivos que registram a comunicação entre fiéis e mártiresapóstolos e a constituição de uma comunidade devocional. Embora Ann Marie Yasin afirme que
o principal objetivo do grafite devocional cristão fosse a comunicação com o divino, ela também
aponta o fato de que os grafites possuiriam um forte apelo social para os indivíduos religiosos:
além de eles formarem junto com o monumento uma paisagem sacra, atestando e reforçando
o status de fenda entre mundos daquele sítio, os grafites convidariam o visitante a fazer o
106
mesmo, inscrevendo-se na comunidade devocional por meio do registro nas paredes (YASIN,
2015). No caso da Memoria Apostolorum, além disso, há também o uso de uma fórmula votiva,
uma forma mais ou menos fixa de registrar o pedido aos apóstolos, que é repetida em boa
parte dos exemplares e que indicaria essa necessidade de conformidade e de pertencimento
a uma coletividade.
Considerando-se essa contextualização preliminar, passamos para a análise do corpus
epigráfico propriamente dito. É importante ressaltar que nosso trabalho parte de um esforço
de epigrafistas anteriores, que transcreveram os grafites encontrados e os organizaram junto
ao conjunto das Inscriptiones Christianae Vrbis Romae, as quais temos acesso por meio da
importantíssima Epigraphic Database Bari. Entretanto, mesmo com as inscrições transcritas, o
trabalho não é simples, porque os pedaços do revestimento de gesso interno do monumento
onde os grafites foram gravados encontram-se muito fragmentados, sendo muitas vezes
impossível distinguir até mesmo os caracteres empregados; isso porque, no século IV d.C.,
a Memoria foi substituída por uma basílica dedicada aos apóstolos, hoje conhecida como
Basílica de São Sebastião, em um processo de monumentalização da devoção começado
após o Cristianismo se tornar uma religião lícita em 313 d.C.. A solução encontrada, em nossa
análise, foi concentrarmo-nos mais nas mensagens que continham as fórmulas votivas e uma
estrutura sintática semelhante do que nas mensagens singulares, em uma análise sistemática
e quantitativa.
O corpus é formado por 538 inscrições registradas na base, o que está próximo do número
total de 500 grafites estimado por Antonio Enrico Felle (2012) com base na quantidade de
grafites por metro quadrado, em torno de 21. A língua e o alfabeto latino são dominantes no
conjunto, e será a partir deles que a fórmula votiva do monumento será construída. Trata-se de
uma fórmula que possui três elementos centrais: o nome dos apóstolos no caso vocativo Petre
et Paule; o pedido, composto pelo verbo habeo na segunda pessoa do plural no presente do
imperativo ativo, juntamente com o substantivo mens no ablativo singular e a preposição que
o rege, in, donde temos a expressão in mente habete. Além disso, há o complemento com o
nome das pessoas pelas quais se pede ou com o pronome omnis, quando os nomes não estão
especificados. É possível ainda encontrar algumas variações, por exemplo, o acréscimo do
complemento in orationes/ in orationibus, respectivamente, acusativo plural e ablativo plural
de oratio; o uso do futuro do imperativo ativo do verbo habeo ao invés do presente; ou, ainda,
uma fórmula alternativa, composta pelo verbo peto na segunda pessoa do plural no presente
do imperativo ativo e a preposição pro, donde temos petite pro.
O uso de fórmulas é muito comum na Epigrafia, tanto antiga quanto moderna, mas o que
seria uma fórmula? De acordo com a definição tradicional de Milnan Parry (1930, p. 80 apud
107
LOUVIOT, 2012, p. 7, tradução nossa26): “A fórmula nos poemas Homéricos pode ser definida
como um grupo de palavras que são regularmente empregadas sob as mesmas condições
métricas para expressar uma dada ideia essencial.”.
A aplicação desse conceito a fórmulas escritas pode ser realizada porque estas partem do
mesmo princípio: a repetição de palavras em uma mesma ordem ou estrutura transmitindo uma
ideia fixa. Dessa forma, a repetição confere à fórmula uma certa autoridade, uma “ressonância”
que permite ao leitor conhecer o seu significado quase que imediato, mas também um vazio,
criado por sua intensa repetição: justamente por essa característica fixa, em estrutura e em
significado, Estelle Ingrand-Varenne (2012) afirma que há um paradoxo na fórmula, que é, ao
mesmo tempo, dotada de significado e esvaziada deste. Por tanto ser repetida e facilmente
compreendida, acaba quase ignorada, negligenciada, traída pelo costume.
Por isso, é importante ressaltar que a fórmula é um relevante dado histórico, por sintetizar
em poucas palavras ideias complexas frutos de uma conjuntura específica. Além disso, também
chamamos a atenção para o fato de a sua própria reprodução ser um testemunho da abrangência
e da aceitação dessas ideias em determinada comunidade, possuindo assim forte conotação
social e cultural. Igualmente, é preciso repensar a relevância do estudo das fórmulas no que
tange à sua importância linguística. Bruno Bassetto (2013), na obra acima citada, afirma que
os grafites compostos por fórmulas são aqueles que possuiriam menos valor para os estudos
filológicos. Embora não possamos discordar que os grafites nos quais o sujeito carece de
um repertório prévio manifestam uma “criatividade linguística” de forma muito mais notável, é
preciso considerar que as fórmulas – para além de um significado histórico muito rico – também
apresentam interessantes fenômenos linguísticos a serem observados.
Dito isso, em termos de análise histórica e sociocultural, temos em nosso corpus uma fórmula
que atesta, primeiramente, a crença em uma interlocução direta com as almas dos apóstolos em
um plano celeste, mas também, a função intercessora destes: eles não concedem o milagre, a
proteção, ou a benesse solicitada; eles se lembram dos pedidos, eles oram pelos requerentes,
eles conduzem o pedido a quem de fato os pode realizar, que é Deus. Linguisticamente, há dois
fenômenos que chamam a atenção por sua recorrência: o primeiro é a ausência de aspiração
no h inicial de habeo: essa característica da língua falada (BASSETTO, 2016) transparece
nos grafites por meio da ocorrência da escrita do verbo sem o h inicial: são 24 inscrições nas
quais o verbo foi grafado com a letra h e 17 inscrições com a grafia sem o h, sendo o “erro”
ortográfico mais comum do conjunto de grafites.
26 No original: “The formula in the Homeric poems may be defined as a group of words which is regularly employed under the same metrical
conditions to express a given essential idea”.
108
O segundo está relacionado ao fato de que, mesmo com a existência da fórmula e de
inúmeros exemplos no local à disposição para os novos visitantes, o verbo habeo apresenta
outras conjugações: na grande maioria das inscrições, o verbo aparece conjugado regularmente
na segunda pessoa do plural no presente do imperativo ativo, mas há 4 ocorrências do verbo
na segunda pessoa do plural no futuro do imperativo ativo, habetote, e 4 na segunda pessoa
do plural no presente do subjuntivo ativo, abeatis, nesse caso, sempre sem o h inicial. Esses
elementos indicariam que, quando se trata de grafites, a existência de fórmulas não impediria
os indivíduos de deixar transparecer por meio da escrita fenômenos fonéticos, como a ausência
da aspiração do h inicial no Latim Vulgar, nem de expressar certa criatividade como, no caso,
no que diz respeito à conjugação.
2 Bilinguismo e fórmulas votivas
Um dos aspectos linguísticos mais notáveis desse conjunto de grafites é o bilinguismo que
ocorre a partir das fórmulas votivas. O bilinguismo é um fenômeno extremamente complexo de
ser estudado, seja em sociedades contemporâneas, seja na Antiguidade, porque envolve uma
enorme quantidade de variáveis. Frédérique Biville (2008, p. 36, tradução nossa27) afirma que:
Qualquer texto epigráfico “bilíngue”, seja qual for a natureza e o grau do bilinguismo, reflete uma
situação enunciativa sempre única e original. É, portanto, imperativo questionar primeiro o contexto
histórico e sociolinguístico em que foi produzido, perguntando quais eram, neste preciso contexto,
a(s) linguagem(s) do poder e da administração, a(s) linguagem(s) da cultura e da comunicação,
o nível da alfabetização da população e os relatórios dados, numéricos e relacionais, entre as
comunidades linguísticas. Também é necessário questionar o status étnico, linguístico e cultural
dos indivíduos envolvidos no processo de produção de texto [...].
Isso porque o bilinguismo é um fenômeno que possui um aspecto individual, mas também
social, que pode abranger famílias, comunidades, cidades. Afirmar que o bilinguismo reflete
“uma situação enunciativa sempre única e original” é considerar que o indivíduo que produz a
escrita bilíngue o faz de acordo com suas capacidades linguísticas, mas também, em relação
ao grupo social ao qual a inscrição é direcionada, ou que, de alguma forma, terá acesso a
ela. Por exemplo, temos no mundo corporativo um tipo de bilinguismo que funciona como
um código, uma linguagem hermética por meio da qual esses profissionais se comunicam,
se reconhecem e se distanciam do restante da população: fazer uma call, terminar um job,
estabelecer um deadline, se preocupar com o brand management; termos que vão além da
27 No original: “Tout texte épigraphique « bilingue », quels que soient la nature et le degré de ce bilinguisme, reflète une situation énonciative
à chaque fois unique et originale. Il est donc impératif de s’interroger au préalable sur le contexte historique et sociolinguistique dans lequel il a
été produit, en se demandant quelles étaient, dans ce contexte précis, les (la) langue(s) du pouvoir et de l’administration, les (la) langue(s) de
culture et de communication, le degré d’alphabétisation de la population, et les rapports, numériques et relationnels, entre les communautés
linguistiques. Il convient aussi de s’interroger sur le statut ethnique, linguistique et culturel des individus impliqués dans le processus de
production du texte”.
109
necessidade comunicacional – uma vez que existem correspondentes em Português que
expressam as mesmas ideias – ou da habilidade linguística dos indivíduos – porque seu uso
não implica necessariamente a fluência em língua inglesa – mas funcionam como marcas
distintivas de uma profissão e um estilo de vida.
A partir do exemplo acima, podemos perceber como qualquer enunciado bilíngue possui
camadas de significados e de usos que vão além das aparências. No caso dos grafites do
nosso corpus, adotamos alguns procedimentos a fim de tentar compreender a ocorrência desse
fenômeno em tais circunstâncias. Iniciamos nossa análise com algumas considerações sobre
as duas línguas envolvidas, o Grego e o Latim: se, por um lado, o Latim era a língua oficial do
Império Romano e a língua majoritariamente empregada nos grafites do monumento, o Grego
era um adstrato poderoso e imponente ao Latim, de tradição mais antiga, e que desfrutava
de um status que o Latim nunca obtivera, o de língua franca em sua variante Koiné (BIVILLE,
2008). O Grego, além de ser a língua da porção oriental do Império, nunca foi nesta obliterado
pelo Latim como ocorreu com as línguas pré-românicas ocidentais, mas continuou sendo a
principal língua dessas regiões, além de possuir também enorme prestígio cultural entre os
próprios latinos; os romanos cultos eram aqueles que sabiam o Grego e conheciam a cultura
grega. Dessa forma, em Roma, o Grego possuía uma dupla existência enquanto língua de
migrantes orientais, muitos como escravos, e enquanto língua símbolo de erudição para as
elites.
Essa convivência entre as duas línguas gerou numerosos casos de bilinguismo grego/
latino nas epígrafes, refletindo o intenso contato entre os dois idiomas nesse mundo que, por
vezes, convém chamar greco-romano. Biville, em um esforço de análise desse tipo de contato
linguístico, categoriza o fenômeno de acordo com o tipo de interação linguística ocorrida.
Considerando o bilinguismo como o uso simultâneo de duas línguas em um mesmo local, uma
mesma comunidade, ou por um mesmo indivíduo, o autor considera que existem dois tipos
de emprego desses idiomas: o primeiro, que consistiria, diante das possibilidades, na escolha
de um ou de outro idioma conforme as necessidades situacionais e conforme a disposição
dos autores; e o segundo, que consistiria no bilinguismo clássico, ou seja, no uso de dois
idiomas ao mesmo tempo. Esse segundo caso ainda se dividiria em outros dois, nos quais
ou a informação aparece duplicada e traduzida, de forma mais ou menos literal, ou as duas
línguas são utilizadas em um mesmo enunciado – sendo esse o nosso caso (BIVILLE, 2008).
Há ainda os casos de transliteração, também presentes nos grafites do monumento e que,
para Biville, são um tipo de bilinguismo em que apenas o código de gravação do enunciado é
alterado, e não o seu sistema gramatical.
110
Passando agora aos exemplares de inscrições bilíngues encontrados no monumento,
percebemos logo de início que este fenômeno ocorre, em geral, ligado à fórmula votiva do
monumento e suas variantes. Embora o comprometimento dos grafites nos impeça de fazer uma
análise perfeita, podemos identificar, pelos fragmentos que possuímos, graus de bilinguismo que
compreendem tanto a tradução da fórmula votiva do monumento para o Grego, a transliteração
da fórmula, ou a mistura dos dois idiomas em um mesmo enunciado. No primeiro caso, a
tradução da fórmula ainda pode ser realizada de duas formas: na primeira, há a tradução da
ideia da fórmula em um verbo grego que seja correspondente, na segunda, a fórmula é traduzida
literalmente, palavra por palavra, conforme os exemplos a seguir:
[Πέτρε καὶ Π]αῦλε μνημον[εύετε] / [---]ινος [---] ICVR 12946.b
[Πέ]τρε καὶ Π[αῦλε] / [εἰς μνία]ν ἔχετ[ε ---] / [---] ICVR 13075.a2
O primeiro exemplar apresenta a tradução da ideia da fórmula, na qual o verbo μνημονεύω,
que significa “lembrar”, aparece na segunda pessoa do plural no presente do imperativo ativo
como uma tradução da ideia presente na fórmula in mente habete, literalmente, “tende em mente”;
já o segundo exemplar apresenta a tradução exata da fórmula latina, por meio do verbo ἔχω,
que significa “ter”, conjugado no mesmo tempo, número, pessoa, modo e voz, a preposição εἰς
e o substantivo μνεία (aqui com um pequeno deslize ortográfico) no caso acusativo, de acordo
com a preposição, e que significa “lembrança”, “memória”. Os dois registros são encontrados,
respectivamente, em oito e seis grafites, não sendo possível afirmar a preferência de um ou
de outro pelos autores das inscrições em Grego no monumento; contudo, a existência de uma
tradução exata da fórmula votiva em Grego pode indicar uma tentativa de conformidade com
o padrão epigráfico da Memoria.
Por outro lado, temos os exemplares que misturam os dois idiomas em um mesmo enunciado
sob o alfabeto Grego, os quais temos como registros:
[Πέτρ]ε κ(αὶ) Παῦλε / [ιν με]ντε αβητ[ε] / [Στερ]κό[ρι---] ICVR 13076.b
[Παυλε] ετ Πετρε / [ιν με]ντε [ν]ος αβε/[τοτε εἰς το]ὺς ἐῶ[νας] ICVR 13073
[Πα]υ[λε ετ Πετρε] / [ι]ν με[ντε αβετε] / Αὐφίδ[ιον υἱόν ---] / μου ICVR 13045.a
[--- Πέτρε] καὶ Παῦλαι πετιτε ετ / αβετοτε ιν [μεντε ---] ICVR 13077.b
Para compreendermos esse tipo de bilinguismo, relembremos que as inscrições que
carregam a fórmula, em geral, se dividem em três partes: o nome dos apóstolos, o pedido
e as pessoas beneficiadas por este; a partir dessa informação, podemos perceber que as
inscrições acima trocam de idioma respeitando a divisão entre as partes. O primeiro bloco,
composto pelo nome dos apóstolos, aparece em Grego ou em Latim, o que pode ser percebido
111
pelo conectivo et/καί e pela acentuação, a despeito de o vocativo dos nomes ser realizado
igualmente nos dois idiomas. O segundo bloco, o do pedido, aparece sempre em Latim nesses
casos, apresentando, curiosamente, um interessante grau de variação que contradiz a ideia
de que grafites formulares seriam mais padronizados: nos dois casos, há variação de número
na vogal e de habeo; em um, há o emprego do futuro do imperativo ao invés do presente; no
último, há uma união entre o verbo peto no presente do imperativo e o verbo habeo no futuro
do mesmo modo.
Quanto ao terceiro bloco, presente apenas nos três primeiros exemplos e de forma
fragmentada, temos no primeiro exemplo, que começa com o nome dos apóstolos em Grego,
provavelmente um nome grego. Já no segundo e no terceiro, que até então pareciam exemplares
da língua latina transliterada, a troca para o idioma grego é assegurada pelos termos “εἰς τοὺς
ἐῶνας [sic]”, expressão comummente traduzida no Novo Testamento como “pelos séculos dos
séculos” (Gálatas 5,1), e pelos termos “υἱόν” e “μου”, que respectivamente significam “filho”, no
acusativo, e “meu”, genitivo singular do pronome ἐγώ. Seria interessante saber se no último
caso haveria um retorno ao Grego ou não, de modo que apenas o bloco central – o da fórmula
– estivesse em Latim, mas, infelizmente, não temos essa informação. Há ainda mais quatro
exemplares que apresentam transliteração, mas que, por não possuírem justamente o último
bloco de composição das inscrições desse tipo, também nos impedem de saber se haveria a
troca ou não de idioma na parte final:
Πετρε ετ / Παυλε πε[τιτε ---] ICVR 13096.b
Πετρε ετ / Παυλαι / ιν με〈ν〉τε [---] ICVR 13077.a
[Παυ]λε ετ Πετ[ρε ιν μεν]/[τε α]βητε Ση[---] ICVR 13067
[Παυλ]ε ετ Πετ[ρε ιν μεν]/[τε ν]ος αβετε [ιν ορα]/[τι]ωνες βεστ[ρας] ICVR 12997.a
Apesar das dificuldades em se analisar a ocorrência do bilinguismo na Antiguidade, sobretudo
em fontes tão fragmentadas, podemos, a partir do estudo dos exemplares acima, tecer algumas
considerações. Como afirmou Ann Marie Yasin, o ato de gravar um pedido nas paredes do
santuário tem como função principal a comunicação com o divino, mas, também, reflete o
desejo de inserir-se em uma dada comunidade votiva: “Adicionar seus próprios rabiscos, seja
simplesmente um nome ou um texto mais longo, ao grupo de grafites em um local sagrado era
tanto um meio de se comunicar com o divino quanto de se juntar às fileiras de outros que já o
fizeram anteriormente no mesmo lugar.” (YASIN, 2015, p. 46, tradução nossa28).
28 No original: “Adding one’s own scrawl, whether simply one’s name or a longer text, to the cluster os graffiti at a sacred site was both a
means to communicate with the divine and to join the ranks of others who have done so at the same place before. Yet through the words they
wrote, certain individuals proclaimed an even more specified place within the community of Christian devotees to the shrine”.
112
É justamente esse o processo que podemos observar, de modo que, inclusive, a própria
autora cita o monumento à Memoria Apostolorum como um exemplo de santuário no qual há o
emprego de uma fórmula votiva específica que constitui uma comunidade devocional. Partindo
desse contexto cristão de produção de grafites em grupo, passamos às reflexões sobre as
habilidades linguísticas dos autores das inscrições: Antonio Enrico Felle (2012), que possui um
artigo dedicado ao mesmo conjunto epigráfico, afirma que esse tipo de registro é testemunho
de um Latim aprendido apenas na oralidade, e que, por isso, escrito em alfabeto grego por
falantes do idioma helênico. Ele ainda afirma que, embora a qualidade geral dos grafites
sugira um público com nível mediano de alfabetização, os grafites gregos transpareceriam
uma capacidade de escrita mais limitada, restringindo-se mais do que os latinos às fórmulas
do monumento e à onomástica (FELLE, 2012). Portanto, quando pensamos no duplo valor que
o uso do Grego poderia possuir na sociedade romana – a língua de cultura da elite e a língua
dos escravos e dos pobres – aparentemente é ao segundo grupo que os autores dos grafites
gregos e bilíngues do monumento pertenceriam.
Assim sendo, podemos supor que o uso do bilinguismo, nesse caso, seria uma forma
de o indivíduo visitante do santuário se inserir em uma comunidade votiva essencialmente
latina, mesmo que, para isso, alguns indivíduos precisassem recorrer ao código de escrita – o
alfabeto – que eles dominavam para registrar a fórmula latina. Corroboram para essa análise os
registros em que, após a fórmula latina, o autor retoma a escrita em idioma Grego, justamente
no bloco que demanda um pouco mais de conhecimento linguístico, bem como os registros
em que a fórmula é escrita em Grego, mas traduzindo palavra por palavra a fórmula latina. As
inscrições em Grego que empregam o verbo μνημονεύω, de certa forma, também sugerem
a inscrição na comunidade votiva do monumento, embora registrando a mesma ideia a partir
de uma estrutura diferente.
Haveria, portanto, um desejo manifesto de inserção na comunidade votiva que passaria,
primeiramente, pela realização de um grafite no local, com a possibilidade de registro da
tradicional fórmula latina do monumento ou suas variantes; para os sujeitos de fala helênica,
há, por outro lado, a possibilidade de representação da ideia manifesta pela fórmula em seu
idioma próprio, a possibilidade de tradução da fórmula, mantendo-se sua estrutura original e,
por fim, a transliteração da fórmula, mesmo que fosse necessário escrever o complemento do
pedido em Grego. Podemos afirmar, dessa forma, que além da inserção na comunidade votiva,
há uma tendência de que essa inserção seja realizada em Latim, como o idioma predominante
no santuário, ou em maior ou menor grau aproximando-se deste.
113
Conclusão
A partir desse breve estudo, buscamos discutir a relevância das fontes epigráficas para os
estudos históricos e linguísticos e, em especial, dos grafites: testemunhos de vozes do passado
que não chegariam aos estudiosos do presente por meio das fontes textuais tradicionais,
que costumam refletir a língua e o pensamento das elites. Seu estudo abre um mundo de
possibilidades para as pesquisas que buscam investigar o cotidiano das camadas médias
urbanas, bem como as características do Latim falado por essas massas. Buscamos também
pontuar que o estudo de grupos de grafites compostos por uma mesma fórmula pode ser também
muito promissor, pois, além de registrarem fenômenos sociais e culturais de determinados
grupos – no caso, dos cristãos – também são importantes fontes para o estudo tanto do Latim
Vulgar quanto de outros fenômenos linguísticos como o bilinguismo.
Em uma perspectiva interdisciplinar, os estudos linguísticos e não apenas conteudistas
desses grupos de grafites nos ajudam a compreender o nível de erudição, a composição étnica,
a origem geográfica e mesmo as relações sociais existentes dentro dessa comunidade inscrita
nas paredes, enriquecendo a análise histórica e levantando novos problemas e novas hipóteses.
Por fim, ressaltamos que os estudos epigráficos unem dois mundos, o da Linguística e da
História, no esforço de explorar o que indivíduos comuns de sociedades passadas decidiram
eternizar por meio das inscrições e o que isso nos conta de novo sobre o passado.
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Sobre o organizador
Adílio Junior de Souza
Doutor e mestre em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (Proling/UFPB);
é especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira e Africana de Língua Portuguesa
e graduado em Letras pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Atualmente, ingressou
no estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE), com o projeto “Tópicos avançados de Linguística Românica: o uso
do latim como fonte para a Linguística Histórica”, supervisionado pelo professor Dr. Alberto
Miranda Poza. É professor temporário de Língua Latina e História da Língua Portuguesa no
curso de Letras da Unidade Descentralizada de Missão Velha – CE (UDMV/URCA). Foi bolsista
CAPES durante o mestrado em Linguística no Proling/UFPB (2014/2015). Participa do Grupo
de Pesquisa Teorias Linguísticas de Base – TLB (UFPB/CNPq/2021-vigente), do Núcleo de
Pesquisa em Língua Espanhola e Literaturas de Língua Espanhola (UFPE/CNPq/2019-vigente)
e do Núcleo de Pesquisas em Ensino de Línguas e Formação Docente (UVA/CNPq/2020vigente). Coordenou o Projeto Estudos Clássicos (URCA/2016-2018). Desenvolve pesquisas
em Linguística, Filologia e Língua Latina. É autor/coautor de artigos e capítulos em periódicos
e em livros na área da Linguística, Literatura e Filologia.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5545-6441
E-mail:
[email protected]
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Sobre os autores
Ângela Lima Calou
Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (Cariri), mestre em Filosofia pela
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA). É professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio Grande do Norte (IFRN – Campus Caicó). Interessa-se pelos temas: Filosofia Moderna
e Literatura Russa do século XIX; modernidade, racionalidade e emancipação; experiência e
niilismo; Schopenhauer, Dostoiévski e Walter Benjamin.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2661-9146
E-mail:
[email protected]
Cícero Émerson do Nascimento Cardoso
Doutorando em Letras – Tradição e Modernidade e Mestre em Letras – Literatura e Cultura,
pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); Especialista em Língua Portuguesa e Literatura
Brasileira e Africana de Língua Portuguesa e Graduado em Letras, pela Universidade Regional
do Cariri (URCA). É Professor de Língua Portuguesa da rede pública de ensino do estado do
Ceará e Professor de Literatura do curso de Letras da Universidade Regional do Cariri (URCA)–
Campus Missão Velha. É membro do NETLLI – Núcleo de Pesquisa em Estudos Linguísticos
e Literários e atua como Parecerista das revistas eletrônicas do NETLLI: 1) Macabéa e
2) Miguilim. É autor dos livros: Breve estudo sobre corações endurecidos (2011); Romanceiro
do Norte Juazeiro (2014); A Revolta de Antonina (2015); O Casarão sem Janelas (2018) e
O baile das assimetrias (2021).
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6590-6442
E-mail:
[email protected]
Isadora Lima Ramalho
Graduada em 2018 em Letras Português/Francês pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Em 2019, recebeu a distinção acadêmica “Cum Laude”. De 2016 a 2018, foi bolsista do Programa
de Iniciação à Docência (PID), sendo monitora das disciplinas de Latim I e II. Atualmente, é
mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (POET). Sua pesquisa,
que pertence à área da Tradução Intersemiótica, tem como foco a análise da adaptação da
epopeia A Eneida, de Virgílio, para o formato de radionovela.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3191-7420
E-mail:
[email protected]
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Letícia Maria Quintella Viana
Licenciada em Letras Clássicas (Grego e Latim) pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB);
Mestranda em Teoria da Literatura, com ênfase aos estudos da retórica e oratória romana, pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (PPGL/UFPE).
Cursa Especialização em Linguagem e Práticas Sociais, estudando a poesia de Torquato Neto,
pelo Instituto Federal de Pernambuco (IFPE). Ademais, é membro da Sociedade Brasileira de
Estudos Clássicos (SBEC) e atua como 1ª Secretária na Associação de Jornalistas e Escritoras
do Brasil, seção Pernambuco (AJEB/PE).
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3928-8323
E-mail:
[email protected]
Marta Maria Aragão Maciel
Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), mestre em Filosofia
pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e doutora em Filosofia pelo Programa de
Doutorado Integrado UFPB-UFPE-UFRN. Leciona atualmente como professora substituta junto
ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7192-3185
E-mail:
[email protected]
Robson Rodrigues Claudino
Graduado em Licenciatura em Letras-Português pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Dedicou-se ao estudo do latim ainda na graduação, se propondo a trabalhar com
Cláudio Claudiano no seu TCC. Em 2017, recebeu uma bolsa de seu orientador para frequentar
o curso de verão de latim da Schola Classica, no Rio Grande do Sul. Entre agosto de 2018 e
julho de 2020, atuou como professor substituto de latim no Departamento de Letras da UFPE.
Atualmente, é mestrando em Letras (estudos clássicos) pelo programa de pós-graduação em
letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8951-6465
E-mail:
[email protected]
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Vanessa de Mendonça Rodrigues dos Santos
Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em História
Social pelo PPGHIS/UFRJ, doutoranda em História Comparada pelo PPGHC/UFRJ, graduanda
em Letras Português/Grego pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisadora
do LHIA/UFRJ. Desenvolve uma pesquisa interdisciplinar entre História e Letras Clássicas,
com foco no estudo do Cristianismo romano durante a Antiguidade Tardia por meio de fontes
epigráficas.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1084-0735
E-mail:
[email protected]
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