Melancolia da desconstrução
Jacob Rogozinski
Tradução: Vicentina Marangon
Revisão de tradução: Paula Glenadel
Recebido em 10/04/2011
Resumo
O artigo se interessa pelas análises que Derrida
consagrou ao “trabalho do luto”, nas quais, tomando como referência a psicanálise, o filósofo
distinguia o processo “normal” do luto, baseado
numa absorção do objeto perdido, e suas formas
patológicas em que ele subsiste como resto inassimilável, que retorna para assombrar o eu como um
espectro. Paradoxalmente, o fracasso do trabalho
de luto respeitaria mais o Outro morto do que o
luto normal ou “exitoso”, e essa preferência de
Derrida pelas patologias do luto seria confirmada por “uma melancolia da desconstrução”,
reveladora de uma impossibilidade de “fazer o
seu luto” da metafísica ocidental. Esta travessia
crítica da desconstrução tem no seu horizonte,
assim, por uma espécie de parricídio filosófico,
que é também uma última homenagem prestada
ao mestre morto.
Palavras-chave: Derrida; desconstrução; luto;
metafísica
Gragoatá
Niterói, n. 31, p. 31-49, 2. sem. 2011
Gragoatá
Cf. HEIDEGGER, M.
Les Hymnes de Hölderlin
(1934-35). Paris: Gallimard, 1988, p. 85-101 sq.
1
32
Jacob Rogozinski
Por que se interessar por este objeto tão excêntrico, o pensamento do luto de Derrida? Porque todos nós passamos pela
provação do luto no curso de nossa vida, e porque quase não
conseguimos pensar direito sobre o que nos acontece, nós, os
sobreviventes. as religiões esforçam-se muito para consolar-nos
com a sedutora esperança de uma “sobrevida” num “além” – mas
nós paramos (com ou sem razão, pouco importa) de dar crédito
a esses além-mundos. Quanto à filosofia, ela aparentemente não
nos oferece nenhum recurso: mesmo quando eles não se contentavam em fazer eco ao discurso dos padres, quando tentavam
curar-nos do medo da morte, ensinar-nos a meditar sobre a
vida e não sobre a morte, era antes de tudo de nossa morte que
os filósofos nos falavam, e eles não nos davam nenhuma luz
para compreender o que sentimos frente à morte dos outros. É
significativo que a única oração fúnebre escrita por um clássico
da filosofia, o Menexeno de Platão, se apresente como um pastiche
irônico, atribuído, por brincadeira, a uma cortesã... Para que o
luto se torne uma aposta séria para o pensamento, será preciso
esperar por Heidegger. É nos seus seminários sobre Hölderlin
que ele define o luto como o “tom fundamental” de nossa época;1
mas trata-se de um luto sagrado, aquele que suporta a aflição
da ausência dos antigos deuses, e de um luto coletivo em que
“desaparece o indivíduo com sua aflição particular”. Não é esse luto
“historial” que sentimos quando da morte de um ente querido,
não é a retração do divino que nos desespera, mas o desaparecimento daquele rosto, daquela voz, daquela presença carnal
absolutamente singular (e o próprio Hölderlin, foi somente o luto
dos antigos deuses que o precipitou na loucura, ao anúncio da
morte de Suzette Gontard?). Certamente, a presença do divino
ou sua retração, a assunção da morte pelos padres, orações, um
ritual fúnebre, ou, então, o silêncio e o vazio da sua ausência,
tudo isso conta na maneira como passamos pela provação do
luto. Mas essa provação mesma não se remete à aflição provocada pela fuga dos deuses: é, ao contrário, a experiência a mais
íntima, a mais pessoal do luto que traz subjacente o luto de uma
Ideia ou de um deus. Afinal, o que é um deus senão uma figura
eminente do Outro? Quando lamentamos a “morte de Deus” ou
dos deuses, portamos o luto de uma figura do Outro – é o que
torna possível um tal luto, o que lhe dá todo o seu sentido, é o
luto primordial, a dor a cada vez singular que sentimos quando
desaparece um outro bem-amado. Sobre esse fenômeno originário do luto, parece que a filosofia nada tem a nos ensinar. É,
sem dúvida, por isso que, quando tentava pensar o luto, Derrida
optou por “sair” da filosofia, por apelar à psicanálise.
O que nos ensina Freud sobre o luto? Antes de tudo, isto:
que “fazer seu luto” não acontece por si mesmo; que todo luto
exige um processo psíquico complexo, um trabalho inconsciente
cujo sucesso nunca está garantido por antecipação. Esse TraueNiterói, n. 31, p. 31-49, 2. sem. 2011
Melancolia da desconstrução
2
“o luto deve preencher
uma função psíquica
definida que consiste em
estabelecer uma separação entre os mortos, de
um lado, as lembranças
e as esperanças dos sobreviventes, do outro”.
(FREUD, 1976, p. 80)
3
Desses dois autores
podem-se ler Maladie
du deuil et fantasme
du cadav re exquis e
Deuil ou Mélancolie,
introjecter-incorporer.
In: L’écorce et le noyau,
Paris: Aubier-Flammarion, 1978. Ver também
“Fors”, prefácio de Derrida ao livro deles Cryptonymie. Le verbier de
l’Homme aux Loups, Paris: Aubier-Flammarion,
1976. Nos seus trabalhos
mais recentes, J. BUTLER recorrerá a esses
conceitos para pensar a
“melancolia do gênero”
e a constituição da identidade sexuada.
rarbeit pode sempre fracassar: existem lutos patológicos, doenças
do luto em que o eu não consegue suportar a perda do objeto de
amor. ou ele se esforça para “manter o objeto por uma psicose
alucinatória”, como uma espécie de fantasma que assombra
seu delírio; ou se identifica totalmente com ele, de modo que
“a perda do objeto se transforme em uma perda do eu”, que o
próprio eu se perca, que se torne seu próprio fantasma. É esse
fracasso, esse impasse do luto que caracterizam a “melancolia”, a
psicose melancólica. O que, então, define o luto “normal”, o luto
“exitoso”? Uma separação e uma decisão. O traçado de uma linha
divisória entre o vivo e o morto, de uma demarcação entre o eu
e o objeto perdido, isto é, a decisão de se separar do objeto, de
livrar-se dele.2 Em francês antigo, “luto” (deuil) escrevia-se, às
vezes, “duelo” (duel), como se, por um estranho acaso, uma sorte
da língua, essa palavra fosse o indício de uma luta entre a vida
e a morte, entre o que em cada um de nós deseja viver e o que
só aspira a morrer. o trabalho do luto impõe saber separar entre
si mesmo e o outro morto – e saber fazer saber disto: anunciar-se
a si mesmo (e, ao mesmo tempo, anunciar aos outros) a estranha
decisão de continuar vivendo. É bem de uma decisão que se trata,
em que o eu, que poderia escolher compartilhar o destino do
objeto morto – de perder-se na melancolia – opta, apesar de tudo,
pela vida, “deixa-se decidir [...] continuar vivendo e romper seu elo com
o objeto desaparecido” (FREUD, 1968, p. 168). Decisão sempre violenta, assassina, que redobra a insustentável violência da morte:
o trabalho do luto, dizia o psicanalista Daniel Lagache, equivale
a matar o morto – e, entretanto, a vida, o continuar-vivendo do
sobrevivente, custa esse preço. Como é preciso entendê-la, essa
decisão de sobreviver, esse deixar-se decidir ao mesmo tempo
totalmente livre e totalmente passivo, que não corresponde a
nenhuma das determinações tradicionais da liberdade, da deliberação e da escolha voluntárias? Se ela escapa aos conceitos da
tradição metafísica, cabe à desconstrução dar conta dela? O pensamento de Derrida permite decidir-se pela vida? Fazer nosso
luto e fazer saber dele: livrar-nos de nossos fantasmas? Nada é
menos certo, nós o veremos no momento oportuno.
Para abordar o luto de Derrida, o pensamento do luto
segundo Derrida, um passo a mais é necessário, um passo além
de Freud. Aquilo que fizeram dois psicanalistas, dois de seus
amigos, Nicholas Abraham e Maria Torok, estabelecendo uma
distinção entre introjetar e incorporar, entre o processo de introjeção, que subjaz ao luto “normal”, e o fantasma da incorporação,
que faz parte das doenças do luto.3 Lá onde Freud considerava
o trabalho de luto similar a uma separação, uma expulsão do
objeto perdido, eles viam, ao contrário, uma interiorização, uma
inclusão no eu. a introjeção permite efetivamente ao eu apropriar-se do objeto perdido e, assim, reforçar-se narcisisticamente
identificando-se (ao menos parcialmente) com ele. Processo de
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ingestão ou, se quisermos, de digestão: o luto normal é uma necrofagia. a incorporação supõe, ao contrário, a negação da perda,
uma recusa ou um fracasso do luto: ela mantém o objeto morto
sem conseguir integrá-lo nem expulsá-lo, nem vivo nem morto,
nem dentro nem fora, nem digerido nem vomitado, “engolido e
colocado em conserva”, colocado em um lugar secreto dentro de
uma cripta no interior do eu. Esse termo convém muito particularmente aqui, pois designa, ao mesmo tempo, uma espécie de
enclave interno, um túmulo assombrado por um fantasma, e uma
criptagem, a marca de um nome ou de uma palavra estranha
em que se dissimula um indizível segredo. Preso em um luto
impossível, o eu se faz guardião dessa tumba que leva consigo.
Devotando-se assim à guarda do outro morto, acontece do eu
tornar-se inteiramente cripta, e essa oscilação de limites entre
o eu e o outro, o vivo e o morto, é o que define a melancolia
como patologia do luto. o luto normal e o luto patológico correspondem, assim, a dois modos de inclusão, a duas maneiras
muito diferentes de introduzir o Outro dentro do Mesmo, quer
dizer, dentro do eu. Introjetando-o, o eu absorve o outro morto;
funde-se com ele, reconcilia-se com ele, para melhor superar sua
perda. Em compensação, na incorporação, o outro se mantém
como outro no interior do mesmo e perturba sua economia: se ele
retorna, é como uma assombração, semelhante ao espectro da
Morte Escarlate de Poe, cuja irrupção aterrorizante interrompe,
de repente, a cerimônia.
o espectro, a cripta, o segredo, uma certa indecidibilidade
entre o dentro e o fora, entre a vida e a morte: motivos que
encontramos em Derrida. Num certo momento – no início dos
anos 1970 – a questão do luto, depois aquelas da sobrevivência,
do retorno como espectralidade, vão se impor a ele cada vez
mais intensamente: a partir de então, seus textos povoam-se de
fantasmas. Naturalmente, convém descartar toda explicação
ingenuamente biográfica para ater-se à sua abordagem teórica do
conceito de luto. Sem esquecer, entretanto, que uma tal demarcação é, sem dúvida, insustentável, que a questão do luto segundo
Derrida poderia bem ter a ver com o luto de Derrida, com um
trabalho de luto real com o qual teria ele mesmo se confrontado
naqueles anos. Deixamos, a seus futuros biógrafos, a tarefa de
forçar a entrada da cripta – por exemplo, lembrando-nos de que
o pai do filósofo (esse pai, Aimé Haïm Derrida, de quem ele
fala tão pouco) morreu em 1970 – de um câncer, ele também, e
exatamente na mesma idade que seu filho, aos 74 anos. E se nos
perguntamos porque era para ele tão difícil amar a vida, ver nisso
uma coisa que não fosse uma “economia da morte”, é preciso
lembrar que haïm significa, em hebraico, “a vida”? Na verdade,
uma “revelação” desse gênero não nos acrescentaria nada, tanto
os efeitos desse luto real sobre seu pensamento parecem incal34
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Texto para ecoar, a
partir de então, com Circonfession (1991), que colocará em cena a agonia
da mãe, seu impossível
luto, através da dor do
filho que lhe sobreviveu.
5
Ele retornará em Circonfession a esse sonho
“que eu poderia comentar até o infinito até incluir nele a minha história inteira” (DErrIDa,
1991, p. 283-284).
4
culáveis. Ficaremos convencidos disso lendo Glas, livro lançado
em 1974, em que aparece, pela primeira vez, o motivo do luto
– mas trata-se do luto da mãe, de uma mãe sobrevivente que
“fica após ter matado aquele que ela fez nascer”4 (DErrIDa, 1974, p.
291 sq)... Centremo-nos, antes, no trabalho que ele opera sobre o
Trauerarbeit. Se ele se apóia na psicanálise, é para elaborar seus
conceitos e deslocar suas apostas, colocando em questão essa
distinção normativa, nunca verdadeiramente questionada, entre
o luto “exitoso” e aquilo que se designa como doenças do luto.
Em qual sentido pode-se falar de um êxito do trabalho de luto?
(Lembro-me de um seminário, era na rua Ulm, em meio ao
cenário um pouco teatral da sala Dussane. Ele começara a sessão
contando um dos seus sonhos, em que estava escrita, num livro,
a expressão esquisita mourning well:5 ele queria entender nela, ao
mesmo tempo, a saudação matinal – good morning! – e a indefensável, a insustentável injunção de “conseguir realizar” seu luto;
mas, ele dizia, isto não funciona nunca). Introjetando o outro
morto dentro do meu eu, apropriando-me narcisisticamente
dele, eu consigo, claro, superar a dor da ausência, mas, ao mesmo
tempo, faço-o desaparecer enquanto outro, eu o destruo. o que
atesta o senso comum, bastante desagradável, da expressão fazer
seu luto: diz-se que “se fez seu luto” de uma relação de amizade
ou amorosa, de uma ambição frustrada; o que significa que se
aceita renunciar ao que se deseja, que se resigna ao seu fracasso,
à sua impossibilidade. Nesse uso banalizado, toda referência à
morte é apagada: fez-se seu luto da morte – e do próprio luto.
Seria preciso, sem dúvida, marcar melhor a diferença entre
fazer o luto e portar o luto: entre o gesto de desembaraçar-se do que
não existe mais, de matar de novo o que acaba de morrer, e esse
outro gesto que consiste, ao contrário, em encarregar-se dele,
de tomá-lo para si para melhor protegê-lo, lembrar-se dele, resguardá-lo. o que se traduziu em todas as culturas humanas por
rituais particulares, por certas marcas corporais ou indumentais,
a proibição de lavar-se, de barbear-se, a obrigação de rasgar as
vestes, de jejuar, de vestir roupas de certa cor, etc. antes de fazer
seu luto, e para poder fazê-lo, seria preciso, primeiro, treinar-se
para portar o luto... Uma tal distinção tem fundamento? Imagino
suas reservas: ele nos teria advertido, como fazia sempre, contra
uma demarcação certa demais, apressada demais. “Portar o
luto”, nos teria dito, não se opõe forçosamente a “fazer o luto”,
precisamente porque só portamos o luto para melhor suportá-lo,
para superá-lo e desembaraçar-se dele. Assim, o “luto exitoso”
fracassa inevitavelmente em preservar seu objeto: ele é o cúmulo
da infidelidade. “Inversamente, o fracasso tem êxito: a interiorização
que aborta é o respeito do outro como outro” (DErrIDa, 1986a, p. 54),
a experiência de uma extrema fidelidade em que o sobrevivente,
incapaz de fazer seu luto, consagra-se totalmente ao culto do
objeto perdido. Nesse jogo de perde-ganha, o que pode parecer
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35
Gragoatá
6
É com essas palavras
que se encerra a Dialectique négative de aDorNo (1966). Paris: Payot,
1978, p. 317.
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uma falta de respeito, a recusa ou a impossibilidade de fazer seu
luto, seria, afinal de contas, mais fiel do que as proclamações
rituais de respeito e de fidelidade enlutada. É por isso que ele
podia afirmar que o luto é uma “fidelidade infiel”. Se quisermos
resguardar a memória do outro morto, seria preciso, a todo
preço, evitar “fazer o luto” dele. Como evitar deixar-se pegar na
armadilha desse double bind? Como não fazer seu luto, enquanto
se faz seu luto? Há mesmo uma aporia do luto, um duplo entrave
paradoxal que tende a desfazer a distinção entre o trabalho do
luto e suas patologias. Se o luto o mais fiel – e nesse sentido, o
mais exitoso – corresponde à incorporação, não é mais possível
considerá-la como um simples bloqueio patológico da introjeção:
ao contrário, é esta que se apresenta agora como uma forma
indigente de incorporação, incapaz de guardar no interior do
eu o que ela tenta interiorizar. Sua análise do luto atesta, assim,
uma preferência pela exceção – para os casos-limite ou patológicos
– em detrimento da regra e da norma. É essa preferência que,
veremos, irá conduzi-lo, nos seus últimos textos, a tomar, como
modelo, as doenças “autoimunes”, ao ponto de fazer delas a lei
mortal de toda ipseidade viva e de toda comunidade.
o que acabo de reconstituir aqui, a partir de notações
esparsas em diferentes textos, é o esboço de uma desconstrução do trabalho de luto – ou, pelo menos, a primeira fase dessa
desconstrução, com a inversão do privilégio que a psicanálise
concede ao luto normal, isto é, à introjeção. É esse um bom exemplo, uma aplicação exemplar da operação desconstrutiva? Nada
é tão incerto. Por ora, constatemos simplesmente que, contestando a primazia da introjeção, ele foi necessariamente levado
a privilegiar o paradigma da incorporação. De maneira mais ou
menos clandestina, sem mostrar abertamente sua preferência –
e, entretanto, certos motivos essenciais de seu pensamento (o
dobre de finados, a cripta, o retorno, a espectralidade e, também,
vamos vê-lo, a desconstrução da Aufhebung) têm suas raízes
nessa experiência, aquela de uma incorporação melancólica.
Por mais alegre e jubilante que ela possa parecer, haveria então
uma melancolia da desconstrução, a melancolia mesma de Penélope
destecendo sempre de novo seu interminável trabalho. Para ser
entendido, evidentemente, num sentido estritamente conceitual
e não como o indício de uma patologia pessoal. De que, de quem
seu pensamento portava o luto? Questão críptica, aí ainda, onde
se deixa entrever o traço de um segredo. Arrisco uma hipótese:
ele portava o luto da metafísica. Desconstruindo-a, ele sonhava
guardá-la em si, retê-la cativa no interior de seu labirinto, como
uma preciosa relíquia, uma morta-viva embalsamada, (“solidário com a metafísica no instante de sua queda” – é a esse
gênero de guarda melancólica que aspirava também Adorno?)6.
Era a paixão de Jacques Derrida, o único amor de sua vida, a
única destinatária de seus Envois, de todos os seus escritos – e
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Melancolia da desconstrução
a metafísica era louca por ele. Àqueles que ainda duvidariam
disso, aconselhamos reler a narrativa de seu encontro com uma
jovem mulher que se nomeia, a ela mesma, “Metafísica”: “Eu
compreendi que eras tu. Sempre foste “minha” metafísica, a metafísica
de minha vida, o “verso” de tudo o que escrevo (meu desejo, a palavra,
a presença, a proximidade, a lei, meu coração e minha alma, tudo o que
amo e que sabes antes de mim)” (DErrIDa, 1980, p. 212).
“Viva a morte!”: o relevamento do luto
N. do T. : Em francês,
ambas as noções são
expressas na palavra
relève.
7
Como fazer seu luto da metafísica? Não pode se tratar de
derrubá-la ou de superá-la, nem de acabar com ela (como sonham
ingenuamente todos os positivismos “pós-metafísicos”), mas
de tentar delimitá-la: demarcar seu campo estabelecendo seus
limites e, ao mesmo tempo, marcar um lugar à parte, pontuando,
no interior de sua clausura, o “traço do além-clausura”. Fazer a
experiência da metafísica, resguardá-la para melhor atravessá-la.
a questão complica-se ainda, redobra-se de maneira abissal, se
consideramos que a metafísica não é um objeto qualquer entre
todos aqueles dos quais temos de fazer o luto. Poderia ser, com
efeito, que ela própria se dobrasse à lógica do luto, que ela se
assemelhasse a um trabalho de luto. Que fazemos, quando de
um luto normal? Esforçamo-nos para livrar-nos do outro morto,
para negá-lo – para matar o morto em nós – e, simultaneamente,
para lembrarmo-nos dele, interiorizá-lo, introjetá-lo em nosso
eu. Esse gesto de negação que conserva o que nega superando-o
parece-se com o que Hegel chamava de Aufhebung – um termo
que designa a operação maior da dialética hegeliana e que Derrida propõe traduzir por relever (relevar). achado notável, já que
aufheben significa, em alemão, levantar ou erguer, mas também
tirar, descartar, suprimir, e o termo francês possui a mesma
ambiguidade (assim como quando se fala da “troca (relève) da
guarda” ou quando se “tira” (relève) alguém de suas funções
dispensando-o).7
É esse relevamento dialético que ele identifica com o
trabalho do luto, e não se trata aí de uma vaga semelhança, de
uma analogia exterior. No sistema de Hegel, a Aufhebung tem
uma relação essencial com a morte: ela participa desta “vida do
Espírito” que “suporta a morte e se conserva nela”, que “contempla
o negativo face a face e permanece junto dele” afim de reconciliarse com ele, de convertê-lo em afirmação. Porque o relevamento
é sempre relevamento da morte: ele “suprime a supressão pura e
simples, a morte sem frase, a morte sem nome” (DErrIDa, 1974, p.
155); ele assegura a vitória da vida sobre esta “negação abstrata”
que é a morte. Seu sentido se decide naquele duelo mortal em
que cada consciência se confronta com a outra, no momento em
que o vencedor opta por não matar o vencido, por deixá-lo viver
para fazer dele seu escravo, de negá-lo como livre consciência de
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Gragoatá
N.do T.: Em francês,
o verbo usado aqui foi
se relever, que significa
também reerguer-se.
9
N. do t. : a tradução
literal desta palavra é
“dobre de finados”. No
livro, além deste sentido, o grupo consonantal
GL da palavra é o fio
condutor de uma série
de interpretações da
obra de Jean Genet.
10
E, vinte anos mais tarde, esta chamada: “Eu
tinha tentado mostrar
em outro lugar que o trabalho do luto não é um
trabalho entre outros.
É o próprio trabalho, o
trabalho em geral, traço
pelo qual seria preciso, talvez, reconsiderar
o próprio conceito de
produção – naquilo que
o liga ao trauma do luto
[...], à espiritualização
espectral que está em
trabalho em toda techné” (DErrIDa, 1993,
p. 160).
8
38
Jacob Rogozinski
si, conservando-o a seu serviço. O relevamento é a experiência
dessa sobrevivência: é a “amortização da morte”, seu investimento especulativo na economia da vida; ele trabalha “para
amortizar o custo absoluto, para dar um sentido à morte, para cegar-se
ao mesmo tempo no sem- fundo do sem-sentido” (DErrIDa, 1967,
p. 378). Ele é a Erinnerung da morte na consciência, sua interiorização e sua lembrança (segundo o duplo sentido desse termo
em alemão). Se a negação “abstrata” – a ameaça de uma perda
absoluta da qual a consciência não se reergueria8 – corresponde
ao luto impossível, à doença do luto, a Aufhebung coincide, ao
contrário, com aquele processo de introjeção que caracteriza o
trabalho normal do luto. Derrida é o único leitor de Hegel e de
Freud a aperceber-se dessa coincidência, a compreender que o
trabalho de luto é a força secreta do sistema hegeliano. Isto não
quer, sobretudo, dizer que a psicanálise nos daria a “chave” da
filosofia hegeliana ou, ao contrário, que Hegel teria enunciado
por antecipação uma tese essencial da psicanálise. reelaborados dessa maneira, os conceitos de luto, de relevamento ou de
introjeção tornam-se inclassificáveis. Nem puramente filosóficos,
nem puramente psicanalíticos, eles se evadem de seu contexto
inicial e rompem todas as fronteiras, circulam entre os dois
domínios, desaferrolhando suas trancas, fazendo encaixes de
teorias aparentemente muito distantes, e nos permitem, assim,
abordar, sob outro ângulo, o projeto da psicanálise e o destino
da metafísica. Sabe-se que Hegel pretendia dar por completa a
filosofia (e a totalidade do saber) compreendendo o conjunto de
suas figuras sucessivas como momentos internos de seu sistema,
posições logo depositadas, depostas, ao mesmo tempo confirmadas e superadas, relevadas. Com o Saber absoluto hegeliano, a
metafísica ocidental se extingue fazendo o luto dela mesma. Ela
faz soar seu próprio dobre de finados.
Glas:9 é precisamente o título desse livro atordoante – o Finnegan’s Wake da filosofia francesa – em que ele encena a epopéia
da Aufhebung, desdobra-a em todas as direções fazendo-a entrelaçar-se com os motivos da castração e da diferença sexual, da
ereção e do fetiche, do nome próprio e da assinatura, da Sagrada
Família, da Imaculada Conceição, do Judeu, da prótese, do resto,
da flor, do dom, da morte... é nessa perspectiva que ele faz uma
primeira reelaboração do conceito freudiano do luto enxertando-o naquele do relevamento. Um outro enxerto se segue, uma
nova transposição que fará do trabalho de luto o paradigma
de qualquer trabalho, na sua dimensão “relevante” e sacrificativa: “todo trabalho não é um trabalho de luto? e , ao mesmo tempo,
de apropriação do mais ou do menos de perda?”10 (DErrIDa, 1974,
p. 100, p. 140 sq.) Isto jamais será repetido o suficiente: tal como
ele a praticava, a desconstrução não é uma operação somente
“negativa” ou “destruidora”. É profundamente afirmativa, abre
um novo espaço de elaboração para antigos conceitos transmitiNiterói, n. 31, p. 31-49, 2. sem. 2011
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11
Cf. roGoZINSKI, J.
Déconstruire – la révolution. In Les Fins de
l’homme, à partir du travail de Jacques Derrida.
Paris: Galilée, 1981, p.
516-529. Muito tempo
depois, ele ia evocar
essa discussão num dos
seus últimos textos – cf.
Penser à Strasbourg. Paris:
Galilée, 2004, p. 54. Um
dos nossos primeiros
encontros e o derradeiro. Vinte e quatro anos:
o tempo, sempre tão
breve, de uma distante
“amizade”?
dos pela tradição, relaciona-os, generaliza-os, oferece-lhes uma
maior envergadura: dá um sentido mais amplo às palavras da
tribo. Quando ele expande a significação do trabalho do luto,
que ele estende ao conceito de trabalho em geral, não se trata de
uma aproximação arbitrária: é o próprio Hegel que descrevia o
processo do trabalho como uma operação dialética, um modo
de relevamento. trabalhar equivale sempre a negar-conservarsuperar uma coisa natural transformando-a, a apropriar-se da
Natureza e, assim, livrar-se dela: a fazer o luto dela. tal será o
destino do escravo, quando se tornar o trabalhador ou, na versão
de Marx, o Proletário: seu trabalho de luto torná-lo-á livre. Se
reelaborarmos o pensamento de Marx na sua linha hegeliana,
a questão do luto adquire um valor político: ele se liga à crítica
da alienação do trabalho, ao projeto da revolução proletária.
O advento do comunismo coincidiria com o luto exitoso, uma
Aufhebung terminal capaz de exorcizar os espectros do passado,
de colocar fim ao que Marx chama de “a ressurreição dos mortos”.
Mas como isso é possível? Como o proletariado poderia fazer
seu luto (do Capital, do Estado, da divisão do trabalho...) e passar
além desse luto? (Lembro-me do nosso primeiro encontro, em
1980, na ocasião daquele colóquio de Cerisy, onde, com outros
“jovens pesquisadores”, eu participava do seminário “político”.
Na minha exposição eu me perguntava se poderia haver uma
política da desconstrução. Insistia sobre o que, no gesto desconstrutor, colocava em questão toda separação bem definida
entre um dentro e um fora, toda ruptura irreversível entre um
Antes e um Depois. Procurando fazer meu luto do marxismo, eu
chegava a questionar a “lógica incisiva da revolução” e definia
– um pouco apressadamente – a revolução proletária como um
projeto metafísico de autofundação do Homem novo. Impossível desconstruir, eu dizia, sem desconstruir a revolução – e
sem analisar a dívida secreta que liga ainda a desconstrução ao
esquema de ruptura e da revolução. apelando para uma “política de resistência”, eu o compelia a considerar o mal radical,
esse “abismo do político” no qual um projeto de emancipação
pode se deixar desviar para o serviço de uma nova tirania. Ele
me respondera, marcando, ao mesmo tempo, seu acordo sobre
o básico – sua “desconfiança sobre a idéia de revolução” – e sua
recusa em “participar de um concerto antimarxista por um ataque
frontal contra um projeto revolucionário”: “há, dizia ele, do lado da
ideologia da revolução, alguma coisa (que eu) não posso simplesmente
condenar”. Daí provinha uma espécie de recuo, esse silêncio ou
esse “branco” na sua relação com Marx, que era preciso pensar,
também, como um “gesto político”)11
Essas questões que ele ia abordar longamente a seguir,
notadamente em Espectros de Marx (Spectres de Marx) – prefiro
deixá-las aqui em suspenso e pesquisar em outro lugar a recorrência da lógica do luto. Acabamos de vê-lo: na economia da
Niterói, n. 31, p. 31-49, 2. sem. 2011
39
Gragoatá
Cf. HEGEL, G. W.
F. Phé nomé nologie de
l’Esprit (1806). Paris:
Aubier-Montaigne, 1947,
t. II, p. 136-140. Mal saído
da minha descoberta
de Glas, eu tinha tentado, em outros tempos,
reexaminar a política
de Marx e a questão do
totalitarismo a partir
dessa critica hegeliana
do terror – cf. À double
tour, em Le retrait du
politique (recueil). Paris:
Galilée, 1982.
13
Cf. LYOTARD, J.-F. Les
fins de l’ homme. Paris:
Galilée, 1981, p. 311-312.
Essa conferência de Lyotard será desenvolvida
em Le différend. Paris:
Minuit, 1984.
12
40
Jacob Rogozinski
luta mortal, do sacrifício, do relevamento dialético, o trabalho
(de luto) libera. Para dizê-lo em alemão, Arbeit macht frei... Por
que tudo isso aqui lembra irresistivelmente a divisa que ornava
a entrada do campo de Auschwitz? Diferentemente dos carcereiros da Kolyma, os nazistas não eram, entretanto, hegelianos.
É preciso ver nesta sentença auch ein Witz, “ainda um chiste” de
uma insondável e rangente ironia? Aquilo que se anuncia ali, à
sombra dos crematórios, seria justamente o limite absoluto de
todo relevamento dialético, o impasse do absoluto, sua sentença
de morte. Hegel pressentira talvez a aterrorizante possibilidade
disso, quando evocava a “morte a mais fria e mais banal”, aquela
das vítimas do terror, uma morte que “não dá nada em troca do
sacrifício”, “que não tem mais sentido do que cortar um pé de repolho
ou beber um gole d’água”.12 Seria isto, a morte sem nome, a “doação
em holocausto” mencionada alusivamente em Glas (DErrIDa,
1974, p. 270)? Alusivamente demais: ele jamais se confrontou com
a Shoah (ou, de modo mais geral, com a questão do terror totalitário ou do extermínio). Com algumas poucas exceções: numa
meditação sobre a poesia de Celan, quando de um diálogo com
Lyotard e, mais recentemente, em Fichus, a partir de adorno.
Ele evoca, então, a Shoah como a ameaça de uma “amnésia sem
resto” (DErrIDa, 1986b, p. 83): apagando todos os nomes, privando as próprias palavras de sepultura, ela “transpôs aquele
limite em que o próprio luto nos é recusado” (DErrIDa, 1986b, p.
95). a melancolia da desconstrução encontraria sua fonte nessa
experiência extrema de um luto impossível? Essa transposição
do limite, esse apagamento do Nome, não significariam o fracasso de todo trabalho de luto, o desastre final, abismo em que
se precipitam toda metafísica e toda dialética? Aqui se imporia
uma releitura de O diferendo (Le différend), daquela passagem em
que Lyotard analisa a “frase SS” (eu lhes ordeno, morram!): na
pista de Adorno, ele descobre aí “uma experiência de linguagem que pausa o discurso especulativo” hegeliano, indício de
um erro radical que impede de concatenar – dialeticamente ou
não – com uma outra frase. (Lembro-me ainda de Cerisy, do
silêncio que acompanhara a admirável conferência de Lyotard,
Frasear após Auschwitz (Phraser après Auschwitz),13 do diálogo que
Derrida estabelecera, então, com ele, questionando o “privilégio
unânime” que “nós, os ocidentais, atribuímos a auschwitz”,
advertindo contra o risco de esquecer os “outros nomes abomináveis”, inclusive “os nomes que não têm nome”; insistindo
sobre a exigência ética e política “de articular sobre Auschwitz”,
justamente porque não é possível articular). ao argumento de
Lyotard, ele opõe, então, o imperativo de articular sobre o nãoarticulável. Essa injunção deixa-se traduzir no léxico do luto? É
preciso dizer que, porque o luto é aqui impossível, um trabalho
de luto e de memória é, apesar de tudo, necessário? Mas como
Niterói, n. 31, p. 31-49, 2. sem. 2011
Melancolia da desconstrução
fazer seu luto daquilo que torna todo luto impossível? Como
articular sobre um erro radical sem anulá-lo imediatamente, sem
relevá-lo? Como colocar em questão a “centralidade” do nome
maldito de Auschwitz, sem injuriar as vítimas? E, inversamente,
como afirmar sua centralidade, até mesmo sua “unicidade” sem
insultar inúmeras outras vítimas? Essas questões continuam
ainda hoje nossas questões.
Se a tese de Lyotard está correta, torna-se, enfim, possível
delimitar o campo da “metafísica”: suas fronteiras são aquelas
do trabalho do luto; elas circunscrevem um espaço em que um
luto, um relevamento dialético, o encadeamento de uma frase
sobre a outra seriam ainda possíveis; em que a melancolia
poderia ser superada. Pareceu-nos que a tradição filosófica
não servia de socorro algum para compreender o que é o luto.
Descobrimos agora que não se trata de uma negligência, de um
esquecimento acidental. Se ela não consegue pensar o luto, é
porque é incapaz de refletir sobre ele de fora, colocando-o à
distância como um objeto entre outros: o que é chamado de
metafísica seria apenas um longo, um interminável trabalho
de luto – e é por isso que a verdade do luto lhe escapa. Somente
um pensamento não-enlutado, um pensamento que fosse colocado
além do luto, seria rigorosamente capaz de pensar o luto, sua
possibilidade como sua impossibilidade (isto é, também aqueles
do trabalho e da produção, o terror, o extermínio...) Há muito
tempo que a filosofia ocidental rumina seu próprio luto, desde
sua origem grega, desde que Platão a definira como uma mélétè
thanatou, um exercitar-se para morrer, uma aprendizagem da
morte. O que não significa, como se crê muito frequentemente,
que o filósofo teria de meditar sobre a possibilidade futura de
sua morte: é a cada instante que ele se mortifica, que sua alma
se esforça para «curvar-se em si mesma», para voltara si separando-se tanto quanto possível de seu corpo, como se ele já
estivesse morto. Comentando essa passagem do Phédon, Derrida
observa que a psyché só desperta para si mesma no exercício
da morte, como se lhe fosse preciso, para poder nascer para
si mesma, celebrar antecipadamente seu próprio luto (DErRIDA, 1999, p. 21-23). “Estou de luto, então existo”: desde meu
nascimento já estou morto, sempre já em luto de mim mesmo.
De Platão a Hegel – e talvez a Heidegger – esse luto originário
de si mesmo é o que constitui o ser-si-mesmo da alma, do ego,
do sujeito ou do Dasein (DERRIDA, 1996, p. 111). Assim, a filosofia ocidental começa e acaba no luto. Pelo menos uma certa
versão dessa filosofia, a mais maciça, essa que domina desde
os Gregos com a bênção da Igreja, de todas as Igrejas – mas ela
não é a única. Uma luta sem perdão, uma gigantomaquia põe
em confronto aqueles Amigos da Morte e aqueles que chamarei
de Filhos da Vida, aqueles que sustentam que a morte não é
nada para nós, que o sábio não pensa em nada menos que na
Niterói, n. 31, p. 31-49, 2. sem. 2011
41
Gragoatá
14
Na revista Rue Descartes nº18, 2005 (“Salut
à Jacques Derrida”).
15
N. do T. : Em francês,
arrêt de mort, onde se lê,
além da decisão do juiz,
a parada que ela impõe.
16
C f. De l’é conom ie
restreinte à l’économie
générale – un hégélianisme sans réserve. In :
DErrIDa, 1967, p. 369407. a via batailliana
decifrada nesse texto
será depois explorada
por J.-L. NANCY em La
Communauté desœuvrée.
Paris: Bourgois, 1986,
e, posteriormente, em
La pensée dérobée. Paris:
Galilée, 2001.
42
Jacob Rogozinski
morte, que sua sabedoria é meditação da vida, afirmação da
vida em seu Eterno retorno. Por que ele não evoca nunca esta
outra tradição, aquela de Epicuro, de Spinoza, de Nietzsche?
Ele estaria ligado à orientação dominante, teria se tornado um
desses “pregadores da morte” de quem zombava Zaratustra?
o que mantém seu pensamento sob o horizonte da morte e do
luto? O que o impede de se deixar decidir pela vida? A desconstrução seria apenas uma variante daquele viva la muerte
especulativo, essa tanatologia?
Isso não é possível, nos dirão: porque ele era, ele também,
um Filho da Vida, porque seu pensamento é uma afirmação da
vida, além do luto e da melancolia. Estamos bem certos disso?
Seu “amor pela vida” de que ele falava às vezes – raramente –
não cede diante da exigência imperiosa de desconstruir uma
metafísica que é, de início, metafísica da Vida? E a morte, nesse
combate, não era a sua mais poderosa aliada? (Lembro-me
daquela tarde de outubro em ris-orangis, da luz de outono
sobre as tumbas, da multidão silenciosa e das lágrimas. Da voz
de Pierre, seu filho mais velho, lendo para nós sua última mensagem: “...Sorriam para mim, diz ele, como eu lhes teria sorrido até o
fim. Prefiram sempre a vida e afirmem sem cessar a sobrevivência... Eu
os amo e lhes estarei sorrindo de onde estiver”. referindo a amigos as
suas últimas palavras, não tinha me esquecido de nada, a não
ser essas palavras, esse estranho imperativo de preferir a vida e
afirmar a sobrevivência. Eu as descobri, com surpresa, quando a
mensagem foi publicada.14 ainda hoje não as leio sem surpresa).
Mas a metafísica é igualmente um pensamento da morte, uma
interminável ruminação enlutada. Se esse trabalho de luto
culmina na Aufhebung de Hegel, se o “Sa” – o Saber absoluto
hegeliano – é o ponto onde se encerra a metafísica ocidental, a
desconstrução deve aplicar-se em resolver com prioridade esse
relevamento da morte. Como é possível? Como voltar a Aufhebung
contra ela mesma? Como localizar seu ponto de não-retorno, lá
onde “a apropriação absoluta” equivale a uma “expropriação absoluta”, onde o relevamento dialético inverte-se em “lógica da perda
ou da despesa sem reserva” (DERRIDA, 1974, p. 188)? Onde situar
os pontos de ruptura do sistema?
Diferentemente de Adorno ou de Lyotard, ele jamais
consentiu em designar auschwitz como a sentença de morte15
da filosofia ocidental. Para abalar a clausura do Sistema, eralhe necessário rodear de outra maneira suas defesas, explorar
outros caminhos nas margens da filosofia. Apelar à literatura,
por exemplo à heterologia de Bataille que denuncia a Aufhebung
como servil, opõe-lhe a operação soberana em funcionamento
na despesa improdutiva, no riso, no jogo, no êxtase erótico
ou místico.16 ou então a Genet, a todos aqueles motivos que,
em Glas, não param de passar clandestinamente da colunaGenet à coluna-Hegel, transformando a ereção gloriosa do
Niterói, n. 31, p. 31-49, 2. sem. 2011
Melancolia da desconstrução
17
Sobre essa ética do
luto, cf. as belas páginas de M. CRÉPON em
Langues sans demeure.
Paris: Galilée, 2005, p.
76-85, e as análises de S.
CRICHTLEY em Ethics,
Politics, Subjectivity, Verso Press, 1999.
Espírito em fetiche e seu Saber absoluto em fantasma. É nessa
perspectiva – essa procura de novos aliados fora da filosofia – que
acontece seu apelo à psicanálise. a distinção entre introjetar e
incorporar encontra aqui toda a sua importância. Se é verdade
que a metafísica caminha para o luto, para o relevamento, para a
introjeção, então a incorporação melancólica indica sua fraqueza,
o ponto em que sua lógica se desequilibra, em que seu trabalho
de luto se torna impossível. o que a desconstrução se aplica em
desvendar, é esta cripta da metafísica, este resto inassimilável
do Sistema: “o não-engolido-nem-cuspido, o que continua na garganta
como outro” (DErrIDa, 1992, p. 49).
Impossível, então, desconstruir a metafísica sem colocar
em questão a possibilidade do luto, do trabalho de luto “normal”
ou “exitoso”. Cada processo de luto gera um resto, o retorno
de um espectro, e esse retorno compromete necessariamente
o cumprimento do ritual. Ele teria, sem dúvida, dado, a essa
dificuldade, a forma de uma aporia (para que o luto tenha
êxito, é preciso que ele fracasse; ele consegue apenas fracassar; sua
possibilidade supõe a sua impossibilidade, etc.), mas, também,
aquela de uma injunção arqui-ética, a obrigação de acolher o
estrangeiro, de respeitar a alteridade do outro morto, de dar, ao
que retorna, o seu lugar, de render-lhe justiça. Um imperativo
ético, a própria lei da ética: é nesses termos que, num de seus
últimos livros, ele assinalará a obrigação “melancólica” de portar
o outro morto, sem absorvê-lo em mim. “Se eu devo (é a própria
ética) portar o outro em mim para lhe ser fiel, para respeitar a
alteridade singular dele, uma certa melancolia deve protestar ainda
contra o luto normal. Ela não deve nunca resignar-se à introjeção
idealizante”17 (DERRIDA, 2004, p. 73-74). Injunção, sem dúvida,
insustentável: porque ela exige saber levar em conta o fantasma
– discernir com exatidão o que retorna ao morto (a fidelidade, a
homenagem, o respeito ou a preservação da memória) e o que
retorna como morto, isto é, como obsessão, como o nem-vivonem-morto do qual não acabaremos nunca de fazer nosso luto.
Como conseguir isso? Como fazer a separação entre o que resta
como Corpo glorioso, Nome inapagável invocado e comemorado
sem cessar, e o que resta somente como resíduo ou como espectro? Entre o que se deixa introjetar, relevar no trabalho normal
do luto e o que resiste a essa reapropriação enlutada? O que,
no nosso luto, resiste ao luto – por exemplo, ao luto de Jacques
Derrida? É a sua escrita, uma certa parte (mas qual?) de sua
escrita, as criptas ou as margens de seus textos? É, ao contrário,
o traço de uma certa “presença” encarnada, a singularidade viva
de um movimento, de um rosto, de uma voz? (contrariamente
às aparências, a segunda hipótese não me parece menos “derridiana” do que a primeira).
Niterói, n. 31, p. 31-49, 2. sem. 2011
43
Gragoatá
Jacob Rogozinski
Como fazer seu luto do luto?
18
Di ferentemente de
Bennington, não penso
que a noção de “meio-luto” seja elaborada o
bastante para oferecer
uma saída – cf. Derridabase. In Jacques Derrida
de BEN NINGtoN e
DErrIDa. Paris: Seuil,
1991, p. 139.
44
Melancolia da desconstrução: ela confirma o impossível
luto da metafísica. Se é verdade que a metafísica é a doença do
ocidente, então a incorporação melancólica seria seu remédio,
seu pharmakon, tão perigoso, talvez, quanto o mal que ele pressupõe curar. Mal contra mal, luto contra luto, pode-se dizer que
não se sai de uma certa economia da morte; que a fronteira passa
somente entre duas versões do luto, duas maneiras de (não)
fazer seu luto, de ter sempre na lembrança o que está morto, de
permanecer junto dele. Much ado about nothing: tantas leituras
sutis, tantas estratégias astuciosas para ao fim se contentar do
prazer de jogar uma forma de luto contra uma outra. Pelo menos
seria o caso se a desconstrução se reduzisse à simples inversão
do paradigma dominante (aqui, aquele da introjeção); mas ela
não se limita nunca a isso, empenha-se, ao contrário, em revelar
a secreta conivência que une os dois termos opostos e torna-os
indecidíveis; o que a leva a arranjar, a cada vez, um novo conceito,
um terceiro termo que escapa à oposição deles. E ela consegue
isso no caso que nos interessa aqui? E se não, será preciso falar
de um limite, até mesmo de um fracasso da desconstrução, que
repetiria, num outro nível, o fracasso do trabalho do luto?18
Porque o luto, todo luto fracassa, sempre. a introjeção, já foi visto,
não consegue resguardar fielmente o objeto perdido: ela faz seu
luto dele, releva-o, digere-o e esquece-o no momento mesmo em
que ela pretende comemorá-lo. Mas a incorporação fracassa, ela
também, de uma outra forma: “resistindo à introjeção, ela impede a
assimilação amorosa e apropriante do outro” e assim ela se preserva
”dessa relação com o outro ao qual, paradoxalmente, a introjeção é mais
aberta” (DErrIDa, 1976, p. 26). Como orfeu incapaz de desviar
seu olhar da sombra de Eurídice ou como o herói de O quarto
verde de truffaut, o sobrevivente agarra-se ao objeto de seu luto
impossível, petrifica-o, transforma-o em relíquia. recusando-se
a assumir sua perda, ele o perde de novo enquanto objeto de amor
– de um amor vivo do qual não lhe resta mais do que um simulacro irrisório, uma sombra pálida que recai nas trevas. Como
no caso das doenças auto-imunes, o que protege é, ao mesmo
tempo, a pior ameaça e destrói o que devia proteger.
Dupla injunção, duplo fracasso do luto: que o objeto de
amor perdido tenha sido introjetado ou incorporado, nos dois
casos trata-se, antes de tudo, de assegurar-se de “que o morto continue morto, no seu lugar de morto” (DErrIDa, 1976, p. 57). Que ele
se deixe digerir ou esquecer, ou que retorne para assombrar-me
como fantasma, jamais conseguirei preservá-lo como este outro
absolutamente singular que ele era para mim. Uma coisa ao
menos é certa: essa singularidade não saberia ser aquela de um
fantasma. Um morto que retorna nunca é singular justamente
porque ele retorna, repetindo, imitando a singularidade viva que
Niterói, n. 31, p. 31-49, 2. sem. 2011
Melancolia da desconstrução
Vinte anos mais tarde, essa (im)possibilidade persiste ainda
como uma questão que
assombra cada questão:
«Como fazer seu luto do
luto? Mas como fazer
de outro jeito, a partir
do momento em que o
luto deve ter fim? E que
o luto do luto tem que
não ter fim? Impossível
na sua própria possibilidade? Eis a questão que
é chorada através das
lágrimas de antígona
[...], mas é talvez a origem de toda questão»
(DErrIDa, 1997, p. 101).
20
N. do T. : Em francês,
sujet, “assunto”, mas também “sujeito”.
19
ele assombra. Nunca se fará seu luto de um fantasma. Enunciado
que pode ser entendido em dois sentidos muitos diferentes: em
primeiro lugar, ele quer dizer que o que retorna é o que escapa
ao luto, desregula a ordem ritual da comemoração e do esquecimento. Nem integrado nem rejeitado, ele retorna interminavelmente e, nesse sentido, a melhor maneira de respeitar um
morto, de poupá-lo do esquecimento, consiste em fazer dele um
fantasma. E, entretanto, o retorno do espectro é, ao mesmo tempo,
o que apaga toda singularidade, o que a reduz a uma simples
réplica inconsistente, um rastro de rastro, uma sombra furtiva,
um eco: o que a faz desaparecer sem retorno na qualidade de esta
singularidade única, insubstituível, da qual portamos luto. Fazer
de um morto um fantasma, fazê-lo retornar como fantasma, é
condená-lo ao mais profundo esquecimento e não há melhor
maneira de ultrajar sua memória. Nada é mais aterrorizante do
que um espectro, porque ele traz, nas dobras de sua mortalha,
a ameaça ou a memória de uma morte pior do que a morte. Entre
o trabalho do luto e o retorno, entre introjetar e incorporar,
relevamento e melancolia, parece, a partir de então, impossível
saber separar : há sempre um momento em que acabam por se
confundir, aparecem como duas versões da morte, dois modos
secretamente cúmplices de um mesmo esquecimento. Como
escapar dessa economia da morte? Como conseguir fazer seu
luto do luto? A um interlocutor que lhe perguntava o que “o
fazia escrever ou falar”, ele respondia de maneira enigmática,
evocando “uma coisa terrível que não amo, mas que quero amar”. É,
dizia ele, “a única coisa que finalmente me interessa”: o que “me dá e
me recusa o idioma” e “que eu chamo, ainda inadequadamente, de luto
do luto”19 (DErrIDa, 1992, p. 54). Talvez nos aproximemos aqui
da cripta mais secreta. Em que essa Coisa é “terrível”? O que
ela ameaça, o que ela protege ameaçando? Em qual sentido ela
determina, ao mesmo tempo, o dom e a retração do idioma, o que
faz a singularidade de uma escritura, de um “assunto”,20 de uma
“vida”? Por que ele não podia ou não queria nomeá-la? E se todo
nome faz falta, como se poderia passar além do princípio do luto?
Ele nos advertia de todo modo que essa expressão – fazer
seu luto do luto – não é propriamente conveniente para dar nome
à Coisa em questão. Como o “meio-luto” de que ele fala às vezes,
ela traz ainda, na sua própria letra, a marca do luto, repete
e reduplica o que pretendia superar. Mas por isso mesmo, é
muito conveniente para representar a aporia em que se enreda
todo pensamento, quando ele tenta pensar o luto, o impasse da
introjeção e da incorporação, todas as duas infiéis, todas as duas
incapazes de preservar a singularidade destruída. Se é verdade
que a desconstrução porta o luto da metafísica, essa injunção
determina sua relação mais íntima com este outro espectral,
essa tradição sedimentada chamada “metafísica” – e, mais geralmente, a relação de um pensamento novo com o já-pensado que
Niterói, n. 31, p. 31-49, 2. sem. 2011
45
Gragoatá
Jacob Rogozinski
o cerceia, a luta de um acontecimento de verdade com a nãoverdade que o impede de acontecer. Quando ele tenta descrever
essa relação, evoca duas estratégias possíveis da desconstrução e
os limites dessas duas posturas, o inevitável fracasso delas. Ela
teria de escolher entre: 1. um gesto de ruptura (de estilo marxista
ou nietzschiano) que pretende fazer tábula rasa do passado “instalando-se brutalmente fora dele”, mas se arrisca continuamente
a “reinstalar o ‘novo’ terreno sobre o mais velho solo” – e 2. um
gesto de repetição (de estilo heideggeriano), que corre o risco de
consolidar o que devia desconstruir. Nos dois casos, a lógica da
relação com o fora “transforma regularmente as transgressões em
‘falsas saídas’ ” (DErrIDa, 1972, p. 162). Parece-me que a mesma
temível lógica trabalha também na relação com o antes, com o
já-pensado, com o já-morto; que nos condena a oscilar permanentemente entre a expulsão que esquece, própria do luto “exitoso”, e o interminável sofrimento da melancolia. Para escapar
desse impasse, para fazer seu luto do outro morto e levar o luto
a termo, a desconstrução ou o luto do luto deveriam preservarse igualmente da ilusão de ruptura e da guarda repetitiva, da
introjeção e da incorporação. Mas isso parece fora de alcance, ou
pelo menos nenhum novo conceito permite abordar. Essa falta de
saída é o limite último da desconstrução, incapaz de subtrair-se
à “terrível lógica do luto”? Ou, então, o limite de toda filosofia,
de todo pensamento, face ao impensável da morte? É certo que
a economia do luto não deixa entrever nenhuma saída? Que é,
afinal, impossível preferir sempre a vida?
Se um além do luto fosse possível, ele deveria proceder
ao mesmo tempo da incorporação e da introjeção, articular de
maneira inédita alguns dos seus traços. Não poderia ser uma
ruptura mais radical, um esquecimento mais definitivo: como
na incorporação, uma relação privilegiada com o outro morto
deve manter-se no que ele tinha de mais singular. tratar-se-ia
de manter-se tão perto quanto possível dessa singularidade
desaparecida, de ajudá-la a retornar, a passar da outra margem
àquela dos vivos – por exemplo, no caso de um amigo ou de
um mestre, esforçando-se em recolher o legado de sua questão.
ao mesmo tempo, trata-se, apesar de tudo, de fazer seu luto
do luto: de livrar-se dessa fascinação fatal, dessa obsessão que
transforma o morto em espectro. Como a introjeção, o luto do
luto implica um trabalho, um combate entre o vivo e o morto
que deveria permitir, finalmente, ao sobrevivente, livrar-se da
influência da morte, deixar-se decidir a continuar vivendo. Mas
como decidir-se pela vida sem esquecer, de um modo ou de
outro, aquele que está morto? E como preservar sua memória
sem se deixar devorar por ele, na melancolia interminável de um
luto impossível? Ei-nos novamente no coração da aporia. Qual
seria o “terceiro termo” da alternativa, o nome ainda inaudito
que poderia indicar-nos uma saída? Um desses nomes poderia
46
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Melancolia da desconstrução
ser aquele de messias: segundo a tradição judaica, à vinda do
messias os mortos ressuscitarão; ou, pelo menos, seu advento
deveria fazer justiça aos vencidos e aos mortos, a todas as singularidades humilhadas, esquecidas, destruídas; o que poderia,
enfim, permitir que se faça o luto do luto. Eu gostaria de entender
nesse sentido esse estranho aforismo do Zohar que anuncia que
o messias não virá “antes que todas as lágrimas tenham sido
vertidas”... Entretanto, se a referência ao messiânico – a uma
messianidade sem messias – faz-se cada vez mais insistente em sua
obra, ele jamais vinculou “o invencível desejo de justiça” que se
liga à sua espera à promessa de um além do luto. Uma outra
palavra possível, numa outra tradição, seria aquela da verdade,
da alétheia. Para os Gregos dos tempos arcaicos, a palavra do
poeta é dita “verídica”, porque, cantando os heróis mortos em
combate, ela arranca o nome deles do lethe, do véu das trevas e
do esquecimento que os encobre, o que é uma outra maneira de
re-nomear o nome dos mortos, de render-lhes justiça. Vista dessa
maneira, a revelação da verdade poderia, também, ser entendida
como um acontecimento messiânico (com a condição de saber
diferenciar a celebração do herói e a reparação devida à vítima).
Para dizê-lo em jewgreek, o messias bem que poderia chamar-se
alétheia. aí ainda, é preciso salientar que ele nunca enveredou
por esse caminho. aconteceu-lhe, na sua leitura de Celan, de
invocar a verdade do poema que “abre a possibilidade de fazer seu
luto do que está perdido sem resto (a família exterminada, a incineração
do nome...)”(DErrIDa, 1986 B, p. 68 e 94). Ele o fez apenas uma
vez. O mais frequente é ele efetivamente afastar toda referência
à alétheia como um fantasma ou um artifício, sem atentar para a
busca da verdade que está na base de seu próprio pensamento.
É isso, essa revocação da verdade, essa recusa em decidirse entre a verdade e a não-verdade, que o impedem de avançar
na direção do luto do luto? Sem dúvida – do mesmo modo que
é sua dificuldade de pensar a chegada, de distinguir a vinda e o
retorno, que o impede de dar todas as chances ao acontecimento,
ao messiânico, à aletheia, e, assim, passar além do luto. Mas uma
outra decisão também lhe falta: como ele se recusa a diferenciar
a vida da morte, a possibilidade de preferir a vida, de “deixar-se
decidir” por ela, lhe está, do mesmo modo, impedida. Segundo
ele, todo luto e toda relação com a morte têm suas raízes no luto
de si mesmo (que é, ao mesmo tempo, um luto do outro em mim),
na relação com o si-mesmo espectral de um eu-fantasma morto
desde sempre. “Já estou morto” – “eu lhes digo que estou morto”:
desse enunciado impossível, ele fez a divisa de sua obra. Com as
consequências que isso implica: se eu sempre já estou em luto de
mim mesmo, é porque nunca vim à vida, porque não há um eu
que poderia decidir-se a continuar vivendo. Como o teria dito
Freud, a perda do objeto transformou-se, aqui, na perda do eu; o
que confirma, se isso fosse necessário, o caráter essencialmente
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Gragoatá
Jacob Rogozinski
melancólico da desconstrução. É com essa revocação enlutada
do ego – com esse egicídio – que devemos agora nos confrontar,
se quisermos saber qual sujeito seria capaz, sem naufragar neles,
de atravessar o luto e a melancolia.
Abstract
This paper addresses Derrida´s texts on “the
work of mourning”, in which the philosopher,
borrowing from psychoanalytic theory, postulates
a distinction between mourning as a “normal”
process of introjection of the lost object, and its
pathological forms, in which mourning does not
succeed. Failure to mourn is paradoxically more
respectful of the dead Other than the so-called
“normal” or “successful” mourning. Derrida´s
inclination for pathological mourning would be
restated by a “melancholia of deconstruction”,
which reveals his impossibility to take leave of
western metaphysics. The critical trajectory of
deconstruction thus seems to envisage a type of
philosophical parricide, itself a last tribute paid
to the dead master.
Keywords: Derrida; deconstruction; mourning;
metaphysics
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