Recontando a
computabilidade
Retelling the computability
ISABEL CAFEZEIRO
RESUMO Este texto reconta a história
da computabilidade no período de 1900 a
1936 sob a luz dos estudos de Ciência-Tecnologia-Sociedade. A narrativa enfoca as
contingências presentes no estabelecimento
do programa de Hilbert, e o desenrolar dos
acontecimentos até a apresentação dos
teoremas de Gödel e a formulação da tese
de Church. Adota uma abordagem interdisciplinar, que aplica, experimenta e discute
diversas estratégias de acompanhamento da
construção dos conhecimentos científicos
tendo a computabilidade como foco.
Instituto de Computação | UFF
EDWARD HERMANN HAEUSLER
Departamento de Informática | PUC-Rio
Palavras-chave computabilidade, programa
de Hilbert, estudos de ciência, tecnologia e
sociedade,
HENRIQUE LUIZ CUKIERMAN
Programa de Engenharia de Sistemas e Computação – COPPE/UFRJ
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas
e Epistemologia | UFRJ
Escola Politécnica | UFRJ
IVAN DA COSTA MARQUES
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas
e Epistemologia | UFRJ
1. Introdução
A área de estudos de Ciências, Tecnologia e Sociedade (CTS), ou
sociologia do conhecimento, sedimenta-se sobre uma forte reflexão
acerca da prática científica, da produção dos conhecimentos científicos
e da produção dos conhecimentos que produzem tecnologias. Em vez
de dedicar-se a fatos e artefatos já prontos, focaliza-se no processo
pelo qual se dá a construção de fatos e artefatos científico-tecnológicos.
Apesar de sua origem recente (a partir da segunda metade do século
XX), já é reconhecida e formalizada em diversas e renomadas instituições
internacionais de ensino e pesquisa. Intrinsecamente interdisciplinares,
os Estudos CTS procuram fazer uma ponte entre as ciências humanas
e as ciências exatas, e especialmente as engenharias.
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
231
ABSTRACT This article retells the history of
computabilty in the period from 1900 to 1936
under the light of the Science and Technology
Studies. The narrative focuses on the contingencies at the time of the establishment of Hilbert’s
Program, and follows the unfolding of the events
until Gödel’s Theorem and the formulation of the
Church Thesis. It takes an interdisciplinary approach, which applies, experiments and discusses
different strategies to follow the construction of
scientific knowledges having computability as
its focus.
Key words computability, Hilbert’s program,
studies of science, technology and society.
A área de Estudos da Computabilidade é motivada pela constatação de que existem certos problemas (os chamados “não computáveis”) que não podem ser solucionados pelo computador. Sendo assim, cabe abordar o conceito
de “computável”, ou seja, a compreensão da classe de problemas que podem ser resolvidos através de programas
computacionais. Ao longo dos anos, várias propostas foram feitas na tentativa de caracterizar essa classe. Algumas
tentativas datam de 1930, antes mesmo do surgimento do primeiro computador, e visavam, na verdade, caracterizar a
classe de problemas cabíveis de serem resolvidos em um sistema formal. Outras, algumas vezes focando o mecanismo humano de “computar”, procuravam representar, através de uma máquina idealizada, o processo humano. Até o
presente momento há controvérsias sobre a possibilidade de provar formalmente que alguma dessas tentativas tenha
realmente caracterizado a classe dos problemas computáveis, mas é surpreendente o fato de muitas das tentativas
“bem-sucedidas”, concretas ou abstratas, anteriores ou posteriores à invenção do computador, terem sido provadas
equivalentes. Particularmente, as abordagens propostas antes do surgimento do primeiro computador sugerem a
independência do conceito com relação à evolução tecnológica.
O presente texto procura recontar a história da computabilidade sob a ótica dos Estudos CTS. Para tal finalidade,
torna-se necessário um deslocamento nas ênfases corriqueiramente retratadas em textos da Ciência de Computação
a determinados fatos e atores. Por este motivo, não se verá aqui uma apresentação de todos os fatos importantes que
se sucederam no desenrolar da história da computabilidade, nem tampouco uma referência a todos os matemáticos
e filósofos que tomaram parte desse processo.1 O que apresentaremos é um diálogo entre a computabilidade e os
Estudos CTS, com o objetivo mútuo de iluminar, através da história da computabilidade, o processo de construção do
conhecimento do qual os Estudos CTS se ocupam, e esclarecer, através da compreensão do processo de construção
de resultados da computabilidade, incompreensões frequentes a respeito da computabilidade. Precisamente, o período
da história da computabilidade narrado ilustra:
232
1) A subjetividade do conceito de verdade: Ao abandonar a noção de descoberta e assumir a construção de
conhecimento (fatos científicos e artefatos tecnológicos), abre-se a possibilidade ao cientista de desconfiar das evidências que observa. A noção de descoberta pressupõe a existência de “coisas-em-si” e atribui ao cientista o papel de
compreender e explicitar o que é fato verificável em uma “natureza-lá-fora”. Em contrapartida, a noção de construção
substitui a preexistência dos fatos pela sua historicidade e a confirmação “absoluta” na natureza pelo acordo frente
a possíveis relativizações. Assim, é possível compreender a “verdade” como algo que se estende por um período de
tempo e finda ante o surgimento de um novo paradigma. Por exemplo, entre 1900 e 1931 perdurou a verdade de que
a qualquer sentença formalizada caberia uma prova.
2) A ciência como uma construção coletiva: Acompanhamos o empenho do cientista em convencer seus pares
da validade de suas afirmações. Cada citação bibliográfica e cada pesquisador que adere a suas propostas empurram
as afirmações rumo à verdade e a fortalecem. Na história da computabilidade, essa movimentação é explícita: Hilbert
convocou os cientistas a se unirem em torno de sua proposta. A observação desse movimento auxilia na desmistificação da ciência neutra, ao mostrar que há uma bagagem pessoal e situada que o cientista embute na construção dos
fatos científicos.
3) O trabalho dentro e fora dos laboratórios na construção da ciência e da tecnologia: Verifica-se que a construção da ciência dá-se simultaneamente dentro e fora dos laboratórios. Ao mesmo tempo que efetua cálculos, cria
mecanismos e desenvolve métodos, o cientista é também político e necessita negociar não somente com seus pares,
mas também com a sociedade.2 Hilbert, por exemplo, manifestou-se em discurso radiofônico e apresentou suas ideias
formalistas a um público amplo.
4) O processo de naturalização/desnaturalização de ideias e artefatos: Quando há um consenso entre cientistas/
engenheiros que colaboram na construção de um fato/artefato, dizemos que tal fato/artefato encerrou-se como uma
caixa-preta, isto é, não há mais problematizações a respeito de suas questões. Sendo assim, o fato/artefato encontrase de tal forma consolidado que pode ser estudado como se fizesse parte da natureza. A desnaturalização – processo
inverso – ocorre quando alguma controvérsia é levantada a respeito do fato/artefato que se supunha consolidado. Gödel,
ao reabrir a caixa preta da abordagem formalista, desnaturaliza a proposta de Hilbert.
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
5) O papel da natureza (ou sociedade) em desempatar controvérsias científicas: Enquanto perduram as controvérsias, os cientistas buscam a verdade: investigam a natureza e procuram formular definições que lhes pareçam
apropriadas. Porém, no calor das discussões, a natureza mostra-se incapaz de apontar o caminho para a representação
adequada da realidade. Uma vez formulada, compreendida e aceita sua definição, a realidade aparece como descoberta,
como se não houvesse sido produzida em decorrência da própria definição. A realidade é o que resiste, no sentido da
proposição que melhor resiste às disputas dos cientistas, que melhor resolve as controvérsias consideradas relevantes.
Na história da computabilidade havia um consenso entre Church, Turing e outros a respeito do que se buscava definir.
Disputas acirradas giravam em torno de qual formalismo melhor se adequaria ao que se supunha ser a realidade.
O formalismo eleito definiria a realidade.
Por outro lado, os Estudos CTS nos permitem uma melhor compreensão da história da computabilidade, já que:
1) Desfazem categorias implicitamente assumidas, como as de “sucesso” e “fracasso”: O enfoque nos enredamentos de atores humanos e não humanos e no caráter coletivo da construção do conhecimento evita a solidificação
de certas categorias que surgem quando a história é focada em teoremas e resultados. É comum a identificação de
David Hilbert como protagonista da catástrofe3, em oposição a Gödel, que teria então permitido que a ciência retomasse
o caminho da verdade. O fato de que para Gödel chegar a seus resultados seria preciso Hilbert levantar todo aquele
movimento em prol da abordagem formalista, torna fraca a força descritiva e explicativa das categorias de sucesso e
fracasso. O enfoque nos enredamentos permite resgatar a integridade das ideias de Hilbert com relação ao momento
histórico em que foram formuladas. Sucessos e fracassos, heróis e vilões da ciência surgem quando se pensa na ciência
dirigida a metas. Muitas vezes o “fracasso” de uma meta não alcançada esconde resultados importantes surgidos de
maneira periférica.
2) Abalam a atribuição direta de autoria: A análise da construção do conhecimento traz à luz o conjunto de matemáticos parceiros, colaboradores na consolidação de um resultado e apontam “dificuldades para isolar invenções
e descobertas individuais”.4 Ao considerar a complexidade da história e a riqueza de detalhes, os teoremas de Gödel
deixam de ser “de Gödel” e passam a carregar consigo uma coleção de trabalhos que influenciaram de maneira decisiva
os seus resultados.
3) Situam resultados matemáticos em meio ao paradigma dominante das ciências: Acompanhar o processo de
construção da computabilidade permite verificar a que ponto os efeitos da “catástrofe” ultrapassaram o domínio matemático e ameaçaram o paradigma dominante das ciências. Buscava-se a compreensão dos processos da natureza
através do rigor da formalização matemática, que até então se mostrava solidamente edificada. Porém a constatação
relativa a certos sistemas formais de que se não são incompletos, são inconsistentes, levou a supor que, ou o aparato
matemático é insuficiente para abraçar a natureza, ou necessita ele próprio de melhor compreensão. Por essa perspectiva, entende-se a proliferação de interpretações metafísicas para os teoremas de Gödel. Tais interpretações não
implicam que Gödel, ao formular suas ideias, tivesse em mente algo além de sistemas formais sob certas condições,
mas situam-se na perspectiva de que, uma vez divulgadas as ideias, as interpretações posteriores são livres, independentes e fecundas.
4) Abrem espaço para analogias e metáforas: Os Estudos CTS são inerentemente tradutores: propõem a vinculação
do conhecimento construído em um domínio a outros domínios diferentes. No novo contexto, o conhecimento adaptase à problematização local e transforma-se, tornando-se, por vezes, irreconhecível.5 A expressão do conhecimento
através de elementos de domínios diversos daquele em que foi concebido, o emprego do conhecimento fora do domínio
onde foi concebido a partir da observação de semelhanças, e o uso do sentido figurado exercem um papel de grande
importância nas traduções, pois facilitam a compreensão por um determinado coletivo, promovendo a nebulização de
fronteiras entre as áreas. Como consequência, rejeita-se a concepção de coisas “puras” bem como o confinamento do
conhecimento a respeito dessas coisas. Neste sentido, as diversas especulações e interpretações a respeito do infinito,
dos paradoxos, dos teoremas de Gödel, dentre outros cumprem com um importante papel: disseminam, despertam o
interesse, fomentam discussões a respeito desses temas.
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
233
5) Mostram a indissociabilidade entre a definição e o objeto definido (ou entre o contexto e o conteúdo): O objeto
definido é, ao mesmo tempo, causa e consequência (efeito) da definição. A recorrência no quadro de Velázquez (seção
5.4) mostra como a realidade e a representação se fundem na imagem: ao representar, o pintor intervém na própria
realidade que representa. O trabalho dos cientistas na construção das definições mostra que, ao definir, cientistas
intervêm na realidade que definem (re)criando o objeto focado. Assim, a tese de Turing é verdadeira porque recria o
objeto que define.6
Este texto não pretende substituir trabalhos preexistentes, mas colocar-se ao lado deles. Não pretende reafirmar
fatos históricos, mas fazer um reconto diferente, desconsiderando as fronteiras entre as áreas de conhecimento e
abandonando o estudo focalizado em instituições, disciplinas ou objetos. Neste texto utilizam-se expressões comuns
nos Estudos CTS, cujos significados são esclarecidos nas epígrafes seguintes aos subtítulos.
2. O que é computabilidade? A definição e o que se quer definir!
The “computable” numbers may be described briefly as the real numbers whose expressions
as a decimal are calculable by finite means. [...] According to my definition, a number is
computable if its decimal can be written down by a machine.7
234
O termo computável foi proposto por Alan Turing para designar a totalidade de números reais cuja expansão decimal
pode ser calculada através de recursos finitos. Sua proposta consistia em identificar os processos envolvidos pelo ser
humano na atividade de computar um número. Para tanto, definiu um artefato teórico, que chamou de “máquina de
computar”, de maneira que todo número cuja expansão decimal pudesse ser obtida a partir de operações da máquina
seria chamado de “número computado pela máquina”.
“What are the possible processes which can be carried out in computing a number?” indagava Turing em 1936.
Na tentativa de definir o computável, Turing deparou-se com o seguinte problema: Os números computados pela máquina realmente formam aquele conjunto que, intuitivamente, consideramos computável? Para responder com precisão,
precisaria provar matematicamente que todos os números que consideramos computáveis podem ser obtidos pela
máquina. Desta maneira, a máquina computaria necessariamente todos os números computáveis. Por outro lado, seria
também necessária a prova matemática de que todos os números que a máquina computa são considerados por nós
números computáveis. Estaria então provado que a máquina não computaria nada além de números computáveis.
No attempt has yet been made to show that the “computable” numbers include all numbers which would
naturally be regarded as computable. All arguments which can be given are bound to be, fundamentally,
appeals to intuition, and for this reason rather unsatisfactory mathematically. The arguments which I
shall use are of three kinds. a. A direct appeal to intuition. b. A proof of the equivalence of two definitions
(in case the new definition has a greater intuitive appeal). c. Giving examples of large classes of numbers
which are computable.8
Face às dificuldades de estabelecer uma correspondência exata entre o que se quer definir e a definição, Turing
assumiu a tripla estratégia de: (a) apelar à intuição – ou seja, convencer o leitor por meio de argumentos informais de
que a máquina proposta é realmente capaz de reconhecer os números computáveis; (b) estabelecer correspondências com outras definições que se proponham a definir o mesmo objeto – tais correspondências podem ser provadas
formalmente, já que as definições a que Turing se refere são definições matemáticas. A dificuldade reside em provar
formalmente que as definições equivalentes de fato alcançam aquele objeto que se pretendia definir; (c) usar exemplos convincentes – novamente, um apelo à informalidade. Turing esperava que seus exemplos convincentes fossem
convincentes também para o leitor.
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
3. A abordagem formalista: uma caixa-preta
A expressão caixa-preta é usada em cibernética sempre que uma máquina ou um conjunto
de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar é desenhada uma caixinha preta,
a respeito da qual não é preciso saber nada, senão o que nela entra e o que dela sai.9
A abordagem formalista caracteriza-se como um movimento protagonizado por David Hilbert, em que se concebia
a matemática como sistema puramente formal, consistindo de símbolos desprovidos de significado ou interpretação,
cuja manipulação através de regras precisas e mecanismos finitários10 conduziria à prova da veracidade ou falsidade de
todas as expressões que pudessem ser formuladas em tal sistema. Esse movimento iniciou-se no final do século XIX
como consequência do esforço em explicar certas incompreensões a respeito da própria matemática e teve seu declínio
em 1931,11 quando Kurt Gödel demonstrou os teoremas da incompletude, que apontam a existência de proposições
formalizadas em certos sistemas cuja prova não se obtém no próprio sistema.
Neste texto desconstruímos a abordagem formalista como caixa-preta e acompanhamos sua reconstrução.
Com esse propósito, seguiremos princípios e regras propostos por Bruno Latour: “Estudamos a ciência em ação, e não
a ciência ou a tecnologia pronta; para isso, ou chegamos antes que fatos e máquinas se tenham transformado em
caixas-pretas, ou acompanhamos as controvérsias que as reabrem.”12
3.1 O infinito, uma pedra no caminho
O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a
última. Não sei porque estão numeradas deste modo arbitrário. Talvez para dar a entender
que os termos de uma série infinita admitem qualquer número.13
O conceito de infinito, que inspirou Borges, inquietava também os matemáticos desde a Grécia Antiga, quando se
evidenciou a incapacidade de expressar através de uma sequência finita de algarismos (um número que pode ser escrito
em um pedaço de papel) a medida da diagonal do quadrado de lado 1. Aos gregos parecia improvável que o tamanho
de um objeto concreto, tão bem definido e compreendido como a diagonal do quadrado de lado 1, fosse representado
por um número cuja expressão não acaba. Hoje em dia, chamamos de “irracionais” os números que não podem ser
expressos por uma fração de inteiros, como é o caso de √2, e também do enigmático π, cujo valor é definido como
a razão entre o perímetro de uma dada circunferência e seu diâmetro. Segundo Boyer,14 há indícios de que, por volta
de 1800 a.C. os egípcios já efetuavam cálculos aproximados do valor desse número nas construções das pirâmides.
Ainda hoje π desperta interesse devido ao seu caráter altamente abstrato: possui o mesmo valor, qualquer que seja a
circunferência. Com relação à incapacidade de ser expresso por uma sequência finita, π é ainda mais curioso do que
√2, já que esse último pode ser identificado como solução da equação x2 – 2 = 0, ao passo que ao primeiro não se
atribuiu até hoje nenhum tipo de representação finita.
Também na compreensão do tempo e espaço, a noção de infinito inquietava os gregos. O paradoxo formulado por
Zenão de Eleia (século V a.C.), por exemplo, levava a crer que o movimento é impossível quando tempo e espaço são
infinitamente subdivisíveis: Aquiles e a tartaruga decidem apostar uma corrida de 100 metros. Aquiles corre 10 vezes
mais rápido do que a tartaruga, e por isto, a tartaruga inicia com 81 metros de vantagem. Aquiles percorre rapidamente a distância inicial que o separa da tartaruga, mas ao alcançar os 81 metros iniciais, a tartaruga já se encontrará 8
metros à frente. Ao alcançar mais 8 metros à frente, a tartaruga já terá avançado mais 0,8 metros, e assim Aquiles
nunca alcançará a tartaruga. Também no século XIX, o confronto da observação dos fatos e a explicação matemática
demonstrava aos matemáticos que o aparato matemático da época era insuficiente para formalizar alguns fenômenos.
A compreensão matemática do paradoxo viria através do conceito de séries, que tem como base o trabalho do matemático Cauchy (1789-1857). A soma dos infinitos termos de uma P.G. é chamada série geométrica. Sendo a1 o termo
inicial e q a razão, é dada pela fórmula a1 / (1 – q), quando q é menor do que 1. Neste caso, a progressão descrita tem
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
235
termo inicial 81 e razão 1/10, portanto, Aquiles e a tartaruga se encontrariam em 81 / (1 – 0,1) = 90 metros.
O paradoxo de Zenão e a expressão da medida do quadrado de lado 1 ilustram o que se convencionou chamar
de “infinito completado” ou “infinito atual”, isto é, uma coleção infinita que engloba todos os seus membros, em
oposição a uma coleção que vai crescendo em direção ao infinito (infinito potencial). No primeiro caso, caracteriza-se
o infinito como um objeto estático – acabado, enquanto no segundo caso transparece a noção de processo. Assim,
a ideia do infinito completado parece surgir sempre que se procura expressar, através de meios finitos, uma coleção
infinita, o que parece necessário para que se possa falar do infinito. Literalmente, porém, infinito é algo que não tem
fim, e, portanto, não pode ser completado. A contradição que se evidencia quando se toma o termo literalmente não
nos impede de assumir a metáfora do infinito completado. Ambas as interpretações (a literal e a metafórica) também
estão presentes no paradoxo de Zenão e na medida da diagonal do quadrado de lado 1. No paradoxo de Zenão há
uma confusão proposital entre a ideia literal e a ideia metafórica de movimento de um ponto para outro.15 A primeira
consiste em passar fisicamente por todos os pontos, o que será impossível se for considerada uma quantidade infinita
de pontos. A ideia metafórica consiste em conceber uma variável cujo valor inicia em 0, e vai crescendo. Para ir de 0
a 1, precisa passar por ½, ⅔, ¾ ,..., n / (n+1), ... quer dizer, um processo que se estende em direção ao infinito. Na
análise da medida da diagonal do quadrado de lado 1, a ideia literal e a metafórica consistem no objeto geométrico e
na expressão de sua medida em expansão decimal.
As incompreensões a respeito do infinito no século XIX não se resumiam à noção de “infinito completado”. A possibilidade da existência de diferentes infinitos, aliada às dificuldades e surpresas ao combinar ou operar o infinito de modo
análogo ao finito, despertaram o interesse dos matemáticos da época e até hoje causam estranheza. A formalização do
conceito de infinito,16 do matemático Dedekind (1831-1916), permitiu o tratamento rigoroso do conceito: “Diz-se que
um sistema S é infinito quando é semelhante a uma parte dele mesmo, caso contrário, S se diz sistema finito.”17
236
A propriedade de ser semelhante à parte de si próprio parece intrinsecamente contraditória. Como pode o todo ser
semelhante à sua parte? O próprio Euclides de Alexandria, por volta de 300 a.C., defendera na obra prima Os elementos:
“o todo é maior do que a parte”.18 Hoje em dia, essa “semelhança” é expressa em termos de função bijetora, e adota-se
o mesmo conceito. Na linguagem moderna, diz-se: S’ é infinito se existe uma bijeção f:S’ → S, e S ⊂≠ S'. A bijeção f(n)
= n2, por exemplo, mostra que o conjunto dos quadrados, subconjunto próprio dos naturais, tem o mesmo tamanho que
o conjunto dos naturais, sendo, portanto, o conjunto dos naturais, infinito. Intuitivamente, a sequência 1, 4, 9, 16, 25, 36
etc. corresponde a 1, 2, 3, 4, 5, 6 etc., e assim as duas sequências têm o mesmo tamanho. A bijeção entre os números
naturais e seus quadrados foi expressa por Galileu, em 1638, na obra Diálogos sobre as duas novas ciências19.
3.2 O infinito, sob o olhar de Cantor
Em matemática a arte de perguntar é mais valiosa do que a de resolver problemas 20
Georg Cantor (1845-1918) surpreendeu a comunidade matemática quando, em 1874, utilizando argumentos bastante
intuitivos, demonstrou a existência de infinitos de diferentes tamanhos, em concordância com o trabalho de Dedekind. Até
então, admitiam-se grandezas infinitamente grandes e grandezas infinitamente pequenas. Além disso, Galileu, no século
XVII, afirmara que as noções “menor”, “maior” ou “igual” não faziam sentido para infinitos.21 Cantor, porém, apresentou à
comunidade uma hierarquia de conjuntos infinitos. No miolo dela encontram-se os conjuntos infinitos do mesmo tamanho
que (mais rigorosamente, da mesma cardinalidade que) os números naturais, ou seja, aqueles cujos elementos podem ser
colocados em correspondência biunívoca com os números naturais. Denomina-se “diagonalização” a técnica inventada
por Cantor para verificar que um dado conjunto possui a cardinalidade do conjunto dos naturais.
Após identificar dois infinitos distintos, um enumerável (em correspondência biunívoca com os números naturais)
e outro contínuo (em correspondência biunívoca com os números do intervalo real entre 0 e 1), Cantor convenceu-se
do que veio a ser chamado hipótese do contínuo: o contínuo viria a ser imediatamente posterior ao enumerável. Por
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
diagonalização, ele provou que um conjunto é estritamente menor do que seu conjunto de partes, e assim estabeleceu-se uma hierarquia entre os conjuntos infinitos, iniciando-se no enumerável, seguida pelo contínuo, e daí em diante
pelas partes do conjunto precedente. Com o intuito de “contar” os conjuntos infinitos, Cantor formulou a teoria dos
transfinitos: números que estabelecem a quantidade de elementos dos conjuntos infinitos (cardinais transfinitos) ou
que determinam a ordem dentre conjuntos infinitos (ordinais transfinitos). A aritmética dos transfinitos se comporta de
forma curiosa. Por exemplo, ao subtrairmos um inteiro de um ordinal transfinito, como ω (o menor ordinal transfinito),
obtemos o próprio ω. Veja a explicação de Cantor:
ω [o primeiro número inteiro infinito] é o menor de todos os números maiores que todos os números
inteiros [finitos]. Mas ω – ν é sempre igual a ω e, portanto, não podemos dizer que os números crescentes
ν fiquem tão próximos quanto queiramos de ω, de fato, qualquer número ν, por maior que seja está absolutamente distante de ω quanto menor o número ν. Aqui temos, de forma clara, o fato muito importante
de que meu menor número ordinal transfinito ω [...] situa-se absolutamente fora da série infinita 1,2,3, e
sucessivamente. Por conseguinte, ω não é um número finito máximo, pois não há tal coisa.22
Foram tão surpreendentes os resultados apresentados por Cantor que, por vezes, ele próprio duvidada de suas
provas.23 Foram grandes as críticas que matemáticos da época efetuaram contra seu trabalho. Dentre eles, Kronecker
desmereceu a teoria de Cantor afirmando: “Deus fez os inteiros, e todo o resto é obra do homem.”24 Em 1918, internado
em hospital psiquiátrico e debilitado, possivelmente devido às pressões e perseguições com relação às suas ideias, o
grande matemático veio a falecer.
3.3 O infinito... uma ilusão!
[...] so too we must realize that the infinite, in the sense of an infinite totality, where we still
find it used in deductive methods, is an illusion.25
Hilbert, por volta de 1900 se dedicara à análise matemática, tendo obtido importantes resultados nessa área.
Questionava, contudo, a utilização descuidada do conceito de infinito, e tomou para si a tarefa de esclarecer definitivamente essa questão. Mais tarde (1925), em seu discurso sobre o infinito, em meio ao reconhecimento da importância
do trabalho de Weierstrass na fundamentação da análise matemática, Hilbert criticou a presença de procedimentos
em que transpareciam o conceito de número real definido por séries infinitas e o conceito de sistema de números
reais concebido como uma totalidade. Rejeitava ainda as formas de argumentação que se referiam a uma propriedade
pertencente a todos os números reais, ou à existência de um número real com certa propriedade, pois entendia que
essas argumentações pressupunham o conceito de infinito. Para Hilbert, o infinito, nesses termos, surgiu da necessidade
dos cientistas de dar sentido às suas explicações, sendo, portanto, uma ilusão. Por volta de 1915, Hilbert dedicou-se à
física, e também nesse campo fez importantes contribuições. Seu interesse por essa área transpareceu igualmente no
discurso de 1925, no qual apelou à física para justificar a inexistência do infinito na natureza. Segundo ele, não haveria,
na natureza, algo que correspondesse a esse conceito, e portanto, o mesmo deveria ser substituído por procedimentos
finitistas que gerassem o mesmo resultado.
Em contrapartida, Hilbert adotava o infinito de Cantor, o infinito atual, a que se refere como sendo “o verdadeiro
infinito”:
Someone who wished to characterize briefly the new conception of the infinite which Cantor introduced
might say that in analysis we deal with the infinitely large and the infinitely small only as limiting concepts,
as something becoming, happening, i.e. with the potential infinite. But this is not the true infinite. We meet
the true infinite when we regard the totality of numbers 1, 2, 3, 4, ... itself as a completed unity, or when
we regard the points of an interval as a totality of things which exists all at once. This kind of infinity is
known as actual infinity.26
O que faz Hilbert aceitar prontamente o infinito proposto por Cantor é a possibilidade de sua construção passo
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
237
a passo, por sucessivas aplicações de operações definidas. Na base dessa construção estão as cadeias 1, 11, 111,
1111, ..., que, segundo Hilbert, são intuitivamente reconhecidas. A partir daí, não cabe mais qualquer tipo de apelo à
intuição, consideram-se exclusivamente manipulações simbólicas, desvinculadas de qualquer interpretação. São feitas
definições com o objetivo único de facilitar a comunicação. O infinito atual, de Cantor, é alcançado passo a passo, por
sucessivas aplicações das operações definidas. Visto que, para Hilbert, a adoção de um conceito em uma teoria era
determinada pela não introdução de contradição (sendo portanto desnecessária a confirmação de sua existência na
natureza), o infinito atual era completamente justificado.
3.4 Antinomias: incompreensões na lógica
In the joy of discovering new and important results, mathematicians paid too little attention
to the validity of their deductive methods. For, simply as a result of employing definitions
and deductive methods which had become customary, contradictions began gradually to
appear. These contradictions, the so called paradoxes of set theory, thought first scattered,
became progressively more acute and more serious.27
238
As antinomias (ou paradoxos lógicos) são enunciados que levam a uma situação de contradição lógica, ou seja,
a partir do raciocínio lógico conduzem ao verdadeiro quando assumido o falso, e conduzem ao falso quando assumido
o verdadeiro. São sutilmente diferentes dos paradoxos, pois nesses últimos há sempre um elemento intuitivo, ou resultante da observação, experimentação ou percepções humanas, que entra em choque com o enunciado. Um exemplo
(de antinomia) é o chamado “paradoxo” de Russell28, que demonstrou a existência de contradição no interior da teoria
(ingênua) dos conjuntos. A seguir, sua versão informal: o barbeiro de Sevilha faz a barba de todas as (e somente das)
pessoas em Sevilha que não fazem a barba em si próprias. Pergunta-se: o barbeiro de Sevilha barbeia-se a si próprio?
A quem responder afirmativamente, argumenta-se: o barbeiro de Sevilha não barbeia quem barbeia a si próprio. A quem
responder negativamente, argumenta-se: o barbeiro de Sevilha barbeia todos que não barbeiam a si próprios. A versão
matemática consiste em considerar o conjunto Z = {X tal que X ∉ X}. Questiona-se: Z ∈ Z? Assumindo que Z ∈ Z,
temos, pela definição do conjunto Z, que Z ∉ Z. Por outro lado, assumindo que Z ∉ Z, visto que todos os conjuntos que
não pertencem a si próprio pertencem a Z, temos que Z ∈ Z.
Como comenta Hilbert, as antinomias incrementavam o cenário das incompreensões matemáticas e alertavam
para o perigo da matemática “ingênua”, baseada na intuição, na experiência humana. Hilbert pergunta: “If mathematical
thinking is defective, where are we to find truth and certitude?”29
3.5 Em direção à matemática “segura”
Ao lado das inquietações a respeito do infinito, dos paradoxos e antinomias, algumas experiências no sentido
de explicar conceitos através de outros mais simples estimulavam os matemáticos, que viam nesses movimentos
o caminho para uma matemática segura, bem compreendida e livre de erros. Destacamos três, dentre os diversos
movimentos nesse sentido:
(i) Aritmetização da análise: Este movimento teve Martin Ohm (1792-1872) como precursor (BOYER,1991,p.388)
e Cauchy (1789-1857) e Bolzano (1781-1848) como protagonistas. Zumpano explica:30
A revisão consistia em demonstrar os resultados sem apelar para intuições geométricas espaciais. Para
isso seria necessário definir todos os conceitos aritmeticamente, encontrar uma linguagem adequada
para lidar com o infinito e determinar precisamente a noção de limite. Essa tarefa começa a ser feita pelo
matemático Francês Augustin L. Cauchy (1789-1857) na França e levada a cabo pela escola alemã na
segunda metade do século 19.
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
Cauchy definiu os conceitos de limite, funções, funções contínuas e convergência de séries e sequências infinitas.
Bolzano precedeu Cantor e Dedekind na concepção da noção abstrata de conjunto finito e infinito. Grande parte de sua
obra só foi publicada após a sua morte, como o livro Paradoxos do infinito, cuja publicação data de 1851.
(ii) Axiomatização da aritmética: Este movimento tem seu marco principal no ano de 1889, quando Guiseppe
Peano (1858-1932) publicou Princípios aritméticos: novo método de exposição, livro em que apresentou axiomas que
definiam o conjunto dos números naturais.31 Peano defendia a expressão de conceitos matemáticos através de um
sistema simples e preciso, a lógica matemática, que permitiria a exposição de forma clara, o rigor na apresentação dos
conceitos antes tomados como intuitivos e a simples dedução e manipulação de resultados.
(iii) Formalização da geometria: Coube a David Hilbert (1899) a tarefa de abordar a geometria com base em Os
elementos de Euclides para dar-lhe uma apresentação estritamente formal. Hilbert elegeu três noções básicas (ponto,
reta e plano) e seis relações (estar sobre, estar em, estar entre, ser congruente, ser paralelo e ser contínuo) como
primitivas (não definidas), e elaborou um conjunto de vinte axiomas que descreviam a geometria com o rigor procurado
na época.
3.6 Entre controvérsias logicistas e intuicionistas
Há apenas um ponto onde encontrei uma dificuldade. O colega diz que uma função
também pode actuar como elemento indeterminado. Eu acreditava nisto, mas agora esta
perspectiva parece-me duvidosa pela seguinte contradição. Seja w o predic do: para ser
predicado, não pode ser predicado de si próprio. Pode w ser predicado de si próprio?
A cada resposta o seu oposto segue-se. Portanto podemos concluir que w não é um predicado. Da mesma maneira, não existe nenhuma classe (como uma totalidade) de classe
que, sendo cada uma tomada como uma totalidade, não pertença a si própria. Disto
concluo que, sob certas circunstâncias, uma colecção definível não forma uma totalidade.
(Trecho da carta enviada por Russell a Frege em 16 de junho de 1902.)
A sua descoberta da contradição causou em mim a maior das surpresas e, poderia quase dizer, consternação, já que abalou a base sob a qual eu pretendia construir a aritmética. Parece,
então, que transformar a generalização de uma igualdade numa igualdade de seqüência-devalores [die Umwandlung der Allgemeinheit einer Gleichheit in eine Werthverlaufsgleichheit]
(§ 9 do meu Grundgesetze) nem sempre é permitido, que a minha Regra V (§ 20) é falsa, e
que as minhas explanações no § 31 não são suficientes para garantir que a combinação de
signos que proponho tem sentido em todos os casos. Tenho que reflectir mais no assunto.
(Trecho da resposta enviada por Frege a Russell em 22 de junho de 1902.)
O paradoxo de Russell, formulado em 1902 em carta32 a Frege, é um marco da abordagem logicista. Nessa época, Frege já se dedicava à tarefa de explicar a matemática em termos da lógica, e propunha um sistema de símbolos
capaz de expressar com precisão o processo de dedução lógica. A abordagem logicista da fundamentação matemática
baseava-se na ideia de que toda a matemática é consequência de princípios puramente lógicos, e procurava, através
da linguagem lógica formalizada, eliminar as definições circulares da matemática. Os logicistas sustentavam a visão
platonista que embute à matemática um caráter excepcional, com existência própria. André Leclerc explica e José
Saramago ilustra:
Existem coisas que não são objeto de nenhuma experiência sensível possível, e que não são elas mesmas
experiências; essas coisas não podem ser vistas, tocadas, ouvidas, cheiradas ou degustadas; além do mais,
essas coisas só podem ser apreendidas pelo intelecto, só podem ser conhecidas por uma intuição de um
tipo um pouco especial.33
[...] o número é de todas as coisas que há no mundo a menos exacta, diz-se quinhentos tijolos, diz-se quinhentos homens, e a diferença que há entre tijolo e homem é a diferença que se julga não haver entre quinhentos
e quinhentos, quem isto não entender à primeira vez não merece que lho expliquem segunda.34
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
239
Para Saramago, homens, tijolos e quinhentos possuem existência: são “coisas que há no mundo”. Ele considera
quinhentos a menos exata, possivelmente porque não pode ser vista, tocada, ouvida, cheirada ou degustada, como aponta
Leclerc. Aos que não possuem intuição de um tipo “um pouco especial”, Saramago recusa-se a repetir a explicação.
Sustentando que para todo conceito há uma existência associada, os logicistas se empenhavam então em
responder a pergunta levantada por Russell: “a que está associado o conceito ‘algo que não pertence a si próprio’”?
Porém, a alguns matemáticos, como Poincaré, a lógica se mostrava insuficiente para dar conta da fundamentação
da matemática. Necessitava-se de algo mais forte – a intuição. Poincaré, matemático preocupado com questões
epistemológicas da matemática, opôs-se ao programa logicista e estabeleceu bases para o programa intuicionista:35
“[...] para fazer aritmética, assim como para fazer geometria, ou para fazer qualquer ciência, é preciso algo mais que
a lógica pura. Para designar não temos outra palavra senão a intuição.”
Frontalmente opostos aos logicistas, os intuicionistas sustentavam a visão antiplatonista de que a matemática
é uma atividade humana, fundamentada em processos construtivos. Daí se justifica o nome da abordagem. Segundo
Paul Bernays: “[...] the basic ideas of intuitionism are given to us in a evident manner by pure intuition.”36 Assim, para
os intuicionistas, todo objeto matemático teria sua existência por construção, e não se admitiria na matemática processos (objetos) não construtivos. O conjunto dos números naturais, por exemplo, é tomado pelos intuicionistas não
como um objeto pronto – a série dos naturais –, mas como um processo que se desenrola indefinidamente. Nesses
termos, os intuicionistas pareciam negar grande parte da matemática usualmente aceita na época. Em termos lógicos,
negavam a lei do terceiro excluído (P ou não P), a lei da dupla negação (não não P equivale a P) e as provas por redução
ao absurdo. Nas palavras de Bernays: “But here one must abandon a number of the usual theorems, for example, the
fundamental theorem that every continuous function has a maximum in a closed interval. Very few things in set theory
remain valid in intuitionistic mathematics.”37
240
A controvérsia então se configurava em torno de questões como: possuem os números existência própria, e as
cadeias de símbolos apenas os representam, ou são os números as próprias cadeias de símbolos, obtidas através de
construções mentais? Jano Bifronte, personagem da mitologia romana, tudo sabe: conhece o que se passou e prevê
o que está por vir. Possui duas faces que falam ao mesmo tempo: a esquerda, que olha para o passado, enxerga a
ciência pronta; e a direita, que olha para o futuro, vê a ciência em construção. A face esquerda de Jano diria: os números possuem existência própria. A face direita diria: os números são as cadeias de símbolos que os representam.
Assim como as faces de Jano, Bernays admite a convivência das duas abordagens: “This suffices to show that the two
tendencies, intuitionist and platonist, are both necessary; they complement each other, and it would be doing oneself
violence to renounce one or the other.” Dentro desse cenário, segundo Leclerc,38 nesse texto de 1935, Paul Bernays
situa a abordagem formalista como conciliatória entre as duas tendências.
4. A máquina da abordagem formalista
Máquina, como o nome indica, é, antes de tudo, maquinação, estratagema, um tipo de
esperteza em que as forças usadas mantêm-se mutuamente sob controle, de tal modo que
nenhuma delas possa escapar do grupo.39
Ao abrir a caixa-preta da abordagem formalista e acompanhar o trabalho dos cientistas que nela atuaram, testemunhamos a construção da ciência como a máquina a que se refere Latour. Para entender o funcionamento da máquina
é preciso verificar quais são suas peças e compreender o papel que cada uma exerce na construção do fato/artefato.
Para compreender a abordagem formalista, consideramos questões como: em nome de quem/que falam os cientistas?
Quem são seus aliados? Como se fortalecem e sustentam suas verdades?
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
4.1 O matemático como porta-voz da natureza
O porta-voz é alguém que fala em lugar do que não fala.40
Vimos, na seção 3.5, algumas experiências no sentido de traduzir formalmente conceitos da matemática em
outros mais simples. Essas experiências bem-sucedidas pareciam indicar o caminho formalista, em que os objetos
matemáticos são meramente cadeias de símbolos: sua existência consiste na sua própria representação, sem o apelo
a interpretações, percepções humanas e noções de domínios de objetos matemáticos. Esse processo de abstração,
que Bernays destaca como o modo usual de se fazer matemática, consiste precisamente em operar com os símbolos
matemáticos desconectando-os de qualquer tipo de referente de existência concreta que a eles se possa associar
de forma específica. Desta maneira, os formalistas falavam em nome da natureza e diziam retratá-la como ela é, sem
interferências e subjetividades. Nas palavras de Hilbert:41
O instrumento que serve como intermediário entre teoria e prática, entre pensamento e observação, é a
Matemática. Ela constrói a ponte de ligação e consolida-a permanentemente. Daqui resulta que toda a
nossa cultura contemporânea, na medida em que assenta na compreensão e domínio da Natureza para
fins práticos, encontra os seus fundamentos na Matemática. Já dizia Galileu: “Só pode compreender a
Natureza quem esteja familiarizado com a sua linguagem e com os sinais com que ela nos fala”. Ora, esta
linguagem é a Matemática e estes sinais são as formas matemáticas.
4.2 Alistando aliados
Os cientistas e engenheiros falam em nome de novos aliados que conformaram e alistaram;
representantes entre outros representantes, com esses recursos inesperados, fazem o fiel
da balança de forças pender em seu favor.42
Matemáticos e filósofos sentiam-se incomodados com a existência de problemas cuja falsidade ou veracidade
não haviam sido provadas até então. A presença de problemas supostamente verdadeiros ou supostamente falsos
representava uma ameaça ao rigor matemático. “[...] Essa convicção da solubilidade de qualquer problema matemático
representa para nós um poderoso estímulo durante o trabalho; escutamos em nós a voz constante: “Esse é o problema,
procura a solução. Podes encontrá-la pelo pensamento puro, pois em matemática não existe nenhum ignorabimus!”43
Em 1900, Hilbert lançou em Paris, no Segundo Congresso Internacional de Matemáticos, um desafio aos matemáticos da época. Ele reuniu uma lista de 23 problemas em aberto e convocou uma união de esforços para que se
buscasse a solução daqueles problemas. Esse episódio é peça relevante na busca pela fundamentação da matemática
e evidencia o empenho de Hilbert em alistar aliados através de problemas até então não solucionados e controvérsias
entre cientistas. Dos 23 problemas, seis foram resolvidos entre 1900 e 1930,44 o que parecia indicar a força da estratégia
de Hilbert. Em 1923, Thoralf Skolem publicou um artigo que apresentava a fundamentação de parte da matemática
através de princípios finitários, reforçando a ideia de que a totalidade da matemática poderia ser alcançada da mesma
forma. A essa época, Hilbert havia proposto uma organização estratificada das funções, onde classificava como sendo
“do tipo 1” aquelas cujos argumentos e valores são números naturais. Cada tipo subsequente era formado pelas funções
com pelo menos um argumento do tipo precedente, através da aplicação das regras de composição e recursão sobre
membros dos tipos precedentes. Em 1928, Ackermann apresentou uma função capaz de ser calculada por mecanismos
finitários, mas que não era do tipo 1. Mostrou também que tal função poderia ser generalizada para os demais tipos da
hierarquia. O resultado de Ackermann povoou a construção de Hilbert e reforçou a necessidade de mecanismo mais
poderoso do que a recursão primitiva, utilizada até então, para alcançar a totalidade das construções finitárias.
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
241
4.3 Traduzindo interesses
Chamarei de tradução45 a interpretação dada pelos construtores de fatos aos seus interesses
e aos das pessoas que eles alistam.46
Cada matemático que se dedicava à solução de um problema em aberto, cada cientista devotado à formalização
de uma ideia intuitiva representava uma tradução de interesses, uma comunhão da proposta de Hilbert com as demais.
Com tantos aliados, fortalecia-se a abordagem formalista.
Em Bolonha, 1928, no Congresso Internacional de Matemáticos, Hilbert lançou o programa de Hilbert. Baseando-se
nas ideias do livro de Hilbert e Ackermann, Grundzüge der theoretischen logik, o programa propunha a formalização da
matemática visando garantir rigidez e solidez. Em termos gerais, a proposta era reduzir toda a matemática a manipulações reais e responder afirmativamente às seguintes questões: a matemática é completa? É consistente? É decidível?
Supunha-se que toda a matemática poderia ser expressa na lógica de primeira ordem e, por este motivo, o programa
adotava a lógica de primeira ordem como sistema formal.47
242
Dizemos que um sistema formal é completo quando, a todo enunciado verdadeiro expresso no próprio sistema,
cabe uma prova formalizada no sistema. A resposta afirmativa à primeira questão, portanto, significa que qualquer
enunciado matemático, expresso em lógica de primeira ordem, poderia ser provado na mesma lógica. A segunda
questão diz respeito à consistência: dizemos que um sistema formal é consistente quando não possibilita a derivação
do absurdo: um enunciado provadamente verdadeiro e falso. A terceira das questões passou a ser conhecida como
“o problema de decisão de Hilbert” (“Hilbert’s entscheidungsproblem”): encontrar um mecanismo genérico (e finitário!) que, ao considerar um enunciado qualquer formulado em lógica de primeira ordem, fosse capaz de verificar sua
validade ou não. Uma sentença é dita válida quando é verdadeira para qualquer possível interpretação dos símbolos
extralógicos que figuram nela própria. Davis afirma que, durante o congresso de Bolonha, Hilbert dirigiu essa questão
ao então doutorando Kurt Gödel.
Em Viena, 1929, em reação à provocação de Hilbert, Gödel provou que, em lógica de primeira ordem, a noção
de consequência semântica implica consequência sintática, ou seja, qualquer sentença verdadeira, em qualquer possível interpretação, pode ser demonstrada por meio das regras de manipulação sintática da lógica de primeira ordem.
O resultado disso foi o Teorema da completude da lógica de primeira ordem, tese de doutorado de Kurt Gödel (Über die
vollständigkeit des logikkalküls), defendida em 1930 sob orientação de Hans Hahn.
4.4 O aliado mais forte: a natureza!
Através das palavras do próprio Hilbert, ressaltamos, na seção 4.1, que os formalistas se colocavam como porta-vozes da natureza. Atribuíam à matemática o papel de linguagem da natureza, capaz de estabelecer a ponte entre
pensamento e observação. Mostramos também, na seção 3.5, que experiências bem-sucedidas de formalizações pareciam indicar que a proposta formalista caminhava na direção correta. Por fim, adicionamos a esse panorama os avanços
da ciência moderna. Toda essa conjuntura parecia indicar que a própria natureza se apresentava como forte aliada de
Hilbert, confirmando seus resultados, expressando-se matematicamente e impulsionando a abordagem formalista.
4.5 Encerrando a caixa preta
Não devemos dar crédito àqueles que hoje adoptam um tom filosófico e um ar de superioridade para profetizarem o declínio da cultura científica e se comprazerem com o
ignorabimus.48
Até 1930, grande parte da comunidade matemática mundial acreditava na existência de uma matemática se-
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
gura, finitária, provadamente correta e livre de imprecisões. Em 11 de junho de 1930, o jovem matemático Jacques
Herbrand defendeu sua tese de doutorado, Recherches sur la théorie de la démonstration, onde propôs um mecanismo
de redução de provas da lógica de primeira ordem a provas na lógica sentencial (teorema de Herbrand). Herbrand deu
prosseguimento aos seus estudos em cooperação com von Neumann, e pretendia publicar, em 1931, um trabalho
promissor no contexto do programa de Hilbert: a prova da consistência de um fragmento da aritmética.49
Sossegado em relação ao destino da Matemática, em discurso radiofônico no dia 8 de setembro de 1930, evocando
Galileu, Kant, Gauss, Kronecker, Tolstoi, Poincaré e Königsberg, Hilbert anunciou a sua aposentadoria e mais uma vez
expôs, em linguagem acessível ao público em geral, as bases da proposta formalista. Hilbert aposentado... matemáticos
empenhados na prova de problemas em aberto... Estava encerrada a caixa-preta da abordagem formalista!
5. Reabrindo a caixa-preta
Como é possível ter domínio sobre o destino futuro de uma afirmação que é resultado do
comportamento de todos esses aliados infiéis? Essa questão é a mais difícil de todas, pois
todos os atores estão fazendo alguma coisa com a caixa-preta. Mesmo na melhor das hipóteses, eles não a transmitem pura e simplesmente, mas acrescentam elementos seus ao
modificarem o argumento, fortalecê-lo e incorporá-los em novos contextos.50
No período próximo à aposentadoria de Hilbert, a escola formalista apresentava-se em momento de aparente
estabilidade. No entanto, no seio da própria abordagem, surgiram questões que abalaram os alicerces do pensamento
formalista e reabriram as discussões a respeito da estratégia de Hilbert. Latour explica: os atores não transmitem,
pura e simplesmente, a caixa-preta, mas acrescentam elementos seus. Nesse processo, muitas vezes compromissos
se desfazem, e traduções dão lugar a traições.51 No que se segue, acompanhamos a reabertura da caixa-preta da
abordagem formalista, ou seja, a nova contingência que levou matemáticos a repensarem a abordagem.
5.1. Enredamento!... E controle?
Em primeiro lugar, é preciso alistar outras pessoas para que elas acreditem na caixa-preta,
para que a comprem e disseminem no tempo e no espaço; em segundo lugar é preciso
controlá-las, para que aquilo que elas adotam e disseminam permaneça mais ou menos
inalterado.52
As experiências bem-sucedidas de formalização; os vinte e três problemas em aberto escolhidos por Hilbert; a
mobilização dos matemáticos; e agora, a prova do teorema da completude. Cada um desses elementos representava
uma engrenagem a mais na construção da máquina sustentadora da abordagem formalista. Para o sucesso da abordagem, era essencial a cooperação, a atuação em rede, a ação harmônica de todos os aliados em prol do objetivo
comum: a busca pela matemática segura. Mas por quanto tempo seria possível manter os aliados convencidos do
objetivo comum?
5.2 A traição da natureza
[...] Em seu diário, Petros assinala a data exata com um comentário lacônico, a primeira e
última referência cristã que encontrei em suas anotações: “17 de março de 1933. Teorema
de Kurt Gödel. Que Maria, Mãe de Deus, tenha piedade de mim!”53.
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
243
Hilbert, bem como toda a comunidade matemática, foi surpreendido em 1930/31 pela publicação dos teoremas
da incompletude de Gödel. Estes jogaram por terra as duas primeiras questões do programa de Hilbert, e fizeram-no
retornar de sua aposentadoria para repensar as bases matemáticas. Os resultados de Gödel, publicados em “Über formal
unentscheidbare sätze der Principia Mathematica und verwandter systeme”,54 afetaram também os matemáticos da
época que se dedicavam a problemas em aberto, como ilustra Doxiadis: “[...] A partir de agora, para cada enunciado
ainda indemonstrado, teremos que perguntar se pode ser um caso da aplicação do Teorema da Incompletude... Toda
hipótese ou conjectura importante pode ser indemonstrável a priori! A afirmação de Hilbert, ‘na matemática não existe
ignorabimus’, não se aplica mais; o chão que nós pisávamos foi retirado dos nossos pés!”55
Os teoremas de Gödel focalizam sistemas formais expressivos o suficiente para conter a teoria dos números e
enunciam (em versão informal): (1) Todo sistema formal é incompleto; ou seja, há sempre um enunciado sabidamente
verdadeiro, que pode ser expresso no sistema, mas cuja prova não pode ser construída no próprio sistema; (2) o enunciado que declara a consistência de um sistema não pode ser provado no próprio sistema.
O primeiro teorema de Gödel mostrou à comunidade matemática da época que a busca pela solução de alguns
dos problemas relacionados por Hilbert poderia ser inútil. O segundo teorema foi de encontro à formalização da matemática. Demonstrar a consistência da matemática como sistema formal implicaria uma circularidade: usar a matemática
para provar a consistência dela própria. Os dois teoremas respondiam negativamente às duas primeiras questões do
programa de Hilbert: qualquer sistema formal expressivo o suficiente para conter a teoria dos números não pode ser ao
mesmo tempo completo e consistente. No trecho de sua carta a Claude Chevalley transparece o desabafo de Herbrand:
“Excuse this long beginning; but all of this has been haunting me, and by writing about it I exorcise it a little.”56
A divulgação dos teoremas de Gödel causou uma enorme angústia na comunidade matemática. O resultado foi
oficialmente publicado em 1931,57 mas antes disso, em 1930, Gödel já havia comentado a respeito do primeiro teorema
em encontros do Círculo de Viena, do qual participava von Neumann.58
244
5.3 A reação dos formalistas
O primeiro teorema de Gödel colocava em cheque a dimensão do programa finitista, despertou grande interesse
em von Neumann e, por conseguinte, em Herbrand. Gödel, em um primeiro momento, considerava que seu resultado
não contradizia o programa de Hilbert, visto que haveria sempre a possibilidade de apelar a um sistema formal mais
forte para alcançar enunciados não provados. Hilbert e Bernays se empenhavam em minimizar o impacto dos teoremas
de Gödel, justificando a continuidade do programa formalista: tomavam o resultado de Gödel como um indicativo da
necessidade de buscar novos métodos para gerar provas finitárias amplamente aplicáveis.59
Entretanto, von Neumann rejeitou enfaticamente os argumentos iniciais de Gödel. Herbrand, preocupado com
a extensão de seus resultados apresentados em “Sur la non-contradiction de l’arithmétique”, que seria publicado em
breve, enviou a Gödel, em 7 de abril de 1931, uma carta em que desenvolvia argumentos em concordância com os de
von Neumann. Herbrand não chegou a ler a resposta enviada por Gödel em 25 de julho, pois faleceu precocemente ao
escalar os Alpes franceses em 27 de julho. A morte prematura de Herbrand abriu espaço a discussões sobre a autoria
da definição de recursividade geral. Alguns autores, inclusive Gödel, atribuem à argumentação de Herbrand a essência
da definição de recursividade: “In the lectures60 Gödel advances an idea of Herbrand about the most general form of
recursion.”61 Sieg contradiz, afirmando:
There is a bit of mystery surrounding this private communication. Jean van Heijenoort queried Gödel in
1963 about his remark, in part because there was a discrepancy between Gödel’s report on Herbrand’s
suggestion and Herbrand’s published remarks on related issues. Gödel responded that the suggestion
had been communicated to him in a letter of 1931, and that Herbrand had made it in exactly the form
in which his lecture notes presented it. But Gödel was unable to find Herbrand’s letter among his papers.
John Dawson discovered the letter in the Gödel Nachlass in 1986, and it became clear that Gödel had
misremembered.62
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
5.4 Como no quadro de Velázquez...
Sob um olhar platônico, em que os objetos matemáticos têm sua própria existência, ou na visão formalista,
em que objetos matemáticos são as próprias cadeias que os representam, a natureza (os objetos matemáticos), até
então aliada de Hilbert, parecia, nesse momento, revelar-se de modo oposto, sustentando os teoremas de Gödel, que
invalidavam o programa de Hilbert. Afinal, de que lado estava a natureza? De um lado ou de outro, a natureza não
explicaria a controvérsia, pois era ela, própria natureza, o cerne da questão: buscava-se a verdadeira matemática, a
matemática da natureza.63 Para resolver controvérsias a respeito da Matemática, os cientistas necessitavam lançar
mão de representações (definições matemáticas).
Voltamos então ao problema da representação, ou definição matemática, comentado na seção 2 e ilustrado
no quadro de Velázquez, As meninas. Numa cadeia infinita de representações e re-representações, o que vem a
ser a realidade? Qual das representações é fiel à realidade? Realidade e ilusão que se (con)fundem, como mostra
Ferreira Gullar:64
As meninas
Ferreira Gullar
O quadro está de costas e está de frente: de costas para você (que o vê por trás ao lado esquerdo) e de
frente para Velázquez que o pinta. Mas a verdade é que está de frente para você e já pintado. Aliás, desde
1656. Não obstante, Velázquez (você o vê) o está pintando.
Aparentemente, você está atrás do quadro e de frente para o pintor, que tem ao lado o seu motivo: a princesa
e as damas de companhia, que ele pinta. Mas não as pinta diretamente: pinta a imagem delas refletida
no espelho -um espelho que não se vê, de cuja existência se sabe apenas pelas coisas que reflete: o pintor,
as meninas e as mulheres, o cão e também, lá no fundo, um homem que se detém numa escada; ao seu
lado, refletidas noutro espelho pequeno, as imagens do rei e da rainha, que entraram na sala, no outro
extremo do aposento, fora de nossa vista.
Assim, o quadro contém o que se vê e o que não se vê, num jogo de espelho e de espaços e tempos. É o quadro dentro do quadro, imagens de imagens. Realidade e ilusão que se confundem. Miragem, pintura...
Um momento da vida, mínimo episódio da história humana - pessoas que, numa sala, posam para um
pintor que as retrata - ali na Espanha, num certo dia do século XVII. E parece uma visão irreal esta cena
real (com sua luz doce) que Velázquez fixou na tela para sempre. Mas que, na vida, se desfez naturalmente
em seguida, como qualquer outra, entre palavras e risos talvez.
5.5 Os teoremas de Gödel
[...] It is reasonable therefore to make the conjecture that these axioms and rules of inference65
are also sufficient to decide all mathematical questions which can be formally expressed in
the given systems. In what follows it will be shown that this is not the case, but rather that
in both of the cited systems, there exist relatively simple problems of the theory of ordinary
hole numbers which cannot be decided upon the basis axioms.66
Na citação acima, Gödel afirma a existência de enunciados relativamente simples sobre um sistema, que todavia
não podem ser provados no próprio sistema. Sua prova implica o uso de mecanismos externos ao sistema, a respeito
dos quais o enunciado não se refere. Esses mecanismos adicionais evitam a autorreferência e desfazem a confusão
entre linguagem e metalinguagem. Uma breve análise do paradoxo de Richard, que serviu de intuição a Gödel nos
teoremas da incompletude, permite verificar esses elementos.
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
245
5.6 O paradoxo de Richard
Considere que todas as propriedades de números possam ser expressas em português (em alguma língua natural) a partir de alguns conceitos básicos, como o de números inteiros, soma, produto, quociente, divisível, etc. Por
exemplo, poderíamos definir a propriedade de ser par como “divisível por dois”. Considere uma classificação dessas
expressões por ordem de tamanho e, para expressões do mesmo tamanho, por ordem alfabética. Considere ainda
uma enumeração dessas expressões: a menor expressão receberá o número 1, a imediatamente a seguir receberá o
número 2 e assim por diante. Diremos que um número é richardiano se ele NÃO possui a propriedade denotada por
ele. Por exemplo: suponha que 15 é o número associado à expressão “é primo”. Então 15 é richardiano, pois 15 não é
primo. Seja N o número correspondente à expressão “é richardiano”. Pergunta-se: N é richardiano? (1) Supondo que N
é richardiano, concluímos, pela definição da propriedade “richardiano”, que N não possui a propriedade denotada por
ele. Sendo assim, N não é richardiano. (2) Supondo que N não é richardiano, concluímos, pela definição da propriedade
“richardiano”, que N possui a propriedade denotada por ele. Sendo assim, N é richardiano.
O paradoxo de Richard67 pode ser tomado como um bom ponto de partida para abordar os teoremas de Gödel,
pois ilustra de maneira informal a estratégia formalizada por Gödel na prova de seus teoremas. Assim como o paradoxo
de Russell, o paradoxo de Richard se apóia na autorreferência (ii) e na confusão proposital em que se estabelece ao se
considerar a linguagem (a matemática) e a metalinguagem (a metamatemática) no mesmo patamar (i), e são citados,
pelo próprio Gödel, como analogias evidentes à sua estratégia. O paradoxo de Richard ilustra a técnica da diagonalização
comentada nas seções 2 e 3.2. A seguir, evidenciamos, no paradoxo, os elementos destacados:
246
(i) A confusão proposital entre matemática e metamatemática. A matemática se faz presente no paradoxo através
dos números, por exemplo, 1, 2 etc., e operações sobre números, por exemplo, 2+3, 2*3 etc. A metamatemática
consiste na formulação de propriedades a respeito da matemática, por exemplo: “p é a menor prova de que n é primo”.
Observe a definição de número richardiano: um número é richardiano se ele NÃO possui a propriedade denotada por
ele. Nela, matemática e metamatemática aparecem lado a lado.
(ii) A autorreferência. A autorreferência aparece no paradoxo produzindo quando se tenta aplicar ao número
que denota uma certa propriedade a propriedade denotada por ele: Seja N o número correspondente à expressão “é
richardiano”. Pergunta-se: N é richardiano? Como a propriedade em questão é propositalmente negativa, a aplicação
afirmativa da mesma produz a contradição. O paradoxo de Russell (ou o paradoxo do Barbeiro de Sevilha) é construído
sobre esses mesmos elementos.
Além das duas questões destacadas acima, esse paradoxo também se utiliza do artifício da enumeração.
A enumeração de Richard é vaga e informal. Gödel desenvolveu um processo preciso de enumeração.
6. A fundamentação da matemática e a nova conjuntura
O destino de fatos e máquinas está nas mãos dos usuários68 finais; suas qualidades, portanto, são consequência, e não causa, de uma ação coletiva.69
Ainda que sob o impacto dos teoremas de Gödel, prosseguiram, nos anos seguintes, as iniciativas relativas à
fundamentação da matemática no sentido de justificar a continuidade do programa de Hilbert em meio ao impacto dos
teoremas de Gödel (seção 6.1). Ao mesmo tempo, discutia-se a adequabilidade de diversas definições para abraçar
aquilo que se considerava “preciso”, “mecânico”. Essas definições, por exemplo, a máquina de Turing e a calculabilidade efetiva, embora extensionalmente equivalentes, mostravam-se diferentes na forma e nas estratégias de onde se
originaram, e portanto, a preferência por um ou outro formalismo dependia de fatores extramatemáticos.
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
6.1 Novas alianças, novas traduções
The truth is that the mathematical sciences are growing in complete security and harmony.
[...]. It is only from the philosophical point of view that objections have been raised.70
Em seu artigo de 1935, Bernays procurou isolar na filosofia as dificuldades da matemática. Retomou o programa
de Hilbert, situando Ackermann, von Neumann, Skolem, Herbrand e Gödel como colaboradores. Sob o olhar de Bernays,
os resultados de Gödel, longe de representarem o fim do programa formalista, forneciam, na verdade, uma luz em
direção à prova da consistência:
Light was shed on this situation by a general theorem of Gödel, according to which a proof of the consistency
of a formalized theory cannot be represented by means of the formalism considered. From this theorem,
the following more special proposition follows: It is impossible to prove by elementary combinatorial methods the consistency of a formalized theory which can express every elementary combinatorial proof of
an arithmetical proposition.71
Em 1936, Gerhard Gentzen apresenta uma prova da consistência da aritmética utilizando indução transfinita.
O resultado de Gentzen abriu uma nova perspectiva para o programa formalista, desembocando em uma nova área de
estudos da lógica: a teoria da prova. Essencialmente sintática, a teoria da prova assume provas como objetos formais
e, através da manipulação matemática, procura obter certas propriedades, como a existência de provas canônicas
(simples) e sua relação com computação (isomorfismo Curry-Howard). Gentzen morreu de fome na prisão, em Praga,
aos 36 anos, em 4 de agosto de 1945.72
6.2 O que é computabilidade (ou calculabilidade efetiva)?
A definição e o que se quer definir!
Em particular, os resultados de Gödel sensibilizaram Alan Turing, estudante de graduação em Cambridge. Turing
graduou-se no ano de 1934. Em 1935, assistiu a um curso ministrado por Max Newman, em Cambridge, sobre os
fundamentos da matemática, onde foram abordados o programa de Hilbert e os teoremas de Gödel. Em 1936, Turing
publicou On computable numbers, with an application to the entscheidungsproblem, que introduzia a noção de computabilidade. Nesse artigo, apresentou uma “máquina” hipotética através da qual define o computável, inspirando-se em
uma representação idealizada dos processos efetuados pelos humanos ao computar um número.
We may compare a man in the process of computing a real number to a machine which is only capable of a
finite number of conditions q1, q2, ..., qR which will be called “m-configurations”. The machine is supplied
with a “tape”, (the analogue of paper) running through it, and divided into sections (called “squares”) each
capable of bearing a “symbol”. At any moment there is just one square, say the r-th, bearing the symbol
S(r) which is “in the machine”.73
No mesmo ano, um pouco antes de Turing, Alonzo Church publicou An unsolvable problem of elementary number
theory74 que, através de um formalismo matemático, se dedicava ao problema de tornar precisa a calculabilidade efetiva.
“The purpose of the present paper is to propose a definition of effective calculability which is thought to correspond
satisfactorily to the somewhat vague intuitive notion in terms of which problems of this class are often stated [...].”75
De modo geral, considerava-se efetivo algum mecanismo M que fosse definido por um conjunto finito de instruções,
sendo cada instrução precisa e descrita de maneira finita. Além disso, para serem efetivos, cada instrução de M, e o
próprio M, precisariam terminar seu cálculo em tempo finito. Em outras palavras, a calculabilidade efetiva seria caracterizada por não requerer insight, inteligência, criatividade. Os termos “preciso”, “insight”, “inteligência”, “criatividade”
demonstram o caráter intuitivo (essencialmente humano para muitas abordagens disciplinares) que se tem em questão:
qualquer tentativa de explicar o conceito de calculabilidade efetiva termina por empregar alguma noção intuitiva.
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
247
Embora reconhecendo o aspecto intuitivo inerente ao conceito, os estudos de Church eram completamente
desvinculados da motivação de Turing de “reproduzir o mecanismo de um homem computando”. Por volta de 1930,
Church e seu aluno Kleene procuravam uma formalização adequada para a teoria dos inteiros positivos, propondo então
o λ-cálculo. Kleene mostra, em sua tese de doutorado A theory of positive integers in formal logic (1934), que uma parte
significativa da teoria dos inteiros positivos poderia ser representada em λ-cálculo. No artigo de 1936, em nota de pé
de página, Church esclarece questões de autoria76 e afirma que, pela primeira vez, identificava-se, isto é, tornavam-se
equivalentes, o λ-cálculo e a calculabilidade efetiva, o que, mais tarde, veio a ser conhecido como “tese de Church”:
As will appear, this definition of effective calculability can be stated in either of two equivalent forms, (1)
that a function of a positive integers shall be called effectively calculable if it is λ-definable in the sense
of §2 below, (2) that a function of positive integers shall be called effectively calculable if it is recursive
in the sense of §4 below. The notion of λ-definability is due jointly to the present author and S. C. Kleene,
successive steps towards it having been taken by the present author in the Annals of Mathematics, vol 34
(1933), p. 863, and by Kleene in the American Journal of Mathematics, vol 57 (1935), p. 219. The notion
of recursiveness in the sense of §4 below is due jointly to Jacques Herbrand and Kurt Gödel, as is there
explained. And the proof of equivalence of the two notions is due chiefly to Kleene, but also partly to the
present author and J. B. Rosser, as explained below. The proposal to identify these notions with the intuitive
notion of effective calculability is first made in the present paper.77
Apesar das diferenças entre as estratégias, as duas abordagens – a de Turing e a de Church – justificavam-se no
mesmo cenário: a fundamentação da matemática. Turing mostrou, no artigo de 1936, que as duas definições alcançam
o mesmo objeto: “In a recent paper Alonzo Church has introduced an idea of “effective calculability”, which is equivalent
to my “computability”, but is very differently defined.”78
248
6.3 Calculabilidade efetiva e o problema de decisão de Hilbert
O programa de Hilbert, proposto em Bolonha em 1928, consistia, como já vimos, em três questões a respeito da
matemática: É consistente? É completa? É decidível? Já comentamos que os teoremas de Gödel responderam negativamente às duas primeiras questões ao afirmar que a completude de um sistema formal acarretaria sua inconsistência.
A terceira das questões do programa de Hilbert, o “problema de decisão de Hilbert” (“Hilbert’s entscheidungsproblem”),
consistia em encontrar um mecanismo genérico, expresso por meios finitos, que, ao considerar um enunciado qualquer
formulado em lógica de primeira ordem, fosse capaz de verificar, em tempo finito, sua validade ou não. Turing se utilizou
da técnica da diagonalização e de sua definição de máquina universal, e dedicou uma seção de seu artigo “On computable
numbers, with an application to the entscheidungsproblem” a responder negativamente a essa questão: “The results
of §8 have some important applications. In particular, they can be used to show that the Hilbert Entscheidungsproblem
can have no solution.” Church referiu-se ao problema de decisão de Hilbert e justificou, em termos do sistema formal
proposto, a inexistência de tal mecanismo genérico.79 Assim, Turing e Church atacaram a terceira questão levantada por
Hilbert. Iniciou-se uma nova era, onde problemas não solucionados se confundiam com problemas não solucionáveis
efetivamente, sem que houvesse mecanismo efetivo que permitisse distinguir uns dos outros.
6.4 Enfim, a realidade!
Realidade, como indica a palavra latina res, é aquilo que resiste. Mas resiste a quê? Ao
teste de força. Se, em dada situação, nenhum discordante é capaz de modificar a forma
de um objeto novo, então sim, ele é realidade, pelo menos enquanto os testes de força não
forem modificados.80
Terá a definição alguma relação direta com a existência daquilo que é definido? Reportando-se a Aristóteles, Jaqueline Engelmann81 refere-se a dois momentos da definição: o do fim da ciência e o do princípio da demonstração:
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
Ora, fica claro, através desta passagem82 que a definição figura como um passo posterior em relação à
existência. Define-se depois de conhecida a existência. Porém, não contradiz isso o que foi dito acima83?
De fato não, pois por um lado deve-se lembrar que foi feita acima a distinção entre a definição como
fim da ciência e como princípio da demonstração. Da primeira perspectiva, a existência está antes de
alcançar a definição; mas da segunda perspectiva, primeiro está a definição e depois a demonstração de
existência do definido.84
Jano Bifronte possui faces que falam juntas. Por vezes, dizem coisas contraditórias: a face esquerda enuncia a
ciência pronta, encerrada como uma caixa-preta; a face direita enuncia a ciência em ação e acompanha, passo a passo,
a sua construção. Diria a face esquerda de Jano “Define-se depois de conhecida a existência”. Diria a face direita:
“primeiro está a definição e depois a demonstração de existência do definido”. Sob os olhares de Jano, tomamos o
computável, ao mesmo tempo, como causa e consequência da máquina de Turing. Sabendo da equivalência extensional
entre as definições de Turing e Church, tomamos também o computável como causa e consequência da calculabilidade efetiva de Church. Cabe, no entanto, indagar: estariam Turing e Church equivocados com relação ao “verdadeiro”
computável? “[...] It [a tese/definição de Church] is a bridge between the mathematics and the philosophical problems
that generated mathematics. Weather it is the right bridge is the question.”85
Na impossibilidade de verificar se essas definições efetuam de maneira correta a ponte entre a matemática e os
problemas filosóficos que geraram a matemática, tomamos, ao menos, evidências que apontam nessa direção. Essas
evidências estão expressas no fato de que diversas tentativas de formalizar o mesmo conceito resultaram em classes
equivalentes de funções. Carnielli e Epstein se referem a elas como: “The Most Amazing Fact: All the attempts at
formalizing the intuitive notions of computable function yield exactly the same class of function.”86
Notas e referências bibliográficas
Isabel Cafezeiro é doutora em Informática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, professora do Instituto de Computação da Universidade Federal
Fluminense. E-mail:
[email protected]
Edward Hermann Haeusler é doutor em Informática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, professor do Departamento de Informática – Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail:
[email protected]
Henrique Luiz Cukierman é doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor adjunto da UFRJ, onde atua na graduação
do curso de Engenharia de Computação e Informação e nas pós-graduações do Programa de Engenharia de Sistemas da COPPE/UFRJ e do Programa de História
das Ciências e das Técnicas e Epistemologia. Publicou em 2007 o livro Yes, nós temos Pasteur – Manguinhos, Oswaldo Cruz e a história da ciência no Brasil, editado
pela Relume Dumará/FAPERJ. E-mail:
[email protected]
Ivan da Costa Marques é mestre e doutor pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Pós-doutorado no Departamento de História (History Studies Committee) da New
School for Social Research, Nova York, como Visiting Research Fellow de 1990 a 1992. Só durante esse período começou a perceber que o espaço aparentemente
misterioso e deserto entre as ciências naturais (colocando aí a matemática em destaque) e as ciências sociais pode ser entendido e habitado por mil entidades,
mediante epistemologias e ontologias adequadas. Publicou em 1998 o livro O Brasil e a abertura dos mercados – o trabalho em questão, editado pela Contraponto
(2ª edição). Professor Associado (DCC e HCTE / UFRJ). E-mail:
[email protected]
1 Para isto, sugerimos CARNIELLI, W.; EPSTEIN, R. Computability, computable functions, logic, and the foundations of mathematics. Belmont, CA:
Wadsworth Ed, 2a edição, 2000; que apresenta a linha do tempo da computabilidade.
2 Sobre manifestações de Hilbert a respeito da política de sua época, ver
WEYL, H. David Hilbert and his Mathematical work. Bull. Amer. Math. Soc.
v. 50, n. 9 , 1944, p. 612-654: “Hilbert was singularly free from national
and racial prejudices; in all public questions, be they political, social or
spiritual, he stood forever on the side of freedom, frequently in isolated
opposition against the compact majority of his environment. He kept his
head clear and was not afraid to swim against the current, even amidst the
violent passions aroused by the first world war that swept so many other
scientists off their feet.” (p. 612)
3 Retomamos, aqui, o termo catástrofe, usado por Hermann Weyl, discípulo
de Hilbert, ao se referir ao impacto causado pelas ideias de Gödel ao
Programa de Hilbert. WEYL, op. cit.
4 KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora
Perspectiva, Coleção Debates, 9a edição, 200, p. 21
5 LAW, J. Traduction/Trahison: Notes on ANT, Centre for Science Studies,
Lancaster University, Lancaster LA1 4YN, 1977. Disponível em: http://
redalyc.uaemex.mx/pdf/105/10504204.pdf
6 Soare coloca em termos técnicos: “Some have cast doubt on Turing’s
Thesis on the grounds that there might be physical or biological processes
which may produce, say, the characteristic function of the halting problem.
It is possible that these may exist (although there is presently no evidence)
but if so, this will have absolutely no effect on Turing’s Thesis because they
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
249
will not be algorithmic or mechanical procedures as required in §2.1 and
in Turing’s Thesis.” SOARE, R. I. Computability and recursion. Bulletin of
Symbolic Logic. p. 284-321, 1996, p. 13.
7 TURING, A. On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem. Proceedings of the London Mathematical Society, Series 2,
n.42, 1936, p. 230-265.
8 Ibid.
9 LATOUR, B. Ciência em ação. Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Ed Unesp, 1998, p. 14.
10 O termo “finitário” diz respeito a mecanismos que conduzem a um objetivo
em tempo finito, em um número finito de passos.
11 Nos referimos ao declínio da abordagem formalista como corrente de
fundamentação da matemática nos termos propostos por Hilbert. Cabe
mencionar que, em outros campos, por exemplo, na Educação Matemática,
o formalismo tomou um rumo diverso, fortalecendo-se a partir da obra de
Bourbaki e estendendo-se pelo século XX no movimento da Matemática
Moderna. No Brasil, em meio ao regime ditatorial, esse movimento foi
institucionalizado através do acordo MEC USAID (United States Agency for
International Development), que visava aperfeiçoar o modelo educacional
brasileiro sob assessoria norte-americana. A seção 6.1 comenta um outro
desdobramento da abordagem formalista: a Teoria da Prova.
12 LATOUR, op. cit., Primeira Regra Metodológica.
13 BORGES, J. L. O livro de areia. Contos. São Paulo: Ed Globo, Brasil, 1999.
14 BOYER, C. B. História da matemática. São Paulo: Editora Edgadr Blücher
LTDA, 1991, p. 8.
15 GOODSTEIN, R. L. Constructive formalism: essays on the foundations of
mathematics. Leicester: University College, 1951.
32 A tradução das cartas para o português (de Portugal) foram obtidas em
http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/fregerussel/
russeltofrege.htm, julho 2008, onde consta a fonte: HEIJENOORT, J. From
Frege to Gödel. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press,
1967, p. 124-125.
33 LECLERC, A. Platão hoje. Princípios, Natal, v. 4, n. 6, 1998, p. 34.
34 SARAMAGO, J. Memorial do convento. Romance. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1999.
35 POINCARÉ, H. O valor da ciência. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 2007,
p. 18.
36 Paul Bernays reproduz, neste trecho, justificativas de Brouwer à abordagem
intuicionista. BERNAYS, P. Platonism in mathematics. 1935. Bernays Project,
texto 13. Consultado em julho 2008. Disponível em: http://www.phil.cmu.
edu/projects/bernays/Pdf/platonism.pdf
37 Ibid.
38 LECLERC, op. cit.
39 LATOUR, op. cit., p. 212.
40 Ibid., p. 119.
41 HILBERT, D. Discurso radiofônico ministrado por ocasião de sua
aposentadoria, em Koenigsberg, 8 de setembro de 1930. Traduzido por L.
Fraser Monteiro, Departamento de Física, Universidade Nova de Lisboa,
Portugal.
42 LATOUR, op. cit., Segundo princípio.
17 BOYER, op. cit., p. 392.
43 HILBERT, D. Mathematische Probleme. Göttinger Nachrichten (Nachrichten
der Königlichen Gesellschaft der Wissenschaften zu Göttingen),
mathematisch-physikalische Klasse 1900, Heft 3, p. 253-297 (traduzido por
Marcelo Papini em http://www.mat036.ufba.br/HILBERT1.pdf).
18 Book 1, Common notion 5. Versão digitalizada disponível em: http://aleph0.
clarku.edu/~djoyce/java/elements/elements.html (fev 2008).
44 Os problemas 3, 9, 17, 22 até 1928 e os problemas 15 e 19 entre 1929 e
1930.
19 AMADEI, F. L. O infinito. Um obstáculo no estudo da matemática. 111f.
Dissertação (Mestrado em Educação Matemática). PUC – São Paulo, 2005,
p. 30.
45 Traduzido como “translação” em LATOUR, op. cit.
20 Título da Tese de Doutorado de Cantor, em 1867.
47 Para uma brevíssima apresentação da Lógica de Primeira Ordem, transcrevemos um trecho de DAVIS, M. Is mathematical insight algorithmic?
Behavioral and Brain Sciences, v.4, n.13, 1990, p. 659-660: “This [The First
Order Logic] is just the formal system which embodies the elementary classical logic of and, or, not, implies, all, there exists. In a precise formulation
of first order logic, it is necessary to explain when some particular formula
F is to be taken to be a logical consequence of a set of formulas (“premises”) Γ. This can be done in two essentially different ways: semantically
and syntactically. In the semantic version, F is a logical consequence of Γ
if F is true no matter how the extra-logical symbols appearing in F and Γ
are interpreted, so long as all the formulas in Γ are true under that same
interpretation. (Metaphorically: F is true in every Platonic world in which the
formulas of Γ are true.) In the syntactic version, “rules of proof” involving
the straightforward manipulation of symbols are specified, and F is said to
be a logical consequence of Γ if F can be obtained from Γ by some finite
number of applications of those rules [...].”
16 Stetigkeit und irrationale Zahlen, 1872.
250
S de números contém o zero e também o sucessor de todo número de S,
então todo número está em S.” BOYER, op. cit., p. 415.
21 ZUMPANO, A. Os limites da matemática clássica. Ciência Hoje, v.29 n.171,
maio 2001, p. 77-79.
22 A tradução do texto de Cantor foi extraída de JUNIOR, W. G. N. O Infinito
contado por Deus. Uma interpretação dedekindiana do conceito de número
ordinal transfinito de Cantor. 168f. Tese (Doutorado em Filosofia), PUC,
Rio de Janeiro, 2006, p. 31, sobre o original: CANTOR, G. Beiträge zur
Bergrundung der Transfiniten Mengelehre. Contributions to the founding of
the Transfinite Numbers. New York: Dover Publications, 1941.
23 Ao provar que um ponto representado em um espaço de qualquer dimensão
pode ser perfeitamente representado em um segmento de reta, Cantor
escreve carta a Dedekind e desabafa: “Vejo-o, mas não acredito”. JUNIOR,
op. cit., p. 24.
24 BOYER, op. cit., p. 394-39.
25 HILBERT, D. On the infinite. Discurso proferido na cidade de Münster em
1925. Transcrição em CARNIELLI, op. cit.
46 Ibid., p.178
48 HILBERT, op. cit., 1930.
49 Publicado postumamente em 1931: Sur la non-contradiction de
lárithmétique. Journal für die reine und angewandte Mathematik, vol 166
(1931), p. 1-8.
26 Ibid.
27 Ibid.
28 A seção 3.6 apresenta o paradoxo nas palavras de Russell, em carta
enviada a Frege.
29 Ibid.
30 ZUMPANO, op. cit., p. 79.
31 São eles: “(1) Zero é um número. (2) Se a é um número, o sucessor de a
é um número. (3) Zero não é sucessor de um número. (4) Dois números
cujos sucessores são iguais são eles próprios iguais. (5) Se um conjunto
50 LATOUR, op. cit., p. 171.
51 Sobre traduções e traições: “So that is traduction, a similarity. But trahison,
difference, is not far behind. And the difference has to do with the form of
ontology being performed. We started, I think, with the assumption that
coherent realities might be performed and discovered. With its attempt to
draw things together, to centre them. But the pull to the centre has become
more and more difficult to sustain. Traduction has given way to trahison. And
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010
ontological centring to practices of ontological choreography; ontological
ambivalences, and finally to ontological patchwork.” LAW, op. cit.
81 ENGELMANN, J. Teoria da definição. Das definições reais às definições
predicativas. Tese (Doutorado em Filosofia), PUC-Rio, 2006.
52 LATOUR, op. cit., p. 199.
82 ARISTÓTELES. Segundos analíticos II 1, 89b.
53 DOXIADIS, A. Tio Petrus e a conjectura de Goldbach. Editora Faber and
Faber, 2001.
83 Ibid., II 7, 92b.
54 GöDEL, K. Über formal unentscheidbare sätze der Principia Mathematica
und verwandter systeme. I, Monatsch. Math. Phys. v. 38, 1931, p. 173-178.
85 CARNIELLI, op. cit., p. 231.
55 DOXIADIS, op. cit., p. 109.
84 ENGELMANN, 2006, op. cit., p. 25
86 Ibid., p. 85.
56 SIEG, W. Only two letters: the correspondence between Herbrand and
Gödel. The Bulletin of Symbolic Logic, v. 11, n. 2, June 2005
57 GöDEL, op. cit.
58 Segundo SIEG, op. cit., p. 175, antes da publicação oficial, o primeiro teorema
foi também apresentado em um seminário em Königsberg: “Gödel reported
on his first incompleteness theorem at the Second Conference for Epistemology of the Exact Sciences held from 5 to 7 September 1930 in Königsberg.
On the very last day of the conference, a roundtable discussion on the foundations of mathematics took place to which Gödel had been invited. Hans
Hahn, Gödel’s dissertation advisor, chaired the discussion and its participants
included Carnap, Heyting, and von Neumann. Toward the end of the discussion, Gödel made brief remarks about the first incompleteness theorem.”
59 De fato, Gentzen, em 1936, apresentou uma prova da consistência da
aritmética utilizando indução transfinita.
60 Epstein e Carnielli referem-se a um seminário conferido por Gödel em 1934,
no Institute for Advanced Study, em que simplificou a apresentação de
1931.
61 CARNIELLI; EPSTEIN, op. cit., p.18.
62 SIEG, 2005, p. 173.
63 A natureza da matemática seriam formas da natureza como ente não
humano, formas não sociais, transcendentes ou uma parte de um mundo
não humano onde se constituiriam as formas matemáticas.
251
64 GULLAR, F. As meninas. Folha de São Paulo, Caderno Folha Ilustrada, edição
de 07 de dezembro de 2002.
65 Refere-se ao sistema apresentado em Principia mathematica (B. Russel) e
ao sistema axiomático para a Teoria dos Conjuntos de Zermelo-Frankael.
66 GöDEL, op. cit., p. 6.
67 RICHARD, J. Les principes des mathématiques et le problème des
ensembles. Revue générale des sciences pures et appliquées v.16, 1905, p.
541-543.
68 Traduzido como “consumidores” em LATOUR, op. cit.
69 LATOUR, op. cit., Primeiro princípio.
70 BERNAYS, op. cit., p. 2.
71 Ibid., p. 21.
72 A vida de Gentzen, assim como a de seu orientador, Bernays, foi fortemente
marcada pela ascensão nazista na Europa.
73 TURING, op. cit.
74 CHURCH, A. An unsolvable problem of elementary number theory. American
J of Math.,v. 58, p. 345 – 363. 1936.
75 Ibid., p. 346.
76 Em 1934 ocorreu em Princeton uma série de palestras ministradas por Gödel
focalizando e simplificando os resultados de 1931. Kleene e Rosser foram
redatores dessas palestras. Possivelmente devido ao forte intercâmbio de
ideias nesse período, Church julga necessário neste artigo esclarecer a
autoria de cada contribuição.
77 CHURCH, op. cit., p. 346.
78 TURING, 1936, op. cit.
79 CHURCH, op. cit.; CHURCH, A. A note on the Entscheidungs problem.
Journal of Symbolic Logic, v. 1, 1936, p. 40-41.
80 LATOUR, op. cit., p.155
[ Artigo recebido em 04/2010 | Aceito em 09/2010 ]
Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 231-251, jul | dez 2010