A Era do Vazio.
Gilles Lipovetsky
ÍNDICE
Prólogo 7
Sedução non stop 1 7
A indiferença pura 33
Narciso ou a estratégia do vazio 47
Modernismo e pós-modernismo 75
A sociedade humorística 127
Violências selvagens, violências modernas 161
PRÓLOGO
Os artigos e estudos aqui apresentados colocam, todos eles, embora a níveis
diferentes — e só por isso se justifica a sua publicação em conjunto — o mesmo
problema geral: a desagregação da sociedade, dos costumes, do indivíduo
contemporâneo da época do consumo de massa, a emergência de um modo de
socialização e de individualização inédito, em ruptura com o instituído desde os
séculos XVII e XVIII. E esta mutação histórica em curso que estes textos se
esforçam por evidenciar, considerando, com efeito, que o universo dos objetos,
das imagens, da informação e dos valores hedonistas, permissivos e psicologistas
que lhe estão ligados geraram, ao mesmo tempo em que uma nova forma de
controle dos comportamentos, uma diversificação incomparável dos modos de
vida, uma flutuação sistemática da esfera priva da, das crenças e dos papéis, ou,
por outras palavras, uma nova fase na história do individualismo ocidental. O
nosso tempo só logrou evacuar a escatologia revolucionária levando a cabo uma
revolução permanente do quotidiano e do próprio indivíduo: privatização
alargada, erosão das identidades sociais, desafeição ideológica e política,
desestabilização acelerada das personalidades, eis nós vivendo uma segunda
revolução individualista.
Uma idéia central governa as análises que se seguem: à medida que as
sociedades democráticas se desse a sua inteligibilidade revela-se à luz de uma
lógica nova, a que chamamos aqui o processo de personalização, sendo que este
não pára de remodelar em profundidade o conjunto dos setores da vida social.
Sem dúvida, nem todas as esferas se reestruturam no mesmo grau ou da mesma
maneira de acordo com o processo em curso, e não ignoramos os limites das
teorias que se esforçam por unificar o todo social sob a égide de um princípio
simples, quando é manifesto que as nossas sociedades põem em ação uma
pluralidade de critérios específicos. Se, apesar de tudo, mantivemos a idéia de
um esquema homogêneo, isso se liga ao fato de que se tratava menos de operar
um levantamento instantâneo do momento atual do que das linhas de
transformação, da tendência forte que modela, à escala da história, as
instituições, os modos de vida, as aspirações e finalmente as personalidades. O
processo de personalização procede de uma perspectiva comparativa e histórica,
designa a linha diretriz, o sentido do que é novo, o tipo de organização e de
controlo social que nos arranca à ordem disciplinar-revolucionária-convencional
que predominou até aos anos cinqüenta. Ruptura com a fase inaugural das
sociedades modernas, democráticas-disciplinares, universalistas-rigorosas,
ideológicas-coercivas, tal é o sentido do processo de personalização, que seria
evidentemente redutor assimilar a uma estratégia de reciclagem do capital, ainda
que de rosto humano. Quando um mesmo processo anexa num movimento
sincrônico o conjunto de um sistema, é ilusório pretender fazê-lo assentar numa
função local instrumental, mesmo que ele possa contribuir eficazmente para a
reprodução ou para o aumento da mais-valia. A hipótese aqui adiantada é outra:
trata-se de uma mutação sociológica global em curso, de uma criação histórica
próxima daquilo a que Castoriadis chama uma «significação imaginária central»,
combinação sinérgica de organizações e de significações, de ações e de valores,
que se esboça a partir dos anos vinte — apenas as esferas artísticas e
psicanalíticas a anteciparam em alguns decênios — e cujos efeitos não pararam
de se amplificar a partir da Segunda Guerra Mundial.
Negativamente, o processo de personalização remete para a fratura da
socialização disciplinar; positivamente, corresponde à instalação de uma
sociedade flexível assente na informação e na estimulação das necessidades, no
sexo e no levar em conta os «fatores humanos», no culto da naturalidade, da
cordialidade e do humor. É assim que opera o processo de personalização, novo
modo de a sociedade se organizar e se orientar, novo modo de gerir os
comportamentos, já não através da tirania dos pormenores, mas com o mínimo
possível de coação e o máximo possível de opções, com o mínimo de
austeridade e o máximo de desejo, com o mínimo de constrangimento e o
máximo de compreensão. Processo de personalização, com efeito, na medida em
que as instituições doravante se fixam nas motivações e nos desejos, incitam à
participação, organizam os tempos livres e as distrações, manifestam uma
mesma tendência no sentido da humanização, da diversificação, da
psicologização das modalidades de socialização: depois da domesticação
autoritária e mecânica, o regime homeopático e cibernético; depois da
administração injuntiva, a programação opcional, a pedido. Novos
procedimentos inse paráveis de novas finalidades e legitimidades sociais: valores
hedonistas, respeito pelas diferenças, culto da libertação pessoal, da
descontração, .do humor e da sinceridade, psicologismo, expressão livre — que
quer isto dizer se não que uma nova significação da autonomia se instalou,
deixando muito para trás o ideal que a época democrática autoritária se fixara?
Até uma da ta em última análise recente, a lógica da vida política, produtiva,
moral, escolar, asilar, consistia em mergulhar o indivíduo numa rede de regras
uni formes, em abstrair tanto quanto possível as formas das preferências e das
expressões singulares, em afogar as particularidades idiossincráticas numa lei
homogênea e universal, fosse esta a «vontade geral», as convenções sociais, o
imperativo moral, as regulamentações fixas e estandardizadas, ou a submissão e
a abnegação exigidas pelo partido revolucionário: tudo se passou como se os
valores individualistas só tivessem podido nascer sendo imediatamente
enquadrados por sistemas de organização e de sentido empenha dos em
esconjurar implacavelmente a sua indeterminação constitutiva. E este imaginário
rigoroso da liberdade que desaparece, dando lugar a novos valores que visam
permitir o livre desenvolvimento da personalidade íntima, legitimar a fruição,
reconhecer os pedidos singulares, modular as instituições de acordo com as
aspirações dos indivíduos.
O ideal moderno de subordinação do individual às regras racionais coletivas foi
pulverizado; o processo de personalização promoveu e encarnou maciçamente
um valor fundamental, os da realização pessoal, do respeito pela singularidade
subjetiva, da personalidade incomparável, sejam quais forem, sob outros
aspectos, as novas formas de controlo e de homogeneização simultaneamente
vigentes. Sem dúvida, o direito de o indivíduo ser absolutamente ele próprio, de
fruir ao máximo a vida, é inseparável de uma sociedade que erigiu o indivíduo
livre em valor principal e não passa de uma última manifestação da ideologia
individualista; mas foi a transformação dos estilos de vida associada à revolução
do consumo que permitiu este desenvolvimento dos direitos e desejos do
indivíduo, esta mutação na ordem dos valores individualistas. Salto em frente da
lógica individualista; o direito à liberdade, em teoria ilimitada, mas antes
circunscrito à economia, à política, ao saber, conquista agora os costumes e o
quotidiano. Viver livre e sem coação, escolher sem restrições o seu modo de
existência: não há outro fato social e cultural mais significativo quanto ao nosso
tempo; não há aspiração nem desejo mais legítimos aos olhos dos nossos
contemporâneos.
O processo 1e personalização: estratégia global, mutação geral no fazer e no
querer das nossas sociedades. Quando muito, seria conveniente distinguir nele
duas faces. A primeira, «limpa» ou operacional, designa o conjunto dos
dispositivos fluidos e desestandardizados, as fórmulas de solicitação programada
elaboradas pelos aparelhos de poder e de gestão que levam regularmente os
detratores de direita e, sobretudo, de esquerda a denunciar, não sem uma
caricatura algo grotesca, o condicionamento generalizado, o inferno climatizado
e «totalitário» da affluent society. A segunda face, «selvagem» ou «paralela»,
como lhe poderia chamar, decorre da vontade de autonomia e de particularização
dos grupos e dos indivíduos: neo-feminismo, libertação dos costumes e das
sexualidades, reivindicações das minorias regionais e lingüísticas, tecnologias
psi, desejo de expressão e de realização do eu, movimentos «alternativos»:
enfim, temos por toda a parte a busca de uma identidade própria e já não da
universalidade como motivo das ações sociais e individuais. Dois pólos que têm,
sem dúvida, as suas especificidades, mas que trabalham ambos no sentido da
saída de uma sociedade disciplinar e que o fazem em função da afirmação, mas
também da exploração do princípio das singularidades individuais.
O processo de personalização emergiu no interior do universo disciplinar, de
modo que o fim da época moderna se caracterizou pelo casamento de duas
lógicas antinômicas. Foi à anexação cada vez mais patente das esferas da vida
social pelo processo de personalização e o recuo concomitante do processo
disciplinar que nos levou a falar de sociedade pós-moderna, ou seja, de uma
sociedade que generaliza uma das tendências, inicialmente minoritária, da
modernidade. Sociedade pós-moderna, maneira de dizer a inflexão histórica dos
objetivos e modalidades da socialização, colocados hoje sob a égide de
dispositivos abertos e plurais; maneira de dizer que o individualismo hedonista e
personalizado se tornou legítimo e já não depara com oposição; maneira de dizer
que a era da revolução, do escândalo, da esperança futurista, inseparável do
modernismo, terminou. A sociedade pós-moderna é a sociedade em que reina a
indiferença de massa, em que domina o sentimento de saciedade e de
estagnação, em que a autonomia privada é óbvia, em que o novo é acolhido do
mesmo modo que o antigo, em que a inovação se banalizou em que o futuro
deixou de ser assimilado a um progresso alcançavel. A sociedade moderna era
conquistadora, crente no futuro, na ciência e na técnica; instituiu-se em ruptura
com as hierarquias de sangue e a soberania sacralizada, com as tradições e os
particularismos em nome do universal, da razão, da revolução. Esse tempo
desfaz-se diante dos nossos olhos; é em parte contra tais princípios futuristas que
as nossas sociedades se estabelecem, nessa medida pós-moderna ávidas de
identidade, de diferença, de conservação, de descontração, de realização pessoal
imediata; a confiança e a fé no futuro dissolvem-Se, nos amanhãs radiosos da
revolução e do progresso já ninguém acredita doravante o que se quer é viver já,
aqui e agora, ser-se jovem em vez de forjar o homem novo. Sociedade pósmoderna significa, neste sentido, retração do tempo social e individual
precisamente quando se impõe cada vez mais a necessidade de prever e
organizar o tempo coletivo, exaustão do impulso modernista dirigido para o
futuro, desencanto e monotonia do que é novo esgotamento de uma sociedade
que conseguiu neutralizar na apatia aquilo que a fundamenta: a mudança. Os
grandes eixos modernos, a revolução, as disciplinas, O laicismo, a vanguarda,
foram desafetados à força de personalização hedonista o otimismo tecnológico e
científico desmoronou-se, enquanto as inúmeras descobertas eram
acompanhadas pelo envelhecimento dos blocos, pela degradação do meio
ambiente, pelo apagamento progressivo dos indivíduos já nenhuma ideologia
política é capaz de inflamar as multidões, a sociedade pós-moderna já não tem
ídolos nem tabus, já não possui qualquer imagem gloriosa de si própria ou
projeto histórico mobilizador; doravante o vazio que nos governa, um vazio sem
trágico nem apocalipse.
Que erro foi anunciar precipitadamente o fim da sociedade de consumo quando é
claro que o processo de personalização não pára de lhe alargar as fronteiras. A
recessão presente a crise energética, a consciência ecológica não são o toque a
finados da sociedade de consumo: estamos destinados a consumir, ainda que de
outro modo, cada vez mais objetos e informações, desportos e viagens, formação
e relações, música e cuidados médicos. E isso a sociedade pós-moderna não o
para além do consumo, mas a sua apoteose, a sua extensão à esfera privada, à
imagem e ao devir do ego chamado a conhecer o destino da obsolescência
acelerada, da mobilidade, da desestabilização. Consumo da sua própria
existência através dos media desmultiplicados, dos tempos livres, das técnicas
relacionais, o processo de personalização gera o vazio em technicolor, a
flutuação existencial na e pela abundância dos modelos, mesmo que
condimentados de convivialidade, de ecologismo, de psicologismo. Mais
precisamente, estamos na segunda fase da sociedade de consumo, cool e já não
hot, consumo que digeriu a crítica da opulência. Acabada, com efeito, a idolatria
do american way of I dos carros triunfantes de cromados, das grandes estrelas e
dos grandes sonhos de Hollywood; acabados a revolta beatnik, o escândalo das
vanguardas; tudo isto deu lugar, segundo se diz, a uma cultura pós-moderna
identificável por di versas características: busca da qualidade de vida, paixão da
personalidade, sensibilidade extrema, desafeição dos grandes sistemas de
sentido, culto da participação e da expressão, moda retro, reabilitação do local,
do regional, de certas crenças e práticas tradicionais. Eclipse da bulimia
quantitativa anterior? Por certo que sim, na condição de não perdermos de vista
que estes fenômenos são igualmente manifestações do processo de
personalização, outras tantas estratégias que trabalham no sentido de destruir os
efeitos do modernismo monolítico, do gigantismo, do centralismo, das
ideologias duras, da vanguarda. Não temos que opor a era do consumo «passivo»
às correntes chamadas pós-modernas, criativas, ecologistas, revivalistas; no
conjunto, estas completam o desmoronar da era moderna rígida em direção a
uma maior flexibilidade, diversidade, escolhas privadas, com vista à reprodução
alargada do princípio das singularidades individuais. A descontinuidade pósmoderna não começa com este ou aquele efeito particular, cultural ou artístico,
mas com a preponderância histórica do processo de personalização,
acompanhada pela reestruturação do todo social sob a sua lei própria.
A cultura pós-moderna representa o pólo «surperestrutural» de uma sociedade
que sai de um tipo de organização uniforme, dirigista, e que, para fazê-lo,
mistura os últimos valores modernos, reabilita o passado e a tradição, revaloriza
o local e a vida simples dissolvem a preeminência da centralidade, dissemina os
critérios da verdade e da arte, legitima a afirmação da identidade pessoal de
acordo com os valores de uma sociedade personalizada onde o que importa é que
o indivíduo seja ele próprio, e onde tudo e todos têm, portanto, direito de cidade
e a serem socialmente reconhecidos, sendo que nada deve doravante impor-se
imperativa e duradouramente, e todas as opções, todos os níveis, podem coabitar
sem contração nem relegação. A cultura pós-moderna é descentrada e
heteróclita, materialista e psi, pomo e discreta, inovadora e retro, consumista e
ecologista, sofisticada e espontânea, espetacular e criativa; e o futuro não terá,
sem dúvida, que decidir em favor de uma destas tendências, mas, pelo contrário,
desenvolverá as lógicas duais, a co-presença flexível das antinomias. A função
de uma explosão semelhante não é duvidosa: paralelamente aos outros
dispositivos personalizados, a cultura pós-moderna é um vetor de alargamento
do individualismo; diversificando as possibilidades de escolha, liquefazendo as
marcas de referência, minando os sentidos únicos e os valores superiores da
modernidade, modela uma cultura personalizada ou por medida, permitindo ao
átomo social emancipar-se das balizas disciplinares revolucionários.
No entanto, não é verdade que estejamos entregues à errância do sentido, a uma
deslegitimação total; na época pós-moderna perdura um valor principal,
intangível, indiscutido através das suas múltiplas manifestações: o indivíduo e o
seu direito cada vez mais proclamado de se realizar a parte, de ser livre, à
medida que as técnicas de controlo social passam a aplicar dispositivos mais
sofisticados e «humanos». Se, portanto, o processo de personalização introduz
de fato uma descontinuidade na trama histórica, continua, contudo, a prosseguir
por outras vias a obra que, atravessando os séculos, é a da modernidade
democrática, ruptura aqui, continuidade ali, a noção de sociedade pós-moderna
não diz coisa diferente: uma fase chega ao fim, uma nova fase aparece ligada por
fios mais complexos do que à primeira vista pode parecer, às nossas origens
políticas e ideológicas.
Se for necessário recorrer ao esquema do processo de personalização, isso não se
deve unicamente às novas tecnologias suaves de controlo, mas também aos
efeitos deste processo sobre o próprio indivíduo. Com o processo de
personalização, o individualismo sofre um aggiornamento que designamos aqui,
na esteira dos sociólogos americanos, como narcísico: o narcisismo,
conseqüência e manifestação miniaturizada do processo de personalização,
símbolo da passagem do individualismo «limitado» ao individualismo «total»,
símbolo da segunda revolução individualista. Que outra imagem pode significar
tão bem a emergência desta forma de individualidade com a sua sensibilidade
psicológica, desestabilizada e tolerante, centrada sobre a realização emocional de
si próprio, ávida de juventude, de desportos, de ritmo, menos empenhada em
triunfar na vida do que em realizar-se de modo contínuo na esfera íntima? Que
outra imagem é capaz de sugerir com a mesma força o formidável surto
individualista induzido pelo processo de personalização? Que outra imagem
permite ilustrar melhor a nossa situação presente em que o fenômeno social
decisivo já não é a pertença e o antagonismo de classe,
CAPITULO 1 Sedução non-stop
Como designar esta vaga de fundo característico do nosso tempo, que, por todo o
lado, substitui a coerção pela comunicação, o interdito pela fruição, o anônimo
pelo feito por medida, a retificação pela responsabilização, e que, por todo o
lado, tende a instituir um clima de proximidade, de ritmo e de solicitude liberta
do registro da Lei? Música, informação vinte e quatro sobre vinte e quatro horas,
gentil organizador, SOS, amizade. Mesmo a polícia tende a humanizar a sua
imagem de marca, abre as portas das esquadras, explica-se perante a população,
enquanto o exército se entrega a tarefas civis. «Os camionistas são simpáticos»,
porque o não seria a tropa? A sociedade pós-industrial foi definida como sendo
uma sociedade de serviços, mas, mais diretamente ainda, é o auto-serviço que
pulveriza por inteiro o antigo quadriculado disciplinar, fazendo-o, não através
das forças da Revolução, mas das ondas radiosas da sedução. Longe de se
circunscrever às relações interpessoais, a sedução tornou-se o processo geral que
tende a regular o consumo, as organizações, a informação, a educação, os
costumes. Toda a vida das sociedades contemporâneas é doravante governada
por uma nova estratégia que destrona o primado das relações de produção em
provei to de uma apoteose das relações de sedução.
Sedução a lista
Com a categoria de espetáculo, os situacionistas anunciavam de algum modo
esta generalização da sedução, embora com uma reserva, é verdade, na medida
em que o espetáculo designava a «ocupação da parte principal do tempo vivido
no exterior da produção moderna» (G. Debord). Libertando-se do ghetto da
superestrutura e da ideologia, a sedução tornava-se relação social dominante,
princípio de organização global das sociedades da abundância. Todavia, esta
promoção da sedução, assimilada à época do consumo, depressa revelava os seus
limites, consistindo a ação do espetáculo em transformar o real em representação
falsa, em alargar a esfera da alienação e do desapossamento. «Nova força de
engano», «ideologia materializada», «impostura da satisfação», o espetáculo, a
despeito ou por obra da sua radicalidade, não se desembaraçava das categorias
próprias da era revolucionária (a alienação e o seu outro, o homem total, «senhor
sem escravo»), então precisamente em vias de desaparecer em surdina sob o
efeito do reino alargado da mercadoria. Seduzir, enganar por meio do jogo das
aparências — o pensamento revolucionário, mesmo quando atento ao novo,
continuava a ter que localizar uma sedução negativa para levar a cabo a sua
inversão: tributária do tempo revolucionário-disciplinar, a teoria do espetáculo
reconduzia a versão eterna da sedução, a astúcia, a mistificação e a alienação das
consciências.
Sem dúvida, temos que partir do mundo do consumo. Com a profusão luxuriante'
dos seus produtos, imagens e serviços, com o hedonismo que induz, com o seu
clima eufórico de tentação e proximidade, a sociedade de consumo revela até a
evidência a amplitude da estratégia da sedução. Esta não se reduz, no entanto, ao
espetáculo da acumulação; mais exatamente, identifica-se com a ultrasimplificação das opções que a abundância torna possíveis, com a latitude dos
indivíduos mergulhados num universo transparente, aberto, oferecendo um
número cada vez maior de escolhas e combinações por medida, permitindo uma
circulação e uma seleção livres. E estamos apenas no começo, esta lógica
alargar-se-á inelutavelmente à medida que as tecnologias e o mercado puserem à
disposição do público uma diversificação cada vez mais vasta de bens e de
serviços. Atualmente, a TV por cabo oferece em certos pontos dos EstadosUnidos a escolha entre oitenta canais especializados, em contar com os
programas «a pedido»; calcula-se em cerca de cento e cinqüenta o número de
canais por cabo necessários à satisfação das exigências do público dentro de seis
ou sete anos. Já hoje, o self-service, as existências à lista designam o modelo
geral da vida nas sociedades contemporâneas que vêem proliferar de modo
vertiginoso as fontes de informação, o leque dos produtos expostos nos centros
comerciais e hiper-mercados tentaculares, nos armazéns ou restaurantes
especializados. É assim a sociedade pós-moderna caracterizada por uma
tendência global no sentido de reduz as relações autoritárias e dirigistas e
simultaneamente de aumentar a gama das opções privadas, privilegiarem a
diversidade, oferecer fórmulas de «programas independentes», nos desportos,
nas tecnologias psi, no turismo, na descontração da moda, nas relações humanas
e sexuais. A sedução nada tem a ver com a representação falsa e com a alienação
das consciências; é ela que configura o nosso mundo e o remodela segundo um
processo sistemático de personalização cuja obra consiste essencialmente em
multiplicar e diversificar a oferta, em propor mais para que nós decidamos mais,
em substituir a coação uniforme pela livre escolha, a homogeneidade pela
pluralidade, a austeridade pela realização dos desejos. A sedução remete para o
nosso universo de gamas opcionais, de secções de produtos exóticos, de
ambiente psi, musical e informacional, no qual cada um pode à vontade com por
a lista dos elementos da sua existência. A independência é um traço de caráter, é
também uma maneira de viajar segundo um ritmo sua, de acordo com os seus
próprios desejos; construa a «sua» viagem. “Os itinerários pro postos nos nossos
Globe-Trotters são apenas sugestões que podem ser combinadas, mas também
modificadas tendo em conta a sua vontade». Este anúncio diz a verdade da
sociedade pós-moderna sociedade aberta, plural, levando em conta os desejos
dos indivíduos e aumentando a sua liberdade combinatória. A vida sem
imperativo categórico, a vida kit modulada em função das motivações
individuais, a vida flexível da época das combinações, das opções, das fórmulas
independentes tornadas possíveis por uma oferta infinita — é assim que opera a
sedução. Sedução no sentido em que o processo de personalização reduz os
quadros rígidos e coercivos funciona suavemente jogando a cartada da pessoa
individual, do seu bem-estar, da sua liberdade, do seu interesse próprio.
O processo de personalização começa a reordenar até a ordem da produção,
muito timidamente ainda, e devemos deixá-lo dito aqui. E sem dúvida o mundo
do trabalho que oferece a resistência mais tenaz à lógica da sedução, a despeito
das revoluções tecnológicas em curso. A tendência para a personalização, no
entanto, também aqui se manifesta. Em A Multidão Solitária, Riesman já a
observava, mostrando como a cordialidade imposta, a personalização das
relações de trabalho e dos serviços se substituía pouco a pouco ao
enquadramento funcional e mecânico da disciplina. Mais ainda, assistimos à
multiplicação dos técnicos da comunicação e dos psicoterapeutas de empresa.
Abatem-se as paredes que separam os escritórios, o trabalho é feito em espaços
abertos; a concentração e a participação são solicitadas por todos os lados.
Fazem-se aqui e ali tentativas, muitas vezes apenas a título experimental, de
humanização e de reorganização do trabalho manual: alargamento das tarefas,
job enrichment, grupos autônomos de trabalho. A futura tecnologia eletrônica, os
números crescentes de empregos de informação permitem imaginar alguns
cenários futuros: desconcentração das empresas, desenvolvimento do trabalho a
domicílio, «casa eletrônica». Já hoje assistimos a flexibilização do tempo de
trabalho: horários móveis ou à escolha, trabalho intermitente. Para além das
características específicas destes dispositivos, desenha-se uma mesma tendência,
que define o processo de personalização: reduzir a rigidez das organizações,
substituir os modelos uniformes e pesados por dispositivos flexíveis, privilegiar
a comunicação em relação à coerção.
O processo conquista novos sectores e conhecerá uma extensão que nos é ainda
difícil imaginar com as novas tecnologias com base no microprocessador e dos
circuitos integrados. Eis o que atualmente se verifica já no ensino: trabalho
independente, sistemas opcionais, programas individuais de trabalho e de autoapoio por micro-computador; dentro de um prazo mais ou menos curto, haverá o
diálogo com o teclado, a auto-avaliação, a manipulação pessoal da informação.
Os media estão em vias de experimentar uma reorganização que aponta no
mesmo sentido; para além das redes por cabo, as rádios livres, os sistemas
«interativos»: a explosão do vídeo, o gravador, as videocassetes, personalizando
o acesso à informação, às imagens. Os conjuntos de vídeo e os milhares de
fórmulas que proporcionam alargam e privatizam em grande escala as
possibilidades lúdicas e interativas (prevê-se que um lar americano em cada
quatro esteja dentro de pouco tempo equipa do com conjuntos de vídeo). A
micro-informática e a galáxia vídeo designam a nova vaga da sedução, o novo
vetor de aceleração da individualização dos seres, após a idade heróica do
automóvel, do cinema, do eletrodoméstico. «My computer likes me': não nos
enganemos, a sedução videomática não se refere apenas à magia das
performances das novas tecnologias; enraíza-se profundamente no aumento da
autonomia individual esperada, na possibilidade para cada indivíduo de ser um
livre agente do seu tempo, menos pregado às normas das organizações pesadas.
A sedução em curso é uma sedução privática.
Todas as esferas são atualmente anexadas, cada vez mais depressa, por um
processo de personalização multiforme. Na ordem psicoterapêutica, surgiram
novas técnicas (análise transacional, grito primal, bioenergia) que exacerbam a
personalização psicanalítica considerada demasiado «intelectualista»; prioridade
dada aos tratamentos rápidos, às terapias «humanistas» de grupo, à libertação
direta do sentimento, das emoções, das energias corporais: a sedução investe
todos os pólos, do software à descarga «primitiva». A medicina sofre uma
evolução paralela: acupuntura, visualização do corpo interno, tratamento natural
por meio de ervas, biofeedback, homeopatia, as terapias «suaves» conquistam
terreno, advogando a subjetivização da doença, a gestão «holística» da saúde
pelo próprio indivíduo, a exploração mental do corpo em ruptura com o
dirigismo hospitalar; o doente já não deve continuar a sofrer passivamente o seu
estado, é responsável pela sua saúde, pelos seus sistemas de defesa, graças às
potencialidades da autonomia psíquica. Simultaneamente, o desporto assiste à
proliferação das práticas livres de cronômetro, de confronto, de competição, e
que privilegiam o treino livremente escolhido, a sensação de planar, a audição do
corpo (jogging, windsurfe, ginástica suave, etc.); o desporto é reciclado através
da psicologização do corpo, da total tomada de consciência de si, do livre curso
aberto à paixão dos ritmos individuais.
Os costumes inclinam-se também no sentido da lógica da personalização. O
gosto do tempo privilegia a diferença, a fantasia, a descontração; a
estandardização e a rigidez já não têm boa reputação. O culto da espontaneidade
e a cultura psi estimulam o indivíduo a ser «mais» ele próprio, a «sentir», a
analisar-se, a libertar-se dos papéis e «complexos». A cultura pós-moderna é a
do feeling e da emancipação individual alargada a todos os grupos de idade e
sexo. A educação, de autoritária que era, tornou-se alta mente permissiva, atenta
aos desejos das crianças e dos adolescentes, enquanto que, por todos os lados, a
vaga hedonista desculpabiliza o tempo livre, encoraja cada um a realizar-se sem
constrangimentos e a aumentar os seus ócios. A sedução: uma lógica que abre
caminho, que nada poupa e que, deste modo, realiza uma socialização flexível,
tolerante, empenhada na personalização-psicologização do indivíduo.
A sedução repercute-se na linguagem. Já não há surdos, cegos, coxos; estamos
no tempo dos que ouvem mal, dos invisuais, dos deficientes; os velhos tornaramse pessoas da terceira ou da quarta idade; as criadas, empregadas domésticas; os
proletários, parceiros sociais; as mães solteiras, mães celibatárias. Os cábulas são
crianças com problemas ou casos sociais, o aborto é uma interrupção voluntária
da gravidez. Até os analisados são analisadores. O processo de personalização
asséptica o vocabulário como o coração das cidades, os centros comerciais e a
morte. Tudo o que exibe uma conotação de inferioridade, de deformidade, de
passividade, de agressividade, deve desaparecer em proveito de uma linguagem
diáfana, neutra e objetiva — tal é o último estádio das sociedades individualistas.
Paralelamente às organizações flexíveis e abertas organiza-se uma linguagem
eufemística e lenitiva, um lifting semântico conforme ao processo de
personalização centrado no desenvolvimento, no respeito e na tolerância
relativamente às diferenças individuais. «Sou um ser humano. Não dobrar,
estragar ou deformar». A sedução liquida numa mesma vaga as regras
disciplinares e as últimas reminiscências do mundo, do sangue e da crueldade.
Tudo deve comunicar sem resistência, sem relegação, num hiper-espaço fluido e
acósmico, na esteira das telas e cartazes de Folon.
Se o processo de personalização é inseparável de uma esterilização
acondicionada do espaço público e da linguagem, de uma sedução irreal à
maneira das vozes adocicadas das hospedeiras dos aeroportos, é igualmente in
separável de uma animação rítmica da vida privada. Vivemos uma formidável
explosão musical: música ininterrupta, hit-parade, a sedução pós-moderna é hifi. Doravante, a aparelhagem sonora é um bem de primeira necessidade; faz-se
desporto, deambula-se, trabalha-se, sempre no meio de música; anda-se de
automóvel em estéreo, a música e o ritmo tornou-se, no espaço de algumas
décadas, um ambiente quase permanente, um engodo de massa. Para o homem
disciplinar-autoritário, a música circunscrevia-se a lugares e momentos
específicos, concerto, dancing, music-hall, baile, rádio; o indivíduo pós-
moderno, pelo contrário, está ligado à música de manhã à noite; tudo se passa
como se tivesse necessidade de estar sempre noutro lugar, de ser transportado e
envolvido por uma atmosfera ambiente sincopada; tudo se passa como se
precisasse de uma desrealização estimulante, eufórica ou inebriante do mundo.
Revolução musical ligada, sem dúvida, às inovações tecnológicas, ao império da
ordem mercantil, do show-business, mas que nem por isso manifesta menos o
processo de personalização, uma das faces da transformação pós-moderna do
individuo. Da mesma maneira que as instituições se tornam flexíveis e móveis, o
indivíduo torna-se cinético, aspira ao ritmo, a uma participação de todo o corpo e
de todos os sentidos, participação hoje possível através da estereofonia, do
walkman, dos sons cósmicos ou paroxísticos das músicas da idade eletrônica. À
personalização por medida da sociedade corresponde uma personalização do
indivíduo, que se traduz no desejo de sentir «mais», de planar, de vibrar em
direto, de experimentar sensações imediatas, de ser posto integralmente em
movimento numa espécie de trip sensorial e pulsional. As realizações técnicas da
estereofonia, os sons elétricos, a cultura do ritmo inaugurada pelo jazz e
prolongada pelo rock, permitiram à música tornar-se esse inedium privilegiado
do nosso tempo, porque em consonância estreita com o novo perfil do indivíduo
personalizado, narcísico, sedento de imersão instantânea, sedento de
«descarregar» não apenas ao ritmo dos últimos êxitos, mas das mais diversas
espécies de música, das variedades mais sofisticadas, atualmente postas à sua
constante disposição.
A sedução pós-moderna não é um ersatz de comunicação ausente nem um
cenário destinado a ocultar a abjeção das relações mercantis. Seria vê- La de
novo como um consumo de objetos e de signos artificiais, reinjetar o logro onde
existe, antes do mais, uma operação sistemática de personalização, ou, por outras
palavras, uma atomização do social ou uma extensão em abismo da lógica
individualista. Fazer da sedução uma «representação ilusória do não-vivido»
(Debord) é reconduzir o imaginário das pseudo des, a oposição moral entre o
real e a aparências um real objetivo ao abrigo da sedução, quando esta se define,
sobretudo, como processo de transformação do real e do indivíduo. Longe de ser
um agente de mistificação e de passividade, a sedução é destruição cool do
social através de um processo de isolamento, que já não surge administrado pela
força bruta ou pelo quadriculado regulamentar, mas através do hedonismo, da
informação e da responsabilização. Com o reino dos media, dos objetos e do
sexo, cada indivíduo se observa, se testa, se vira mais para si próprio à espreita
da sua própria verdade e do seu bem-estar, tornando-se responsável pela sua
vida, de vendo gerir o melhor possível o seu capital estóico, afetivo, físico,
libidinal, etc. Aqui, socialização e dessocialização identificam-se; no centro do
deserto social ergue-se o indivíduo soberano, informado, livre, prudente
administrador da sua vida: ao volante, cada um aperta o seu próprio cinto de
segurança. Fase pós-moderna da socialização, o processo de personalização é um
novo tipo de controle social desembaraçado dos processos pesados de
massificação-reificação-repressão. A integração realiza-se por meio da
persuasão, invocando a saúde, a segurança e a racionalidade: anúncios e
sensibilizações médicas, mas também conselhos das associações de
consumidores. Dentro em breve, o vídeotex passará a apresentar «árvores de
decisão», sistemas de pergunta-resposta permitindo ao consumidor dar a
conhecer ao computador os seus próprios critérios a fim de efetuar uma escolha
racional e, ao mesmo tempo, porém, personalizada. A sedução deixou de ser
libertina.
Sem dúvida, nem tudo isto data de agora. Foi já há séculos que as sociedades
modernas inventaram a ideologia do indivíduo livre, autônomo e semelhante aos
outros. Paralelamente, ou com inevitáveis desfasamentos históricos, edificou-se
uma economia livre baseada no empresário independente e no mercado, ao
mesmo tempo em que se instalaram regimes políticos democráticos. Neste
quadro, no que se refere à vida quotidiana, ao modo de vida, à sexualidade, o
individualismo viu-se, até uma data recente, contida na sua expansão por
estruturas ideológicas rígidas, instituições, costumes ainda tradicionais ou
disciplinares-autoritários. E esta última fronteira que se desfaz ante os nossos
olhos a uma velocidade prodigiosa. O processo de personalização impulsionado
pela aceleração das técnicas, pela gestão, pelo consumo de massa, pelos media,
pelos desenvolvimentos da ideologia individualista, pelo psicologismo, leva ao
seu ponto culminante o reino do indivíduo, faz explodir as últimas barreiras. A
sociedade pós-moderna ou, por outras palavras, a sociedade que generaliza o
processo de personalização em ruptura com a organização moderna disciplinarcoerciva, realiza de algum modo, no interior do quotidiano e através de novas
estratégias, o ideal moderno da autonomia individual, ainda que esta se revele,
até a evidência, de um teor inédito.
Os discretos encantos da política
O mundo político não se mantém a margem da sedução. A começar pela
personalização imposta da imagem dos dirigentes ocidentais: simplicidade
ostensiva, o homem político surge de jeans ou pulôver, reconhece humildemente
os seus limites e fraquezas, faz entrar em cena a família, o seu boletim de saúde,
a sua juventude. Em França, Giscard, na esteira de Kennedy ou de P. -E.
Trudeau, foi o símbolo autêntico desta humanização psicologização do poder:
um presidente à «escala humana», que declara não querer sacrificar a sua vida
privada, toma o pequeno com os homens dos serviços de limpeza, janta fora com
esta ou aquela família francesa. Não nos iludamos: o desenvolvimento dos novos
"media", da televisão em particular, por capital que seja nesta questão, não pode
explicar tio fundamental esta promoção das personalidades esta necessidade de
confeccionar semelhante imagem de marca. A política personalizada
corresponde à emergência desses novos valores que são a cordialidade, as
confidências íntimas, a proximidade, as autenticidades, a personalidades valores
individualistas dêem por excelência, difundidas em larga escala pelo consumo de
massa. A sedução: filha do individualismo hedonista e psi, muito mais do que do
maquiavelismo político. Perversão das democracias, intoxicação, manipulação
do eleitorado por um espetáculo de ilusões? Sim e não, porque se é exato que
existe realmente um marketing político programado e cínico, é igual mente
correto dizer que as vedetas políticas não fazem senão adaptar-se ao habitus pósmoderno do “homo democraticus”, com uma sociedade já personalizada
desejosa de contacto humano, refratária ao anonimato, às lições pedagógicas
abstratas, à linguagem estereotipada, aos papéis distantes e convencionais.
Quanto ao impacto real do design da personalização, poderemos perguntar-nos
se não será este consideravelmente sobrevalorizado pelos publicistas e pelos
políticos 1, eles próprios amplamente seduzidos pelos mecanismos de sedução
do star system: na medida em que atualmente todas as cabeças de cartaz se
submetem mais ou menos à mesma lógica, o seu efeito anula-se por difusão e
saturação mediática; a sedução surge como uma atmosfera soft, imperativa e sem
surpresas, que distrai epidermicamente um público que está muito longe de ser
tão ingênuo e passivo como imaginam os atuais detratores do «espetáculo».
Mais significativa ainda no que se refere à sedução é a tendência que as
democracias hoje revelam para jogarem a cartada da descentralização. Depois da
unificação nacional e da supremacia das administrações centrais, o recente poder
dos conselhos regionais e de eleição local, as políticas culturais regionais. A
época é a do desprendimento do Estado, das iniciativas locais e regionais, do
reconhecimento dos particularismos e identidades territoriais; a nova distribuição
do jogo da sedução democrática humaniza a nação, ventila os poderes, aproxima
as instâncias de decisão dos cidadãos, redistribui uma dignidade às periferias. O
Estado nacional-jacobino esboça uma reconversão centrífuga destinada a reduzir
a rigidez das burocracias, reavalia o «país», promove de certo modo uma
democracia do contacto, da proximidade, através de uma reterritorialização-
personalização regionalista. Simultaneamente, organiza-se uma política do
patrimônio que se inscreve na mesma linha que a da descentralização ou da
ecologia: deixar de devastar, de desenraizar ou de inferiorizar, para proteger e
valorizar as riquezas regionais, memoriais ou naturais. A nova política
museográfica tem como correspondente a política de regionalismo
administrativo e cultural, aplicando-se a desenvolver do mesmo modo forças e
entidades excentradas, montando um mesmo dispositivo de diálogo entre
presente e passado, entre população e torrão natal. Não se trata de um efeito de
nostalgia de uma sociedade devastada pela conquista do futuro, e ainda menos
de um show media-político; mais obscuramente, mas mais profundamente, tratase de uma personalização do presente através da salvaguarda do passado, de uma
humanização dos objetos e monumentos antigos análoga à das instituições
públicas e das relações interindividuais. De modo nenhum imposto do exterior,
de modo nenhum conjuntural, este interesse museográfico encontra-se em
consonância com a sensibilidade pós-moderna em busca de identidade e de
comunicação, nada apaixonada pelo futuro histórico, acabrunhada com a idéia de
destruições irreversíveis. Aniquilar os vestígios é como devastar a natureza; uma
mesma repulsa se apodera dos nossos espíritos hoje curiosamente inclinados a
dotarem de alma, a psicologizarem toda a realidade, homens, pedras, plantas,
meio ambiente. O efeito patrimônio é indissociável da suavização dos costumes,
do crescente sentimento de respeito e de tolerância, de uma psicologização sem
limites.
A autogestão cujo projeto consiste em suprimir as relações burocráticas de
poder, em fazer de cada indivíduo um sujeito político autônomo, representa
outro aspecto da sedução. Abolição da separação dirigente, executante
descentralização e disseminação do poder, é à liquidação da mecânica do poder
clássico e da sua ordem linear que se aplica à autogestão, sistema cibernético de
distribuição e de circulação da informação. A autogestão é a mobilização e o
tratamento otimizado de todas as fontes de in formação, a instituição de um
banco de dados universal, relativamente ao qual cada um é ao mesmo tempo e a
todo o momento emissor e receptor — é a informatização política da sociedade.
Doravante, torna-se necessário vencer a entropia constitutiva das organizações
burocráticas, reduzir o bloqueio das informações, os segredos e desafeições. A
sedução não funciona graças ao mistério, mas graças à informação, ao feedback
à iluminação sem resíduos do social, à maneira de um strip-tease integral e
generalizado. Nestas condições, não é surpreendente que numerosas correntes
ecológicas adotem no seu programa a autogestão. Rejeitando a predominância da
espécie humana e a unilateralidade da relação entre o homem e a natureza, que
conduzem à poluição e à expansão cega, a ecologia substitui à mecânica pesada
do crescimento a regulação cibernética, a comunicação, o feedback, deixando a
natureza de ser um tesouro a pilhar, uma força a explorar, para se converter num
interlocutor a ouvir e a respeitar. Solidariedade das espécies vivas, proteção e
saúde do meio ambiente, toda a ecologia repousa num processo de
personalização da natureza, no tomar em consideração essa unidade
insubstituível, não finita, ainda que planetária que é a natureza.
Correlativamente, é no sentido da responsabilização do homem que a ecologia
trabalha, alargando o campo dos deveres, do social ao planetário: se a ecologia
se esforça efetivamente por travar e deter o processo ilimitado da expansão
econômica, contribui, em contrapartida, para uma expansão do sujeito.
Recusando o modelo produtivista a ecologia aspira a uma mutação tecnológica, à
utilização de técnicas suaves, não poluentes e, para os mais radicais, a uma
reconversão total dos métodos e unidades de trabalho: reimplantação e
disseminação das unidades industriais e da população, pequenas oficinas
autogeridas, integradas em comunidades à escala humana, de dimensões
reduzidas. A cosmogonia ecológica não conseguiu escapar aos encantos do
humanismo. Redução das relações hierárquicas e da temperatura histórica,
personalização crescimento do sujeito, a sedução desdobra a sua panóplia
cobrindo até os espaços verdes da natureza.
O próprio PCF não quer ficar para trás e apanha o comboio em andamento
abandonando a ditadura do proletariado' último dispositivo sangrento da época
revolucionária e da teleologia da história. A sedução abole a Revolução e o
emprego da força, destrói as grandes finalidades históricas, mas também
emancipa o Partido do autoritarismo estaliniano e da sua sujeição ao grande
Centro; a partir daqui, o PCF pode começar a admoestar timidamente Moscow e
a «tolerar» as críticas dos seus intelectuais sem praticar purgas nem exclusões. A
luta final não terá lugar: grande operadora de sínteses, de unidade, a sedução, na
esteira de Eros, atua por ligação, coe são e aproximação. O engate por meio de
estatísticas, o compromisso histórico, a União do povo de França substituem a
guerra de classes. Quer flertar comigo? Só a Revolução fascina porque se coloca
do lado de Thanatos, da descontinuidade, do desligamento. A sedução, essa,
rompeu todos os laços que a uniam ainda, no dispositivo "donjuanesco", à morte,
à subversão. Sem dúvida, o PCF continua a ser na sua ideologia e na sua
organização o partido menos inclinado a ceder às piscadelas de olho da sedução,
o partido mais retro, o mais preso ao moralismo, ao centralismo, ao
burocratismo, e é mesmo essa rigidez congênita que, em parte, está na origem
dos retumbantes fracassos eleitorais que sabemos, Mas, por outro lado, o PCF
apresenta-se como um partido dinâmico e responsável, identificando-se cada vez
mais com um organismo de gestão sem missão histórica, tendo adotado, por sua
vez, depois de prolongadas hesitações, os vetores-chave da sedução
management, inquéritos através de sondagens, reciclagens regulares, etc.,
incluindo a arquitetura da sua sede, prédio de vidro sem segredo, montra
iluminada pelas luzes das metamorfoses «in do aparelho. Formação de
compromisso entre a sedução e a era passada da revolução, o PC joga duas
cartadas ao mesmo tempo, condenando-se obstinadamente ao papel de sedutor
envergonha do e infeliz, O mesmo perfil se encontra no marxismo deles, para
falarmos aqui à maneira de Lenine. Por exemplo, a voga do althusserianismo:
rigor e austeridade do conceito, anti-humanismo teórico, o marxismo faz sua
uma imagem de marca dura, sem concessões, nos atípodas da sedução. Mas
empenhando-se na via da articulação dos conceitos, o marxismo entra
simultaneamente na sua fase de desarmamento: o seu objetivo já não é a
formação revolucionária de uma consciência de classe unificada e disciplinada,
mas a formação de uma consciência epistemológica. A sedução triste do
marxismo envergou o fato completo dos homens de «ciência».
Sexdução
Em torno da inflação erótica atual e da pornografia, uma espécie de denúncia
unânime reconcilia as feministas, os moralistas, os estetas, escandalizado pelo
aviltamento do ser humano reduzido à categoria de objeto e pelo sexo-máquina
que faz desaparecer as relações de sedução num deboche repetitivo e sem
mistério. Mas se o essencial não estivesse aí — se a pornografia não fosse afinal
senão mais uma figura da sedução? Que faz a pornografia, com efeito, senão
suspender a ordem arcaica da Lei e do Interdito, abolir a ordem coerciva da
Censura e do recalcamento em benefício de um ver- tudo, fazer-tudo, dizer-tudo,
que define exatamente o trabalho da sedução?
É ainda o ponto de vista moral que reduz a pornografia à reificação e à ordem
industrial ou serial do sexo: aqui tudo é permitido, é preciso ir cada vez mais
longe, procurar dispositivos inéditos, novas combinações numa livre disposição
do corpo, numa livre empresa do sexo que faz do pomo, contrariamente ao que
dizem os seus detratores, um agente de desestandartização e de subjetivização do
sexo e pelo sexo, à semelhança dos movimentos de libertação sexual.
Diversificação libidinal, constelação de «pequenos anúncios» singulares: depois
da economia, da educação, da política, a sedução anexa o sexo e o corpo de
acordo com o mesmo imperativo de personalização do indivíduo. Na hora do
self-service libidinal, o corpo e o sexo tornam-se instrumentos de subjetivizaçãoresponsabilização; é preciso acumular as experiências, explorar o capital
libidinal pessoal, inovar em matéria de combinações. Tudo o que se pareça com
a imobilidade, com a estabilidade tem que desaparecer em proveito da
experimentação e da iniciativa. Assim se produz um sujeito já não através da
disciplina, mas da personalização do corpo sob a égide do sexo. O seu corpo é
você, o corpo deve ser cuidado, amado, exibido; já nada tem a ver com a
máquina. A sedução alarga o ser-sujeito atribuindo ao corpo outrora oculto uma
dignidade e uma integridade novas: nudismo, seios nus, são os sintomas
espetaculares desta mutação através da qual o corpo se torna pessoa a respeitar, a
acarinhar ao calor do sol, O jerk é um outro sintoma desta emancipação: se, com
o rock ou o twist, o corpo estava ainda submetido a certas regras, com o jerk
caem todas as imposições das figuras codificadas, o corpo já só tem que se
exprimir, tornando-se, na esteira do Inconsciente, linguagem singular. Nas pistas
dos night-clubs, gravitam sujeitos autônomos, seres ativos, já ninguém convida
ninguém, as raparigas já não fazem «renda» e os «tipos» já não monopolizam a
iniciativa. Ficam apenas mónadas silenciosas cujas trajetórias aleatórias se
cruzam numa dinâmica de grupo açaimada pelo feitiço do som.
Que se passa quando o sexo se torna político, quando as relações sexuais se
traduzem em relações de forças, em relações de poder? Denunciando a mulhermercadoria, chamando à mobilização de massa em torno de um «programa
comum», constituindo-se em movimento específico que exclui os homens, o
neo-feminismo não introduzirá uma linha dura, maniqueísta, e por isso
irredutível ao processo de sedução? Não é, de resto, assim que os movimentos
feministas se apresentam? No entanto, algo de mais fundamental se encontra em
jogo: assim, através do combate pelo aborto livre e gratuito, é o direito à
autonomia e à responsabilidade em matéria de procriação que se visa; trata-se de
retirar a mulher do seu estatuto de passividade e de resignação relativamente ao
caráter aleatório da procriação. Dispor de si, escolher, deixar para trás a máquina
reprodutora e o destino biológico e social — o neo-feminismo é também uma
das figuras do processo de personalização. Com as recentes campanhas contra a
violação, surgiu uma publicidade inédita em torno de um fenômeno outrora
mantido em segredo e na vergonha, como se nada devesse continuar oculto,
obedecendo ao imperativo de transparência e dilui sistemática do presente que
governa as nossas sociedades. Por meio desta redução das sombras e dos
obscuros, movimento de libertação das mulheres, seja qual for o seu radicalismo,
faz parte integrante do strip -tease generalizado dos tempos modernos.
Informação, comunicação, tais são os caminhos da sedução. Empenhado, por
outro lado, em não dissociar o nível político do psicanalítico, o neo-feminismo
veicula uma vontade explícita de psicologização, como mostram os pequenos
grupos chamados de self-help ou de tomada de consciência, em que as mulheres
se escutam, se analisam, falam procurando descobrir os seus desejos e os seus
corpos. É o «vivido» que doravante vem em primeiro lugar: prevenção com o
teórico, com o conceptual, que são o poder, a máquina imperial masculina.
«Comissões de experiências pessoais»: a emancipação, a busca de uma
identidade própria passa pela expressão e pelo confronto das experiências
existenciais.
Igualmente característica é a questão do «discurso feminino» em demanda de
uma diferença, de uma afirmação independente do referencial masculino. Nas
suas versões mais radicais, trata-se de abandonar a economia do logos, da
coerência discursiva, afirmando o feminino numa autodeterminação, numa
«auto-afecção» (Luce Irigaray) desembaraçada de todo o centrismo, de todo o
falocentrismo enquanto última posição panóptica do poder. Mais importante do
que a reinscrição de um território marcado é a flutuação deste lugar em si
próprio, a impossibilidade de circunscrevê-lo e de identificá-lo: nunca idêntico a
si próprio, nunca idêntico a nada, «espécie de universo em expansão ao qual não
é possível fixar quaisquer limites, mas que não é por tão pouco iêit, o feminino é
plural, todo fluência, contigüidade e proximidade, ignora o «próprio» e,
portanto, a posição de sujeito. Nem sequer se trata já de elaborar outro conceito
de feminilidade, que não deixaria de retomar a máquina teórico-fálica e de
reintroduzir a economia do Mesmo e do Um. Para se definir, o hiperfeminismo
reivindica o estilo, a sintaxe Outra, «táctil» e fluida, sem sujeito nem objeto.
Como não reconhecer nesta economia dos fluidos, nesta multiplicidade
condutível, o próprio trabalho da sedução que, por toda a parte, abole o Mesmo,
o Centro, a linearidade e procede à diluição das formas rígidas e dos «sólidos»?
Longe de representar uma involução, a suspensão da vontade teórica não é mais
do que um último estádio da racionalidade psicológica; longe de se identificar ao
recalcado da história, o feminino assim definido é um produto e uma
manifestação da sedução pós-moderna, libertando e desestandartizando, no
mesmo movimento, a identidade pessoal e o sexo: «A mulher tem sexos um
pouco por toda a parte» Nada mais errado, então, do que partir em guerra contra
esta mecânica dos fluidos acusada de restabelecer a imagem arcaica e falocrática
da mulher É o contrário que é verdade: sexdução generalizada, o neo-feminismo
apenas exacerba o processo de personalização, organiza uma figura inédita do
feminino, polimorfa e sexuada, emancipada dos papéis e identidades estritas de
grupo, em consonância com a instituição da sociedade aberta. Tanto ao nível
teórico como militante, o neo-feminismo trabalha para a reciclagem do ser feminino, valorizando-o sob todas as perspectivas: psicológica, sexual, política,
lingüística. Trata-se, antes do mais, de responsabilizar e psicologizar a mulher,
liquidando uma última «parte maldita», ou, por outras palavras, de promover a
mulher a uma categoria de individualidade plena, adaptada a sistemas
democráticos hedonistas incompatíveis com seres presos a códigos de
socialização arcaicos, feitos de silêncio, de submissão casta, de hi misteriosas.
Entendamo-nos bem, esta inflação de análises e de comunicações, esta
proliferação de grupos de discussão não porão fim ao isolamento da sedução.
Com o feminismo passa-se o mesmo que com o psicanalismo: quanto mais se
interpreta, mas as energias refluem no sentido do Eu, o inspeccionam e
examinam por todos os lados; quanto mais se analisa, mais a interiorização e a
subjetivização do indivíduo ganham em profundidade; quanto mais Inconsciente
e quanto mais interpretação, mais se intensifica a auto- sedução. Máquina
narcísica incomparável, a interpretação analítica é um agente de personalização
por meio do desejo e, no mesmo ato, um agente de dessocialização, de
atomização sistemática e interminável, do mesmo modo que os arranjos da
sedução. Sob a égide do Inconsciente e do Recalcamento, o indivíduo é remetido
para si próprio e para o seu reduto libidina em busca da sua imagem desmistif
icada, privado até, nos últimos avatari lacanianos, da autoridade e da verdade do
analista. Silêncio, morte do analista, somos todos analisandos, simultaneamente
interpretados e intérprete numa circularidade sem portas nem janelas. Don Juan
está realmente mo to; uma nova figura, muito mais inquietante, se ergue agora,
Narciso, subjulgado por si próprio na sua cápsula de vidro.
CAPITULO II A indiferença pura
Para nos limitarmos aos séculos XIX e XX, teríamos que evocar citar ao mesmo
tempo, o desenraizamento sistemático das populações rurais e depois urbanas, os
langores românticos, o spleen dandy, Oradour, os genocídios e os etnocídios,
Hiroshima com os seus 10 km devastados, os seus 75 000 mortos e os seus 62
000 edifícios destruídos, milhões de toneladas de bombas lançadas no Vietnam e
a guerra ecológica com herbicídas, a escala da do stock mundial de armas
nucleares, Phnom Penh varrida pelos Khmers vermelhos, as figuras do niilismo
europeu, as personagens mortas-vivas de Beckett, a angústia, a desolação
interior de Antonioni, Messidor de A. Tan ner, o acidente de Harrisburg, e
certamente que a lista se prolongaria para além de toda a medida se quiséssemos
inventariar todos os nomes do deserto. Alguma vez se terá organizado, edificado,
acumulado tanto e, ao mesmo tempo, alguma vez se terá sentido tanto a paixão
do nada, da tábua rasa, do extermínio total? Neste tempo, em que as formas do
aniquilamento assumem dimensões planetárias, o deserto, fim e meio da
civilização, designa essa figura trágica que a modernidade substitui à reflexão
metafísica sobre o nada. O deserto cresce, lemos nele a ameaça absoluta, a
potência do negativo, o símbolo do trabalho mortífero dos tempos modernos até
ao seu termo apocalíptico.
Estas formas de aniquilamento destinadas a reproduzirem-se por um tempo ainda
indeterminado, não devem, no entanto, ocultar a presença de outro deserto, este
de tipo inédito, escapando às categorias niilistas ou apocalípticas e tanto mais
estranho quanto mais ocupa em silêncio a existência quotidiana, a vossa, a
minha, no coração das metrópoles contemporâneas. Um deserto paradoxal, sem
catástrofe, sem trágico nem vertigem, que deixou de se identificar com o nada e
com a morte: não é verdade que o de certo obrigue à contemplação de
crepúsculos mórbidos. Consideremos, com efeito, esta imensa vaga de
desinvestimento na qual todas as instituições, to dos os grandes valores e
finalidades que organizaram as épocas anteriores se esvaziam a pouco e pouco
da sua substância — que é isso senão uma desertificação de massa,
transformando o corpo social em corpo exangue, em organismo desafetado?
Inútil querer reduzir a questão às dimensões dos «jovens»: um problema de
civilização não se resolve com uma geração. Quem é poupado ainda por tal maré
alta? Aqui, como noutros lugares, o deserto cresce: o saber, o poder, o trabalho,
o exército, a família, a Igreja, os parti dos, etc. já globalmente deixaram de
funcionar como princípios absolutos e intocáveis; em graus diferentes, já
ninguém lhes dá crédito, já ninguém neles investe seja o que for. Quem acredita
ainda no trabalho quando se conhecem as taxas de absentismo e de turn over(
quando o frenesi das férias, dos fins de semana, dos tempos livres não pára de
aumentar, quando a re forma se torna uma aspiração de massa, ou até um ideal;
quem acredita ainda na família quando as taxas de divórcio não deixam de subir,
quando os velhos são corridos para os lares, quando os pais querem continuar
«jovens» e reclamam a assistência dos psi, quando os casais se tornam «livres»,
quando o aborto, a contracepção, a esterilização são legalizados; quem acre dita
ainda no exército quando todos os meios servem para obter a passagem à
reserva, quando escapar ao serviço militar já não é uma vergonha; quem acredita
ainda nas virtudes do esforço, da poupança, da consciência profissional, da
autoridade, das sanções? Depois da Igreja, que já não consegue recrutar padres,
o sindicalismo experimenta uma queda de influência análoga: em França, em
trinta anos, passamos de 50 por cento de trabalhadores sindicalizados para 25
por cento. Por toda a parte, a onda de desafeição cresce, desembaraçando as
instituições da sua dimensão anterior e simultânea mente do seu poder de
mobilização emocional. E, no entanto, o sistema funciona, as instituições
reproduzem-se e desenvolvem-se, mas em roda livre, no vazio, sem adesão nem
sentido, cada vez mais controladas pelos «especialistas», os últimos sacerdotes,
como diria Nietzsche, os únicos que querem ainda injetar sentido e valor onde já
nada reina para além de um deserto apático. Deste modo, se o sistema em que
vivemos se assemelha a essas cápsulas de astronauta, de que fala Roszak, é
menos pela racionalidade e pela previ sibilidade que o governam do que pelo
vazio emocional, pela inconsistência indiferente em que se efetuam as operações
sociais. E o loft, antes de ser a moda de habitação dos entrepostos, poderia bem
ser a lei geral que rege a nossa quotidianidade, a saber: a vida nos espaços
desafetados.
Apatia new-look
Nada disto deve ser lida no registro das eternas lamentações sobre a decadência
ocidental, morte das ideologias e «morte de Deus», O niilismo europeu, tal como
o analisou Nietzsche, enquanto depreciação mórbida de todos os valores
superiores e vazios de sentido, já não corresponde a esta desmobilização de
massa, que não é acompanhada por um sentimento de absurdo nem de desespero.
Todo feito de indiferença, o deserto pós-moderno encontra-se tão longe do
niilismo «passivo» e do seu deleite comprazido na inanidade universal como do
nihilismo «ativo» e da sua auto-destruição. Deus morreu, as grandes finalidades
extinguem-se, mas toda a gente se estí a li xar para isso, eis a jubilosa nova, eis o
limite do diagnóstico de Nietzsche a respeito da queda européia. O vazio do
sentido, as derrocadas dos ideais não levaram, como se poderia esperar, a mais
angústia, a mais absurdo, a mais pessimismo. Esta maneira de ver ainda religiosa
e trágica é desmentida pelo surto da apatia de massa, da qual as categorias de
plenitude e decadência, de afirmação e negação, de saúde e doença são incapazes
de dar conta. Mesmo o nihilismo «incompleto», com os seus sucedâneos de
ideais laicos, passou, e a nossa bulimia de sensações, de sexo, de prazer, nada
esconde nada compensa e, sobretudo, não esconde nem compensa o abismo de
senti do aberto pela morte de Deus. A indiferença e não a infelicidade
metafísica. O ideal ascético já não é a figura dominante do capitalismo moderno;
o consumo, os tempos livres, a permissividade, já nada têm a ver com as grandes
operações da medicação sacerdotal: hipnotização-estivação da vida, crispação
das sensibilidades por meio de atividades maquinais e de estritas obediências,
intensificação das emoções estimuladas pelas noções de pecado e de culpa'. Que
resta de tudo isso no momento atual em que o capitalismo funciona à força de
libido, de criatividade, de personalização? A desenvoltura pós-moderna liquida o
cansaço, o enquadramento ou o transbordar niilista; a descontração abole a
fixação ascética. Desconectar o desejo das composições coletivas, fazer circular
as energias, temperar os entusiasmos e as indignações referentes ao social, o
sistema convida ao desanuviamento, ao desprendimento emocional.
Em algumas grandes obras contemporâneas, citaremos a Mulher Canhota de P.
Handke, Palazzo mentale de G. Lavaudant, India song de M. Duras, Edison de
B. Wilson, o hiperrealismo americano, são já, em maior ou menor medida,
reveladores deste espírito do tempo, deixando muito para trás a angústia e a
nostalgia do sentido, características do existencialismo ou do teatro do absurdo.
O deserto já não se traduz pela revolta, o grito ou o desafio de comunicação;
nada para além de uma indiferença pelo sentido, uma ausência inelutável, uma
estética fria da exterioridade e da distância, mas nunca da distanciação. Os
quadros hiperrealistas não veiculam qualquer mensagem, não querem dizer nada,
mas o seu vazio está nos antípodas da carência de sentido trágica que
encontramos em obras anteriores. Não há nada a dizer, não importa, tudo pode,
por conseguinte, ser pintado com o mesmo apuro, a mesma objetividade fria,
carroçarias brilhantes, reflexos de montras, retratos gigantes, pregas de
vestuário, cavalos e vacas, motores niquelados, cidades panorâmicas, sem
inquietação nem denúncia. Pela sua in diferença pelo motivo, pelo sentido, pelo
fantasma singular, o hiperrealismo torna-se jogo puro que se oferece ao simples
prazer do trompe-l'oeil e do espetáculo. Resta apenas o trabalho pictórico, o jogo
da representação esvaziada do seu conteúdo clássico, sendo o real posto fora do
circuito pelo em prego de modelos eles próprios representativos, essencialmente
fotográficos. Desinvestimeflto do real e circularidade hiperrealista, no topo da
sua realiza ção, a representação, instituída historicamente como espaço
humanista, me tamorfoseia-se num dispositivo gelado, maquínico,
desembaraçado da escala humana pelo tamanho aumentado e pela acentuação
das formas e das cores:
Nietzsche, A Genealogia da Moral, terceira dissertação.
2 Em contrapartida, certos fragmentos póstumos de Nietzsche descrevem com
grande lucidez os sinais característicos do «espírito moderno»: a «tolerância»
(por «incapacidade para o sim e para o não»); a extensão da simpatia (um terço
de indiferença, um terço de curiosidade, um terço de excitabilidade mórbida); a
«objectividade» (falta de personalidade, falta de vontade, in capacidade para o
«amor»); a «liberdade» contra a regra (romantismo); a «verdade» contra a
falsificação e a mentira (naturalismo); a «cientificidade» (o «documento
humano»: em alemão, o folhetim e a adição — substituindo a composição)...
nem transgredida nem «superada», a ordem da representação é, de algum modo,
desafectada na própria perfeição do seu cumprimento.
» (Primavera — Outono de 1887), in Fr. Nietzsche, Le Nihiisme Europ tr. fr. A.
Kremer-Marietti, UGE, coil. 10/18, p. 242.
O que é verdade para a pintura é-o igualmente para a vida quotidiana. A
oposição do sentido e do não-sentido deixou de ser dilacerante e perde a sua
radicalidade perante a frivolidade ou a futilidade da moda, dos tempos livres, da
publicidade. Na era do espetacular, as antinomias duras, as do verdadeiro e do
falso, do belo e do feio, do real e da ilusão, do sentido e do não-sentido,
esbatem-se; os antagonismos tornam-se «flutuantes»; começa-se a compreender,
por muito que isso desagrade aos nossos metafísicos e anti- metafísicos, que
doravante é possível viver sem finalidade nem sentido, numa espécie de
sequência-flash, e isso é de fato novo. «Qualquer sentido é preferível à completa
ausência de sentido», dizia Nietzsche; mesmo isto deixou hoje de ser verdade, a
própria necessidade de sentido foi varrida de cena e a existência indiferente ao
sentido pode desdobrar-se sem patético nem abismo, sem aspiração a novas
tábuas de valores; tanto melhor, surgem novas questões, livres dos devaneios
nostálgicos e é de desejar que pelo menos a apatia new-look tenha a virtude de
desencorajar as loucuras mortíferas dos grandes sacerdotes do deserto.
A indiferença cresce. Em lado algum o fenômeno é tão visível como no ensino,
onde, em poucos anos, com a velocidade de um relâmpago, o prestígio e a
autoridade dos docentes desapareceram quase por completo. Hoje, o discurso do
Mestre encontra-se banalizado, dessacralizado, em pé de igualdade com o dos
media, e o ensino é uma máquina neutralizada pela apatia escolar, feita de
atenção dispersa e de cepticismo desenvolto ante o saber. Grande
desapontamento dos Mestres. E esta desafeição do saber que é significativa,
muito mais do que o tédio, de resto variável, dos alunos dos liceus. Assim, o
liceu é menos parecido com uma caserna do que com um deserto (ressalvando-se
o fato de a caserna ser ela própria um deserto), onde os jovens vegetam sem
grande motivação ou interesse. Portanto, torna-se necessário inovar a todo o
custo: sempre mais liberalismo, participação, investigação pedagógica, e o
escândalo estão nisso mesmo, porque, quanto mais a escola se põe a ouvir os
alunos, mais estes desabitam sem ruído nem convulsões esse lugar vazio. Deste
modo, as greves do pós-68 desapareceram, a contestação extinguiu-se, o liceu é
um corpo mumificado e os docentes um corpo fatigado, incapaz de lhe devolver
a vida.
É esta mesma apatia que encontramos também na área política, onde não é raro
ver nos EUA percentagens de abstenção de 40 a 45 por cento, mesmo nas
eleições presidenciais. Não se trata, para falar com propriedade, de
«despolitização»; os partidos, as eleições, continuam a «interessar» os cidadãos,
mas do mesmo modo (e em menor medida, aliás) que as apostas nas corridas, a
meteorologia do fim-de-semana ou os resultados desportivos. A política entrou
na era do espetacular, liquidando a consciência rigorosa e ideológica em
benefício de uma curiosidade dispersa, captada por nada e por tudo. Daí a
importância capital de que se revestem os media de massa aos olhos dos
políticos; não tendo outro impacto para além do que a informação veicula, a
política é obrigada a adotar o estilo da animação, dos debates personalizados, das
perguntas-resposta, etc., único estilo capaz de mobilizar pontualmente a atenção
do eleitorado. A declaração de um ministro não vale mais que o folhetim; passase sem hierarquia da política às «variedades», sendo a audiência determinada
pela qualidade do divertimento. A nossa sociedade não conhece o privilégio, as
codificações definitivas, o centro, nada para além de estimulações e de opções
equivalentes em cadeia. Daqui resulta a indiferença pós-moderna, indiferença
por excesso, não por defeito, por hiper-solicitação, não por privação. O que é
que se mostra ainda capaz de espantar ou escadalizar? A apatia corresponde à
pletora de informações, à sua velocidade de rotação; logo que é registrado, o
acontecimento é esquecido, varrido de cena por outros ainda mais espetaculares.
Cada vez mais informações, cada vez mais depressa, os acontecimentos são
objeto da mesma desafeição que os lugares e as habitações: nos EUA, desde a
Segunda Guerra Mundial, um indivíduo em cada cinco muda anualmente de
local de residência, ou seja, 40 milhões de americanos; nem a terra natal, o
«home resistiu à vaga de indiferença.
Sem dúvida, desde há alguns anos, surgiram novos comportamentos que dão
testemunho de uma sensibilidade inédita: viver e trabalhar na região torna-se
uma reivindicação popular; mesmo nos EUA, uma proporção cada vez maior da
população manifesta relutância em mudar de cidade por razões profissionais; a
partir dos anos 70, os problemas do ambiente e da natureza sensibilizam uma
camada muito mais vasta do que a dos simples militantes; os media, pelo seu
lado, não deixam de pôr em destaque a atual redescoberta dos «valores». Seria
isso o pós-modernismo, o reinvestimento do regional, da natureza, do espiritual,
do passado. Depois do desenraizamento moderno, o regionalismo e a ecologia, e
mais ainda o «regresso dos valores» que mudam todos os seis meses, oscilando
entre a religião e a família, a tradição e o romantismo, na mesma indiferença
geral feita de curiosidade e de tolerância. Nem todos estes fenômenos pósmodernos são da mesma escala ou do mesmo teor; dito isto, todos eles traduzem,
cada um a seu nível, uma transformação significativa relativamente a uma
primeira fase de modernismo hot. Estamos numa fase de equilíbrio, de
qualitativo, de desenvolvimento da pessoa, de preservação dos patrimônios
naturais e culturais. Mas não nos enganemos: o regionalismo, a ecologia, o
«retorno do sagrado», todos esses movimentos, longe de se encontrarem em
ruptura com ela, limitam-se a rematar a lógica da indiferença. Primeiro porque
os grandes valores do modernismo se encontram esgotados; doravante o
progresso, o crescimento, o cosmopolitismo, a velocidade, a mobilidade, e de
igual maneira a Revolução, esvaziaram-se do seu conteúdo. A modernidade, o
futuro, já não entusiasma ninguém. Será em proveito de novos valores? Melhor
seria dizer que em proveito de uma personalização e de uma libertação do
espaço priva do, que arrasta tudo na sua órbita, incluindo os valores
transcendentes. O momento pós-moderno é muito mais do que uma moda, revela
o processo da indiferença pura na medida em que todos os gostos, todos os
comporta mentos, podem coabitar sem se excluírem, tudo pode ser escolhido
conforme o gosto, tanto o mais operatório como o mais esotérico, tanto o novo
como o antigo, a vida simples e ecológica e a vida hiper-sofisticada, num tempo
desvitalizado sem referências estáveis, sem coordenadas principais. Para a
maioria, as questões públicas, incluindo a ecologia, tornam-se uma atmosfera,
mobilizam por algum tempo e desaparecem tão depressa como apareceram. O
ressurgimento da família deixa-nos pelo menos perplexos quando há cada vez
mais casais que desejam não ter filhos, child-free, e quando uma criança em cada
quatro nos centros urbanos americanos é criada apenas por um dos pais. O
retorno do sagrado é ele próprio arrastado pela celeridade e pela precaridade das
existências individuais entregues apenas a si próprias. A indiferença pura
designa a apoteose do temporário e do sincretismo individualista. Pode-se assim
ser simultaneamente cosmopolita e regionalista, racionalista no trabalho e
discípulo intermitente de certo guru oriental, viver numa época permissiva e
respeitar, escolhendo-as à lista, as prescrições religiosas. O indivíduo pósmoderno é um indivíduo desestabilizado e de certo modo «ubiquista», O pósmodernismo não passa de um grau mais da escalada da personalização do
indivíduo consagrado ao self-service narcísico e a combinações caleidoscópicas
indiferentes.
Nestas condições, torna-se claro que a atual indiferença só muito parcialmente
corresponde àquilo a que os marxistas chamam alienação, ainda que alargada. A
alienação, como se sabe, é inseparável das categorias de objeto, da mercadoria,
de alteridade e, portanto, do processo de reificação, enquanto que a apatia se
estende tanto mais quanto mais certo é que se re fere a sujeitos informados e
educados. A deserção e não a reificação: quanto mais o sistema dá
responsabilidades e informa, maior é o desinvestimento; é este paradoxo que
impede a assimilação entre alienação e indiferença, embora esta última se
manifeste através do tédio e da monotonia. Para além do «desapossamento» e da
miséria quotidiana, a indiferença designa uma nova consciência, não uma
inconsciência, uma disponibilidade, não uma «exterioridade», uma dispersão,
não uma «depreciação». Indiferença não significa passividade, resignação ou
mistificação; precisamos romper definitivamente com esta cadeia de
identificações marxistas, O absentismo, as greves selvagens, o turn over revelam
que o desinvestimento do trabalho caminha a par de novas formas de
combatividade e de resistência. O homem cool não é nem o decadente pessimista
de Nietzsche nem o trabalhador oprimido de Marx; assemelha-se mais ao
telespectador que experimenta «para ver», um a um, todos os programas da
noite, ao consumidor que enche o seu carrinho de supermercado, ao veraneante
que hesita entre uma estadia nas praias espanholas e o campismo na Córsega. A
alienação analisada por Marx, resultante da mecanização do trabalho, deu lugar a
uma apatia induzida pelo campo vertiginoso dos possíveis e o self-service
generalizado; começa então a indiferença pura, desembaraçada da miséria e da
«perda de realidade» do início da industrialização.
Ind. operacional
O processo de deserção não resulta de modo algum de um déficit ou carência de
sentido. Efeito imputável ao processo de personalização, a errância apática deve
ser referida à atomização programada que rege o funcionamento das nossas
sociedades: dos media à produção, dos transportes ao consumo, já nenhuma
«instituição» escapa a esta estratégia da separação, hoje cientificamente
experimentada e, além disso, destinada a conhecer um desenvolvimento
considerável graças aos progressos da telemática. Num sistema organizado
segundo o princípio do isolamento «suave», os ideais e valores públicos não
podem deixar de declinar, enquanto permanece apenas a de manda do ego e do
seu interesse próprio, o êxtase da libertação «pessoal», a obsessão do corpo e do
sexo: hiper-investimento do privado e, por conseguinte, desmobilização do
espaço público. Com a sociabilidade de tipo autoclave começa a desmotivação
generalizada, a retração autárquica ilustrada pela paixão de consumir, mas
igualmente pela voga da psicanálise e das técnicas relacionais: quando o social é
desafetado, o desejo, a fruição, a comunicação tornam-se os únicos «valores» e
os «psi» os grandes sacerdotes do deserto. A era «psi» começa com a deserção
de massa e a líbido é um fluxo do deserto.
Longe de representar uma crise maior do sistema anunciando a mais ou menos
longo prazo a sua falência, a deserção social é tão só o seu resultado extremo, a
sua lógica fundamental, como se, depois de ter feito já às coisas, o capitalismo
tivesse que tornar igualmente os homens indiferentes. Não há aqui malogro ou
resistência perante o sistema, a apatia não é uma ausência de socialização, mas
uma nova socialização flexível e «econômica», uma descrispação necessária ao
funcionamento do capitalismo moderno enquanto sistema experimental
acelerado e sistemático. Baseando-se na organização incessante de combinações
inéditas, o capitalismo descobre na indiferença uma condição ideal para a sua
experimentação, que pode agora realizar-se com um mínimo de resistência.
Todos os dispositivos se tornam possíveis num tempo mínimo, a inconstância e a
inovação capitalistas já não deparam com as adesões e fidelidades tradicionais,
as combinações fazem-se e desfazem-se cada vez mais depressa, o sistema do
«porque não?» torna-se puro a favor da indiferença, doravante sistemática e
operacional. A apatia torna assim possível a aceleração das experimentações, de
todas as experimentações e não apenas da exploração. A indiferença ao serviço
do lucro? E esquecer que esta atinge todos os sectores e que, sendo assim,
qualquer recentramento deixa escapar o essencial, ou seja, a generalização da
indiferença. Sem ser instrumento de qualquer instância particular, a indiferença é
metapolítica, meta-económica, permitindo ao capitalismo entrar na sua fase de
funciona mento operacional.
Neste caso, como compreender a ação dos partidos, dos sindicatos, da
informação que, ao que parece, não param de combater a apatia, sensibilizando,
mobilizando, informando a todos os ventos? Porque é que um sistema cujo
funcionamento exige a indiferença se esforça continuamente por conseguir
participação, educação, interesse? Contradição do sistema? Muito mais do que
isso, simulacro de contradição na medida em que são precisamente as mesmas
organizações que produzem a apatia de massa, fazendo-o diretamente, em
virtude da sua própria forma; é inútil imaginarmos planos maquiavélicos, o
trabalho neste sentido é direto e sem mediação. Quanto mais os políticos se
explicam e exibem na televisão, mais toda a gente se está marimbando, quanto
mais comunicados os sindicatos distribuem, menos lidos são. Quanto mais os
professores se esforçam por fazer com que os alunos leiam, mais estes deixam de
lado os livros. Indiferença por saturação, informação e isolamento. Agentes
diretos da indiferença compreendem-se porque é que o sistema reproduz numa
escala alargada os aparelhos de sentido e de responsabilização cuja tarefa
consiste em produzir um empenha mento vazio: pensem o que quiserem da
televisão, mas tenham-na ligada; votem em nós; paguem as quotas; cumpram a
palavra de ordem de greve; partidos e sindicatos não exigem mais do que esta
«responsabilidade» indiferente. Empenhamento teórico que nem por isso é
menos necessário à reprodução dos poderes burocráticos modernos. A
indiferença não se identifica com a ausência de motivação; identifica-se com a
pouca motivação, com a «anemia emocional» (Riesman), com a desestabilização
dos comportamentos e juízos hoje «flutuantes» na esteira das flutuações da
opinião pública. O homem indiferente não se apega a nada, não tem uma certeza
absoluta, está preparado para tudo e as suas opiniões são susceptíveis de
modificações rápidas: para conseguirem tal grau de socialização, os burocratas
do saber e do poder têm que mobilizar tesouros de imaginação e toneladas de
informações.
Resta que, ultrapassado um limiar «crítico», os poderes não ficam inativos
relativamente a certas formas de desafeição, como o absentismo ou as greves
selvagens, a queda da natalidade, a droga, etc. Quererá isto dizer que a
indiferença, ao contrário do que até aqui dissemos, é um dispositivo em
antagonismo com o sistema? Sim e não, porque se estas deserções introduzem
realmente a prazo um disfuncionamento intolerável, este não resulta de um
excesso de indiferença, mas antes de um defeito de indiferença. Marginais,
desertores, jovens grevistas enfurecidos são ainda «românticos» ou selvagens, o
seu deserto quente corresponde à imagem do seu desespero e da sua fúria de
viver de outro modo. Alimentada de utopias e paixões, a indiferença é aqui
«impura», embora saia da mesma fria cama de profusão e de atomização. Serão,
portanto, necessários mais enquadramentos, mais animação e mais educação
para arrefecer estes nômades: o deserto encontra-se diante de nós, e devemos
inscrevê-lo entre as grandes conquistas do futuro, ao lado do espaço e da
energia.
Também não há dúvida de que, com a sua mobilização de massa e a sua «tomada
de palavra», Maio 68 foi a mais significativa das resistências macroscópicas ao
deserto das metrópoles. A informação substituía-se os grupos nas ruas e os
graffiti; ao aumento do nível de vida, a utopia de uma vida diferente; as
barricadas, as «ocupações» selvagens, as discussões intermináveis reintroduziam
o entusiasmo no espaço urbano. Mas, simultaneamente, como não assinalar em
Maio 68 a deserção e a indiferença que trabalham o mundo contemporâneo:
«revolução sem finalidade», sem programa, sem vítima nem traidor, sem
enquadramento político, Maio 68, a despeito da sua utopia viva, continuava a ser
um movimento laxista e descrispado, a primeira revolução indiferente, prova de
que não há motivo para se desesperar do deserto.
Conduzindo ao sobre-investimento do existencial (na multidão de 1968, surgem
os movimentos radicais de libertação das mulheres e dos homossexuais), bem
como à diluição dos estatutos e oposições rígidas, o processo de personalização
desfaz a forma das pessoas e identidades sexuais, monta combinações
inesperadas, produz novas plantas desconhecidas e estranhas; quem pode prever
o que quererá dizer, dentro de algumas décadas, mulher, criança, homem, ou
segundo que figuras pitorescas se distribuirão estes ter mos? O desinvestimento
dos papéis e identidades instituídas, das disjunções e exclusões «clássicas», faz
do nosso tempo uma paisagem aleatória, rica em singularidades complexas. Que
significará o «político».? O político e o existencial deixaram já de pertencer a
esferas separadas, as fronteiras confundem-se, as prioridades oscilam, surgem
paradas inéditas com pontos de referência menos «duros»: a uniformidade, a
monotonia, não ameaça o deserto, não temos que chorar sobre ele.
O Flip
Que acontece quando a vaga de deserção, deixando de se circunscrever ao social,
invade a esfera privada até então deixada de parte? Que se passam quando a
lógica do desinvestimento já nada poupa? Seria o suicídio o terminal do deserto?
Mas todas as estatísticas revelam que, contrariamente a uma opinião muito
difundida, a taxa global de suicídios não pára de diminuir, por comparação com
o que acontecia nos finais do século passado: em França, a taxa de suicídio
global passa de 260 (por milhão de habitantes) em 1913 para 160, em 1977, e,
mais significativamente ainda, a taxa de suicídio na região parisiense atinge 500
por milhão de habitantes no último decênio do século XIX, enquanto cai para
105 em 19681. O suicídio torna-se de certo modo «incompatível» com a era da
indiferença: pela sua solução radical ou trágica, o seu investimento extremo da
vida e da morte, o seu desafio, o suicídio já não condiz com o laxísmo pósmoderno. No horizonte do deserto perfila-se menos a autodestruição, o
desespero definitivo, do que uma patologia de massa, cada vez mais banalizada,
a depressão, o «enjoo», o flip, expressões do processo de desinvestimento e de
indiferença pela ausência de teatralidade espetacular, por um lado, e pela
oscilação permanente e indiferente que se instaura de maneira endêmica entre
excitabilidade e depressividade, por outro lado. Todavia, o apaziguamento que
se pode ler na regressão do suicídio não permite sustentar a tese otimista de E.
Todd, que reconhece nesta inflexão o signo global de uma ansiedade menor, de
um «equilíbrio» superior do homem contemporâneo. E esquecer que a angústia
pode também distribuir-se segundo outros dispositivos igualmente «instáveis».
A tese do «progresso» psicológico é insustentável ante a extensão e a
generalização dos estados depressivos, outrora reservados prioritariamente às
classes burguesas. Já ninguém se pode gabar de lhes escapar: a deserção social
implicou uma democratização sem precedentes do mal de viver, flagelo
atualmente difuso e endêmico. Do mesmo modo, o homem cool não é mais
«sólido» do que o homem formado pelo puritanismo e em termos disciplinares.
Seria antes o contrário. Num sistema desafetado, basta um acontecimento
módico, um nada, para que a indiferença se generalize e conquiste a própria
existência. Atravessando sozinho o deserto, carregando-se a si próprio sem
qualquer apoio transcendente, o homem de hoje caracteriza- se pela
vulnerabilidade. A generalização da depressividade deve ser atribuída não às
vicissitudes psicológicas de cada um ou às «dificuldades» da vida atual, mas sim
à deserção da republica, que varreu o terreno até à emergência do indivíduo
puro, Narciso em busca de si próprio, obcecado apenas por sim mesmo e, por
isso, susceptível de fraquejar ou de cair a todo o momento, frente a uma
adversidade que encara a descoberto, sem força exterior. O homem descontraído
é um homem desarmado. Os problemas pessoais assumem assim uma dimensão
desmesurada e quando mais nos debruçamos sobre eles, com ou sem auxílio psi,
menos os resolvemos. Acontece com o existencial o mesmo que com o ensino ou
a política: quanto mais tratado e ouvido é, mais insuperável se torna. Quem não
está hoje sujeito à dramatização e ao stress? Envelhecer, engordar, desafiar,
dormir, educar os filhos, partir para férias, tudo é um problema, as atividades
elementares tornaram-se impossíveis.
«Não propriamente uma idéia, mas uma espécie de iluminação... Sim, foi isso,
Bruno, vai-te embora. Deixa-me ficar sozinha». A Mulher Canhota, o romance
de P. Handke, conta a história de uma mulher jovem que sem razão, sem
finalidade, pede ao marido que a deixe sozinha, com o filho de oito anos.
Exigência ininteligível de solidão que é preciso, antes do mais, não reduzir a
uma vontade de independência ou de libertação feminista. Sentindo-se todas as
personagens igualmente sós, o romance não pode reduzir-se a um drama pessoal;
de resto, que grelha psicológica ou psicanalítica seria susceptível de explicitar o
que justamente nos é apresentado como esquivo ao sentido? Metafísica da
separação das consciências e do solipsismo? Talvez, mas o mais interessante
situa-se noutro lugar; A Mulher Canhota descreve a solidão deste fim do século
XX, mais do que a essência intemporal da derrelição. A solidão indiferente das
personagens de P. Handke já na da tem a ver com a solidão dos heróis da idade
clássica nem mesmo com o spleen de Baudelaire. O tempo em que a solidão
designava as almas poéticas e de exceção passou; aqui, todas as personagens a
conhecem com a mesma inércia. Nenhuma revolta, nenhuma vertigem a
acompanham; a solidão tornou-se um fato, uma banalidade do mesmo registro
que os gestos quotidianos. As consciências já não se definem pela dilaceração
recíproca; o reconhecimento, o sentimento de incomunicabilidade, o conflito
deram lugar à apatia e a própria intersubjetividade se encontra desinvestida.
Após a deserção social dos valores e instituições, é a relação com o Outro que,
seguindo a mesma lógica, sucumbe ao processo de desafeição. O Eu já não
habita um inferno povoado de outros egos rivais ou desprezado; o relaciona
apaga-se sem gritos, sem razão, num deserto de autonomia e de neutralidade
asfixiantes. A liberdade, na esteira da guerra, propagou o deserto, a estranheza
absoluta perante outrem. «Deixa-me ficar sozinha», desejo e dor de ser-se só.
Estamos assim no extremo do deserto; já atomizado e separado cada um de nós
se torna agente ativo do deserto, estende-o e aprofunda-o, incapaz que é de
«viver» o Outro. Não satisfeito com produzir o isolamento, o sistema engendra o
seu desejo, desejo impossível que, logo que realizado, se revela intolerável: o
indivíduo pede para ficar só, cada vez mais só e simultaneamente não se suporta
a si próprio, a sós consigo. Aqui o deserto já não tem começo nem fim.
CAPITULO III Narciso ou a estratégia
do vazio
Uma geração gosta de se reconhecer e de descobrir a sua identidade numa
grande figura mitológica ou lendária, que reinterpreta em função dos problemas
do momento: Édipo como emblema universal, Prometeu, Fausto ou Sísifo como
espelhos da condição moderna. Hoje, é Narciso que, aos olhos de um importante
número de investigadores, sobretudo americanos, simboliza o tempo presente:
«O narcisismo tornou-se um dos temas centrais da cultura americana» Enquanto
o livro de R. Sennett As Tiranias da Intimidade (T.I.) acaba de ser traduzido em
francês, The Culture of Narcissism (C.N.) torna-se um verdadeiro best-seller nos
Estados Unidos. Para além da moda e da sua espuma ou de certas caricaturas que
se fazem, aqui e ali, deste neo-narcisismo, o seu aparecimento na cena
intelectual tem o interesse essencial de nos obrigar a ter em conta, em toda a sua
radicalidade, a mutação antropológica que se realiza diante dos nossos olhos e
que to dos nós sentimos, cada um à sua maneira, ainda que confusamente.
Instaura-se um novo estádio do individualismo: o narcisismo designa a
emergência de um perfil inédito do indivíduo nas suas relações consigo próprio e
com o seu corpo, com outrem, com o mundo e com o tempo, no momento em
que o «capitalismo» autoritário dá a vez a um capitalismo hedonista e
permissivo. A idade de ouro do individualismo, concorrencial ao nível
econômico, sentimental ao nível doméstico revolucionário ao nível político e
artístico, chega ao fim; afirma-se um individualismo puro, desembaraçado dos
últimos valores sociais e morais que coexistiam ainda com o reinado glorioso do
homo aeconomicus, da família, da revolução e da arte; emancipada de qual quer
enquadramento transcendente, a própria esfera privada muda de sentido,
entregue como está apenas aos desejos em transformação dos indivíduos.
Se a modernidade se identifica com o espírito de empresa, com a esperança
futurista, é claro que o narcisismo inaugura, pela sua indiferença histórica a pósmodernidade, a última fase do homo aequalis.
Narciso por medida
Após a agitação política e cultural dos anos sessenta, que podia parecer ainda um
investimento de massa da coisa pública, é uma desafeição generalizada que
ostensivamente se afirma no social, tendo por corolário o refluir dos interesses
no sentido de preocupações puramente pessoais e isto independentemente da
crise econômica. A despolitização e a dessindicalização ganham proporções
nunca antes atingidas, a esperança revolucionária e a contestação estudantil
desapareceram, a contra-cultura esgota-se, raras são as causas ainda capazes de
galvanizarem a longo prazo as energias. A republica encontra-se desvitalizada,
as grandes questões «filosóficas», econômicas, políticas ou militares suscitam
mais ou menos a mesma curiosidade desenvolta do que qualquer fait divers;
todos os «cumes» se abatem pouco a pouco, arrastados pela vasta operação de
neutralização e banalização sociais. Só a esfera privada parece sair vitoriosa
desta vaga de apatia; zelar pela própria saúde, preservar a sua situação material,
perder os «complexos», esperar que cheguem as férias: viver sem ideal e sem
fim transcendente tornou-se possível. Os filmes de Woody Allen e o sucesso que
obtêm são o símbolo autêntico deste hiper-investimento do espaço privado;
como o próprio Woody Allen o diz: «political solutions don ‘t work» — citado
por Chr. Lasch, p. 30 —; sob muitos aspectos, esta fórmula traduz o novo
espírito do tempo, este neo-narcisismo que nasce da deserção do político. Fim do
homo politicus e advento do homo psychologicus, à espreita do seu ser e do seu
bem estar.
Viver no presente, apenas no presente e não já em função do passado e do
futuro, é esta «perda do sentido da continuidade histórica» (C.N., p. 30), esta
erosão do sentimento de pertença a uma «sucessão de gerações enraizadas no
passado e prolongando-se no futuro» que, segundo Chr. Lasch, caracteriza e
engendra a sociedade narcísica. Hoje vivemos para nós próprios, sem nos
preocuparmos com as nossas tradições nem com a nossa posteridade: o sentido
histórico sofre a mesma deserção que os valores e as instituições sociais. A
derrota no Vietnã, o caso Watergate, o terrorismo internacional, mas também a
crise econômica, a rarefação das matérias-primas, a angústia nuclear, os
desastres ecológicos (C.N., pp. 17 e 28) provocaram uma crise de confiança
relativamente aos dirigentes políticos, um clima de pessimismo e de catástrofe
iminente que explicam o desenvolvimento das estratégias narcísicas de
«sobrevivência», que prometem a saúde física e psicológica. Quando o futuro se
mostra ameaçador e incerto, resta a retração sobre o presente, que não pára de
ser protegido, arranjado e reciclado numa juventude sem fim. Ao mesmo tempo
em que põe o futuro entre parêntesis, o sistema procede à «desvalorização do
passado», impaciente por cortar as amarras das tradições e territorialidades
arcaicas e por instituir uma sociedade sem base de ancoragem nem opacidade;
juntamente com esta indiferença pelo tempo histórico, instaura-se o «narcisismo
coletivo», sintoma social da crise generalizada das sociedades burguesas,
incapazes de enfrentarem o futuro sem desespero.
A coberto d ffiodernidade, não estaremos a deixar escapar o essencial por entre
os dedos? Querendo, de acordo com uma sacrossanta tradição marxista, fazer
assentar o narcisismo na «bancarrota» (c.N., p. 18) do sistema e interpretá-lo sob
o signo da «desmoralização»., não se estará a sobrevalorizar, por um lado, a
«tomada de consciência» e, por outro, a situação conjuntural? De fato, o
narcisismo contemporâneo afirma-se numa surpreendente ausência de niilismo
trágico; é numa apatia frívola que maciçamente se instala, a despeito das
realidades catastróficas largamente exibi das e comentadas pelos media. Quem, à
exceção dos ecologistas, tem a consciência permanente de viver uma idade
apocalíptica? A «tanatocracia» desenvolve-se, as catástrofes ecológicas
multiplicam-se sem engendrarem com isso um sentimento trágico de «fim do
mundo». As pessoas habituam-se sem dilacerações ao «pior» que se consome no
media; instalamo-nos na crise que, segundo parece, em nada muda os desejos de
bem estar e tempos livres. A ameaça econômica e ecológica não conseguiu
penetrar em profundidade a consciência indiferente dos nossos dias; temos que
nos decidir a dizê-lo: o narcisismo não é de modo nenhum a última retração de
um Eu desencantado pela «decadência» ocidental e precipitando-se de corpo e
alma no gozo egoísta. Nem nova versão do «divertimento», nem alienação — a
informação nunca foi tão desenvolvida —, o narcisismo abole o trágico e surge
como uma forma inédita de apatia feita de sensibilização epidérmica ao mundo e
simultaneamente de profunda indiferença em relação a ele: paradoxo que explica
parcialmente a pletora de informações que nos assaltam e a rapidez com que os
acontecimentos mass-mediatizados se expulsam uns aos outros, impedindo toda
e qualquer emoção duradoura.
Nunca explicaremos, por outro lado, o narcisismo a partir de uma acumulação de
acontecimentos e dramas conjunturais: se o narcisismo for real mente, como
Chr. Lasch nos convida a pensar, uma consciência radicalmente inédita, uma
estrutura constitutiva da personalidade pós-moderna, teremos que o apreender
como a resultante de um processo global que rege o funcionamento social. Novo
perfil coerente do indivíduo, o narcisismo não pode resultar de uma constelação
avulsa de acontecimentos pontuais, ainda que reforçada por uma mágica
«tomada de consciência». Com efeito, é da deserção generalizada dos valores e
finalidades sociais, implicada pelo processo de personalização, que o narcisismo
surge. Desafeição dos grandes sistemas de sentido e hiper-investimento do Eu
caminham a par: nos sistemas de «rosto humano» funcionando à força de prazer,
bem-estar, desestandardização, tudo concorre para a promoção de um
individualismo puro, ou, por outras palavras, psi, desembaraçado dos
enquadramentos de massa e orientado para a valorização generalizada do sujeito.
É a revolução das necessidades e a sua ética hedonista que, atomizando
suavemente os indivíduos, esvaziando pouco a pouco as finalidades sociais da
sua significação profunda, permitiu ao discurso psi enxertarem-se no social,
tornar-se um novo ethos de massa: foi o «materialismo» exacerbado das
sociedades de abundância que, paradoxalmente, tornou possível a eclosão de
uma cultura centrada na expansão subjetiva, não por reação ou «suplemento de
alma», mas por isola mento à lista. A vaga do «potencial humano» psíquico e
corporal não passa do último momento de uma sociedade que se arranca à ordem
disciplinar e leva ao seu termo a privatização sistemática já operada pela idade
do consumo. Longe de derivar de uma «tomada de consciência» desencantada, o
narcisismo é efeito do crescimento de uma lógica social individualista hedonista
impulsionada pelo universo dos objetos e signos, e de uma lógica terapêutica e
psicológica elaborada a partir do século XIX com base na abordagem
psicopatológica.
O zombie e o psi
Simultaneamente à revolução informática, as sociedades pós-modernas
conhecem uma «revolução interior», um imenso «movimento de consciência» (
movement C.N., pp. 43-48), um fascínio sem precedentes pelo autoconhecimento e pela auto-realização, como prova a proliferação dos organismos
psi, técnicas de expressão e de comunicação, meditações e ginásticas orientais. A
sensibilidade política dos anos sessenta deu lugar a uma «sensibilidade
terapêutica»; mesmo os mais duros (sobretudo esses) entre os ex-líderes
contestatórios sucumbem aos encantos da self-examination: enquanto Rennie
Davis abandona o combate radical para seguir o guru Maharaj ii, Jerry Rubin
conta que, entre 1971 e 1975, praticou com delícia a terapia gestaltista, a
bioenergia, o rolfing, as massagens, o jogging, tai chi, Esalen, o hipnotismo, a
dança moderna, a meditação, Silva Mmd Control, Arica, a acupuntura, a terapia
reichiana (citado por Chr. Lasch, p. 43-44)... No momento em que o crescimento
econômico se esgota, o desenvolvimento psíquico reveza-o; no momento em que
a informação se substitui à produção consumo de consciência torna-se uma nova
bulimia: ioga, psicanálise, expressão corporal, zen, terapia primal, dinâmica de
grupo, meditação transcendental; à inflação econômica responde a inflação psi e
o formidável surto narcísico que esta engendra. Canalizando as paixões no
sentido do Eu, promovido assim à categoria de umbigo do mundo, a terapia psi,
ainda que colorida de corporeidade e de filosofia oriental gera uma figura inédita
de Narciso, identificando-se doravante este com o homo psychologicus. Narciso
obcecado por si próprio não sonha, não se encontra atingido de narcose, trabalha
assiduamente na libertação do Eu, no seu grande destino de autonomia e de
independência: renunciar ao amor, «to love myself enough so that I do not need
another to make me happy», tal é o novo programa revolucionário de J. Rubin
(citado por Chr. Lasch, p. 44).
Neste dispositivo psi, o inconsciente e o recalcamento ocupam uma posição
estratégica. Pelo desconhecimento radical que instituem sobre a verdade do
sujeito, são operadores decisivos do neo-narcisismo: afirmar o logro do desejo e
a barra do recalcamento é uma provocação que desencadeia uma tendência
irresistível para a reconquista da verdade do Eu: «Onde era Isso, devo eu
chegar.» O narcisismo é uma resposta ao desafio do inconsciente: instado a
redescobrir-se, o Eu precipita-se num trabalho de libertação interminável, de
observação, de interpretação. Reconheçamo-lo: o inconsciente, antes de ser
imaginário ou simbólico, teatro ou máquina, é um agente provocador cujo efeito
principal é um processo de personalização sem fim: cada indivíduo deve «dizer
tudo», libertar-se dos sistemas de defesa anônimos que se opõem à continuidade
histórica do sujeito, personalizar o seu desejo por meio das associações «livres»,
e hoje também do não-verbal, o grito e o senti mento primais. Por outro lado,
tudo o que seria susceptível de funcionar como subproduto (o sexo, o sonho, o
lapso, etc.) será reciclado na ordem da subjetividade libidinal e do sentido.
Alargando deste modo o espaço da pessoa, incluindo todas as escórias no campo
do sujeito, o inconsciente abre caminho a um narcisismo sem limites.
Narcisismo total que revela de outro modo os últimos avatares psi, em que a
palavra de ordem já não é a inter pretação, mas o silêmúo do analista: libertado
da palavra do Mestre e do referencial de verdade, o analisando é entregue apenas
a si próprio numa circularidade regida exclusivamente pela auto-sedução do
desejo. Quando o significado cede a vez aos jogos do significante e o próprio
discurso à emoção direta, quando caem os referentes exteriores, o narcisismo já
não tem obstáculos e pode cumprir-se em toda a sua radicalidade.
Deste modo, a autoconsciência substituiu a consciência de classe, a consciência
narcísica à consciência política, substituição que não devemos em caso algum
explicar reabrindo o eterno debate sobre as manobras de di versão da luta de
classes. O essencial está noutro lado. Antes de tudo o resto, instrumento de
socialização, o narcisismo, pela sua auto-absorção, permite radicalizar a
desafeição da esfera pública e promover, por isso mesmo, uma adaptação
funcional ao isolamento social, continuando a reproduzir a estratégia
correspondente.
Tornando o Eu o alvo de todos os investimentos, o narcisismo empenha-se em
ajustar a personalidade à atomização acolchoa da engendrada pelos sistemas
personalizados. Para que o deserto social seja viável, o Eu deve tornar-se a
preocupação central: não importa que a relação seja destruída, contanto que o
indivíduo seja levado a absorver-se em si próprio. Assim, o narcisismo realiza
uma estranha «humanização» aprofundando a fragmentação social: solução
econômica para a «dispersão» generalizada, o narcisismo, numa circularidade
perfeita, adapta o Eu ao mundo de onde este nasce. O adestramento social já não
se efetua através da coerção disciplinar nem mesmo da sublimação; efetua-se por
meio da auto-sedução. O narcisismo, nova tecnologia de controle flexível e
autogerido, socializam dessocializando, põem os indivíduos de acordo com um
social pulverizado, glorificando o reino da plena realização do Ego puro.
Mas o narcisismo talvez tenha a sua função mais elevada no deslastramento dos
conteúdos rígidos do Eu a que a procura inflacionária de verdade conduz
inelutavelmente. Quanto mais o Eu é investido, feito objeto de atenção e de
interpretação, mais a incerteza e a interrogação crescem. O Eu torna-se um
espelho vazio à força de «informações», uma questão sem resposta à força de
associações e de análises, uma estrutura aberta e indeterminada que exige, em
contrapartida, cada vez mais terapia e anamnese. Freud não se enganava quando,
num texto célebre, se comparava a Copérnico e a Darwin, por ter infligido um
dos três grandes «desmentidos» que se opõem à megalomania humana. Narciso
já não está imobilizado diante da sua imagem fixa, já nem sequer há imagem,
nada para além de uma busca interminável de Si, um processo de
desestabilização ou flutuação psi na esteira da flutuação monetária ou da opinião
pública: Narciso entrou em órbita. O neo-narcisismo não se contentou com
neutralizar o universo social, esvaziando as instituições dos seus investimentos
emocionais; também o Eu, desta feita, se vê corroído, esvaziado da sua
identidade, o que paradoxalmente sucede em virtude do seu hiper-investimento.
Como o espaço público se esvazia emocionalmente por excesso de informações,
de solicitações e de animações: o Eu tornou-se um «conjunto frouxo». Por toda a
parte, eis que o real pesa do desaparece, e é a dessubstancialização, última figura
da desterritorialização, que condena a pós-modernidade.
No sentido da mesma dissolução do Eu atua a nova ética permissiva e hedonista:
o esforço deixou de estar na moda, o que significa coerção ou disciplina austera
é desvalorizado em proveito do culto do desejo e da sua realização imediata,
tudo se passa como se tratasse de levar ao extremo o diagnóstico de Nietzsche
sobre a tendência moderna para favorecer a «fraqueza da vontade», ou seja, a
anarquia dos impulsos e das tendências e, cor relativamente, a perda de um
centro de gravidade que hierarquize o todo: «A pluralidade e a desagregação dos
impulsos, a falta de sistematização entre eles, leva a uma ‘vontade fraca'; a
coordenação dos impulsos sob o predomínio de um deles leva a uma ‘vontade
forte'» Associações livres, espontaneidade criadora, não-diretividade, a nossa
cultura da expressão, mas também a nossa ideologia do bem-estar estimulam a
dispersão em detrimento da concentração, o temporário em vez do voluntário, e
trabalham a favor da fragmentação do Eu, do aniquilamento dos sistemas
psíquicos organiza dos e sintéticos. A falta de atenção dos alunos, que todo o
professor hoje se queixa, não é senão uma das formas desta nova consciência
cool e desenvolta, ponto por ponto análoga à consciência telespectadora, captada
por tudo e por nada, ao mesmo tempo excitada e indiferente, sobressaltada pelas
informações, consciência opcional, disseminada, nos antípodas da consciência
voluntária, «intro-determinada». O fim da vontade coincide com a era da
indiferença pura, com o desaparecimento dos grandes fins e grandes iniciativas
que merecem o sacrifício da vida: «tudo imediatamente» e já não per aspera ad
astra «Expludam!», lemos por vezes num graijiti: não há que temer, o sistema
encarrega-se disso, o Eu já foi pulverizado em tendência parciais de acordo com
o mesmo processo de desagregação que fez explodir a socialidade num
conglomerado de moléculas personalizadas. E o social átono é a réplica exata do
Eu indiferente, cuja vontade esmorece, novo zombie atravessado de mensagens.
Inútil sentirmo-nos desesperados: o «enfraquecimento da vontade» não é
catastrófico, não prepara uma humanidade submissa e alienada, em nada anuncia
a ascensão do totalitarismo: a apatia desenvolta representa, bem pelo contrário,
uma barreira contra os sobressai tos de religiosidade histórica e os grandes
desígnios paranóicos. Obcecado apenas por si próprio, procurando a sua
realização pessoal e o seu equilíbrio, Narciso constitui um obstáculo ante os
discursos de mobilização de massas; hoje, os apelos à aventura, ao risco político,
não encontram eco; se a revolução se desprestigiou, não temos que incriminar
qualquer «traição» burocrática: a revolução extinguiu-se sob os spots sedutores
da personalização do mundo. Deste modo, a era da «vontade» desaparece: mas
não precisamos recorrer, imitando Nietzsche, a qualquer «decadência». Trata-se
da lógica de um sistema experimental baseado na rapidez da criação de
combinações que exige a eliminação da «vontade», porque esta se revela como
um obstáculo ao seu funcionamento operacional. Um centro «voluntário» com as
suas certezas íntimas, a sua força intrínseca, representa ainda um núcleo de
resistência à aceleração das experimentações: mais vale a apatia narcísica, um
Eu lábil, o único capaz de avançar em movimentos sincronizados com uma
experimentação sistemática e acelerados.
Liquidando a rigidez «intro-determinada» incompatível com os sistemas
«flutuantes», o narcisismo trabalha igualmente a favor da dissolução da «extrodeterminação», que, aos olhos de Riesman, era a personalidade rica em futuro,
mas que rapidamente se revelou não passar de uma última personalidade de
massa, correspondendo ao estádio inaugural dos sistemas de consumo e fazendo
a transição entre o indivíduo disciplinar-voluntário (introdeterminado) e o
indivíduo narcísico. No momento em que a lógica da personalização reorganiza
a integralidade dos sectores da vida social, a extro-determinação, com a sua
necessidade de aprovação do Outro, o seu comportamento orientado pelo Outro,
dá lugar ao narcisismo, a uma auto-absorção que reduz a dependência do Eu ante
os outros. R. Sennett tem em parte razão: «As sociedades ocidentais estão a
passar de um tipo de sociedade mais ou menos dirigida pelos outros a uma
sociedade dirigida do interior» (T.I., p. 14). No tempo dos sistemas à lista, a
personalidade já não deve ser de tipo gregário ou mimético, mas aprofundar a
sua diferença, a sua singularidade: o narcisismo representa este desprendimento
da preensão do Outro, esta ruptura com a ordem da estandardização dos
primeiros tempos da «sociedade de consumo».
Liquefacção da identidade rígida do Eu e suspensão do primado do olhar do
Outro, em todos os casos, é realmente como agente do processo de
personalização que o narcisismo funciona.
Comete-se um grave erro quando se quer dar conta da «sensibilidade
terapêutica» a partir de uma qualquer ruína da personalidade causada pela
organização burocrática da vida: «O culto da intimidade não tem a sua origem na
afirmação da personalidade, mas na sua queda» (C.N., p. 69). A paixão narcísica
não procede da alienação de uma unidade perdida, não compensa uma falta de
personalidade, gera um novo tipo de personalidade, uma nova consciência, toda
feita de indeterminação e flutuação. Tornar o Eu um espaço «flutuante», sem
fixação nem pontos de referência, uma disponibilidade pura, adaptada à
aceleração das combinações, à f luidez dos nossos sistemas, tal é a função do
narcisismo, instrumento flexível dessa reciclagem psi permanente, necessária à
experimentação pós-moderna. E, simultaneamente, expurgando do Eu as
resistências e os estereótipos, o narcisismo torna possível a assimilação dos
modelos de comportamento apurados por todos os ortopedistas da saúde física e
mental: instituindo um «espírito» vergado à formação permanente, o narcisismo
coopera na grande obra de gestão científica dos corpos e das almas.
A erosão dos pontos de referência do Eu é a réplica exata da dissolução que hoje
conhecem as identidades e os papéis sociais, outrora estritamente definidos,
integrados como estavam em oposições reguladas: assim os estatutos da mulher,
do homem, da criança, do louco, do civilizado, etc., entraram num período de
indefinição, de incerteza, enquanto não pára de se desenvolver a interrogação
sobre a natureza das «categorias» sociais. Mas ao passo que a erosão das formas
da alteridade deve ser pelo menos em parte atribuída ao processo democrático,
ou seja, ao trabalho da igualdade, cuja tendência consiste como mostrou
admiravelmente M. Gauchet, em reduzir tudo o que figura a alteridade social ou
a diferença de substância entre os seres pela instituição de uma similitude
independente dos dados visíveis', aquilo a que chamamos a dessubstancialização
do Eu procede em primeiro lugar do processo de personalização. Se o
movimento democrático dissolve os pontos de referência tradicionais do outro, o
esvazia de toda a dissemelhança substancial afirmando uma identidade entre os
indivíduos, sejam quais for, sob outros aspectos, as suas diferenças aparentes, o
processo de personalização narcísico, pelo seu lado, faz vacilar os pontos de
referência do Eu, esvazia-o de todo o conteúdo definitivo, O reinado da
igualdade transformou por inteiro a apreensão da alteridade, do mesmo modo
que o reinado hedonista e psicológico transforma por inteiro a apreensão da
nossa própria identidade. Mais ainda: a explosão psi sobrevém no momento
preciso em que todas as figuras da alteridade (perverso, louco, delinqüente,
mulher, etc.) se vêem contestadas e oscilam no sentido daquilo a que
Tocqueville chama a «igualdade das condições». Não será justamente quando a
alteridade social dá maciçamente lugar à identidade, a diferença à igualdade, que
o problema da identidade própria, íntima desta vez, pode surgir? Não será
porque o processo democrático se encontra doravante generalizado, sem limite
ou fronteira determinável, que pode levantar-se a vaga de fundo psicológica?
Quando a relação do indivíduo com ele mesmo suplanta a relação com o outro, o
fenômeno democrático deixa de ser problemático; deste ponto de vista, a
afirmação do narcisismo significaria a deserção do reino da igualdade, sem que
esta, no entanto, deixe de prosseguir a sua obra. Tendo resolvido a questão do
outro (quem não é hoje reconhecido, objeto de solicitude e de interrogação (?), a
igualdade varreu o terreno e permitiu a emergência da questão do Eu; doravante,
a autenticidade leva a melhor sobre a reciprocidade, o conhecimento de si
próprio sobre o reconhecimento. Mas, em simultâneo com este desaparecimento
da cena social da figura do Outro, reaparece uma nova divisão, a do consciente e
do inconsciente, a clivagem psíquica, como se a divisão devesse ser
permanentemente reproduzida, ainda que numa modalidade psicológica, a fim de
a obra de socialização poder continuar. «Eu é um Outro» esboça o processo
narcísico, o nascimento de uma nova alteridade, o fim da familiaridade do Si
para consigo, quando quem está diante de mim deixa de ser um absolutamente
Outro: a identidade do Eu vacila quando a identidade entre os indivíduos se
afirma, quando todo e qualquer ser se torna um «semelhante». Deslocamento e
reprodução da divisão, ao interiorizar-se o conflito assume sempre uma função
de integração social desta vez menos através da conquista da dignidade pela luta
de classe do que da busca da autenticidade e da verdade do desejo.
O corpo reciclado
Quando se tenta assimilar, à maneira de R. Sennett, o narcisismo ao
psicologismo, depara-se rapidamente com a dificuldade maior do cortejo das
solicitudes e dos cuidados que doravante rodeiam o corpo, promovido assim à
categoria de verdadeiro objeto de culto. Investimento narcísico do corpo di
retamente legível através de mil práticas quotidianas: angústia da idade e das
rugas (C. N., pp. 351-367); obsessões com a saúde, com a «linha», com a
higiene: rituais de controle (check-up) e de manutenção (massagens, sauna,
desportos, regimes); cultos solares e terapêuticos (sobreconsumo de cuidados
médicos e de produtos farmacêuticos), etc. Incontestavelmente, a representação
social do corpo sofreu uma mutação cuja profundidade pôde já ser posta em
paralelo com o abalo democrático da representa de outrem; é do advento deste
novo imaginário social do corpo que resulta o narcisismo. Do mesmo modo que
a apreensão da alteridade de outrem desaparece em benefício do reinado da
identidade entre os seres, assim também o corpo perdeu o seu estatuto de
alteridade, der extenso, de materialidade muda, em proveito da sua identificação
como o ser-sujeito, com a pessoa. O corpo já não designa uma abjeção ou uma
máquina, designa a nossa identidade profunda da qual não há motivo para ter
vergonha e que pode, portanto, exibir-se nua nas praias ou nos espetáculos, na
sua verdade natural. Enquanto pessoa, o corpo ganha dignidade; devemos
respeitá-lo, quer dizer zelar permanentemente pelo seu bom funcionamento, lutar
contra a sua obsolescência, combater os signos da sua degradação através de
uma constante re ciclagem cirúrgica, desportiva, dietética, etc.: a decrepitude
«física» tornou- se uma torpeza.
Chr. Lasch mostra-o bem: o modermo medo de envelhecer e de morrer é um
elemento constitutivo do neo-narcisismo; o desinteresse pelas gerações futuras
intensifica a angústia da morte, enquanto que a degradação das con dições de
existência das pessoas idosas e a necessidade permanente de valori zação, de se
ser admirado pela beleza, pelo encanto, pela celebridade, tor nam a perspectiva
do envelhecimento intolerável (C. N., pp. 354-357). De facto, é o processo de
personalização que, esvaziapdo sistematicamente toda a posição transcendente,
engendra uma existência puramente actual, uma subjectividade total sem
finalidade nem sentido, entregue à vertigem da sua auto-sedução. O indivíduo,
encerrado no seu ghetto de mensagens, enfrenta doravante a sua condição mortal
sem qualquer apoio «transcendente» (políti co, moral ou religioso). «O que
verdadeiramente revolta contra a dor não é a dor em si, mas o sem-sentido da
dor», dizia Nietzsche: paz e com a morte e com a idade o mesmo que com a dor;
é o seu sem-sentido contemporâneo que lhes exacerba o horror. Num sistema
personalizado, só resta ao indivíduo durar e conservar-se, aumentar a fiabilidade
do seu corpo, ganhar tempo e ganhar contra o tempo. A personalização do corpo
mobiliza o imperativo da juventude, a luta contra a adversidade temporal, o
combate tendo em vista a identidade a conservar sem hiato nem desgaste.
Continuar jovem, não envelhecer: é o mesmo imperativo de funcionalidade pura,
o mesmo imperativo de reciclagem, o mesmo de dessubstancialização, espiando
os estigmas do tempo a fim de dissolver as heterogeneidades da idade.
Como todas as grandes dicotomias, a do corpo e a do espírito esbateu-se; o
processo de personalização, e especialmente aqui, a expansão do psicologismo,
apaga as oposições e hierarquias rígidas, confunde os pontos de referência e as
identidades vincadas. O processo de psicologização é um agente de
desestabilização, sob o seu registro todos os critérios vacilam e flutuam numa
incerteza generalizada; assim, o corpo deixa de ser relegado para um estatuto de
positividade material opondo-se a uma consciência acósmica e torna-se um
espaço indecidivel, um «objeto-sujeito», um misto flutuante de sentido e de
sensível, como dizia Merleau-Ponty. Com a expressão corporal e a dança
moderna (a de Nikolais, Cunningham, Carolyn Carison), com a eutonia e o ioga,
com a bioenergia, o rolfing, a terapia gestaltista, onde começa ou acaba o corpo?
As suas fronteiras recuam, tornam-se fluidas; o «movi mento de consciência» é
simultaneamente uma redescoberta do corpo e das suas potências subjetivas. O
corpo psicológico substituiu-se ao corpo objetivo e a tomada de consciência do
corpo por si próprio tornou-se uma finalidade característica do narcisismo: fazer
existir o corpo para si próprio, estimular a sua auto-reflexividade, reconquistar a
interioridade do corpo, tal é a obra do narcisismo. Se o corpo e a consciência se
trocam um pelo outro, se o corpo, na esteira do inconsciente, fala, é preciso amálo e escutá-lo, é preciso que ele se expresse, que comunique, e daí emana a
vontade de redes cobrir o corpo de dentro, a busca forçada da idiossincrasia, ou
seja o próprio narcisismo, esse agente da psicologização do corpo, esse
instrumento de conquista da subjetividade do corpo através de todas as técnicas
contemporâneas de expressão, concentração e relaxação.
Humanização, subjetivização, R. Sennett viu bem, estamos de fato numa
»cultura da personalidade», contanto que precisemos que o próprio corpo se
torna um sujeito e, como tal, é colocado na órbita da libertação, ou até da
revolução, sexual sem dúvida, mas também estética, dietética, sanitária, etc., sob
a égide de «modelos diretivos» Não devemos omitir que em simultâneo com
uma função de personalização, o narcisismo realiza uma missão de normalização
do corpo: o interesse febril que temos pelo corpo não é de modo nenhum
espontâneo e «livre», obedece a imperativos sociais, como a «linha», a «forma»,
o orgasmo, etc. O narcisismo joga e ganha em todos os tabuleiros, funcionando
ao mesmo tempo como operador de ‘desestandardi zação e como operador de
estandardização, sem que esta última se apresente jamais como tal, mas como
sujeição às exigências mínimas da personalização: a normalização pós-moderna
apresenta-se sempre como o único meio de o indivíduo ser realmente ele
próprio, jovem, esbelto, dinâmico Passa-se com a exaltação do corpo o mesmo
que com a inflação psi: é a deslastrar o corpo dos tabus e pesos arcaicos,
tornando-o assim permeável às normas sociais, que se aplica o narcisismo.
Paralelamente à dessubstancialização do Eu, a dessubstancialização do corpo, ou
seja, a eliminação da corporeidade selvagem ou estática por meio de um trabalho
que já não se realiza como outrora segundo uma lógica ascética por defeito, mas
pelo contrário, segundo uma lógica pletorica que acumula informações e normas,
O narcisismo, pela atenção
escrupulosa que concede ao corpo, pela sua preocupação permanente de
funcionalidade ótima, faz cair às resistências «tradicionais» e torna o corpo
disponível para todas as experimentações, O corpo, na esteira da consciência,
torna-se um espaço flutuante, um espaço deslocalizado, entregue à «mobilidade
social»: limpar o terreno, obter o vazio por saturação, abater os núcleos
refratários à infiltração das normas, assim segue o narcisismo, e vemos bem que
é ingênuo fazê-lo nascer, nos termos de R. Sennett, a partir da «erosão dos
papéis públicos», quer dizer do desinvestimento de tudo o que é convenção,
artifício ou uso, considerado doravante como «algo seco, formal, senão factício»
(T.I., p. 12), e como obstáculo à expressão da intimidade e da autenticidade do
Eu. Seja qual for, de resto, a validade parcial desta tese, ela não resiste à prova
da idolatria codificada do corpo, sobre a qual R. Sennett curiosamente não diz
uma palavra: se o narcisismo é realmente veiculado por uma vaga de desafeição,
são os valores e as finalidades «superiores» que estão em causa e de modo
nenhum os papéis e códigos sociais. Nada menos do que o grau zero do social, o
narcisismo procede de um hiper-investimento de códigos e funciona como tipo
inédito de controlo social sobre as almas e os corpos.
Um teatro discreto
Com o que R. Sennett chama a «condenação moral da impessoalidade», que
equivale à erosão dos papéis sociais, começa o reinado da personalidade, a
cultura psicomórfica e a obsessão moderna do Eu no seu desejo de re velar o seu
ser verdadeiro ou autêntico. O narcisismo não designa apenas a paixão do
conhecimento de si, mas também a paixão da revelação íntima do Eu, como o
testemunha a inflação atual das biografias e autobiografias ou a psicologização
da linguagem política. As convenções parecem-nos repressivas, «as questões
impessoais só despertam o nosso interesse quando as encaramos — erradamente
— sob um ponto de vista personalizado» (T.I., p. 15); tudo deve ser
psicologizado, dito na primeira pessoa: o indivíduo deve implicar-se a si próprio,
revelar as suas motivações, desvendar a todo o momento a sua personalidade e
as suas emoções, exprimir o seu sentimento íntimo, à falta do que incorrerá no
vício imperdoável da frieza e do anonimato. Numa sociedade «intimista», que
tudo mede pela bitola da psicologia, a autenticidade e a sinceridade tornam-se,
como já Riesman notava virtudes cardiais, e os indivíduos, absorvidos pelo seu
eu íntimo, vêem-se cada vez mais incapazes de «desempenhar» papéis sociais:
tornamo-nos «atores privados de arte» (T.I., p. 249). Com a sua obsessão de
verdade psicológica, o narcisismo enfraquece a capacidade de lidar com a vida
social, torna impossível toda a distância entre o que se sente e o que se exprime:
«A capacidade de ser expressivo perde-se, porque o indivíduo tenta identificar a
sua aparência com o seu ser profundo e porque liga o problema da expressão
efetiva ao da autenticidade desta» (T.I., p. 205). E é aqui que reside a armadilha,
porque quanto mais os indivíduos se libertam de códigos e costumes em busca
de uma verdade pessoal, mais as suas relações se tornam «fratricidas» e
associais. Com a exigência crescente de mais imediato e de maior proximidade,
assaltando-se o outro à força de confidências pessoais, já não se observa a
distância necessária ao respeito da vida privada dos outros: o intimismo é
tirânico e «incivil». «A civilidade é a atividade que protege o eu dos outros, e lhe
permite, portanto fruir da companhia de outrem. O uso da máscara é a própria
essência da civilidade... Quanto “mais forem às máscaras, mais será revivida a
mentalidade 'urbana', bem como o amor à urbanidade» (T.I., p. 202). A
sociabilidade exige barreiras, regras impessoais que, só elas, podem proteger os
indivíduos uns dos outros; onde, pelo contrário, rei na a obscenidade da
intimidade, a comunidade viva desfaz-se em pedaços e as relações humanas
tornam-se «destrutivas». A dissolução dos papéis públicos e a compulsão de
autenticidade engendraram uma incivilidade que se manifesta, por um lado, na
rejeição das relações anônimas com os «desconhecidos» na cidade e a retração
para o aconchego do nosso ghetto íntimo, por outro lado, no estreitamento do
sentimento de pertença a um grupo e pela acentuação correlativa dos fenômenos
de exclusão. Morta a con de classe, os indivíduos confraternizam agora na base
do bairro, da região ou dos sentimentos comuns: «O próprio ato de partilhar
remete cada vez mais para operações de exclusão ou, inversamente, de
inclusão... A fraternidade já não passa da união de um grupo seletivo que rejeita
todos os que não fazem parte dele... A fragmentação e as divisões internas são o
produto da fraternidade moderna» (T.I., p. 203).
Digamo-lo sem rodeios: a idéia segundo a qual o narcisismo debilita a energia
lúdica e se revela incompatível com a noção de «papel» não resiste ao exame.
Sem dúvida, as convenções rígidas que enquadravam as condutas foram
desfeitas pelo processo de personalização que tende por toda a parte a desregular
e flexibilizar os quadros estritos; neste sentido, é verdade que os indivíduos
recusam as coações «vitorianas» e aspiram a mais autenticidade e liberdade nas
suas relações. Mas isso não significa que o indivíduo se veja entregue a si
próprio, desembaraçado de toda a codificação social. O processo de
personalização não abole os códigos, descongela-os, ao mesmo tempo em que
impõe novas regras adaptadas ao imperativo de produzir precisamente uma
pessoa pacificada. Dizer tudo, talvez, mas sem grito, diga o que quiser, mas nada
de passagem ao ato; mais ainda, é esta libertação do discurso, ainda que
acompanhada de violência verbal, que contribui para fazer regredir o uso da
violência física: sobre investimento do verbo íntimo e correlativamente
desafeição da violência física: através deste deslocamento, o striptease psi
revela-se um instrumento de controle e de pacificação social. Mais do que uma
realidade psicológica atual, a autenticidade é um valor social e assim não há
lugar para a explosão sem coerção: o deboche da revelação acerca de si próprio
deve vergar-se a novas normas, a do gabinete do analista, a do gênero literário
ou a do «sorriso familiar» do homem político na televisão. De qualquer maneira,
a autenticidade deve corresponder ao que esperamos dela, aos signos codificados
da autenticidade: uma manifestação demasiado exuberante, um discurso
demasiado teatral já não tem efeito de sinceridade; esta deve adotar o estilo cool,
caloroso e comunicativo; para além ou para aquém disto, temos o histrião, a
neurose. E necessário que nos expressemos sem reserva (e mesmo isto, de resto,
deve ser consideravelmente matizado, como veremos), livremente, mas num
quadro pré- estabelecido. Há uma procura de autenticidade, mas de maneira
nenhuma de espontaneidade: Narciso não é um ator atrofiado, as faculdades
expressivas e lúdicas não são hoje nem mais nem menos desenvolvidas do que
ontem. Veja-se a proliferação de todos os pequenos «arranjos» da vida quoti
diana, as astúcias e «truques» do mundo do trabalho: a arte da dissimula ção, as
máscaras nada perderam da sua eficácia. Veja-se como a sinceridade é
«interdita» ante a morte: devemos esconder a verdade ao moribundo, não
devemos manifestar a nossa dor quando morre um parente, mas fingir «indi
ferença», como diz Ariès «A discrição surge como a forma moderna da
dignidade» O narcisismo define-se menos pela explosão livre das emoções do
que pelo encerramento em si próprio, ou pela «discrição», signo e instru mento
de self-controi. Sobretudo, nada de excessos, de transportes, de ten sões que nos
ponham fora de nós; é a retracção sobre si próprio, a «reserva» ou a
interiorização que caracteriza o narcisismo, e não a exibição «românti ca».
De resto, longe de exacerbar as exclusões e de engendrar o sectarismo, o
psicologismo tem efeitos opostos: o trabalho da personalização consiste em
desarmar os antagonismos rígidos, as excomunhões e as contradições. O la
xismo leva a melhor sobre o moralismo ou o purismo, a indiferença sobre a
intolerância. Demasiado absorvido por si próprio, Narciso renuncia aos miii
tantismos religiosos, desinveste as grandes ortodoxias, as suas adesões são efeito
da moda, flutuantes, sem grande motivação. Aqui como noutros luga res, a
personalização conduz ao desinvestimento do conflito, ao desanuvia inento. Nos
sistemas personalizados, os cismas, as heresias já não têm senti do: quando uma
sociedade «valoriza o sentimento subjectivo dos actores e desvaloriza o carácter
objectivo da acção» (TI., p. 21), põe em acção um processo de
dessubstancialização das acções e doutrinas, cujo efeito mais imediato é uma
descrispação ideológica e política. Neutralizando os contez dos em benefício da
sedução psi, o intimismo generaliza a indiferença, ela bora uma estratégia de
desarmamento nos antípodas do dogmatismo das ex clusões.
A tese de R. Sennett, a propósito das relações intersubjectivas, deixa de ser
convincente: «Quanto mais íntimas são as pessoas, mais as suas relações se
tornam dolorosas, fratricidas e associais» (T.I., p. 274). As convenções ri tuais
impediam, então, os homens de se matarem uns aos outros e se feri rem? A
cultura pública ignoraria a tal ponto a crueldade e o ódio? Teremos tido que
esperar pela era intimista para que a luta das consciências conhe cesse o seu
pleno surto? Se é evidente que não podemos aderir a semelhante maniqueísmo
ingénuo (máscaras = civilidade; autenticidade = incivilidade), tão visivelmente
contrário à apatia narcísica, não é menos verdade que sub siste um problema
justamente no lugar em que se declara esta dramatização do conflito: o que é que
impele para uma tal representação catastrófica? O que é que a torna uma ideia
dominante do nosso tempo?
Apocalipse now?
Encontramos a mesma verificação trágica em Chr. Lasch, reforçada des ta feita
por um discurso nitidamente apocalíptico; quanto mais a sociedade dá de si
própria uma imagem tolerante, mais, de facto, o conflito se intensi fica e
generaliza: assim, passamos da guerra de classes à «guerra de todos contra
todos» (C. N., p. 125). No universo económico, antes do mais, reina uma
rivalidade pura, esvaziada de qualquer significação moral ou histórica:
o culto do self-made man e do enriquecimento como signo de progresso indi
vidual e social terminou, doravante o (êxito» só tem um sentido psicológico:
«A busca da riqueza tem apenas como objectivo suscitar a admiração ou a
inveja» (C. N., p. 118). Nos nossos sistemas narcísicos, o indivíduo adula os
seus superiores para avançar na carreira, deseja mais ser invejado do que
respeitado, e a nossa sociedade, indiferente ao futuro, apresenta-se como uma
selva burocrática onde reina a manipulação e a concorrência de todos contra
todos (C. N., pp. 114-117). A própria vida privada deixa de ser um refúgio e
reproduz este estado de guerra generalizado: peritos da comunica ção redigem
tratados psicológicos destinados a garantir aos indivíduos uma posição
dominante nos cocktails, enquanto novas estratégias, como a asserti veness
therapy, visam desembaraçar os sujeitos dos sentimentos de ansieda de, de
culpabilidade ê de inferioridade que os seus parceiros frequentemente utilizam
para chegarem aos seus fins. As relações humanas, públicas e pri vadas,
tornaram-se relações de dominação, relações conflituais assentes na sedução fria
e na intimidação. Por fim, sob a influência do neo-feminismo, as relações entre o
homem e a mulher deterioram-se consideravelmente, des ligadas das regras
pacificadoras da cortesia. A mulher, com as suas exigên cias sexuais e as suas
capacidades orgásticas vertiginosas — os trabalhos de Masters e Johnson, K.
Millett, M. J. Sherfey mostram a mulher como «insa ciável» —, torna-se para o
homem uma companheira ameaçadora, assusta dora e geradora de angústia: «O
espectro da impotência assombra a imagi nação contemporânea» (C. N., p. 345),
essa impotência masculina que, se gundo os últimos relatórios, aumentaria em
razão do medo da mulher e da sexualidade libertada. Neste contexto, o homem
nutre um ódio desenfreado contra a mulher, como mostra o modo de tratamento
desta nos filmes ac tuais, com a frequência das cenas de violação (C. N., p. 324).
Simultanea mente, o feminismo desenvolve na mulher o ódio pelo homem,
assimilando-o a um inimigo, fonte de opressão e de frustração; com a mulher
portadora de um número sempre crescente de exigências relativas ao homem,
que se acha incapaz de as satisfazer, o ódio e a recriminação aumentam neste
sexual warfare característico do nosso tempo.
Chr. Lasch, rejeitando as teorias de Riesman e de Fromm, culpadas a seus olhos
de terem exagerado a capacidade de socialização das pulsões agressivas pela
sociedade permissiva, limita-se a cair na representação domi nante, massmediática, do crescimento da violência no mundo moderno: a guerra bate-nos à
porta, vivemos em cima de um barril de pólvora, basta ver o terrorismo
internacional, os crimes, a insegurança nas cidades, a violência racial nas ruas e
nas escolas, os hold-up, etc. (C. N., p. 130). O estado de natureza de Hobbes
encontra-se assim no termo da História: a burocracia, a proliferação das
imagens, as ideologias terapêuticas, o culto do consumo, as transformação da
família, a educação permissiva engendraram uma estrutu ra da personalidade, o
narcisismo, que é acompanhada por relações huma nas cada vez mais bárbaras e
conflituais. Só na os indivíduos se tornam mais sociáveis e cooperantes; por trás
da fachada de hedonismo e de solicitude, cada indivíduo explora cinicamente os
sentimentos dos outros e procura o seu próprio interesse sem qualquer
preocupação com as gerações futuras. Curiosa concepção a deste narcisismo,
apresentado como estrutura psíquica inédita e que, de facto, se vê repescado
pelas redes do «amor pró prio» e do desejo de reconhecimento já identificados
por Hobbes, Rousseau e Hegel como responsáveis pelo estado de guerra. Se o
narcisismo representa realmente um novo estádio do individualismo — é esta
hipótese que é fru tuosa nos trabalhos americanos actuais, muito mais do que os
seus conteú dos demasiado tendentes a um catastrofismo simplista —, é
necessário esta belecermos que acompanha uma relação original com o Outro,
do mesmo modo que dela decore uma relação inédita com o corpo, o tempo, o
afecto, etc.
Esta transformação da dimensão intersubjectiva é já amplamente mani festa,
tanto no que se refere ao espaço público como ao espaço privado. O primado da
sociabilidade pública e a luta em torno dos signos manifestos do reconhecimento
começam a apagar-se em correlação com o desenvolvimento da personalidade
psi. O narcisismo tempera a selva humana pelo desinvesti mento que opera das
categorias e hierarquias sociais, pela redução do desejo de ser admirado e
invejado pelos semelhantes. Profunda revolução silenciosa da relação
interpessoal: o que actualmente importa é que o indivíduo seja absolutamente ele
próprio, que se realize em pleno e independentemente dos critérios do Outro; o
sucesso visível, a busca de uma cotação honorífica ten dem a perder o seu poder
de fascínio, o espaço da rivalidade inter-humana dá lugar pouco a pouco a uma
relação pública neutra em que o Outro, esva ziado de toda a espessura, já não é
hostil nem concorrencial, mas indiferen te, dessubstancializado, no rasto das
personagens de Wim Wenders e P. Handke. Enquanto o interesse e a curiosidade
pelos problemas pessoais do Outro, ainda que este seja um estranho para mim,
não páram de crescer (sucesso do «correio sentimental», das confidências
radiodifundidas, das biografias), como é natural numa sociedade baseada no
indivíduo psicológi co, o Outro como pólo de referência anónimo vê-se
desafectado do mesmo modo que as instituições e os valores superiores. Sem
dúvida, a ambição so cial está longe de se ter esbatido identicamente para todos:
assim, categorias inteiras (dirigentes e quadros de empresas, homens políticos,
artistas, inteili gentsia) continuam a lutar rudemente pela conquista do prestígio,
da glória ou do dinheiro; mas quem não vê ao mesmo tempo que se trata, antes
do mais, de grupos pertencentes, em graus diversos, àquilo a que podemos cha
mar de facto uma «elite» social, que se reserva de algum modo o privilégio de
reintroduzir um ethos de rivalidade necessário aos desenvolvimentos das nossas
sociedades? Em contrapartida, para um número crescente de indiví duos, o
espaço público já não é o teatro em que se agitam as paixões «arri vistas»; fica
somente a vontade que o indivíduo nutre de se realizar à parte e de se integrar
em círculos conviviais ou calorosos, que se transformam nos satélites psi de
Narciso, nas suas conexões privilegiadas: a decadência da in tersubjectividade
pública não conduz apenas à relação de si para consigo, caminha a par também
do investimento emocional dos espaços privados que, por ser instável, não é
menos efectivo. E deste modo que, curto-circuitando o desejo de
reconhecimento, temperando os desejos de ascenção social, o narcisismo
prossegue de maneira diferente, a partir do interior, o processo de igualização
das condições. O homo psychologicus aspira menos a içar-se acima dos outros
do que a viver num meio ambiente distendido e comunica tivo, em atmosferas
«sim sem elevação nem pretensões excessivas. O culto do relacional personaliza
ou psicologiza as formas de sociabilidade, desfaz as últimas barreiras anónimas
que separam os homens, e, agindo as sim, é um agente da revolução democrática
que trabalha continuamente pa ra a dissolução das distâncias sociais.
Sendo assim, é óbvio que a luta pelo reconhecimento não desaparece; mais
precisamente, privatiza-se, manifestando-se com prioridade nos circui tos
íntimos, nos problemas relacionais; o desejo de reconhecimento foi colo nizado
pela lógica narcísica, transistoriza-se, tornando-se cada vez menos competitivo,
cada vez mais estético, erótico, afectivo. O conflito das cons ciências
personaliza-se; é menos a classificação social que está em jogo do que o desejo
de agradar, de seduzir e, durante o máximo de tempo possível; o desejo também
de ser ouvido, aceite, tranquilizado, amado. E por isso que a agressividade dos
seres, a dominação e a servidão se lêem hoje menos nas relações e conflitos
sociais do que nas relações sentimentais de pessoa a pes soa. Por um lado, a cena
pública e os comportamentos individuais não pá- ram de se pacificar através da
auto-absorção narcísica; por outro lado, o es paço privado psicologiza-se, perde
as suas amarras convencionais e torna-se uma dependência narcísica onde cada
um não descobre mais do que aquilo que «deseja»: o narcisismo não significa a
forclusão de outrem, designa a transcrição progressiva das realidades individuais
e sociais no código da sub jectividade.
A despeito das suas declarações de guerra estrondosas e do seu apelo à
mobilização geral, o neo-feminismo, pelo seu lado, não descobre a sua ver dade
nesta intensificação, afinal superficial, da luta dos sexos. A relação de forças que
parece hoje definir as relações entrL os sexos é talvez o último sobressalto da
divisão tradicional dos sexos e simultaneamente o signo do seu apagamento. A
exacerbação do conflito não é o essencial e circunscre ver-se-á provavelmente às
gerações «intermédias», que foram sacudidas e se viram desconcertadas pela
revolução feminista. Estimulando uma interroga ção sistemática sobre a
«natureza» e o estatuto da mulher, procurando a identidade perdida desta última,
recusando toda e qualquer posição pré- estabelecida, o feminismo desestabiliza
as oposições reguladas e confunde os pontos de referência estáveis: começa
verdadeiramente o fim da antiga divi são antropológica e dos seus conflitos
concomitantes. Não a guerra dos se xos, mas ofim do mundo do sexo e das suas
oposições codificadas. Quanto mais o feminismo questiona o ser do feminino,
mais este se apaga e perde na incerteza; quanto mais a mulher faz cair muralhas
inteiras do sèu estatu to tradicional, mais a própria virilidade perde a sua
identidade. Às classes relativamente homogéneas do sexo, substituem-se
indivíduos cada vez mais aleatórios, combinações até agora improváveis de
actividade e de passivida de, miríades de seres híbridos sem pertença forte de
grupo. É a identidade pessoal que se torna problemática, e é no sentido de que o
indivíduo seja ele próprio, para além das oposições constituídas do mundo do
sexo, fundamen talmente trabalhadas pelo neo-feminismo. Ainda que consiga,
por muito tempo ainda, mobilizar o combate das mulheres através de um
discurso mi litar e unitário, todos poderemos ver já que a parada se situa alhures:
um pouco por toda a parte, as mulheres reúnem-se entre elas, falam, escrevem,
liquidando com esse trabalho de auto-consciencialização, a sua identidade de
grupo, o seu pretenso narcisismo de outrora, essa eterna «vaidade corpo ral» que
Freud lhes atribuía ainda. A sedução feminina, misteriosa ou histé rica, dá lugar
a uma auto-sedução narcísica que homens e mulheres parti lham por igual,
sedução fundamentalmente transsexual, à margem das dis tribuições e
atribuições de sexo. A guerra entre os sexos não terá lugar: lon ge de ser uma
máquina de guerra, o feminismo é muito mais uma máquina de
desestandardização do sexo, uma máquina que se aplica à reprodução alargada
do narcisismo.
24 000 watts
À guerra de cada um contra todos acrescenta-se uma guerra interior con duzida e
amplificada pelo desenvolvimento de um Supereu duro e punitivo, resultando
das transformações da família, comd a «ausência» do pai e a de pendência da
mãe relativamente aos especialistas e conselheiros psicopedagó gicos (C. N.,
cap. VII). O «desaparecimento» do pai, por motivo da frequên cia dos divórcios,
leva a criança a imaginar a mãe como castradora do pai: é nestas condições que
o filho alimenta o sonho de substituir o pai, de ser o falo, conquistando a
celebridade ou ligando-se àqueles que representam o sucesso. A educação
permissiva, a socialização crescente das funções paren tais, que tornam difícil a
interiorização da autoridade familiar, não des troem, contudo, o Supereu:
transformam o seu conteúdo num sentido cada vez mais «ditatorial» e mais feroz
(C., N., p. 305). O Supereu apresenta-se actualmente sob a forma de imperativos
de celebridade, de sucesso, que, se não forem cumpridos, desencadeiam uma
crítica implacável contra o Eu. Assim se explica a fascinação exercida pelos
indivíduos célebres, estrelas e ídolos, vivamente estimulada pelos media que
«intensificam os sonhos narci sicos de celebridade e de glória, encorajam o
homem da rua a identificar-se com as estrelas, a odiar o 'rebanho', tornando-lhe
mais difícil de aceitar a banalidade da existência quotidiana» (C. N., pp. 55-56):
a América tornou- se uma nação de fãs. Do mesmo modo que a proliferação dos
conselheiros médico-psicológicos destrói a confiança dos pais na sua capacidade
educati va e aumenta a sua ansiedade, assim as imagens da felicidade associadas
às da celebridade têm como efeito engendrar novas dúvidas e angústias. Acti
vando o desenvolvimento de ambições desmedidas e tornando o seu cumpri
mento impossível, a sociedade narcísica favorece a auto-acusação e o despre zo
do indivíduo por si próprio. A sociedade hedonista só em superfície en gendra a
tolerância e a indulgência; na realidade, nunca a ansiedade, a in certeza, a
frustração conheceram maiores proporções. O narcisismo nutre-se mais de ódio
do que de admiração pelo Eu (C. N., p. 72).
Culto da celebridade? Mas o que é muito mais significativo é, pelo con trário, a
queda de veneração que sofrem as vedetas e os grandes deste mun do. O destino
das «estrelas» de cinema corre paralelamente ao dos grandes dirigentes políticos
e pensadores «filosóficos». As figuras imponentes do sa ber e do poder
extinguem-se, pulverizadas por um processo de personaliza ção que não pode
tolerar por mais tempo a manifestação ostentatória de tal desigualdade, de
semelhante distância. O mesmo momento assiste à dissolu ção dos discursos
sagrados marxistas e psicanalíticos, o fim dos gigantes his tóricos, o fim das
estrelas pelas quais se cometiam suicídios e simultanea mente a multiplicação
dos pequenos mestres de pensamento, o silêncio do psicanalista, as estrelas de
um Verão, as cavaqueiras intimistas dos homems políticos. Tudo o que designa
um absoluto, uma altura demasiado imponen te desaparece, as celebridades
perdem a sua aura, enquanto a sua capacida de de galvanizar as massas se
embota. As vedetas não ocupam já por muito tempo o cartaz, porque as novas
«revelações» eclipsam as de ontem segundo a lógica da pejsonalização, a qual é
imcompatível com a sedimentação, sempre susceptível de reproduzir uma
sacralidade impessoal. A obsolescên cia dos objectos responde a obsolescência
das estrelas e dos gurus; a perso nalização implica a multiplicação e a aceleração
na rotação dâs «presenças na primeira página» a fim de que nenhuma figura
possa erigir-se em ídolo inumano, em «monstro sagrado». E através do excesso
de imagens e da sua celeridade que se realiza a personalização: a «humanização»
surge com a in fiação galopante da moda. Assim há cada vez mais «vedetas» e
cada vez me nos investimento emocional que as vise; a lógica da personalização
gera uma indiferença pelos ídolos feita de atracção passageira e de desafecção
instan tânea. O tempo presta-se menos à devoção pelo Outro do que à realização
e transformação de si própio, como afirmam, cada um na sua linguagem e em
graus diversos, os movimentos ecológicos, o feminismo, a cultura psi, a edu
cação coo! das crianças, a moda «prática», o trabalho intermitente ou a tem po
parcial.
Dessubstancialização das grandes figuras da Alteridade e do Imaginário,
concomitante de uma dessubstancialização do real através do mesmo proces so
de acumulação e de aceleração. Por toda a parte o real deve perder a sua
dimensão de alteridade ou de espessura selvagem: restauração dos bairros
antigos, protecção dos locais, animação das cidades, iluminação artificial,
«planos paisagisticos», ar condicionado, é preciso salubrizar o real, expurgá lo
das suas últimas resistências, tornando-o um espaço sem sombra, aberto e
personalizado. Ao princípio de realidade substituiu-se o princípio de trans
parência que transforma o real num lugar de trânsito, num território onde a
deslocação é imperativa: a personalização é um pôr em circulação. Que di zer
desses subúrbios intermináveis dos quais só é possível fugir? Climatiza do,
sobressaltado por informações, o real torna-se irrespirável e condena ci
clicamente à viagem: «mudar de ares», ir não importa onde, mas sair do lu gar
onde se está, tudo isto traduz essa indiferença de que o real se encontra
doravante afectado. Todo o nosso ambiente urbano e tecnológico (parques de
estacionamento subterrâneos, galerias de lojas, auto-estradas, arranha- céus,
desaparecimento das praças públicas nas cidades, aviões a jacto, auto móveis,
etc.) se encontra organizado de modo a acelerar a circulação dos in divíduos, a
entravar a fixação e, portanto, a pulverizar a socialidade: «O es paço público
tornou-se um produto derivado do movimento» (T. L, p. 23); as nossas paisagens
«desenferrujadas pela velocidade», como bem diz Vinho, perdem a sua
consistência ou índice de realidade Circulação, informação, iluminação
trabalham para uma mesma anemização do real, o que por sua vez reforça o
investimento narcísico: uma vez tornado inabitável o real, resta a retracção sobre
si próprio, o refúgio autárcico, bem ilustrado pela nova va ga dos decibéis,
auscultadores e concertos pop. Neutralizar o mundo pela força do som, fechar-se
em si próprio, descarregar e sentir o corpo aos rit mos dos amplificadores, eis
que hoje os ruídos e vozes da vida se transfor maram em parasitas: é preciso que
o indivíduo se identifique com a música e esqueça a exterioridade do real.
Actualmente é-nos dado observar o se guinte: adeptos dojogging e do ski
praticando os seus desportos com auscul tadores estereo directamente aplicados
nos tímpanos, carros equipados com colunas e amplificador de 100 W,
discotecas de 4000 W, concertos pop onde a aparelhagem de som atinge os 24
000 W, toda uma civilização que fabri ca, como recentemente se lia em título em
Le Monde, uma «geração de sur dos», uma vez que há jovens que perderam já
50 por cento da sua capacida de auditiva. Surge uma nova indiferença ante o
mundo, já nem sequer acompanhada pelo êxtase narcísico da contemplação de si
próprio; hoje Nar ciso descarrega, cercado de amplificadores, com um capacete
de auscultado res, auto-suf iciente na sua prótese de sons «graves».
O vazio
«Se eu ao menos pudesse sentir alguma coisa!»: esta fórmula traduz o «novo»
desespero que fere um número cada maior de sujeitos. Sobre este ponto, o
acordo dos psi parece unânime: desde há vinte e cinco ou trinta anos, são as
desordens de tipo narcísico que constituem a maior parte das perturbações
psíquicas tratadas pelos terapeutas, enquanto as neuroses «clássicas» do século
XIX, histerias, fobias, obsessões, a partir das quais a psicanálise deitou corpo, já
não representam a forma predominante dos sin tomas (T. 1., p. 259 e C. N., pp.
8889). As perturbações narcisicas apresen tam-se menos sob a forma de
perturbações com sintomas nitidos e bem defi nidos do que sob a forma de
«perturbações caracteriais», caracterizadas por um mal-estar difuso e invasor,
um sentimento de vazio interior e de absurdo da vida, uma incapacidade de
sentir as coisas e os seres. Os sintomas neuró ticos que correspondiam ao
capitalismo autoritário e puritano deram lugar, sob impulsão da sociedade
permissiva, a desordens narcísicas, informes e in termitentes. Os pacientes já não
sofrem de sintomas fixos, mas de perturba ções vagas e difusas; a patologia
mental obedece à lei do tempo cuja tendên cia é para a redução da rigidez bem
como para a diluição dos pontos de refe rência estáveis: à crispação neurótica
substituiu-se a flutuação narcísica. Im possibilidade de sentir, vazio emotivo, a
dessubstancialização toca aqui o seu termo, revelando a verdade do processo
narcísico como estratégia do vazio.
Mais ainda: segundo Chr. Lasch seria a um desprendimento emocional que os
indivíduos cada vez mais aspirariam, em razão dos riscos de instabili dade que as
relações pessoais conhecem nos nossos dias. Ter relações inte rindividuais sem
ligação profunda, não se sentir vulnerável, desenvolver a sua independência
afectiva, viver sozinho tal seria o perfil de Narciso (C. N., p. 339). O medo de
ser decepcionado, o medo das paixões incontro ladas, traduz ao nível subjectivo
o que Chr. Lasch chama the flight from feeling — « a fuga diante do sentimento
» —, processo que se manifesta tanto na protecção íntima como na separação,
que todas as ideologias «progressis tas» pretendem realizar, entre o sexo e o
sentimento. Quando se prega o coo! sex e as relações livres, quando se
condenam o ciúme e a possessivida de, trata-se de facto de climatizar o sexo, de
o expurgar de toda a tensão
emocional e de conseguir assim um estado de indiferença, de desprendimen to,
não só a fim de o indivíduo se proteger contra as decepções amorosas, mas
também contra os seus próprios impulsos, que podem sempre ameaçar o seu
equilíbrio interior (C. N., p. 341). A libertação sexual, o feminismo, a
pornografia trabalham para um mesmo fim: erguer barreiras contra as emoções e
manter afastadas as intensidades afectivas. Fim da cultura sentimen tal, fim do
happy end, fim do melodrama e emergência de uma cultura coo! onde cada um
vive no seu bunker de indiferença, ao abrigo das suas paixões e das dos outros.
Certamente Chr. Lasch tem razão ao sublinhar o refluxo da moda «senti mental»,
uma vez que esta se mostra destronada pelo sexo, pela fruição, pe Entre 1970 e
1978, o número de Americanos entre os catorze e os trinta e quatro anos que
vivem sós, à margem de qualquer situação familiar, quase triplicou, passandó de
um mi lhão e meio para 4 300 000. «Hoje, 20 por cento dos lares americanos
reduzem-se a uma pessoa que vive só... perto de um quinto dos compradores são
actualmente celibatários» (Alvin Toffler, La Troisiême Vague, Denoel, 1980, p.
265).
la autonomia, pela violência espectacular. A sentimentalidade sofreu o mes mo
destino que a morte; torna-se incómodo exibir os próprios afectos, decla rar
ardentemente o fogo íntimo, chorar, manifestar com demasiada ênfase os
impulsos internos. Tal como a morte, a sentimentalidade tornou-se emba raçosa;
é preciso ser-se digno em matéria de afecto, quer dizer: discreto. Mas longe de
designar um processo anónimo de desumanização, o «senti mento interdito» é
um efeito do processo de personalização, que trabalha aqui na irradicação dos
signos rituais e ostentatórios do sentimento. O senti mento deve chegar ao seu
estádio personalizado, eliminando os sintagmas inteiriçados, a teatralidade
melodramática, o kitsch convencional. O pudor sentimental é exigido por um
princípio de economia e de sobriedade, consti tutivo do processo de
personalização. Deste modo, é menos a fuga perante o sentimento que
caracteriza o nosso tempo do que a fuga perante os signos da sentimentalidade.
Não é verdade que os indivíduos procurem um dás prendimento emocional e se
protejam contra a irrupção do sentimento; a es se inferno povoado de mónadas
insensíveis e independentes, devemos opor os clubes de encontros, os «pequenos
anúncios», a «rede», todos esses milhões e milhões de esperanças de encontros,
de ligações, de amor, que precisamente se realizam com cada vez mais
dificuldade. E aqui que o drama é mais pro fundo do que o pretenso
desprendimento coo!: homens e mulheres conti nuam a aspirar tanto como antes
(ou talvez nunca tenha havido até tanta «procura» afectiva como nesta época de
deserção generalizada) à intensidade emõcional de relações privilegiadas, mas
quanto mais forte é a expectativa mais raro parece tornar-se o milagre fusional,
ou, em todo o caso, mais bre ve Quanto mais a cidade desenvolve as
possibilidades de encontros, mais sós se sentem os indivíduos; quanto mais
livres e emancipadas das coacções antigas as relações se tornam, mais rara se faz
a possibilidade de conhecer uma relação intensa. Por toda a parte encontramos a
solidão, o vazio, a difi culdade de sentir, de ser transportado para fora de si; de
onde uma fuga pa ra a frente de «experiências», que mais não faz do que traduzir
esta busca de uma «experiência» emocional forte. Porque não posso amar e
vibrar? Desolação de Narciso, demasiado bem programado na sua absorção em
próprio para poder ser afectado pelo Outro, para sair de si — e, no entani
insuficientemente programado, pois que deseja ainda um mundo relacior
afectivo.
CAPITULO IV Modernismo e pósmodernismo
Surgida ao longo da última década na cena artística e intelectual e não escapando
inteiramente a um efeito de moda, a noção sem dúvida equívoca de pósmodernismo apresenta, no entanto, como principal ponto de interes se, o de
convidar, por oposição às sempre estrondosas proclamações da ené sima
novidade decisiva, a um regresso prudente às nossas origens, a uma
perspectivação histórica do nosso tempo, a uma interpretação em profundi dade
da era de que parcialmente estamos a sair, mas que, sob muitos aspec tos,
continua a sua obra, por muito que isso desagrade aos arautos ingénuos do corte
absoluto. Se uma nova época da arte, do saber e da cultura se anuncia, impõe-se
a tarefa de determinar o que foi o ciclo anterior, a novi dade requer aqui a
memória, a ordenação cronológica, a genealogia.
Pós-moderno: no mínimo, dir-se-á que, não se trata de uma noção clara,
remetendo antes para níveis e esferas de análise que é por vezes difícil fazer
coincidir. Esgotamento de uma cultura hedonista e vanguardista ou emer gência
de uma nova potência inovadora? Decadência de uma época sem tra dição ou
revitalização do presente através de uma reabilitação do passado? Continuidade
de uma nova espécie na trama modernista ou descontinuida de? Peripécia na
história da arte ou destino global das sociedades democráti cas? Recusánio-nos
aqui a circunscrever o pós-modernismo a um quadro re gional, estético,
episteniológico ou cultural: se surge uma pós-modernidade.
esta deve designar uma vaga profunda e geral à escala do todo social, pois que é
certo que vivemos num tempo em que s oposições rígidas se esbatem e as
preponderâncias se tornam frouxas, em que a inteligência do momento exige que
se sublinhem correlações e homologias. Elevar o pós-modernismo à categoria de
uma hipótese global, dando nome à passagem lenta e comple xa para um novo
tipo de sociedade, de cultura e de indivíduo, que nasce do interior e no
prolongamento da era moderna; estabelecer o teor do moder nismo, as suas
linhas genealógicas e as suas funções históricas principais; apreender a inversão
de lógica que, pouco a pouco, se operou ao longo do século XX, em proveito de
um predomínio cada vez mais acentuado dos sis temas flexíveis e abertos, tal foi
o objectivo, que aqui visámos, tomando por fio de Ariana as análises de Daniel
BelI, cuja mais recente obra traduzida para o francês oferece o mérito
incomparável de fornecer uma teoria geral do funcionamento do capitalismo
justamente à luz do modernismo e do seu «pós». Este livro, ao contrário do
anterior 2, não teve em França um eco po sitivo: sem dúvida que as suas
posições neo-conservadoras e puritanas não são estranhas a este acolhimento
reservado. Mas mais ainda, o livro ressen te-se da falta de construção, da rapidez
da argumentação, do aspecto por vezes caótico das análises, factores que
incontestavelmente prejudicam a maior parte das suas ideias estimulantes e sob
muitos aspectos incontorná veis. Sejam quais forem os seus defeitos, esta obra
traz ar fresco, interroga o papel da cultura relativamente à economia e à
democracia, arranca a inter pretação da cultura aos compartimentos estanques da
erudição microscópi ca, aplica-se à elaboração de uma teoria que articula a arte e
o modo de vi da no que se refere às sociedades capitalistas avançadas; perante a
fragmen tação extrema do saber sociológico e ao retraimento constante das
nossas perspectivas acerca do mundo actual, torna-se necessário examinarmos de
perto as teses de Daniel Beil, dando-lhes todo o desenvolvimento que mere cem,
embora, é certo, para assinalar insistentemente tudo o que dele nos se para.
A cultura antinomiana
Desde há mais de um século, o capitalismo encontra-se dilacerado por uma crise
cultural profunda, aberta, que podemos resumir numa palavra: o modernismo, ou
seja essa nova lógica artística baseada em rupturas e des continuidades,
assentando na negação da tradição, no culto da novidade e da mudança. O
código do novo e da actualidade descobre a sua primeira formulação teórica em
Baudelaire, para quem o belo é inseparável da mo dernidade, da moda, do
contingente 1; mas é, sobretudo, entre 1880 e 1930 que o modernismo ganha
toda a sua amplitude com o abalar do espaço da representação clássica, com a
emergência de uma escrita desprendida das imposições da significação
codificada, e depois com as explosões dos grupos e artistas de vanguarda. A
partir de então, os artistas não páram de destruir as formas e sintaxes instituídas,
insurgem-se violentamente contra a ordem oficial e o academismo: ódio à
tradição e raiva de renovação total. Sem dú vida, todas as grandes obras
artísticas do passado inovaram sempre de uma maneira ou de outra, introduzindo
aqui e ali a derrogação dos cânones em vigor, mas é apenas neste fim de século
que a mudança se torna revolução, ruptura clara na trama do tempo,
descontinuidade entre um antes e um de pois, afirmação de uma ordem
resolutamente outra. O modernismo não se contenta com produzir variações
estilísticas e temas inéditos, quer romper a continuidade que nos liga ao passado,
instituir obras absolutamente novas. Mas o mais notável ainda é que a raiva
modernista desqualifica, no mesmo impulso, as obras mais modernas: as obras
de vanguarda, logo depois de produzidas, tornam-se retaguarda e afundam-se no
déjà-vu; o modernismo proíbe o estacionamento, impõe a invenção perpétua, a
fuga para diante, e é essa a «contradição» que lhe é imanente: «A modernidade é
uma espécie de auto-destruição criadora.., a arte moderna não é somente filha da
idade critica, mas crítica de si própria» Adorno dizia-o de outra maneira: o mo
dernismo define-se menos por declarações e manifestos positivos do que por um
processo de negação sem limites e que, por isso, não se poupa a si próprio: a
«tradição do novo» (H. Rosenberg), fórmula paradoxal do moder nismo, destrói
e desvaloriza inelutavelmente aquilo que institui, o novo incli na-se de pronto na
direcção do antigo, nenhum conteúdo positivo é já afir mado, sendo a própria
forma da mudança o único princípio que governa a arte. O inédito tornou-se o
imperativo categórico da liberdade artística.
A esta contradição dinâmica do modernismo criativo seguiu-se uma fase não
menos contraditória, mas, para além disso, fastidiosa e esvaziada de to da a
originalidade, O dispositivo modernista que se incarnou de modo ex emplar nas
vanguardas encontra-se hoje exausto, ou, mais exactamente, aos olhos de Daniel
Bel!, tal é a sua condição desde há meio século. As vanguar das não páram de
girar no vazio, incapazes de inovação artística maior. A negação perdeu o seu
valor criador, os artistas mais não fazem do que re produzir e plagiar as grandes
descobertas do primeiro terço do século, entrá mos naquilo a que D. Bel! chama
o pós-modernismo, fase de declínio da criatividade artística, a que já não resta
mais do que uma exploração extre mista dos princípios modernistas. Daí a
contradição de uma cultura cujo fito é gerar sem interrupção o absolutamente
outro e que, no termo do seu pro cesso, produz o idêntico, o estereotipo, uma
repetição tristonha. Neste pon to, D. BelI adopta o juízo de O. Paz, ainda que
faça recuar o momento da crise: desde há anos, as negações da arte moderna
«são repetições rituais: a rebelião torna-se procedimento técnico, a crítica
retórica, a transgressão ce rimonial. A negação deixou de ser criadora. Não digo
que estejamos a viver o fim da arte: vivemos o fim da ideia de arte moderna»
Esgotamento da vanguarda que não se explica nem a partir do «oficio perdido»
nem a partir da «sociedade técnica»: a cultura do sem-sentido, do grito, do ruído,
não corresponde ao processo técnico, ainda que como seu duplo negativo; não é
imagem do império da técnica que «é por si evacuadora de todo o sentido»
D. Bel! observa com justeza que nas nossas sociedades, as transformações tecnoeconómicas não determinam as transformações culturais, e o pós- modernismo
não é o reflexo da sociedade pós-industrial. O impasse da van guarda liga-se ao
modernismo, a uma cultura radicalmente individualista e extremista, no fundo
suicidária, que afirma a inovação como único valor. O marasmo pós-moderno
resulta apenas da hipertrofia de uma cultura finaliza da pela negação de toda a
ordem estável.
O modernismo não é só rebelião contra si próprio, é simultaneamente re volta
contra todas as normas e valores da sociedade burguesa: a «revolução cultural»
começa aqui, neste fim do século XIX. Longe de reproduzirem os valores da
classe economicamente dominante, os inovadores artísticos da segunda metade
do século XIX e do século XX far-se-ão porta-vozes, nisso se inspirando no
romantismo, de valores assentes na exaltação do eu, na auten ticidade e no
prazer, valores directamente hostis aos costumes da burguesia, centrados estes
no trabalho, na poupança, na moderação, no puritanismo. De Baudelaire a
Rimbaud e a Jarry, de V. Woolf a Joyce, de Dada ao Sur realismo, os artistas
inovadores radicalizam as suas críticas às convenções e instituições sociais,
tornam-se adversários encarniçados do espírito burguês, desprezando o seu culto
do dinheiro e do trabalho, o seu ascetismo, o seu racionalismo estreito. Viver
com o máximo de intensidade, «desregramento de todos os sentidos», seguir os
impulsos e a imaginação, abrir o campo das próprias experiências, «a cultura
modernista é por excelência uma cultura da personalidade. Tem por centro o 'eu'.
O culto da singularidade começa com Rousseau» (p. 141) e prolonga-se com o
romantismo e o seu culto da paixão. Mas a partir da segunda metade do século
XIX, o processo adquire uma fei ção agónica, as normas da vida burguesa
tornam-se objecto de ataques cada vez mais virulentos por parte de uma boémia
revoltada. Assim surge um in dividualismo ilimitado e hedonista, realizando o
que a ordem mercantil contrariara: «Enquanto a sociedade burguesa introduzia
um individualismo radical no domínio econômico e estava pronta a suprimir
todas as relações sociais tradicionais, temia as experiências do individualismo
moderno no domínio da cultura» (p. 28). Se a burguesia revolucionou a
produção e as trocas, em contrapartida, a ordem cultural em que se desenvolveu
continuou a ser disciplinar, autoritária e, se nos ativermos aos EUA, mais
precisamen te, puritana. E esta moral protestante-ascética que sofrerá, no
decurso dos primeiros anos do século XX, a ofensiva dos artistas inovadores.
Mas é com o aparecimento do consumo de massa nos EUA, nos anos vinte, que
o hedonismo, até então apanágio de uma pequena minoria de ar tistas ou de
intelectuais, se tornará o comportamento geral na vida corrente; é aí que reside a
grande revolução cultural das sociedades modernas. Se en cararmos a cultura na
perspectiva do modo de vida, será o próprio capitalis mo e não o modernismo
artístico o artesão principal da cultura hedonista. Com a difusão a grande escala
de objectos considerados até então como ob jectos de luxo, com a publicidade, a
moda, o mass-media e sobretudo o crédito, cuja instituição mina directamente o
princípio de poupança, a mo ral puritana cede lugar a valores hedonistas que
encorajam a gastar, a gozar a vida, a obedecer aos impulsos: a partir dos anos
cinquenta, a sociedade americana e mesmo a europeia passam a gravitar em boa
medida em torno do culto do consumo, dos tempos livres e do prazer. «A ética
protestante foi minada não pelo modernismo, mas pelo próprio capitalismo. O
maior ins trumento de destruição da ética protestante foi a invenção do crédito.
Ante riormente, para comprar era preciso começar por economizar. Mas com um
cartão de crédito, era possível satisfazer imediatamente os desejos» (p. 31). O
estilo de vida moderno resulta não só das transformações de sensibilidade
impulsionadas pelos artistas desde há mais de um século, mas, mais profun
damente ainda, pelas transformações do capitalismo desde há sessenta anos.
Instalou-se, portanto, sob o efeito conjugado do modernismo e do consu mo de
massa, uma cultura centrada na realização do eu, na espontaneidade e na fruição:
o hedonismo torna-se o «princípio axial» da cultura moderna, e entra a partir daí
em oposição aberta com a lógica do económico e do políti co — eis a hipótese
geral que orienta as análises de D. Bell. A sociedade moderna está clivada, já
não possui um carácter homogéneo e apresenta-se como a articulação complexa
de três ordens distintas, a tecno-económica, a do regime político e a da cultura,
obedecendo cada uma delas a um princí pio axial diferente, ou até contrário.
Estas esferas «não estão em conformi dade umas com as outras e têm diferentes
ritmos de transformação. Obede cem a normas diferentes que justificam
comportamentos diferentes e mesmo opostos. São as discordâncias entre estas
esferas que são responsáveis pelas diversas contradições da sociedade» (pp. 2021). A ordem «tecno-económica» ou «estrutura social» (organização da
produção, tecnologia, estrutura socio profissional, repartição dos bens e serviços)
é regida pela racionalidade fun cional, quer dizer pela eficácia, pela meritocracia,
pela utilidade, pela pro dutividade. Em compensação, o princípio fundamental
que regula a esfera do poder e a justiça social é a igualdade: a exigência de
igualdade não pára de se alargar (pp. 269-278); não se refere já apenas à
igualdade de todos pe rante a lei, ao sufrágio universal, à igualdade das
liberdades públicas, mas à «igualdade dos meios» (reivindicação da igualdade de
oportunidades, explo são dos novos direitos sociais relativos à instrução, à saúde,
à segurança eco nómica) e até à «igualdade dos resultados» (exames especiais
para as mino rias a fim de remediar a disparidade dos resultados, exigência de
uma igual participação de todos nas decisões respeitantes ao funcionamento dos
hospi tais, universidades, jornais ou bairros: é a época da «democracia de partici
pação»). Daqui decorre uma «disjunção das ordens», uma tensão estrutural entre
três ordens assentes em lógicas antinómicas: o hedonismo, a eficácia, a
igualdade. Nestas condições, temos que renunciar a considerar o capitalismo
moderno como um todo unificado, de acordo com as análises sociológicas
dominantes: desde há um século, o divórcio entre as esferas cresce, nomea
damente a disjunção entre a estrutura social e a «cultura antinomiana» da plena
realização da liberdade do eu torna-se cada vez mais profunda. En quanto o
capitalismo se desenvolveu sob a égide da ética protestante, a or dem tecnoeconómica e a cultura formavam um conjunto coerente, favorável à acumulação
do capital, ao progresso, à ordem social, mas à medida que o hedonismo se
impôs como valor último e legitimação do capitalismo, este úl timo perdeu o seu
carácter de totalidade orgânica, o seu consenso. a sua vontade. A crise das
sociedades modernas é, antes do mais, cultural ou espi ritual.
Modernismo e valores democráticos
Para D. BeIl, a análise do modernismo deve apoiar-se em dois princípios
solidários. Por um lado a arte moderna, definida como expressão do eu e re volta
contra todos os estilos reinantes, é antinómica em relação às normas cardiais da
sociedade, a eficácia e a igualdade. Por outro lado, por motivo desta
discordância, é vão querermos dar conta da natureza do modernismo em termos
de reflexo social ou económico: «As ideias e as formas resultam de uma espécie
de diálogo com as ideias e as formas anteriores, admitidas ou rejeitadas» (p. 64).
Hostil às teorias organicistas e marxistas, D. BeIl descreve o funcionamento
heterogéneo das sociedades democráticas, as lógi cas adversas que as dilaceram,
a autonomia e incompatibilidade das estrutu ras. Aqui reside o interesse desta
análise que multiplica os parâmetros e re cusa as fórmulas simples da
modernidade; aqui se depara igualmente com o ponto fraco de uma problemática
que acusa excessivamente as descontinui dades e os antagonismos. Se nos
ativermos a estas disjunções, de resto me nos estruturais do que
fenomenológicas, perdemos de vista a continuidade histórica em que se inscreve
a cultura modernista e nomeadamente os laços que prendem à igualdade. E
preciso sermos cautelosos perante as oposições irreconciliáveis que o sociólogo
nos apresenta; só um corte histórico mais amplo permite avaliar o teor exacto
das rupturas e descontinuidades. A aná lise da sociedade moderna em termos de
«disjunção das ordens» só parcialmente é exacta; à falta de uma temporalidade
mais longa, acabamos por es quecer que o modernismo artístico e a igualdade,
longe de serem discordan tes, fazem parte integrante de uma mesma cultura
democrática e individua lista.
O modernismo não é uma ruptura primeira e incomparável: na sua raiva de
destruir a tradição e de inovar radicalmente, o modernismo prossegue na ordem
cultural, após o intervalo de um século, a obra própria das socieda des modernas
visando instituir-se de modo democrático. O modernismo é apenas uma face do
vasto processo secular que conduz ao advento das socie dades democráticas
assentes na soberania do indivíduo e do povo, sociedades libertas da submissão
aos deuses, das hierarquias hereditárias e da força da tradição. Prolongamento
cultural do processo que se manifestou com brilho na ordem política e jurídica
no fim do século XVIII, culminar do empreen dimento revolucionário
democrático, constituindo uma sociedade sem funda mento divino, pura
expressão da vontade dos homens reconhecidos como iguais. Doravante a
sociedade está votada a inventar-se por inteiro segundo a razão humana, não
segundo a herança do passado colectivo, já nada é in tocável, a sociedade
apropria-se do direito de se conduzir a si própria sem exterioridade, sem modelo
decretado absoluto. Não é precisamente esta mes ma destituição da preeminência
do passado que se encontra em acção na ofensiva dos artistas inovadores? Do
mesmo modo que a revolução democrá tica emancipa a sociedade das forças do
invisível e do seu correlativo, o uni verso hierárquico, assim o modernismo
artístico liberta a arte e a literatura do culto da tradição, do respeito pelos
Mestres, do código da imitação. Ar rancar a sociedade da sua subordinação às
potências fundadoras externas e não humanas, desligar a arte dos códigos da
narração-representação: é a mesma lógica que actua, instituindo uma ordem
autónoma cujo fundamento é o indivíduo livre. «O que a nova arte busca é a
inversão da relação entre o objecto e o quadro, a subordinação manifesta do
objecto ao quadro», escre via Malraux após Maurice Denis: o objectivo do
modernismo é a «composi ção pura» (Kandinsky), o acesso a um universo de
formas, de sons, de senti dos, livres e soberanos, não submetidos a regras
exteriores, sejam religiosas, sociais, ópticas ou estilísticas. De modo algum em
contradição com a ordem da igualdade, o modernismo é a continuação por
outros meios da revolução democrática e do seu trabalho de destruição das
formações heterónomas. O modernismo institui uma arte desligada do passado,
soberanamente mestra de si própria; é uma figura da igualdade, a primeira
manifestação da de mocratização da cultura, ainda que possa surgir sob a feição
elitista de uma arte separada das massas.
Vemos nestas condições o limite da abordagem sociológica que analisa a arte
como «prática classificante», sistema regido por uma lógica da diferen ciação
estatutária e da distinção: a partir do fim do século XIX, é o processo modernista
que esclarece a verdadeira função da arte, não a imposição sim bólica e social do
reconhecimento e da diferença através do consumo cultu ral dos grupos. A
escala da história, a arte moderna não pode ser reduzida a uma ordem que
distribui costados de nobreza cultural, é antes o meio de promover uma cultura
experimental e livre, com as fronteiras em perpétua deslocação, uma criação
aberta e ilimitada, uma ordem de signos em revolu ção permanente, ou, por
outras palavras, uma cultura estritamente indivi dualista, a inventar por
completo, paralelamente a um sistema político as sente unicamente na soberania
das vontades humanas. O modernismo, vec tor da individualização e do pôr em
circulação contínuo da cultura, instru mento de exploração de novos materiais,
de novas significações e combina ções.
Do mesmo modo que a arte moderna prolonga a revolução democrática,
prolonga também, a despeito do seu carácter subversivo, uma cultura indivi
dualista já presente aqui e além em numerosos comportamentos da segunda
metade do século XIX e começos do século XX: citemos, sem ordem, a bus ca
do bem-estar e dos gozos materiais já assinalada por Tocqueville, a mul
tiplicação dos «casamentos de inclinação» decididos por amor, o gosto nas cente
pelo desporto, a esbelteza e as danças novas, a emergência de uma moda
vestimentar acelerada, mas também o aumento do suicídio e a dimi nuição das
violências interindividuais. O modernismo artístico não introduz uma ruptura
absoluta na cultura; completa, na febre revolucionária, a lógica do mundo
individualista.
O modernismo é de essência democrática: desliga a arte da tradição e da
imitação, e simultaneamente inicia um processo de legitimação de todos os
temas. Manet rejeita o lirismo das poses, os arranjos teatrais e majestosos, a
pintura deixa de ter tema privilegiado, já não tem que idealizar o mundo, um
modelo pode ser fraco e indigno, os homens podem mostrar-se de jaque tas e
casacos pretos, uma natureza morta está em pé de igualdade com um retrato e
mais tarde, um esboço com um quadro. Com os Impressionistas, o anterior
brilho dos temas dá lugar à familiaridade das paisagens de subúr bio, à
simplicidade das margens da TIe-de-France, dos cafés, ruas e gares; os cubistas
integrarão nos seus quadros algarismos, letras, pedaços de papel, de vidro ou de
ferro. Com o ready-made, importa que o objecto escolhido se ja absolutamente
«indiferente», dizia Duchamp; o urinol, a prateleira de gar rafas entram na lógica
do museu, ainda que para destruir ironicamente os seus alicerces. Mais tarde, os
pintores pop, os Novos Realistas tomarão co mo tema objectos, signos e
desperdícios do consumo de massa. A arte mo derna assimila progressivamente
todos os temas e materiais, e fazendo-o pas sa a definir-se por um processo de
dessublimação das obras, corresponden te exacto da dessacralização democrática
da instância política, da redução dos signos de ostentação do poder, da
secularização da lei: intervém nos dois casos o mesmo trabalho de destituição
das alturas e majestades da obra, to dos os temas são postos no mesmo plano,
todos os elementos podem entrar nas criações plásticas e literárias. Em Joyce,
em Proust, em Faulkner, já não há qualquer momento privilegiado, todos os
factos se equivalem e merecem ser descritos; «gostaria de fazer com que tudo
entrasse neste romance», dizia Joyce a propósito de Ulisses, a banalidade, o
insignificante, o trivial, as as sociações de ideias são narradas sem juízo
hierárquico, sem discriminação, em pé de igualdade com o facto importante.
Renúncia à organização hierár quica dos factos, integração de todos os temas de
toda e qualquer espécie, a significação imaginária da igualdade moderna anexou
a operação artística.
Mesmo os ataques contra as Luzes das vanguardas são ainda ecos da cul tura
democrática. Com Dada, é a própria arte que se sabota e exige a sua própria
destruição. Trata-se de abolir o fetichismo artístico, a separação hie rárquica da
arte e da vida em nome do homem total, da contradição, do processo criador, da
acção, do acaso. Sabe-se que os Surrealistas, Artaud e depois os happenings, as
acções de anti-arte, procurarão também superar a oposição entre a arte e a vida.
Mas, atenção, este alvo constante do moder nismo, e não do pós-modernismo,
como quer D. BeIl não é a insurreição do desejo, a desforra das pulsões contra o
quadriculado da vida moderna; é a éultura da igualdade que arruína
inelutavelmente a sacralidade da arte e re 1 O processo de dessublimação tal
como aqui o entendemos não corresponde ao sentido que lhe dá H. Marcuse.
EmLHomme unidimensionnel (Ed. de Minuit, 1968), a dessublimação designa a
integração dos conteúdos de oposição da cultura superior no quotidiano, a
assimila ção e a banalização das obras por uma sociedade que difunde em grande
escala as mais altas realizações: a liquidação de uma cultura distanciada em
contradição com o real é corolário da sociedade do centro comercial e da
televisão. Na realidade, a dessublimação iniciou-se um sécu lo mais cedo.
valoriza correlativamente o fortuito, os ruídos, os gritos, o quotidiano. A mais
longo ou a mais breve prazo, tudo ganha dignidade, a cultura da igual dade
engendra uma promoção, uma reciclagem universal das significações e objectos
menores. Sem dúvida, a revolta surrealista não é prosaica e conce be-se
inteiramente sob o signo do maravilhoso, de uma vida outra, mas não podemos
ignorar que o «surreal» não se identifica com o imaginário puro nem com a
evasão romântica das viagens exóticas: é nas ruas de Paris ou na feira da ladra,
nas aproximações insólitas e coincidências do quotidiano que devem ser
buscados os signos mais perturbantes. A arte e a vida são aqui e agora. Mais
tarde, J. Cage proporá que se considere como música qualquer ruído de um
concerto, e Ben chega à ideia de «arte total»: «Escultura de arte total: erga-se
uma coisa qualquer — Música de arte total: ouça-se seja o que for — Pintura de
arte total: olhe-se qualquer coisa». Fim da elevação sobree minente da arte, que
se reúne à vida e sai para a rua, «a poesia deve ser fei ta por todos, não por um»,
a acção é mais interessante do que o resultado, tudo é arte: o processo
democrático corrói as hierarquias e cumes, a insur reição contra a cultura, seja
qual for a sua radicalidade nihilista, só foi possível pela cultura do homo
aequalis.
Se os artistas modernos estão ao serviço de uma sociedade democrática, fazemno não pelo trabalho silencioso característico do Antigo Regime, mas tomando o
caminho da ruptura radical, a via extremista, a das revoluções políticas
modernas. O modernismo, sejam quais forem as intenções dos ar tistas, deve ser
compreendido como a extensão da dinâmica revolucionária à ordem cultural. As
analogias entre processo revolucionário e processo mo dernista são manifestas: a
mesma vontade de instituir um corte brutal e irre versível entre o passado e o
presente; a mesma desvalorização da herança tradicional ( ser como um recémnascido, não saber nada, absoluta mente nada da Europa... ser quase um
primitivo»., P. Klee); o mesmo so breinvestimento ou sacralização laica da era
nova em nome do povo, da igualdade, da nação num caso, em nome da própria
arte ou do «homem no vo», noutro; o mesmo processo de ir até ao fim, mesma
exasperação visível quer na ordem ideológica e terrorista, quer na raiva de levar
cada vez mais longe as inovações artísticas; a mesma vontade de desafiar as
fronteiras na cionais e de universalizar o mundo novo (a arte de vanguarda
formula um estilo cosmopolita); a mesma constituição de grupos «avançados»,
os militan tes, os artistas de vanguarda; o mesmo mecanismo maniqueu
engendrando a exclusão dos mais próximos: se a Revolução tem necessidade de
traidores saídos das sua próprias fileiras, a vanguarda, pelo seu lado, considera
os seus predecessores, os seus contemporâneos ou a arte no seu conjunto como
impostura ou obstáculo à verdadeira criação. Se, como dizia Tocqueville, a
Revolução Francesa procedeu à maneira das revoluções religiosas, devería mos
também dizer que os artistas modernos procederam à maneira dos revo
lucionários. O modernismo é a importação do modelo revolucionário para a
esfera artística. E por isso que não podemos subscrever as análises de Ador no
que, fiel neste ponto à problemática marxista, vê no modernismo um processo
«abstracto» análogo à lógica do sistema do valor de troca generali zado no
estádio do grande capitalismo'. O modernismo não é mais a repro dução da
ordem da mercadoria do que a Revolução Francesa foi uma «revo lução
burguesa» a ordem económica, quer a compreendamos em termos de interesses
de classe quer de lógica mercantil, não é de molde a tornar inte ligível a
exasperação modernista, a revolta contra a «religião fanática do pas sado», o
entusiasmo pela «magnjficência radiosa do futuro» (Manifesto Futu rista), a
vontade de renovação radical. O processo vanguardista é a própria lógica da
Revolução, com o seu maniqueísmo nos antípodas do sistema regu lado do valor,
da acumulação, da equivalência. D. Bell sublinha-o com ra zão, a cultura
moderna é antiburguesa. Mais do que isso, é revolucionária, quer dizer de
essência democrática, e como tal inseparável, na esteira das grandes revoluções
políticas, da significação imaginária central, característi ca das nossas
sociedades, do indivíduo livre e auto-suficiente. Como a ideo logia do indivíduo
tornou irremediavelmente ilegítima a soberania política cuja origem não fosse
humana, do mesmo modo é a nova representação dos indivíduos livres e iguais
que está na base dos abalos revolucionários da esfe ra cultural e da «tradição do
novo».
Tem-se insistido muitas vezes, de resto bastante imprudentemente, no papel
decisivo das transformações «filosóficas» (o bergsonismo, W. James, Freud) e
científicas (geometrias não-euclidianas, axiomáticas, teoria da rela tividade) no
aparecimento da arte moderna. Com as análises marxistas, não deixou de se ver
na arte moderna o reflexo mais ou menos directo da aliena ção capitalista.
Recentemente ainda, J. ElIul não hesitava em afirmar que «todas as
particularidades da arte moderna» se explicavam a partir do «meio técnico»'. P.
Francastel dava conta do desaparecimento do espaço plástico euclidiano a partir
de uma nova representação entre o homem e o universo, ou seja dos novos
valores suscitados pela ciência e pela técnica, privilegiando a velocidade, o
ritmo, o movimento Nem todas estas análises de profundi dade desigual devem
ser postas no mesmo plano: mas não deixa de ser ver dade que nenhuma delas
permite explicar a especificidade do modernismo, o imperativo do Novo e a
tradição da ruptura. Porquê uma multiplicação tão próxima de grupos e estilos
que se excluem mutuamente? Porquê esta casca ta de interrupções e de
iconoclasmos? Nem o triunfo da técnica nem os seus valores concomitantes
bastam para explicar a cadeia de rupturas que carac teriza a arte moderna, a
emergência de uma ordem estética que desafia as regras da percepção e da
comunicação. Acontece aqui como com as teorias científicas: as mutações não se
impõem inelutavelmente, novos factos podem ser interpretados na ordem dos
sistemas estabelecidos, mediante a introdu ção de parâmetros suplementares. O
universo da velocidade podia fornecer novos temas — o que, aliás, não deixou
de fazer —, não exigia obras acro nológicas, fragmentadas, abstractas,
pulverizadoras do sentido, e menos ain da a necessidade de levar cada vez mais
longe as derrogações e experimenta ções. A análise sociológica encontra aqui o
seu limite: como ver na arte mo derna o efeito das transformações científicas e
técnicas quando a arte que se forma recusa toda a estabilização, nega
imediatamente o que instaurou e produz obras tanto figurativas como abstractas,
oníricas e funcionalistas, ex pressionistas ou geométricas, formalistas e
«anartistas» (Duchamp): no mo mento em que a arte se torna cosmopolita, já não
há unidade, coexistem ne la as tendências mais resolutamente adversas. Não é
partindo da unidade científica e técnica do mundo industrial que se poderá
elucidar a multidirec cionalidade da arte moderna.
O modernismo só pôde surgir veiculado por uma lógica social e ideológi ca tão
flexível que permite produzir contrastes, divergências e antinomias. Já o
sugerimos, trata-se da revolução individualista através da qual, pela pri meira
vez na história, o ser individual, igual a qualquer outro, é percebido e se percebe
como fim último, se concebe isoladamente e conquista o direito à livre
disposição de si próprio, que constitui o fermento do modernismo. Tocquevilie
já o mostrara, o indivíduo fechado sobre si próprio e considerando- se à parte
quebra a cadeia das gerações, o passado e a tradição perdem o seu prestígio: o
indivíduo que se reconhece como livre já não se encontra adstrito à veneração
dos antepassados que limitam o seu direito absoluto a ser ele próprio, o culto da
inovação e do actual é estritamente correlativo desta desqualificação
individualista do passado. Toda a Escola que constitua uma autoridade
definitiva, toda a sedimentação estilística, toda a fixação es tá destinada a ser
criticada e superada a partir do momento em que prevale ce o ideal da autonomia
pessoal: a desvalorização dos estilos reinantes, a propensão dos artistas a
mudarem de «maneira», a multiplicação dos gru pos, são inseparáveis de uma
cultura do indivíduo livre, pura actividade or ganizadora cujo ideal é criar sem
Mestre e escapar ao estatismo, ao estacio namento repetitivo. O código do Novo
é precisamente o instrumento de que a sociedade individualista se dotou para
esconjurar o sedentarismo, a repeti ção, a unidade, a fidelidade aos Mestres e a si
próprio e tudo isto com vista a uma cultura livre, cinética e plural.
A inovação modernista tem de particular o facto de se aliar ao escândalo e à
ruptura; surgem assim obras em contradição com a harmonia e o senti do,
divorciadas da nossa experiência familiar do espaço e da linguagem. Nu ma
sociedade assente no valor insubstituível, último, de cada unidade huma na, a
arte organiza figuras deslocadas, abstractas, herméticas; surge como inumana.
Este paradoxo reside precisamente na nossa representação do in divíduo, que «é
quase sagrado, absoluto; não há nada acima das suas exi-' gências legítimas; os
seus direitos não são limitados senão pelos direitos idênticos dos outros
indivíduos» Os modernos inventaram a ideia de uma liberdade sem fronteiras,
que permite explicar o que nos separa do humanis mo clássico. O Renascimento
considerava que o homem se deslocava num universo imutável e geométrico
dotado de atributos permanentes. O mundo exterior, mesmo infinito e aberto à
acção, obedecia, no entanto, a leis fixas, e eternas que o homem só podia registar
Com os modernos, a ideia de um real que impõe as suas leis mostra-se
incompatível com o valor da mónada individual ontologicamente livre. Desafio
às leis, ao real, ao sentido, a liber dade entre os modernos não podia admitir
limites ao seu exercício; manifesta-se por um processo hiperbólico de negação
das regras heterónomas e correlativamente por uma criação autónoma,
decretando as suas próprias leis. Tudo o que se estabelece numa independência
intocável, tudo o que implica uma submissão a priori não pode resistir a prazo ao
trabalho da au tonomia individual. «Quis estabelecer o direito de ousar tudo»,
dizia Gau guin: a liberdade já não é adaptação ou variação da tradição, exige a
ruptu ra e a insubmissão, a destruição das leis e significações herdadas, uma cria
ção soberana, uma invenção sem modelo. Do mesmo modo que o homem
moderno conquistou o direito de dispor livremente de si próprio na sua vida
privada, de deliberar sobre a natureza do poder e da lei, assim conquista também
o poder demiúrgico de organizar as formas livremente, seguindo as leis internas
à própria obra, para além dos dados pré-existentes: «criar tor nar-se-á uma
operação consciente» (Kandisnky). Uma sociedade a inventar, uma vida privada
a administrar, uma cultura a criar e a desestabilizar, o modernismo não pode ser
apreendido independentemente do indivíduo livre e origem de si próprio. Foi a
fractura da organização «holista», a inversão da relação do indivíduo com o
conjunto social, em benefício do ser individual apreendido como livre e
semelhante aos outros, que permitiu o aparecimen to de uma arte desligada das
imposições ópticas e linguísticas, desligada dos códigos da representação, da
intriga, da verosimilhança e da consonância.
Sem dúvida, a liberdade exigiu condições económicas e sociais que per mitissem
aos artistas libertarem-se da tutela financeira e estética em que os mantinham a
Igreja e a aristrocracia desde a Idade Média e do Renascimen to. O instrumento
desta libertação foi, como sabemos, a instituição de um mercado artístico: à
medida que os artistas se dirigiam a um público mais extenso e diversificado, à
medida que a «clientela» se alargava, que as obras entravam no ciclo da
mercadoria mediatizada por instituições específicas de difusão e promoção
culturais (teatros, casas editoras, academias, salões, críticos de arte, galerias,
exposições, etc.), a criação artística podia emanci par-se do sistema do
mecenato, dos critérios exteriores a si própria e afirmar cada vez mais
abertamente a sua soberana autonomia Por crucial que seja, esta base material da
arte moderna não autoriza um determinismo que ocul te a força intrínseca da
significação imaginária da liberdade, sem a qual o modernismo é inconcebível.
A actividade artística inscreve-se num movimen to social global e os artistas
estão envolvidos por sistemas de valores que ex cedem a esfera artística:
impossível compreender a insurreição artística inde pendentemente desses
valores que estruturam e orientam o fazer dos indiví duos e dos grupos. A
existência de um mercado literário e artístico não pode explicar por si só a raiva
experimental e desconstrutora dos artistas: o mer cado tornava possível a criação
livre, não a tornava imperativa; tornava ca ducos os critérios aristocráticos, não
produzia em si próprio o valor, a exi gência da inovação sem fim. Porque é que
um outro estilo não se substituiu ao antigo? Porquê esta valorização do Novo,
esta explosão de movimentos? Como se sabe, a lógica do mercado pode muito
bem levar a um novo confor mismo (a produção cinematográfica, a música de
variedades, por exemplo):
continua por explicar porque é que os artistas, uma vez desligados do mece nato,
entraram em oposição com os critérios do público, aceitaram a miséria e a
incompreensão em nome da Arte. Para que chegasse a vez da paixão modernista
do Novo, era preciso que existissem novos valores que os artistas não
inventaram, mas tiveram «à sua disposição», em resultado da organiza ção do
todo colectivo, valores enraizados na preeminência concedida ao in divíduo em
relação à colectividade e cujo efeito maior será o de desvalorizar o instituído, o
princípio do modelo, seja ele qual for. Ideologia individualista que não se pode
reduzir à «concorrência pela legitimidade cultural»: não são nem a vontade de
originalidade, nem a obrigação de se distinguir que expli cam as grandes
rupturas modernistas, mesmo que seja verdade que, a partir de um certo
momento, a criação se volve em competição tendo em vista ape nas a diferença
estatutária. A ideologia individualista teve um efeito incom paravelmente mais
profundo do que a luta pelo reconhecimento artístico; foi ela a força histórica
que desvalorizou a tradição e as formas da heteronomia, que desqualificou o
princípio da imitação, que obrigou a uma prospecção in cessante, à invenção de
combinações em ruptura com a experiência imedia
Modernismo e cultura aberta
Não obstante a ausência de unidade e o sincretismo da arte moderna, destaca-se
nela uma tendência bastante forte, a que D. Bell chama o «eclip se da distância»
(pp. 117-127), processo inédito que recobre a nova estrutu ra, a nova finalidade e
a nova recepção das obras. Nas artes plásticas, o eclipse da distância corresponde
à destruição do espaço cenográfico euclidia no, profundo e homogêneo,
constituído por planos seleccionados, por um conteúdo e um continente frente a
um espectador imóvel, mantido a uma certa distância. «Doravante colocaremos o
espectador no centro do quadro», declaravam os Futuristas; nas obras modernas,
já não se contempla um ob jecto afastado, o observador está no próprio interior
do espaço e numerosos pintores aplicar-se-ão a elaborar espaços abertos, curvos
ou «poli-sen soriais» nos quais é mergulhado aquele que olha. Na literatura, a
mesma dissipação do ponto de vista único e estático: o Livro em Malarmé, o
Ulisses de Joyce, o romance dos anos vinte já não é dominado pelo olhar
omniscien te e exterior de um autor que possui por inteiro a alma das suas
persona gens, a continuidade da narrativa quebra-se, o fantasma e o real
entremistu ram-se, a «história» conta-se por si própria ao sabor das impressões
subjecti vas e aventurosas das personagens.
A consequência deste abalo da cena representativa, é o «eclipse da dis tância»
entre a obra e o espectador, ou seja o desaparecimento da contem plação estética
e da interpretação reflectida em proveito da «sensação, simul taneidade, carácter
imediato e impacto» (p. 119), que são os grandes valores do modernismo.
Impacto de uma música directa, violenta, impelindo ao mo vimento e à
contorsão das ancas (swing, rock). Impacto também da imagem gigante na
câmara escura do cinema. Imediato dos romances de V. Woolf, Proust, Joyce,
Faulkner, em busca da autenticidade das consciências liberta das das convenções
sociais e entregues a uma realidade ela própria instável, fragmentária e
contingente. Simultaneísmo dos Cubistas ou de Apollinaire. Culto da sensação e
da emoção directa nos Surrealistas que recusam uma poesia puramente formal e
encaram a beleza «exclusivamente com fins pas sionais» (Breton). As pesquisas
dos modernos tiveram como fim e efeito mer gulhar o espectador num universo
de sensações, de tensões e de desorienta ção; assim opera o eclipse da distância,
assim surge uma cultura à base de dramatização, de emoção e de estimulação
constantes, O que leva D. Bell a declarar: «A cultura modernista insiste na
modalidade anti-intelectual e nas faculdades anti-cognitivas que aspiram a
redescobrir as fontes instintuais da expressão» (p. 94).
Sem dúvida, podemos considerar o eclipse da distância como um dos al vos da
arte moderna, na condição de não ocultarmos assim o seu efeito estri tamente
inverso, o seu carácter hermético, « intelectualista», « intransigente», como dizia
Adorno. E excessivamente simplificador tomar apenas em consi deração as
intenções dos artistas; igualmente significativo é o acolhimento dessas obras
que, hoje como ontem, perturbam profundamente o processo de comunicação e
deixam o público pelo menos perplexo. Como falar de eclipse da distância
acerca de obras cujas construções insólitas, abstractas ou deslocadas, dissonantes
ou minimais, provocam o escândalo, confundem a evidência da comunicação,
desordenam a ordem reconhecível da continui dade espacio-temporal e levam
por isso o espectador menos a receber emo cionalmente a obra do que a
interrogá-la de modo crítico. O que Brecht quis realizar de um ponto de vista
político e didáctico no seu teatro épico, a pin tura, a literatura, a música haviamno já cumprido sem preocupação mate rialista e pedagógica. Neste ponto, é
preciso dar razão a Brecht; toda a arte moderna, devido às suas produções
experimentais, se baseia no efeito de dis tanciação e provoca espanto, suspeição
ou recusa, interrogação sobre as fi nalidades da obra e da própria arte: o que é
uma obra, o que é pintar, por quê escrever? «Existirá algo como as Letras?»,
pergunta-se Mallarmé. A arte moderna, longe de remeter para uma estética da
sensação bruta, é insepará vel de uma busca originária, de uma investigação que
incide sobre os crité rios, as funções, os constituintes últimos da criação artística,
o que tem por consequência uma abertura permanente das fronteiras da arte. E
por isso que manifestos, escritos, panfletos, prefácios de catálogos se tornarão
tão frequentes a partir do início do século XX; até então os artistas contentavamse com escrever romances e pintar quadros, doravante explicam ao pú blico a
significação do seu trabalho, tornam-se teóricos das suas práticas. A arte que tem
por objectivo a espontaneidade e o impacto imediato é parado xalmente
acompanhada de uma excrescência discursiva. Não se trata de uma contradição,
mas do aspecto correlativo estrito de uma arte individua lista designada de toda a
convenção estética e exigindo por isso o equivalente de uma grelha de leitura, de
um suplemento-modo de emprego.
Cultura modernista, cultura individualista, tal não autoriza a assimilar a obra a
uma confissão pessoal; o modernismo «recompõe a realidade ou reti ra-se para o
interior do eu cuja experiência pessoal se torna a fonte da inspi ração e das
preocupações estéticas» (p. 119). A obra moderna não procura rá, pelo contrário,
tudo aquilo que rompe com a experiência subjectiva e vo luntária, com a
percepção e as significações convencionais? Experimentação que repousa na
superação dos limites do eu, na exploração do que excede o intencional e o
deliberado, a arte moderna está obcecada pelo olhar e pelo espírito em estado
selvagem (escrita automática, dripping, cut up). Promo ção do insólito,
valorização do não-concertado e do irracional, o trabalho de mocrático da
igualdade prossegue a sua obra de integração e de reconheci mento universal,
mas já sob uma forma aberta, fluida, «solúvel», dizia Bre ton. A cultura
modernista, universalista no seu projecto, é ao mesmo tempo regida por um
processo de personalização, ou, por outras palavras, por uma tendência para
reduzir ou abolir a estereotipia do Eu, do real e da lógica, por uma tendência
para dissolver o mundo das antinomias, as do objectivo e do subjectivo, do real e
do imaginário, da vigília e do sonho, do belo e do feio, da razão e da loucura, e
tudo isto para emancipar o espírito, escapar às imposições e tabús, libertar a
imaginação, reapaixonar a existência e a criação. Longe de um retraimento no
interior do Eu, trata-se de um intento revolucionário dirigido contra as barreiras
e distinções tirânicas da «vida dos cães», uma vontade de personalizar
radicalmente o indivíduo, de fazer nas cer um homem novo, de lhe abrir a vida
verdadeira. O processo de persona lização cuja obra consiste em tornar fluida a
rigidez e em afirmar a idiosin crasia do indivíduo manifesta-se aqui na sua fase
inaugural revolucionária.
Mesmo o romance que surge no início deste século não pode ser interpre tado
como tradução literal da intimidade e ainda menos como reflexo bruto do
solipsismo psicológico. Michel Zéraffa mostrou-o: a novidade romanesca dos
anos vinte, «de dominante subjectiva», não é a confidência de um eu, é a
consequência da nova significação social-histórica do indivíduo cuja existência é
identificada com a fugacidade e a contradição das experiências imedia tas Os
romances do stream não foram possíveis senão em função desta concepção do
indivíduo que privilegia «o espasmódico, o obscuro, o frag mentário, o falhado»
(V. Woolf). Atenção, não foi nem uma observação psi cológica mais fina, nem a
esclerose das convenções burguesas, nem a desu manização do mundo industrial
e urbano que pôde conduzir a esta nova in terpretação da pessoa; sem dúvida,
tais factores desempenharam um papel de catalizadores, mas se a
espontaneidade, as impressões fortuitas, a auten ticidade se tornaram valores
artísticos e íntimos, foi muito mais em razão da ideologia do indivíduo
autónomo e não social. Como é que o homem reco nhecido como
ontologicamente livre poderia a prazo escapar a uma apreen são informal,
indecisa, fluida? Como poderia eliminar-se a significação ins tável e dispersa do
sujeito, essa manifestação existencial e estética da liber dade? Um indivíduo
livre a prazo é móvel, sem contornos definíveis; a sua existência está votada à
indeterminação e à contradição. Para mais, a igual dade sapa a hierarquia das
faculdades e dos acontecimentos, dignifica cada instante, legitima cada
impressão; o indivíduo pode surgir, por isso, sob um aspecto personalizado ou,
por outras palavras, fragmentário, descontínuo, incoerente. O romance em V.
Woolf, Joyce, Proust, Faulkner não apresenta já personagens retratadas,
etiquetadas dominadas pelo romancista; doravan te, são menos explicadas do
que entregues nas suas reacções espontâneas; os contornos rígidos do romanesco
dissolvem-se, o discursivo dá lugar ao asso ciativo, a descrição objectiva à
interpretação relativista e cambiante, a conti nuidade às rupturas brutais de
sequência. Liquefacção dos pontos de refe rência fixos e das oposições
exterioridade-interioridade, pontos de vista múl tiplos e por vezes indecidíveis
(Pirandello), espaços sem limite nem centro, a obra moderna, literária ou plástica
é aberta. O romance já não tem verda deiramente começo nem fim, a
personagem é «inacabada» na esteira de um interior de Matisse ou de um rosto
de Modigliani. A obra inacabada é a própria manifestação do processo
desestabilizador de personalização, que substitui a organização hierarquizada,
contínua, discursiva, das obras clássi cas, por construções instáveis de escala
variável, indeterminadas pela ausên cia de pontos de referência absolutos,
estranhas às coacções da cronologia.
Pela sua busca incansável de novos materiais, de novos arranjos de sig nos
sonoros ou visuais, o modernismo destrói todas as regras e convenções
estilísticas; o resultado são obras desestandardizadas, personalizadas, no sentido
em que a «comunicação» é cada vez mais independente de toda a es tética
codificada, seja esta musical, linguística ou óptica. O modernismo personaliza a
comunicação artística mais do que a destrói, confecciona «mensagens»
improváveis onde até o próprio código é singular. A expressão elabora-se sem
código pré-estabelecido, sem linguagem comum, de acordo com a lógica de um
tempo individualista e livre. Ao mesmo tempo, o humor ou a ironia tornam-se
valores essenciais de uma arte soberana que já nada tem a respeitar e que, a
partir daí, se abre a prazer do desvio lúdico. «O hu mor e o riso — não
necessariamente a derrisão depreciativa — são os meus utensílios predilectos»
(Duchamp); o deslastrar dos códigos acompanha-se de uma descrispação do
sentido, de uma personalização fantasista, último grau da liberdade artística e da
dessublimação das obras. A distensão humorísti ca, elemento decisivo da obra
aberta. Mesmo os artistas que se vão empe nhar em afirmar que o sentido é
inútil, que nada há a dizer para além desta vacuidade, continuarão a exprimir-se
na tonalidade ligeira do humor (Bec kett, lonesco). A arte moderna não esvazia a
função de comunicação, perso naliza-a dessocializando as obras, criando códigos
e mensagens por medida, pulverizando o público doravante disseminado,
instável e circunscrito, con fundindo no humor a divisão do sentido e do nãosentido, da criação e do jogo.
A própria recepção das obras se personaliza, torna-se uma experiência estética
«não amarrada» (Kandinsky), polivalente e fluida. Com a arte mo derna, já não
há espectador privilegiado, a obra plástica deixa de ter que ser contemplada de
um ponto de vista determinado, o observador dinamizou-se, é um ponto de
referência móvel. A percepção estática exige de quem olha um percurso, uma
deslocação imaginária ou real através da qual a obra é recomposta em função das
referências e associações próprias do observador. Indeterminada, modificável, a
obra moderna instaura assim uma primeira forma de participação sistemática, o
observador é «chamado de certo modo a colaborar na obra do criador», torna-se
o seu «co-criador» A arte moder na é aberta, requer a intervenção manipuladora
do utente, as ressonâncias mentais do leitor ou do espectador, a actividade
combinatória e aleatória do intérprete musical. Esta participação real ou
imaginária, doravante constitu 1 Liliane Brion-Guerry, «Uévolution des formes
structurales dans I'architecture des anées tiva da obra, ligar-se-á, como pensa
Umberto Eco, ao facto de a ambiguida de, a indeterminação, a equivocidade, se
terem transformado em valores, em novas finalidades estéticas? «E preciso
evitar que uma interpretação unívoca se imponha ao leitor», escreve U. Eco se
todas as obras de arte se prestam a uma multiplicidade de interpretações, só a
obra moderna seria construída intencionalmente tendo em vista signos não
unívocos, só ela buscaria expres samente o vago, o fluido, a sugestão, a
ambiguidade. Estará, de facto, aqui o essencial? Na realidade, a indeterminação
é mais um resultado do que uma finalidade deliberada, a ambiguidade moderna é
efeito dessas novas problemáticas artísticas que são a adopção de vários pontos
de vista, a emancipação do «peso inútil do objecto» (Malevitch), a valorização
do arbi trário, do fortuito e do automatismo, do humor e dos trocadilhos, a recusa
das separações clássicas, as da arte e da vida, da prosa e da poesia, do mau gosto
e do bom gosto, do jogo e da criação, do objecto habitual e da arte. O
modernismo liberta o espectador ou o leitor da «sugestão dirigida» das obras
anteriores porque essencialmente dissolve os pontos de referência da arte,
explora todas as possibilidades, faz ir pelos ares todas as convenções, sem
experimentar quaisquer limites a priori. A estética «não directives aparece com
esta explosão, com a desterritorialização moderna. A obra é aberta por que o
próprio modernismo é abertura, ou seja destruição dos enquadramen tos e
critérios anteriores, e conquista de espaços cada vez mais inauditos.
Corrosão das antinomias, liquefacção dos quadros do romanesco, comu nicação
de código flexível ou sem código, participação activa dos espectado res, o
modernismo obedece já a um processo de personalização num tempo em que
noutros aspectos a lógica social dominante continua a ser discipli nar. A arte
moderna tem de decisivo o facto de inaugurar na febre revolu cionária, na
charneira do nosso século, um tipo de cultura cuja lógica vence rá mais tarde,
quando o consumo, a educação, a distribuição, a informação deslizarem no
sentido de uma organização à base de participação, solicita ção, subjectivização,
comunicação. D. Bell viu o carácter antecipador da cultura modernista; não viu
que o essencial não estava no aparecimento dos conteúdos hedonistas, mas na
emergência de uma forma social inédita, o processo de personalização, que não
parará de conquistar novas esferas a ponto de se tornar a característica
fundamental das sociedades presentes e por vir, sociedades personalizadas,
móveis e flutuantes. A arte modernista:
primeiro dispositivo desestabilizado e personalizado, protótipo da Open So ciety,
com a diferença de que a vanguarda obedecia ao mesmo tempo a uma lógica hot
ou revolucionária, enquanto que o processo de personalização que anexará a vida
social e individual minará a paixão revolucionária e estabele cer-se-á no registo
cool programado. Nestas condições, é preciso rever o cre do caro aos anos
sessenta: a arte moderna não é o Outro do universo do consumo dirigido.
Revolucionária, a lógica profunda do modernismo não deixa por isso de ser
isomorfa da da sociedade pós-moderna, participativa, fluida, narcísica.
A personalização da esfera artística realizada pelos artistas de vanguarda não é
sem analogia com o trabalho desse outro movimento de vanguarda, teórico, que
é a psicanálise. Arte moderna e psicanálise: na aurora do sécu lo XX, a cultura
conhece o mesmo processo de personalização montando dispositivos abertos.
Com a regra do «dizer tudo» e das associações livres com o silêncio do analista e
a transferência, a relação clínica liberaliza-se e introduz-se na órbita flexível da
personalização. A análise torna-se «intermi nável» de acordo com a
representação moderna do indivíduo, valor último; o diagnóstico dirigista dá
lugar à atenção igualmente flutuante, já não há na da a excluir, a hierarquia das
significações desmorona-se, toda a representa ção faz sentido, incluindo e
sobretudo o sem sentido. Do mesmo modo que na arte moderna a essência e o
anedótico são identicamente tratados e todos os temas se tornam legítimos, assim
todas as escórias humanas se vêem re cicladas na dimensão antropológica, tudo
fala, o sentido e o não-sentido dei xam de ser antinómicos e hierarquizados de
acordo com o trabalho da igual dade. Peças constitutivas da cultura moderna, o
Inconsciente e o Recalca mento são vectores de personalização, de erosão das
divisões da nossa repre sentação antropológica: o sonho, o lapso, a neurose, o
acto falhado, o fan tasma já não relevam de esferas separadas, unificam-se de
certo modo sob a égide das «formações do inconsciente», que exigem uma
interpretação na «primeira pessoa», baseada nas associações próprias do sujeito.
Sem dúvida, a criança, o selvagem, a mulher, o perverso, o louco, o neurótico
conservam uma especificidade, mas os territórios perdem a sua heterogeneidade
sob o impulso de uma problemática que reconhece a omnipotência da
arqueologia do desejo, do recalcamento e do processo primário. A psicanálise
personali zou a representação do indivíduo desestabilizando as oposições rígidas
da psicologia ou da nosografia, reintegrando no circuito antropológico os
desperdícios da razão, largando os pontos de referência e os fundamentos da
verdade.
Vanguarda artística, vanguarda analítica; o mesmo processo de persona lização
surge num e noutro caso, é certo que acompanhado por um processo discordante,
hierárquico e duro, revelando os laços que ainda unem a cultu ra aberta ao
mundo disciplinar e autoritário circundante. Por um lado, os artistas de
vanguarda destacam-se como batalhões de élite aniquilando toda a tradição,
arrastando a história da arte de revolução em revolução; por ou tro, a psicanálise
reinscreve a sua prática num ritual estrito, assente na dis tância entre o analista e
o analisado. O que é mais, a psicanálise institucio naliza-se numa Associação
Internacional, com um mestre incontestado à ca beça, exigindo a fidelidade a
Freud e a obediência aos dogmas, eliminando os traidores e heréticos,
trabalhando na conquista de adeptos. As vanguar das artísticas e psicanalíticas
são formações de compromisso entre o mundo personalizado e o mundo
disciplinar, tudo se passa como se o advento de uma lógica aberta,
desembocando no indivíduo singular, só tivesse podido surgir enquadrada pela
lógica adversa, hierárquica e coerciva, que continua va a prevalecer no todo
social.
Consumo e hedonismo: rumo ó sociedade pósmoderna
A grande fase do modernismo, a que viu florescer os escândalos da van guarda,
terminou. Hoje, a vanguarda perdeu a sua virtude provocadora, já não há tensão
entre os artistas inovadores e o público, porque já ninguém defende a ordem e a
tradição. A massa cultural institucionalizou a revolta modernista, «no domínio
artístico, são raros os que se opõem a uma liberda de total, a experiências
ilimitadas, a uma sensibilidade desenfreada, ao pri mado do instinto sobre a
ordem, à imaginação que recusa as críticas da ra zão» (p. 63). Transformação do
público que se liga ao facto de o hedonismo, que era na viragem do século
apanágio de um número reduzido de artistas antiburgueses, se ter tornado,
apoiado no consumo de massa, o valor central da nossa cultura: «A mentalidade
liberal que hoje prevalece toma como ideal cultural o movimento modernista
cuja linha ideológica conduz à busca do impulso como modo de
comportamento» (p. 32). E então que se entra na cultura pós-moderna,
designando esta categoria para D. BelI o momento em que a vanguarda já não
suscita indignação, em que as pesquisas inovadoras são legítimas, em que o
prazer e a estimulação dos sentidos se tornam os valores dominantes da vida
corrente. Neste sentido, o pós-modernismo aparece como a democratização do
hedonismo, a consagração generalizada do Novo, o triunfo da «anti-moral e do
anti-institucionalismo» (p. 63), o fim do divór cio entre os valores da esfera
artística e os valores do quotidiano.
Mas pós-modernismo significa igualmente a instauração de uma cultura
extremista que leva «a lógica do modernismo até aos seus limites extremos» (p.
61). E no decurso dos anos sessenta que o pós-modernismo revela as suas
características maiores com o seu radicalismo cultural e político, o seu hedo
nismo exacerbado; revolta estudantil, contra-cultura, voga de inar e do LSD,
libertação sexual, mas também filmes e publicações porno-pop, ex asperação da
violência e da crueldade nos espectáculos: a cultura comum ac tualiza-se em
termos de libertação, de prazer e de sexo. Cultura de massa hedonista e
psicadélica que só aparentemente é revolucionária, «na realida de, era
simplesmente uma extensão do hedonismo dos anos cinquenta e uma
democratização da libertinagem que havia muito tempo praticavam certas
fracções da alta sociedade» (p. 84). Deste ponto de vista, os sixties assinalam
«um começo e um fim» (p. 64). Fim do modernismo: os anos sessenta são a
última manifestação da ofensiva lançada contra os valores puritanos e utili
taristas, o último movimento de revolta cultural, desta feita de massas. Mas
também, começo de uma cultura pós-moderna, quer dizer sem inovação nem
audácia verdadeiras, contentando-se com democratizar a lógica hedo nista, com
radicalizar a tendência para privilegiar «as inclinações mais bai xas em lugar das
mais nobres» (p. 130). Como se terá já tornado claro, é uma repulsa neo-puritana
que orienta a radioscopia do pós-modernismo.
A despeito deste limite evidente e desta fraqueza, D. BelI põe a tónica no
essencial ao reconhecer no hedonismo e no consumo que é o seu vector o
epicentro do modernismo e do pós-modernismo. Para caracterizar a socieda de e
o indivíduo moderno, não há referência mais decisiva do que o consu mo: «A
verdadeira revolução da sociedade moderna sobrevém no decurso dos anos vinte
quando a produção de massa e um consumo muito forte começa ram a
transformar a vida da classe média» (p. 84). Que resolução? Para D. BeIl, esta
indentifica-se com o hedonismo, com uma revolução dos valo res que põe
estruturalmente em crise a unidade da sociedade burguesa. Po demos perguntarnos, todavia, se a obra histórica do consumo não é de al gum modo minimizada
por uma problemática que a assimila a uma revolu ção ideológica, a conteúdos
culturais em ruptura. A revolução do consumo, que só instaurará plenamente o
seu regime a seguir à Segunda Guerra Mundia!, é, com efeito e na nossa opinião,
de um alcance mais profundo: reside essencialmente na realização definitiva da
meta secular das sociedades mo dernas, a saber o controlo total da sociedade e,
por outro lado, a libertação crescente da esfera privada, abandonada doravante
ao self-servive generali zado à velocidade da moda, à flutuação dos princípios,
papéis e estatutos. Absorvendo o indivíduo na corrida pelo nível de vida,
legitimando a sua bus ca da auto-realização, assediando-o de imagens, de
informações, de cultura, a sociedade do bem-estar gerou uma atomização e uma
dessocialização radi cal, sem medida comum com a accionada pela escolarização
obrigatória, o recrutamento militar, a urbanização e a industrialização do século
XIX. A era do consumo não só desqualificou a ética protestante, como liquidou
o valor e a existência de costumes e tradições, produziu uma cultura nacional e
efectivamente internacional com base na solicitação das necessidades e das
informações, arrancou o indivíduo ao local e, mais ainda, à estabiliade da vida
quotidiana, ao estatismo imemorial das relações, com os objectos, com os outros,
com o corpo e consigo próprio. É a revolução do quotidiano que ganha corpo,
após as revoluções económicas e políticas dos sécios XVIII e XIX, após a
revolução artística na charneira do século actual. O homem moderno encontra-se
doravante aberto às novidades, apto a mudar sem re sistência de modo de vida,
tornou-se cinético: «O consumo de massa signifi cava que se aceitava, no
importante domínio do modo de vida, a ideia de mudança social e de
transformação pessoal» (p. 76). Com o universo dos ob jectos, da publicidade,
dos media, a vida quotidiana e o indivíduo já não têm peso próprio, anexados
como se encontram pelo processo da moda e da obsolescência acelerada: a
realização definitiva do indivíduo coincide com a sua dessubstancialização, com
a emergência de átomos flutuantes esvaziados pela circulação dos modelos e por
isso continuamente recicláveis. Cai assim o último pano de muralha que
escapava ainda à penetração burocrática, à gestão científica e técnica dos
comportamentos, ao controlo dos poderes mo dernos que por toda a parte
abolem as formas tradicionais de sociabilidade e se aplicam a produzir-organizar
aquilo que deve ser a vida dos grupos e in divíduos, até nos seus desejos e
intimidades. Controlo flexível, não mecânico ou totalitário; o consumo é um
processo que funciona por sedução, os indiví duos adoptam sem dúvida os
objectos, as modas, as fórmulas dos tempos livres elaboradas pelas organizações
especializadas, mas a seu gosto, aceitan do isto e não aquilo, combinando
livremente os elementos programados. A administração generalizada do
quotidiano não deve fazer esquecer a sua face correlativa, a constituição de uma
esfera privada cada vez mais personaliza da e independente; a era do consumo
inscreve-se no vasto dispositivo moder no da emancipação do indivíduo, por um
lado, e da regulação total e mi croscópica do social, por outro A lógica acelerada
dos objectos e mensa gens leva ao seu ponto culminante a auto-determinação dos
homens na sua vida privada enquanto que, simultaneamente, a sociedade perde a
sua espes sura autónoma anterior, tornada cada vez mais objecto de uma
programação burocrática generalizada: à medida que o quotidiano é elaborado
integral mente por planeadores e engenheiros, o leque das escolhas dos
indivíduos aumenta — tal é o efeito paradoxal da época do consumo.
Consumo de massa: a despeito da sua incontestável verdade, a fórmula não é
isenta de ambiguidade. Sem dúvida, o acesso de todos ao automóvel ou à
televisão, ao blue-jean e à cocacola, as migrações sincronizadas do week-end ou
do mês de Agosto designam uma uniformização dos comporta mentos. Mas
esquecemo-nos demasiadas vezes de considerar a face comple mentar e inversa
do fenómeno: a acentuação das singularidades, a personali zação sem precedente
dos indivíduos. A oferta em abismo do consumo des multiplica as referências e
modelos, destrói as fórmulas imperativas, exacer ba o desejo do indivíduo de ser
plenamente ele próprio e de gozar da vida, transforma cada um num operador
permanente de selecção e de combinação livre, é um vector de diferenciação dos
seres. Diversificação extrema das condutas e gostos, amplificada ainda pela
«revolução sexual», pela dissolu ção das compartimentações sócioantropológicas do sexo e da idade. A era do consumo tende a reduzir as
diferenças desde sempre instituídas entre os sexos e as gerações e isso em
proveito de uma hiperdiferenciação dos com portamentos individuais hoje
libertados dos papéis e convenções rígidas. Aqui poderia surgir a objecção da
revolta das mulheres, da «crise de gera ções», da cultura rock e pop, do drama
das terceira e quarta idades, convi dando todos estes problemas a pensar o nosso
tempo sob o signo da exclu são, de um fosso cada vez mais acentuado entre os
diversos grupos. Os so ciólogos não têm, de resto, qualquer dificuldade,
apoiando-se nas estatísti cas, em demonstrarem empiricamente estas distâncias:
porém, dessa manei ra, perdemos de vista o mais interessante, o processo de
meeting p0 o apa 1 Do mesmo modo, a autonomia pessoal caminhou a par do
aumento do papel do Estado moderno, gamento progressivo das grandes
entidades e indentidades sociais em beneft cio não da homogeneidade dos seres,
mas de uma diversificação atomística incomparável. O masculino e o feminino
confundem-se, perdem as suas níti das características de outrora; a
homossexualidade de massa de hoje começa a já não ser considerada como uma
perversão, todas as sexualidades, ou per to disso, são admitidas e formam
combinações inéditas; o comportamento dos jovens e dos menos jovens tende a
aproximar-se e, em poucas décadas, os últimos reciclaram-se, com uma
velocidade surpreendente, no culto da ju ventude, na época psi, na educação
permissiva, no divórcio, no vestuário descontraído ,nos seios nus, nos jogos e
desportos, na ética hedonista. Sem dúvida, os múltiplos movimentos de
reivindicação animados pelos ideais de igualdade contribuíram para esta
desestabilização, mas foi muita mais a profusão dos objectos e a estimulação das
necessidades, os valores hedonis tas e permissivos juntamente com as técnicas
da contracepção, em suma o processo de personalização que permitiu esta
diluição dos pontos de referên cia sociais, a legitimação de todos os modos de
vida, a conquista da identi dade pessoal, o direito do indivíduo a ser
abolutamente ele próprio, o apetite da personalidade até ao seu desfecho
narcísico.
Numa sociedade em que mesmo o corpo, o equilíbrio pessoal, o tempo livre são
solicitados pela plétora dos modelos, o indivíduo é obrigado perma nentemente a
escolher, a tomar iniciativas, a informar-se, a criticar a quali dade dos produtos,
a auscultar-se e a testar-se, a manter-se jovem, a delibe rar acerca dos actos mais
simples: que carro comprar, que filme ir ver, para onde ir de férias, que livro ler,
que regime, que terapia seguir? O consumo obriga o indivíduo a tomar-se a seu
cargo, responsabiliza-o, é um sistema de participação inelutável, ao contrário do
que dizem os vitupérios lançados contra a sociedade do espectáculo e da
passividade. Deste ponto de vista, a oposição estabelecida por Toifler entre
consumidor de massa passivo e «pro sumidor» criativo e independente ignora
em excesso função histórica do consumo. Seja qual for a sua estandardização, a
era do consumo revelou-se e continua a revelar-se um agente de personalização,
quer dizer de responsa bilização dos indivíduos, coagindos-os a escolher e
transformar os elementos do seu modo de vida. É preciso não sobrevalorizarmos
o alcance dos fenó menos actuais de tomada directa a cargo pelos interessados
dos seus pró prios assuntos: a responsabilização e a participação limitam-se a
prosseguir na sua obra, mas segundo um dispositivo ainda mais personalizado. E
pelo menos imprudente afirmar que, nestas condições, as fronteiras entre
produção e consumo se apagam o do-it-yourself, as vendas em kit, os grupos de
auto-assistência, o selj-care não indicam o «fim iminente» da expansão do
mercado, da especialização e dos grandes sistemas de distribuição, não fa zem
mais do que personalizar até ao extremo a lógica do consumo. Dova rante o
bricolage, a saúde, os conselhos são eles próprios consumidos, mas na órbita do
self-service. Não devemos ter ilusões, a lógica do mercado, a es pecialização e a
burocratização das tarefas não deterão a sua progressão, ainda que paralelamente
se desenvolvam algumas ilhotas de intervenção criadora, de auxílio mútuo e de
reciprocidade. Por isso, embora num registo diferente, também não podemos
seguir D. BelI quando este vê no consumo o agente por excelência de um neolibertinismo desenfreado e impulsivo. A so ciedade de consumo não se pode
reduzir à estimulação das necessidades e ao hedonismo; é inseparável da
profusão das informações, da cultura mass mediática, da solicitude
comunicacional. Consomem-se em altas doses e por flashes, actualidades,
emissões médicas, históricas ou tecnológicas, música clássica ou pop, conselhos
turísticos, culinários ou psi, confissões privadas, filmes: a hipertrofia, a
aceleração das mensagens, da cultura, da comunica ção, são ao mesmo título que
a abundância de mercadorias, parte integrante da sociedade de consumo. O
hedonismo, por um lado, o consumo, por ou tro. A sociedade de consumo é
fundamentalmente um sistema de abertura e de despertar, um meio de instrução
flexível, «digest» sem dúvida, mas per manente. Gozar a vida, mas também estar
ao corrente, estar «ligado», cui dar da siiúde, como atestam a obsessão crescente
com os problemas de saú de, a inflação da procura médica, a multiplicação das
obras de divulgação e das revistas informativas, o sucesso dos festivais, as
multidões de turistas de máquina fotográfica na mão desfilando pelos museus e
ruínas históricas. Se o consumo esvazia a cultura puritana e autoritária, não o faz
em proveito de uma cultura irracional ou impulsiva; mais profundamente,
instala-se um no vo tipo de socialização «racional» do sujeito, não por certo
através dos con teúdos escolhidos, que continuam largamente submetidos às
flutuações im previsíveis das personalidades, mas através o imperativo sedutor
que quer que o indivíduo sè informe, se administre a si próprio, preveja, se
recicle, se subordine à regra da entrevista e do teste. A era do consumo
dessocializa os indivíduos e correlativamente socializa-os pela lógica das
necessidades e da informação, socialização sem conteúdo pesado, socialização
na mobilidade.
O processo de personalização faz aparecer um indivíduo informado e respon
sabilizado, dispatcher constante de si próprio.
Responsabilização de um género novo, narcísica como lhe poderemos chamar,
na medida em que a acompanham, por um lado, uma desmotiva ção ante a coisa
pública e, por outro lado, uma descrispação e desestabiliza ção da personalidade.
Inúmeros sinais o indicam: descontracção nas relações interindividuais, culto do
natural, uniões livres, aumento dos divórcios, ace leração nas transformações dos
gostos, valores e aspirações, ética tolerante e permissiva, mas também explosão
dos síndromas psicopatológicos, do stress, da depressão: um indivíduo em cada
quatro conhecerá ao longo da sua vida uma depressão nervosa profunda, um
alemão em cada cinco refugia-se em perturbações psi, um em cada quatro sofre
de perturbações do sono. Sendo assim, nada mais falso do que reconhecer nestes
fenómenos a presença de um «homem unidimensional», ainda que sob a etiqueta
de uma'privatização flutuante, O neo-narcisismo define-se pela desunificação,
pela fragmentação da personalidade, a sua lei é a coexistência pacífica dos
contrários. A medi da que os objectos e mensagens, próteses psi e desportivas
invadem a exis tência, o indivíduo desagrega-se num patchwork heteróclito,
numa combina tória polimorfa, que é a própria imagem do pós-modernismo.
Coo! nas suas maneiras de ser e de fazer, libertado da culpabilidade moral, o
indivíduo narcísico é, no entanto, propenso à angústia e à ansiedade; gestor da
sua saúde, constantemente preocupado com ela, e arriscando a vida nas autoestradas e nas montanhas; formado e informado num universo científico, mas ao
mesmo tempo permeável, ainda que epidermicamente, a todos os gadgets do
sentido, ao esoterismo, à parapsicologia, aos médiuns e aos gu rus; descontraído
em relação ao saber e às ideologias e simultaneamente per feccionista nas
actividades desportivas ou de bricolage; alérgico ao esforço, às normas estritas e
coercivas, procura-as por conta própria nos regimes de emagrecimento, em
certas práticas desportivas, no trekking, nos refúgios místico-religiosos; discreto
perante a morte, controlado nas sua relações pú blicas e gritando, vomitando,
chorando, invectivando nas novas terapias psi; flutuante, «im, produzido pelos
modelos internacionais da moda e reinves tindo nas línguas menores periféricas,
no to ou em certas tradições reli giosas e populares. E isto a personalização
narcísica: a fragmentação díspar do eu, a emergência de um indivíduo que
obedece a múltiplas lógicas na es teira das justaposições compartimentadas dos
artistas pop ou das combina ções chás e aleatórias de Adami.
O consumo é uma estrutura aberta e dinâmica: desprende o indivídu dos seus
laços de dependência social e acelera os movimentos de assimilação e de
rejeição, produz indivíduos flutuantes e cinéticos, universaliza os modos de vida,
ao mesmo tempo que permite um máximo de singularização dos ho mens.
Modernismo do consumo regido pelo processo de personalização, pa ralelo neste
ponto à vanguarda artística ou à psicanálise e opondo-se ao mes mo tempo ao
modernismo prevalecente noutras esferas. Porque é assim o modernismo, um
momento histórico complexo ordenando-se em torno de duas lógicas
antinómicas, uma rígida, uniforme, coerciva, a outra flexível, opcional, sedutora.
Lógica disciplinar e hierárquica, por um lado: a ordem da produção funciona
segundo uma estrutura burocrática estrita, apoiada nos princípios da organização
científica do trabalho (os Principies of scienti fic management de Taylor datam
de 1911); a esfera do político tem um ideal de centralização e de unificação
nacional, a Revolução e a luta de classes são as suas traves mestras; os valores
consagram a poupança, o trabalho, o esforço; a educação é autoritária e
normalizadora; o indivíduo é, ele próprio, voluntário, «intro-determinado». Mas
a partir do fim do século XIX e da era do consumo instauraram-se sistemas
regidos por um outro processo, flexível, plural, personalizado. Neste sentido,
pode dizer-se que a fase moderna das nossas sociedades se caracterizou pela
coexistência de duas lógicas adversas com a evidente predominância até aos
anos cinquenta e sessenta da ordem disciplinar e autoritária. Chamamos, em
contrapartida, sociedade pós- moderna à inversão desta organização
predominante, no momento em que as sociedades ocidentais tendem cada vez
mais a rejeitar as estruturas uni formes e a generalizar os sistemas personalizados
à base de solicitação, de opção, de comunicação, de informação, de
descentralização, de participa ção. A idade pós-moderna, deste ponto de vista,
não é de maneira nenhuma a idade paroxística libidinal e pulsional do
modernismo; pensaríamos antes o contrário: o tempo pós-moderno é a fase coo!
e desencantada do modernis mo, a tendência para a humanização por medida da
sociedade, o desenvolvi mento de estruturas fluídas moduladas em função do
indivíduo e dos seus desejos, a neutralização dos conflitos de classe, a dissipação
do imaginário revolucionário, a apatia crescente, a dessuLstancialização
narcísica, o rein vestimento coo! do passado. O pós-modernismo é o processo e
o momento histórico em que se opera esta viragem de tendência em proveito do
processo de personalização, o qual não pára de anexar novas esferas, como já
hoje se verifica em matéria de educação, de ensino, de tempos livres, de
desporto, moda, relações humanas e sexuais, informação, horários, trabalho,
sendo es te último sector o de longe mais refractário ao processo em curso. Foi,
aliás, uma inversão de tendência paralela que levou D. Beli a falar de uma socie
dade pós-industrial, quer dizer de uma sociedade já não assente na produ ção em
série de mercadorias industriais e na classe operária, mas no prima do do saber
teórico no desenvolvimento técnico e económico, no sector dos serviços
(informação, saúde, ensino, investigação, actividades culturais, tem pos livres,
etc.), na classe especializada dos «profissionais e técnicos». Socie dade póslaboral, sociedade pós-moderna: estes dois esquemas não se so brepõem, embora
designem movimentos de transformação histórica conco mitantes; o primeiro
insiste na nova estrutura sócio-profissional e no novo rosto da economia cujo
núcleo é o saber; o segundo, tal como aqui o empre gamos, não se limita, como
em D. BelI, ao campo cultural, mas insiste, pelo contrário, nos efeitos e na
extensão de um novo modo de socialização, o pro cesso de personalização que
percorre doravante, mais ou menos iptensamen te, todos os sectores das nossas
sociedades.
Longe de estar numa relação de descontinuidade com o modernismo, a era pósmoderna define-se pelo prolongamento e a generalização de uma das suas
tendências constitutivas, o processo de personalização,e correlativamen te pela
redução progressiva da sua outra tendência, o processo disciplinar. E por isso
que não podemos aderir às problemáticas recentes que, em nome da
indeterminação e da simulação ou em nome da deslegitimação das metanarrativas se esforçam por pensar o presente como um momento absoluta mente
inédito na história. Se nos ativermos ao tempo curto, ocultando o campo
histórico, sobrestimamos o corte pós-moderno, perdemos de vista que este
prossegue ainda, mesmo quando por outros meios, a obra secular das sociedades
modernas democráticas-individualistas. Do mesmo modo que o modernismo
artístico se revelou como uma manifestação da igualdade e da liberdade, também
a sociedade pós-moderna, erigindo o processo de perso nalização em modalidade
dominante, continua a realizar as significações centrais do mundo moderno. O
universo dos objectos, da informação e do hedonismo completa «a igualdade das
condições», eleva o nível de vida e cul tiva as massas, ainda que sob a égide do
mínimo denominador comum, emancipa as mulheres e as minorias sexuais,
unifica as idades por meio do imperativo de juventude, banaliza a originalidade,
informa todos os indiví duos, põe no mesmo plano o bestseller e o Prémio
Nobel, trata identica menté o fait divers, as proezas tecnológicas e as curvas
econômicas: as dis semelhanças hierárquicas não páram de recuar em benefício
do reino indife rente da igualdade. Deste ponto de vista, a comutação dos signos,
a ordem dos simulacros não é senão um último estádio no devir das sociedades
de mocráticas. O mesmo se passa com o saber pós-moderno e com as suas dis
seminações de regras: «o reconhecimento da heteromorfia dos jogos de lin
guagem» interina na ordem epistemológica a lógica da personalização e tra balha
no sentido de democratizar-desestandardizar a verdade, igualizar os discursos
liquidando o valor do consenso universal, afirmando como princí pio a regra
temporária dos «golpes». O estilhaçar das grandes narrativas:
instrumento da igualdade e da emancipação do indivíduo actualmente liber to do
terror dos mega-sistemas, da uniformidade da Verdade e votado assim à
instabilidade experimental dos «contratos temporários», em estreita con gruência
com a desestabilização e a particularização narcísica. A denúncia do
imperialismo da Verdade é uma figura exemplar do pós-modernismo: o processo
de personalização dissolve uma última rigidez e cume, trabalha pa ra a produção
de uma tolerância cool através da afirmação do direito às di ferenças, aos
particularismos, às multiplicidades na esfera do saber, deslas trado este de toda a
autoridade suprema, de todo o referencial de realidade. Anexação da ordem
linear-dirigista da Verdade na da flutuação das hipóte ses e das constelações das
linguagens miniaturizadas. E o mesmo processo flexível que liberaliza os
costumes, desmultiplica os grupos de reivindicação, desestandardiza a moda e os
comportamentos, organiza p narcisismo e li quefaz a Verdade: a operação saber
pós-moderno, heterogeneidade e disper são das linguagens, teorias flutuantes,
não passa de uma manifestação do deslocamento geral, fluido e plural, que nos
faz sair da idade disciplinar e que, assim, aprofunda a lógica do homo clausus
ocidental. Só no quadro desta ampla continuidade democrática e individualista é
que se delineia a originalidade do momento pós-moderno, a saber a
predominância do indivi dual sobre o universal, do psicológico sobre o
ideológico, da comunicação sobre a politização, da diversidade sobre a
homogeneidade, do permissivo sobre o coercivo.
Tocqueville dizia que os povos democráticos mostravam «um amor mais ardente
e mais duradouro pela igualdade do que pela liberdade» temos o direito de
perguntar se o processo de personalização não modificou em pro fundidade esta
prioridade. Sem dúvida, a exigência de igualdade continua a afirmar-se, mas há
uma exigência mais significativa, mais imperativa ainda:
é a da liberdade individual. O processo de personalização engendrou uma
explosão de reivindicações de liberdade que se manifesta em todos os domí nios,
na vida sexual e familiar (sexo à lista, educação liberal, modo de vida childfree), no vestuário, na dança, nas actividades corporais e artísticas (desporto
livre, improvisação, expressão livre), na comunicação e no ensino (rádios livres,
trabalho independente), na paixão pelos tempos livres e pela sua extensão, nas
novas terapias que têm por fim a libertação do eu. Mesmo se as reivindicações
dos grupos continuam a ser formuladas em termos de ideal de justiça, de
igualdade e de reconhecimento social, é sobretudo em ra zão do desejo de viver
mais livremente que descobrem uma autêntica audiên cia de massa. Hoje
toleram-se mais facilmente as desigualdades sociais do que os interditos
relativos à esfera privada; consente-se mais ou menos no poder da tecnocracia,
legitimam-se as elites do poder e do saber, mas recu sa-se a regulamentação do
desejo e dos costumes. A inversão de tendência em benefício do processo de
personalização levou ao seu ponto culminante o desejo de libertação pessoal,
produziu uma inversão de prioridade nas aspi rações; o ideal de autonomia
individual é o grande vencedor da condição pós-moderna.
D. Bel! tem razão ao sublinhar o lugar central que o hedonismo ocupa na cultura
moderna, mas não vê as transformações que esse valor sofreu a partir dos anos
sessenta. Depois de uma fase triunfante em que, com efeito, o orgasmo enchia as
primeiras páginas e a corrida da aquisição de objectos era identificada com o
sucesso, entrámos numa fase desencantada, pós-materialista em que a qualidade
de vida leva a melhor sobre as marcas quantitativas; o próprio hedonismo se
personaliza e converte em narcisismo psi. Os anos sessenta são, quanto a este
ponto, anos charneira. Por um la do, os sixties completam efectivamente, como
diz D. Bell, a lógica hedonis ta: oposição violenta ao puritanismo, à autoridade,
ao trabalho alienado, cultura de massa erótico-pornográfica, irrupção
psicadélica. Mas, por outro lado, este decénio adianta os ideais coo!, esses
mesmos que acabarão por se impôr prioritariamente após os anos de contestação:
crítica da bulimia con sumista, crítica da vida urbana estandardizada, crítica dos
valores agressivos e viris, psicologização do militantismo, integração da autoanálise e do eu na crítica social, vontade de «mudar a vida», transformando
directamente as re lações do sujeito consigo próprio e com os outros. A fruição
ilimitada, o de boche, o desregramento dos sentidos não são nem a imagem nem
o futuro provável das nossas sociedades: o entusiasmo psicadélico extinguiu-se e
o «desejo» passou de moda, o culto do desenvolvimento espiritual, psi e des
portivo, subsituíu a contra-cultura, o feeling superou o standing, a «vida
simples», convivial e ecológica a melhor sobre a paixão do ter; a medi cina
alternativa, baseada na meditação, nas ervas, na vigilância do próprio corpo e
dos seus «biorritmos», revelam a distância que nos separa do hedo nismo hot, da
primeira fase. O pós-modernismo tem tendência a afirmar o equilíbrio, a escala
humana, o regresso a si próprio, ainda que seja verdade que coexiste com
movimentos duros e extremistas (droga, terrorismo, por nografia, punk). O pósmodernismo é sincrético, simultaneamente coo! e hard, convivial e vazio, psi e
maximalista: aqui, uma vez mais, é a coabita ção dos contrários que caracteriza o
nosso tempo, e não a pretensa cultura desenfreada hipdrug-rock. A idade heróica
do hedonismo passou; nem as páginas de oferta e procura erótica multi-serviço,
nem a importância do nú mero dos leitores das revistas sexológicas, nem a
publicidade aberta de que gozam a maior parte das «perversões» bastam para
acreditar a ideia deum crescimento exponencial do hedonismo. Signos menos
visíveis testemunham já de uma transformação notável do valor-gozo: nos EUA,
há grupos de ho mens que reivindicam o direito de serem impotentes, a
sexologia tenuemente ornamentada com os atributos do mérito científico vê-se
acusada de ser di rectiva, ou até terrorista com o seu imperativo do gozo;
mulheres e homens redescobrem a virtude do silêncio e da solidão, da paz
interior e da ascese nas comunidades monásticas, ashrams ou comunidades de
lamas. Acontece com a fruição o mesmo que com os outros valores: não escapa
ao processo da indiferença. O gozo esvazia-se do seu conteúdo subversivo, os
seus con tornos desgastam-se, a sua preeminência banaliza-se; o gozo entra no
ciclo da humanização na razão inversa da linguagem técnica hipertrofiada de que
se reveste nas revistas da especialidade: doravante, há tanta reivindicação de
sexo como de relação; procura erótica e procura comunicacional, perversão e
meditação interpenetram-se ou coexistem sem choque, sem contradição.
Disseminação dos modos de vida, o gozo já não passa de um valor relativo,
equivalente à comunicação, à paz interior, à saúde ou à meditação; o pósmodernismo varreu toda a carga subversiva dos valores modernistas, é o
ecletismo da cultura que reina.
Nada mais estranho neste tempo planetário do que aquilo que se designa como
«regresso do sagrado» sucesso das sabedoria e religiões orientais (zen, taoísmo,
budismo), dos esoterismos e tradições europeias (cabala, pita gorismo, teosofia,
alquimia), estudo intensivo do Talmude e da Torah nos Yéchivot, multiplicação
das seitas; incontestavelmente, trata-se de um fenó meno muito pós-moderno em
ruptura declarada com as Luzes, com o culto da razão e do progresso. Crise do
modernismo tomado de dúvidas sobre si próprio, incapaz de resolver os
problemas fundamentais da existência, inca paz de respeitar a diversidade das
culturas e de trazer a todos a paz e o bem-estar? Ressurreição do recalcado
ocidental no momento em que este já não tem qualquer sentido a oferecer-nos?
Resistência dos indivíduos e gru pos à uniformização planetária? Alternativa ao
terror da mobilidade, revalo rizando as crenças do passado? Reconheçamos que
este tipo de análises não nos convence. Convém, em primeiro lugar, repor no seu
justo lugar a atrac ção de que actualmente gozam as múltiplas formas de
sacralidade. O pro cesso de personalização tem por efeito uma deserção sem
precedentes da es fera sagrada, o individualismo contemporâneo não pára de
minar os funda mentos do divino: em França, em 1967, 81 por cento dos jovens
de quinze a trinta anos de idade declaravam crer em Deus; em 1977, 62 por
cento, e em 1979, apenas 45,5 por cento dos estudantes declaravam acreditar em
Deus. Mais ainda, a própria religião é arrastada pelo processo de personalização:
é-se crente mas à lista, conserva-se este dogma e elimina-se aquele, mistu ram-se
os Evangelhos com o Corão, o zen ou o budismo, a espiritualidade entrou na
época caleidoscópica do super-mercado e do self-service. O turn over, a
desestabilização investiu o sagrado ao mesmo titulo que o trabalho ou a moda:
durante algum tempo cristão, alguns meses budista, alguns anos discípulo de
Krishna ou de Maharaj Ji. A renovação espiritual não resulta de uma ausência
trágica de sentido, não é uma resistência à dominação tec nocrática, mas,
causada pelo individualismo pós-moderno, reproduz a sua
lógica flutuante. A atracção do religioso é inseparável da dessusbstancializa ção
narcísica, do indivíduo flexível em busca de si próprio, sem referencjais nem
certezas — nem sequer a do poder da ciência — não é de ordem dife rente da
atracção efémera, mas intensa, por esta ou aquela técnica relacio nal, dietética ou
desportiva. Necessidade de o indivíduo se redescobrir a si próprio ou de se
aniquilar enquanto sujeito, exaltação das relações interpes soais ou da meditação
pessoal, extrema tolerância e fragilidade podendo consentir nos imperativos mais
drásticos, o neo-misticismo participa da gad getização personalizada do sentido e
da verdade, do narcisismo psi, seja qual for a referência ao Absoluto que lhe
subjaz. Longe de ser antinómica em relação à lógica maior do nosso tempo, o
ressurgimento das espirituali dades e esoterismos de toda a espécie não faz mais
do que cumpri-la, au mentando o leque das escolhas e possibilidades da vida
privada, permitindo um cocktail individualista do sentido de acordo com o
processo de personalização.
Exaustão da vanguarda
Manifestação artística do pós-modernismo: a vanguarda está esgotada, atola-se
na repetição e substitui a invenção pela exasperação pura e simples. Os anos
sessenta dão o pontapé de saída do pós-modernismo: a despeito da sua agitação,
«não realizaram a mínima revolução no domínio da forma es tética» (p. 132),
exceptuadas algumas inovações no romance. No resto, a ar te macaqueia as
inovações do passado, com a violência, a crueldade e o ruí do por acrescento.
Para D. BelI, a arte perde então toda a medida, nega de finitivamente as
fronteiras entre a arte e a vida, recusa a distância entre o espectador e o
acontecimento, põe-se no encalço do efeito imediato (acções, happenings, Living
theatre). Os anos sessenta querem «reencontrar as raízes primitivas do impulso»
(p. 150); uma sensibilidade irracionalista dá-se livre curso exigindo sempre mais
sensações, choque e emoção na esteira da Body art e dos espectáculos rituais de
H. Nietzsch. Os artistas recusam a discipli na do ofício, têm por ideal o
«natural», a espontaneidade e entregam-se a uma improvisação acelerada
(Ginsberg, Kerouac). A literatura toma como tema privilegiado a loucura, a
imundície, a degradação moral e sexual (Bur roughs, Guyotat, Selby, Mailer):
«A nova sensibilidade é uma desforra dos sentidos sobre o espíritol (p. 139),
todas as imposições são abandonadas com vista a uma liberdade orgíaca e
obscena, com vista a uma glorificação instintual da personalidade. O pósmodernismo não passa de um outro no me para designar a decadência moral e
estética do nosso tempo. Ideia que não é, aliás, nada original, uma vez que H.
Read escrevia já no início dos anos cinquenta: «A obra dos jovens não passa do
reflexo atrasado de explo sões que datam de há trinta ou quarenta anos».
Dizer que a vanguarda é estéril desde 1930 é certamente um juízo exces sivo,
inaceitável, a que seria fácil contrapor numerosos criadores e movimen tos
cheios de originalidade e riqueza. Deste modo, e seja qual for o exagero da
afirmação, esta levanta, muito particularmente nos nossos dias, um ver dadeiro
problema sociológico e estético. No conjunto, com efeito, as ruptu ras tornam-se
cada vez mais raras, a impressão de déj vu prevalece sobre a de novidade, as
transformações são monótonas, já não temos a impressão de viver num período
revolucionário. Esta queda tendencial da taxa de criativi dade das vanguardas
coincide, por outro lado, com a própria dificuldade da afirmação de se ser
vanguarda: «A moda dos 'ismos' já passou» (p. 113), as manifestações
estrondosas do início do século, as grandes provocações, dei xaram de ser
apreciadas hoje em dia. Perda de fôlego da vanguarda, tal não significa que a
arte esteja morta, que os artistas já não tenham imaginação, mas que as obras
mais iPiteressantes se deslocaram, já não procuram inven tar linguagens de
ruptura, se tornam mais «subjectivas», bricoleuses ou ob sessivas, abandonando
os cumes da pura busca do Novo. Na esteira dos dis cursos revolucionários duros
ou do terrorismo político, a vanguarda gira no vazio, as experimentações
continuam, mas com resultados pobres, idênticos ou inessenciais, as fronteiras
transgredidas são-no de maneira infinitesimal, a arte conhece a sua fase
depressiva. A despeito de algumas proclamações vãs, a revolução permanente já
não descobre na arte o seu modelo. Basta vermos certos filmes «experimentais»
para disso nos convercermos: sem dúvi da, sai-se do circuito comercial e da
narração-representação, mas para cair na descontinuidade pela descontinuidade,
no extremismo dos planos- sequência em que tudo fica imóvel, na
experimentação não como pesquisa mas como procedimento. J.-M. Straub filma
a perder de vista a mesma es trada monótona, A. Warhol filmara já um homem a
dormir durante seis ho ras e meia e o Empire State Building durante oito horas,
sendo a duração do filme a do tempo real. «Ready-made cinematográfico»,
houve quem dis sesse; mas a diferença está em que o gesto de Duchamp tinha
uma parada maior, subvertendo a noção de obra, de ofício e de emoção artística.
Reco meçar sessenta anos mais tarde, com a duração a mais e o humor a menos,
a operação do urinol, é um sinal da desorientação, da dessubstancialização da
vanguarda. De facto, há mais experimentação, surpresa, audácia no walkman,
nos jogos de vídeo, no surf. nos filmes comerciais para o grande público do que
em todos os filmes de vanguarda e todas as desconstruções «telquelianas» da
narrativa e da linguagem. A situação pós-moderna: a arte já não é um vector
revolucionário, perde o seu estatuto pioneiro e desbrava dor, esgota-se num até
ao fim estereotipado e os seus heróis, por toda a par te, estão fatigados.
É, aliás, neste momento que começa a ter êxito do outro lado do Atlânti co e,
depois, cada vez mais também na Europa, a noção propriamente dita de «pósmodernismo», que devemos enteiider, por uni lado, Cofio crítica à obsessão da
inovação e à revolução a todo o custo, e, por outro lado, como reabilitação do
recalcado do modernismo: a tradição, o local, a ornamenta ção. Primeiro para os
arquitectos, e hoje para os pintores, trata-se de atacar o conceito de vanguarda no
que ele contém de elitismo, de terrorismo, de austeridade: pós-modernismo, ou
também pós-vanguardismo. Enquanto que o modernismo era exclusivo, «o pósmodernismo é inclusivo, chegando ao ponto de integrar o purismo do seu
adversário quando tal parece justificar- se» Pós-modernismo no sentido em que
já não se trata de criar um novo estilo, mas de integrar todos os estilos, até os
mais modernos: vira-se a pági na, a tradição torna-se fonte viva de inspiração ao
mesmo título que a novi dade, toda a arte moderna surge ela própria como uma
tradição entre ou tras. Daqui decorre que os valores até há pouco banidos são
agora postos na primeira linha, contrariando a radicalidade modernista: tornamse proemi nentes o ecletismo, a heterogeneidade dos estilos no interior de uma
mesma obra, o decorativo, o metafórico, o lúdico, o vernáculo, a memória
histórica. O pós-modernismo insurge-se contra a unidimensionalidade da arte
moderna e propugna obras fantasistas, despreocupadas, híbridas: «Os edifícios
mais representativos do pós-modernismo dão, com efeito, testemunho de uma
dualidade muito nítida, de uma deliberada esquizofrenia» Revivalismo pósmoderno inseparável, por certo, do apetite generalizado pelo rétro, mas cuja
teorização explícita revela que a sua significação não se esgota numa simples
nostalgia do passado.
O que está em jogo é outra coisa: o pós-modernismo não tem como objectivo
nem a destruição das formas modernas nem o ressurgimento do pas sado, mas a
coexistência pacífica dos estilos, a descrispação da oposição tra diçãomodernidade, o afrouxar da antinomia local-internacional, a desesta bilização
das tomadas de partido rígidas pela figuração ou pela abstracção, em suma a
descontracção do espaço artístico paralelamente a uma sociedade em que as
ideologias duras já não vingam, em que as instituições se alimen tam de opção e
de participação, em que os papéis e as identidades se con fundem, em que o
indivíduo é flutuante e tolerante. E demasiado redutor re conhecer nisto a eterna
estratégia do capital ávido de comercialização rápida ou mesmo uma figura do
«nih passivo», de acordo com o que escreveu um crítico contemporâneo. O pósmodernismo é o registo e a manifestação do processo de personalização que,
incompatível com todas as formas de ex clusão e de dirigismo, substitui pela
livre escolha a autoridade das imposi ções pré-fixadas, pelo cocktall fantasista a
rigidez da «linha justa». O inte resse do pós-modernismo reside no facto de ele
revelar que a arte moderna, a primeira, apesar de tudo, a ter adoptado a ordem
das lógicas abertas, con tinuava tributária de uma &a dirigista dados os seus
valores vanguardistas exclusivamente orientados para o futuro. A arte moderna
era uma formação de compromisso, um ser «contraditório» feito de «terrorismo»
futurista e de personalização flexível. O pós-modernismo tem por ambição
resolver este an tagonismo desprendendo a arte do seu enquadramento
disciplinar-vanguar dista, instituindo obras regidas unicamente pelo processo de
personalização. Ao proceder assim, o pós-modernismo obedece ao mesmo
destino que as nossas sociedades abertas, pós-revolucionárias, que têm como
objectivo au mentar sem fim as possibilidades individuais de escolha e de
combinações. Substituindo a exclusão pela inclusão, legitimando todos os estilos
de todas s épocas, a liberdade criadora já não é intimada a vergar-se ao estilo
inter nacional, vê as suas fontes de inspiração, os seus jogos de combinações,
crescerem indefinidamente: «O ecletismo é a tendência natural de uma cul tura
livre nas suas escolhas No início do século, a arte era revolucionária e a
sociedade conservadora; esta situação inverteu-se à medida que se verifica va a
anquilose da vanguarda e das transformações da sociedade engendradas pelo
processo de personalização. Nos nossos dias, a sociedade, os costumes, o próprio
indivíduo movem-se mais depressa, mais profundamente do que a vanguarda: o
pós-modernismo é a tentativa de reinsuflar dinamismo na arte, flexibilizando e
desmultiplicando as suas regras de funcionamento à imagem de uma sociedade
já maleável, opcional e que reduz as relegações.
Advogando o reinvestimento do património cultural e um sincretismo ad hoc o
pós-modernismo apresenta-se sob o signo de uma nítida transforma ção de
valores e de perspectiva, de uma descontinuidade na lógica modernis ta. Esta
ruptura, no entanto, é sob muitos aspectos mais aparente do que real. Por um
lado, o projecto pós-moderno é obrigado a ir buscar ao moder nismo a sua
própria essência, a saber a ruptura: romper com o modernismo não é possível a
não ser pela afirmação de um Novo suplementar, aqui a reintegração do passado,
o que está profundamente de acordo com a lógica modernista. Não devemos
iludir-nos, o culto do Novo não foi nem será aboli do, quando muito torna-se
agora cool e descrispado. Por outro lado, se o efeito do modernismo foi de facto
incluir continuamente novos temas, mate riais e organizações, dessublimando ou
democratizando assim a esfera estéti ca, o pós-modernismo limita-se a dar mais
um passo em frente no mesmo caminho. Doravante, a arte integra todo o museu
imaginário, legitima a me mória, trata por igual o passado e o presente, faz
coabitar sem contradição todos os estilos. Fiel neste ponto ao modernismo, o
pós-modernismo conti nua a definir-se pelo processo de abertura, pelo
alargamento das fronteiras. Por fim, declarando situar-se fora do culto
vanguardista do Novo, o pós- modernismo abandona um último ideal
revolucionário, renuncia à face de elite do modernismo, quer acompanhar os
gostos do público satisfazendo ao
1 Curiosamente, é o processo inverso que parece espreitar o futuro filosófico. Os
anos ses senta e o início dos setenta são vanguardistas: o sincretismo é a regra do
momento, trata-se de quebrar as fronteiras, de descontruir campos e conceitos,
de lançar pontes entre as disciplinas separadas e as teorias adversas. O conceito
adopta a estratégia da abertura e da desestabiliza çáo: freudo-marxismo,
marxismo estruturalista, freudismo estrutural ista, antipsiquiatria, esqui zoanálise, economia libidinal, etc. A filosofia recusa o fechamento e adopta o estilo
nómada. Esta fase heteróclita e revolucionária parece estar a dar lugar a uma fase
em que as disciplinas reafirmam a sua especificidade, em que a filosofia
reconstrói o seu território e reconquista uma virgindade momentaneamente
desflorada pelo contacto com as ciências humanas. O pós- modernismo artístico
é sincrético e humorístico, o «pós-modernismo intelectual» é estrito e aus tero,
desconfia das promiscuidades e já não tem como modelo, ao contrário do que se
passava nos «anos loucos», a arte ou as schizes desejantes. Os bilhetes de
identidade estão de novo na ordem do dia. O pós-modernismo artístico reata com
o museu; o pós-modernismo filosófico igualmente, mas ao preço da exclusão da
história e do social, de novo relegados para a ordem empírica trivial. O regresso
em força do pensamento do Ser e dos jogos da metafísica não é um remake, mas
a manifestação filosófica da era narcísica. mesmo tempo os criadores: a arte vê-
se expurgada da sua meta revolucioná ria e da sua imagem hierárquica de acordo
com a linha de força predomi nante da estratégia igualitária. O pós-modernismo
não passa de uma ruptu ra de superfície, conclui a reciclagem democrática da
arte, continua o tra balho de reabsorção da distância artística, leva até ao extremo
limite o pro cesso de personalização da obra aberta, fagocitando todos os estilos,
autori zando as construções mais divergentes, desestabilizando a definição da
arte moderna.
O movimento pós-moderno continua a inscrever-se no devir democrático e
individualista da arte. Os pintores new-wave da «Figuração Livre» decla ram-se
contra a vanguarda, recusam-se a entrar, segundo dizem, no jogo da corrida à
novidade, reivindicam o direito de ser eles próprios, vulgares, chãos, sem
talento, o direito de se exprimirem livremente alimentando-se de todas as fontes
sem a preocupação de serem originais: bad painting. Ao «é preciso ser-se
absolutamente moderno» substituíu-se a palavra de ordem pós- moderna e
narcísica: «é preciso ser-se absolutamente o que se é», num ecle tismo laxista.
Nada há a desejar para além de uma arte sem pretensões, sem elevação nem
pesquisa, livre e espontânea, à imagem e semelhança da socie dade narcísica e
indiferente. A democratização e a personalização das obras descobre a sua
conclusão num individualismo flutuante e discount; a arte, a moda, a publicidade
deixam de se distinguir radicalmente, fazendo até um largo uso do efeito minuto
ou do paradoxo: é novo justamente aquilo que o não quer ser, para se ser novo é
preciso troçar-se do novo. Esta face promo cional do pós-modernismo é a
tentativa de criar um scoop a partir da pró pria ausência de acontecimento, de
transformar em originalidade a confissão parcial de não-originalidade; o pósmodernismo interina aqui o vazio e a sa ciedade, cria um pseudo-acontecimento,
alinha pelos mecanismos publicitá rios em que a afirmação enfática da marca
basta para designar uma realida de incomparável. A operação «trans-vanguarda»
(B. Oliva) ou «figuração li vre» não procede sequer do «nihilismo passivo», não
há qualquer negação em actividade nela; é o processo de dessubstancialização
que conquista aberta mente a arte por meio de uma amálgama indiferente, de
uma -assimilação acelerada e vazia de todo o projecto. Na esteira das grandes
ideologias, a ar te, veiculada quer pela vanguarda quer pela «trans-vanguarda», é
regida pela mesma lógica do vazio, da moda e do marketing.
Enquanto a arte oficial é arrastada pelo processo de personalização e de
democratização, a aspiração dos indivíduos à criação artística não pára
paralelamente de crescer: o pós-modernismo não significa apenas o declínio
vanguardista, mas simultaneamente a disseminação e multiplicação dos nú cleos
e vontades artísticas. Proliferação dos grupos de teatro amador, dos grupos de
música rock ou pop, paixão da fotografia e do vídeo, fascínio pela dança, pelas
profissões artísticas e pelo artesanato, pelo estudo de certo ins trumento, pela
escrita; esta bulimia só tem par na dos desportos e viagens. Toda a gente tem
mais ou menos uma vontade de expressão artística, entra mos deveras na ordem
personalizada da cultura. O modernismo era uma fa se de criação revolucionária
de artistas em processo de ruptura, o pós- modernismo é uma fase de expressão
livre aberta a todos. O momento em que se tratava de fazer aceder as massas ao
consumo das grandes obras cul turais viu-se ultrapassado por uma
democratização espontânea e real das práticas artísticas avançando ao mesmo
tempo que a personalidade narcísica ávida de expressão de si, de criatividade,
ainda que à maneira cool, oscilan do os gostos ao sabor das estações do ano, da
prática do piano à pintura sobre seda, da dança moderna aos jogos com o
sintetizador. Sem dúvida, es ta cultura de massa foi tornada possível pelo
processo de personalização, li bertando faixas de tempo, privilegiando a
expressão e valorizando a criação, mas o surpreendente é que, de certo modo, a
vanguarda também contribuiu para o resultado ao experimentar sem descanso
novos materiais e composi ções, desqualificando o saber técnico em benefício da
imaginação e da ideia. A arte moderna dissolveu a tal ponto as normas estéticas
que um campo artístico aberto a todos os níveis, a todas as formas de expressão,
pôde por fim emergir. A vanguarda facilitou e desculpabilizou as tentativas e
diligên cias artísticas de todos, lavrou o campo onde eclodiria uma expressão
artísti ca de massa.
Crise da democracia?
Se o modernismo artístico já não perturba a ordem social, as coisas são
diferentes com a cultura de massa centrada no hedonismo, em conflito cada vez
mais aberto com a ordem tecno-económica. O hedonismo é a contradi ção
cultural do capitalismo: «Por um lado, a corporação dos assuntos econó micos
exige que o indivíduo trabalhe enormemente, aceite deixar para mais tarde as
recompensas e satisfações, sendo, numa palavra, uma engrenagem da
organização. E por outro lado, a corporação encoraja o prazer, a descontracção, o
deixar-andar. É preciso ser-se consciencioso de dia e libertino à noite» (p. 81).
São estas discordâncias, e não as contradições inerentes ao modo de produção,
que explicam as diversas crises do capitalismo. Pondo a tónica no divórcio
existente entre a ordem económica hierárquica-utilitária e a ordem hedonista, D.
Bel! dá incontestavelmente conta de uma contradição essencial, vivida todos os
dias por cada um de nós. Mais ainda, esta tensão não parece, pelo menos dentro
de um futuro previsível, poder ser sensivel mente reduzida, por grandes que
sejam o alargamento e a multiplicação dos dispositivos flexíveis da
personalização. A ordem coo! depara aqui com o seu limite objectivo; o trabalho
continua a ser impositivo e a sua ordem, compa rada com os tempos livres,
continua a ser rígida, impessoal e autoritária. Quanto maiores forem os tempos
livres, a personalização, mais fastidioso se arrisca a parecer o trabalho, uma
coisa sem sentido, de algum modo tempo roubado ao único tempo pleno que é o
da vida privada do eu livre. Horários móveis, trabalho ao domicílio, job
enrichment, tudo isso, contrariamente ao optimismo dos crentes da «Terceira
Vaga», em nada modificará o perfil principal do nosso tempo, ou seja, um
trabalho obrigatório, repetitivo, mo nótono, opondo-se a um desejo ilimitado de
auto-realização, de liberdade e ócio: é sempre a coabitação dos contrários, a
desestabilização, a desunifica ção da existência o que nos caracteriza.
Dito isto, fixar uma disjunção estrutural entre economia e cultura não dei xa de
colocar algumas dificuldades: no essencial, semelhante teoria mascara a
organização real da cultura, oculta as funções «produtivas» do hedonismo e a
dinâmica do capitalismo, simplifica e cristaliza excessivamente a nature za das
contradições culturais. Assim, um dos fenómenos marcantes reside no facto de
actualmente a cultura se encontrar submetida às normas de gestão prevalecentes
na «infraestrutura»: os produtos culturais são industrializados, subordinados aos
critérios de eficácia e de rentabilidade, conhecem as mes mas campanhas de
promoção publicitária e de marketing. Simultaneamente, a ordem tecnoeconómica é inseparável da promoção das necessidades e, por conseguinte, do
hedonismo, da moda, das relações públicas e humanas, dos estudos de
motivação, da estética industrial: a produção integrou no seu funcionamento os
valores culturais do modernismo enquanto que a explosão das necessidades
permitia ao capitalismo, durante os «gloriosos trinta» e mais tarde ainda, escapar
às suas crises periódicas de super-produção. Como sustentar nestas condições
que o hedonismo é a contradição do capitalismo quando se torna claro que se
trata de uma condição essencial do seu funcionamento e da sua expansão? Não
há relançamento, não há crescimento possível a longo e médio prazo sem uma
forte procura de consumo. Como manter a ideia de uma cultura antinomiana
quando o consumo se revela precisamente o instrumento flexível de integração
dos indivíduos no social, o meio de neutralizar a luta de classes e de abolir a
perspectiva revolucioná ria? Não há antinomia simples ou unidimensional: o
bedonismo produz conflitos, desarma outros. Se o consumo e o hedonismo
permitiram resolver a radicalidade dos conflitos de classe, fizeram-no ao preço
de uma generali zação da crise subjectiva. A contradição nas nossas sociedades
não resulta apenas do fosso entre a cultura e a economia, resulta do próprio
processo de personalização, de um processo sistemático de atomização e de
individuali zação narcísica: quanto mais a sociedade se humaniza, mais o
sentimento do anonimato se estende; quanto mais há indulgência e tolerância,
mais au menta a falta de segurança do indivíduo em relação a si próprio; quanto
mais se prolonga o tempo de vida, mais medo se tem de envelhecer; quanto
menos se trabalha, menos se quer trabalhar; quanto mais os costumes se li
beralizam, mais avança a impressão de vazio; quanto mais a comunicação e o
diálogo se institucionalizam, mais sós se sentem os indivíduos, e com maiores
dificuldades de contacto; quanto mais cresce o bem-estar, mais a depressão
triunfa. A era do consumo engendra uma dessocialização geral e polimorfa,
invisível e miniaturizada; a anomia perde os seus pontos de refe rência, e a
exclusão, também ela agora por medida, desligou-se igualmente da ordem
disciplinar.
Mais grave ainda aos olhos de D. Beli, o hedonismo está na origem de uma crise
espiritual susceptível de levar ao abalo das instituições liberais, O hedonismo
tem como efeito inelutável a perda da civitas, o egocentrismo e a indiferença
pelo bem comum, a ausência de confiança no futuro, o declínio da legitimidade
das instituições (pp. 253-254). Valorizando exclusivamente a busca da autorealização, a era do consumo mina o civismo, sapa a coragem e a vontade (p.
92), deixa de proporcionar qualquer valor superior ou razão de esperança: o
capitalismo americano perdeu a sua legitimidade tradicional assente na
santificação protestante do trabalho e revela-se incapaz de fome cer um sistema
de motivação e de justificação como o que toda a sociedade deve ter e sem o
qual a vitalidade de uma nação de desfaz. Sem dúvida, ou tros factores entraram
em jogo: os problemas raciais, as bolsas de miséria no coração da abundância, a
guerra do Vietname, a contra-cultura contribuí ram para esta crise de confiança
da América. Mas por toda a parte, o hedonismo juntamente com a recessão
económica cria uma frustração dos desejos que o sistema dificilmente pode
reduzir, que se arrisca a favorecer as solu ções extremistas e terroristas,
conduzindo à queda das democracias. A crise cultural leva à instabilidade
política: «Ê nestas circunstâncias que as institui ções tradicionais e os
procedimentos democráticos de uma sociedade se des moronam e que se
afirmam cóleras irracionais acompanhadas pelo desejo de ver surgir um homem
providencial que salve a situação» (p. 258). Só uma acção política empenhada
em reduzir os desejos ilimitados, em equilibrar o domínio privado e o domínio
público, em reintroduzir coerções legais como a interdição da obscenidade, da
pornografia, das perversões, será capaz de reinsuflar uma legitimidade às
instituições democráticas: «A legitimidade po derá assentar nos valores do
liberalismo político se se dissociar do hedonis mo burguês» (p. 260). A política
neo-conservadora, a ordem moral, remédios para a doença senil do capitalismo!
Privatização exacerbada dos indivíduos, divórcio entre as aspirações e as
gratificações reais, perda da consciência cívica, isto não autoriza nem a
diagnosticar uma «mistura explosiva prestes a deflagrar» nem a prognosticar o
declínio das democracias. Não deveremos antes reconhecer aqui índices de um
reforço da legitimidade democrática? A desmotivação política, insepará vel dos
progressos do processo de personalização, não deve esconder a sua face
complementar, o apagamento das dilacerações da idade revolucionária, a
renúncia às perspectivas insurreccionais violentas: o consenso pode ser frouxo,
mas é generalizado no que se refere às regras do jogo democrático. Crise de
legitimação? Não o pensamos: já nenhum partido recusa a regra da concorrência
pacífica em torno do poder, nunca a democracia funcionou co mo hoje sem
inimigo interior declarado (à excepção dos grupos terroristas ultra-minoritários e
sem qualquer audiência), nunca esteve tão segura do bom fundamento das suas
instituições pluralistas, nunca se encontrou em tal consonância com os costumes,
com um perfil de um indivíduo treinado na escolha permanente, alérgico ao
autoritarismo e à violência, tolerante e ávi do de transformações frequentes mas
sem riscos maiores. «Atribui-se dema siada importância às leis e muito pouca
aos costumes», escrevia Tocqueville, observando já que a conservação da
democracia na América assentava de modo preponderante nos costumes: isto é
ainda mais verdadeiro nos nossos dias, enquanto o processo de personalização
não pára de reforçar a procura de liberdade, de escolha, de pluralidade e de
promover um indivíduo des crispado,fair-piay, aberto às diferenças. A medida
que o narcisismo cresce, a legitimidade democrática leva a melhor, ainda que
numa modalidade coo!; os regimes democráticos, com o seu pluralismo
partidário, as suas eleições, o seu direito à oposição e à informação, mantêm um
parentesco cada vez mais estreito com a sociedade personalizada do se/f-servjce,
do teste e da liberda de combinatória. Ainda que os cidadãos não usem os seus
direitos políticos, ainda que o militantismo decaia, ainda que a política se torne
espectacular, o apego à democracia não é menos profundo por isso. Se os
indivíduos se absorvem na esfera privada, não devemos deduzir demasiado
rapidamente que se desinteressam da natureza do sistema político; a desafecção
político- ideológica não é contraditória com um consenso fluido, vago, mas real
acer ca dos regimes democráticos. A indifirença pura não significa a indiferença
pela democracia, significa desafecção emocional dos grandes referentes ideo
lógicos, apatia nas consultas eleitorais, banalização espectacular do político, a
transformação em «ambiência» da política, mas tudo isto na arena própria da
democracia. Mesmo os que apenas se interessam pela dimensão privada da sua
vida permanecem ligados, graças aos laços tecidos pelo processo de
personalização, ao funcionamento democrático das sociedades. A indiferença
pura e a coabitação pós-moderna dos contrários caminham a par: não se vo ta,
mas quer poder-se votar; não há interesse pelos programas políticos, mas faz-se
questão da existência de partidos; não se lêem jornais, nem livros, mas defendese a liberdade de expressão. Como seria de outro modo na era comunicação, da
super-escolha e do consumo generalizado? O processo de personalização
trabalha no sentido de legitimar a democracia na medida em que é, em toda a
parte, um operador da valorização da liberdade e do plu ral. Seja qual for a sua
despolitização, o homo psychologicus não é indife rente à democracia, continua
a ser nas suas aspirações profundas um humo democraticus, converte-se no
melhor garante da democracia. Sem dúvida, a legitimação não se liga a um
investimento ideológico, mas é nisso que está a sua força; a legitimação
contemporânea da era disciplinar deu lugar a um consenso existencial e
tolerante, a democracia tornou-se uma segunda natu reza, um meio de vida, um
ambiente. A «despolitização» de que somos teste munhas é acompanhada pela
aprovação muda, frouxa, não política do espa ço democrático. D. Bel! inquietase com o futuro dos regimes da Europa Ocidental, mas que vemos passar-se
neles? Na Itália, a despeito de acções terroristas espectaculares, o regime
parlamentar mantém-se, ainda que em equilíbrio instável; em França, a vitória
socialista não deu lugar a qualquer confronto de classe e a situação, a partir daí,
tem-se desenrolado sem choques nem tensões especiais; apesar de uma crise
económica e de dezenas de milhões de desempregados, a Europa não se vê de
modo nenhum dilacerada por lutas sociais ou políticas violentas. Como dar conta
desse facto sem to mar em consideração a obra do processo de personalização, o
indivíduo coo! e tolerante que dele resulta, a legitimidade surda, mas eficaz por
todos con cedida à ordem democrática?
Restam as contradições ligadas à igualdade. De acordo com D.Bell, a crise
económica que as democracias ocidentais atravessam explica-se em par te pelo
hedonismo que causa aumentos de salários permanentes, mas tam bém pela
exigência de igualdade conduzindo a um aumento das despesas so ciais do
Estado, de maneira nenhuma compensadas por um aumento corres pondente de
produtividade. Desde a Segunda Guerra Mundial, o Estado, tornado peça central
do controlo da sociedade por força das suas funções alargadas, vê-se cada vez
mais obrigado a satisfazer reivindicações que se afirmam como direitos
colectivos e não já individuais; a sociedade pós- industrial é uma «sociedade
comunitária» Estamos a viver uma «revolução das reivindicações», todas as
categorias da sociedade apresentam doravante reivindicações de direitos
específicos em nome do grupo, mais do que em no me do indivíduo: «revolução
dos novos detentores de direitos» (p. 242), ba seada no ideal da igualdade, que
engendra um desenvolvimento considerável das despesas sociais do Estado
(saúde, educação, auxílios sociais, meio am biente, etc.). Ora esta subida das
reivindicações coincide com a tendência pós-industrial para o predomínio
crescente dos serviços, sectores onde preci samente o aumento de produtividade
é mais fraco: «A absorção pelos servi ços de uma parcela cada vez mais
importante da mão-de-obra trava necessa riamente a produtividade e o
crescimento globais; esta transferência é acom panhada por uma alta brutal do
custo dos serviços tanto privados como pú blicos» A preponderância das
actividades de serviços, a alta contínua dos seus custos, as despesas sociais do
Estado-Providência engendram uma infla ção estrutural devida ao desequilíbrio
da produtividade. O hedonismo, bem como a igualdade, com os seus «apetites
desmedidos», contribuem assim pa ra amplificar uma crise «profunda e
persistente»: «A sociedade democrática apresenta reivindicações que a
capacidade produtiva da sociedade não pode satisfazer» (p. 245).
Está fora de questão discutir, ainda que rapidamente, nos limites deste ensaio, a
natureza da crise económica do capitalismo e do Welfare State. Sublinhemos
apenas o paradoxo que conduz um pensamento resolutamente orientado contra o
marxismo a desposar por fim uma das suas característi cas essenciais, uma vez
que, de novo, vemos o capitalismo ser aqui analisado em função de contradições
objectivas (ainda que seja a cultura a ser antinó mica e já não o modo de
produção), de leis mais ou menos inevitáveis que levarão os EUA a perder a sua
hegemonia mundial e a viver o fim do século «como um velho proprietário» (p.
223). Sem dúvida, nem tudo está decidido, mas as medidas que se imporiam para
arrancar, por exemplo, o Estado- Providência à crise fiscal em que se encontra,
opõem-se tanto à cultura he donista e igualitária que é permitido «perguntarmonos se a sociedade pós- industrial alguma vez poderá adoptá-las» De facto, ao
estabeler uma dis junção entre igualdade e economia, D. BelI reifica as
antinomias do capita lismo, proibe-se de pensar a flexibilidade dos sistemas
democráticos, a in venção e a reafirmação históricas. Que haja tensões entre a
igualdade e a eficácia, é uma evidência, mas não basta para concluirmos que
existe con tradição entre as duas ordens. De resto, que devemos entender ao
certo por «contradição» ou «disjunção das ordens»? O equívoco não é desfeito
nunca, remetendo o esquema ora para uma crise estrutural de um sistema em
vias de decadência inelutável, ora para estrangulamentos profundos, mas sobre
os quais é possível, apesar de tudo, intervir. Igualdade contra utilidade? O que é
notável, pelo contrário, é o facto de a igualdade ser um valor maleá vel, que se
pode traduzir na linguagem economista dos preços e dos salários, modulável, por
conseguinte, em função das opções políticas. Noutras passa gens, de resto, o
próprio D. Bel! o reconhece: «A prioridade do político, no sentido em que o
entendemos, é constante» A igualdade não é contrária à eficácia, ou só o é aqui
ou ali, pontualmente ou conjunturalmente, em fun ção dos ritmos e pressão das
reivindicações, em função desta ou daquela política da igualdade. Sobretudo,
não devemos perder de vista que onde a democracia se encontra estruturalmente
reprimida, as dificuldades económi cas são incomparavelmente maiores e
conduzem, no melhor dos casos, a so ciedade à penúria e, nos casos piores, à
pura e simples bancarrota. A igual dade não produz unicamente disfunções,
obriga também o sistema político e económico a transformar-se, a «racionalizarse», a inovar, é um factor de de sequilíbrio, mas também de invenção histórica.
Assim deixam-se já adivi nhar novas políticas sociais que tenderiam a conduzir
não ao «Estado mmi- mal», mas a uma redefinição da solidariedade social. As
dificuldades do Es tado-Providência, pelo menos em França, não anunciam o fim
das políticas sociais de redistribuição, mas talvez o fim do estádio rígido ou
homogéneo da igualdade em proveito de uma «fragmentação do sistema entre
um regime de protecção social reservada às categorias modestas da população e
o recur so aos seguros para as camadas mais abastadas» exceptuados os grandes
direitos e riscos: a igualdade introduzir-se-ia na era personalizada ou flexível das
redistribuições desiguais. P. Rosanvalion tem razão em ver nos proble mas
actuais do Estado-Providência uma crise que excede as simples dificul dades
financeiras e em ver nela um deslocamento mais global das relações entre a
sociedade e o Estado; em compensação, é mais difícil acompanhá-lo quando
interpreta a crise como uma dúvida acerca do valor da igualdade:
«Se há uma dúvida essencial que atravessa o Estado-Providência é realmente
esta: a igualdade será um valor ainda com futuro?» Com efeito, a igualda de
enquanto valor não está posta em causa, a redução das desigualdades continua na
ordem do dia, sejam quais forem as dificuldades, que aliás não são novas, em
determinar a norma do justo e do injusto, O que alimenta a presente contestação
do We/fare State, nomeadamente nos EUA, é a verifi cação dos efeitos perversos
de uma política burocrática da igUaldade, é a ineficácia dos mecanismos de
subsídio na redução das desigualdades, é o ca rácter anti-redistributivo dos
sistemas de prestações uniformes baseados nos serviços gratuitos e nas múltiplas
formas de subvenção. Não se trata do eclipse da igualdade, mas da sua
prossecução através de meios mais maleá veis, de menores custos para a
colectividade: daí essas ideias novas que são o «imposto negativo», o «auxílio
directo à pessoa», os «créditos» de educação, saúde, alojamento dispositivos
concebidos para adaptarem a igualdade a uma sociedade personalizada,
preocupada com o aumento das possibilidades de escolha individual. A
igualdade sai da fase moderna e uniforme e recicla se de acordo com a era pósmoderna da diversificação e personalização dos modos de redistribuição, da
coexistência dos sistemas de seguros individuais e dos sistemas de protecção
social no momento em que justamente a procura de liberdade é superior à de
igualdade. Crítica do carácter gratuito dos ser viços, denúncia dos monopólios
públicos, apelo à desregulamentação e à pri vatização dos serviços, tudo isto
caminha no sentido da tendência pós- moderna para privilegiar a liberdade
relativamente ao igualitarismo unifor me, mas também para responsabilizar mais
o indivíduo e as empresas obrigando-os a mais mobilidade, inovação, escolhas.
A crise da social-democracia coincide como movimento pós-moderno de
redução da rigidez individual e institucional: menos relação vertical e
paternalista entre o Esta do e a sociedade, menos regime único, mais iniciativa,
diversidade e respon sabilidade na sociedade e nos indivíduos, e as novas
políticas sociais, a mais breve ou mais longo prazo, terão que continuar a mesma
obra de abertura que o consumo de massa pôs em movimento. A crise do
Estado-Providência:
meio de disseminar e de multiplicar as responsabilidades sociais, meio de re
forçar o papel das associações, das cooperativas, das colectividades locais, meio
de reduzir a distância hierárquica que separa o Estado da sociedade, meio de
«aumentar a flexibilidade das organizações como contrapartida ao aumento das
flexibilidades dos indivíduos meio, por conseguinte, de adap tar o Estado à
sociedade pós-moderna, centrada no culto da liberdade indi vidual, da
proximidade, da diversidade. Está aberta a via pela qual o Estado poderá entrar
no ciclo da personalização, pôr-se de acordo com uma socie dade móvel e
aberta, recusando a rigidez burocrática, a distância política, ainda que
benevolente, como acontece no caso da social-democracia.
CAPITULO V A sociedade humorística
Tem-se sublinhado de há muito a amplitude do fenómeno de dramatiza ção
suscitado pelos mass-media: clima de crise, insegurança urbana e plane tária,
escândalos, catástrofes, entrevistas dilacerantes, pelo que, sob a sua
objectividade de superfície, as informações se orientam no sentido da emo ção,
do «pseudo-acontecimento», do cliché sensacional, do suspense. Tem-se
observado menos um fenómeno igualmente inédito, de certo modo inverso,
apesar de legível a todos os níveis da quotidianidade: o desenvolvimento ge
neralizado do código humorístico. Cada ve mais, a publicidade, as emissões de
animação, os siogans das manifestações, a moda adoptam um estilo hu
morístico. Os comics suscitam um tal apetite que um jornal de San Francis co
sofreu uma queda espectacular do seu número de leitores por ter decidido
suprimir a BD de Schulz, os Peanuts. Até as publicações sérias se deixam
influenciar em maior ou menor medida pela atmosfera da época: basta ler os
títulos ou subtítulos dos diários, dos semanários e mesmo dos artigos científicos
ou filosóficos. O tom universitário dá lugar a um estilo mais tóni co feito de
piscadelas de olho e jogos de palavras. A ai-te, adiantando-se nis so a todas as
outras produções, integrou de há muito o humor como uma das suas dimensões
constitutivas: impossível, com efeito, eliminar a carga e a orientação humorística
das obras, com Duchamp, a anti-arte, os surrealis tas, o teatro do absurdo, a arte
pop, etc. Mas o fenómeno não pode sequer ser circunscrito à produção expressa
dos signos humorísticos, ainda que ao nível de uma produção de massa; o
fenómeno designa simultaneamente o devir inelutável de todas as nossas
significações e valores, do sexo ao Outro, da cultura ao político e isto contra a
nossa própria vontade. A descrença pós-moderna, o neo-nihilismo que ganha
corpo, não é nem ateu nem mortí fero, mas doravante humorístico.
Do cómico grotesco ao humor pop
O nosso tempo não detém, longe disso, o monopólio do cómico. Em to das as
sociedades, incluindo as selvagens, nas quais a etnografia revela a existência de
cultos e mitos cómicos, os divertimentos e o riso ocuparam um lugar
fundamental que temos tendência a subestimar em excesso. Mas se ca da cultura
desenvolve de modo preponderante um esquema cómico, só a so ciedade pósmoderna pode dizer-se humorística, só ela se instituiu global mente sob a égide
de um processo tendente a dissolver a oposição, até então estrita, do sério e do
não-sério; na esteira das outras grandes divisões, a do cómico e do cerimonial
esbate-se em benefício de um clima largamente hu morístico. Enquanto que a
partir da instituição das sociedades estatais, o có mico se opõe às normas sérias,
ao sagrado, ao Estado, representando assim um segundo mundo, mundo
carnavalesco e popular na Idade Média, mundo da liberdade satírica do espírito
subjectivo a partir da idade clássica, esta dualidade tende a liquefazer-se sob o
impulso invasor do fenómeno hu morístico que anexa todas as esferas da vida
social, ainda que apesar da nossa oposição. Os carnavais e festas estão reduzidos
a uma existência fol clórica, o princípio de alteridade social que incarnavam
pulverizou-se e, cu riosamente, é a uma luz humorística que doravante nos
aparecem. Os pan fletos violentos perderam a sua preponderância, os cantores
deixaram de ser cabeças de cartaz; um novo estilo descontraído e inofensivo,
sem negação nem mensagem, emergiu, caracterizando o humor da moda, da
escrita jor nalística, dos jogos radiofónicos, da publicidade, de numerosas BD. O
cómi co, longe de ser a festa do povo ou do espírito, tornou-se um imperativo so
cial generalizado, uma atmosfera coo1, uni meio ambiente permanente que o
indivíduo sofre até na sua existência quotidiana.
Nesta perspectiva, podemos determinar três grandes fases históricas do cómico a
partir da Idade Média, sendo cada uma delas caracterizada por um princípio
dominante. Na Idade Média, a cultura cómica popular encon tra-se
profundamente ligada às festas, aos divertimentos de tipo carnavales co, que,
digamo-lo de passagem, chegavam a ocupar um total de três meses por ano.
Neste contexto, o cómico vê-se unificado pela categoria de «realis mo grotesco»
baseado no princípio de rebaixamento do sublime, do po der, do sagrado, por
meio de imagens hipertrofiadas da vida material e cor poral. No espaço da festa,
tudo o que é elevado, espiritual, ideal é transpos to, parodiado, para a dimensão
corporal e inferior (comer, beber, digestão, vida sexual). O mundo do riso
edifica-se essencialmente a partir das mais di versas formas de grosseria, de
rebaixamentos grotescos dos ritos e símbolos religiosos, de arremedos paródicos
dos cultos oficiais, de coroações e destro namentos bufos. Assim, por altura do
Carnaval, a hierarquia é invertida, o bufão é sagrado rei pelo conjunto do povo,
depois ridicularizado pelo mesmo povo que o injuria e lhe bate quando o seu
reinado chega ao fim; durante a «festa dos loucos», elege-se um abade, um
arcebispo e um papa de mascara da que entoam refrões obscenos e grotescos
sobre árias de cantos litúrgicos, transformam o altar em mesa de banquete e
utilizam excrementos à guisa de incenso. Depois do ofício religioso, a paródia
escatológica continuava, per correndo este «clero» as ruas e lançando
excrementos sobre o povo que o es coltava. Introduzia-se igualmente na igreja
um burro em honra do qual se celebrava a missa: no fim do ofício, o padre
zurrava, seguido pelos fiéis. E este mesmo esquema carnavalesco que, até ao
Renascimento, impregnará as obras literárias cómicas (paródias dos cultos e
dogmas religiosos), bem como os gracejos, ditos, pragas e injúrias: o riso surge
sempre ligado à profanação dos elementos sagrados, à violação das regras
oficiais. Todo o cómico medie val oscila assim no sentido de uma imaginária
grotesca que, antes de tudo, devemos não confundir com a paródia moderna, de
algum modo dessociali zada, formal ou «estetizada». A mascarada cómica do
rebaixamento é uma simbólica através da qual a morte se afirma como condição
de um novo nas cimento. Invertendo o alto e o baixo, precipitando tudo o que é
sublime e digno nos abismos da materialidade, prepara-se a ressurreição, um
novo co meço após a morte. O cómico medieval é «ambivalente»;em toda a
parte se trata de dar a morte (rebaixar, ridicularizar, injuriar, blasfemar) para dar
alento a uma nova juventude, para iniciar a renovação
A partir da idade clássica, inicia-se o processo de decomposição do riso da festa
popular, ao mesmo tempo que se formam os novos géneros da literatu ra cómica,
satírica e de divertimento, afastando-se cada vez mais da tradi ção grotesca. O
riso, expurgado do seus elementos alegres, das suas grosse rias e ultrajes bufos,
da sua base obscena e escatológica, tende a reduzir-se ao espírito, à ironia pura
que se exerce à custa dos costumes e individualida des típicas. O cómico já não é
simbólico, torna-se agora crítico, tanto na co média clássica como na sátira, na
fábula, na caricatura, na revista ou no vaudevilie. Com isto, o cómico entra na
sua fase de dessocialização, privati za-se e torna-se «civilizado» e aleatório.
Com o processo de empobrecimento do mundo carnavalesco, o cómico perde o
seu carácter público e colectivo, metamorfoseia-se em prazer subjectivo perante
este ou aquele facto engraça do isolado, o indivíduo fica no exterior do objecto
do sarcasmo, nos antípo das da festa popular que ignorava qualquer distinção
entre actores e espec tadores e abrangia o conjunto do povo ao longo de todo o
tempo que dura vam os festejos. Em simultâneo com esta privatização, o riso
disciplina-se: devemos entender o desenvolvimento dessas formas modernas do
riso que são o humor, a ironia, o sarcasmo, como um tipo de controlo ténue e
infini tesimal exercido sobre as manifestações do corpo, análogo por esse lado
ao adestramento disciplinar analisado por Foucault. Trata-se, num e noutro ca so,
de decompor os agrupamentos maciços e confusos, isolando os indiví duos, de
quebrar as familiaridades e comunicações não-hierárquicas, de ins tituir barreiras
e compartimentações, de domesticar as funções de um modo constante, de
produzir «corpos dóceis», comedidos e previsíveis nas suas reacções. Nas
sociedades disciplinares, o riso, com os seus excessos e exube râncias, vê-se
inelutavelmente desvalorizado, o riso que, justamente, não exi ge qualquer
aprendizagem: no século XVIII, o riso livre torna-se um com portamento
desprezado e vil e, até ao século XIX, será considerado baixo e de mau tom, tão
perigoso como tolo, encorajando a superficialidade e mes mo a obscenidade. A
mecanização do corpo disciplinado corresponde a espi ritualizaçãointeriorização do cómico: uma mesma economia funcional visando Poupar as
despesas desordenadas um mesmo proces celular que pro duza o indivíduo
moderno.
Actualmente, estamos para além da era satíi-jca e do seu cómico mordaz.
Através da publicidade, da moda, dos gadgets, das emissões de animação, dos
comies, quem não vê que a tonalidade dominante e inédita do cómico já não é
sarcástica, mas 1i O humor que se instala suprime o negativo ca racterístico da
fase satírjca ou caricatural À denúncia trocista corresponden te a uma sociedade
baseada em valores reconhecidos substjtuiuse um humor positivo e desenvolto,
um cómico teen-ager à base de despropósito gratuito e sem pretensões o humor
na publicidade ou na moda não tem vítima, não troça, não critica, esforçand
somente por prodigalizar uma atmosfera eu fórica de bom humor e de felicidade
sem reverso, O humor de massa já não repousa num fundo de amargura ou
aborrecimento: longe de mascarar um pessimismo ou de ser a «delicadeza do
desespero», o humor contemporâneo quer-se sem espessura e descreve um
universo radioso. «Há uma festa super em cada iogurte»: a tradicional gravidade
ou impassibilidade do humor in glês ( verdadeiro humor é característico de um
autor que afecta gravidade e seriedade, mas pinta os objectos com uma cor tal
que provoca alegria e o riso»., Lord Kames) desapareceu na mesma vaga que
levou também a descri ção minuciosa e imparcial do real ( humorista é um
moralista que se dis farça de sábio», Bergson), Actualmente o cómico é bizarro e
hiperbólico (a publicidade anexa o Oriente e os gurus declaram: «A sua
serenidade consiste em reunir todos os seus contratos de seguros na UAP»), o
gosto dos porme nores, a objectivjda do estilo inglês deu lugar à embriaguez do
spot e do siogan. Tendo deixado de fingir a indiferença e O desprendimento, o
humor de massa é sedutor, tónico e psicadélico; o seu registo pretende-se
expressi vo, caloroso e cordial. Para disso nos convencermos basta ouvirmos o
estilo dos animadores das emissões radiofónicas para «jovens» (Gérard Klein): o
humor aqui já nada tem a ver com o espírito, como se tudo o que tivesse uma
certa profundidade pusesse em perigo o ambiente de proximidade e de
comunhão. O humor, doravante, é aquilo que seduz e aproxima os indiví duos:
W. AlIen surge no hit-parade dos sedutores de Play Boy. As pessoas tratam-se
por «tu», ninguém se leva a sério, tudo é «giro», multipJjcam os gracejos que
procuram evitar o paternalismo a distância, o logro ou a clás sica história de fim
de banquete. O humor radiofónico, na esteira do colori do da pintura pop,
manifesta-se por camadas, o tom é o das verdades de Lapalíss da familiaridade
vazia, dos balões da BD, tanto mais prezado quanto mais simples e cursivo. Do
mesmo modo, na vida quotidiana, con tam-se muito menos histórias curiosas,
como se a personalização da vida se tornasse incompatível com essas formas de
narração transmitidas pcrr ouvir dizer, repetitivas e codificadas. Nas sociedades
mais crispadas, uma tradição viva apoia-se nas anedotas com alvos relativamente
precisos (os loucos, o se xo, o poder, certos grupos étnicos): hoje o humor tende
a desligar-se destes moldes demasiado rígidos e sólidos em benefício de uma boa
- disposição sem ossatura, sem cabeça de turco, e de um gracejar vazio que se
alimenta de si próprio O humor, como o mundo subjectivo e intersubjectivo,
dessubstan cializa-se, aspirado pela lógica generalizada de uma inconsistência
maior. Os ditos de espírito, os jogos de palavras vão igualmente perdendo o seu
prestí gio: quase nos desculpamos por causa de um trocadilho ou rimo-nos acto
contínuo do nosso próprio espírito. O humor dominante já não se acomoda com
a inteligência das coisas e da linguagem, com essa superioridade que o espírito
se arroga; precisa de um cómico discount e pop que já não sugira qualquer
eminência ou distância hierárquica. Banalização, dessubstanciali zação,
personalização, encontramos todos estes processos entre os novos se dutores dos
grandes media: as personagens burlescas, heróicas ou melodra máticas fizeram o
seu tempo, hoje é o estilo aberto, desenvolto e humorístico que se impõe. Os
filmes de James Bond, as «séries» americanas (Starky et Hutch, Sinceramente
Seu) põem em cena personagens que têm em comum unia mesma descontração
dinâmica acompanhada por uma eficácia exem plar. O «novo» herói não se leva
a sério, desdramatiza o real e caracteriza-se por uma atitude maliciosamente
desprendida ante os acontecimentos. A ad versidade é ininterruptamente
atenuada pelo seu humor coo! e empreende dor enquanto a violência e o perigo o
cercam por todos os lados. À imagem do nosso tempo, o herói é eficiente,
embora não invista emocionalmente os seus actos. Doravante, não há entrada
para ninguém que se leve a sério, ninguém é sedutor se não for simpático.
O humor vazio, desestruturado, conquista o próprio significante e desdobra-se no
excesso lúdico dos signos: testemunha-o a invasão dos comics por
onomatopeias, palavras bárbaras in ventadas intencionalmente para traduzirem,
num registo hiperexpressivo e cómico, os ruídos do mundo. «Chnaf», «plomp*,
«ghuuhugrptch», rrhaawh», hugnuptch», «grmf» — estes significan tes já não
têm sentido e desprendem-se de todo o referente. O cómico resulta desta
autonomia hiperbólica da linguagem, da vacuidade dos signos que se abandonam
à exasperação sonora, ortográfica e tipográfica.
A par do humor de massa eufórico e convivial afirma um humor de certo modo
undergro descontraído sem dúvida mas de tom deseiiga. nado, hard. «Ê preciso
ter unia cabeça lixada para chegar a esse Ponto. Mas é unia condição sifle qua
lion; caso contrário, dá-se em maluco, com o Iggy Pop, quer dizer, fica-se com
os fusíveis da tola todos queimados e com um sorriso idiota e babado... E os
tipos bem podem dizer que o inferno é um sítio fixe e bem aqueci com um
concerto do Gene Vincent e do Hendriz todos os dias, quanto mais tarde lá
formos parar, melhor, não acham? po bres barracas, como vos odeio!»
(Libóration) Humor Pós-moderno, new wave, que não devemos confundir com o
humor negro: o tom é baço, vaga- mente Provocador, sobre o vulgar, exibindo
ostensivamente a emancipação da linguagem do sujeito e muitas vezes do sexo.
£ a face dura do narcisis mo que se deleita aqui na negaç estética e nas figuras de
um quotidia metalizado Num outro género e sem desencanto Mad Max II de G.
Milier é um exemplo muito característico de um humor hard onde se misturam
in dissociavelmente a extrema violência e o cómico. A «graça» está aqui na en
genhosida no excesso hiper-realista das máquinas de ficção científica «pri
mitivas», atrozes, bárbaras. Não há meias tintas, o humor trabalha ao vivo, em
grandes planos e com efeitos especiais; o macabro é ultrapassado pela apoteose
do teatro hollywoodjano da crueldade
Simultaneamente é a uma esterjlizaç a uma pacifjcaç do cómico que assistimos
na vida quotidiana Assim os disfarces divertimentos ainda muito apreciados nos
campos do século xix, deixaram de se ver, excepto nas festas infantis ou em
festas privadas Outrora, os camponeses divertiam. se passeando nas suas aldeias
vestidos de soldados, de burgueses ricos ou em trajes do sexo oposto. O mimo
também já não tem grande êxito, quando, na mesma época, não era raro,
nomeadamente por altura dos casamentos, ver caricaturadas as sogras de modo
grotesc . As pragas e blasfémias iá não dão vontade de rir, as grosseri medida
que passaram a ser generaliz mente utilizadas e anexadas pela moda,
banalizamse, perdem o seu poder de provocação e a sua intensidade agress Só os
sketc/zes de nzusjc-hal/ ou de café-concerto (Coluche) conseguem dar ainda às
grosseria a sua virtude hilariante, e mesmo isso, não como violaç da norma, mas
como amplifica. ção e reflexo do quotidia Os arremedos, que nos meios
Populares do sé culo XIX eram os gracejos mais apreciados e que muitas vezes
não se mostravam desprovidos de certa brutalidade, já não têm grande eco:
inventar uni argumento destinado a ridicularizar outrém aos olhos de todos
suscita hoje mais reprovação do que encorajamento. Mesmo as «imitações e
adivi nhas» caíram em desuso e passaram a ser reservadas às crianças: o cómico
exige nos nossos dias mais discrição e novidades: já não estamos no tempo em
que as pessoas se riam invariavelmente com as mesmas graças; o humor requer
hoje o espontâneo, o «natural».
Apesar de tudo isto, verifica-se desde há dois ou três anos um reatar dos grupos
mascarados de jovens, nas ruas e nos liceus, por ocasião da Terça- feira Gorda.
Fenómeno novo, pós-moderno, com efeito: o indivíduo moderno achava ridículo
ou infantil disfarçar-se; o mesmo já não se passa hoje, uma vez que essa recusa
parecia austera, rígida, convencional. A atitude pós- moderna é menos ávida de
emancipação séria do que de animação desenvol ta e de personalização
fantasista. Tal é de facto o sentido deste regresso descrispado do carnavalesco:
de modo nenhum um reinvestimento da tradi ção, mas um efeito tipicamente
narcísico, hiper-individualizado, espectacu lar, dando lugar a uma profusão
exasperada de máscaras, ouropéis, caracte rizações, ornamentos heteróclitos. A
«festa» pós-moderna: meio lúdico de uma sobre-diferenciação individualista e
que, no entanto, não é um meio menos curiosamente sério pela aplicação
cuidadosa e sofisticada que o carac teriza.
Pouco a pouco, tudo o que possui uma componente agressiva perde a sua
capacidade de fazer rir os rituais de entrada em certas grandes escolas mantêmse, mas a iniciação, para ser engraçada, não deve ultrapassar um certo limiar de
agressão: para além desse limite, surge como uma violação, destituída de
dimensão cómica. De acordo com o irreversível processo de «abrandamento dos
costumes», de que falava Tocqueville, o cómico torna-se incompatível com os
divertimentos cruéis de outrora: não só já ninguém riria vendo queimar gatos
como era costume no século XVI por altura da festa de
Na imprensa ou no desenho (Woljnski, Reiser, Cabu, Gébé), assistimos à
tendência in versa, a uma escalada sem precedentes de ferocidade caricatural, de
humor «estúpido e mau», de modo nenhum em contradição com o processo de
abrandamento dos costumes, mas a favor deste: o humor atroz pode dar-se tanto
mais livre curso quanto mais os costumes e relações hu manas se pacificam. A
vulgaridade, a obscenidade ressurgem sob forma humorística ao mesmo tempo
que a higiene é um credo universal e o corpo se transforma em objecto de
solicitudes e de cuidados permanentes.
S. João mas as próprias crianças já não acham graça, ao contrário do que se
passava em todas as civilizações anteriores, a martirizar os animais. À medida
que o cómico se espiritualiza, começa prudentemente a poupar o outro: devemos
sublinhar esta atitude sociainiente nova que consiste em re provar o riso à custa
de outrém. O outro deixa de ser a presa privilegiada dos sarcasmos, rimo-nos
hoje muito menos dos vícios e defeitos de outrém:
no século XIX e durante a primeira metade do século XX, amigos, vizinhos, com
os seus infortúnios (o cornudo, por exemplo), os seus desvios em rela ção à
norma, eram objecto de gracejos. Actualmente, os que nos estão pró ximos são
poupados, no preciso momento em que, como veremos, a imagem do outro
perde consistência e se torna humorística à força de singularidade. Tal como o
humor lúdico na ordem dos signos de massa toma o lugar do espírito satírico,
assim, ao nível da quotidianjdade, a crítica trocista em rela ção a outrém atenuase e perde o seu efeito hilariante, de acordo com uma personalidade psi em busca
de calor convivial e de comunicação inter- pessoal.
Correlativamente, é o Eu que se torna um alvo privilegiado do humor, objecto de
deri-isão e de auto-depreciação como testemunham os filmes de W. Alien. A
personagem cómica já não releva do burlesco (B. Keaton, Ch. Chaplin, os
irmãos Marx), a sua graça já não resulta nem da inadaptação nem da subversão
das lógicas, decorre da reflexividade, da hiper-consciência narcísjca, libidinal e
corporal. A personagem burlesca é inconsciente da ima gem que Proporciona ao
outro, faz rir contra-vontade e Sem se observar, sem se ver a agir; são as
situações absurdas que engendra, os gags que põe em cena segundo uma
mecânica irremediável que são cómicos. Pelo contrário, com o humor narcísico,
Woody Allen faz rir sem deixar nunca de se anali sar, dissecando o seu próprio
ridículo, estendendo-se a si próprio e ao espec tador o espelho do seu Eu
desvalorizado. o Ego, a consciência de si, que se torna objecto de humor e já não
os vícios de outrém ou os actos extrava gantes.
Paradoxalmente é com a sociedade humorística que na realidade começa a fase
de liquidaç do riso: pela primeira vez funciona um dispositivo que consegue
dissolver progressjvame a propensão para o riso. A despeito do código das boas
maneiras e da condenação moral do riso, os indivíduos de todas as classes nunca
deixaram de conhecer o riso demonstrativo, o riso louco, a explosão de
jovialidade. No século XIX, nas representações do café- concerto, o público
tinha o costume de interpelar jovialmente os artistas, de rir ruidosamente, de
lançar comentários e gracejos em voz alta. Há pouco tempo ainda, um ambiente
semelhante podia encontrar-se nas salas de cine ma populares: Fellini soube
restituir esse clima rico de vida e risos mais ou menos grosseiros numa das cenas
de Roma. Nos espectáculos de J. Pujol, as enfermeiras tinham que levar para
fora mulheres literalmente doentes de ri so; as farsas e vaudevilies de Feydeau
desencadeavam tais acessos de riso que os actores se viam obrigados a mimar o
fim dos espectáculos, de tal mo do a hilariedade era descontrolada Que resta de
tudo isto hoje que as grandes algazarras de classe desapareceram, que a cidade
vê terminarem os «gritos», os gracejos dos palhaços, mercadores e charlatões,
que os cinemas de bolso substituem os cinemas de bairro, que o som nas bof'tes
apaga as vo zes, que a música-ambiente anima o silêncio discreto dos
restaurantes e su permercados? Porque é que os grandes acessos de hilaridade
dão tanto nas vistas senão por nos termos a pouco e pouco desabituado de ouvir
essas gar galhadas espontâneas que eram tão frequentes em tempos anteriores? A
me dida que a poluição sonora conquista a cidade, o riso extingue-se, o silêncio
invade o espaço humano, só as crianças parecem escapar, por um tempo ainda, a
esta espantosa discrição. A observação impõe-se: depois do riso da festa, são as
explosões intempestivas de riso que se encontram em vias de desaparecimento;
entrámos numa fase da pauperização do riso que se desen volve à medida que o
neo-narcisimo se consolida. Pelo desinvestimento gene ralizado dos valores
sociais que produz, pelo seu culto da auto-realização, a personalização pósmoderna encerra o indivíduo em si próprio, fá-lo desertar não só da vida pública,
mas no fim do ciclo também da esfera privada, en tregue esta às perturbações
proliferantes da depressão e das neuroses narcísi cas o .processo de
personalização tem no seu termo o indivíduo zombiesco, ora cool e apático, ora
esvaziado do sentimento de existir. Como não ver, as sim, que a indiferença e a
desmotivação de massa, o aumento do vazio exis tencial e a extinção progressiva
do riso são fenómenos paralelos: é por toda a parte a mesma desvitalização que
surge, a mesma erradicação das espon taneidades pulsionaís, a mesma
neutralização das emoções, a mesma auto- absorção narc'isica. As instituições
esvaziam-se da sua carga emocional do mesmo modo que o riso tende a rarear e
a moderar-se. Enquanto a nossa sociedade adianta os valores da comunicação, o
indivíduo, pelo seu lado, já não sente a necessidade de se manifestar por meio
desse ríso demonstrativo que a sensibilidade popular diz tão bem ser
«contagioso». Na sociedade narcísica, o contacto entre os seres renuncia aos
signos manifestos, interiorj za-se ou psicologiza-se; o refluxo do riso não passa
de uma das manifesta ções da dessocialização das formas de comunicação, do
isolamento sofi pós- moderno. £ coisa muito diferente de uma discrição
civilizada o que devemos reconhecer na atrofia contemporânea do riso: é deveras
a capacidade de riso que foi atingida, exactamente do mesmo modo que o
hedonismo acarretou um enfraquecimento da vontade, O desapossamento, a
dessubstanciajização do indivíduo, longe de se circunscrever ao trabalho, ao
poder, invade agora a sua unidade, a sua vontade, a sua hilaridade. Recolhido em
si próprio, o homem pós-moderno tem cada vez mais dificuldade em «rebentar»
de riso, em sair de si, em sentir entusiasmo, em entregar-se à jovialidade. A
faculda de de riso regride: «um certo sorriso» substituiu o riso desenfreado. A
«bel/e épo que) é apenas o começo, a civilização continua a sua obra,
promovendo uma humanidade nai-císjca sem exuberância, sem riso, mas sobre-
saturada de signos humorísticos.
Metapublicidade
Provavelmente é a publicidade que revela de modo mais manifesto a na tureza
do fenómeno humorístico: filmes, painéis, anúncios renunciam cada vez mais
aos discursos sentenciosos e austeros em proveito de um estilo feito de jogos de
palavras, de fórmulas indirectas (»Tens uns olhos lindos, sa bias?», para uma
armação de óculos), de pastiches (Renault Fuego: «o auto móvel que anda mais
depressa do que a sua própria sombra»), de desenhos jocosos (os bonecos
Michelin ou Esso), de grafismos tomados de empréstimo aos comics, de
paradoxos (»Olhem, não há nada que ver»: fita-cola Scotch), de homofonias, de
exageros e amplificações ridículas, de gags, em suma, um tom homorístico vazio
e ligeiro nos antípodas da ironia mordaz. «Viver de amor e de Gini», isto não
quer dizer nada, não chega a ser megalomaníaco, é uma forma humorística a
meio caminho entre a mensagem de solicitação e o nonsense. Certamente, o spot
publicitário não é nihilista, não cai na incoerência verbal e no irracional
absoluto, sendo as suas declarações controladas pela vontade de pôr em
evidência o valor positivo do produto. Tal é o limite do nonsense publicitário:
nem tudo é permitido, a extravagância deve acabar por servir para realçar a
imagem do produto. Mas mesmo assim a publicida de pode levar muito longe a
lógica do absurdo, o jogo do sentido e do não- sentido, e isto num espaço em
que, sem dúvida, a parada é a inscrição da marca, mas que — e é este o ponto
essencial — de facto não se atribui os meios necessários para garantir a sua
própria credibilidade. Eis o paradoxo:
a publicidade, que é estígmatizada por todos os quadrantes como instrumen to de
doutrinação, de matraqueamento ideológico, não se atribui os meios necessários
a esse inçulcar de doutrina. Nas suas formas avançadas, hu morísticas, a
publicidade não diz nada, diverte-se consigo própria: a verda deira publicidade
troça da publicidade, do sentido como do não-sentido, es vazia a dimensão da
verdade, e é aí que está a sua força. A publicidade re nunciou, não sem lucidez, à
pedagogia, à solenidade do sentido; quanto mais lições, menos ouvintes: com o
código humorístico, a realidade do pro duto ganha tanto mais relevo quanto mais
aparece sobre um fundo de inve rosimilhança e de irrealidade espectaculares. O
discurso demonstrativo fasti dioso apaga-se, fica apenas um sinal que acende e
apaga, o nome da marca:
o essencial.
O humor publicitário diz a verdade da publicidade, a saber que ela não é
narrativa nem mensagem, nem mítica nem ideológica: forma vazia na esteira das
grandes instituições e valores sociais, a publicidade nada diz, aplana o sentido,
desarma o não-sentido trágico; o seu modelo é sobretudo o desenho animado.
Disneyland aqui e agora, nas revistas, nos muros da cidade e nas paredes do
metro, um vago surrealismo expurgado de todo o mistério, de to da a
profundidade que nos rodeia, entregando-nos à embriaguez desencanta da da
vacuidade e da inocuidade. Quando o humor se torna uma forma do minante, a
ideologia, com as suas oposições rígidas e a sua escrita de maiús culas apaga-se.
Se, na verdade, continua a ser possível identificar conteú dos ideológicos, o
funcionamento publicitário, na sua especificidade hu morística, nem por isso
deixa de curto-circuitar a dimensão ideológica, que se vê desviada do seu uso
maior. Enquanto a ideologia visa o Universal, diz a Verdade, o humor
publicitário está para além do verdadeiro e do falso, para além dos grande
significantes, para além das oposições distintivas. O código humorístico mina a
pretensão de sentido, destitui os conteúdos: em vez e em lugar da transmissão
ideológica, a dessubstancialização humorísti ca, a reabsorção do pólo referencial.
Á glorificação do sentido substituíu-se uma depreciação lúdica, uma lógica do
inverosímil.
Pela sua tonalidade ligeira e inconsistente, a publicidade, antes até de querer
convencer e incitar ao consumo, designa-se imediatamente como pu blicidade: o
medium publicitário tem como mensagem primeira o próprio medium, a
publicidade é aqui metapublicitária. Neste ponto, as categorias de alienação e de
ideologia deixam de ser operatórias: está em curso um no vo processo que, longe
de mistificar escondendo as suas molas, se apresenta como «mistificação»,
enunciando proposições que por si próprias anulam o seu índice de verdade. De
tal maneira que a publicidade já não tem grande coisa a ver com as funções
tradicionalmente ligadas à ideologia: ocultação do real, inculcar de conteúdos,
ilusão do sujeito. Sob o risco de chocar a nossa consciência contemporânea,
largamente hostil ao facto publicitário, não devemos recear situar este último, na
sua versão humorística, como par ticipante no amplo movimento
«revolucionário» da crítica da ilusão, movi mento inaugurado muito
anteriormente na pintura e continuado pela litera tura, pelo teatro, pelo cinema
experimental ao longo do século XX. Por cer to que é impossível ignorar que o
espaço publicitário adopta uma cenografia clássica, continua a ser imediatamente
legível e comunicacional, que ne nhum trabalho formal perturba a sua leitura e
que a imagem, tal como o texto, permanece submetida às imposições de uma
certa narração- representação. Em suma, tudo o que os movimentos de
vanguarda levavam a peito desconstruir. No entanto, a despeito destas diferenças
altamente sig nificativas, continua a ser verdade que o código humorístico
orienta a publi cidade segundo um registo que já não é o da sedução clássica. O
humor mantém à distância, impede o espectador de aderir à «mensagem», obsta
ao sonho diurno e ao processo de identificação. Não é isto mesmo, esta distan
ciação, o que a arte moderna precisamente realizou? Não se tratará da críti ca da
ilusão, da sedução, que animou de ponta a ponta a produção das grandes obras
estéticas? Do mesmo modo que com Cézanne, o cubismo, os abstraccionistas ou
o teatro depois de Brecht, a arte deixa de funcionar no registo da mim e da
identificação, para surgir como puro espaço pictural ou teatral, e já não como
duplo fiel do real, também com o humor a cena publicitária se desprende do
referente, adquire uma autonomia própria e eri ge-se em facto publicitário, numa
espécie de formação de compromisso entre a representação clássica e a
distanciação moderna.
Crítica da ilusão e das magias da profundidade que devemos recolocar numa
duração muito mais longa, a das sociedades modernas que, na sua ex
perimentação histórica, se definem pela sua recusa de qualquer subordina ção a
um modelo exterior, transcendente ou herdado, e correlativamente pe la meta de
uma auto-instituição, auto-produção do social por si próprio. Nu ma sociedade
cujo objectivo é possuir-se por inteiro, fazer-se, ver-se a partir da sua própria
localização, as formas da ilusão deixam de ser prevalecentes e estão destinadas a
desaparecer enquanto último vestígio de uma heterono mia social. A
representação e o seu esquema de fidelidade mimética, a sedu ção e o
desapossamento do espectador que institui, não podem subsistir em sistemas que
rejeitam todo o fundamento ou exterioridade herdados. Por to da a parte se
manifesta o mesmo processo de autonomização ou de erradica ção dos modelos
transcendentes: com a instituição do capitalismo e do mer cado, a produção
liberta-se das antigas tradições, usos e controlos; com o Estado democrático e o
princípio da soberania do povo, o poder emancipa-se dos seus fundamentos
outrora sagrados; com a arte moderna, as formas re nunciam à sedução
representativa, à ilusão da mimésis e descobrem a sua inteligibilidade já não fora
de si próprias, mas em si próprias. Recolocado neste contexto amplo, o código
humorístico já não passa de uma das figuras deste processo de destituição da
ilusão e de autonomização do social. E quando a publicidade se dá a ver como
publicidade, não faz mais do que incluir-se na obra já antiga da emergência de
uma sociedade sem opacidade, sem profundidade, uma sociedade transparente
para si própria, cínica, a despeito do seu humor cordial.
No quadro de um tempo mais curto, devemos interpretar a suspensão da ilusão
engendrada pelo código humorístico como uma das formas que assu me o
fenómeno de participação, hoje instalado a todos os níveis da socieda de. Fazer
participar os indivíduos, torná-los activos e dinâmicos, devolvê-los ao seu
estatuto de agente de decisão, tornou-se um axioma da sociedade aberta. Deste
modo o ilusionismo e a desapropriação do sujeito que este m plica torna-se
incompatível com um sistema funcionando à base ie opção e de self-service. A
educação autoritária, as formas pesadas de manipulação e de domesticação
tornam-se obsoletas porque não levam em linha de conta a actividade e
idiossincrasia do indivíduo. Em contrapartida. o código humorístico e a distância
que ele produz entre o sujeito e a informação revela- se correspondente ao
funcionamento de um sistema que exige a actividade, ainda que mínima, dos
indivíduos: não há, com efeito, humor que não re queira uma parte de actividade
psíquica do receptor. O tempo da persuasão maciça, da arregimentação
mecanicista dirigida a indivíduos rígidos eclipsa- se; o ilusionismo, os
mecanismos de identificação cega tornam-se arcaicos; com o código
humorístico, a publicidade apela para a cumplicidade espiri tual dos sujeitos,
dirige-se a eles utilizando referências «culturais», alusões mais ou menos
discretas, pressupondo que se endereça a sujeitos esclarecido. Com isso, entra na
sua época cibernética.
A moda: uma paródia lúdica
A moda é um outro indicador de ponta do facto humorístico. Basta fo lhear as
revistas de modas e olhar para as montras para nos convencermos:
tee-shirts com desenhos ou inscrições jocosas, estilo cockpit, meias com broches
representando esquimós ou elefantes (»Personalize as meias banais e sem humor
fixando-lhe um broche com as suas cores») casquette garçonne, cabelos em
ouriço, palhetas e estrelinhas de maquilhagem, óculos de strass, etc. «A vida é
curta demais para nos vestirmos tristemente». Abolindo tudo o que se aparenta à
seriedade, que parece ter-se tornado, tal como a morte, um interdito maior do
nosso tempo, a moda liquida as últimas sequelas de um mundo crispado e
disciplinar e torna-se maciçamente humorística. O chic, a distinção parecem hoje
em desuso; é por isso que o pronto a vestir suplantou a alta costura na dinâmica
viva da moda. O que substituiu o bom gosto, o grande estilo, foi o «giro»: a
idade humorística adianta-se à idade estética.
Sem dúvida, a moda desde os anos vinte não parou de «libertar» a apa rência da
mulher, de criar um estilo «jovem», de fazer recuar a aparência faustosa, de
inventar formas extravagantes ou «giras» (E. Schiaparelli, por exemplo). Mas no
conjunto, a moda feminina continuou a ser tributária até aos anos sessenta de
uma estética depurada, de uma valorização da elegân cia discreta e distinta
derivada, de certo modo, da moda dos homens a par tir de Brummell. Estamos a
sair desse universo, tanto no que se refere às mulheres como aos homens:
instala-se em seu lugar uma cultura da fantasia, o humor tornou-se um dos
valores que regem a aparência do vestuário. O chic já não consiste na adopção
do último grito, reside na piscadela de olho, na independência em relação aos
estereotipos, no look personalizado, sofisticado e heteróclito dos tenores da
moda, ou banalizado e relax do co mum dos mortais. É cada vez mais a
originalidade hipernarcísica para al guns e a uniformidade desenvolta ou
descontraída para a maioria; a socieda de narcísica coincide com a desunificação
do mundo da moda, com a lique facção dos seus critérios e imperativos, com a
coexistência pacífica dos esti los. Fim dos grandes escândalos, das grandes
excomunhões da elegância, basta que o indivíduo seja ele próprio com ou sem
rebuscamento, mas com humor; pode-se experimentar tudo, usar tudo, voltar a
usar tudo: é o tempo do «segundo grau»; na sua órbita personalizada a moda
dessubstancializou se, já não tem aposta nem desafio.
A moda râro, que apareceu há alguns anos, é a este respeito significati va. Anos
cinquenta, anos sessenta, voga de condimentos de todos os perío dos, o rétro não
se assemelha a moda alguma porque já não se define por cânones estritos e
inéditos, mas apenas pela referência flexível ao passado e pela ressurreição dos
signos defuntos da moda, mais ou menos livremente combinados. Neste sentido,
o rétro encontra-se adaptado a uma sociedade personalizada, desejosa de
afrouxar os enquadramentos e de se instituir em termos de maleabilidade.
Paradoxalmente é assim pelo culto lúdico do pas sado que o rétro se mostra mais
de acordo com o funcionamento do presen te. O rétro como anti-moda ou como
não-moda: o que não designa o fim da moda, mas a sua fase humorística ou
paródica, do mesmo modo que a antiarte nunca fez senão reproduzir e alargar a
esfera artística, nela integrando a dimensão do humor. Doravante, o destino dos
anti-sistemas é aparecerem sob o signo humorístico. O rétro não tem conteúdo,
não significa nada e aplica-se, numa espécie de paródia ligeira, a explicitar e a
sobre-exibir os significantes arcaicos da moda. Nem nostálgica nem mortífera,
esta revives cência caricatural é sobretudo meta-sistemática: o rétro põe em cena
o siste ma da moda e significa a própria moda na sua reduplicação e imitação no
segundo grau. Aqui como em toda a parte, os signos têm como último está dio o
momento em que se auto-representam, se auto-designam segundo um processo
metalógico de tipo humorístico que se ridiculariza a si próprio num efeito de
espelho. Novo paradoxo das sociedades baseadas na inovação: a partir de um
certo limiar, os sistemas desenvolvem-se virando-se para si próprios. Se o
modernismo assentava na aventura e na exploração, o pós-modernismo repousa
na reconquista, na auto-representação, humorística pa ra os sistemas sociais,
narcísica para os sistemas psíquicos. À fuga para a frente substituíu-se a
redescoberta dos fundamentos, o desenvolvimento inte rior.
«Nada está mais na moda do que aparentar não ligar à moda. Veste-se assim um
mailiot de dança ou um casaco tipo Mao, com o ar indiferente da mulher que
renunciou para sempre aos artifícios declarados vulgares para defender o
conforto ultra-clássjco dos fatos de trabalho. E como se nada fos se, com um
short de boxeur ou uma bata de enfermeira habilmente acessori zados, fica-se no
ponto máximo da moda». Desde osjeans, a moda não pa rou ainda de promover
as roupas originárias do mundo do trabalho, do exército, do desporto. Calças de
peitilho, conjuntos de serapilheira, blusas de pintor, parkas e o casaco de
marinheiro, estilo /ogging, saia camponesa o frívolo identifica-se com o sério e o
funcional, a moda macaqueia o mundo profissional e, ao fazê-lo, adopta um
estilo explicitamente paródico. Imitan do as roupas utilitárias, a moda
maleabiliza os seus pontos de referência, a solenidade «como deve ser» dissipase, as formas perdem o que podiam ter de amaneirado ou estudado, a moda e o
seu exterior deixam de se opor radi calmente, em paralelo com o movimento, por
toda a parte visível, de dene gação das oposições. Hoje a moda pertence ao
desleixado, ao descontraído; o novo deve parecer usado e o estudado
espontâneo. A moda mais sofistica da imita e parodia o natural, também aqui em
paralelo com a descrispação das instituições e costumes pós-modernos. Quando
a moda deixa de ser um pólo altamente marcado, o seu estilo torna-se
humorístico, tendo por motor o plágio vazio e neutralizado.
A paródia não tem somente por objecto o trabalho, a natureza ou a própria moda;
todas as culturas e a cultura se vêem hoje anexadas pelo pro cesso humorístico.
E o que acontece com a voga do afro-styie: assim que é reciclado no registo da
moda, o que era ritual e tradicional perde toda a es pessura e cai na mascarada.
Eis o novo rosto do etnocídio: ao extermínio das culturas e populações exóticas
sucedeu um neo-colonialismo humorísti co. Impossibilidade dos Brancos de
respeitarem o exterior e agora até o inte rior: já não é sequer a exclusão, a
relegação que governa a nossa relação com o Outro; a sociedade pós-moderna é
demasiado gulosa de novidades pa ra rejeitar seja o que for. Pelo contrário,
acolhemos tudo, exumamos e fago citamos tudo, mas ao preço da ridicularização
desenvolta do Outro. Sejam quais forem as nossas disposições subjectivas, a
representação do Outro através da moda assume uma figura humorística, porque
moldada segundo uma lógica do inédito pelo inédito, expurgada de toda a
significação cultu ral. Não se trata de desprezo, mas de uma paródia inelutável,
independente das nossas intenções.
Sem que se lhe preste atenção, um fenómeno inteiramente inédito e, pa ra mais,
de massa surgiu na moda destes últimos anos; actualmente, com efeito, a escrita
foi anexada pelo vestuário. Um pouco por toda a parte, nos jeans, camisas,
camisolas, as marcas e as inscrições oferecem-se ostensiva- mente ao olhar; nas
tee-shirts, letras, siglas, sintagmas, fórmulas, exibem-se com largueza. Invasão
sinalética e tipográfica. Questão de publicidade? Se ria reduzir excessivamente o
problema, porque aquilo que se vê inscrito na roupa muitas vezes nada tem a ver
com o nome ou o produto das firmas. Vontade de quebrar o anonimato das
massas, de ostentar a pertença de gru po, uma classe etária, uma identidade
cultural ou regional? Não é isso se quer, as roupas são usadas por qualquer
pessoa, em qualquer altura, esta peça ou aquela, independentemente de qualquer
afirmação de identidade. De facto, integrando a escrita na sua lógica, a moda fez
recuar as suas fron teiras, alargou o campo das combinações possíveis e, com
isso, são a escrita, a cultura, o sentido, a pertença que se vêem afectados de um
coeficiente hu morístico. Os signos são desligados da sua significação, do seu
uso, da sua função, do seu suporte, fica apenas um jogo paródico, um conjunto
parado xal onde o vestuário humoriza o escrito, o escrito humoriza o vestuário:
Gu tenberg em BD descontraído e disfarçado.
Tudo o que entra na órbita da moda fá-lo sob o signo do humor e, si
multaneamente, tudo o que se acha fora de moda conhece o mesmo destino. Que
há de mais ridículo, de mais engraçado, retrospectivamente, do que es sas roupas
e penteados que faziam furor há alguns anos? O fora de moda, o próximo e o
distante, faz rir, como se fosse necessário o recuo do tempo pa ra realizar em
toda a sua radicalidade a natureza humorística da moda. Ao humor ligeiro,
descontraído e vivo do presente, corresponde o humor invo luntário, vagamente
empertigado do fora de moda. Se, por conseguinte, a moda é um sistema
humorístico, não é apenas em função dos seus contéudos mais ou menos
contingentes; muito mais em profundidade, é-o pelo seu próprio funcionamento,
pela sua lógica interminável de promoção do novo ou do pseudo-novo e,
correlativamente, de desqualificação das formas. A moda é uma estrutura
humorística, e não estética, uma vez que, no seu re gisto, tanto o novo como o
antigo se acham inelutavelmente dotados de um coeficiente «giro», e isto em
função do seu processo de inovação permanente e cíclico. Não há novidade que
não pareça uma forma frívola, curiosa e di vertida; não há rétro que não faça
sorrir.
Como a publicidade a moda nada diz, é uma estrutura vazia, por isso é um erro
ver nela uma forma moderna do mito. O imperativo da moda não é narrar ou
fazer sonhar, mas mudar, mudar por mudar e a moda só existe através deste
proceso de desqualificação incessante das formas. Ao fazê-lo, ela é a verdade
dos nossos sistemas históricos baseados na experimentação acelerada, a
exposição do seu funcionamento intrínseco sob uma modalidade lúdica e
despreocupada. A transformação, com efeito, encontra-se aqui em acto, mas
mais na sua forma do que nos seus conteúdos: por certo que a moda inova, mas
sobretudo parodia a mudança, caricatura a inovação ao programar o ritmo das
suas transformações, ao acelerar a cadência dos seus ciclos, ao identificar o novo
com a promoção de gadgets ao simular em ca da estação a novidade
fundamental. Grande paródia inofensiva do nosso tempo, a moda, a despeito do
seu forcing em matéria de novidades, da sua dinâmica indutora da obsolescência
dos signôs, não é mortífera nem suicidá ria (R. Kõnig), mas humorística.
Processo humorístico e sociedade hedonista
O fenómeno humorístico nada deve a qualquer voga efémera. É dura- doura e
constitutivamente que as nossas sociedades se instituem sob um mo do
humorístico: pela descontracção ou descrispação das mensagens que en gendra,
o código humorístico faz, com efeito, parte do vasto dispositivo poli morfo que,
em todas as esferas, tende a maleabilizar ou a personalizar as estruturas rígidas e
coercivaS. Em vez das injunções de imposição, da distân cia hierárquica e da
austeridade ideológica, a proximidade e o desanuvia mento homoríStico, a
linguagem própria de uma sociedade flexível e aberta. Dando direito de cidade à
fantasia, o código humorístico aligeira as mensa gens e insufla-lhes uma rítmica
e uma dinâmica que acompanham a promo ção do culto da naturalidade e da
juventude, O código humorístico produz enunciados «jovens» e tónicos, abole o
peso e a gravidade do sentido; está para as mensagens como a «linha» e a
«forma» estão para o corpo. Do mes mo modo que a obesidade se torna
«interdita» num sistema que exige a disponibilidade e a mobilidade permanente
dos sujeitos, assim os discursos en fáticos se eclipsam, incompatíveis como se
revelam com a exigência de ope racionalidade e de celeridade do nosso tempo. E
preciso ser contundente, ter flash; os pesos dissipam-se em benefício da «vida»,
dos spots psicadélicos, da esbelteza dos signos: o código humorístico electrifica
o sentido.
Face jovial do processo de personalização, o fenómeno humorístico tal como se
manifesta nos nossos dias é inseparável da era do consumo. Foi o boom das
necessidades e a cultura hedonista que o acompanhou que torna ram possíveis
tanto a expansão humorística como a desqualificação das for mas cerimoniosas
de comunicação. A sociedade em que a felicidade de mas sa se converte em
valor cardial é inelutavelmente levada a produzir e a con sumir a grande escala
signos adaptados a este novo ethos, ou seja, mensa gens bem dispostas, felizes,
capazes de proporcionar a todo o momento, pa ra a maioria, um prémio de
satisfação directa. O código humorístico é real mente o complemento, o «aroma
espiritual», do hedonismo de massa, na con dição de não assimilarmos este
código ao sempiterno instrumento do capital, destinado a estimular o consumo.
Sem dúvida, as mensagens e comuniça ções engraçadas correspondem aos
interesses do marketing, mas o verdadei ro problema é saber porquê. Porquê a
vaga dos comics mesmo entre os adultos quando, há pouco tempo ainda, em
França, a BD era ignorada ou desprezada? Porquê uma imprensa saturada de
títulos jocosos e ligeiros? Porque é que o spot humorístico substituiu o reclame
de outrora, «realista» e falador, sério e de texto pesado? Impossível darmo-nos
conta da evolução apenas através do imperativo de vender, dos progressos do
design ou das técnicas publicitárias. Se o código humorístico se impôs, «pegou»,
é porque corresponde a novos valores, a novos gostos (e não somente aos
interesses de uma classe), a um novo tipo de individualidade que aspira ao ócio e
à des contracção, alérgico à solenidade do sentido, ao cabo de meio século de so
cialização via consumo, Decerto, o humor eufórico destinado a um largo público
não nasceu com a sociedade de consumo: nos EUA, desde o início do século,
existe um mercado da BD, o desenho animado conhece um gran de êxito na
mesma época, reclames divertidos começam a aparecer por vo!ta de 1900 (o
pneu Michelin bebe o obstáculo», silhueta jovial do «Père Lus tucru», facécias
do trio «Ripolin»). No entanto, é somente com a revolução das necessidades,
com a emergência das novas finalidades hedonistas que a generalização e a
legitimação do humor lúdico se tornarão possíveis.
Actualmente, o humor pretende-se «natural» e tónico: o correio dos leitores, os
textos jn em Liberation ou Actuei, por exemplo, fazem um largo uso de re
exclamativas e de epifenómenos, de interjeições de expres sões quotidja e
directas; em momento algum deve o humor parecer es dado ou demasiado
intelectual: «De A (pronunciem 'ei') a W (pronunciem dabliú), de AC/DC a Wild
Horses, tudo o que é preciso saber (e aprender) sobre os grupos de hard rock
para não se fazer figura de parvo na festança de fim de ano organiza pela filha do
reitor. Não digo isto segunda vez. Ao trabalho kids, ao trabalho!» (Lib O código
humorístico já não se identifi ca com o tacto, com a elegância do saber-viver
burguês; veicula a linguagell) das ruas, um tom familiar e despreocupado A
concorrência entre as classes em vista da dominação simbólica só à superfície
esclarece um fenómeno cuja origem deve ser situada na revolução global do
modo de vida e não nas lutas em torno do estatuto e do prestígio. nge de ser um
instrumento de nobre za cultural, o código humorístico esvazia a distinção e a
respeitabilidade dos signos de uma época anterior, destrona a ordem das
proeminências e distân cias hierárquicas em benefício de uma banalização relax,
promovida hoje à categoria de valor cultural Do mesmo modo não é de aceitar a
lamentação marxista: são tantas mais as representações joviais quanto mais
flionótono e pobre é o real; a hipertrofia lúdica compensa e dissimula a real
infelicidade quotidia Na realidade, é a um trabalho de aligeírarn dos signos, a fa
zê-los soltar o lastro de toda a gravidade que se aplica o código humorístico,
verdadeiro vector da democratizaç dos discursos por meio de uma des
substancialização e neutralização lúdicas. Democratização que se liga menos à
acção da ideologia igualit do que ao Sul-to da sociedade de consumo, que alarga
as paixões individualistas induz um desejo de massa de viver li vremente e
desvalorizando correlativamente as formas estritas: a cultura do espontâneo, free
style, de que o humor actual não passa de uma das ma nifestações caminha a par
do individualismo hedonjsta. historicamente só foi tornada Possível pelo ideal
int da liberdade individual nas socie dades personalizadas
É, porém, verdade que o humor que vemos transbordar hoje um pouco por toda a
parte não é uma invenção histórica radjcalmente inédita. Seja qual for a
novidade do humor pop, há certos laços de filiação que o unem ainda a um
«estado de alma» particular, de origem anterior, o sense of hu Pnour, difundido
ao longo dos séculos Xviii e XIX, nomeadamente em In glaterra. Pelo seu
carácter convjvjal com efeito, o humor contemporâneo li ga-se ao humor
Clássico, ele próprio já sob muitos aspectos indulgente e ameno; mas se o
primeiro resulta da socialização hedonista, o segundo deve ser associado ao
advento das sociedades individualistas, a essa nova significação da unidade
humana relativamente ao conjunto colectivo, que teve como efei to, entre outros,
o de contribuir para desvalorizar e refrear o uso da violên cia. O humor,
diferentemente da ironia, surge como uma atitude que traduz uma espécie de
simpatia, de cumplicidade, ainda que fingidas, para com o sujeito visado: ri-se
com ele e não dele. Como não associar este elemento afectivo próprio do humor,
esta colaboração subjectiva, à humanização geral das relações interpessoais
correlativas da entrada das sociedades ocidentais na ordem democrática Houve
uma suavização do cómico co mo houve uma suavização das punições, como
houve uma diminuição da violência de sangue; hoje não fazemos mais do que
continuar por outros meios esta moderação. «Optímismo triste e pessimismo
alegre» (R. Escarpit), o sense of hurnour consiste em acentuar o lado engraçado
das coisas, sobre tudo nos momentos difíceis da vida, em gracejar, por penosos
que os aconte cimentos sejam. Mesmo hoje, quando a tonalidade dominante do
cómico se desloca, o humor «digno» continua a ser valorizado: os filmes de
guerra americanos, por exemplo, tornaram-se mestres na arte de pôr em cena he
róis obscuros cujo humor frio é proporcional aos perigos arrostados: após o
código cavalheiresco da honra, o código homoristico com ethos democrático.
Impossível, com efeito, compreender a extensão deste tipo de comportamen to
sem o ligar à ideologia democrática, ao princípio da autonomia individual
moderna, que permitiu a valorização das declarações excêntricas voluntárias, das
atitudes não conformistas, desprendidas mas sem ostentação nem desa fio, de
acordo com uma sociedade de iguais: «Uma pitada de humor basta para tornar
todos os homens irmãos» O humor preenche esta dupla função democrática:
permite ao indivíduo desligar-se, ainda que pontualmente da imposição do
destino, das evidências, das convenções, afirmando com ligei reza a sua
liberdade de espírito, e ao mesmo tempo impede o ego de se levar a sério, de
forjar uma imagem superior ou altaneira de si próprio, de se ma nifestar sem
auto-domínio, de maneira impulsiva ou brutal. O humor pacifi ca as relações
entre os seres, desarma os motivos de fricção, conservando a exigência da
originalidade individual. Daí o prestígio social do humor, códi go de
aprendizagem igualitária que devemos conceber como um instrumento de
socialização paralelo aos mecanismos disciplinares. Apesar de tudo, e sendo
embora auto-controlado, disciplinado até na sua atitude humorística, o homem
moderno náo pode ser identificado com uma presa cada vez mais submissa à
medida que se afirmam as tecnologias microfísicas do poder: pe lo humor, com
efeito, o indivíduo disciplinar revela já um desprendimento, uma desenvoltura,
pelo menos aparente, que inauguram a esse nível uma emancipação da esfera
subjectiva que, a partir de então, não parámos de alargar.
O sense of humour, com a sua dualidade de sátira e de sensibilidade fi na, de
extravagância idiossincrática e de seriedade, correspondia à primeira revolução
individualista, ou seja ao desenvolvimento dos valores de liberda de, de
igualdade, de tolerância enquadrados pelas normas disciplinares de autocontrolo; com a segunda revolução individualista veiculada pelo hedo nismo de
massa, o humor muda de tonalidade, ligando-se prioritariamente aos valores de
cordialidade e de comunicação. Assim, na imprensa e sobre tudo no humor
quotidiano não se trata, no fundo, tanto de ridicularizar a lógica, de denunciar ou
de satirizar, ainda que com benevolência, certos acontecimentos, como de
estabelecer simplesmente um ambiente relax, dis tendido: de certo modo, o
humor preenche uma função fática. Dessubstan cialização do cómico que
corresponde à dessubstancialização narcísica e à sua necessidade de proximidade
comunicacional: humor pop e código convi vial fazem parte de um mesmo
dispositivo, são ambos correlativos da cultura psi e da individualidade narcísica,
ambos produzem «calor» humano numa sociedade que valoriza as relações
personalizadas, ambos democratizam os discursos e comportamentos humanos.
Se o código humorístico conquistou tamanho lugar, mesmo na fala de todos os
dias, isso não se liga apenas ao hedonismo do consumo, mas também à
psicologização das relações humanas que paralelamente se desenvolveu. O
humor fun e descontraído passa a do minar quando a relação do indivíduo com o
outro e consigo próprio se psico logiza ou esvazia de dimensão colectiva,
quando o ideal se transforma no es tabelecimento de «contacto» humano, quando
já ninguém, no fundo, acredi ta na importância das coisas. Não se tomar a sério:
esta democratização do indivíduo já não exprime somente um imperativo
ideológico igualitário, tra duz também a ascensão desses valores psi que são a
espontaneidade e a co municação, traduz uma transformação antropológica, a
vinda ao mundo de uma personalidade tolerante, sem grandes ambições, sem
uma ideia elevada de si, sem crença firme. O humor que nivela as figuras do
sentido em pisca-las de olho lúdicas molda-se à imagem da flutuação narcísica,
que se ostra uma vez mais aqui um instrumento democrático.
Os domínios mais íntimos, outrora tabús, o sexo, o sentimento, entram o jogo;
vejam-se os «pequenos anúncios» que se pretendem a todo o custo ngraçados e
originais: «Mais belo que James Dean, mais depressa do que m Da tona. Mais
arriscado do que Mad Max... Calha-te, respondes, depois vê-se». Os tempos
mudaram: já não fica mal exibir os problemas pessoais, confessar as próprias
fraquezas, desvendar a solidão que se sente, consistin do o ideal, no entanto, em
exprimir tudo isto no «segundo grau», através de hipérboles modernistas cuja
amplificação é de tal ordem que já não signifi cam nada a não ser o gosto
humorístico do destinador. Simultaneamente, o humor torna-se uma qualídade a
exigir do outro;: «Es viva, simpática, gos tas de dar e receber, de brincar, viajar,
rir, rir, acariciar, de amor, amor, hé, hé, eu também... Como é que eu fiz para não
te descobtir? Ah! Ês um bocadinho tímida? Hum, eu também, se quiseres
(entoação de Coluche)». Dizer tudo, mas não se levar a sério, o humor
personalizado é narcísico, é tanto uma barreira protectora do sujeito como um
meio cool de este se ence nar. A dualidade pós-moderna reaparece aqui: o
código privilegiado de co municação com o outro estabelece-se de modo
humorístico, enquanto que a relação do indivíduo consigo próprio se baseia no
trabalho e no esforço (te rapias, regimes, etc.). No entanto, um novo híbrido
apareceu: «O riso tera pêutico. Método suave, profundo, de redescobrir uma
energia vital decupli cada. Por meio de técnicas de respiração e de solicitação
sensorial, aborda mos o nosso corpo e a nossa mente numa óptica nova feita de
abertura e de disponibilidade. Este riso vindo das Indias', reintroduz na nossa
vida um fôlego antigo e esquecido».
O código humorístico penetrou no universo feminino, durante muito tem po
afastado dessa dimensão, votado como estava a uma frivolidade das apa rências,
na realidade paralela, como o observou. E. Sullerot, a uma inalterá vel seriedade
conservadora e moralizante. Foi com o aparecimento da mu lher «consumidora»
no decurso dos anos vinte e trinta que o arquétipo femi nino começou a mudar,
passando de uma certa melancolia a uma jovialida de exibida, ao optimismo do
keep srniling. Hoje, o humor derrama-se larga mente na imprensa feminina,
desde há algum tempo a moda das roupas de dentro femininas passou até a ser
apresentada em comic strips (El/e), há mulheres que são cartoonistas célebres, a
escrita, sobretudo depois da ofen siva feminista, emprega livre e
desculpabilizadamente as formas humorísti cas; nos folhetins americanos, as
mulheres têm as mesmas maneiras de falar e as mesmas atitudes descontraídas
que os homens. A sociedade hedonista, generalizando os gostos fun, legitimou o
humor em todas as categorias so ciais, em todos os grupos de idade e de sexo,
um humor de resto cada vez mais idêntico, acessível a todos, dos «sete aos
setenta e sete anos».
Destino humorístico e idade pós-igualitária
Consequência última da idade do consumo, o processo humorístico inves te a
esfera do sentido social, os valores superiores tornam-se paródicos, inca pazes
como são de suscitar qualquer investimento emocional profundo. Sob o impulso
dos valores hedonistas e narcísicos, os referenciais importantes es vaziam-se da
sua substância, os valores que estruturavam ainda o mundo da primeira metade
do século XX (poupança, castidade, consciência prof issio nal, sacrifício,
esforço, pontualidade, autoridade), já não inspiram respeito, convidam mais ao
sorriso do que à veneração: espectros de vaudevilies, algo de vagamente vetusto
ou ridículo se prende, contra nossa vontade, aos seus nomes. Depois da fase de
afirmação gloriosa e heróica das democracias em que os signos ideológicos
rivalizavam em ênfase (a nação, a igualdade, o so cialismo, a arte pela arte) com
os discursos hierárquicos destronados, entra mos na era democrática pósmoderna que se identifica com a dessubstancia lização humorística dos critérios
sociais maiores.
Deste modo o processo humorístico não designa apenas a produção deli berada
dos signos «giros», mas simultaneamente o devir paródico das nossas
representações e isto para além do controlo voluntário dos indivíduos e gru pos:
actualmente, mesmo as coisas mais sérias, mais solenes — sobretudo essas —
por contraste assumem uma tonalidade cómica. Que poderá escapar ainda, no
momento em que o próprio conflito político, a divisão direita- esquerda se
dissolve numa paródia de rivalidade bem simbolizada pelos no vos e altamente
risíveis espectáculos que são os debates televisivos? Ao per sonalizar-se, a
representação do político torna-se largamente humorística:
quanto mais as grandes opções deixam de se opor drasticamente, mais o político
se torna caricatural em cenas de catch a dois ou a quatro; quanto mais a
desmotivação política cresce, mais a cena política se assemelha a um strip-tease
de boas intenções, de honestidade, de responsabilidade e se meta morfoseia em
mascarada bufa. O estádio supremo da autonomia do político não é a
despolitização radical das massas, é a sua espectacularização, a sua decadência
burlesca: quando as oposições entre partidos se tornam uma far sa e são cada vez
mais como tal consideradas, a classe política pode funcio nar em sistema
fechado, apurar-se em números de televisão, entregar-se às delícias das
manobras dos estados-maiores, das tácticas burocráticas, prosse guindo,
paradoxalmente, o jogo democrático da representação, ante a apatia divertida do
eleitorado. Instrumento de autonomizaçção dos sistemas e apa relhos, e aqui do
político, o processo humorístico entrou ele próprio na sua fase de autonomia: nos
nossos dias, a representação humorística investe os sectores mais «graves»,
afirma-se segundo uma necessidade incontrolada, in dependentemente das
intenções e finalidades dos actores históricos. Tornou- se um destino.
Novembro de 1980. Coluche, candidato às eleições presidenciais, depara com
uma ampla corrente de simpatia, enquanto se forma uma comissão de apoio
«séria». Poderia imaginar-se fenómeno mais revelador do devir hu morístico da
política? Um bobo candidato: já ninguém se escandalizou ex cepto a própria
classe política, sobretudo a de esquerda. No fundo, toda a gente fica encantada
ao ver um cómico profissional ocupar a cena política, uma vez que esta se
transformou já em espectáculo burlesco: com Coluche, a mascarada política
limita-se a subir aos extremos. Quando o político perde a eminência e se
personaliza, não é supreendente que um artista de varieda des consiga reunir
uma percentagem notável de intenções de voto destinadas inicialmente aos
líderes políticos, esses cómicos de segundo plano: pelo me nos, rir-se-á por uma
vez a valer. O efeito Coluche não procede nem de uma nostalgia carnavalesca
nem de um lógica de transgressão (que supõe uma or dem fundamentalmente
séria); devemos ver nele uma paródia pura a investir os mecanismos
democráticos, uma paródia que exacerba a paródia do políti co.
Os valores, a política, a própria arte são presa desta degradação irresistí vel. Os
bons velhos tempos do fim do século passado e do início do século XX em que a
arte causava escândalo terminaram: doravante, as obras mais despojadas, mais
problemáticas, as mais «minimais» — sobretudo essas — têm um efeito cómico,
independentemente do seu conteúdo. Tem-se glosado muito acerca do humor
dos artistas pop, sobre a dessacralização da arte que operaram, mas, mais
profundamente, foi o conjunto da arte moderna que adquiriu pouco a pouco uma
tonalidade humorística. Com as grandes des construções cubistas e a fantasia
surrealista, com a abstracção geométrica ou expressionista e a explosão das
correntes pop, novos realistas, land ar!, body art, happenings, performances,
pattern, pós-modernismo de hoje, a arte deixou de «parecer séria». Na sua raiva
de inovação, a arte dissolveu todas as suas referências clássicas, renunciou ao
saber-fazer e ao belo, não pára de destruir a representação, sabota-se enquanto
esfera sublime e entra, por essa via, na era humorística, esse último estádio de
secularização das obras, está dio em que a arte perde o seu estatuto transcendente
e surge como uma acti vidade entregue à escalada do «seja o que for», à beira da
impostura. À caça de materiais desqualificados, de «acções», de formas e
volumes elementares, de novos suportes, a arte torna-se engraçada à força de
simplicidade e de reflexividade sobre a sua própria actividade, à força de tentar
escapar à Ar te, à força de novidades e de «revoluções». O humor das obras já
não é fun ção do seu teor intrínseco, associa-se à extrema radicalização da
operação artística, às suas desterritorializações-limite, que surgem aos olhos do
grande público como gratuitas e grotescas. A dissipação dos grandes códigos
estéti cos, o extremismo das vanguardas, transformou de maneira radical a per
cepção das obras, que se tornam equivalentes a absurdos gadgets de luxo.
Mais directamente ainda, com a fragmentação extrema dos particularis mos e a
exasperação minoritária das redes e associações (pais celibatários, lésbicas
toxicómanas, associações de agorafóbicos e claustrofóbicos, de obe sos, de
calvos, de feios e feias, naquilo a que Roszak chama «rede situacio nal»), é o
próprio espaço da reivindicação social que assume uma coloração humorística.
Risibilidade ligada à desmultiplicação, à miniaturização inter minável do direito
às diferenças; à semelhança do jogo das caixas que têm dentro outras caixas cada
vez mais pequenas, o direito à diferença não pára de subdividir os grupos, de
afirmar as micro-solidariedades, de emancipar novas singularidades nas
fronteiras do infinitesimal. A representação hu morística resulta do excesso
pletórico das ramificações e subdivisões capila res do social. Novos siogans: Fat
is beautifui, Bald is beautifui; novos gru pos: Jewish Lesbian Gang, homens na
menopausa, Non-parents organisa tions, quem não vê o carácter humorístico
desta afirmação de si e da socia bilidade pós-moderna a meio caminho entre o
gadget e a necessidade históri ca; cómico instantâneo, devemos acrescentar, que
se esgota imediatamente, pois qualquer associação entra com toda a rapidez nos
costumes do tempo. Ao transistorizar-se, a divisão social perdeu o seu fulgor
trágico, a sua paté tica centralidade anterior, gadgetizou-se sob a proliferação
extrema das dife renciações microscópicas.
Sem dúvida, nem todas as divisões são desta ordem: os conflitos centra dos em
torno da produção, da repartição, do ambiente, continuam portado res de
caracteres incontestavelmente sérios. No entanto, à medida que a ideologia
revolucionária se dissipa, as acções sociais, mesmo que enquadra das por
aparelhos burocráticos, exploram uma linguagem e siogans mais descontraídos;
aqui ou ali, cartazes, bandeirolas, autocolantes, já não hesi tam em adoptar um
estilo humorístico, mais ou menos sarcástico, mais ou menos negro (os
antinucleares, os ecologistas); as manifestações dos movi mentos «de ruptura»
vão muitas vezes coloridas, por vezes mascaradas, que acabam em «festa»: com
algum atraso, também o militantismo a pouco e pouco se descrispa. Em
particular nos novos movimentos sociais, assistimos a uma vontade mais ou
menos acentuada de personalizar as modalidades do combate, de «arejar» o
militantismo, de deixar de separar completamente a política da existência, com
vista a uma experiência mais global, reivindicati va, comunitária,
ocasionalmente «divertida». Levar os problemas a sério e lu tar, está bem; mas
não perder o sentido do humor; a austeridade militante já não se impõe com a
necessidade de outrora, a descontracção dos costumes hedonistas e psicologístas
imiscui-se até na ordem das acções sociais que nem por isso excluem algumas
vezes confrontos duros.
Tal como a dispersão polimorfa dos grupos humoriza a diferenciação so cial, do
mesmo modo o hiper-individualismo do nosso tempo tende a susci tar uma
apreensão do outro de tonalidade cómica. À força de personaliza ção, cada
indivíduo se torna um bicho curioso para o outro, vagamente bi zarro e, todavia,
desprovido de qualquer mistério inquietante: o outro como teatro absurdo. A
coexistência humorística, eis ao que nos força um universo personalizado;
outrém já não consegue chocar, a originalidade perdeu a sua força de
provocação, resta apenas a estranheza irrisória de um mundo em que tudo é
permitido, em que se vê de tudo e em que nada suscita mais do que um sorriso
passageiro. Actualmente os adultos vivem, vestem-se, «ba tem-se» como os
cow-boys e os Índios da grande época durante os seus me ses de férias; outros
«adoptam» e acarinham bonecas como se fossem crian ças, deambulam de
patins, exibem com vigor e pormenor os seus problemas sexuais nas ondas da
rádio; as crenças e seitas, as práticas e modas mais ini magináveis descobrem
acto contínuo adeptos em massa; o outro entrou na fase do «tanto faz», do
desalinhamento burlesco. A partir daqui, o modo de apreensão de outrém não é
nem a igualdade nem a desigualdade, é a curio sidade divertida, estando cada um
de nós condenado a aparecer a maior ou menor prazo como curioso, excêntrico,
aos olhos dos outros. Última dessa cralização, a relação inter-humana é aqui
expurgada da sua gravidade ime morial no mesmo movimento que leva à queda
dos idolos e grandes deste mundo; última expropriaÇão a imagem que
oferecemos a outrém vê-se vota da ao cómico. DesapoSSamento correspondente
ao instituído pelo inconscien te e pelo recalcamento: tanto na ordem subjectiva
como j o in divíduo conhece uma mesma espoliação na sua representação. Com
o in consciente, o ego perde o domínio e a verdade sobre si próprio; com o pro
cesso humorístico o Eu degradase em fantoche ectopláSmico. Por isso não
devemos ignorar o preço e a parada da era hedonista que dessubStaflcializ0I
tanto a representação como a própria unidade do indivíduo. O processo de
personalização não se contentou com quebrar desvalorizar, para falarmos como
Nietzsche, a representação do ego por meio do psicanaliSmO ao mes mo tempo
degradou a representação inter fazendo de outrém um ser do «terceiro tipo», um
gadget bizarro.
Com o devir humorístico das significações sociais e dos seres, é a última fase da
revolução democrática que ganha corpo. Se esta se define por um trabalho de
rradicaÇã0 progressiva de todas as formas de hierarquia subs tancial e se aplica a
produzir uma sociedade sem jssernelhaílÇas de essên cia, sem elevação nem
profundidades o processo humorístico que faz com que jnstituições e grupos
percam definitivamente a sua majestade prolonga de facto a meta secular da
modernidade democrática, ainda que com instru mentos diferentes dos da
ideologia igualitária. Com a era humorística que diminui as distâncias, O social
torna-se definitivamente adequado a si pró prio, já nada exige yeneraÇão, o
sentimento das alturas pulveriza-se numa desenvoltura generalizada o social
fecha-se na sua plena autonomia de acor do com a essência do projecto
democrático. Mas simultafleamente a era hu morística e personalizada introduz
efeitos tão inéditos no regime do disposi tivo igualitário que temos o direito de
perguntar se não teremos já encontra do em sociedades de algum modo «pós
Com efeito, a sociedade que o trabalho da igualdade se preparava para organizar
sem terogeneida de nem j está em vias de metamOrf05e outrém num estranho
radical, num verdadeiro mutante incongruente; a sociedade baseada no princípio
do valor absoluto de cada pessoa é a mesma em que os seres ten dem a tornar-se
uns para os outros zombies inconsistentes ou desopilafltes a sociedade em que se
manifesta o direito de todos ao reconhecimento social é também a sociedade em
que os indivídUoS deixam de se reconhecer como absolutamente da mesma
natureza à força de hipertrofia individualista. Quanto maior é o reconhecimento
igualitário, maior também a diferenciação minoritária, enquanto o encontro
inter-humano adquire uma estranheza ridícula. Estamos destinados a afirmar
cada vez mais igualdade «ideológica» e simultaneamente a sentir
heterogeneidades psicológicas crescentes. Depois da fase heróica e universalista
da igualdade, ainda que evidentemente limita da por acentuadas diferenças de
classe, a fase humorística e particularista das democracias em que a igualdade
troça da igualdade.
Microtecaologia e sexo pomo
A fragmentação extrema da divisão social corresponde de certo modo à nova
tendência tecnológica para o «ligeiro»: à hiperpersonalização dos indiví duos e
dos grupos corresponde a corrida à miniaturização, acessível a um público cada
vez mais amplo. Têm-se apontado desde há muito os aspectos risíveis das
inovações tecnológicas modernas, a sua proliferação de acessó rios, as suas
aberrações de funcionalidade absoluta (OS filmes de J. Tati, por exemplo); mas
na época da hi-fi, do vídeo, do «mmi», surgiu uma nova di mensão que deixa
muito para trás o ridículo dos automatismos «inúteis». Ac tualmente, a
apreensão humorística procede não da excrescência gratuita, mas da capacidade
tecnológica de ocupar cada vez menos espaço. Cada vez mais pequeno: Ultra
Com pact Machine, tal como o outro se tornou poten cialmente um gad à força
de desestandardização, a tecnologia torna-se humorística à força de «compacto»,
de dimensões reduzidas: niini-aparelha gem, micro-televisão, walkman, jogos
electrónicos em miniatura, computa dor de bolso. Efeito cuja graça reside no
facto de o mais pequeno se ligar ao mais complexo; o interminável processo de
redução suscita o divertimento maravilhado, comovido, do profano: chegámos já
.às máquinas subminiaturi zadas, à caneta electrónica, à mini-tradutora de
resposta vocal, à televisão de pulso,flat-TV. Neste exasperar da miniaturização,
o funcional e o lúdico distribuem-se de maneira inédita; uma segunda geração de
gadgets (mas é evidente que esta palavra já não é a mais adequada) surgiu, para
lá da fun ção decorativa, para lá dos mecanismos meta-funcionais. Actualmente
os ro bota, os microcomputadores são frios, «inteligentes», económicos: o
compu tador doméstico gere o orçamento, compõe as ementas em função das
esta ções do ano e dos gostos da família, substitui-se à baby-sitter, previne a
polícia ou os bombeiros se disso for caso. O cómico grotesco-surrealista dos gad
gets deu lugar a uma ficção científica soft. Fim da ridicularização: com a
rniniaturização informática, o cómico dos objectos moderou-se no momento em
que o jogo se torna precisamente um alvo visado pelas tecnologias de ponta
(jogos de vídeo); small is beautiful: à semelhança do que se verificou com os
costumes, o impacto humorístico das técnicas perdeu-se na vaga dos
microprocessadores. Teremos talvez cada vez menos ocasião de troçar dos
produtos da técnica, hoje é a técnica que anexa o sector do humor: no Japão
tornaram-se correntes robots domésticos de aparência humana, verdadeiras
imitações programadas, que se destinam nomeadamente a rir e a fazer rir.
O tecnológico tornou-se pomo: o objecto e o sexo entraram, com efeito, no
mesmo ciclo ilimitado da manipulação sofisticada, da exibição e da proe za, dos
comandos à distância, das interconexões e comutações de circuitos, de «teclas
sensitivas», de combinatórias livres de programas, de existência vi sual absoluta.
E é isso que impede que se leve a pornografia completamente a sério. No seu
estádio supremo, o pomo é engraçado, o erotismo de massa inverte-se em
paródia do sexo. Quem não se surpreendeu a sorrir ou a rir francamente numa
sex-shop ou durante uma projecção X? Passado um certo limiar, o excesso
«tecnológico é burlesco. Cómico que vai muito para além do prazer da
transgressão ou do levantar do recalcamento: o sexo-máquina, o sexo entregue
ao jogo do «tanto faz», o sexo alta-fidelidade, é assim o vec tor humorístico. O
pomo como sexo tecnológico, o objecto como tecnologia pomo. Como sempre, o
estádio humorístico designa o estádio último do pro cesso de
dessubstancialização: o pomo liquida a profundidade do espaço erótico, a sua
conexão com o mundo da lei, do sangue, do pecado e meta morfoseia o sexo em
tecnologia-espectáculo, em teatro indissociavelmente hard e humorístico.
Narcisismo enlatado *
Quando o social entra na fase humorística, começa o neo-narcisismo, úl timo
refúgio cerimonial de um mundo sem potência superior. À desvaloriza ção
paródica do social corresponde o sobre-investimento litúrgico do Eu:
No original, narc,ssis en bofte: o autor Joga com o duplo sentido da expressão
«en boi te», que significa, ao mesmo tempo, «enlatado» e «na discoteca» (a
última pai-te do capitulo descreve uma discoteca parisiense) (NT.).
mais ainda, o devir humorístico do social é uma peça essencial na emergên cia
do narcisismo. À medida que as instituições e valores sociais se rendem à
imanência humorística, o Eu ascende e torna-se o grande objecto de culto da
pós-modernidade. De que nos podemos ocupar seriamente hoje a não ser do
nosso equilíbrio psíquico e físico? Quando os ritos, costumes e tradições ago
nizam, quando tudo flutua num espaço paródico, aumentam a obsessão e as
práticas narcísicas, as únicas a serem ainda investidas de uma dignidade ce
rimonial. Já tudo foi dito acerca do ritual psi, da codificação estrita das ses sões,
da aura da análise, etc.; tem-se observado menos que hoje o próprio desporto —
embora maleável e independente — se tornou de igual modo uma prática
iniciática de um género novo. E já conhecido o progresso fulgu rante da prática
desportiva, e muito particularmente dos desportos indivi duais mais interessante
ainda é o desenvolvimento das actividades despor tivas chamadas «livres», sem
preocupação competitiva, fora da rede das fede rações, longe dos estádios e dos
ginásios. Jogging, bicicleta, ski de fundo, rolling. waiking, skate, prancha de
vento — aqui os novos oficiantes procu ram menos a proeza, a força, o
reconhecimento, do que a forma e a saúde, a liberdade e a elegância de
movimentos, o êxtase do corpo. Cerimónia da sensação redobrada por uma
cerimónia do material técnico: para experimen tar o corpo, convém que o
indivíduo se informe de todas as inovações, que adquira e domine as próteses
mais sofisticadas, que mude regularmente de material. Narciso surge assim
ajaezado. De tal modo que, tornando flexíveis os quadros desportivos,
promovendo o desporto «aberto», o processo de per sonalização só à superfície
descontraiu o desporto; pelo contrário, ao genera lizar-se, este limitou-se a
metamorfosear-se numa liturgia cada vez mais ab sorvente nos antípodas do
código humorístico. Já ninguém brinca nem com o próprio corpo nem com a
saúde. Na esteira da análise, o desporto trans formou-se num trabalho, num
investimento permanente a gerir com método, escrupulosamente, e, de alguma
maneira, «profissionalmente». A única des 1 «Em França, o número dos filiados
em clubes de ténis passa de 50 000 em 1950 para 125 000, em 1968, atingindo
mais de 500 000 em 1977, tendo quadruplicado assim em menos de oito anos. O
dos praticantes de ski triplica entre 1958 e 1978 para atingir hoje mais ou me nos
— o que não é inteiramente por acaso — 600 000. Simultaneamente, o número
dos que jo gam futebol permanece mais ou menos estável (cerca de 1 300 000),
bem como o dos adeptos do râguebi (í47 000). A preferência pelo tipo individual
de prática afirma-se também nos des portos populares. Os judocas triplicam em
dez anos (200 000 em 1966 e 600 000 em 1977). Se acompanharmos a análise
dos conteúdos da evolução a partir de 1973, verificamos que o mús culo recua
por toda a parte.» (A. Cotta, La Société ludique, Grasset, 1980, pp. 102-103.)
forra do processo humorístico é que aquilo que se mostra capaz de mobilizar e
apaixonar intensamente o indivíduo desportivo, o que galvaniza todas as suas
energias, se vê de seis em seis meses, ou de dois em dois anos, abando nado.
Uma nova atracção aparece: depois da bicicleta o wind surf, com a mesma
seriedade, o mesmo culto definitivo. A moda e os seus ciclos investi ram o
próprio narcisismo.
Certos locais têm o poder de se darem como símbolo puro do tempo através da
condensação e da integração que operam dos traços característi cos da
modernidade: assim Le Pa/ace, onde processo humorístico e narcisis mo se
afirmam de peito aberto, sem contradição. Neo-narcisismo dos jovens mais
preocupados com electrizarem-se, sentirem o próprio corpo na dança do que com
comunicarem com o outro — o facto é já bem conhecido. Mas também desvio
extravagante do Palace. Desvio do espaço: a «botte» investe um teatro
desafectado, respeita-lhe a arquitectura vetusta, ao mesmo tempo que introduz aí
as técnicas audiovisuais mais sofisticadas: loft de massa. Desvio do night-club:
aqui não há nada da boíte resguardada e da sua fun ção confessa de lugar de
engate; a boite é agora simultaneamente um lugar de concertos, um espectáculo
totàl, uma animação visual electroacústica fei ta de «efeitos especiais», de /asers,
de projecções de filmes, de robots electró nicos, etc. O espectáculo está por todo
o lado: na própria música, na multi dão, no exibicionismo in, nos shows luminocinéticos, na exasperação de /ooks, de sons, de jogos de luzes. É precisamente
esta hiperteatralização que esvazia Le Pa/ace de toda a gravidade, faz dele um
lugar flutuante e poliva lente, um lugar neo-barroco afectado de «delírio».
Excesso de representações que por certo desorienta, fascina, não sem efeitos
humorísticos, de tal modo o espectacular surge sem freio, desproporcionado, em
órbita sobre si pró prio. Fascinação humorística, caleidoscópio new-wave.
Desvio do próprio es pectáculo: todo este luxo de demonstrações não se destina,
no fundo, a ser olhado ou admirado, mas a «brilhar», a esquecer e sentir. O
espectacular, condição do narcisismo; o fausto do exterior, condição do
investimento do interior, a lógica paradoxal do Pa/ace é humorística. Tudo é
excessivo, o som, os light shows, a rítmica musical, a gente que circula e se
apinha, o frenesim das singularidades: inflação psicadélica, feira de signos e de
indiví duos, necessária à atomização narcísica, mas também à banalização irreal
do lugar.
Circulamos como entre os dez mil produtos de um hipcrmercado:
já nada tem lugar certo, nada tem designação sólida, a superprodução noc turna
esvazia da sua substância tudo o que anexa. O Pa/ace como ponto de
aglomeração-gadget, tecnologia-gadget, botte-gadget. Espectáculo ou disco teca,
concerto ou teatro, happening ou representação, dinâmica de grupo ou
narcisismo, febre disco ou distância cool, estas distinções aqui vacilam, cada
uma anulando ou sobredeterminando a outra, cada uma tornando a outra
humorística num espaço multifuncional e indeterminado. Tudo está ali ao
mesmo tempo, indecidivelmente, todas as dimensões, todas as categorias se
cruzam numa coexistência cuja graça resulta da exasperação pela exaspera ção: o
humor do Palace emana de um processo hiperbólico vazio e generali zado.
Assim, correndo o risco de contradizer o seu promotor, Le Palace não tem o seu
modelo na festa, ainda que adaptada à sociedade pós-moderna. Ao contrário de
toda a transgressão, de toda a violência simbólica, Le Pala ce funciona segundo
uma lógica da acumulação e do espectacular; o sagra do, o estar em conjunto, a
revivescência do sol são aqui definitivamente abo udos em proveito de um
narcisismo colectivo. Primeira botte humorística — em Paris, entenda-se —, Le
Palace é a réplica de Beaubourg, primeiro gran de museu humorístico, aberto e
descompartimentado, onde tudo circula sem interrupção, indivíduos, grupos,
escadas, exposições, onde as obras e o próprio museu assumem uma coloração
de gadgets. Do mesmo modo que a moda vestimentar se descrispou imitando as
roupas de trabalho, também Beaubourg tomou como modelo a fábrica e a
refinação. Democratizando-se, o museu perde a sua austeridade e, dotado dos
seus tubos polícromos, tor na-se ele próprio uma curiosidade humorística.
Beaubourg, Le Palace: o processo humorístico não poupou, no seu trabalho
inexorável, nem os locais da cultura nem os locais da noite.
Violências selvagens, violências modernas
A violência não conseguiu, ou só em escassa medida, conquistar os favo res da
investigação histórica, pelo menos daquela que, por trás da espuma dos
acontecimentos mais ou menos contingentes, se esforça por teorizar os
movimentos de dimensão maior, as grandes continuidades e descontinuida des
que escandem o devir humano. A questão, no entanto, convida a uma
conceptualização no plano da longa duração: durante milénios, através de
formações sociais bem distintas, a violência e a guerra foram valores domi
nantes, a crueldade manteve-se com uma legitimidade tal que pôde funcio nar
como «ingrediente» dos prazeres mais requintados. O que é que nos transformou
tanto? Como é que as sociedades de sangue puderam dar lugar a sociedades
suaves, em que a violência inter-individual já não passa de um comportamento
anómico e degradante, nem a crueldade de um estado pato lógico? Estas
questões não têm hoje grande prestígio frente às que suscitam a força
desmultiplicada dos Estados modernos, o equilíbrio do terror e a corrida aos
armamentos: tudo se passa corno se depois do momento omnie conómico e do
momento omnipoder, a revolução das relações de homem a homem nascida com
a sociedade individualista tivesse que continuar a ser um tema menor, privado de
qualquer eficácia específica, não merecendo no vos desenvolvimentos. Tudo se
passa como se, sob o choque das duas guer ras mundiais, dos campos nazis e
estalinianos, da generalização da tortura e actualmente do recrudescimento da
criminalidade violenta ou do terrorismo, os nossos contemporâneos se
recusassem a tomar nota desta mutação já multissecular e recusassem perante a
tarefa de interpretar o irresistível movi mento de pacificação da sociedade, ao
mesmo tempo que a hipótese da pul são de morte e a da luta de classes
contribuem em grande medida para con firmar o imaginário de um princípio de
conservação da violência, retardando a interrogação sobre o seu destino.
Os grandes espíritos do século XIX não recorriam a este subterfúgio, e
Tocqueville e Nietzsche, para citar dois pensamentos sem dúvida estranhos um
ao outro, embora igualmente fascinados pela ascenção do fenómeno de
mocrático, não hesitavam em pôr o problema em toda a sua brutal clareza, tão
insuportável ao pensamento-spot dos dias de hoje. Mais perto de nós, os
trabalhos de N. Elías e depois de P. Clastres contribuíram, a níveis diferen tes,
para revitalizar a interrogação. Torna-se necessário continuá-la, prolon gá-la
analisando a violência e a sua evolução, nas suas relações com os três eixos
maiores que são o Estado, a economia, a estrutura social. Conceptuali zar a
violência: longe das leituras mecanicistas, sejam estas políticas, econó micas ou
psicológicas, é por estabelecer a violência como comportamento do tado de
sentido e em articulação com o todo social que devemos esforçar- nos. Violência
e história: para além do cepticismo erudito e do alarmismo estatístico
jornalístico, precisamos de recuar até ao tempo mais distante, tra zer à luz do dia
as lógicas da violência, e tudo isto para, tanto quanto possí vel, captarmos o
presente de onde falamos, neste momento em que, por to dos os lados, se ouve
clamar com maior ou menor pertinência a entrada das sociedades ocidentais
numa era radicalmente nova.
Honra e vingança: violências selvagens
Ao longo de todos os milénios que viram as sociedades funcionar de mo do
selvagem, a violência dos homens, longe de se explicar a partir de consi
derações utilitárias, ideológicas ou económicas, organizou- se essencialmente em
função de dois códigos estritamente corolários um do outro, a honra e a
vingança, cuja significação exacta temos dificuldade em compreender, de tal
modo foram eliminados inexoravelmente da lógica do mundo moderno. Hon ra,
vingança, dois imperativos imemoriais, inseparáveis das sociedades pri mitivas,
sociedades «holistas» embora igualitárias, em que os agentes indivi duais estão
subordinados à ordem colectiva e em que simultaneamente «as relações entre
homens são mais importantes, mais altamente valorizadas do que as relações
entre homens e coisas» Quando o indivíduo e a esfera eco nómica não têm
existência autónoma e se encontram submetidos à lógica do estatuto social, reina
o código de honra, o primado absoluto do prestígio e da estima social, bem como
o código da vingança, significando este, com efeito, a subordinação do interesse
pessoal ao interesse do grupo, a impossi bilidade de romper a cadeia das alianças
e das gerações, dos vivos e dos mortos, a obrigação de pôr em jogo a própria
vida em nome do interesse su perior do clã ou da linhagem. A honra e a
vingança exprimem directamente a prioridade do conjunto colectivo sobre o
agente individual.
Estruturas elementares das sociedades selvagens, a honra e a vingança são
códigos de sangue. Onde a honra predomina, a vida tem pequeno preço,
comparada com a estima pública; a coragem, o desprezo da morte, o desafio são
virtudes altamente valorizadas, a cobardia é desprezada por toda a par te. O
código da honra adestra os homens no sentido de se afirmarem pela força, de
conquistarem o reconhecimento dos outros antes de assegurarem a sua
segurança, de lutarem até à morte para serem respeitados. No universo primitivo,
o ponto de honra é o que ordena a violência, ninguém pode, sob pena de se ver
desrespeitado, suportar uma afronta ou uma injúria; quere las, insultos, ódios e
invejas conhecem, mais facilmente do que nas socieda des modernas, um
desfecho sangrento. Longe de manifestar qualquer impul sividade incontrolada,
a belicosidade primitiva é uma lógica social, um mo do de socialização
consubstancial ao código da honra.
A própria guerra primitiva não pode ser separada da honra. E em fun ção do
código da honra que cada homem adulto tem o dever de ser um guerreiro, de ser
valente e bravo perante a morte. Mais ainda, o código da honra fornece o motor,
o estímulo social p os empreendimentos guerrei ros; sem ter de modo algum uma
finalidade económica, a violência primitiva é, em numerosos casos, guerra pelo
prestígio, puro meio de adquirir glória e renome, sendo estes conferidos pela
captura de signos e presas, escalpes, ca valos, prisioneiros. O primado da honra
pode assim dar nascimento, como P. Clastres demonstrou, a confrarias de
guerreiros inteiramente consagradas às façanhas de armas, obrigadas ao desafio
permanente da morte, à escala da de bravura que lança os seus membros em
expedições cada vez mais au daciosas e conduzindo à morte de modo inelutável)
Se a guerra primitiva está estreitamente ligada à honra, está-o na mesma medida
ao código da vingança: a violência visa o prestígio ou a vingança. Os conflitos
armados são deste modo desencadeados para vingar um ultraje, um morto ou até
um acidente, um ferimento, uma doença atribuída às forças maléficas de um
feiticeiro inimigo. Ê a vingança que exige que o sangue ini migo seja derramado,
que os prisioneiros sejam torturados, mutilados ou de vorados ritualmente, é
sempre ela que manda em última instância que um prisioneiro não deva tentar
evadir-se, como se os parentes e o seu grupo não tivessem coragem suficiente
para vingar a sua morte. Do mesmo modo, é o medo da vingança dos espíritos
dos inimigos sacrificados que impõe os ri tuais de purificação do carrasco e do
seu grupo. Mais ainda: a vingança não se exerce unicamente contra as tribos
inimigas, exige igualmente o sacrifício de mulheres ou crianças da comunidade à
laia de reparação do desequilíbrio ocasionado, por exemplo, pela morte de um
adulto na força da idade. E preciso despsicologizar a vingança primitiva que
nada tem a ver com a hosti lidade acumulada internamente: entre os
Tupinambas, um prisioneiro vivia por vezes dezenas de anos no grupo que o
capturara, gozava de grande li berdade, podia casar e muitas vezes era amado e
bem tratado pelos seus amos e mulheres, como se de um homem da aldeia se
tratasse; isso não im pedia que a sua execução sacrificial fosse inelutável A
vingança é um im perativo social, independente dos sentimentos experimentados
pelos indiví duos e grupos, independente das noções de culpabilidade ou
responsabilida de individuais e que fundamentalmente manifesta a exigência de
ordem e de simetria do pensamento selvagem. A vingança é «o contra-peso das
coisas, o restabelecimento de um equilíbrio provisoriamente quebrado, a garantia
de que a ordem do mundo não sofrerá alteração» ou seja, a exigência de que em
parte alguma se estabeleça duradouramente um excesso ou um defeito. Se há
uma idade de ouro da vingança, é entre os selvagens que a encontra Pierre
Clastres, «Malheur du guerrier sauvage», in Libre, 1977, n.° 2.
mos: constitutiva de um extremo a outro do universo primitivo, a vingança
impregna todas as grandes acções individuais e colectivas, está para a violên cia
como os mitos e sistemas de classificação estão para o pensamento «espe
culativo», tem por toda a parte a mesma função de ordenação do cosmos e da
vida colectiva, que se realiza em benefício da negação da historicidadC.
Ê por isso que as recentes teorias de R. Girard a respeito da violên cia nos
parecem assentar num contra-senso radical: dizer, com efeito, que o sacrifício é
um instrumento de prevenção contra o processo interminável da vingança, um
meio de protecção a que a comunidade inteira recorre contra o ciclo infinito das
represálias e contra-represálias, equivale a omitir essa realidade primeira do
mundo primitivo em que a vingança, longe de ser o que é preciso dominar, é
algo em que se torna necessário adestrar imperati vamente os homens. A
vingança não é uma ameaça, um terror a contornar, do mesmo modo que o
sacrifício não é um meio de pôr termo à violência pretensamente dissolvente das
vinganças intestinas por meio de substitutos indiferentes. A esta visão-pânico da
vingança, devemos opor a dos selvagens para quem a vingança é um instrumento
de socialização, um valor tão indis cutível como a generosidade. Inculcar o
código da vingança, ripostar golpe por golpe, eis a regra fundamental: entre os
Yanomami, «se um rapazinho derrubar outro por descuido, a mãe deste último
intima o seu rebento a ata car o desajeitado. Grita-lhe de longe: vinga-te, vingate, então!» Longe de ser, como pensa R. Girard uma manifestação não-histórica,
bio-antro pológica, a violência vingadora é uma instituição social; longe de ser
um processo «apocalíptico», a vingança é uma violência limitada que visa equi
librar o mundo, instituir uma simetria entre os vivos e os mortos. Não deve mos
conceber as instituições primitivas como máquinas de recalcamento ou de desvio
de uma violência trans-histórica, mas como máquinas destinadas a produzir e a
normalizar a violência. Nestas condições, o sacríficio é uma ma nifestação do
código da vingança e não algo que impede a sua afirmação:
nem substituição nem deslocamento, o sacrifício é efeito directo do princípio da
vingança, uma exigência de sangue sem disfarce, uma violência ao servi ço do
equilíbrio, da perenidade do cosmos e do social.
A perspectiva clássica da vingança, tal como a vemos
expressar-se em M.
R. Davie, por exemplo, também não é mais satisfatória: os grupos primiti vos
«não possuem nem sistema desenvolvido de legislação, nem juízes ou tri bunais
para a punição dos crimes e, no entanto, os seus membros vivem de um modo
geral em paz e segurança. No seu caso, o que é que faz então as vezes do
procedimento judicial dos civilizados? Descobriremos a resposta a esta pergunta
na prática da justiça pessoal ou da vingança privada» 1 A vingança, condição da
paz interna, equivalente da justiça? Concepção muito discutível uma vez que a
vingança ensina a violência, legitima as represálias, arma os indivíduos,
enquanto que a instituição judiciária tem como meta in terditar o recurso às
violências privadas. A vingança é um dispositivo que so cializa por meio da
violência, no registo desta, que faz com que ninguém possa deixar o crime ou a
ofensa por punir: ninguém detém assim o mono pólio da força física, ninguém
pode renunciar ao imperativo de derramar o sangue inimigo, ninguém pode
confiar a outra pessoa a garantia da sua se gurança. Que quer isto dizer senão
que a vingança primitiva se afirma con tra o Estado, que a sua acção visa
impedir a constituição de sistemas de do minação política? Tornando-se a
vingança um dever imprescritível, todos os homens são iguais perante a
violência, nenhum pode monopolizar ou renun ciar a ela, nenhum será protegido
por uma instância especializada. Deste modo não é apenas através da guerra e da
sua acção centrífuga de dispersão que a sociedade primitiva logra esconjurar o
advento do dispositivo estatal consegue-o também por dentro, por meio do
código da honra e da vingança, que contrariam o desenvolvimento do desejo de
submissão e de protecção e impedem a emergência de uma instância que
açambarque o poder e o direi to de morte.
Simultaneamente, é a impedir o aparecimento do indivíduo independen te,
fechado no seu interesse próprio, que se aplica o código da vingança. Aqui, a
prioridade do todo social sobre as vontades individuais torna-se ac to, os vivos
têm o encargo de afirmar através do sangue a sua solidariedade com os mortos,
de fazerem corpo com o grupo. A vingança de sangue é contra a divisão dos
vivos e dos mortos, contra o indivíduo separado, e por isso é um instrumento de
socialização holista, do mesmo modo que a regra da dávida, que institui menos a
passagem da natureza à cultura do que o funcionamento holista das sociedades, a
preeminência do colectivo sobre o individual através da obrigação da
generosidade, da dávida das filhas e ir mãs e pela proibição da acumulação e do
incesto.
A comparação pode ser continuada relativamente a uma outra institui ção, desta
feita de tipo violento: as cerimónias iniciáticas que assinalam a passagem dos
jovens do sexo masculino à idade adulta e que são acompa nhadas por torturas
rituais intensas. Fazer sofrer, torturar, é algo que proce de da ordem holista
primitiva, porque o que interessa manifestar aqui de maneira ostensiva, no
profrio corpo, é a subordinação extrema do agente in dividual ao conjunto
colectivo, de todos os homens sem distinção a uma lei superior intangível. A dor
ritual, meio último de significar que a lei não é humana, que tem que ser
recebida, e não deliberada ou alterada, meio de assinalar a superioridade
ontológica de uma ordem vinda de alhures e como tal subtraída às iniciativas
humanas que visem transformá-la. Pelo esmaga mento do iniciado sob a prova
da dor, trata-se de inscrever no corpo a hete ronomia das regras sociais, a sua
preeminência implacável e, portanto, de proibir o nascimento de uma instância
separada de poder que se atribua o direito de introduzir a transformação histórica
A crueldade primitiva é, como a vingança, uma instituição holista, contra a autodeterminação do in divíduo, contra a divisão política, contra a história: do
mesmo modo que o código da vingança exige dos homens que estes arrisquem a
vida em nome da solidariedade e da honra do grupo, a mesma iniciação exige
dos homens uma submissão muda dos seus corpos às regras transcendentes da
comuni dade.
Tal como a iniciação, a prática de suplícios revela a significação profun da da
crueldade primitiva. A guerra selvagem não consistia unicamente na organização
de incursões e massacres; tratava-se, além disso, de capturar inimigos aos quais
eram depois infligidos ora pelos homens, ora pelos jovens e pelas mulheres,
suplícios de uma ferocidade inaudita que, no entanto, não inspiravam qualquer
horror ou indignação. Esta atrocidade dos costumes foi desde há muito
assinalada, mas, depois de Nietzche, que reconhecia nela uma festa das pulsões
agressivas e de Bataille que a considerava uma forma de dispêndio improdutivo,
a lógica social e política da violência foi duradou ramente ocultada pelas
problemáticas «energéticas». A crueldade primitiva nada tem a ver com o «gozo
de fazer sofrer», não pode ser assimilada a um equivalente pulsional de um dano
sofrido: «Fazer sofrer causava um prazer infinito; como compensação do dano e
dos aborrecimentos do dano propor cionava às partes lesadas um contra-gozo
extraordinário» Independente dos sentimentos e das emoções, o suplício
selvagem é uma prática ritual exi gida pelo código da vingança a fim de
estabelecer o equilíbrio entre os vivos e os mortos: a crueldade é uma lógica
social, não uma lógica do desejo. Dito isto, Nietzsche entrevira, apesar de tudo, o
essencial do problema ao ligar a crueldade à dívida, ainda que a tenha carregado
de uma significação mate rialista, moderna, baseada na troca económica De
facto, a atrocidade das torturas selvagens só tem sentido quando referida a essa
dívida específica e extrema que liga os vivos aos mortos: dívida extrema, em
primeiro lugar porque os vivos não podem prosperar sem obterem a protecção ou
a neutra lidade dos seus mortos sempre dotados de uma força particular, represen
tando uma das maiores ameaças concebíveis; em segundo lugar, porque a dívida
se refere a dois universos constantemente ameaçados de disjunção ra dical, o
visível e o invisível. E, por conseguinte, necessário um excesso para preencher o
défice da morte; é necessário um excesso de dor, de sangue ou de carne (no
festim antropófago) para se cumprir o código da vingança, quer dizer para
transformar a disjunção em conjunção, para restabelecer a paz e a aliança com os
mortos. Vingança primitiva e sistemas de crueldade são inseparáveis enquanto
meios de reprodução de uma ordem social imutá vel.
Decorre daqui que o excesso dos suplícios não é estranho à lógica da tro ca, pelo
menos da que põe em relação os vivos e os mortos. Sem dúvida, te remos que
seguir as análises de P. Clastres, que soube mostrar como a guer ra não era de
maneira alguma um malogro acidental da troca, mas uma es trutura primeira,
uma finalidade central do ser social primitivo, sendo ela a determinar a
necessidade da troca e da aliança todavia, uma vez «reabili tada» a significação
política da violência, devemos ter cuidado e não trans formar a troca em
instrumento indiferente da guerra, em simples efeito tác— tico da guerra. A
inversão das prioridades não deve ocultar o que a violência deve ainda à troca e
a troca à violência. Na sociedade primitiva, guerra e troca encontram-se em
consonância: a guerra é inseparável da regra da dá diva e esta é apropriada ao
estado de guerra permanente. Na medida em que a violência primitiva caminha a par da vingança, os laços que
a unem à lógica reciprocitária são imediatos. Do mesmo modo que existe a
obrigação de se ser generoso, de oferecer bens, mulheres, alimento, existe
também a obrigação de se ser generoso nos termos da própria vida, de se dar a
vida de acordo com o imperativo da vingança; do mesmo modo que qualquer
bem tem que ser devolvido, também a morte deve ser paga e com pensada; o
sangue exige, à semelhança das dádivas, a sua contrapartida. À simetria das
transacções corresponde a simetria da vingança. A solidarieda de de grupo, que
se manifesta pela circulação das riquezas, revela-se igual mente através da
violência vingadora. De modo que a violência não é antinó mica em relação ao
quadro da troca; a ruptura da reciprocidade articula-se ainda no quadro da troca
recíproca entre os vivos e os mortos.
Mas se a violência apresenta parentesco de estrutura com a troca, esta, pelo seu
lado, não pode ser pura e simplesmente assimilada a uma institui ção de paz.
Sem dúvida, é de facto através da regra da dádiva e da dívida dela decorrente
que os primitivos instituem a aliança mas isso não quer di zer que a troca nada
tenha a ver com a guerra. Mauss sublinhou com insis tência em páginas hoje
célebres a violência constitutiva da reciprocidade através dessa «guerra de
propriedade» que é o potlatch. Mesmo quando o desafio e a rivalidade não
atingem tais dimensões, Mauss observa o seguinte facto capital,
insuficientemente analisado, de que a troca «conduz a querelas súbitas quando
frequentemente tinha por fim apagá-las» Que quer isto dizer senão que a troca
produz uma paz instável, frágil, sempre à beira da ruptu ra? O problema consiste
assim em compreender porque é que a troca, cujo objectivo é estabelecer
relações pacificas, falha de tal maneira nos seus pro pósitos. Deveremos
regressar à interpretação de Lévi-Strauss, segundo a qual a guerra não passa de
um malogro contingente, de uma transacção in feliz, ou deveremos antes ver na
reciprocidade uma instituição que a sua própria forma torna propícia à violência?
E esta segunda hipótese que nos parece justa: só há malogro na aparência, a
dádiva participa estruturalmen te na lógica da guerra, pois que institui a aliança
numa base necessariamen te precária. A regra de reciprocidade, porque funciona
como uma luta simbólica ou de prestígio e não como meio de acumulação,
instaura um frente- a-frente sempre à beira do conflito e do confronto: nas trocas
económicas e matrimoniais que presidem às alianças das comunidades
Yanomano, «os parceiros mantêm-se no extremo limite do ponto de ruptura, mas
é justa mente esse jogo arriscado, esse gosto pelo confronto o motivo de agrado»
Pouco é preciso para que os amigos se tornem inimigos, para que um pacto de
aliança degenere em guerra: a dádiva é uma estrutura potencialmente violenta
porque basta que o parceiro se recuse a entrar no ciclo das presta ções para que
isso se identifique com uma ofensa, com um acto de guerra. Enquanto estrutura
assente no desafio, a troca proíbe as amizades duradou ras, a emergência de
laços permanentes que ligariam indissoluvelmente a co munidade a este ou
àquele dos seus vizinhos, levando-a a perder a prazo a sua autonomia. Se há uma
inconstância na vida internacional dos selvagens, se as alianças se fazem e
desfazem de modo tão sistemático, isso não se deve apenas ao imperativo da
guerra, mas igualmente aos tipos de relações man tidas através da troca. Ligando
os grupos não pelo interesse, mas por meio de uma lógica simbólica, a
reciprocidade quebra as amizades com a mesma facilidade com que as faz,
nenhuma comunidade está ao abrigo do desenca dear das hostilidades. Longe de
se identificar a uma táctica de guerra, a re gra da reciprocidade é a condição
social da guerra primitiva permanente.
Mais indirectamente, a troca participa ainda da violência primitiva na medida em
que ensina aos homens o código da honra, prescrevendo a dádi va e o dever de
generosidade. Da mesma maneira que o imperativo da guer ra, a regra da
reciprocidade socializa por meio da honra e da violência cor respondente. Guerra
e troca são paralelas; a sociedade selvagem é realmen te, como dizia P. Clastres,
uma sociedade «para-a-guerra», e até as institui ções que têm como tarefa criar a
paz só ó conseguem instaurando simulta neamente uma belicosidade estrutural.
Por fim, ter-se-ão sublinhado o suficiente os laços que unem troca e feiti çaria?
A sua coexistência, atestada por toda a parte no mundo selvagem, não é fruto do
acaso; com efeito, estamos perante duas instituições estrita mente solidárias. Na
sociedade primitiva, como sabemos, os acidentes e infe licidades da vida, os
infortúnios dos homens, longe de serem acontecimentos fortuitos, são resultados
da feitiçaria, quer esta se deva à malevolência de outrém, quer a uma vontade
deliberada de fazer o mal. Se um escorpião picar uma criança, se a colheita ou a
caça forem más, se uma ferida não ci catrizar, todos estes acontecimentos pouco
felizes são atribuídos a uma dis posição maligna de alguém. Sem dúvida
devemos ver na feitiçaria uma das formas dessa «ciência do concreto», que é o
pensamento selvagem, um meio de pôr ordem no caos das coisas e de explicar o
melhor possível as desgraças dos homens; mas não podemos deixar de observar
também tudo o que esta «filosofia» introduz de animosidade e de violênica na
representaçdo da rela ção interhumana. A feitiçaria é a prossecução do
imperativo de guerra por outros meios; do mesmo modo que cada comunidade
local tem inimigos, as sim cada indivíduo tem inimigos pessoais, responsáveis
pelos seus males. To da a desgraça provém de uma violência mágica, de uma
guerra perniciosa, de tal maneira que aqui o outro só pode ser amigo ou inimigo
segundo um esquema semelhante ao instituído pela guerra e pela troca. Com a
regra de reciprocidade com efeito, ou os homens trocam presentes e são aliados,
ou se interrompe o ciclo dos presentes e os homens tornam-se inimigos. A socie
dade primitiva que, por um lado, impede o aparecimento da divisão política,
gera, por outro lado, a divisão antagónica na representação da relação de homem
a homem. Não há indiferença, não há relações neutras como as que irão
prevalecer na sociedade individualista: com a guerras a troca, a feitiça ria, a
apercepção do mundo humano é inseparável do conflito e da violência.
Para além deste paralelismo a feitiçaria descobre na troca recíproca a condição
social característica do seu funcionamento. Através da regra da dá diva, os seres
são obrigados a existir e a definir-se uns por referência aos outros; os homens
não podem conceber-se separadamente uns dos outros ora é exactamente este
esquema que se reproduz, de maneira negativa, na feitiçaria, uma vez que tudo o
que de funesto acontece ao ego se liga neces sariamente a um outro. Nos dois
casos, os homens não podem pensar-se in dependentemente uns dos outros; o
sortilégio não passa da tradução inverti da da dádiva de acordo com a qual o
homem só existe numa relação socialmente pré-determinada com o outro. E este
contexto de troca obrigatória que torna possível a interpretação dos
acontecimentos nefastos em termos de malefícios: a feitiçaria não é a afirmação
livre de um pensamento não do mesticado, é ainda a regra de reciprocidade, a
ncrma holista do primado re lacional que constitui o seu enquadramento social
necessário. A contrario. não há feitiçaria na sociedade em que o indivíduo só
existe para si próprio; o desaparecimento da feitiçaria na vida moderna não pode
ser separado de um novo tipo de sociedade em que o outro se torna a pouco e
pouco um des conhecido, um estranho à verdade intrínseca do ego.
Regime da barbárie
Com o advento do Estado, a guerra muda radicalmente de função, já que de
instrumento de equilíbrio ou de conservadorismo social que era na ordem
primitiva se transforma num meio de conquista, de expansão ou de captura. E é
ao dissociar-se do código da vingança, quebrando a preeminên cia da troca com
os mortos, que a guerra se pode abrir ao espaço da domi nação. Enquanto a
dívida para com os mortos é um princípio supremo para o todo social, a guerra
permanece circunscrita a uma ordem territorial e sa grada que se trata,
precisamente através do emprego da violência, de repro duzir sem mudança, tal
como os antepassados a legaram. Mas a partir do momento em que se institui a
divisão política, a instância do poder deixa de se definir em função deste
primado da relação com os mortos, que é regula da por uma lógica reciprocitária,
enquanto o Estado introduz, pela sua própria dissimetria, um princípio
antinómico do do mundo da troca. O Es tado não pôde constituir-se senão
emancipando-se, ainda que parcialmente, do código da vingança, da dívida para
com os mortos, e renunciando a iden tificar guerra e vingança. A partir de então,
surge uma violência conquista dora, o Estado apropria-se da guerra, apodera-se
de territórios e de escra vos, edifica fortificações, recruta exércitos, impõe a
disciplina e uma condu ta militar; a guerra já não é contra o Estado, passa a ser a
missão gloriosa do soberano, o seu direito específico. Começa uma era nova do
culto do po der, a barbárie, que designa o regime da violência nas sociedades
estatais pré-modernas.
Sem dúvida, as primeiras formas do Estado não se emancipam por completo da
ordem da dívida, devendo o Déspota a sua função e a sua legi timidade a um
além transcendente ou a uma referência religiosa de que é ele o representante ou
a incarnação; mas constitutivamente o Estado só pode ser devedor e estar
subordinado a potências superiores e divinas, e não às almas dos mortos, o que
seria lesivo da sua grandeza sobre-eminente, degradando a sua diferença
irredutível relativamente à sociedade que domina.
Desligada do código da vingança, a guerra entra num processo de especialização
constituição de exércitos regulares de recrutas ou de mercenários, mas também
castas exclusivamente definidas pelo exercício das armas, pon do toda a sua
glória e paixão na conquista militar. Correlativamente, a maioria da população,
os trabalhadores rurais, vão encontrar-se excluídos, desapossados da actividade
nobre por excelência, a guerra, e consagrar-se-ão à tarefa de alimentar os
exércitos profissionais. Este desarmamento de mas sa não significou, todavia,
para os miseráveis, a renúncia à violência, à hon ra e à vingança. Manteve-se,
com efeito, sob o Estado, um modo de sociali zação holista que dá conta da
violência dos costumes, ao mesmo título que a existência de valores militares e
de guerras permanenteS. Para nos atermos à Idade Média, o ponto de honra
continua a ser responsável pela frequência da violência interindividual, pelo seu
carácter sangrento, e isto não apenas entre os homens de guerra, mas para o
conjunto do povo: até nos claustros, entre padres, se descobre uma violência de
sangue 1; os assassínios entre os servos parecem ter sido coisa corrente os
burgueses das cidades não hesita vam em puxar da faca para ajustarem as suas
contas Os registos judiciá rios da Baixa Idade Média confirmam ainda o lugar
considerável que as vio lências, rixas, ferimentos, assassínios, ocupavam na vida
quotidiana das ci dades Com a instalação do princípio hierárquico que distribui
os homens em ordens heterogéneas, em especialistas da guerra e produtores,
surgiu, é certo, uma distinção radical entre honra nobre e honra plebeia, tendo
cada uma delas o seu código, mas continuando ambas a gerar uma belicosidade
mortífera.
O mesmo acontece com a vingança. Se a guerra e o Estado já não se or denam a
partir da dívida para com os mortos, isso não significa de modo nenhum que a
sociedade tenha renunciado à vingança. É verdade que, a partir da altura em que
o Estado começou a afirmar a sua autoridade, ele se esforçou também por limitar
a prática da vingança privada, substituindo-lhe o princípio de uma justiça pública
e editando leis destinadas a moderar os excessos da vingança: lei de talião,
abandono noxal, tarifas legais de compo sição. Já o dissemos, a vingança é, no
seu princípio, hostil ao Estado, pelo menos à sua plena realização, e é por isso
que o nascimento deste coincidiu com a instauração de sistemas judiciários e
penais, representando a autori dade suprema, destinados nomeadamente a
temperar as vinganças intestinas em proveito da lei do soberano. Apesar disto, a
despeito do poder e da lei, a vingança familiar manteve-se muito amplamente,
por um lado em razão da fraqueza da força pública, por outro lado em razão da
legitimidade imemo rial associada à vingança nas sociedades holistas. Na Idade
Média, e parti cularmente durante a época feudal, a faide (vingança privada)
continua a impor-se como obrigação moral sagrada do topo à base da sociedade,
tanto para as grandes linhagens como para os rústicos; a faide ordena ao grupo
dos parentes que punam pelo sangue o assassínio de um dos seus ou uma in júria
sofrida. Vendettas intermináveis, por vezes originadas por questões anódinas,
podiam prolongar-se durante décadas e ter como saldo dezenas de mortos. A
vingança e a ordem social holista são a tal ponto consubstanciais que as próprias
leis penais se limitam muitas vezes a reproduzir a sua for ma: assim o direito
grego ou a lei das Doze Tábuas de Roma proibiam efec tivamente o princípio
das vendettas e o direito de fazer justiça pelas próprias mãos, mas as acções por
motivo de assasínio eram, em contrapartida, deixa das a cargo do interessado
mais próximo; o mesmo dispositivo legal surge em certas regiões, no século
XIII, quando em caso de homicídio voluntário o corpo do culpado era atribuído
aos parentes da vítima, de acordo com a lei de talião. Assim, enquanto as
sociedades, com ou sem Estado, funcionaram segundo as normas holistas que
impunham a solidariedade da linhagem, a vingança continuou a ser mais ou
menos um dever; a sua legitimidade só de saparecerá com a entrada em cena das
sociedades de ordem individualista e do Estado moderno que lhes corresponde,
definindo-se este precisamente pe lo monopólio da força física legítima, pela
penetração e pela protecção cons tante e regular da sociedade.
A honra e a vingança perduraram sob o Estado, do mesmo modo que a crueldade
dos costumes. Sem dúvida, a emergência do Estado e da sua or dem hierárquica
transformou radicalmente a relação com a crueldade que prevalecia na sociedade
primitiva. De ritual sagrado que era, a crueldade tornou-se uma prática bárbara,
uma demonstração ostentatória de força, um festejo público: lembremos o gosto
muito vivo dos Romanos pelos espectácu los sangrentos de combates de animais
e de gladiadores; lembremos a paixão guerrreira dos cavaleiros, o massacre dos
prisioneiros e dos feridos, o as sassínio das crianças, a legitimidade da pilhagem
ou da mutilação dos venci dos. Como dar conta da persistência durante milénios,
da Antiguidade à Idade Média, de costumes ferozes que hoje por certo não
desapareceram. mas que, quando se verificam, suscitam uma indignação
colectiva? Não po demos deixar de observar a correlação perfeita que existe
entre crueldade dos costumes e sociedades holistas, ao mesmo tempo que se
verifica o anta gonismo entre a crueldade e o individualismo. Todas as
sociedades que con ferem prioridade à organização do conjunto são, numa
medida ou noutra, sistemas de crueldade. E que, com efeito, a preponderância da
ordem colec tiva impede que se concedam à vida e ao sofrimento pessoais o
valor que lhes atribuímos. A crueldade bárbara não resulta de uma ausência de
recal camento ou de repressão social, é o efeito directo de uma sociedade em que
o elemento individual, subordinado às normas colectivas, não vê reconhecida a
sua existência autónoma.
Crueldade, holismo e sociedades guerreiras caminham a par: a crueldade só é
possível como habitus socialniente dominante quando reina a suprema cia dos
valores guerreiros, direito incontestado da força e do vencedor, des prezo pela
morte, bravura e persistência, ausência de campaixão pelo inimi go — valores
que têm em comum o facto de suscitarem a ostentação e o ex cesso nos signos da
força física, desvalorizarem o vivido propriamente íntimo tanto de si como do
outro, considerarem pouca coisa a vida individual quan do comparada à glória
do sangue, ao prestígio social conferido pelos signos da morte- A crueldade é uni
dispositivo histórico que não pode desligar-se das significações sociais que
erigem a guerra em actividade soberana: a crueldade bárbara, filha de Polemos,
emblema enfático da grandeza da or dem guerreira conquistadora, instrumento
sangrento da sua identidade, meio extremo de unificar na carne a lógica holista e
a lógica militar.
Um laço indissolúvel une a guerra concebida como comportamento supe rior e o
modelo tradicional das sociedades. As sociedades anteriores ao indi vidualismo
só puderam reproduzir-se conferindo à guerra um estatuto supre mo. Devemos
desconfiar do nosso reflexo económico moderno: as guerras imperiais, bárbaras
ou feudais, embora permitissem a aquisição de riquezas, escravos ou territórios,
raramente eram empreendidas com um objectivo ex clusivamente económico. A
guerra e os valores guerreiros contribuiram mui to mais para contrariar o
desenvolvimento do mercado e dos valores estrita mente económicos.
Desvalorizando as actividades comerciais que tinham por finalidade o lucro,
legitimando a pilhagem e a aquisição das riquezas pela força, a guerra
esconjurava a generalização do valor de troca e a constitui ção de uma esfera
separada da economia. Fazer da guerra um fim supremamente valorizado não
impede o comércio, mas circunscreve o espaço mer cantil e os fluxos de moeda,
tornando-se secundária a aquisição por via das trocas. Por fim, proibindo a
autonomização da economia, a guerra impedia igualmente o advento do
indivíduo livre por si próprio, que justamente cor responde a uma esfera
económica independente, e revelou-se uma peça in dispensável à reprodução da
ordem holista.
O processo de civilização
A linha da evolução histórica é conhecida: no espaço de alguns séculos, as
sociedades de sangue regidas pela honra, a vingança, a crueldade deram pouco a
pouco lugar a sociedades profundamente (<policiadas», em que os actos de
violência interindividual não param de diminuir, em que o uso da força
desconsidera aquele que se lhe entrega, em que a cureldade e as bruta lidades
suscitam a indignação e o horror, em que o prazer e a violência se dissociam. A
partir do século XVIII aproximadamente, o Ocidente passa a ser governado por
um processo de civilização ou de suavização dos costumes de que somos ainda
herdeiros e continuadores: confirma-o, a partir do sécu lo XVIII, a forte
diminuição dos crimes de sangue, homicídios, rixas, golpes e ferimentos
confirmam-no o desaparecimento da prática do duelo e a queda do infanticídio,
que, ainda no século XVI, era muito frequente; con firmam-no por fim, na
viragem do século XVIII para o XIX, a renúncia à atrocidade dos suplícios
corporais e, a partir do início do século XIX, a que da do número das
condenações à morte e das execuções capitais.
A tese de N. Elias a propósito da humanização dos comportamentos é hoje
famosa: de sociedades em que a belicosidade, a violência para com o outro se
afirmavam livremente, passamos a sociedades em que as impulsões agressivas se
encontram recalcadas, refreadas, por se terem tornado incom patíveis com a
«diferenciação» cada vez maior das funções sociais, por um lado, e com a
monopolização da coacção física pelo Estado moderno, por outro Quando não
existe qualquer monopólio militar e policial e quando, por conseguinte, a
insegurança é constante, a violência individual, a agressi vidade é uma
necessidade vital. Em compensação, à medida que se desen volve a divisão das
funções sociais e que, sob a acção dos órgãos centrais que monopolizam a força
física, se institui uma ampla segurança quotidia na, o uso da violência individual
revela-se excepcional, não sendo já «nem necessário, nem útil, nem mesmo
possível». À impulsividade extrema e de senfreada dos homens, correlativas das
sociedades que precederam o Estado absolutista, substituiu-se uma regulação dos
comportamentos, um «auto- controlo», do indivíduo; em suma, o processo de
civilização que acompanha a pacificação do território realizada pelo Estado
moderno.
Sem dúvida, o fenómeno da suavização dos costumes é inseparável da
centralização estatal; sendo assim, o risco é concebermos esta última como efeito
directo e mecânico da pacificação política. Não é aceitável dizer que os homens
«recalcam» as suas pulsões agressivas pelo facto de a paz civil es tar garantida e
as redes de interdependência não pararem de se ampliar, co mo se a violência
não fosse mais do que um instrumento útil à conservação da vida, um meio vazio
de sentido, como se os homens renunciassem «racio nalmente» ao uso da
violência a partir do momento em que a sua segurança está garantida. É esquecer
que a violência foi, desde as épocas mais remo tas, um imperativo determinado
pela organização holista da sociedade, um comportamento de honra e de desafio,
não de utilidade. Enquanto as nor mas prioritárias tiverem prioridade sobre as
vontades particulares, enquanto a honra e a vingança continuarem a prevalecer, o
desenvolvimento do apa relho policial, o aperfeiçoamento das técnicas de
vigilância e a intensificação da justiça, ainda quando sensíveis, terão apenas um
efeito limitado sobre as violências privadas: temos como prova a questão do
duelo, que sabemos ter sido definido, com os éditos reais do início do século
XVII, como um delito passível oficialmente de acarretar a perda dos direitos e
títulos dos infracto res, para além de morte infamante. Ora, no con.eço do século
XVIII, a des peito de uma justiça mais rápida, mais vigilante, mais escrupulosa,
o duelo ainda não desaparecera, nem perto disso; parece mesmo que há então um
maior número de processos por duelo do que uni século antes O desenvol
vimento repressivo do aparelho de Estado só pôde desempenhar o seu papel de
pacificação social na medida em que, paralelamente, se instaurava uma nova
economia da relação interindividual e, assim, também uma nova signi ficação da
violência. O processo de civilização não pode ser entendido nem como um
recalcamento nem como uma adaptação mecânica das pulsões ao estado de paz
civil: a esta versão objectivista, funcional e utilitarista, deve mos substituir uma
problemática que reconheça, no declínio das violências privadas, o advento de
uma nova lógica social, de um frente a frente carre gado de um sentido
radicalmente inédito na história.
A explicação económica do fenómeno continua a ser igualmente parcial, porque
não menos objectivista e mecanicista: dizer que sob o efeito do au mento das
riquezas, do recuo da miséria, da elevação do nível de vida, os costumes se
moderam, é omitir o facto historicamente decisivo de que a prosperidade
enquanto tal jamais foi um obstáculo à violência, nomeada mente nas classes
superiores que souberam conciliar na perfeição o seu gosto do fausto com o da
guerra e da crueldade. Não está na nossa intenção negar o papel dos factores
políticos e económicos que, seguramente, contribuiram de maneira decisiva para
o advento do processo de civilização: queremos di zer que a sua acção é
ininteligível independentemente das significações so ciais históricas que
permitiram instaurar. A monopolização da violência legí tima em si ou o nível de
vida quantitativamente determinado, por si sós, não podem explicar directamente
o fenómeno plurissecular da suavização dos comportamentos. No entanto, foram
realmente o Estado moderno e o seu complemento, o mercado, que, de maneira
convergente e indissociável, con tribuiram para a emergência de uma nova
lógica social, de uma nova signifi-. cação da relação inter-humana, tornando-se
inelutável, no tempo longo, o declínio da violência privada. Foi, com efeito, a
acção conjugada do Estado moderno e do mercado que possibilitou a grande
fractura que actualmente nos separa para sempre das sociedades tradicionais, o
aparecimento de um tipo de sociedade em que o homem individual se toma
como fim último e existe apenas para si próprio.
Pela centralização efectiva e simbólica que operou, o Estado moderno, a partir
do absolutismo, desempenhou um papel determinante na dissolução, na
desvalorização dos anteriores laços de dependência pessoal e, com isso, no
advento do indivíduo autónomo, livre, desligado dos laços feudais de ho mem a
homem e progressivamente de todas as inércias tradicionais. Mas foi igualmente
a extensão da economia de mercado, a generalização do sistema do valor de
troca, que permitiu o nascimento do indivíduo atomizado tendo como finalidade
uma busca cada vez mais afirmada como tal do seu interes se privado Á medida
que as terras se compram e se vendem, que a pro priedade fundiária se torna uma
realidade social largamente difundida, que as trocas mercantis, o salariato, a
industrialização e as deslocações popula cionais se desenvolvem, produz-se uma
transformação das relações do ho mem com a comunidade que o enquadra, uma
mutação que se pode resumir numa palavra, individualismo, caminhando a par
de uma aspiração sem precedentes pelo dinheiro, a intimidade, o bem-estar, a
propriedade, a segu rança, e subvertendo inconstestavelmente a organização
social tradicional. Com o Estado centralizado e o mercado, surge o indivíduo
moderno, consi derando-se a si próprio isoladamente, absorvendo-se na
dimensão privada, recusando a submeter-se às regras ancestrais exteriores à sua
vontade ínti ma, não reconhecendo já como lei fundamental senão a sua
sobrevivência e o seu interesse próprio.
E é precisamente esta transformação da relação imemorial do homem com a
comunidade que vai funcionar como o agente por excelência da paci ficação dos
comportamentos. A partir de entáo, a prioridade do conjunto oficial apaga-se em
benefício do interesse e das vontades das partes indivi duais, os códigos sociais
que fixavam o homem às solidariedades de grupo já não podem subsistir: cada
vez mais independente em relação às imposições colectivas, o indivíduo já não
reconhece como dever sagrado a vingança de sangue que, durante milénios,
permitiu soldar o homem à sua linhagem. Não foi apenas através da lei e da
ordem pública que o Estado conseguiu eliminar o código da vingança; de modo
igualmente radical, foi o processo individualista que, pouco a pouco, minou a
solidariedade vingadora. En quanto nos anos 18751885, a taxa média de
homicídio para cem mil habitante, em França, se fixava à volta de um, na
Córsega era quatro vezes su perior; a mesma distância acentuada se registava em
Itália entre o Norte e o Sul, este último com uma taxa muito elevada de
homicídios: onde a família conserva a sua força antiga, a prática da vendetta
continua a ser mortífera a despeito da importância dos aparelhos repressivos do
Estado.
Através do mesmo processo, o código de honra sofre uma mutação deci siva:
quando o ser individual se define cada vez mais pela relação com as coisas,
quando a busca de dinheiro, a paixão do bem-estar e da propriedade levam a
melhor sobre o estatuto e o prestígio social, o ponto de honra e a susceptibilidade
agressiva atenuam-se: a vida torna-se valor supremo e o im perativo de não
perder a cara torna-se fraco. Já não é vergonhoso não res ponder à ofensa ou à
injúria: a uma moral da honra, fonte de duelos, de be licosidade permanente e
sangrenta, substituíu-se uma moral da utilidade própria, da prudência, em que o
encontro do homem com o homem se faz essencialmente sob o signo da
indiferença. Se, na sociedade tradicional, o outro surge imediatamente ,como
amigo ou inimigo, na sociedade moderna, indentifica-se geralmente com um
estranho anónimo que não merece sequer o risco da violência. «Domínio de si
próprio: evita os extremos; evita levar muito a peito as ofensas, porque estas
nunca são o que parecem à primeira vista», escrevia Benjamin Franklin: o
código da honra deu lugar ao código pacífico da «respeitabilidade»; pela
primeira vez na história, instaura-se uma civilização em que já não é de rigor
responder aos desafios, em que o juízo do outro importa menos do que o meu
interesse estritamente pessoal, em que o reconhecimento social se dissocia da
força, do sangue e da morte, da violência e do desafio. Mas geralmente, é a uma
redução da dimensão do desafio interpessoal que se aplica o processo
individualista: a lógica do desa fio, que é inseparável do primado holista e que,
durante milénios, socializou os indivíduos e os grupos num frente a frente
antagónico, sucumbe a pouco e pouco, tronando-se uma relação anti-social.
Provocar o outro, esclarecê-lo, esmagá-lo simbolicamente, este tipo de relação
está destinado a desaparecer quando o código da honra dá lugar ao culto do
interesse individual e da pri vacy. À medida que se eclipsa o código da honra, a
vida e a sua conservação afirmam-se como ideais primeiros, enquanto o risco da
morte deixa de ser um valor, bater-se deixa de ser uma glória, e o indivíduo
atomizado se em penha cada vez menos em discussões, rixas, confrontos
sangrentos, não por ser «auto-controlado», mais disciplinado do que os seus
avós, mas porque a violência já não tem sentido social, já não é meio de
afirmação e de reconhecimento do indivíduo num tempo em que a sacralização
investiu a longevida de, a poupança, o trabalho, a prudência, a medida. O
processo de civiliza ção não é efeito mecânico do poder ou da economia,
coincide com a emer gência de finalidades sociais inéditas, com a desagregação
individualista do corpo social e com a nova significação da relação interhumana
baseada na indiferença.
Com a ordem individualista, os códigos de sangue são desinvestidos, a violência
perde toda a dignidade ou legitimidade social, os homens renun ciam
maciçamente a usar da sua força privada para resolverem os seus dife rendos.
Deste modo, esclarece-se a verdadeira função do processo de civiliza ção: como
Tocqueville já mostrara, à medida que os homens se retiram para a sua esfera
privada e só a si próprios se têm em vista, não param de recor rer ao Estado a
fim de este garantir uma protecção mais vigilante, mais constante da sua
existência. É essencialmente no sentido de aumentar as prer rogativas e o poder
do Estado que o processo de civilização opera: o Estado policial não é apenas
efeito de uma dinâmica autónoma do «monstro frio», é desejado pelos
indivíduos doravante isolados e pacíficos, ainda que estes de nunciem
regularmente a sua natureza repressiva e os seus excessos. Multipli cação das
leis penais, aumento dos efectivos e dos poderes da polícia, vigi lância
sistemática das populações, são os efeitos inelutáveis de uma socieda de em que
a violência é desvalorizada e em que simultaneamente aumenta a necessidade de
segurança pública. O Estado moderno criou o indivíduo so cialmente desligado
dos seus semelhantes, mas este cria, em contrapartida, pelo seu isolamento, a sua
ausência de belicosidade, o seu medo da violên cia, as condições constantes de
desenvolvimento da força pública. Quanto mais os indivíduos se sentem livres,
mais pedem uma protecção regular e sem falhas por parte dos órgãos estatais;
quanto mais abominam a brutali dade, mais necessário se torna o aumento das
forças de segurança: a huma nizaçáo dos costumes pode assim interpretar-se
como um processo visando desapossar o indivíduo dos princípios refractários à
hegemonia do poder to tal, ao projecto de colocar a sociedade inteira sob a tutela
do Estado.
Inseparável do individualismo moderno, o processo de civilização não de ve, no
entanto, ser atribuído à revolução democrática concebida como disso lução do
universo hierárquico e advento do reino da igualdade. Sabe-se que na
problemática tocquevilliana, é a «igualdade das condições» que, reduzin do as
dissemelhanças ditas de natureza entre os homens, instituindo uma identidade
antropológica universal, explica a suavização dos costumes, a regressão do
emprego da violência interpessoal. Em séculos de desigualdade, não existindo a
ideia de semelhança entre os homens, a compaixão, a aten ção para com os que
pertencem a uma casta consíderada heterogénea, têm poucas probabilidades de
se desenvolver; em compensação, a dinâmica igua litária, produzindo uma
identidade profunda entre todos os seres, tornados doravante membros iguais de
uma mesma humanidade homogénea, favorece a identificação com a infelicidade
ou a dor do outro e, desse modo, opõe-se aos excessos da violência e da
crueldade A esta interpretação, que tem o mérito de analisar a violência em
termos de lógicas e significações sociais históricas, devemos, contudo, objectar
que a crueldade e a violência dos tempos hierárquicos não se afirmava apenas
entre indivíduos de ordens dife rentes: os «iguais» eram também vítimas de uma
violência não menos cruel. Os ódios de sangue não eram tanto mais fortes
quanto mais próximos e se melhantes eram os seres humanos neles envolvidos?
Assim as denúncias por feitiçaria dos séculos XVI e XVII incidiam quase
exclusivamente sobre pes soas que os acusadores conheciam bem, vizinhos e
iguais; os duelos e ven dettas desenrolavam-se essencialmente entre pessoas da
mesma condição. Se, entre iguais, a violência e a crueldade não eram menores,
isso significa que não é da igualdade, concebida como estrutura moderna de
apercepção do outro enquanto «mesmo», que devemos partir para tornarmos
inteligível a pacificação dos indivíduos. A civilização dos comportamentos não
surge com a igualdade, mas com a atomização social, com a emergência de
novos valo res privilegiando a relação com as coisas e a desafecção
concomitante dos códigos da honra e da vingança. Não é o sentimento de
semelhança entre os seres que explica o declínio das violências privadas; a
crueldade começa a causar horror, as rixas tornam-se sinal de selvajaria quando
o culto da vida privada suplanta as prescrições holistas, quando o indivíduo se
retrai e fecha em si próprio, cada vez mais indiferente aos juízos dos outros. A
este título, a humanização da sociedade não passa de uma das expressões do
processo de dessocialização característico dos tempos modernos.
Apesar de tudo, tendo ligado a moderação dos comportamentos moder nos à
promoção democrática da iden4ficação entre os seres, Tocqueville sou be
conduzir-nos ao coração do problema. Num povo democrático, cada in divíduo
sente espontaneamente a miséria do outro: «Pouco importará que se rate de
estrangeiros ou inimigos: a imaginação põe-no imediatamente no seu lugar.
Mistura qualquer coisa de pessoal à sua piedade e fá-lo sofrer en quanto o corpo
do seu semelhante é dilacerado» Contrariamente ao que pensava Rousseau, a
«piedade» não ficou para trás de nós no passado; é obra daquilo que, segundo ele
pensava, a excluia, a saber, a atomização in dividualista. O retraimento do
indivíduo em si próprio, a privatização da vi da, longe de abafarem a
identificação do outro, estimulam-na. Temos que pensar conjuntamente o
indivíduo moderno e o processo de identificação, e este só tem verdadeiro
sentido onde a dessocialização libertou já o indivíduo dos seus laços colectivos e
rituais, onde o sujeito e o outro podem encontrar- se como indivíduos autónomos
num frente a frente independente dos mode los sociais pré-estabelecidos.
Inversamente, pela preeminência atribuida ao todo social, a organização holista
constitui um obstáculo à identificação in tersubjectiva. Enquanto a relação
interpessoal não consegue emancipar-se das representações colectivas, a
identificação não se opera entre mim e ou trém, mas entre mim e uma imagem
de grupo ou modelo tradicional. Nada de semelhante encontramos na sociedade
individualista que tem como conse quência tornar possível uma identificação
estritamente psicológica, quer di zer, implicando pessoas ou imagens privadas,
uma vez que já nada dita im perativamente e desde sempre o que deve ser feito,
dito, acreditado. Parado xalmente, é à força de se considerar de modo isolado, de
viver para si pró prio, que o indivíduo se abre à infelicidade do outro. Quanto
mais o indiví duo existe como pessoa privada, mais sente a aflição ou a dor do
outro; o sangue, os ataques à integridade do corpo tornam-se espectáculos
insuportá veis, a dor surge como uma aberração caótica e escandalosa, a
sensibilidade tornou-se uma característica permanente do homo clausus. O
individualismo produz, por conseguinte, dois efeitos inversos e, todavia,
complementares: a indiferença ao outro e a sensibilidade à dor do outro: «Nos
séculos democrá ticos, os homens raramente se dedicam uns aos outros, mas
mostram uma compaixão geral por todos os membros da espécie humana»
Poderemos ignorar esta nova lógica social quando queremos compreender o
processo de humanização dos castigos que se inicia na charneira entre o século
XVIII e o século XIX? Sem dúvida, temos que ligar esta mutação pe nal ao
advento de uni novo dispositivo do poder cuja vocação já não é, como foi o caso
desde a origem dos Estados, afirmar na violência inumana dos suplícios a sua
superioridade eminente, a sua força soberana e desmedida, mas, pelo contrário,
administrar e penetrar lentamente a sociedade, quadri culando-a de forma
contínua, comedida, homogénea, regular, até aos seus pontos mais recônditos'.
Mas a reforma penal não teria sido possível sem a deslocação profunda da
relação com o outro suscitada pela revolução indivi dualista, correlativa do
Estado moderno. Um pouco por todo o lado, na se gunda metade do século
XVIII, elevam-se protestos contra a atrocidade dos castigos corporais, estes
começam a tornar-se socialmente ilegítimos, a ser assimilados à barbárie. Aquilo
que desde sempre parecia natural, é agora escandaloso: o mundo individualista e
a identificação específica com o outro que ele engendra, constituiu o quadro
social adaptado ao abandono das prá ticas legais da crueldade. Precisamos de ter
cuidado com o «tudo é política», ainda quando se distribui por estratégias
microscópicas: a humanização das penas não teria podido adquirir semelhante
legitimidade, não teria podido desenvolver-se com uma tal lógica na longa
duração se não tivesse coincidido ao nível mais profundo com a nova relação de
homem a homem instituída pelo processo individualista. Não é necessário
retomar a questão das priori dades: o Estado e a sociedade trabalham
paralelamente na afirmação do princípio da moderação das penas.
A escalada da pacificação
Que se passa com o processo de civilização no momento em que as socie dades
ocidentais se vêem regidas de maneira preponderante pelo processo de
personalização? Apesar do leitmotiv actual do crescimento da insegurança e da
violência, é claro que a época do consumo e da comunicação apenas continua
por outros meios o trabalho inaugurado pela lógica estatal--individualista
precedente. A estatística criminal, por imperfeita que seja, aponta nesse sentido;
na longa e média duração, as taxas de homicídio per manecem relativamente
estáveis: memo nos EVA, onde a taxa de homicídio é excepcionalmente elevada
— embora muito menos elevada do que em páí ses como a Colômbia e a
Tailândia —, a taxa de 9 vítimas por 100 000 habi tantes atingida em 1930 mal
chegou a ser ultrapassada em 1974 com 9,3. Em França, a taxa de homicídio
oficial (sem tomarmos, portanto, em consideração os «números negros») era de
0,7 em 1876-1880; de 0,8 em 1972. Em 1900-1910, a taxa de mortalidade por
homicídio em Paris era de 3,4 contra 1,1 em 1963-1966. A era do consumo
acentua a pacificação dos comporta mentos e, em particular, faz diminuir a
frequência das rixas e da violência física: nos departamentos do Sena e do Norte,
as taxas das condenações por pancadas e ferimentos em 1875-1885 elevavam-se
respectivamente a 63 e a 110 para 100 000 habitantes; em 1975, fixavam-se à
volta de 38 e 56. No sé culo da industrialização e até uma data recente, tanto em
Paris como na província, as rixas eram moeda corrente entre a classe operária,
classe com um sentido da honra susceptível, fiel ao culto da força. Mesmo as
mulheres, a darmos crédito a certos jaits divers referidos por L. Chevalier e às
descri ções de Vallès e de Zola, não hesitavam em recorrer às injúrias e às mãos
para resolverem as suas disputas. Nos nossos dias, a violência desaparece
maciçamente da paisagem urbana, tornando-se, ao mesmo título e mais ain da do
que a morte, o interdito maior das nossas sociedades. As próprias classes
populares renunciaram à tradicional valorização da força e adopta ram um estilo
coo! de comportamento — é esse o verdadeiro sentido do «aburguesamento» da
nossa sociedade. O que nem a educação disciplinar nem a autonomia pessoal
conseguiram realizar efectivamente, consegue-o a lógica da personalização ao
estimular a comunicação e o consumo, sacrali zando o corpo, o equilíbrio e a
saúde, destruindo o culto do herói, desculpa bilizando o medo, em suma
instituindo um novo estilo de vida, novos valo res, e levando ao seu ponto
culminante a individualização dos seres, a re tracção da vida pública, o
desinteresse pelo Outro.
Cada vez mais fechados nas suas preocupações privadas, os indivíduos
pacificam-se não por ética, mas por hiper-absorção individualista: em socie
dades que promovem o bem-estar e a auto-realização, os indivíduos, com to da a
evidência, sentem-se mais desejosos de se descobrirem a si próprios, de se
auscultarem, de «descarregarem» por meio de viagens, de músicas, de desportos,
de espectáculos, do que de se confrontarem fisicamente. A repul sa profunda e
geral dos nossos contemporâneos perante os comportamentos violentos é função
desta disseminação hedonista e informacional do corpo social realizada pelo
reino do automóvel, dos media, dos tempos livres. E a época do consumo e da
informação que, além disso, faz declinar um certo tipo de alcoolismo,os rituais
do café, lugar sem dúvida de uma nova sociabilídade masculina no século XIX e
até meio do século XX, como bem diz Ariès, mas igualmente lugar entre todos
favorável ao desencadear da violên cia: na viragem do século, um delito de
agressão em cada dois deve ser atri buído ao estado de embriaguez. Dispersando
os indivíduos através da lógica dos objectos e dos media, levando-os a desertar
do café (pensamos evidentemente aqui no caso francês) em benefício da
existência consumidora, o pro cesso de personalização destruiu lentainente as
normas de uma sociabilidade viril responsável por um alto nível de
criminalidade violenta.
Paralelamente, a sociedade de consumo completa a neutralização das re lações
inter-humanas; a indiferença pelo destino e pelos juízos do outro ad quire então
toda a sua extensão. O indivíduo renuncia à violência não só porque apareceram
novos bens e fins privados, mas porque, no mesmo mo vimento, o outro se torna
dessubstancialjzado, um «figurante» sem importân cia 1, quer seja membro
afastado do grupo familiar restrito, vizinho de pata- mar ou colega de trabalho. É
este discount da relação inter-humana reforça do pelo hiper-investimento
individualista ou narcísico que se encontra na ori gem do declínio dos actos de
violência. Indiferença pelos outros de um géne ro novo, devemos acrescentar,
porque simultaneamente as relações interindi viduais não param de ser
reestruturadas, modeladas pelos valores psicologis tas e comunicacionais. Tal é o
paradoxo da relação interpessoal na socieda de narcísica: cada vez menos
interesse e consideração pelo outro e, todavia, cada vez maior desejo de
comunicar, de deixar de lado a agressividade, de compreender outrém.
Convivialidade psi e indiferença pelos outros desenvol vem-se hoje juntamente;
nestas condições, como poderia a violência deixar de recuar?
Enquanto a violência física interindiyjduaj regride inelutavelmente, a vio É
precisamente onde a relação inter-humana não se institui na base da indiferença,
a saber, no interior do meio familiar ou das pessoas mais chegadas, que a
violência é mais fre quente. Nos EUA, em 1970, um homicídio em cada quatro
era de tipo familiar; em Inglaterra, no final dos anos sessenta, mais de 46 por
cento de todos os homicídios eram assassinatos de ti- po doméstico ou visando
pessoas chegadas; nos Estados-Unidos, o número total de vítimas de violências
familiares (mortes, golpes e ferimentos) era em 1975 da ordem de oito milhões
(cerca de 4 por cento da população). Cf. J. C. Chesnais, Histoire da la violence,
Laffont, col. «Pluriel», 1981, pp. 100-107. A violência de sangue é tributária da
ordem narcísica das nossas sociedades que estreitam e intensificam o campo das
relações privadas; nestas condições, desencadeia-se prioritariamente contra
aqueles que nos abandonam ou enganam, aqueles que ocupam a nossa
proximidade mais íntima, aqueles que suportamos quotidianamente na mesma
casa.
lência verbal sofre, também ela, o choque narcísico. Deste modo as injúrias com
um sentido social, tão frequentes no século xviii (vadio, piolhoso, esfo meado,
porco) deram lugar a insultos de carácter mais « o mais das vezes de índole
sexual. Da mesma maneira, os insultos como cuspir no rosto ou à passagem de
alguém desapareceram, incompatíveis que são com as nos sas sociedades
higiénicas e indiferentes. De um modo geral, o insulto banali zou-se, perdeu a
sua dimensão de desafio e designa menos uma vontade de humilhar o outro do
que um impulso anónimo desprovido de intenções beli cosas e, por isso,
raramente seguido de embate físico: o indivíduo que, ao volante do seu
automóvel, injuria um outro condutor, não deseja de maneira nenhuma rebaixálo, e o indivíduo que é objecto do insulto não se sente, no fundo, minimamente
lesado. Num tempo narcísico, a violência verbal des substancializou-se, já não
tem significação interindividual, tornou-se hard, quer dizer sem fim nem sentido,
violência impulsiva e nervosa, dessocializa da.
O processo de personalização é um operador de pacificação generalizada; de
acordo com o seu registo, as crianças, as mulheres, os animais deixam de ser os
alvos tradicionais da violência que continuavam ainda a ser no século XIX e, por
vezes, na primeira metade do século XX. Através da valorização sistemática do
diálogo, da participação, da escuta do pedido subjectivo, que a sedução pósmoderna põe a funcionar, é o próprio princípio da correcção física, mantido ou
até reforçado pela era das disciplinas, que se vê rejeitado pelo processo
educativo, O eclipse dos castigos corporais resulta da promo ção de modelos
educativos à base de comunicação recíproca, de psicologiza ção das relações no
momento em que os pais justamente deixam de se reco nhecer como modelos a
imitar pelos seus filhos. O processo de personaliza çáo dilui todas as grandes
figuras da autoridade, mina o princípio de ex emplo, demasiado tributário de
uma era distante e autoritária que sufocava as espontaneidades singulares,
dissolve por fim as convicções em matéria de educaçáo: a essubstancialização
narcísica manifestava-se no centro da famí lia nuclear como impotência,
desapropriaçãO e demissão educativa. A puni ção física que, ontem ainda, tinha
uma função positiva na aprendizagem e transmissão das normas, já não passa de
um malogro vergonhoso e culpabi lizador da comunicação entre pais e filhos, de
um último impulso descontro lado, em desespero de autoridade.
A campanha em torno das mulheres espancadas desenvolve-se e encontra o eco
que sabemos à medida que a violência masculina regride nos usos,
desqualificada por um tempo «transsexual» em que a virilidade deixa de ser
associada à força e a feminilidade à passividade. A violência masculina era a
actualização e a reafirmação de um código de comportamento que assentava na
divisão imemorial dos sexos: este código vê-se desafectado quando, sob o efeito
do processo de personalização, o masculino e o feminino já não têm nem
definições rigorosas nem lugares marcados, quando o esquema da supe rioridade
masculina é rejeitado por todos os lados, quando o princípio da autoridade
musculada dá lugar ao imaginário da livre disposição de si pró prio, do diálogo
psi, da vida sem entraves nem compromissos definitivos. Ê verdade que resta a
questão da violação: em França, 1 600 violações foram registas em 1978 (3
violações por 100 000 habitantes), mas é verosímil que tenham sido cometidas
realmente perto de 8 000 (números negros); nos EUA, com mais de 60 000
violações, a taxa atinge valores extremos: 29 por 100 000 habitantes. Na maior
parte dos países desenvolvidos, regista-se um número crescente de violações
sem que seja possível, porém, determinar se esta elevação resulta de um aumento
efectivo das agressões sexuais ou de urna desculpabilização das mulheres
violadas, permitindo-lhes declarar mais facilmente as violências sofridas: na
Suécia, o número das violações mais que duplicou num quarto de século; nos
EUA, a sua frecjência quadrupli cou entre 1957 e 1978. Em contrapartida, desde
há um século, tudo parece indicar uma queda muito sensível da violência sexual:
a frequência da viola ção em França seria cinco vezes menor do que durante a
década de 1870 1* A despeito do agravamento relativo da violência sexual, o
processo coo! de personalização continua a moderar os comportamentos
masculinos, sendo o recrudescjrnento do número das violações acompanhado
pela sua relegação para uma população afinal muito circunscrita: por um lado, os
acusados recrutam-se em grande número nos grupos raciais e culturais (nos
EUA, quase metade das detenções têm por objecto indivíduos negros), por outro
lado, não podemos ignorar que pelo menos uma terça parte dos violadores, em
França, são reincidentes.
Por fim, a relação com os animais foi também anexada pelo processo de
civilização. Se as leis de 1850 e 1898 permitiam em teoria punir as violências
contra os animais, sabe-se que foram letra morta e que, na realidade, esse tipo de
crueldade estava longe de ser unanimemente condenado. No século XIX, a
brutalidade nos matadouros era coisa corrente; os combates de ani mais eram dos
espectáculos favoritos dos operários, «punham-se os perús a dançar em cima de
placas de ferro aquecidas, atiravam-se pedras a pombos fechados em caixas com
a cabeça de fora a servir de alvo» 1 Todo um mun do nos separa desta
sensibilidade; nos nossos dias as sevícias sobre os ani mais são maciçamente
condenadas, de toda a parte se levantam protestos contra a caça e as touradas,
contra as condições de criação do gado, contra certas normas de experimentação
científica. Mas em sector algum a humani zaçáo é mais visível do que entre as
crianças, que, facto único na história, já não tomam prazer em brincadeiras,
outrora naturais, que consistiam em tor turar os animais. Se o individualismo
moderno foi acompanhado pela liber tação do mecanismo da identificação com
outrém, o individualismo pós- moderno tem como característica o alargamento
desta identificação para lá da ordem humana. Identificação complexa que deve
ser ligada à psicologiza ção do indivíduo:à medida que este se «personaliza», as
fronteiras que sepa ram o homem do anin esbatem-se, toda a dor, ainda que
experimentada por um animal, se torna insuportável ao indivíduo doravante
constitutiva- mente frágil, abalado, horrorizado pela simples ideia de sofrimento.
Organi zando o indivíduo como estrutura mole e psi, o narcisismo aumenta a
recep tividade relativamente ao exterior; a humanização dos costumes que, de
res to, é acompanhada por uma indiferença igualmente sistemática, como
comprovam as vagas de abandonos de animais durante as mígrações de ve rão,
deve ser interpretada como uma nova vulnerabilidade, uma nova inca pacidade
dos homens de se confrontarem com a provação da dor.
Prova de certo modo incontornável desta moderação sem precedentes da
sociedade, em 1976, 95 por cento dos Franceses afirmavam não ter sofrido ao
longo do mês no termo do qual foram inquiridos qualquer violência; mais ainda,
os interrogados afirmavam que, ao longo desse mês, nenhum membro da sua
família (87 por cento) ou nenhum conhecido (86 por cento) fora víti ma de
qualquer agressão. De maneira que nem o aumento de uma nova cri minalidade
violenta, nem os tumultos nos estádios ou nos bailes de sábado à noite devem
ocultar-nos o pano de fundo sobre o qual se destacam: a violên cia física entre
indivíduos torna-se cada vez mais invisível, transformou-se numa colecção
defait divers traumatizantes. Isto não impedia que, no mes mo momento, dois
indivíduos em cada três pensassem que os comportamentos violentos eram hoje
mais comuns que num passado próximo ou no come ço do século. Sabe-se que,
em todos os países desenvolvidos, o sentimento de insegurança aumenta; em
França, 80 por cento da população sente aguda- mente um acréscimo de
violência; 73 por cento reconhecem ter medo de vol tar a pé à noite para casa;
um indivíduo em cada dois receia andar à noite de carro numa estrada
secundária. Na Europa, como nos EUA, a luta con tra a criminalidade ocupa o
primeiro lugar entre as preocupações e priorida de do público. Deveremos então,
dado este divórcio entre os factos e o vivi do, considerar a insegurança actual
como uma ilusão, uma maquinação do poder servindo-se dos media como
intermediários, exportando uma falsa consciência a fim de assegurar o seu
controlo social num período de crise e de decomposição ideológica? Mas como e
porque é que esta «ideologia» con segue introduzir-se na sociedade? É levar em
pouca conta as transformações profundas da sociedade civil e da relação com a
violência delas decorrente. De facto, o sentimento de insegurança cresce,
alimentando-se do mais pe quenofait divers e isto independentemente das
campanhas de intoxicação. A insegurança actual não é uma ideologia, está
inelutavelmente correlacionada com um indivíduo desestabilizado e desarmado
que amplifica todos os ris cos, se sente obcecado pelos seus problemas pessoais,
exasperado por um sistema repressivo considerado inactivo ou «demasiado» c
um indiví duo que se habituou a ser protegido e se sente traumatizado por uma
violên cia de que nada sabe: a insegurança quotidiana resume sob uma forma an
gustiada a dessubstancialização pó-moderna. O narcisismo, inseparável de um
medo endémico, só se constitui afirmando um exterior exageradamente
ameaçador, o que, por seu turno, só pode alargar a gama dos reflexos indi
vidualistas: actos de auto-defesa, indiferença pelo outro, aprisionamento em
casa; enquanto um número não desprezível de habitantes das grandes cida des se
abrigam já por trás da sua porta blindada e renunciam a sair à noite, apenas 6 por
cento dos Parisienses interviriam se ouvissem à noite chamar por socorro.
Curiosamente, a representação da violência torna-se tanto mais exacerba da
quanto mais a violência regride na sociedade civil. No cinema, no teatro, na
literatura, assistimos, com efeito, a uma profusão de cenas de violência, a um
deboche de horror e atrocidade sem precedentes; nunca a «arte» se em penhou
tanto em mostrar de tão perto a própria textura da violência, violên cia hi-fi feita
de cenas insuportáveis de ossos esmagados, jactos de sangue, gritos,
decapitações, amputações, castrações. Deste modo, a sociedade coo! é
acompanhada pelo estilo hard, pelo espectáculo em trompe !‘oei! de uma
violência hiper-realista. Não daremos conta desta pornografia do atroz a partir de
qualquer necessidade sádica recalcada pelas nossas sociedades de puradas; mais
vale que registemos a radicalidade de representações doravan te autónomas e,
portanto, votadas a um puro processo maximalista. A for ma hard não exprime a
pulsão, não compensa uma falta, como também não descreve a natureza
intrínseca da violência pós-moderna; quando já não há nenhum código moral a
transgredir, resta a fuga para diante, a espiral ex tremista, o requinte do
pormenor pelo pormenor, o hiperrealismo da violên cia, tendo por único
objectivo a sideração e a sensação instantâneas.
E por isso que é possível identificar a presença do processo hard em to das as
esferas, o sexo (a pornografia; a prostituição de crianças cada vez mais jovens:
em Nova York calcula-se em perto de doze mil o número de ra pazes e raparigas
com menos de dezasseis anos nas mãos dos proxenetas), a informação (o
frenesim do «directo»), a droga (com a sua escalada de priva ção e de doses), os
sons (a corrida aos decibéis), a «moda» (punks, ski nheads, couro), o ritmo (o
rock), o desporto (doping e super-preparação dos atletas; eclosão da prática do
karaté; bodybuilding feminino com a sua fe bre de músculo); longe de ser uma
moda mais ou menos aleatória, o efeito hard é correlativo da ordem coo!, da
desestabilização e da dessubstancializa ção narcísica, ao mesmo título que o
efeito humorístico, que representa a fa ce oposta, mas logicamente homóloga. À
dissolução gradual dos pontos de referência maiores, ao vazio do hiperindividualismo, corresponde uma radi calidade sem conteúdo dos
comportamentos e representações, uma subida aos extremos nos signos e habitus
do quotidiano; por toda a parte o mesmo processo extremista está em acção, o
tempo das significações, dos conteúdos pesados vacila: vivemos a época dos
efeitos especiais e da performance pura. da exasperação e da amplificação
vazias.
Crimes e suicídios: violências hard
A paisagem da violência não deixou de se alterar com o advento das so ciedades
governadas pelo processo de personalização. Se, no prolongamento dos séculos
XVIII e XIX, os crimes contra os bens (assaltos, roubos) e a delin quência
astuciosa (escroquerie...) continuam a levar de longe a melhor, em todos os
países ocidentais, sobre os crimes contra as pessoas, resta o facto de que a
grande criminalidade deu um facto social inédito: em França, entre 1963 e 1976,
os hoid-ups aumentaram 35 vezes; entre 1967 e 1976, 5 vezes mais roubos à
mão armada e 20 vezes mais hoid-ups foram cometidos. Sem dúvida, a partir de
1975, este tipo de criminalidade parece ter encontrado uma espécie de ponto de
equilíbrio e em números absolutos deixa de apre sentar progressões
espectaculares; não é menos verdade que o assalto à mão armada representa hoje
uma figura maior da violência urbana.
Se o processo de personalização suaviza os costumes da maioria, inversa mente
endurece os comportamentos criminosos dos desqualificados, favorece a
emergência de actos energúmenos, estimula a subida aos extremos no emprego
da violência. Do desenquadramento individualista e da desestabili zação actual
suscitada nomeadamente pela solicitação das necessidades e pe la sua frustração
crónica, resulta uma exacerbação cínica da violência ligada ao ganho, na
condição de precisarmos prontamente os limites deste fenóme no, circunscrito a
um número em última análise reduzido de indivíduos que acumulam as
agressões: na capital federal dos Estados Unidos, 7 por cento dos criminosos
detidos num período de quatro anos e meio foram presos quatro vezes, e esses 7
por cento eram os presumíveis culpados de 24 por cento de todos os crimes
graves perpetrados ao longo dos mesmos anos.
Outrora, o grande banditismo referia-se sobretudo a uma população liga da ao
proxenetismo, ao racket, ao tráfico de armas eÂe estupefacientes; ho je
assistimos a uma enchente ou «desprofissionalização» do crime, quer dizer à
emergência de uma violência cujos autores, muitas vezes desconhecidos dos
serviços da polícia, não têm qualquer familiaridade com o «meio». A vio lência
criminosa, de acordo com a flutuação generalizada, estende-se, perde as suas
fronteiras estritas, incluindo no que diz respeito aos grupos etários:
em França, em 1975, em cem pessoas que respondiam perante a justiça por actos
de criminalidade grave, dezoito eram menores; 24 por cento dos auto res de
hoid-ups e de roubos à mão armada tinham menos de vinte anos; nos EUA, 57
por cento dos auto.res de crimes violentos tinham, em 1979, menos de vinte e
cinco anos e ui em cada cinco menos de dezoito anos. A delin quência juvenil
não se desenvolveu muito em volume, mas tornou-se mais violenta. O processo
de personalização que generaliza o culto da juventude pacífica os adujtos, mas
endurece os mais novos, que, de acordo com a lógi ca hiper-individualista,
tendem a afirmar cada vez mais cedo, cada vez mais depressa, a sua autonomia,
tanto material como psicológica, mesmo que através do emprego da violência.
O mundo hard é jovem e toca em primeira linha os desenraízados cultu rais, as
minorias raciais, imigrados e filhos de famílias imigradas. A ordem do consumo
pulveriza muito mais radicalmente as estruturas e personalidade tradicionais do
que o pôde fazer a ordem racista colonial: doravante o que caracteriza o retrato
do «colonizado» é menos a inferiorização do que uma desorganização
sistemática da sua identidade, uma desorientação violenta do ego suscitada pela
estimulação de modelos individualistas eufóricos que con vidam a viver
intensamente. Por toda a parte, o processo de personalização desmantela a
personalidade; no jardim da fachada, temos a dispersão narcí sica e pacífica; nas
traseiras, a explosão energúmena e violenta. A sociedade hedonista produz sem
dar por isso um composto explosivo quando se imbri ca, como é aqui o caso,
num universo de honra e de vingança à deriva. A violência dos jovens excluídos
em razão da cor ou da cultura é um patch work, resulta do choque entre o
desenquadramento personalizado e o en quadramento tradicional, entre um
sistema à base de desejos individualistas, de profusão, de tolerância e uma
realidade quotidiana de ghettos, de de semprego, de desocupação, de indiferença
hostil ou racista. A lógica coo! prossegue por outros meios o trabalho
plurissecular da exclusão e da relega ção; não já através da exploração ou da
alienação decorrente da imposição autoritária das normas ocidentais, mas através
da criminalização.
Quando, em 1975, não representavam mais de 8 por cento da população
francesa, os estrangeiros eram responsáveis por 26 por cento dos roubos
acompanhados de violência, 23 por cento dos espancamentos e ferimentos, 20
por cento dos homicídios, 27 por cento das violações, 26 por cento das
condenações por porte de arma indevido. Em 1980, em Marselha, 32 por cento
das agressões e ferimentos e 50 por cento dos roubos acompanhados de violência
foram obra de jovens estrangeiros, o mais das vezes maghrebi nos: se
observarmos que os jovens nascidos de famílias imigradas, mas eles próprios já
de nacionalidade francesa, não figuram nestes números, sendo evidentemente
contabilizados na estatística criminal francesa, podemos ima ginar a
representação muito forte, no conjunto de todos os grupos, dos imi grados e
filhos de imigrados nos actos de vio'ência, proporção que não se ex plica
unicamente pelo facto de a polícia ou a justiça investigarem, prende rem e
condenarem mais facilmente os «estrangeiros» do que os autóctones. Nos
Estados-Unidos, onde de maneira geral a violência é considerável — há um acto
de violência em cada sete segundos, ao que se diz —, os Negros en contram-se
igualmente super-representados nos crimes violentos, quer como agressores quer
como vítimas. Com efeito, em larga medida, os actos violen tos desenrolam-se
entre indivíduos da mesma cor: há mais crimes entre Ne gros do que de Negros
contra Brancos e vice-versa. Na população negra, o homicídio é hoje a primeira
causa de morte tanto para os homens como para as mulheres entre os vinte e
quatro e os trinta e quatro anos, enquanto para a população branca da mesma
idade essa causa são os acidentes de trânsito. Os Negros correm um risco seis
vezes maior de morrer por homicídio do que os Brancos: se considerarmos
apenas o caso dos homens, em 1978 as mortes por homicídio elevavam-se a 78,1
por 100 000 habitantes na população ne gra, sendo de 12,2 para os Brancos.
Quase metade dos assassinos presos são Negros. Prova a contrario do processo
de civilização, a violência é cada vez mais o apanágio de grupos periféricos;
torna-se um facto relativo às mino rias. Apesar disso, não devemos ver nesta
violência de cor nem um habitus arcaico nem uma forma de revolta; é o ponto
culminante da desestabilização e da desintegração pós-moderna, da subida aos
extremos, dessocializada e cínica, ligada à liquefacção dos princípios,
enquadramentos e auto-contro los; é a manifestação hard da ordem coo!.
Desorganização ou degenerescência do banditismo que podemos ler so bretudo
na própria «qualidade» dos crimes. Enquanto os vadios profissionais organizam
minuciosamente os seus golpes, avaliam os ganhos e os riscos, pensam no alibi,
os delinquentes da nova vaga lançam-se em operações fre quentemente
improvisadas, sem conhecerem o local, os fundos, os sistemas de alarme, em
iniciativas de extrema gravidade contrw um ganho mínimo. Num só dia, cinco,
seis hol-ups por somas ridículas; é esta desproporção entre riscos e ganhos, entre
um fim insignificante e meios extremos que ca racteriza a criminalidade hard,
sem projecto, sem ambições, sem imagina rio. O processo de personalização que
trabalha no sentido de aumentar a responsabilidade dos indivíduos favorece, de
facto, comportamentos aberran tes, instáveis, indiferentes de algum modo ao
princípio de realidade e por
1 Indiferença igualmente visível no vandalismo, raiva hard que interpretamos
mal vendo nela uma forma desqualificada de reivindicação ou de protesto
simbólicos. O vandalismo dá tes temunho dessa desafecção nova que conquista
as coisas ao mesmo tempo que os valores e as instituições sociais. Do mesmo
modo que os ideais declinam e perdem a sua grandeza anterior, também os
objectos perdem toda a sua «sacralidade» nos sistemas acelerados de consumo: a
degradação vandálica tem como condição o fim do respeito pelas coisas, a
indiferença pelo real doravante vazio de sentido. Também aqui, uma vez mais a
violência hard reproduz a ordem social que a torna possível.
isso mesmo em consonância com o narcisismo dominante e correlativo: o real
transformado em espectáculo irreal, em expositor de vidro sem espessu ra, pela
lógica das solicitações. Consequência da desafecção das grandes fi nalidades
sociais e da preeminência conferida ao presente, o neo-narcisismo é uma
personalidade flutuante, sem estrutura nem vontade, sendo a labilida de e a
emotividade as suas características maiores. A este título, a violência hard,
desesperada, sem projecto, sem consistência, incarna a imagem de um tempo
sem futuro que valoriza o «tudo, e já»; longe de estar em antinomia
relativamente à ordem coo! e narcísica, é a sua expressão exasperada: a mes ma
indiferença, a mesma dessubstancialização, a mesma desestabilização, o que se
ganhou em individualismo perdeu-se em saber-fazer, em ambição, mas também
em sangue-frio, em controlo de si próprio: ao mesmo tempo que os jovens
mafiosi americanos se vão abaixo e quebram já sem grande re sistência a «lei do
silêncio», vemos aparecer essa figura mista e muito pós- moderna que é o jovem
assaltante armado e sob o efeito de tranquilizantes. A dessubstancialização, aqui
como noutros lugares, é acompanhada pelo flip e pela instabilidade. A violência
contemporânea já nada tem a ver com o mundo da crueldade; os nervos são o
seu traço dominante, não só entre os autores de assaltos, mas também entre os
criminosos das habitações econó micas que se enfurecem com os que fazem
barulho e até entre a polícia, co mo demonstra a multiplicação dos inquietantes
casos dos «deslizes» recentes.
O crime quase por nada: certamente, não se trata de coisa nova, as épo cas
anteriores conheceram igualmente crimes crapulosos por ganhos miserá veis. No
fim do século XIX, existe ainda uma criminalidade chamada das barreiras atacase um burguês perdido, um transeunte que é atraído aos fossos das fortificações.
Mas estas violências tinham em comum o facto de reafirmarem a conivência
imemorial do crime e da noite, do ilegalismo e do segredo. Hoje, este laço está
em vias de ser desfeito; o crime hard exibe-se em pleno dia, no coração da
cidade, indiferente às cautelas do anonimato, indiferente aos lugares e às horas,
como se o crime se esforçasse por partici par na pornografia do nosso tempo, a
da visibilidade total. Na esteira da de sestabilização geral, a violência deslastrase do seu princípio de realidade, os critérios do perigo e da prudência esbatemse, inicia-se assim uma banaliza ção do crime reforçada por uma subida
descontrolada aos extremos no em prego dos meios violentos.
A violência criminosa não é o único factor que designa o mundo hard. Menos
espectacular, menos submetido ao scoop, o suicídio constitui a sua outra face,
interiorizada se se quiser, mas regida por uma mesma progressão e uma mesma
lógica. Sem dúvida, a maré enchente de suicídios não é carac terística da pósmodernidade; sabe-se, com efeito, que ao longo de todo o século XIX, na
Europa, o suicídio não parou de crescer. Em França, de 1826 a 1899, o número
de suicídios multiplicou-se por cinco enquanto a sua taxa por 100 000 habitantes
passou de 5,6 a 23; na véspera da Primeira Guerra Mundial, esta taxa, já elevada,
é ultrapassada, atingindo 26,2. co mo Durkheim analisou correctamente, onde a
desinserção individualista to ma maior amplitude, o suicídio agrava-se de
maneira considerável. O suicí dio que, nas sociedades primitivas ou bárbaras, era
um acto de forte inte gração social efectivamente prescrito pelo código holista da
honra, torna-se, nas sociedades individualistas, um comportamento «egoísta»
cujo surto ful gurante não podia, segundo Durkheim, deixar de ser um fenómeno
patológi co e, portanto, evitável e passageiro, resultando menos da natureza da
so ciedade moderna do que das condições particulares em que ela se instituira.
A evolução da curva dos suicídios pôde, por um momento, confirmar o
«optimismo» de Durkheim, uma vez que a taxa muito elevada do início do
século descera para 19,2 em 19261930 e mesmo para 15,4 durante a década que
se inicia em 1960. Apoiando-se nestes números, houve quem sustentasse que a
sociedade contemporânea era «tranquila» e «equilibrada No entanto, sabemos
que não é assim: em primeiro lugar, a partir de 1977, em França, com uma taxa
próxima dos 20, assistimos de novo a um forte aumento do suicídio que
restabelece quase o nível do princípio do século ou do período entre as duas
guerras. Mas, para além deste agravamento, talvez conjuntu ral, da morte por
suicídio, é o número de tentativas de suicídio não seguidas de morte que nos
força a retomar a questão da natureza suicidogénea das nossas sociedades. Se
verificarmos efectivamente uma queda do número de mortes voluntárias,
observamos ao mesmo tempo uma elevação contínua das tentativas de suicídio, e
isso em todos os países desenvolvidos. Calcula-se que há entre 5 e 9 tentativas
por cada suicídio consumado: na Suécia, cerca de 2 000 pessoas se suicidam por
ano e 20 000 tentam fazê-lo; nos Estados- Unidos, são cometidos 25 000
suicídios e 200 000 tentados sem êxito. Em França, houve, em 1980, 10 500
suicídios consumados e provavelmente cerca de 100 000 tentativas. Ora, tudo
leva a pensar que o número de tentativas no século XIX não podia ser
equivalente ao que actualmente conhecemos. Em primeiro lugar, porque os
modos de preparação eram mais «eficazes»:
enforcamento, afogamento, armas de fogo eram os três instrumentos privile
giados do suicídio até 1960; depois, porque o estado da medicina não permi tia
salvar o mesmo número de autores de tentativas suicidárias; por fim, da da a
proporção muito elevada, na população suicidante, das pessoas idosas, ou seja,
mais resolvidas, mais determinadas a morrer. Dada a extensão sem precedentes
das tentativas de suicídio, a epidemia do suicídio está longe de ter chegado ao
fim: a sociedade pós-moderna, acentuando o seu individualis mo, modificando o
seu teor por meio da lógica narcísica, multiplicou as ten dências para a autodestruição, ainda que transformando a sua intensidade; a era narcísica é mais
suicidogénea do que a era autoritária. Longe de ser um acidente inaugural das
sociedades individualistas, o movimento ascensio nal dos suicídios é correlativo
delas, no plano da longa duração.
Se a distância entre as tentativas e as mortes por suicídio aumenta, isso liga-se
sem dúvida aos progressos da medicina em matéria de tratamento das
intoxicações agudas, mas também ao facto de a intoxicação por medica mentos e
venenos se ter tornado uma forma largamente predominante de ten tativa ou
consumação do suicídio. Se encararmos o conjunto dos actos suici dários
(tentativas incluídas), as intoxicações, medicamentos e gás ocupam actualmente
o primeiro lugar entre os meios utilizados, sendo escolhidos por quatro quintos
dos que se suicidam ou tentam suicidar-se. De algum modo, o suicídio paga o
seu tributo à ordem coo/: cada vez menos sangrento e do loroso, o suicídio,
como os comportamentos inter-individuais, suaviza-se: a violência autodestrutiva não desaparece, são os meios que perdem o antigo brilho.
Se as tentativas aumentam, isso liga-se igualmente ao facto de a popula ção
suicidante ser mais jovem: acontece com o suicídio o mesmo que com a grande
criminalidade, e a violência hard é jovem. O processo de personaliza ção
promove um tipo de personalidade cada vez menos capaz de afrontar a prova do
real: a fragilidade, a vulnerabilidade crescem, e isto principalmente entre a
juventude, categoria social mais destituída de pontos de referência e de
enraízamento. Os jovens, até há pouco relativamente preservados dos efeitos
destruídores do individualismo através de uma educação e de um en
quadramento estáveis e autoritários, sofrem em cheio a desestabijização
narcísica; são eles que hoje representam a figura última do indivíduo desin
sendo, estilhaçado, desestabjljzado por excesso de protecção ou de derrelição e,
por isso, candidato ideal ao suicídio. Na América, os jovens entre quinze e vinte
e quatro anos suicidam-se a um ritmo duplo do de há dez anos, tri plo do de há
vinte anos. O suicídio diminui nas idades em que outrora era mais frequente,
mas não deixa de aumentar entre os mais jovens: nos EUA, o suicídio é já a
segunda causa de morte dos jovens, a par dos acidentes de viação. Talvez
estejamos apenas no início do processo; é o que pensamos quando nos damos
conta, em toda a sua monstruosidade, do grau último a que chegou a escalada da
auto-destruição no Japão: facto inaudito, são ago ra as crianças entre cinco e
catorze anos que, em grande número, se matam — de 56 em 1965 passaram a
100 em 1975, e a 265 em 1980.
Com a ingestão de barbitúrjcos e a taxa considerável das tentativas falha das, o
suicídio entra na era de massas, adquire um estatuto banalizado e disco unt, do
mesmo modo que a depressão e a fadiga. Actualmente o suicí dio vê-se anexado
por um processo de indeterminação em que o desejo de vi ver e desejo de morrer
já não são antinómicos, mas flutuam entre um pólo e outro, quase
instantaneamente. Grande número de suicidantes, assim, inge rem o conteúdo da
sua farmácia para logo a seguir pedirem auxílio médico; o suicídio perde a
radicaljdade, desrealiza-se no momento em que os pontos de referência
individuais e sociais se flexibilizam, em que o próprio real se esvazia da sua
substância densa e se identifica com uma encenação progra mada. Esta
liquefacção do desejo de aniquilamento é apenas uma das faces do neonarcisismo, da desestruturação do Eu e da dessubstancialização da vontade.
Quando o narcisismo é preponderante, o suícídio procede mais de uma
espontaneidade depressiva, doflip efémero do que de um desespero ex istencial
definitivo. Deste modo, nos nossos dias, o suicídio pode verificar-se
paradoxalmente sem desejo de morte, um pouco como esses crimes entre vi
zinhos em que o indivíduo mata menos por vontade de morte do que para se
desembaraçar simplesmente de uma fonte de poluição sonora. O indivíduo pósmoderno tenta matar-se sem querer morrer, como esses assaltantes que disparam
ao acaso e por nervosismo; os indivíduos tentam pôr termo à vida por causa de
qualquer observação menos lisonjeira, do mesmo modo que outros matam para
arranjar um bilhete de cinema; trata-se do efeito hard, de uma violência sem
projecto, sem vontade afirmada, uma subida aos ex tremos instantânea: neste
ponto a violência hard é veiculada pela lógica cool do processo de
personalização.
Individualismo e revolução
O processo individualista que progride juntamente com a redução do de safio
interpessoal é, em contrapartida, acompanhado por um desafio inédito, de
alcance muito mais radical, o da sociedade frente ao Estado. Ê, com efei to, no
momento em que a relação de homem a homem se «humaniza» que se abrem o
projecto e a acção revolucionárias, bem como uma luta de classes declarada,
consciente de si própria, tendo por missão dividir a história ao meio e abolir a
própria máquina estatal. Processos de civilização e revolução são concomitantes.
Nas sociedades holistas, a violência dos homens poupava a definição do seu
estar-em-conjunto; a despeito dos seus caracteres sangren tos, os motins e
revoltas tradicionais não visavam destruir a arquitectura do todo social. Pelo
contrário, nas sociedades individualistas, são os fundamen tos da sociedade, o
teor intrínseco da lei e do poder que se tornam objectos do debate público, alvos
da luta dos indivíduos e das classes. Começa a era moderna da violência social,
doravante peça constitutiva da dinâmica histó rica, instrumento de transformação
e de adaptação da sociedade e do Esta do. A violência das massas torna-se um
princípio útil e necessário ao funcio namento, ao crescimento das sociedades
modernas, tendo a luta de classes permitido ao capitalismo nomeadamente
superar as suas crises, reabsorven do o seu desequilíbrio crónico entre produção
e consumo.
Impossível compreender a emergência do fenómeno revolucionário, bem como a
de uma luta de classes permanente e institucionalizada, separando os da
sociedade individualista que lhes é correlativa, tanto pela sua organi zação
económico-social como nos seus valores. Nas sociedades holistas ou
hierárquicas, quer dizer, em sistemas onde os seres particulares, secundários em
relação ao conjunto social em que os homens estão integrados assenta num
fundamento sagrado e, por isso mesmo, subtraído à iniciativa revolu cionária.
Para que a revolução se torne uma possibilidade histórica, é preciso que os
homens estejam atomizados, desinseridos das suas solidariedades tra dicionais; é
preciso que a relação com as coisas leve a melhor sobre a rela ção entre os seres
e que, por fim, predomine uma ideologia do indivíduo que lhe conceda um
estatuto nativo de liberdade e de igualdade. A revolução e a luta de classes
pressupõem o universo social e ideológico do individualismo; a partir de então,
já não há organização em si exterior à vontade dos ho mens, o todo colectivo e a
sua supremacia, que anteriormente impediam a violência de abalar a ordem
correspondente, perdem o seu princípio de in tangibilidade e já nada, nem o
Estado, nem a sociedade, escapam à acção transformadora dos homens. Quando
o indivíduo deixa de ser meio de um fim exterior e passa a ser considerado e a
considerar-se como fim último, as instituições sociais perdem o seu halo de
sagrado; tudo o que procede de uma transcendência inviolável e se dá numa
heteronomia de natureza vê-se a mais breve ou a mais longo prazo minado por
uma ordem social e ideológica cujo núcleo já não é o além, mas o indivíduo
autónomo em si próprio
A sociedade homogénea de seres iguais e livres é indissociável, na sua era
triunfante, de um conflito aberto e violento relativo à organização da socie dade.
Governada pelo papel decisivo da ideologia, que doravante se substitui à
instância religiosa, conservando o mesmo carácter absoluto e passional, a
primeira fase individualista é uma era de revoluções e de lutas sociais san
grentas. Emancipando-se do sagrado, a sociedade individualista só restitui aos
homens o pleno domínio do seu estar-em-conjunto ao fazê-los defronta rem-se
em conflitos, é certo que por vezes baseados no interesse, mas cujo maniqueísmo
se prende sobretudo aos novos valores associados aos direitos do indivíduo.
Nesta perspectiva, a fase heróica do individualismo pode ser comparada mais
acertadamente a uma mobilização-politização de massa em torno de valores do
que a um recuo prudente para o campo de preocupações estritamente privadas.
Hipertrofia e antagonismo ideológicos são insepará veis da era individualistademocrática. Por comparação com os nossos dias, esta fase continua de algum
modo ligada às sociedades holistas, ao primado do todo social, passando-se tudo
como se o elemento de desorganização so cial encerrado no princípio
individualista tivesse sido prontamente contraria do por um tipo de
enquadramento omnipresente e inflexível, paralelo nesse ponto ao das
disciplinas, e destinado a neutralizar a dinâmica das singulari dades pessoais, a
prender os indivíduos à coisa pública, ainda que através da mediação dos
confrontos de classe e dos valores.
Com a era individualista abre-se a possibilidade de uma era de violência total da
sociedade contra o Estado, sendo uma das suas consequências uma violência não
menos ilimitada do Estado sobre a sociedade, ou seja o Terror como modo
moderno de governo pela violência exercida em massa, não só contra os
opositores, mas também contra os partidários do regime. As mes mas razões que
permitem à violência civil subverter a ordem social e política tornam possível
um desafio sem precedentes do poder em relação à socieda de, nascendo o
Terror na nova configuração ideológica resultante da supre macia do indivíduo:
quer os massacres, as deportações, os processos se reali zem em nome da
vontade do povo quer da emancipação do proletariado, o Terror só é possível em
função de uma representação democrática e, portan to, individualista, do corpo
social, embora, sem dúvida, para denunciar a sua perversão e para restabelecer
pela violência a prioridade do todo colecti vo. Do mesmo modo que a vontade
revolucionária não pode explicar-se por contradições objectivas de classe,
também é vão querer dar conta do Terror a partir de simples necessidades
circunstanciaiS é porque o Estado, de acor do com o ideal democrático, se
proclama idêntico e homogéneo à sociedade que, com efeito, pode chegar a
desafiar toda a legalidade, a desenvolver uma repressão sem limites, sistemática,
indiferente às noções de inocência e de culpabilidade Se, por conseguinte, a
evolução individualista-de mocrática implica correlativamente, na longa
duração, uma redução dos sig nos ostentatóriOs do poder estatal e o advento de
um poder benevolente, sua ve, protector nem por isso deixou de permitir a
emergência de uma forma particularmente sangrenta de poder, que podemos
interpretar como uma úl tima revivescência do brilho do soberano condenado
pela ordem moderna, uma formação de compromisso entre os sistemas da
crueldade simbólica tra dicional e a impessoalidade gestionária do poder
democrático A grande fase do individualismo revolucionário termina ante os
nossos olhos: depois de ter sido um agente de guerra social, o individualismo
con tribui actualmente para abolir a ideologia da luta de classes. Nos países oci
dentais desenvolvidos, a era revolucionária encerrou-se, a luta de classes ins
titucionalizou-5e, já não é portadora de descontinuidade histórica, os parti dos
revolucionários encontram-se num estado de deliquescência total, a ne gociação
leva por todo o lado a melhor sobre os confrontos violentos. A se gunda
«revolução» individualista, veiculada pelo processo de personalização, tem
como consequência uma desafecção de massa da res publica e em parti cular das
ideologias políticas: depois da hipertrofia ideológica, a desenvoltu ra perante os
sistemas de sentido. Com a emergência do narcisismo, a or dem ideológica e o
seu maniqueísmo cedem o lugar à indiferença, tudo o que é dotado ainda de uma
certa densidade de universalismo e de oposições exclusivas deixa de ter preensão
sobre uma forma de individualidade muito amplamente tolerante e móvel. A
ordem rígida, disciplinar, da ideologia tor nou-se incompatível com a
desestabilização e com a humanização coo/. O processo de pacificação
conquistou o todo colectivo, a civilização do conflito social prolonga hoje a das
relações inter-pessoais.
Mesmo os últimos sobressaltos da Revolução dão testemunho deste apa
ziguamento do conflito social. Foi o caso de Maio 68. As discussões que se
travaram em torno do teor do movimento são a este respeito significativas:
revolução ou happening? Luta de classes ou festa urbana? Crise da civiliza ção
ou charivari? A revolução torna-se indecidível, perde os seus referen de
identidade. Por um lado, Maio 68 continua a inscrever-se na vaga do processo
revolucionário e insurreccional: barricadas, confrontos violentos com as forças
da ordem, greve geral. Por outro lado, o movimento já não é animado por
qualquer meta global, política e social. Revolução sem projecto histórico, Maio
68 é uma sublevação cool e sem mortes, uma «revolução» sem revolução, um
movimento de comunicação tanto como um confronto so cial. As jornadas de
Maio, para além da violência das noites quentes, repro duzem menos o esquema
das revoluções modernas fortemente articuladas em torno de paradas ideológicas
do que prefiguram a revolução pós-moderna das comunicações. A originalidade
de Maio foi a sua civilidade espantosa: a discussão instaura-se por todo o lado,
os graffiti florescem nas paredes, os jornais, os cartazes, os comunicados
multiplicam-se, a comunicação estabe lece-se nas ruas, nos anfiteatros, nos
bairros e nas fábricas, nos lugares de onde habitualmente estava ausente. Sem
dúvida, todas as revoluções suscita ram uma inflação de discursos, mas, em 68,
estes soltaram o lastro dos seus conteúdos ideológicos pesados; já não se tratava,
com efeito, de tomar o po der, de designar traidores, de traçar linhas divisórias
entre os bons e os maus; tratava-se, por intermédio da expressão livre, da
comunicação, da contestação, de «mudar a vida», de libertar o indivíduo das mil
alienações que quotidianamente pesam sobre ele, do trabalho ao supermercado,
da te levisão à universidade. Libertação da palavra, Maio 68 foi animado por
uma ideologia flexível, simultaneamente política e convivia!, patchwork de luta
de classes e de líbido, de marxismo e de espontaneísmo, de crítica política e de
utopia poética; uma descrispação, uma desestandardiZação teórica e prática
habita o movimento, isomorfo nese ponto do processo coo de personaliza ção.
Maio 68 é já uma revolução persona!izada a revolta faz-se contra a au toridade
repressiva do Estado, contra as separações e imposições burocráti cas
incompatíveis com a livre afirmação e desenvolvimento do indivíduo. A ordem
da revolução humaniza-se, levando em conta as aspirações subjecti vas, a
existencla e a vida: à revolução sangrenta substituiu-se a revolução estilhaçada»,
multidimensiOnal, transição quente entre a era das revoluções sociais e políticas
em que o interesse colectivo prima sobre o dos particulares e a era narcísica,
apática, desideologizada.
Desligada do maniqueísmo ideológico, a violência das jornadas de Maio pôde
mesmo surgir como uma manifestação lúdica, exactamente ao invés do
terrorismo actual que, no seu fundo, continua a ser tributário do modelo re
volucionário estrito, organizado em torno da guerra de classe, em torno de
dispositivos vanguardistas e ideológicos, o que explica o seu corte radical com
as massas indiferentes e descrispadas. Dito isto, apesar do seu enqua dramento
ideológico, o terrorismo reúne-se, por um estranho paradoxo, à ló gica do nosso
tempo, já que os discursos duros de legitimação de que proce dem os atentados,
os «processos» e os raptos se tornaram totalmente vazios, desconectados de toda
a relação com o real à força de intumescência revolu cionária e de autismo
grupuscUlar. Processo extremista que apenas a si próprio tem em vista, o
terrorismo é uma pornografia da violência: a máquina ideológica ganha
velocidade por si própria, perde todo o enraizamento; a dessubstanCialização
conquista a esfera do sentido histórico, afirmando-se como violência hard
exasperação maximalista e vazia, espectro lívido, car caça ideológica liofilizada.
Maio 68, já o dissemos, tem uma dupla face: moderno pelo seu imagina rio da
Revolução, pós-moderno pelo seu imaginário do desejo e da comuni cação, mas
também pelo seu carácter imprevisível ou selvagem, modelo pro vável das
violências sociais vindouras. À medid.t que o antagonismo de das sé se
normaliza, surgem explosões aqui e ali, sem passado nem futuro, desa parecendo
com a mesma rapidez que caracterizou a sua emergência. Actual mente, as
violências sociais têm muitas vezes em comum o facto de já não caberem no
esquema dialéctico da luta de classes articulada em torno de um proletariado
organizado: os estudantes nos anos 60, hoje os jovens desemPregados, squatters,
Negros ou Jamaicanos — a violência marginalizou-se. Os motins que se
desenrolaram recentemente em Londres, Bristol, Liverpool, Brixton ilustram o
novo perfil da violência, seja qual for o carácter racial de alguns destes
confrontos. Se a revolta libertária dos anos sessenta era ainda «utópica»,
portadora de valores, nos nossos dias, as violências que incen deiam os ghettos
surgem desligadas de qualquer projecto histórico, fiéis nes se ponto ao processo
narcísico. Revolta pura da desocupação, do desempre go, do vazio social.
Dissolvendo a esfera ideológica e a personalidade, o pro cesso de personalização
libertou uma violência tanto mais dura quanto me nos esperança tem, no future,
à imagem da nova criminalidade e da droga. A evolução dos conflitos sociais
violentos é a mesma que a da droga: depois da viagem psicadélica dos anos
sessenta, marca de contra-cultura e de revol ta, a era da toxicomania banalizada,
da depressão sem sonho, da descarga lumpen com medicamentos, verniz das
unhas, querosene, colas, dissolventes e lacas, para uma população cada vez mais
jovem. Tudo o que resta é ata car um bobby ou um Paquistanês, incendiar as
ruas e os prédios, pilhar os armazéns, numa acção a meio caminho entre a
descarga e a revolta. A vio lência de classe deu lugar a uma violência de jovens
desclassificados, que destroem os seus próprios bairros; os ghettos incendeiamse como se se tra tasse de acelerar o vazio pós-moderno e de completar na raiva
o deserto que, por outros meios, o processo coo! de personalização realiza.
Numa derradei ra desqualificação, a violência entra no ciclo em que absorve os
seus pró prios conteúdos; de acordo com a era narcísica, a violência
dessubstanciali za-se num culminar hiperrealista sem programa nem ilusão,
violência hard, desencantada.
CAPíTULO 6 Violências
violências modernas
selvagens,
A violência não conseguiu, ou só em escassa medida, conquistar os favo res da
investigação histórica, pelo menos daquela que, por trás da espuma dos
acontecimentos mais ou menos contingentes, se esforça por teorizar os
movimentos de dimensão maior, as grandes continuidades e descontinuida des
que escandem o devir humano. A questão, no entanto, convida a uma
conceptualização no plano da longa duração: durante milénios, através de
formações sociais bem distintas, a violência e a guerra foram valores domi
nantes, a crueldade manteve-se com uma legitimidade tal que pôde funcio nar
como «ingrediente» dos prazeres mais requintados. O que é que nos transformou
tanto? Como é que as sociedades de sangue puderam dar lugar a sociedades
suaves, em que a violência inter-individual já não passa de um comportamento
anómico e degradante, nem a crueldade de um estado pato lógico? Estas
questões não têm hoje grande prestígio frente às que suscitam a força
desmultiplicada dos Estados modernos, o equilíbrio do terror e a corrida aos
armamentos: tudo se passa corno se depois do momento omnie conómico e do
momento omnipoder, a revolução das relações de homem a homem nascida com
a sociedade individualista tivesse que continuar a ser um tema menor, privado de
qualquer eficácia específica, não merecendo no vos desenvolvimentos. Tudo se
passa como se, sob o choque das duas guer ras mundiais, dos campos nazis e
estalinianos, da generalização da tortura e actualmente do recrudescimento da
criminalidade violenta ou do terrorismo, os nossos contemporâneos se
recusassem a tomar nota desta mutação já multissecular e recusassem perante a
tarefa de interpretar o irresistível movi mento de pacificação da sociedade, ao
mesmo tempo que a hipótese da pul são de morte e a da luta de classes
contribuem em grande medida para con firmar o imaginário de um princípio de
conservação da violência, retardando a interrogação sobre o seu destino.
Os grandes espíritos do século XIX não recorriam a este subterfúgio, e
Tocqueville e Nietzsche, para citar dois pensamentos sem dúvida estranhos um
ao outro, embora igualmente fascinados pela ascenção do fenómeno de
mocrático, não hesitavam em pôr o problema em toda a sua brutal clareza, tão
insuportável ao pensamento-spot dos dias de hoje. Mais perto de nós, os
trabalhos de N. Elías e depois de P. Clastres contribuíram, a níveis diferen tes,
para revitalizar a interrogação. Torna-se necessário continuá-la, prolon gá-la
analisando a violência e a sua evolução, nas suas relações com os três eixos
maiores que são o Estado, a economia, a estrutura social. Conceptuali zar a
violência: longe das leituras mecanicistas, sejam estas políticas, econó micas ou
psicológicas, é por estabelecer a violência como comportamento do tado de
sentido e em articulação com o todo social que devemos esforçar- nos. Violência
e história: para além do cepticismo erudito e do alarmismo estatístico
jornalístico, precisamos de recuar até ao tempo mais distante, tra zer à luz do dia
as lógicas da violência, e tudo isto para, tanto quanto possí vel, captarmos o
presente de onde falamos, neste momento em que, por to dos os lados, se ouve
clamar com maior ou menor pertinência a entrada das sociedades ocidentais
numa era radicalmente nova.
Honra e vingança: violências selvagens
Ao longo de todos os milénios que viram as sociedades funcionar de mo do
selvagem, a violência dos homens, longe de se explicar a partir de consi
derações utilitárias, ideológicas ou económicas, organizou- se essencialmente em
função de dois códigos estritamente corolários um do outro, a honra e a
vingança, cuja significação exacta temos dificuldade em compreender, de tal
modo foram eliminados inexoravelmente da lógica do mundo moderno. Hon ra,
vingança, dois imperativos imemoriais, inseparáveis das sociedades pri mitivas,
sociedades «holistas» embora igualitárias, em que os agentes indivi duais estão
subordinados à ordem colectiva e em que simultaneamente «as relações entre
homens são mais importantes, mais altamente valorizadas do que as relações
entre homens e coisas» Quando o indivíduo e a esfera eco nómica não têm
existência autónoma e se encontram submetidos à lógica do estatuto social, reina
o código de honra, o primado absoluto do prestígio e da estima social, bem como
o código da vingança, significando este, com efeito, a subordinação do interesse
pessoal ao interesse do grupo, a impossi bilidade de romper a cadeia das alianças
e das gerações, dos vivos e dos mortos, a obrigação de pôr em jogo a própria
vida em nome do interesse su perior do clã ou da linhagem. A honra e a
vingança exprimem directamente a prioridade do conjunto colectivo sobre o
agente individual.
Estruturas elementares das sociedades selvagens, a honra e a vingança são
códigos de sangue. Onde a honra predomina, a vida tem pequeno preço,
comparada com a estima pública; a coragem, o desprezo da morte, o desafio são
virtudes altamente valorizadas, a cobardia é desprezada por toda a par te. O
código da honra adestra os homens no sentido de se afirmarem pela força, de
conquistarem o reconhecimento dos outros antes de assegurarem a sua
segurança, de lutarem até à morte para serem respeitados. No universo primitivo,
o ponto de honra é o que ordena a violência, ninguém pode, sob pena de se ver
desrespeitado, suportar uma afronta ou uma injúria; quere las, insultos, ódios e
invejas conhecem, mais facilmente do que nas socieda des modernas, um
desfecho sangrento. Longe de manifestar qualquer impul sividade incontrolada,
a belicosidade primitiva é uma lógica social, um mo do de socialização
consubstancial ao código da honra.
A própria guerra primitiva não pode ser separada da honra. E em fun ção do
código da honra que cada homem adulto tem o dever de ser um guerreiro, de ser
valente e bravo perante a morte. Mais ainda, o código da honra fornece o motor,
o estímulo social p os empreendimentos guerrei ros; sem ter de modo algum uma
finalidade económica, a violência primitiva é, em numerosos casos, guerra pelo
prestígio, puro meio de adquirir glória e renome, sendo estes conferidos pela
captura de signos e presas, escalpes, ca valos, prisioneiros. O primado da honra
pode assim dar nascimento, como P. Clastres demonstrou, a confrarias de
guerreiros inteiramente consagradas às façanhas de armas, obrigadas ao desafio
permanente da morte, à escala da de bravura que lança os seus membros em
expedições cada vez mais au daciosas e conduzindo à morte de modo inelutável)
Se a guerra primitiva está estreitamente ligada à honra, está-o na mesma medida
ao código da vingança: a violência visa o prestígio ou a vingança. Os conflitos
armados são deste modo desencadeados para vingar um ultraje, um morto ou até
um acidente, um ferimento, uma doença atribuída às forças maléficas de um
feiticeiro inimigo. Ê a vingança que exige que o sangue ini migo seja derramado,
que os prisioneiros sejam torturados, mutilados ou de vorados ritualmente, é
sempre ela que manda em última instância que um prisioneiro não deva tentar
evadir-se, como se os parentes e o seu grupo não tivessem coragem suficiente
para vingar a sua morte. Do mesmo modo, é o medo da vingança dos espíritos
dos inimigos sacrificados que impõe os ri tuais de purificação do carrasco e do
seu grupo. Mais ainda: a vingança não se exerce unicamente contra as tribos
inimigas, exige igualmente o sacrifício de mulheres ou crianças da comunidade à
laia de reparação do desequilíbrio ocasionado, por exemplo, pela morte de um
adulto na força da idade. E preciso despsicologizar a vingança primitiva que
nada tem a ver com a hosti lidade acumulada internamente: entre os
Tupinambas, um prisioneiro vivia por vezes dezenas de anos no grupo que o
capturara, gozava de grande li berdade, podia casar e muitas vezes era amado e
bem tratado pelos seus amos e mulheres, como se de um homem da aldeia se
tratasse; isso não im pedia que a sua execução sacrificial fosse inelutável A
vingança é um im perativo social, independente dos sentimentos experimentados
pelos indiví duos e grupos, independente das noções de culpabilidade ou
responsabilida de individuais e que fundamentalmente manifesta a exigência de
ordem e de simetria do pensamento selvagem. A vingança é «o contra-peso das
coisas, o restabelecimento de um equilíbrio provisoriamente quebrado, a garantia
de que a ordem do mundo não sofrerá alteração» ou seja, a exigência de que em
parte alguma se estabeleça duradouramente um excesso ou um defeito. Se há
uma idade de ouro da vingança, é entre os selvagens que a encontra Pierre
Clastres, «Malheur du guerrier sauvage», in Libre, 1977, n.° 2.
mos: constitutiva de um extremo a outro do universo primitivo, a vingança
impregna todas as grandes acções individuais e colectivas, está para a violên cia
como os mitos e sistemas de classificação estão para o pensamento «espe
culativo», tem por toda a parte a mesma função de ordenação do cosmos e da
vida colectiva, que se realiza em benefício da negação da historicidadC.
Ê por isso que as recentes teorias de R. Girard a respeito da violên cia nos
parecem assentar num contra-senso radical: dizer, com efeito, que o sacrifício é
um instrumento de prevenção contra o processo interminável da vingança, um
meio de protecção a que a comunidade inteira recorre contra o ciclo infinito das
represálias e contra-represálias, equivale a omitir essa realidade primeira do
mundo primitivo em que a vingança, longe de ser o que é preciso dominar, é
algo em que se torna necessário adestrar imperati vamente os homens. A
vingança não é uma ameaça, um terror a contornar, do mesmo modo que o
sacrifício não é um meio de pôr termo à violência pretensamente dissolvente das
vinganças intestinas por meio de substitutos indiferentes. A esta visão-pânico da
vingança, devemos opor a dos selvagens para quem a vingança é um instrumento
de socialização, um valor tão indis cutível como a generosidade. Inculcar o
código da vingança, ripostar golpe por golpe, eis a regra fundamental: entre os
Yanomami, «se um rapazinho derrubar outro por descuido, a mãe deste último
intima o seu rebento a ata car o desajeitado. Grita-lhe de longe: vinga-te, vingate, então!» Longe de ser, como pensa R. Girard uma manifestação não-histórica,
bio-antro pológica, a violência vingadora é uma instituição social; longe de ser
um processo «apocalíptico», a vingança é uma violência limitada que visa equi
librar o mundo, instituir uma simetria entre os vivos e os mortos. Não deve mos
conceber as instituições primitivas como máquinas de recalcamento ou de desvio
de uma violência trans-histórica, mas como máquinas destinadas a produzir e a
normalizar a violência. Nestas condições, o sacríficio é uma ma nifestação do
código da vingança e não algo que impede a sua afirmação:
nem substituição nem deslocamento, o sacrifício é efeito directo do princípio da
vingança, uma exigência de sangue sem disfarce, uma violência ao servi ço do
equilíbrio, da perenidade do cosmos e do social.
A perspectiva clássica da vingança, tal como a vemos
expressar-se em M.
R. Davie, por exemplo, também não é mais satisfatória: os grupos primiti vos
«não possuem nem sistema desenvolvido de legislação, nem juízes ou tri bunais
para a punição dos crimes e, no entanto, os seus membros vivem de um modo
geral em paz e segurança. No seu caso, o que é que faz então as vezes do
procedimento judicial dos civilizados? Descobriremos a resposta a esta pergunta
na prática da justiça pessoal ou da vingança privada» 1 A vingança, condição da
paz interna, equivalente da justiça? Concepção muito discutível uma vez que a
vingança ensina a violência, legitima as represálias, arma os indivíduos,
enquanto que a instituição judiciária tem como meta in terditar o recurso às
violências privadas. A vingança é um dispositivo que so cializa por meio da
violência, no registo desta, que faz com que ninguém possa deixar o crime ou a
ofensa por punir: ninguém detém assim o mono pólio da força física, ninguém
pode renunciar ao imperativo de derramar o sangue inimigo, ninguém pode
confiar a outra pessoa a garantia da sua se gurança. Que quer isto dizer senão
que a vingança primitiva se afirma con tra o Estado, que a sua acção visa
impedir a constituição de sistemas de do minação política?
Tornando-se a vingança um dever imprescritível, todos os homens são iguais
perante a violência, nenhum pode monopolizar ou renun ciar a ela, nenhum será
protegido por uma instância especializada. Deste modo não é apenas através da
guerra e da sua acção centrífuga de dispersão que a sociedade primitiva logra
esconjurar o advento do dispositivo estatal consegue-o também por dentro, por
meio do código da honra e da vingança, que contrariam o desenvolvimento do
desejo de submissão e de protecção e impedem a emergência de uma instância
que açambarque o poder e o direi to de morte.
Simultaneamente, é a impedir o aparecimento do indivíduo independen te,
fechado no seu interesse próprio, que se aplica o código da vingança. Aqui, a
prioridade do todo social sobre as vontades individuais torna-se ac to, os vivos
têm o encargo de afirmar através do sangue a sua solidariedade com os mortos,
de fazerem corpo com o grupo. A vingança de sangue é contra a divisão dos
vivos e dos mortos, contra o indivíduo separado, e por isso é um instrumento de
socialização holista, do mesmo modo que a regra da dávida, que institui menos a
passagem da natureza à cultura do que o funcionamento holista das sociedades, a
preeminência do colectivo sobre o individual através da obrigação da
generosidade, da dávida das filhas e ir mãs e pela proibição da acumulação e do
incesto.
A comparação pode ser continuada relativamente a uma outra institui ção, desta
feita de tipo violento: as cerimónias iniciáticas que assinalam a passagem dos
jovens do sexo masculino à idade adulta e que são acompa nhadas por torturas
rituais intensas. Fazer sofrer, torturar, é algo que proce de da ordem holista
primitiva, porque o que interessa manifestar aqui de maneira ostensiva, no
profrio corpo, é a subordinação extrema do agente in dividual ao conjunto
colectivo, de todos os homens sem distinção a uma lei superior intangível. A dor
ritual, meio último de significar que a lei não é humana, que tem que ser
recebida, e não deliberada ou alterada, meio de assinalar a superioridade
ontológica de uma ordem vinda de alhures e como tal subtraída às iniciativas
humanas que visem transformá-la. Pelo esmaga mento do iniciado sob a prova
da dor, trata-se de inscrever no corpo a hete ronomia das regras sociais, a sua
preeminência implacável e, portanto, de proibir o nascimento de uma instância
separada de poder que se atribua o direito de introduzir a transformação histórica
A crueldade primitiva é, como a vingança, uma instituição holista, contra a autodeterminação do in divíduo, contra a divisão política, contra a história: do
mesmo modo que o código da vingança exige dos homens que estes arrisquem a
vida em nome da solidariedade e da honra do grupo, a mesma iniciação exige
dos homens uma submissão muda dos seus corpos às regras transcendentes da
comuni dade.
Tal como a iniciação, a prática de suplícios revela a significação profun da da
crueldade primitiva. A guerra selvagem não consistia unicamente na organização
de incursões e massacres; tratava-se, além disso, de capturar inimigos aos quais
eram depois infligidos ora pelos homens, ora pelos jovens e pelas mulheres,
suplícios de uma ferocidade inaudita que, no entanto, não inspiravam qualquer
horror ou indignação. Esta atrocidade dos costumes foi desde há muito
assinalada, mas, depois de Nietzche, que reconhecia nela uma festa das pulsões
agressivas e de Bataille que a considerava uma forma de dispêndio improdutivo,
a lógica social e política da violência foi duradou ramente ocultada pelas
problemáticas «energéticas». A crueldade primitiva nada tem a ver com o «gozo
de fazer sofrer», não pode ser assimilada a um equivalente pulsional de um dano
sofrido: «Fazer sofrer causava um prazer infinito; como compensação do dano e
dos aborrecimentos do dano propor cionava às partes lesadas um contra-gozo
extraordinário» Independente dos sentimentos e das emoções, o suplício
selvagem é uma prática ritual exi gida pelo código da vingança a fim de
estabelecer o equilíbrio entre os vivos e os mortos: a crueldade é uma lógica
social, não uma lógica do desejo. Dito isto, Nietzsche entrevira, apesar de tudo, o
essencial do problema ao ligar a crueldade à dívida, ainda que a tenha carregado
de uma significação mate rialista, moderna, baseada na troca económica De
facto, a atrocidade das torturas selvagens só tem sentido quando referida a essa
dívida específica e extrema que liga os vivos aos mortos: dívida extrema, em
primeiro lugar porque os vivos não podem prosperar sem obterem a protecção ou
a neutra lidade dos seus mortos sempre dotados de uma força particular, represen
tando uma das maiores ameaças concebíveis; em segundo lugar, porque a dívida
se refere a dois universos constantemente ameaçados de disjunção ra dical, o
visível e o invisível. E, por conseguinte, necessário um excesso para preencher o
défice da morte; é necessário um excesso de dor, de sangue ou de carne (no
festim antropófago) para se cumprir o código da vingança, quer dizer para
transformar a disjunção em conjunção, para restabelecer a paz e a aliança com os
mortos. Vingança primitiva e sistemas de crueldade são inseparáveis enquanto
meios de reprodução de uma ordem social imutá vel.
Decorre daqui que o excesso dos suplícios não é estranho à lógica da tro ca, pelo
menos da que põe em relação os vivos e os mortos. Sem dúvida, te remos que
seguir as análises de P. Clastres, que soube mostrar como a guer ra não era de
maneira alguma um malogro acidental da troca, mas uma es trutura primeira,
uma finalidade central do ser social primitivo, sendo ela a determinar a
necessidade da troca e da aliança todavia, uma vez «reabili tada» a significação
política da violência, devemos ter cuidado e não trans formar a troca em
instrumento indiferente da guerra, em simples efeito tác— tico da guerra. A
inversão das prioridades não deve ocultar o que a violência deve ainda à troca e
a troca à violência. Na sociedade primitiva, guerra e troca encontram-se em
consonância: a guerra é inseparável da regra da dá diva e esta é apropriada ao
estado de guerra permanente. Na medida em que a violência primitiva caminha a par da vingança, os laços que
a unem à lógica reciprocitária são imediatos. Do mesmo modo que existe a
obrigação de se ser generoso, de oferecer bens, mulheres, alimento, existe
também a obrigação de se ser generoso nos termos da própria vida, de se dar a
vida de acordo com o imperativo da vingança; do mesmo modo que qualquer
bem tem que ser devolvido, também a morte deve ser paga e com pensada; o
sangue exige, à semelhança das dádivas, a sua contrapartida. À simetria das
transacções corresponde a simetria da vingança. A solidarieda de de grupo, que
se manifesta pela circulação das riquezas, revela-se igual mente através da
violência vingadora. De modo que a violência não é antinó mica em relação ao
quadro da troca; a ruptura da reciprocidade articula-se ainda no quadro da troca
recíproca entre os vivos e os mortos.
Mas se a violência apresenta parentesco de estrutura com a troca, esta, pelo seu
lado, não pode ser pura e simplesmente assimilada a uma institui ção de paz.
Sem dúvida, é de facto através da regra da dádiva e da dívida dela decorrente
que os primitivos instituem a aliança mas isso não quer di zer que a troca nada
tenha a ver com a guerra. Mauss sublinhou com insis tência em páginas hoje
célebres a violência constitutiva da reciprocidade através dessa «guerra de
propriedade» que é o potlatch. Mesmo quando o desafio e a rivalidade não
atingem tais dimensões, Mauss observa o seguinte facto capital,
insuficientemente analisado, de que a troca «conduz a querelas súbitas quando
frequentemente tinha por fim apagá-las» Que quer isto dizer senão que a troca
produz uma paz instável, frágil, sempre à beira da ruptu ra? O problema consiste
assim em compreender porque é que a troca, cujo objectivo é estabelecer
relações pacificas, falha de tal maneira nos seus pro pósitos. Deveremos
regressar à interpretação de Lévi-Strauss, segundo a qual a guerra não passa de
um malogro contingente, de uma transacção in feliz, ou deveremos antes ver na
reciprocidade uma instituição que a sua própria forma torna propícia à violência?
E esta segunda hipótese que nos parece justa: só há malogro na aparência, a
dádiva participa estruturalmen te na lógica da guerra, pois que institui a aliança
numa base necessariamen te precária. A regra de reciprocidade, porque funciona
como uma luta simbólica ou de prestígio e não como meio de acumulação,
instaura um frente- a-frente sempre à beira do conflito e do confronto: nas trocas
económicas e matrimoniais que presidem às alianças das comunidades
Yanomano, «os parceiros mantêm-se no extremo limite do ponto de ruptura, mas
é justa mente esse jogo arriscado, esse gosto pelo confronto o motivo de agrado»
Pouco é preciso para que os amigos se tornem inimigos, para que um pacto de
aliança degenere em guerra: a dádiva é uma estrutura potencialmente violenta
porque basta que o parceiro se recuse a entrar no ciclo das presta ções para que
isso se identifique com uma ofensa, com um acto de guerra. Enquanto estrutura
assente no desafio, a troca proíbe as amizades duradou ras, a emergência de
laços permanentes que ligariam indissoluvelmente a co munidade a este ou
àquele dos seus vizinhos, levando-a a perder a prazo a sua autonomia. Se há uma
inconstância na vida internacional dos selvagens, se as alianças se fazem e
desfazem de modo tão sistemático, isso não se deve apenas ao imperativo da
guerra, mas igualmente aos tipos de relações man tidas através da troca. Ligando
os grupos não pelo interesse, mas por meio de uma lógica simbólica, a
reciprocidade quebra as amizades com a mesma facilidade com que as faz,
nenhuma comunidade está ao abrigo do desenca dear das hostilidades. Longe de
se identificar a uma táctica de guerra, a re gra da reciprocidade é a condição
social da guerra primitiva permanente.
Mais indirectamente, a troca participa ainda da violência primitiva na medida em
que ensina aos homens o código da honra, prescrevendo a dádi va e o dever de
generosidade. Da mesma maneira que o imperativo da guer ra, a regra da
reciprocidade socializa por meio da honra e da violência cor respondente. Guerra
e troca são paralelas; a sociedade selvagem é realmen te, como dizia P. Clastres,
uma sociedade «para-a-guerra», e até as institui ções que têm como tarefa criar a
paz só ó conseguem instaurando simulta neamente uma belicosidade estrutural.
Por fim, ter-se-ão sublinhado o suficiente os laços que unem troca e feiti çaria?
A sua coexistência, atestada por toda a parte no mundo selvagem, não é fruto do
acaso; com efeito, estamos perante duas instituições estrita mente solidárias. Na
sociedade primitiva, como sabemos, os acidentes e infe licidades da vida, os
infortúnios dos homens, longe de serem acontecimentos fortuitos, são resultados
da feitiçaria, quer esta se deva à malevolência de outrém, quer a uma vontade
deliberada de fazer o mal. Se um escorpião pi
car uma criança, se a colheita ou a caça forem más, se uma ferida não ci catrizar,
todos estes acontecimentos pouco felizes são atribuídos a uma dis posição
maligna de alguém. Sem dúvida devemos ver na feitiçaria uma das formas dessa
«ciência do concreto» que é o pensamento selvagem, um meio de pôr ordem no
caos das coisas e de explicar o melhor possível as desgraças dos homens; mas
não podemos deixar de observar também tudo o que esta «filosofia» introduz de
animosidade e de violênica na representaçdo da rela ção interhumana. A
feitiçaria é a prossecução do imperativo de guerra por outros meios; do mesmo
modo que cada comunidade local tem inimigos, as sim cada indivíduo tem
inimigos pessoais, responsáveis pelos seus males. To da a desgraça provém de
uma violência mágica, de uma guerra perniciosa, de tal maneira que aqui o outro
só pode ser amigo ou inimigo segundo um esquema semelhante ao instituído
pela guerra e pela troca. Com a regra de reciprocidade com efeito, ou os homens
trocam presentes e são aliados, ou se interrompe o ciclo dos presentes e os
homens tornam-se inimigos. A socie dade primitiva que, por um lado, impede o
aparecimento da divisão política, gera, por outro lado, a divisão antagónica na
representação da relação de homem a homem. Não há indiferença, não há
relações neutras como as que irão prevalecer na sociedade individualista: com a
guerras a troca, a feitiça ria, a apercepção do mundo humano é inseparável do
conflito e da violência.
Para além deste paralelismo a feitiçaria descobre na troca recíproca a condição
social característica do seu funcionamento. Através da regra da dá diva, os seres
são obrigados a existir e a definir-se uns por referência aos outros; os homens
não podem conceber-se separadamente uns dos outros ora é exactamente este
esquema que se reproduz, de maneira negativa, na feitiçaria, uma vez que tudo o
que de funesto acontece ao ego se liga neces sariamente a um outro. Nos dois
casos, os homens não podem pensar-se in dependentemente uns dos outros; o
sortilégio não passa da tradução inverti da da dádiva de acordo com a qual o
homem só existe numa relação socialmente pré-determinada com o outro. E este
contexto de troca obrigatória que torna possível a interpretação dos
acontecimentos nefastos em termos de malefícios: a feitiçaria não é a afirmação
livre de um pensamento não do mesticado, é ainda a regra de reciprocidade, a
ncrma holista do primado re lacional que constitui o seu enquadramento social
necessário. A contrario. não há feitiçaria na sociedade em que o indivíduo só
existe para si próprio; o desaparecimento da feitiçaria na vida moderna não pode
ser separado de um novo tipo de sociedade em que o outro se torna a pouco e
pouco um des conhecido, um estranho à verdade intrínseca do ego.
Regime da barbárie
Com o advento do Estado, a guerra muda radicalmente de função, já que de
instrumento de equilíbrio ou de conservadorismo social que era na ordem
primitiva se transforma num meio de conquista, de expansão ou de captura. E é
ao dissociar-se do código da vingança, quebrando a preeminên cia da troca com
os mortos, que a guerra se pode abrir ao espaço da domi nação. Enquanto a
dívida para com os mortos é um princípio supremo para o todo social, a guerra
permanece circunscrita a uma ordem territorial e sa grada que se trata,
precisamente através do emprego da violência, de repro duzir sem mudança, tal
como os antepassados a legaram. Mas a partir do momento em que se institui a
divisão política, a instância do poder deixa de se definir em função deste
primado da relação com os mortos, que é regula da por uma lógica reciprocitária,
enquanto o Estado introduz, pela sua própria dissimetria, um princípio
antinómico do do mundo da troca. O Es tado não pôde constituir-se senão
emancipando-se, ainda que parcialmente, do código da vingança, da dívida para
com os mortos, e renunciando a iden tificar guerra e vingança. A partir de então,
surge uma violência conquista dora, o Estado apropria-se da guerra, apodera-se
de territórios e de escra vos, edifica fortificações, recruta exércitos, impõe a
disciplina e uma condu ta militar; a guerra já não é contra o Estado, passa a ser a
missão gloriosa do soberano, o seu direito específico. Começa uma era nova do
culto do po der, a barbárie, que designa o regime da violência nas sociedades
estatais pré-modernas.
Sem dúvida, as primeiras formas do Estado não se emancipam por completo da
ordem da dívida, devendo o Déspota a sua função e a sua legi timidade a um
além transcendente ou a uma referência religiosa de que é ele o representante ou
a incarnação; mas constitutivamente o Estado só pode ser devedor e estar
subordinado a potências superiores e divinas, e não às almas dos mortos, o que
seria lesivo da sua grandeza sobre-eminente, degradando a sua diferença
irredutível relativamente à sociedade que domina.
Desligada do código da vingança, a guerra entra num processo de especialização
constituição de exércitos regulares de recrutas ou de mercenários, mas também
castas exclusivamente definidas pelo exercício das armas, pon do toda a sua
glória e paixão na conquista militar. Correlativamente, a maioria da população,
os trabalhadores rurais, vão encontrar-se excluídos, desapossados da actividade
nobre por excelência, a guerra, e consagrar-se-ão à tarefa de alimentar os
exércitos profissionais. Este desarmamento de mas sa não significou, todavia,
para os miseráveis, a renúncia à violência, à hon ra e à vingança. Manteve-se,
com efeito, sob o Estado, um modo de sociali zação holista que dá conta da
violência dos costumes, ao mesmo título que a existência de valores militares e
de guerras permanenteS. Para nos atermos à Idade Média, o ponto de honra
continua a ser responsável pela frequência da violência interindividual, pelo seu
carácter sangrento, e isto não apenas entre os homens de guerra, mas para o
conjunto do povo: até nos claustros, entre padres, se descobre uma violência de
sangue 1; os assassínios entre os servos parecem ter sido coisa corrente os
burgueses das cidades não hesita vam em puxar da faca para ajustarem as suas
contas Os registos judiciá rios da Baixa Idade Média confirmam ainda o lugar
considerável que as vio lências, rixas, ferimentos, assassínios, ocupavam na vida
quotidiana das ci dades Com a instalação do princípio hierárquico que distribui
os homens em ordens heterogéneas, em especialistas da guerra e produtores,
surgiu, é certo, uma distinção radical entre honra nobre e honra plebeia, tendo
cada uma delas o seu código, mas continuando ambas a gerar uma belicosidade
mortífera.
O mesmo acontece com a vingança. Se a guerra e o Estado já não se or denam a
partir da dívida para com os mortos, isso não significa de modo nenhum que a
sociedade tenha renunciado à vingança. É verdade que, a partir da altura em que
o Estado começou a afirmar a sua autoridade, ele se esforçou também por limitar
a prática da vingança privada, substituindo-lhe o princípio de uma justiça pública
e editando leis destinadas a moderar os excessos da vingança: lei de talião,
abandono noxal, tarifas legais de compo sição. Já o dissemos, a vingança é, no
seu princípio, hostil ao Estado, pelo menos à sua plena realização, e é por isso
que o nascimento deste coincidiu com a instauração de sistemas judiciários e
penais, representando a autori dade suprema, destinados nomeadamente a
temperar as vinganças intestinas em proveito da lei do soberano. Apesar disto, a
despeito do poder e da lei, a vingança familiar manteve-se muito amplamente,
por um lado em razão da fraqueza da força pública, por outro lado em razão da
legitimidade imemo rial associada à vingança nas sociedades holistas. Na Idade
Média, e parti cularmente durante a época feudal, a faide (vingança privada)
continua a impor-se como obrigação moral sagrada do topo à base da sociedade,
tanto para as grandes linhagens como para os rústicos; a faide ordena ao grupo
dos parentes que punam pelo sangue o assassínio de um dos seus ou uma in júria
sofrida. Vendettas intermináveis, por vezes originadas por questões anódinas,
podiam prolongar-se durante décadas e ter como saldo dezenas de mortos. A
vingança e a ordem social holista são a tal ponto consubstanciais que as próprias
leis penais se limitam muitas vezes a reproduzir a sua for ma: assim o direito
grego ou a lei das Doze Tábuas de Roma proibiam efec tivamente o princípio
das vendettas e o direito de fazer justiça pelas próprias mãos, mas as acções por
motivo de assasínio eram, em contrapartida, deixa das a cargo do interessado
mais próximo; o mesmo dispositivo legal surge em certas regiões, no século
XIII, quando em caso de homicídio voluntário o corpo do culpado era atribuído
aos parentes da vítima, de acordo com a lei de talião. Assim, enquanto as
sociedades, com ou sem Estado, funcionaram segundo as normas holistas que
impunham a solidariedade da linhagem, a vingança continuou a ser mais ou
menos um dever; a sua legitimidade só de saparecerá com a entrada em cena das
sociedades de ordem individualista e do Estado moderno que lhes corresponde,
definindo-se este precisamente pe lo monopólio da força física legítima, pela
penetração e pela protecção cons tante e regular da sociedade.
A honra e a vingança perduraram sob o Estado, do mesmo modo que a crueldade
dos costumes. Sem dúvida, a emergência do Estado e da sua or dem hierárquica
transformou radicalmente a relação com a crueldade que prevalecia na sociedade
primitiva. De ritual sagrado que era, a crueldade tornou-se uma prática bárbara,
uma demonstração ostentatória de força, um festejo público: lembremos o gosto
muito vivo dos Romanos pelos espectácu los sangrentos de combates de animais
e de gladiadores; lembremos a paixão guerrreira dos cavaleiros, o massacre dos
prisioneiros e dos feridos, o as sassínio das crianças, a legitimidade da pilhagem
ou da mutilação dos venci dos. Como dar conta da persistência durante milénios,
da Antiguidade à Idade Média, de costumes ferozes que hoje por certo não
desapareceram. mas que, quando se verificam, suscitam uma indignação
colectiva? Não po demos deixar de observar a correlação perfeita que existe
entre crueldade dos costumes e sociedades holistas, ao mesmo tempo que se
verifica o anta gonismo entre a crueldade e o individualismo. Todas as
sociedades que con ferem prioridade à organização do conjunto são, numa
medida ou noutra, sistemas de crueldade. E que, com efeito, a preponderância da
ordem colec tiva impede que se concedam à vida e ao sofrimento pessoais o
valor que lhes atribuímos. A crueldade bárbara não resulta de uma ausência de
recal camento ou de repressão social, é o efeito directo de uma sociedade em que
o elemento individual, subordinado às normas colectivas, não vê reconhecida a
sua existência autónoma.
Crueldade, holismo e sociedades guerreiras caminham a par: a crueldade só é
possível como habitus socialniente dominante quando reina a suprema cia dos
valores guerreiros, direito incontestado da força e do vencedor, des prezo pela
morte, bravura e persistência, ausência de campaixão pelo inimi go — valores
que têm em comum o facto de suscitarem a ostentação e o ex cesso nos signos da
força física, desvalorizarem o vivido propriamente íntimo tanto de si como do
outro, considerarem pouca coisa a vida individual quan do comparada à glória
do sangue, ao prestígio social conferido pelos signos da morte- A crueldade é uni
dispositivo histórico que não pode desligar-se das significações sociais que
erigem a guerra em actividade soberana: a crueldade bárbara, filha de Polemos,
emblema enfático da grandeza da or dem guerreira conquistadora, instrumento
sangrento da sua identidade, meio extremo de unificar na carne a lógica holista e
a lógica militar.
Um laço indissolúvel une a guerra concebida como comportamento supe rior e o
modelo tradicional das sociedades. As sociedades anteriores ao indi vidualismo
só puderam reproduzir-se conferindo à guerra um estatuto supre mo. Devemos
desconfiar do nosso reflexo económico moderno: as guerras imperiais, bárbaras
ou feudais, embora permitissem a aquisição de riquezas, escravos ou territórios,
raramente eram empreendidas com um objectivo ex clusivamente económico. A
guerra e os valores guerreiros contribuiram mui to mais para contrariar o
desenvolvimento do mercado e dos valores estrita mente econômicos.
Desvalorizando as actividades comerciais que tinham por finalidade o lucro,
legitimando a pilhagem e a aquisição das riquezas pela força, a guerra
esconjurava a generalização do valor de troca e a constitui ção de uma esfera
separada da economia. Fazer da guerra um fim supremamente valorizado não
impede o comércio, mas circunscreve o espaço mer cantil e os fluxos de moeda,
tornando-se secundária a aquisição por via das trocas. Por fim, proibindo a
autonomização da economia, a guerra impedia igualmente o advento do
indivíduo livre por si próprio, que justamente cor responde a uma esfera
económica independente, e revelou-se uma peça in dispensável à reprodução da
ordem holista.
O processo de civilização
A linha da evolução histórica é conhecida: no espaço de alguns séculos, as
sociedades de sangue regidas pela honra, a vingança, a crueldade deram pouco a
pouco lugar a sociedades profundamente (<policiadas», em que os actos de
violência interindividual não param de diminuir, em que o uso da força
desconsidera aquele que se lhe entrega, em que a cureldade e as bruta lidades
suscitam a indignação e o horror, em que o prazer e a violência se dissociam. A
partir do século XVIII aproximadamente, o Ocidente passa a ser governado por
um processo de civilização ou de suavização dos costumes de que somos ainda
herdeiros e continuadores: confirma-o, a partir do sécu lo XVIII, a forte
diminuição dos crimes de sangue, homicídios, rixas, golpes e ferimentos
confirmam-no o desaparecimento da prática do duelo e a queda do infanticídio,
que, ainda no século XVI, era muito frequente; con firmam-no por fim, na
viragem do século XVIII para o XIX, a renúncia à atrocidade dos suplícios
corporais e, a partir do início do século XIX, a que da do número das
condenações à morte e das execuções capitais.
A tese de N. Elias a propósito da humanização dos comportamentos é hoje
famosa: de sociedades em que a belicosidade, a violência para com o outro se
afirmavam livremente, passamos a sociedades em que as impulsões agressivas se
encontram recalcadas, refreadas, por se terem tornado incom patíveis com a
«diferenciação» cada vez maior das funções sociais, por um lado, e com a
monopolização da coacção física pelo Estado moderno, por outro Quando não
existe qualquer monopólio militar e policial e quando, por conseguinte, a
insegurança é constante, a violência individual, a agressi vidade é uma
necessidade vital. Em compensação, à medida que se desen volve a divisão das
funções sociais e que, sob a acção dos órgãos centrais que monopolizam a força
física, se institui uma ampla segurança quotidia na, o uso da violência individual
revela-se excepcional, não sendo já «nem necessário, nem útil, nem mesmo
possível». À impulsividade extrema e de senfreada dos homens, correlativas das
sociedades que precederam o Estado absolutista, substituiu-se uma regulação dos
comportamentos, um «auto- controlo» do indivíduo; em suma, o processo de
civilização que acompanha a pacificação do território realizada pelo Estado
moderno.
Sem dúvida, o fenómeno da suavização dos costumes é inseparável da
centralização estatal; sendo assim, o risco é concebermos esta última como efeito
directo e mecânico da pacificação política. Não é aceitável dizer que os homens
«recalcam» as suas pulsões agressivas pelo facto de a paz civil es tar garantida e
as redes de interdependência não pararem de se ampliar, co mo se a violência
não fosse mais do que um instrumento útil à conservação da vida, um meio vazio
de sentido, como se os homens renunciassem «racio nalmente» ao uso da
violência a partir do momento em que a sua segurança está garantida. É esquecer
que a violência foi, desde as épocas mais remo tas, um imperativo determinado
pela organização holista da sociedade, um comportamento de honra e de desafio,
não de utilidade. Enquanto as nor mas prioritárias tiverem prioridade sobre as
vontades particulares, enquanto a honra e a vingança continuarem a prevalecer, o
desenvolvimento do apa relho policial, o aperfeiçoamento das técnicas de
vigilância e a intensificação da justiça, ainda quando sensíveis, terão apenas um
efeito limitado sobre as violências privadas: temos como prova a questão do
duelo, que sabemos ter sido definido, com os éditos reais do início do século
XVII, como um delito passível oficialmente de acarretar a perda dos direitos e
títulos dos infracto res, para além de morte infamante. Ora, no con.eço do século
XVIII, a des peito de uma justiça mais rápida, mais vigilante, mais escrupulosa,
o duelo ainda não desaparecera, nem perto disso; parece mesmo que há então um
maior número de processos por duelo do que uni século antes O desenvol
vimento repressivo do aparelho de Estado só pôde desempenhar o seu papel de
pacificação social na medida em que, paralelamente, se instaurava uma nova
economia da relação interindividual e, assim, também uma nova signi ficação da
violência. O processo de civilização não pode ser entendido nem como um
recalcamento nem como uma adaptação mecânica das pulsões ao estado de paz
civil: a esta versão objectivista, funcional e utilitarista, deve mos substituir uma
problemática que reconheça, no declínio das violências privadas, o advento de
uma nova lógica social, de um frente a frente carre gado de um sentido
radicalmente inédito na história.
A explicação económica do fenómeno continua a ser igualmente parcial, porque
não menos objectivista e mecanicista: dizer que sob o efeito do au mento das
riquezas, do recuo da miséria, da elevação do nível de vida, os costumes se
moderam, é omitir o facto historicamente decisivo de que a prosperidade
enquanto tal jamais foi um obstáculo à violência, nomeada mente nas classes
superiores que souberam conciliar na perfeição o seu gosto do fausto com o da
guerra e da crueldade. Não está na nossa intenção negar o papel dos factores
políticos e económicos que, seguramente, contribuiram de maneira decisiva para
o advento do processo de civilização: queremos di zer que a sua acção é
ininteligível independentemente das significações so ciais históricas que
permitiram instaurar. A monopolização da violência legí tima em si ou o nível de
vida quantitativamente determinado, por si sós, não podem explicar directamente
o fenómeno plurissecular da suavização dos comportamentos. No entanto, foram
realmente o Estado moderno e o seu complemento, o mercado, que, de maneira
convergente e indissociável, con tribuiram para a emergência de uma nova
lógica social, de uma nova signifi-. cação da relação inter-humana, tornando-se
inelutável, no tempo longo, o declínio da violência privada. Foi, com efeito, a
acção conjugada do Estado moderno e do mercado que possibilitou a grande
fractura que actualmente nos separa para sempre das sociedades tradicionais, o
aparecimento de um tipo de sociedade em que o homem individual se toma
como fim último e existe apenas para si próprio.
Pela centralização efectiva e simbólica que operou, o Estado moderno, a partir
do absolutismo, desempenhou um papel determinante na dissolução, na
desvalorização dos anteriores laços de dependência pessoal e, com isso, no
advento do indivíduo autónomo, livre, desligado dos laços feudais de ho mem a
homem e progressivamente de todas as inércias tradicionais. Mas foi igualmente
a extensão da economia de mercado, a generalização do sistema do valor de
troca, que permitiu o nascimento do indivíduo atomizado tendo como finalidade
uma busca cada vez mais afirmada como tal do seu interes se privado Á medida
que as terras se compram e se vendem, que a pro priedade fundiária se torna uma
realidade social largamente difundida, que as trocas mercantis, o salariato, a
industrialização e as deslocações popula cionais se desenvolvem, produz-se uma
transformação das relações do ho mem com a comunidade que o enquadra, uma
mutação que se pode resumir numa palavra, individualismo, caminhando a par
de uma aspiração sem precedentes pelo dinheiro, a intimidade, o bem-estar, a
propriedade, a segu rança, e subvertendo inconstestavelmente a organização
social tradicional. Com o Estado centralizado e o mercado, surge o indivíduo
moderno, consi derando-se a si próprio isoladamente, absorvendo-se na
dimensão privada, recusando a submeter-se às regras ancestrais exteriores à sua
vontade ínti ma, não reconhecendo já como lei fundamental senão a sua
sobrevivência e o seu interesse próprio.
E é precisamente esta transformação da relação imemorial do homem com a
comunidade que vai funcionar como o agente por excelência da paci ficação dos
comportamentos. A partir de entáo, a prioridade do conjunto oficial apaga-se em
benefício do interesse e das vontades das partes indivi duais, os códigos sociais
que fixavam o homem às solidariedades de grupo já não podem subsistir: cada
vez mais independente em relação às imposições colectivas, o indivíduo já não
reconhece como dever sagrado a vingança de sangue que, durante milénios,
permitiu soldar o homem à sua linhagem. Não foi apenas através da lei e da
ordem pública que o Estado conseguiu eliminar o código da vingança; de modo
igualmente radical, foi o processo individualista que, pouco a pouco, minou a
solidariedade vingadora. En quanto nos anos 1875-1885, a taxa média de
homicídio para cem mil habi Sobre as correlações entre Estado, mercado e
indivíduo, ver Marceí Gauchet e Gladys
tante, em França, se fixava à volta de um, na Córsega era quatro vezes su perior;
a mesma distância acentuada se registava em Itália entre o Norte e o Sul, este
último com uma taxa muito elevada de homicídios: onde a família conserva a
sua força antiga, a prática da vendetta continua a ser mortífera a despeito da
importância dos aparelhos repressivos do Estado.
Através do mesmo processo, o código de honra sofre uma mutação deci siva:
quando o ser individual se define cada vez mais pela relação com as coisas,
quando a busca de dinheiro, a paixão do bem-estar e da propriedade levam a
melhor sobre o estatuto e o prestígio social, o ponto de honra e a susceptibilidade
agressiva atenuam-se: a vida torna-se valor supremo e o im perativo de não
perder a cara torna-se fraco. Já não é vergonhoso não res ponder à ofensa ou à
injúria: a uma moral da honra, fonte de duelos, de be licosidade permanente e
sangrenta, substituíu-se uma moral da utilidade própria, da prudência, em que o
encontro do homem com o homem se faz essencialmente sob o signo da
indiferença. Se, na sociedade tradicional, o outro surge imediatamente ,como
amigo ou inimigo, na sociedade moderna, indentifica-se geralmente com um
estranho anónimo que não merece sequer o risco da violência. «Domínio de si
próprio: evita os extremos; evita levar muito a peito as ofensas, porque estas
nunca são o que parecem à primeira vista», escrevia Benjamin Franklin: o
código da honra deu lugar ao código pacífico da «respeitabilidade»; pela
primeira vez na história, instaura-se uma civilização em que já não é de rigor
responder aos desafios, em que o juízo do outro importa menos do que o meu
interesse estritamente pessoal, em que o reconhecimento social se dissocia da
força, do sangue e da morte, da violência e do desafio. Mas geralmente, é a uma
redução da dimensão do desafio interpessoal que se aplica o processo
individualista: a lógica do desa fio, que é inseparável do primado holista e que,
durante milénios, socializou os indivíduos e os grupos num frente a frente
antagónico, sucumbe a pouco e pouco, tronando-se uma relação anti-social.
Provocar o outro, esclarecê-lo, esmagá-lo simbolicamente, este tipo de relação
está destinado a desaparecer quando o código da honra dá lugar ao culto do
interesse individual e da pri vacy. À medida que se eclipsa o código da honra, a
vida e a sua conservação afirmam-se como ideais primeiros, enquanto o risco da
morte deixa de ser um valor, bater-se deixa de ser uma glória, e o indivíduo
atomizado se em penha cada vez menos em discussões, rixas, confrontos
sangrentos, não por ser «auto-controlado», mais disciplinado do que os seus
avós, mas porque a violência já não tem sentido social, já não é meio de
afirmação e de reconhecimento do indivíduo num tempo em que a sacralização
investiu a longevida de, a poupança, o trabalho, a prudência, a medida. O
processo de civiliza ção não é efeito mecânico do poder ou da economia,
coincide com a emer gência de finalidades sociais inéditas, com a desagregação
individualista do corpo social e com a nova significação da relação interhumana
baseada na indiferença.
Com a ordem individualista, os códigos de sangue são desinvestidos, a violência
perde toda a dignidade ou legitimidade social, os homens renun ciam
maciçamente a usar da sua força privada para resolverem os seus dife rendos.
Deste modo, esclarece-se a verdadeira função do processo de civiliza ção: como
Tocqueville já mostrara, à medida que os homens se retiram para a sua esfera
privada e só a si próprios se têm em vista, não param de recor rer ao Estado a
fim de este garantir uma protecção mais vigilante, mais constante da sua
existência. É essencialmente no sentido de aumentar as prer rogativas e o poder
do Estado que o processo de civilização opera: o Estado policial não é apenas
efeito de uma dinâmica autónoma do «monstro frio», é desejado pelos
indivíduos doravante isolados e pacíficos, ainda que estes de nunciem
regularmente a sua natureza repressiva e os seus excessos. Multipli cação das
leis penais, aumento dos efectivos e dos poderes da polícia, vigi lância
sistemática das populações, são os efeitos inelutáveis de uma socieda de em que
a violência é desvalorizada e em que simultaneamente aumenta a necessidade de
segurança pública. O Estado moderno criou o indivíduo so cialmente desligado
dos seus semelhantes, mas este cria, em contrapartida, pelo seu isolamento, a sua
ausência de belicosidade, o seu medo da violên cia, as condições constantes de
desenvolvimento da força pública. Quanto mais os indivíduos se sentem livres,
mais pedem uma protecção regular e sem falhas por parte dos órgãos estatais;
quanto mais abominam a brutali dade, mais necessário se torna o aumento das
forças de segurança: a huma nizaçáo dos costumes pode assim interpretar-se
como um processo visando desapossar o indivíduo dos princípios refractários à
hegemonia do poder to tal, ao projecto de colocar a sociedade inteira sob a tutela
do Estado.
Inseparável do individualismo moderno, o processo de civilização não de ve, no
entanto, ser atribuído à revolução democrática concebida como disso lução do
universo hierárquico e advento do reino da igualdade. Sabe-se que na
problemática tocquevilliana, é a «igualdade das condições» que, reduzin do as
dissemelhanças ditas de natureza entre os homens, instituindo uma identidade
antropológica universal, explica a suavização dos costumes, a regressão do
emprego da violência interpessoal. Em séculos de desigualdade, não existindo a
ideia de semelhança entre os homens, a compaixão, a aten ção para com os que
pertencem a uma casta consíderada heterogénea, têm poucas probabilidades de
se desenvolver; em compensação, a dinâmica igua litária, produzindo uma
identidade profunda entre todos os seres, tornados doravante membros iguais de
uma mesma humanidade homogénea, favorece a identificação com a infelicidade
ou a dor do outro e, desse modo, opõe-se aos excessos da violência e da
crueldade A esta interpretação, que tem o mérito de analisar a violência em
termos de lógicas e significações sociais históricas, devemos, contudo, objectar
que a crueldade e a violência dos tempos hierárquicos não se afirmava apenas
entre indivíduos de ordens dife rentes: os «iguais» eram também vítimas de uma
violência não menos cruel. Os ódios de sangue não eram tanto mais fortes
quanto mais próximos e se melhantes eram os seres humanos neles envolvidos?
Assim as denúncias por feitiçaria dos séculos XVI e XVII incidiam quase
exclusivamente sobre pes soas que os acusadores conheciam bem, vizinhos e
iguais; os duelos e ven dettas desenrolavam-se essencialmente entre pessoas da
mesma condição. Se, entre iguais, a violência e a crueldade não eram menores,
isso significa que não é da igualdade, concebida como estrutura moderna de
apercepção do outro enquanto «mesmo», que devemos partir para tornarmos
inteligível a pacificação dos indivíduos. A civilização dos comportamentos não
surge com a igualdade, mas com a atomização social, com a emergência de
novos valo res privilegiando a relação com as coisas e a desafecção
concomitante dos códigos da honra e da vingança. Não é o sentimento de
semelhança entre os seres que explica o declínio das violências privadas; a
crueldade começa a causar horror, as rixas tornam-se sinal de selvajaria quando
o culto da vida privada suplanta as prescrições holistas, quando o indivíduo se
retrai e fecha em si próprio, cada vez mais indiferente aos juízos dos outros. A
este título, a humanização da sociedade não passa de uma das expressões do
processo de dessocialização característico dos tempos modernos.
Apesar de tudo, tendo ligado a moderação dos comportamentos moder nos à
promoção democrática da iden4ficação entre os seres, Tocqueville sou be
conduzir-nos ao coração do problema. Num povo democrático, cada in divíduo
sente espontaneamente a miséria do outro: «Pouco importará que se trate de
estrangeiros ou inimigos: a imaginação põe-no imediatamente no seu lugar.
Mistura qualquer coisa de pessoal à sua piedade e fá-lo sofrer en quanto o corpo
do seu semelhante é dilacerado» Contrariamente ao que pensava Rousseau, a
«piedade» não ficou para trás de nós no passado; é obra daquilo que, segundo ele
pensava, a excluia, a saber, a atomização in dividualista. O retraimento do
indivíduo em si próprio, a privatização da vi da, longe de abafarem a
identificação do outro, estimulam-na. Temos que pensar conjuntamente o
indivíduo moderno e o processo de identificação, e este só tem verdadeiro
sentido onde a dessocialização libertou já o indivíduo dos seus laços colectivos e
rituais, onde o sujeito e o outro podem encontrar- se como indivíduos autónomos
num frente a frente independente dos mode los sociais pré-estabelecidos.
Inversamente, pela preeminência atribuida ao todo social, a organização holista
constitui um obstáculo à identificação in tersubjectiva. Enquanto a relação
interpessoal não consegue emancipar-se das representações colectivas, a
identificação não se opera entre mim e ou trém, mas entre mim e uma imagem
de grupo ou modelo tradicional. Nada de semelhante encontramos na sociedade
individualista que tem como conse quência tornar possível uma identificação
estritamente psicológica, quer di zer, implicando pessoas ou imagens privadas,
uma vez que já nada dita im perativamente e desde sempre o que deve ser feito,
dito, acreditado. Parado xalmente, é à força de se considerar de modo isolado, de
viver para si pró prio, que o indivíduo se abre à infelicidade do outro. Quanto
mais o indiví duo existe como pessoa privada, mais sente a aflição ou a dor do
outro; o sangue, os ataques à integridade do corpo tornam-se espectáculos
insuportá veis, a dor surge como uma aberração caótica e escandalosa, a
sensibilidade tornou-se uma característica permanente do homo clausus. O
individualismo produz, por conseguinte, dois efeitos inversos e, todavia,
complementares: a indiferença ao outro e a sensibilidade à dor do outro: «Nos
séculos democrá ticos, os homens raramente se dedicam uns aos outros, mas
mostram uma compaixão geral por todos os membros da espécie humana»
Poderemos ignorar esta nova lógica social quando queremos compreender o
processo de humanização dos castigos que se inicia na charneira entre o século
XVIII e o século XIX? Sem dúvida, temos que ligar esta mutação pe nal ao
advento de uni novo dispositivo do poder cuja vocação já não é, como foi o caso
desde a origem dos Estados, afirmar na violência inumana dos suplícios a sua
superioridade eminente, a sua força soberana e desmedida, mas, pelo contrário,
administrar e penetrar lentamente a sociedade, quadri culando-a de forma
contínua, comedida, homogênea, regular, até aos seus pontos mais recônditos'.
Mas a reforma penal não teria sido possível sem a deslocação profunda da
relação com o outro suscitada pela revolução indivi dualista, correlativa do
Estado moderno. Um pouco por todo o lado, na se gunda metade do século
XVIII, elevam-se protestos contra a atrocidade dos castigos corporais, estes
começam a tornar-se socialmente ilegítimos, a ser assimilados à barbárie. Aquilo
que desde sempre parecia natural, é agora escandaloso: o mundo individualista e
a identificação específica com o outro que ele engendra, constituiu o quadro
social adaptado ao abandono das prá ticas legais da crueldade. Precisamos de ter
cuidado com o «tudo é política», ainda quando se distribui por estratégias
microscópicas: a humanização das penas não teria podido adquirir semelhante
legitimidade, não teria podido desenvolver-se com uma tal lógica na longa
duração se não tivesse coincidido ao nível mais profundo com a nova relação de
homem a homem instituída pelo processo individualista. Não é necessário
retomar a questão das priori dades: o Estado e a sociedade trabalham
paralelamente na afirmação do princípio da moderação das penas.
A escalada da pacificação
Que se passa com o processo de civilização no momento em que as socie dades
ocidentais se vêem regidas de maneira preponderante pelo processo de
personalização? Apesar do leitmotiv actual do crescimento da insegurança e da
violência, é claro que a época do consumo e da comunicação apenas continua
por outros meios o trabalho inaugurado pela lógica estatal-individualista
precedente. A estatística criminal, por imperfeita que seja, aponta nesse sentido;
na longa e média duração, as taxas de homicídio per manecem relativamente
estáveis: memo nos EVA, onde a taxa de homicídio é excepcionalmente elevada
— embora muito menos elevada do que em páí ses como a Colômbia e a
Tailândia —, a taxa de 9 vítimas por 100 000 habi tantes atingida em 1930 mal
chegou a ser ultrapassada em 1974 com 9,3. Em França, a taxa de homicídio
oficial (sem tomarmos, portanto, em consideração os «números negros») era de
0,7 em 1876-1880; de 0,8 em 1972. Em 1900-1910, a taxa de mortalidade por
homicídio em Paris era de 3,4 contra 1,1 em 1963-1966. A era do consumo
acentua a pacificação dos comporta mentos e, em particular, faz diminuir a
frequência das rixas e da violência física: nos departamentos do Sena e do Norte,
as taxas das condenações por pancadas e ferimentos em 1875-1885 elevavam-se
respectivamente a 63 e a 110 para 100 000 habitantes; em 1975, fixavam-se à
volta de 38 e 56. No sé culo da industrialização e até uma data recente, tanto em
Paris como na província, as rixas eram moeda corrente entre a classe operária,
classe com um sentido da honra susceptível, fiel ao culto da força. Mesmo as
mulheres, a darmos crédito a certos jaits divers referidos por L. Chevalier e às
descri ções de Vallès e de Zola, não hesitavam em recorrer às injúrias e às mãos
para resolverem as suas disputas. Nos nossos dias, a violência desaparece
maciçamente da paisagem urbana, tornando-se, ao mesmo título e mais ain da do
que a morte, o interdito maior das nossas sociedades. As próprias classes
populares renunciaram à tradicional valorização da força e adopta ram um estilo
coo! de comportamento — é esse o verdadeiro sentido do «aburguesamento» da
nossa sociedade. O que nem a educação disciplinar nem a autonomia pessoal
conseguiram realizar efectivamente, consegue-o a lógica da personalização ao
estimular a comunicação e o consumo, sacrali zando o corpo, o equilíbrio e a
saúde, destruindo o culto do herói, desculpa bilizando o medo, em suma
instituindo um novo estilo de vida, novos valo res, e levando ao seu ponto
culminante a individualização dos seres, a re tracção da vida pública, o
desinteresse pelo Outro.
Cada vez mais fechados nas suas preocupações privadas, os indivíduos
pacificam-se não por ética, mas por hiper-absorção individualista: em socie
dades que promovem o bem-estar e a auto-realização, os indivíduos, com to da a
evidência, sentem-se mais desejosos de se descobrirem a si próprios, de se
auscultarem, de «descarregarem» por meio de viagens, de músicas, de desportos,
de espectáculos, do que de se confrontarem fisicamente. A repul sa profunda e
geral dos nossos contemporâneos perante os comportamentos violentos é função
desta disseminação hedonista e informacional do corpo social realizada pelo
reino do automóvel, dos media, dos tempos livres. E a época do consumo e da
informação que, além disso, faz declinar um certo tipo de alcoolismo,os rituais
do café, lugar sem dúvida de uma nova sociabilídade masculina no século XIX e
até meio do século XX, como bem diz Ariès, mas igualmente lugar entre todos
favorável ao desencadear da violên cia: na viragem do século, um delito de
agressão em cada dois deve ser atri buído ao estado de embriaguez. Dispersando
os indivíduos através da lógica dos objectos e dos media, levando-os a desertar
do café (pensamos evidentemente aqui no caso francês) em benefício da
existência consumidora, o pro cesso de personalização destruiu lentainente as
normas de uma sociabilidade viril responsável por um alto nível de
criminalidade violenta.
Paralelamente, a sociedade de consumo completa a neutralização das re lações
inter-humanas; a indiferença pelo destino e pelos juízos do outro ad quire então
toda a sua extensão. O indivíduo renuncia à violência não só porque apareceram
novos bens e fins privados, mas porque, no mesmo mo vimento, o outro se torna
dessubstancialjzado, um «figurante» sem importân cia 1, quer seja membro
afastado do grupo familiar restrito, vizinho de pata- mar ou colega de trabalho. É
este discount da relação inter-humana reforça do pelo hiper-investimento
individualista ou narcísico que se encontra na ori gem do declínio dos actos de
violência. Indiferença pelos outros de um géne ro novo, devemos acrescentar,
porque simultaneamente as relações interindi viduais não param de ser
reestruturadas, modeladas pelos valores psicologis tas e comunicacionais. Tal é o
paradoxo da relação interpessoal na socieda de narcísica: cada vez menos
interesse e consideração pelo outro e, todavia, cada vez maior desejo de
comunicar, de deixar de lado a agressividade, de compreender outrém.
Convivialidade psi e indiferença pelos outros desenvol vem-se hoje juntamente;
nestas condições, como poderia a violência deixar de recuar?
Enquanto a violência física interindiyjduaj regride inelutavelmente, a vio É
precisamente onde a relação inter-humana não se institui na base da indiferença,
a saber, no interior do meio familiar ou das pessoas mais chegadas, que a
violência é mais fre quente. Nos EUA, em 1970, um homicídio em cada quatro
era de tipo familiar; em Inglaterra, no final dos anos sessenta, mais de 46 por
cento de todos os homicídios eram assassinatos de ti- po doméstico ou visando
pessoas chegadas; nos Estados-Unidos, o número total de vítimas de violências
familiares (mortes, golpes e ferimentos) era em 1975 da ordem de oito milhões
(cerca de 4 por cento da população). Cf. J. C. Chesnais, Histoire da la violence,
Laffont, col. «Pluriel», 1981, pp. 100-107. A violência de sangue é tributária da
ordem narcísica das nossas sociedades que estreitam e intensificam o campo das
relações privadas; nestas condições, desencadeia-se prioritariamente contra
aqueles que nos abandonam ou enganam, aqueles que ocupam a nossa
proximidade mais íntima, aqueles que suportamos quotidianamente na mesma
casa.
lência verbal sofre, também ela, o choque narcísico. Deste modo as injúrias com
um sentido social, tão frequentes no século xviii (vadio, piolhoso, esfo meado,
porco) deram lugar a insultos de carácter mais « o mais das vezes de índole
sexual. Da mesma maneira, os insultos como cuspir no rosto ou à passagem de
alguém desapareceram, incompatíveis que são com as nos sas sociedades
higiénicas e indiferentes. De um modo geral, o insulto banali zou-se, perdeu a
sua dimensão de desafio e designa menos uma vontade de humilhar o outro do
que um impulso anónimo desprovido de intenções beli cosas e, por isso,
raramente seguido de embate físico: o indivíduo que, ao volante do seu
automóvel, injuria um outro condutor, não deseja de maneira nenhuma rebaixálo, e o indivíduo que é objecto do insulto não se sente, no fundo, minimamente
lesado. Num tempo narcísico, a violência verbal des substancializou-se, já não
tem significação interindividual, tornou-se hard, quer dizer sem fim nem sentido,
violência impulsiva e nervosa, dessocializa da.
O processo de personalização é um operador de pacificação generalizada; de
acordo com o seu registo, as crianças, as mulheres, os animais deixam de ser os
alvos tradicionais da violência que continuavam ainda a ser no século XIX e, por
vezes, na primeira metade do século XX. Através da valorização sistemática do
diálogo, da participação, da escuta do pedido subjectivo, que a sedução pósmoderna põe a funcionar, é o próprio princípio da correcção física, mantido ou
até reforçado pela era das disciplinas, que se vê rejeitado pelo processo
educativo, O eclipse dos castigos corporais resulta da promo ção de modelos
educativos à base de comunicação recíproca, de psicologiza ção das relações no
momento em que os pais justamente deixam de se reco nhecer como modelos a
imitar pelos seus filhos. O processo de personaliza çáo dilui todas as grandes
figuras da autoridade, mina o princípio de ex emplo, demasiado tributário de
uma era distante e autoritária que sufocava as espontaneidades singulares,
dissolve por fim as convicções em matéria de educaçáo: a essubstancialização
narcísica manifestava-se no centro da famí lia nuclear como impotência,
desapropriaçãO e demissão educativa. A puni ção física que, ontem ainda, tinha
uma função positiva na aprendizagem e transmissão das normas, já não passa de
um malogro vergonhoso e culpabi lizador da comunicação entre pais e filhos, de
um último impulso descontro lado, em desespero de autoridade.
A campanha em torno das mulheres espancadas desenvolve-se e encontra o eco
que sabemos à medida que a violência masculina regride nos usos,
desqualificada por um tempo «transsexual» em que a virilidade deixa de ser
associada à força e a feminilidade à passividade. A violência masculina era a
actualização e a reafirmação de um código de comportamento que assentava na
divisão imemorial dos sexos: este código vê-se desafectado quando, sob o efeito
do processo de personalização, o masculino e o feminino já não têm nem
definições rigorosas nem lugares marcados, quando o esquema da supe rioridade
masculina é rejeitado por todos os lados, quando o princípio da autoridade
musculada dá lugar ao imaginário da livre disposição de si pró prio, do diálogo
psi, da vida sem entraves nem compromissos definitivos. Ê verdade que resta a
questão da violação: em França, 1 600 violações foram registas em 1978 (3
violações por 100 000 habitantes), mas é verosímil que tenham sido cometidas
realmente perto de 8 000 (números negros); nos EUA, com mais de 60 000
violações, a taxa atinge valores extremos: 29 por 100 000 habitantes. Na maior
parte dos países desenvolvidos, regista-se um número crescente de violações
sem que seja possível, porém, determinar se esta elevação resulta de um aumento
efectivo das agressões sexuais ou de urna desculpabilização das mulheres
violadas, permitindo-lhes declarar mais facilmente as violências sofridas: na
Suécia, o número das violações mais que duplicou num quarto de século; nos
EUA, a sua frecjência quadrupli cou entre 1957 e 1978. Em contrapartida, desde
há um século, tudo parece indicar uma queda muito sensível da violência sexual:
a frequência da viola ção em França seria cinco vezes menor do que durante a
década de 1870 1* A despeito do agravamento relativo da violência sexual, o
processo coo! de personalização continua a moderar os comportamentos
masculinos, sendo o recrudescjrnento do número das violações acompanhado
pela sua relegação para uma população afinal muito circunscrita: por um lado, os
acusados recrutam-se em grande número nos grupos raciais e culturais (nos
EUA, quase metade das detenções têm por objecto indivíduos negros), por outro
lado, não podemos ignorar que pelo menos uma terça parte dos violadores, em
França, são reincidentes.
Por fim, a relação com os animais foi também anexada pelo processo de
civilização. Se as leis de 1850 e 1898 permitiam em teoria punir as violências
contra os animais, sabe-se que foram letra morta e que, na realidade, esse tipo de
crueldade estava longe de ser unanimemente condenado. No século XIX, a
brutalidade nos matadouros era coisa corrente; os combates de ani mais eram dos
espectáculos favoritos dos operários, «punham-se os perús a dançar em cima de
placas de ferro aquecidas, atiravam-se pedras a pombos fechados em caixas com
a cabeça de fora a servir de alvo» 1 Todo um mun do nos separa desta
sensibilidade; nos nossos dias as sevícias sobre os ani mais são maciçamente
condenadas, de toda a parte se levantam protestos contra a caça e as touradas,
contra as condições de criação do gado, contra certas normas de experimentação
científica. Mas em sector algum a humani zaçáo é mais visível do que entre as
crianças, que, facto único na história, já não tomam prazer em brincadeiras,
outrora naturais, que consistiam em tor turar os animais. Se o individualismo
moderno foi acompanhado pela liber tação do mecanismo da identificação com
outrém, o individualismo pós- moderno tem como característica o alargamento
desta identificação para lá da ordem humana. Identificação complexa que deve
ser ligada à psicologiza ção do indivíduo:à medida que este se «personaliza», as
fronteiras que sepa ram o homem do anin esbatem-se, toda a dor, ainda que
experimentada por um animal, se torna insuportável ao indivíduo doravante
constitutiva- mente frágil, abalado, horrorizado pela simples ideia de sofrimento.
Organi zando o indivíduo como estrutura mole e psi, o narcisismo aumenta a
recep tividade relativamente ao exterior; a humanização dos costumes que, de
res to, é acompanhada por uma indiferença igualmente sistemática, como
comprovam as vagas de abandonos de animais durante as mígrações de ve rão,
deve ser interpretada como uma nova vulnerabilidade, uma nova inca pacidade
dos homens de se confrontarem com a provação da dor.
Prova de certo modo incontornável desta moderação sem precedentes da
sociedade, em 1976, 95 por cento dos Franceses afirmavam não ter sofrido ao
longo do mês no termo do qual foram inquiridos qualquer violência; mais ainda,
os interrogados afirmavam que, ao longo desse mês, nenhum membro da sua
família (87 por cento) ou nenhum conhecido (86 por cento) fora víti ma de
qualquer agressão. De maneira que nem o aumento de uma nova cri minalidade
violenta, nem os tumultos nos estádios ou nos bailes de sábado à noite devem
ocultar-nos o pano de fundo sobre o qual se destacam: a violên cia física entre
indivíduos torna-se cada vez mais invisível, transformou-se numa colecção
defait divers traumatizantes. Isto não impedia que, no mes mo momento, dois
indivíduos em cada três pensassem que os comportamentos violentos eram hoje
mais comuns que num passado próximo ou no come ço do século. Sabe-se que,
em todos os países desenvolvidos, o sentimento de insegurança aumenta; em
França, 80 por cento da população sente aguda- mente um acréscimo de
violência; 73 por cento reconhecem ter medo de vol tar a pé à noite para casa;
um indivíduo em cada dois receia andar à noite de carro numa estrada
secundária. Na Europa, como nos EUA, a luta con tra a criminalidade ocupa o
primeiro lugar entre as preocupações e priorida de do público. Deveremos então,
dado este divórcio entre os factos e o vivi do, considerar a insegurança actual
como uma ilusão, uma maquinação do poder servindo-se dos media como
intermediários, exportando uma falsa consciência a fim de assegurar o seu
controlo social num período de crise e de decomposição ideológica? Mas como e
porque é que esta «ideologia» con segue introduzir-se na sociedade? É levar em
pouca conta as transformações profundas da sociedade civil e da relação com a
violência delas decorrente. De facto, o sentimento de insegurança cresce,
alimentando-se do mais pe quenofait divers e isto independentemente das
campanhas de intoxicação. A insegurança actual não é uma ideologia, está
inelutavelmente correlacionada com um indivíduo desestabilizado e desarmado
que amplifica todos os ris cos, se sente obcecado pelos seus problemas pessoais,
exasperado por um sistema repressivo considerado inactivo ou «demasiado» c
um indiví duo que se habituou a ser protegido e se sente traumatizado por uma
violên cia de que nada sabe: a insegurança quotidiana resume sob uma forma an
gustiada a dessubstancialização pó-moderna. O narcisismo, inseparável de um
medo endémico, só se constitui afirmando um exterior exageradamente
ameaçador, o que, por seu turno, só pode alargar a gama dos reflexos indi
vidualistas: actos de auto-defesa, indiferença pelo outro, aprisionamento em
casa; enquanto um número não desprezível de habitantes das grandes cida des se
abrigam já por trás da sua porta blindada e renunciam a sair à noite, apenas 6 por
cento dos Parisienses interviriam se ouvissem à noite chamar por socorro.
Curiosamente, a representação da violência torna-se tanto mais exacerba da
quanto mais a violência regride na sociedade civil. No cinema, no teatro, na
literatura, assistimos, com efeito, a uma profusão de cenas de violência, a um
deboche de horror e atrocidade sem precedentes; nunca a «arte» se em penhou
tanto em mostrar de tão perto a própria textura da violência, violên cia hi-fi feita
de cenas insuportáveis de ossos esmagados, jactos de sangue, gritos,
decapitações, amputações, castrações. Deste modo, a sociedade coo! é
acompanhada pelo estilo hard, pelo espectáculo em trompe !‘oei! de uma
violência hiper-realista. Não daremos conta desta pornografia do atroz a partir de
qualquer necessidade sádica recalcada pelas nossas sociedades de puradas; mais
vale que registemos a radicalidade de representações doravan te autónomas e,
portanto, votadas a um puro processo maximalista. A for ma hard não exprime a
pulsão, não compensa uma falta, como também não descreve a natureza
intrínseca da violência pós-moderna; quando já não há nenhum código moral a
transgredir, resta a fuga para diante, a espiral ex tremista, o requinte do
pormenor pelo pormenor, o hiperrealismo da violên cia, tendo por único
objectivo a sideração e a sensação instantâneas.
E por isso que é possível identificar a presença do processo hard em to das as
esferas, o sexo (a pornografia; a prostituição de crianças cada vez mais jovens:
em Nova York calcula-se em perto de doze mil o número de ra pazes e raparigas
com menos de dezasseis anos nas mãos dos proxenetas), a informação (o
frenesim do «directo»), a droga (com a sua escalada de priva ção e de doses), os
sons (a corrida aos decibéis), a «moda» (punks, ski nheads, couro), o ritmo (o
rock), o desporto (doping e super-preparação dos atletas; eclosão da prática do
karaté; bodybuilding feminino com a sua fe bre de músculo); longe de ser uma
moda mais ou menos aleatória, o efeito hard é correlativo da ordem coo!, da
desestabilização e da dessubstancializa ção narcísica, ao mesmo título que o
efeito humorístico, que representa a fa ce oposta, mas logicamente homóloga. À
dissolução gradual dos pontos de referência maiores, ao vazio do hiperindividualismo, corresponde uma radi calidade sem conteúdo dos
comportamentos e representações, uma subida aos extremos nos signos e habitus
do quotidiano; por toda a parte o mesmo processo extremista está em acção, o
tempo das significações, dos conteúdos pesados vacila: vivemos a época dos
efeitos especiais e da performance pura. da exasperação e da amplificação
vazias.
Crimes e suicídios: violências hard
A paisagem da violência não deixou de se alterar com o advento das so ciedades
governadas pelo processo de personalização. Se, no prolongamento dos séculos
XVIII e XIX, os crimes contra os bens (assaltos, roubos) e a delin quência
astuciosa (escroquerie...) continuam a levar de longe a melhor, em todos os
países ocidentais, sobre os crimes contra as pessoas, resta o facto de que a
grande criminalidade deu um facto social inédito: em França, entre 1963 e 1976,
os hoid-ups aumentaram 35 vezes; entre 1967 e 1976, 5 vezes mais roubos à
mão armada e 20 vezes mais hoid-ups foram cometidos. Sem dúvida, a partir de
1975, este tipo de criminalidade parece ter encontrado uma espécie de ponto de
equilíbrio e em números absolutos deixa de apre sentar progressões
espectaculares; não é menos verdade que o assalto à mão armada representa hoje
uma figura maior da violência urbana.
Se o processo de personalização suaviza os costumes da maioria, inversa mente
endurece os comportamentos criminosos dos desqualificados, favorece a
emergência de actos energúmenos, estimula a subida aos extremos no emprego
da violência. Do desenquadramento individualista e da desestabili zação actual
suscitada nomeadamente pela solicitação das necessidades e pe la sua frustração
crónica, resulta uma exacerbação cínica da violência ligada ao ganho, na
condição de precisarmos prontamente os limites deste fenóme no, circunscrito a
um número em última análise reduzido de indivíduos que acumulam as
agressões: na capital federal dos Estados Unidos, 7 por cento dos criminosos
detidos num período de quatro anos e meio foram presos quatro vezes, e esses 7
por cento eram os presumíveis culpados de 24 por cento de todos os crimes
graves perpetrados ao longo dos mesmos anos.
Outrora, o grande banditismo referia-se sobretudo a uma população liga da ao
proxenetismo, ao racket, ao tráfico de armas eÂe estupefacientes; ho je
assistimos a uma enchente ou «desprofissionalização» do crime, quer dizer à
emergência de uma violência cujos autores, muitas vezes desconhecidos dos
serviços da polícia, não têm qualquer familiaridade com o «meio». A vio lência
criminosa, de acordo com a flutuação generalizada, estende-se, perde as suas
fronteiras estritas, incluindo no que diz respeito aos grupos etários:
em França, em 1975, em cem pessoas que respondiam perante a justiça por actos
de criminalidade grave, dezoito eram menores; 24 por cento dos auto res de
hoid-ups e de roubos à mão armada tinham menos de vinte anos; nos EUA, 57
por cento dos auto.res de crimes violentos tinham, em 1979, menos de vinte e
cinco anos e ui em cada cinco menos de dezoito anos. A delin quência juvenil
não se desenvolveu muito em volume, mas tornou-se mais violenta. O processo
de personalização que generaliza o culto da juventude pacífica os adujtos, mas
endurece os mais novos, que, de acordo com a lógi ca hiper-individualista,
tendem a afirmar cada vez mais cedo, cada vez mais depressa, a sua autonomia,
tanto material como psicológica, mesmo que através do emprego da violência.
O mundo hard é jovem e toca em primeira linha os desenraízados cultu rais, as
minorias raciais, imigrados e filhos de famílias imigradas. A ordem do consumo
pulveriza muito mais radicalmente as estruturas e personalidade tradicionais do
que o pôde fazer a ordem racista colonial: doravante o que caracteriza o retrato
do «colonizado» é menos a inferiorização do que uma desorganização
sistemática da sua identidade, uma desorientação violenta do ego suscitada pela
estimulação de modelos individualistas eufóricos que con vidam a viver
intensamente. Por toda a parte, o processo de personalização desmantela a
personalidade; no jardim da fachada, temos a dispersão narcí sica e pacífica; nas
traseiras, a explosão energúmena e violenta. A sociedade hedonista produz sem
dar por isso um composto explosivo quando se imbri ca, como é aqui o caso,
num universo de honra e de vingança à deriva. A violência dos jovens excluídos
em razão da cor ou da cultura é um patch work, resulta do choque entre o
desenquadramento personalizado e o en quadramento tradicional, entre um
sistema à base de desejos individualistas, de profusão, de tolerância e uma
realidade quotidiana de ghettos, de de semprego, de desocupação, de indiferença
hostil ou racista. A lógica coo! prossegue por outros meios o trabalho
plurissecular da exclusão e da relega ção; não já através da exploração ou da
alienação decorrente da imposição autoritária das normas ocidentais, mas através
da criminalização.
Quando, em 1975, não representavam mais de 8 por cento da população
francesa, os estrangeiros eram responsáveis por 26 por cento dos roubos
acompanhados de violência, 23 por cento dos espancamentos e ferimentos, 20
por cento dos homicídios, 27 por cento das violações, 26 por cento das
condenações por porte de arma indevido. Em 1980, em Marselha, 32 por cento
das agressões e ferimentos e 50 por cento dos roubos acompanhados de violência
foram obra de jovens estrangeiros, o mais das vezes maghrebi nos: se
observarmos que os jovens nascidos de famílias imigradas, mas eles próprios já
de nacionalidade francesa, não figuram nestes números, sendo evidentemente
contabilizados na estatística criminal francesa, podemos ima ginar a
representação muito forte, no conjunto de todos os grupos, dos imi grados e
filhos de imigrados nos actos de vio'ência, proporção que não se ex plica
unicamente pelo facto de a polícia ou a justiça investigarem, prende rem e
condenarem mais facilmente os «estrangeiros» do que os autóctones. Nos
Estados-Unidos, onde de maneira geral a violência é considerável — há um acto
de violência em cada sete segundos, ao que se diz —, os Negros en contram-se
igualmente super-representados nos crimes violentos, quer como agressores quer
como vítimas. Com efeito, em larga medida, os actos violen tos desenrolam-se
entre indivíduos da mesma cor: há mais crimes entre Ne gros do que de Negros
contra Brancos e vice-versa. Na população negra, o homicídio é hoje a primeira
causa de morte tanto para os homens como para as mulheres entre os vinte e
quatro e os trinta e quatro anos, enquanto para a população branca da mesma
idade essa causa são os acidentes de trânsito. Os Negros correm um risco seis
vezes maior de morrer por homicídio do que os Brancos: se considerarmos
apenas o caso dos homens, em 1978 as mortes por homicídio elevavam-se a 78,1
por 100 000 habitantes na população ne gra, sendo de 12,2 para os Brancos.
Quase metade dos assassinos presos são Negros. Prova a contrario do processo
de civilização, a violência é cada vez mais o apanágio de grupos periféricos;
torna-se um facto relativo às mino rias. Apesar disso, não devemos ver nesta
violência de cor nem um habitus arcaico nem uma forma de revolta; é o ponto
culminante da desestabilização e da desintegração pós-moderna, da subida aos
extremos, dessocializada e cínica, ligada à liquefacção dos princípios,
enquadramentos e auto-contro los; é a manifestação hard da ordem coo!.
Desorganização ou degenerescência do banditismo que podemos ler so bretudo
na própria «qualidade» dos crimes. Enquanto os vadios profissionais organizam
minuciosamente os seus golpes, avaliam os ganhos e os riscos, pensam no alibi,
os delinquentes da nova vaga lançam-se em operações fre quentemente
improvisadas, sem conhecerem o local, os fundos, os sistemas de alarme, em
iniciativas de extrema gravidade contrw um ganho mínimo. Num só dia, cinco,
seis hol-ups por somas ridículas; é esta desproporção entre riscos e ganhos, entre
um fim insignificante e meios extremos que ca racteriza a criminalidade hard,
sem projecto, sem ambições, sem imagina rio. O processo de personalização que
trabalha no sentido de aumentar a responsabilidade dos indivíduos favorece, de
facto, comportamentos aberran tes, instáveis, indiferentes de algum modo ao
princípio de realidade e por
1 Indiferença igualmente visível no vandalismo, raiva hard que interpretamos
mal vendo nela uma forma desqualificada de reivindicação ou de protesto
simbólicos. O vandalismo dá tes temunho dessa desafecção nova que conquista
as coisas ao mesmo tempo que os valores e as instituições sociais. Do mesmo
modo que os ideais declinam e perdem a sua grandeza anterior, também os
objectos perdem toda a sua «sacralidade» nos sistemas acelerados de consumo: a
degradação vandálica tem como condição o fim do respeito pelas coisas, a
indiferença pelo real doravante vazio de sentido. Também aqui, uma vez mais a
violência hard reproduz a ordem social que a torna possível.
isso mesmo em consonância com o narcisismo dominante e correlativo: o real
transformado em espectáculo irreal, em expositor de vidro sem espessu ra, pela
lógica das solicitações. Consequência da desafecção das grandes fi nalidades
sociais e da preeminência conferida ao presente, o neo-narcisismo é uma
personalidade flutuante, sem estrutura nem vontade, sendo a labilida de e a
emotividade as suas características maiores. A este título, a violência hard,
desesperada, sem projecto, sem consistência, incarna a imagem de um tempo
sem futuro que valoriza o «tudo, e já»; longe de estar em antinomia
relativamente à ordem coo! e narcísica, é a sua expressão exasperada: a mes ma
indiferença, a mesma dessubstancialização, a mesma desestabilização, o que se
ganhou em individualismo perdeu-se em saber-fazer, em ambição, mas também
em sangue-frio, em controlo de si próprio: ao mesmo tempo que os jovens
mafiosi americanos se vão abaixo e quebram já sem grande re sistência a «lei do
silêncio», vemos aparecer essa figura mista e muito pós- moderna que é o jovem
assaltante armado e sob o efeito de tranquilizantes. A dessubstancialização, aqui
como noutros lugares, é acompanhada pelo flip e pela instabilidade. A violência
contemporânea já nada tem a ver com o mundo da crueldade; os nervos são o
seu traço dominante, não só entre os autores de assaltos, mas também entre os
criminosos das habitações econó micas que se enfurecem com os que fazem
barulho e até entre a polícia, co mo demonstra a multiplicação dos inquietantes
casos dos «deslizes» recentes.
O crime quase por nada: certamente, não se trata de coisa nova, as épo cas
anteriores conheceram igualmente crimes crapulosos por ganhos miserá veis. No
fim do século XIX, existe ainda uma criminalidade chamada das barreiras atacase um burguês perdido, um transeunte que é atraído aos fossos das fortificações.
Mas estas violências tinham em comum o facto de reafirmarem a conivência
imemorial do crime e da noite, do ilegalismo e do segredo. Hoje, este laço está
em vias de ser desfeito; o crime hard exibe-se em pleno dia, no coração da
cidade, indiferente às cautelas do anonimato, indiferente aos lugares e às horas,
como se o crime se esforçasse por partici par na pornografia do nosso tempo, a
da visibilidade total. Na esteira da de sestabilização geral, a violência deslastrase do seu princípio de realidade, os critérios do perigo e da prudência esbatem-
se, inicia-se assim uma banaliza ção do crime reforçada por uma subida
descontrolada aos extremos no em prego dos meios violentos.
A violência criminosa não é o único factor que designa o mundo hard. Menos
espectacular, menos submetido ao scoop, o suicídio constitui a sua outra face,
interiorizada se se quiser, mas regida por uma mesma progressão e uma mesma
lógica. Sem dúvida, a maré enchente de suicídios não é carac terística da pósmodernidade; sabe-se, com efeito, que ao longo de todo o século XIX, na
Europa, o suicídio não parou de crescer. Em França, de 1826 a 1899, o número
de suicídios multiplicou-se por cinco enquanto a sua taxa por 100 000 habitantes
passou de 5,6 a 23; na véspera da Primeira Guerra Mundial, esta taxa, já elevada,
é ultrapassada, atingindo 26,2. co mo Durkheim analisou correctamente, onde a
desinserção individualista to ma maior amplitude, o suicídio agrava-se de
maneira considerável. O suicí dio que, nas sociedades primitivas ou bárbaras, era
um acto de forte inte gração social efectivamente prescrito pelo código holista da
honra, torna-se, nas sociedades individualistas, um comportamento «egoísta»
cujo surto ful gurante não podia, segundo Durkheim, deixar de ser um fenómeno
patológi co e, portanto, evitável e passageiro, resultando menos da natureza da
so ciedade moderna do que das condições particulares em que ela se instituira.
A evolução da curva dos suicídios pôde, por um momento, confirmar o
«optimismo» de Durkheim, uma vez que a taxa muito elevada do início do
século descera para 19,2 em 19261930 e mesmo para 15,4 durante a década que
se inicia em 1960. Apoiando-se nestes números, houve quem sustentasse que a
sociedade contemporânea era «tranquila» e «equilibrada No entanto, sabemos
que não é assim: em primeiro lugar, a partir de 1977, em França, com uma taxa
próxima dos 20, assistimos de novo a um forte aumento do suicídio que
restabelece quase o nível do princípio do século ou do período entre as duas
guerras. Mas, para além deste agravamento, talvez conjuntu ral, da morte por
suicídio, é o número de tentativas de suicídio não seguidas de morte que nos
força a retomar a questão da natureza suicidogénea das nossas sociedades. Se
verificarmos efectivamente uma queda do número de mortes voluntárias,
observamos ao mesmo tempo uma elevação contínua das tentativas de suicídio, e
isso em todos os países desenvolvidos. Calcula-se que há entre 5 e 9 tentativas
por cada suicídio consumado: na Suécia, cerca de 2 000 pessoas se suicidam por
ano e 20 000 tentam fazê-lo; nos Estados- Unidos, são cometidos 25 000
suicídios e 200 000 tentados sem êxito. Em França, houve, em 1980, 10 500
suicídios consumados e provavelmente cerca de 100 000 tentativas. Ora, tudo
leva a pensar que o número de tentativas no século XIX não podia ser
equivalente ao que actualmente conhecemos. Em primeiro lugar, porque os
modos de preparação eram mais «eficazes»: enforcamento, afogamento, armas
de fogo eram os três instrumentos privile giados do suicídio até 1960; depois,
porque o estado da medicina não permi tia salvar o mesmo número de autores de
tentativas suicidarias; por fim, da da a proporção muito elevada, na população
suicidante, das pessoas idosas, ou seja, mais resolvidas, mais determinadas a
morrer. Dada a extensão sem precedentes das tentativas de suicídio, a epidemia
do suicídio está longe de ter chegado ao fim: a sociedade pós-moderna,
acentuando o seu individualis mo, modificando o seu teor por meio da lógica
narcísica, multiplicou as ten dências para a auto-destruição, ainda que
transformando a sua intensidade; a era narcísica é mais suicidogénea do que a
era autoritária. Longe de ser um acidente inaugural das sociedades
individualistas, o movimento ascensio nal dos suicídios é correlativo delas, no
plano da longa duração.
Se a distância entre as tentativas e as mortes por suicídio aumenta, isso liga-se
sem dúvida aos progressos da medicina em matéria de tratamento das
intoxicações agudas, mas também ao facto de a intoxicação por medica mentos e
venenos se ter tornado uma forma largamente predominante de ten tativa ou
consumação do suicídio. Se encararmos o conjunto dos actos suici dários
(tentativas incluídas), as intoxicações, medicamentos e gás ocupam actualmente
o primeiro lugar entre os meios utilizados, sendo escolhidos por quatro quintos
dos que se suicidam ou tentam suicidar-se. De algum modo, o suicídio paga o
seu tributo à ordem coo/: cada vez menos sangrento e do loroso, o suicídio,
como os comportamentos inter-individuais, suaviza-se: a violência autodestrutiva não desaparece, são os meios que perdem o antigo brilho.
Se as tentativas aumentam, isso liga-se igualmente ao facto de a popula ção
suicidante ser mais jovem: acontece com o suicídio o mesmo que com a grande
criminalidade, e a violência hard é jovem. O processo de personaliza ção
promove um tipo de personalidade cada vez menos capaz de afrontar a prova do
real: a fragilidade, a vulnerabilidade crescem, e isto principalmente entre a
juventude, categoria social mais destituída de pontos de referência e de
enraízamento. Os jovens, até há pouco relativamente preservados dos efeitos
destruídores do individualismo através de uma educação e de um en
quadramento estáveis e autoritários, sofrem em cheio a desestabijização
narcísica; são eles que hoje representam a figura última do indivíduo desin
sendo, estilhaçado, desestabjljzado por excesso de protecção ou de derrelição e,
por isso, candidato ideal ao suicídio. Na América, os jovens entre quinze e vinte
e quatro anos suicidam-se a um ritmo duplo do de há dez anos, tri plo do de há
vinte anos. O suicídio diminui nas idades em que outrora era mais frequente,
mas não deixa de aumentar entre os mais jovens: nos EUA, o suicídio é já a
segunda causa de morte dos jovens, a par dos acidentes de viação. Talvez
estejamos apenas no início do processo; é o que pensamos quando nos damos
conta, em toda a sua monstruosidade, do grau último a que chegou a escalada da
auto-destruição no Japão: facto inaudito, são ago ra as crianças entre cinco e
catorze anos que, em grande número, se matam — de 56 em 1965 passaram a
100 em 1975, e a 265 em 1980.
Com a ingestão de barbitúrjcos e a taxa considerável das tentativas falha das, o
suicídio entra na era de massas, adquire um estatuto banalizado e disco unt, do
mesmo modo que a depressão e a fadiga. Actualmente o suicí dio vê-se anexado
por um processo de indeterminação em que o desejo de vi ver e desejo de morrer
já não são antinómicos, mas flutuam entre um pólo e outro, quase
instantaneamente. Grande número de suicidantes, assim, inge rem o conteúdo da
sua farmácia para logo a seguir pedirem auxílio médico; o suicídio perde a
radicaljdade, desrealiza-se no momento em que os pontos de referência
individuais e sociais se flexibilizam, em que o próprio real se esvazia da sua
substância densa e se identifica com uma encenação progra mada. Esta
liquefacção do desejo de aniquilamento é apenas uma das faces do neonarcisismo, da desestruturação do Eu e da dessubstancialização da vontade.
Quando o narcisismo é preponderante, o suícídio procede mais de uma
espontaneidade depressiva, doflip efémero do que de um desespero ex istencial
definitivo. Deste modo, nos nossos dias, o suicídio pode verificar-se
paradoxalmente sem desejo de morte, um pouco como esses crimes entre vi
zinhos em que o indivíduo mata menos por vontade de morte do que para se
desembaraçar simplesmente de uma fonte de poluição sonora. O indivíduo pósmoderno tenta matar-se sem querer morrer, como esses assaltantes que disparam
ao acaso e por nervosismo; os indivíduos tentam pôr termo à vida por causa de
qualquer observação menos lisonjeira, do mesmo modo que outros matam para
arranjar um bilhete de cinema; trata-se do efeito hard, de uma violência sem
projecto, sem vontade afirmada, uma subida aos ex tremos instantânea: neste
ponto a violência hard é veiculada pela lógica cool do processo de
personalização.
Individualismo e revolução
O processo individualista que progride juntamente com a redução do de safio
interpessoal é, em contrapartida, acompanhado por um desafio inédito, de
alcance muito mais radical, o da sociedade frente ao Estado. Ê, com efei to, no
momento em que a relação de homem a homem se «humaniza» que se abrem o
projecto e a acção revolucionárias, bem como uma luta de classes declarada,
consciente de si própria, tendo por missão dividir a história ao meio e abolir a
própria máquina estatal. Processos de civilização e revolução são concomitantes.
Nas sociedades holistas, a violência dos homens poupava a definição do seu
estar-em-conjunto; a despeito dos seus caracteres sangren tos, os motins e
revoltas tradicionais não visavam destruir a arquitectura do todo social. Pelo
contrário, nas sociedades individualistas, são os fundamen tos da sociedade, o
teor intrínseco da lei e do poder que se tornam objectos do debate público, alvos
da luta dos indivíduos e das classes. Começa a era moderna da violência social,
doravante peça constitutiva da dinâmica histó rica, instrumento de transformação
e de adaptação da sociedade e do Esta do. A violência das massas torna-se um
princípio útil e necessário ao funcio namento, ao crescimento das sociedades
modernas, tendo a luta de classes permitido ao capitalismo nomeadamente
superar as suas crises, reabsorven do o seu desequilíbrio crónico entre produção
e consumo.
Impossível compreender a emergência do fenómeno revolucionário, bem como a
de uma luta de classes permanente e institucionalizada, separando os da
sociedade individualista que lhes é correlativa, tanto pela sua organi zação
económico-social como nos seus valores. Nas sociedades holistas ou
hierárquicas, quer dizer, em sistemas onde os seres particulares, secundários em
relação ao conjunto social em que os homens estão integrados assenta num
fundamento sagrado e, por isso mesmo, subtraído à iniciativa revolu cionária.
Para que a revolução se torne uma possibilidade histórica, é preciso que os
homens estejam atomizados, desinseridos das suas solidariedades tra dicionais; é
preciso que a relação com as coisas leve a melhor sobre a rela ção entre os seres
e que, por fim, predomine uma ideologia do indivíduo que lhe conceda um
estatuto nativo de liberdade e de igualdade. A revolução e a luta de classes
pressupõem o universo social e ideológico do individualismo; a partir de então,
já não há organização em si exterior à vontade dos ho mens, o todo colectivo e a
sua supremacia, que anteriormente impediam a violência de abalar a ordem
correspondente, perdem o seu princípio de in tangibilidade e já nada, nem o
Estado, nem a sociedade, escapam à acção transformadora dos homens. Quando
o indivíduo deixa de ser meio de um fim exterior e passa a ser considerado e a
considerar-se como fim último, as instituições sociais perdem o seu halo de
sagrado; tudo o que procede de uma transcendência inviolável e se dá numa
heteronomia de natureza vê-se a mais breve ou a mais longo prazo minado por
uma ordem social e ideológica cujo núcleo já não é o além, mas o indivíduo
autónomo em si próprio
A sociedade homogénea de seres iguais e livres é indissociável, na sua era
triunfante, de um conflito aberto e violento relativo à organização da socie dade.
Governada pelo papel decisivo da ideologia, que doravante se substitui à
instância religiosa, conservando o mesmo carácter absoluto e passional, a
primeira fase individualista é uma era de revoluções e de lutas sociais san
grentas. Emancipando-se do sagrado, a sociedade individualista só restitui aos
homens o pleno domínio do seu estar-em-conjunto ao fazê-los defronta rem-se
em conflitos, é certo que por vezes baseados no interesse, mas cujo maniqueísmo
se prende sobretudo aos novos valores associados aos direitos do indivíduo.
Nesta perspectiva, a fase heróica do individualismo pode ser comparada mais
acertadamente a uma mobilização-politização de massa em torno de valores do
que a um recuo prudente para o campo de preocupações estritamente privadas.
Hipertrofia e antagonismo ideológicos são insepará veis da era individualistademocrática. Por comparação com os nossos dias, esta fase continua de algum
modo ligada às sociedades holistas, ao primado do todo social, passando-se tudo
como se o elemento de desorganização so cial encerrado no princípio
individualista tivesse sido prontamente contraria do por um tipo de
enquadramento omnipresente e inflexível, paralelo nesse ponto ao das
disciplinas, e destinado a neutralizar a dinâmica das singulari dades pessoais, a
prender os indivíduos à coisa pública, ainda que através da mediação dos
confrontos de classe e dos valores.
Com a era individualista abre-se a possibilidade de uma era de violência total da
sociedade contra o Estado, sendo uma das suas consequências uma violência não
menos ilimitada do Estado sobre a sociedade, ou seja o Terror como modo
moderno de governo pela violência exercida em massa, não só contra os
opositores, mas também contra os partidários do regime. As mes mas razões que
permitem à violência civil subverter a ordem social e política tornam possível
um desafio sem precedentes do poder em relação à socieda de, nascendo o
Terror na nova configuração ideológica resultante da supre macia do indivíduo:
quer os massacres, as deportações, os processos se reali zem em nome da
vontade do povo quer da emancipação do proletariado, o Terror só é possível em
função de uma representação democrática e, portan to, individualista, do corpo
social, embora, sem dúvida, para denunciar a sua perversão e para restabelecer
pela violência a prioridade do todo colecti vo. Do mesmo modo que a vontade
revolucionária não pode explicar-se por contradições objectivas de classe,
também é vão querer dar conta do Terror a partir de simples necessidades
circunstanciaiS é porque o Estado, de acor do com o ideal democrático, se
proclama idêntico e homogéneo à sociedade que, com efeito, pode chegar a
desafiar toda a legalidade, a desenvolver uma repressão sem limites, sistemática,
indiferente às noções de inocência e de culpabilidade Se, por conseguinte, a
evolução individualista-de mocrática implica correlativamente, na longa
duração, uma redução dos sig nos ostentatóriOs do poder estatal e o advento de
um poder benevolente, sua ve, protector nem por isso deixou de permitir a
emergência de uma forma particularmente sangrenta de poder, que podemos
interpretar como uma úl tima revivescência do brilho do soberano condenado
pela ordem moderna, uma formação de compromisso entre os sistemas da
crueldade simbólica tra dicional e a impessoalidade gestionária do poder
democrático A grande fase do individualismo revolucionário termina ante os
nossos
olhos: depois de ter sido um agente de guerra social, o individualismo con tribui
actualmente para abolir a ideologia da luta de classes. Nos países oci dentais
desenvolvidos, a era revolucionária encerrou-se, a luta de classes ins
titucionalizou-5e, já não é portadora de descontinuidade histórica, os parti dos
revolucionários encontram-se num estado de deliquescência total, a ne gociação
leva por todo o lado a melhor sobre os confrontos violentos. A segunda
«revolução» individualista, veiculada pelo processo de personalização, tem
como consequência uma desafecção de massa da res publica e em parti cular das
ideologias políticas: depois da hipertrofia ideológica, a desenvoltu ra perante os
sistemas de sentido. Com a emergência do narcisismo, a or dem ideológica e o
seu maniqueísmo cedem o lugar à indiferença, tudo o que é dotado ainda de uma
certa densidade de universalismo e de oposições exclusivas deixa de ter preensão
sobre uma forma de individualidade muito amplamente tolerante e móvel. A
ordem rígida, disciplinar, da ideologia tor nou-se incompatível com a
desestabilização e com a humanização coo/. O processo de pacificação
conquistou o todo colectivo, a civilização do conflito social prolonga hoje a das
relações inter-pessoais.
Mesmo os últimos sobressaltos da Revolução dão testemunho deste apa
ziguamento do conflito social. Foi o caso de Maio 68. As discussões que se
travaram em torno do teor do movimento são a este respeito significativas:
revolução ou happening? Luta de classes ou festa urbana? Crise da civiliza ção
ou charivari? A revolução torna-se indecidível, perde os seus referen de
identidade. Por um lado, Maio 68 continua a inscrever-se na vaga do processo
revolucionário e insurreccional: barricadas, confrontos violentos com as forças
da ordem, greve geral. Por outro lado, o movimento já não é animado por
qualquer meta global, política e social. Revolução sem projecto histórico, Maio
68 é uma sublevação cool e sem mortes, uma «revolução» sem revolução, um
movimento de comunicação tanto como um confronto so cial. As jornadas de
Maio, para além da violência das noites quentes, repro duzem menos o esquema
das revoluções modernas fortemente articuladas em torno de paradas ideológicas
do que prefiguram a revolução pós-moderna das comunicações. A originalidade
de Maio foi a sua civilidade espantosa: a discussão instaura-se por todo o lado,
os graffiti florescem nas paredes, os jornais, os cartazes, os comunicados
multiplicam-se, a comunicação estabe lece-se nas ruas, nos anfiteatros, nos
bairros e nas fábricas, nos lugares de onde habitualmente estava ausente. Sem
dúvida, todas as revoluções suscita ram uma inflação de discursos, mas, em 68,
estes soltaram o lastro dos seus conteúdos ideológicos pesados; já não se tratava,
com efeito, de tomar o po der, de designar traidores, de traçar linhas divisórias
entre os bons e os maus; tratava-se, por intermédio da expressão livre, da
comunicação, da contestação, de «mudar a vida», de libertar o indivíduo das mil
alienações que quotidianamente pesam sobre ele, do trabalho ao supermercado,
da te levisão à universidade. Libertação da palavra, Maio 68 foi animado por
uma ideologia flexível, simultaneamente política e convivia!, patchwork de luta
de classes e de líbido, de marxismo e de espontaneísmo, de crítica política e de
utopia poética; uma descrispação, uma desestandardiZação teórica e prática
habita o movimento, isomorfo nese ponto do processo coo de personaliza ção.
Maio 68 é já uma revolução persona!izada a revolta faz-se contra a au toridade
repressiva do Estado, contra as separações e imposições burocráti cas
incompatíveis com a livre afirmação e desenvolvimento do indivíduo. A ordem
da revolução humaniza-se, levando em conta as aspirações subjecti vas, a
existencla e a vida: à revolução sangrenta substituiu-se a revolução estilhaçada»,
multidimensiOnal, transição quente entre a era das revoluções sociais e políticas
em que o interesse colectivo prima sobre o dos particulares e a era narcísica,
apática, desideologizada.
Desligada do maniqueísmo ideológico, a violência das jornadas de Maio pôde
mesmo surgir como uma manifestação lúdica, exactamente ao invés do
terrorismo actual que, no seu fundo, continua a ser tributário do modelo re
volucionário estrito, organizado em torno da guerra de classe, em torno de
dispositivos vanguardistas e ideológicos, o que explica o seu corte radical com
as massas indiferentes e descrispadas. Dito isto, apesar do seu enqua dramento
ideológico, o terrorismo reúne-se, por um estranho paradoxo, à ló gica do nosso
tempo, já que os discursos duros de legitimação de que proce dem os atentados,
os «processos» e os raptos se tornaram totalmente vazios, desconectados de toda
a relação com o real à força de intumescência revolu cionária e de autismo
grupuscUlar. Processo extremista que apenas a si próprio tem em vista, o
terrorismo é uma pornografia da violência: a máquina ideológica ganha
velocidade por si própria, perde todo o enraizamento; a dessubstanCialização
conquista a esfera do sentido histórico, afirmando-se como violência hard
exasperação maximalista e vazia, espectro lívido, car caça ideológica liofilizada.
Maio 68, já o dissemos, tem uma dupla face: moderno pelo seu imaginá rio da
Revolução, pós-moderno pelo seu imaginário do desejo e da comuni cação, mas
também pelo seu carácter imprevisível ou selvagem, modelo pro vável das
violências sociais vindouras. À medid.t que o antagonismo de das sé se
normaliza, surgem explosões aqui e ali, sem passado nem futuro, desa parecendo
com a mesma rapidez que caracterizou a sua emergência. Actual mente, as
violências sociais têm muitas vezes em comum o facto de já não caberem no
esquema dialéctico da luta de classes articulada em torno de um proletariado
organizado: os estudantes nos anos 60, hoje os jovens desemPregados, squatters,
Negros ou Jamaicanos — a violência marginalizou-se. Os motins que se
desenrolaram recentemente em Londres, Bristol, Liverpool, Brixton ilustram o
novo perfil da violência, seja qual for o carácter racial de alguns destes
confrontos. Se a revolta libertária dos anos sessenta era ainda «utópica»,
portadora de valores, nos nossos dias, as violências que incen deiam os ghettos
surgem desligadas de qualquer projecto histórico, fiéis nes se ponto ao processo
narcísico. Revolta pura da desocupação, do desempre go, do vazio social.
Dissolvendo a esfera ideológica e a personalidade, o pro cesso de personalização
libertou uma violência tanto mais dura quanto me nos esperança tem, no future,
à imagem da nova criminalidade e da droga. A evolução dos conflitos sociais
violentos é a mesma que a da droga: depois da viagem psicadélica dos anos
sessenta, marca de contra-cultura e de revol ta, a era da toxicomania banalizada,
da depressão sem sonho, da descarga lumpen com medicamentos, verniz das
unhas, querosene, colas, dissolventes e lacas, para uma população cada vez mais
jovem. Tudo o que resta é ata car um bobby ou um Paquistanês, incendiar as
ruas e os prédios, pilhar os armazéns, numa acção a meio caminho entre a
descarga e a revolta. A vio lência de classe deu lugar a uma violência de jovens
desclassificados, que destroem os seus próprios bairros; os ghettos incendeiamse como se se tra tasse de acelerar o vazio pós-moderno e de completar na raiva
o deserto que, por outros meios, o processo coo! de personalização realiza.
Numa derradei ra desqualificação, a violência entra no ciclo em que absorve os
seus pró prios conteúdos; de acordo com a era narcísica, a violência
dessubstanciali za-se num culminar hiperrealista sem programa nem ilusão,
violência hard, desencantada.
Table of Contents
1. PRÓLOGO
2. CAPITULO 1 Sedução non-stop
1. Sedução a lista
2. Os discretos encantos da política
3. Sexdução
3. CAPITULO II A indiferença pura
1. Apatia new-look
2. Ind. operacional
3. O Flip
4. CAPITULO III Narciso ou a estratégia do vazio
1. Narciso por medida
2. O zombie e o psi
3. O corpo reciclado
4. Um teatro discreto
5. Apocalipse now?
6. 24 000 watts
7. O vazio
5. CAPITULO IV Modernismo e pós-modernismo
1. A cultura antinomiana
2. Modernismo e valores democráticos
3. Modernismo e cultura aberta
4. Consumo e hedonismo: rumo ó sociedade pós-moderna
5. Exaustão da vanguarda
6. Crise da democracia?
6. CAPITULO V A sociedade humorística
1. Do cómico grotesco ao humor pop
2. Metapublicidade
3. A moda: uma paródia lúdica
4. Processo humorístico e sociedade hedonista
5. Destino humorístico e idade pós-igualitária
6. Microtecaologia e sexo pomo
7. Narcisismo enlatado *
8. Violências selvagens, violências modernas
9. Honra e vingança: violências selvagens
10. A perspectiva clássica da vingança, tal como a vemos expressar-se em
M.
11. Regime da barbárie
12. O processo de civilização
13. A escalada da pacificação
14. Crimes e suicídios: violências hard
15. Individualismo e revolução
7. CAPíTULO 6 Violências selvagens, violências modernas
1. Honra e vingança: violências selvagens
2. A perspectiva clássica da vingança, tal como a vemos expressar-se em
M.
3. Regime da barbárie
4. O processo de civilização
5. A escalada da pacificação
6. Crimes e suicídios: violências hard
7. Individualismo e revolução
Table of Contents
PRÓLOGO
CAPITULO 1 Sedução non-stop
Sedução a lista
Os discretos encantos da política
Sexdução
CAPITULO II A indiferença pura
Apatia new-look
Ind. operacional
O Flip
CAPITULO III Narciso ou a estratégia do vazio
Narciso por medida
O zombie e o psi
O corpo reciclado
Um teatro discreto
Apocalipse now?
24 000 watts
O vazio
CAPITULO IV Modernismo e pós-modernismo
A cultura antinomiana
Modernismo e valores democráticos
Modernismo e cultura aberta
Consumo e hedonismo: rumo ó sociedade pós-moderna
Exaustão da vanguarda
Crise da democracia?
CAPITULO V A sociedade humorística
Do cómico grotesco ao humor pop
Metapublicidade
A moda: uma paródia lúdica
Processo humorístico e sociedade hedonista
Destino humorístico e idade pós-igualitária
Microtecaologia e sexo pomo
Narcisismo enlatado *
Violências selvagens, violências modernas
Honra e vingança: violências selvagens
A perspectiva clássica da vingança, tal como a vemos expressar-se em
M.
Regime da barbárie
O processo de civilização
A escalada da pacificação
Crimes e suicídios: violências hard
Individualismo e revolução
CAPíTULO 6 Violências selvagens, violências modernas
Honra e vingança: violências selvagens
A perspectiva clássica da vingança, tal como a vemos expressar-se em
M.
Regime da barbárie
O processo de civilização
A escalada da pacificação
Crimes e suicídios: violências hard
Individualismo e revolução