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A Era do Vazio.
Gilles Lipovetaky
ÍNDICE
Prólogo 7
Sedução non stop
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A indiferença pura 33
Narciso ou a estratégia do vazio 47
Modernismo e pós-modernismo 75
A sociedade humorística 127
Violências selvagens, violências modernas 161
PRÓLOGO
Os artigos e estudos aqui apresentados colocam, todos eles, embora a níveis diferentes — e só
por isso se justifica a sua publicação em conjun to — o mesmo problema geral: a desagregação
da sociedade, dos costumes, do indivíduo contemporâneo da época do consumo de massa, a
emergência de um modo de socialização e de individualização inédito, em ruptura com o
instituído desde os séculos XVII e XVIII. E esta mutação histórica em curso que estes textos
se esforçam por evidenciar, considerando, com efeito, que o universo dos objectos, das
imagens, da informação e dos valores hedonistas, permissivos e psicologistas que lhe estão
ligados geraram, ao mesmo tempo que uma nova forma de controlo dos comportamentos, uma
diversificação incomparável dos modos de vida, uma flutuação sistemática da esfera priva da,
das crenças e dos papéis, ou, por outras palavras, uma nova fase na his tória do individualismo
ocidental. O nosso tempo só logrou evacuar a escato logia revolucionária levando a cabo uma
revolução permanente do quotidia no e do próprio indivíduo: privatização alargada, erosão das
identidades so ciais, desafecção ideológica e política, desestabilização acelerada das perso
nalidades, eis-nos vivendo uma segunda revolução individualista.
Uma ideia central governa as análises que se seguem: à medida que as
sociedades democráticas se desei a sua inteligibilidade revela-se à luz
de uma lógica nova, a que chamamos aqui o processo de personalização,
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Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
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sendo que este não pára de remodelar em profundidade o conjunto dos sec tores da vida social.
Sem dúvida, nem todas as esferas se reestruturam no mesmo grau ou da mesma maneira de
acordo com o processo em curso, e não ignoramos os limites das teorias que se esforçam por
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unificar o todo so cial sob a égide de um princípio simples, quando é manifesto que as nossas
sociedades põem em acção uma pluralidade de critérios específicos. Se, ape sar de tudo,
mántivemos a ideia de um esquema homogéneo, isso liga-se ao facto de que se tratava menos de
operar um levantamento instantâneo do momento actual do que das linhas de transformação, da
tendência forte que modela, à escala da história, as instituições, os modos de vida, as
aspirações e finalmente as personalidades. O processo de personalização procede de uma
perspectiva comparativa e histórica, designa a linha directriz, o sentido do que é novo, o tipo
de organização e de controlo social que nos arranca à ordem disciplinar-revolucionáriaconvencional que predominou até aos anos cinquenta. Ruptura com a fase inaugural das
sociedades modernas, demo cráticas-disciplinares, universalistas-rigoristas, ideológicascoercivas, tal é o sentido do processo de personalização, que seria evidentemente redutor assi
milar a uma estratégia de reciclagem do capital, ainda que de rosto huma no. Quando um mesmo
processo anexa num movimento sincrónico o conjun to de um sistema, é ilusório pretender
fazê-lo assentar numa função local instrumental, mesmo que ele possa contribuir eficazmente
para a reprodu ção ou para o aumento da mais-valia. A hipótese aqui adiantada é outra:
trata-se de uma mutação sociológica global em curso, de uma criação histó rica próxima daquilo
a que Castoriadis chama uma «significação imaginária central», combinação sinérgica de
organizações e de significações, de acções e de valores, que se esboça a partir dos anos vinte
— apenas as esferas artísticas e psicanalíticas a anteciparam em alguns decénios — e cujos
efei tos não pararam de se amplificar a partir da Segunda Guerra Mundial.
Negativamente, o processo de personalização remete para a fractura da socialização
disciplinar; positivamente, corresponde à instalação de uma so ciedade flexível assente na
informação e na estimulação das necessidades, no sexo e no levar em conta os «factores
humanos», no culto da naturalidade, da cordialidade e do humor. É assim que opera o processo
de personaliza ção, novo modo de a sociedade se organizar e se orientar, novo modo de ge rir
os comportamentos, já não através da tirania dos pormenores, mas com o mínimo possível de
coacção e o máximo possível de opções, com o mínimo de austeridade e o máximo de desejo,
com o mínimo de constrangimento e o
máximo de compreensão. Processo de personalização, com efeito, na medida em que as
instituições doravante se fixam nas motivações e nos desejos, inci tam à participação,
organizam os tempos livres e as distracções, manifestam uma mesma tendência no sentido da
humanização, da diversificação, da psi cologização das modalidades de socialização: depois da
domesticação autori tária e mecânica, o regime homeopático e cibernético; depois da
administra ção injuntiva, a programação opcional, a pedido. Novos procedimentos inse paráveis
de novas finalidades e legitimidades sociais: valores hedonistas, res peito pelas diferenças,
culto da libertação pessoal, da descontracção, .do hu mor e da sinceridade, psicologismo,
expressão livre — que quer isto dizer se não que uma nova significação da autonomia se
instalou, deixando muito para trás o ideal que a época democrática autoritária se fixara? Até
uma da ta em última análise recente, a lógica da vida política, produtiva, moral, es colar, asilar,
consistia em mergulhar o indivíduo numa rede de regras uni formes, em abstrair tanto quanto
possível as formas das preferências e das expressões singulares, em afogar as
particularidades idiossincráticas numa lei homogénea e universal, fosse esta a «vontade geral»,
as convenções so ciais, o imperativo moral, as regulamentações fixas e estandardizadas, ou a
submissão e a abnegação exigidas pelo partido revolucionário: tudo se pas sou como se os
valores individualistas só tivessem podido nascer sendo ime diatamente enquadrados por
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sistemas de organização e de sentido empenha dos em esconjurar implacavelmente a sua
indeterminação constitutiva. E es te imaginário rigorista da liberdade que desaparece, dando
lugar a novos va lores que visam permitir o livre desenvolvimento da personalidade íntima, le
gitimar a fruição, reconhecer os pedidos singulares, modular as instituições de acordo com as
aspirações dos indivíduos.
O ideal moderno de subordinação do individual às regras racionais colec tivas foi pulverizado; o
processo de personalização promoveu e incarnou ma ciçamente um valor fundamental, o da
realização pessoal, do respeito pela singularidade subjectiva, da personalidade incomparável,
sejam quais forem, sob outros aspectos, as novas formas de controlo e de homogeneização si
multaneamente vigentes. Sem dúvida, o direito de o indivíduo ser absoluta mente ele próprio,
de fruir ao máximo a vida, é inseparável de uma socieda de que erigiu o indivíduo livre em valor
principal e não passa de uma última manifestação da ideologia individualista; mas foi a
transformação dos estilos de vida associada à revolução do consumo que permitiu este
desenvolvimento dos direitos e desejos do indivíduo, esta mutação na ordem dos valores mdi11
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Guies Lipovetsky
vidualistas. Salto em frente da lógica individualista; o direito à liberdade, em teoria ilimitado,
mas antes circunscrito à economia, à política, ao saber, conquista agora os costumes e o
quotidiano. Viver livre e sem coacção, es colher sem restrições o seu modo de existência: não
há outro facto social e cultural mais significativo quanto ao nosso tempo; não há aspiração nem
de sejo mais legítimos aos olhos dos nossos contemporâneos.
O processo 1e personalização: estratégia global, mutação geral no fazer e no querer das nossas
sociedades. Quando muito, seria conveniente distinguir nele duas faces. A primeira, «limpa» ou
operacional, designa o conjunto dos dispositivos fluidos e desestandardizados, as fórmulas de
solicitação progra mada elaboradas pelos aparelhos de poder e de gestão que levam regularmente os detractores de direita e, sobretudo, de esquerda a denunciar, não sem uma
caricatura algo grotesca, o condicionamento generalizado, o infer no climatizado e
«totalitário» da affluent society. A segunda face, «selvagem» ou «paralela», como lhe
poderíamos chamar, decorre da vontade de autono mia e de particularização dos grupos e dos
indivíduos: neo-feminismo, liber tação dos costumes e das sexualidades, reivindicações das
minorias regionais e linguísticas, tecnologias psi, desejo de expressão e de realização do eu,
movimentos «alternativos»: enfim, temos por toda a parte a busca de uma identidade própria e
já não da universalidade como motivo das acções so ciais e individuais. Dois pólos que têm, sem
dúvida, as suas especificidades, mas que trabalham ambos no sentido da saída de uma
sociedade disciplinar e que o fazem em função da afirmação, mas também da exploração do
princípio das singularidades individuais.
O processo de personalização emergiu no interior do universo disciplinar, de modo que o fim da
época moderna se caracterizou pelo casamento de duas lógicas antinómicas. Foi a anexação
cada vez mais patente das esferas da vida social pelo processo de personalização e o recuo
concomitante do processo disciplinar que nos levou a falar de sociedade pós-moderna, ou seja
de uma sociedade que generaliza uma das tendências, inicialmente minoritá ria, da
modernidade. Sociedade pós-moderna, maneira de dizer a inflexão histórica dos objectivos e
modalidades da socialização, colocados hoje sob a égide de dispositivos abertos e plurais;
maneira de dizer que o individualis mo hedonista e personalizado se tornou legítimo e já não
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depara com oposi ção; maneira de dizer que a era da revolução, do escândalo, da esperança
futurista, inseparável do modernismo, terminou. A sociedade pós-moderna é a sociedade em
que reina a indiferença de massa, em que domina o sentiA Era do Vazio
mento’de saciedade e de estagnação, em que a autonomia privada é óbvia, em que o novo é
acolhido do mesmo modo que o antigo, em que a inovação se banalizou, em que o futuro deixou
de ser assimilado a um progresso me lutável. A sociedade moderna era conquistadora, crente
no futuro, na ciên cia e na técnica; instituiu-se em ruptura com as hierarquias de sangue e a
soberania sacralizada, com as tradições e os particUlarism0s em nome do universal, da razão,
da revolução. Esse tempo desfaz-se diante dos nossos olhos; é em parte contra tais princípios
futuristas que as nossas sociedades se estabelecem, nessa medida pós-moderfla5 ávidas de
identidade, de dife rença, de conservação, de descontracção, de realização pessoal imediata; a
confiança e a fé no futuro dissolvem-Se, nos amanhãs radiosos da revolução e do progresso já
ninguém acredita, doravante o que se quer é viver já, aqui e agora, ser-se jovem em vez de
forjar o homem novo. Sociedade PÓs moderna significa, neste sentido, retracção do tempo
social e individual pre cisamente quando se impõe cada vez mais a necessidade de prever e
organi zar o tempo colectivo, exaustão do impulso modernista dirigido para o futu ro,
desencanto e monotonia do que é novo, esgotamento de uma sociedade que conseguiu
neutralizar na apatia aquilo que a fundamenta: a mudança. Os grandes eixos modernos, a
revoluçãO, as disciplinas, O laicismo, a van guarda, foram desafectados à força de
personalização hedonista o optimis mo tecnológico e científico desmoroflOUse, enquanto as
inúmeras descober tas eram acompanhadas pelo envelhecimento dos blocos, pela degradação do
meio ambiente, pelo apagamento progressivo dos indivíduoS já nenhuma ideologia política é
capaz de inflamar as multidões, a sociedade pós- moderna já não tem idolos nem tabus, já não
possui qualquer imagem glo riosa de si própria ou projecto histórico mobilizador; doravante o
vazio que nos governa, um vazio sem trágico nem apocalipse.
Que erro foi anunciar precipitadamente o fim da sociedade de consumo quando é claro que o
processo de personaliZação não pára de lhe alargar as fronteiras. A recessão preseflte a crise
energética, a consciência ecológica não são o toque a finados da sociedade de consumo:
estamos destinados a consumir, ainda que de outro modo, cada vez mais objectos e
jnformações, desportos e viagens, formação e relações, música e cuidados médicos. E isso a
sociedade pós-moderfla não o para além do consumo, mas a sua apoteose, a sua extensão à
esfera privada, à imagem e ao devir do ego chamado a co nhecer o destino da obsolescência
acelerada, da mobilidade, da desestabili zação. Consumo da sua própria existência através dos
media desmultiPlica
A Era do Vazio
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Gil/es Lipovetskv
dos, dos tempos livres, das técnicas relacionais, o processo de personalização gera o vazio em
technicolor, a flutuação existencial na e pela abundância dos modelos, mesmo que
condimentados de convivialidade, de ecologismo, de psicologismo. Mais precisamente, estamos
na segunda fase da sociedade de consumo, coo! e já não hot, consumo que digeriu a crítica da
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opulência. Acabada, com efeito, a idolatria do american way of I dos carros triun fantes de
cromados, das grandes estrelas e dos grandes sonhos de Holly wood; acabados a revolta
beatnik, o escândalo das vanguardas; tudo isto deu lugar, segundo se diz, a uma cultura pósmoderna identificável por di versas características: busca da qualidade de vida, paixão da
personalidade, sensibilidade extrema, desafecção dos grandes sistemas de sentido, culto da
participação e da expressão, moda rétro, reabilitação do local, do regional, de certas crenças e
práticas tradicionais. Eclipse da bulimia quantitativa an terior? Por certo que sim, na condição
de não perdermos de vista que estes fenómenos são igualmente manifestações do processo de
personalização, ou tras tantas estratégias que trabalham no sentido de destruir os efeitos do
modernismo monolítico, do gigantismo, do centralismo, das ideologias du ras, da vanguarda. Não
temos que opor a era do consumo «passivo» às cor rentes chamadas pós-modernas, criativas,
ecologistas, revivalistas; no con junto, estas completam o desmoronar da era moderna rígida
em direcção a uma maior flexibilidade, diversidade, escolhas privadas, com vista à repro dução
alargada do princípio das singularidades individuais. A descontinui dade pós-moderna não
começa com este ou aquele efeito particular, cultural ou artístico, mas com a preponderância
histórica do processo de personaliza ção, acompanhada pela reestruturação do todo social sob
a sua lei própria.
A cultura pós-moderna representa o pólo «surperestrutural» de uma so cieda que sai de um
tipo de organização uniforme, dirigista, e que, para o fazer, mistura, os últimos valores
modernos, reabilita o passad& e a tradição, revaloriza o local e a vida simples, dissolve a
preeminência da centralidade, dissemina os critérios da verdade e da arte, legitima a
afirmação da identi dade pessoal de acordo com os valores de uma sociedade personalizada
onde o que importa é que o indivíduo seja ele próprio, e onde tudo e todos têm, portanto,
direito de cidade e a serem socialmente reconhecidos, sendo que nada deve doravante imporse imperativa e duradouramente, e todas as op ções, todos os níveis, podem coabitar sem
contracção nem relegação. A cul tura pós-moderna é descentrada e heteróclita, materialista e
psi, pomo e discreta, inovadora e rétro, consumista e ecologista, sofisticada e espontâ
nea, espectacular e criativa; e o futuro não terá, sem dúvida, que decidir em favor de uma
destas tendências, mas, pelo contrário, desenvolverá as lógicas duais, a co-presença flexível
das antinomias. A função de uma explosão se melhante não é duvidosa: paralelamente aos
outros dispositivos personaliza dos, a cultura pós-moderna é um vector de alargamento do
individualismo; diversificando as possibilidades de escolha, liquefazendo os marcos de refe
rência, minando os sentidos únicos e os valores superiores da modernidade, modela uma cultura
personalizada ou por medida, permitindo ao átomo so cial emancipar-se das balizas
disciplinaresreV0luci0h1
No entanto, não é verdade que estejamos entregues à errância do senti do, a uma
deslegitimação total; na época pós-moderna perdura um valor principal, intangível, indiscutido
através das suas múltiplas manifestações: o indivíduo e o seu direito cada vez mais proclamado
de se realizar à parte, de ser livre, à medida que as técnicas de controlo social passam a
aplicar dispo sitivos mais sofisticados e «humanos». Se, portanto, o processo de personali
zação introduz de facto uma clescontinuidade na trama histórica, continua, contudo, a
prosseguir por outras vias a obra que, atravessando os séculos, é a da modernidade
democrática Ruptura aqui, continuidade ali, a noção de sociedade pós-moderna não diz coisa
diferente: uma fase chega ao fim, uma nova fase aparece, ligada por fios mais complexos do
que à primeira vista pode parecer, às nossas origens políticas e ideológicas.
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Se é necessário recorrer ao esquema do processo de personalização, isso não se deve
unicamente às novas tecnologias suaves de controlo, mas tam bém aos efeitos deste processo
sobre o próprio indivíduo. Com o processo de personalizaÇão, o individualismo sofre um
aggiornameflto que designamos aqui, na esteira dos sociólogos americanos, como narcísico: o
narcisismo, consequência e manifestação miniaturizada do processo de personalização, símbolo
da passagem do individualismo «limitado» ao individualismo «total», símbolo da segunda
revolução individualista. Que outra imagem pode signi ficar tão bem a emergência desta forma
de individualidade com a sua sensi bilidade psicológica, desestabilizada e tolerante, centrada
sobre a realização emocional de si próprio, ávida de juventude, de desportos, de ritmo, menos
empenhada em triunfar na vida do que ein realizar-se de modo contínuo na esfera íntima? Que
outra imagem é capaz de sugerir com a mesma força o formidável surto individualista induzido
pelo processo de personalizaçáo? Que outra imagem permite ilustrar melhor a nossa situação
presente em que o fenómeno social decisivo já não é a pertença e o antagonismo de classe,
CAPtTULO 1
Sedução non stop
Como designar esta vaga de fundo característica do nosso tempo, que, por todo o lado,
substitui a coerção pela comunicação, o interdito pela frui ção, o anónimo pelo feito por
medida, a reificação pela responsabilização, e que, por todo o lado, tende a instituir um clima
de proximidade, de ritmo e de solicitude liberta do registo da Lei? Música, informação vinte e
quatro sobre vinte e quatro horas, gentil organizador, SOS, amizade. Mesmo a polícia tende a
humanizar a sua imagem de marca, abre as portas das es quadras, explica-se perante a
população, enquanto o exército se entrega a tarefas civis. «Os camionistas são simpáticos»,
porque o não seria a tropa? A sociedade pós-industrial foi definida como sendo uma sociedade
de serviços, mas, mais directamente ainda, é o auto-serviço que pulveriza por inteiro o antigo
quadriculado disciplinar, fazendo-o, não através das forças da Revo lução, mas das ondas
radiosas da sedução. Longe de se circunscrever às re lações interpessoais, a sedução tornou-se
o processo geral que tende a regu lar o consumo, as organizações, ,.a informação, a educação,
os costumes. To da a vida das sociedades contemporâneas é doravante governada por uma nova
estratégia que destrona o primado das relações de produção em provei to de uma apoteose das
relações de sedução.
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Gil/es Lipovetsky
Sedução a lista
Com a categoria de espectáculo, os situacionistas anunciavam de algum modo esta
generalização da sedução, embora com uma reserva, é verdade, na medida em que o
espectáculo designava a «ocupação da parte principal do tempo vivido no exterior da produção
moderna» (G. Debord). Libertan do-se do ghetto da superestrutura e da ideologia, a sedução
tornava-se rela ção social dominante, princípio de organização global das sociedades da
abundância. Todavia, esta promoção da sedução, assimilada à época do consumo, depressa
revelava os seus limites, consistindo a acção do espectá culo em transformar o real em
representação falsa, em alargar a esfera da alienação e do desapossamento. «Nova força de
engano», «ideologia materia lizada», «impostura da satisfação», o espectáculo, a despeito ou
por obra da sua radicalidade, não se desembaraçava das categorias próprias da era revo
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lucionária (a alienação e o seu outro, o homem total, «senhor sem escravo»), então
precisamente em vias de desaparecer em surdina sob o efeito do reino alargado da mercadoria.
Seduzir, enganar por meio do jogo das aparências
— o pensamento revolucionário, mesmo quando atento ao novo, continuava a ter que localizar
uma sedução negativa para levar a cabo a sua inversão:
tributária do tempo revolucionário-disciplinar, a teoria do espectáculo recon duzia a versão
eterna da sedução, a astúcia, a mistificação e a alienação das consciências.
Sem dúvida, temos que partir do mundo do consumo. Com a profusão luxuriante’ dos seus
produtos, imagens e serviços, com o hedonismo que in duz, com o seu clima eufórico de
tentação e proximidade, a sociedade de consumo revela até à evidência a amplitude da
estratégia da sedução. Esta não se reduz, no entanto, ao espectáculo da acumulação; mais
exactamente, identifica-se com a ultra-simplificação das opções que a abundância torna
possíveis, com a latitude dos indivíduos mergulhados num universo transpa rente, aberto,
oferecendo um número cada vez maior de escolhas e combina ções por medida, permitindo uma
circulação e uma selecção livres. E esta mos apenas no começo, esta lógica alargar-se-á
inelutavelmente à medida que as tecnologias e o mercado puserem à disposição do público uma
diver sificação cada vez mais vasta de bens e de serviços. Actualmente, a TV por cabo oferece
em certos pontos dos Estados-Unidos a escolha entre oitenta canais especializados, em contar
com os programas «a pedido»; calcula-se em cerca de cento e cinquenta o número de canais por
cabo necessários à
A Era do Vazio
satisfação das exigências do público dentro de seis ou sete anos. Já hoje, o self-serviCe, a
existência à lista, designam o modelo geral da vida nas socie dades contemporâneas que vêem
proliferar de modo vertiginoso as fontes de informação, o leque dos produtos expostos nos
centros comerciais e hiper- mercados tentaculareS, nos armazéns ou restaurantes
especializados. É assim a sociedade pós-moderfla caracterizada por uma tendência global no
sentido de reduz as relações autoritárias e dirigistas e simultaneamente de aumen tar a gama
das opções privadas, privilegiar a diversidade, oferecer fórmulas de «programas
independentes», nos desportos, nas tecnologias psi, no turis mo, na descontracção da moda, nas
relações humanas e sexuais. A sedução nada tem a ver com a representação falsa e com a
alienação das consciên cias; é ela que configura o nosso mundo e o remodela segundo um
processo sistemáticO de personaliza ção cuja obra consiste essencialmente em multipli car e
diversificar a oferta, em propor mais para que nós decidamos mais, em substituir a coacção
uniforme pela livre escolha, a homogeneidade pela plu ralidade, a austeridade pela realização
dos desejos. A sedução remete para o nosso universo de gamas opcionais, de secções de
produtos exóticos, de am biente psi, musical e informaCiOflal, no qual cada um pode à vontade
com por a lista dos elementos da sua existência. A independência é um traço de carácter, é
também uma maneira de viajar segundo um ritmo seu, de acordo com os seus próprios desejos;
construa a «sua» viagem. Os itinerários pro postos nos nossos Globe-TrOtters são apenas
sugestões que podem ser combi nadas, mas também modificadas tendo em conta a sua
vontade». Este anún cio diz a verdade da sociedade pós-moderfla socjedade aberta, plural,
levan do em conta os desejos dos indivíduos e aumentando a sua liberdade combi natória. A
vida sem imperativo categórico, a vida kit modulada em função das motivações individuais, a
vida flexível da época das combinaÇõeS, das opções, das fórmulas independentes tornadas
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possíveis por uma oferta infini ta — é assim que opera a sedução. Sedução no sentido em que o
processo de personalização reduz os quadros rígidos e coercivoS, funciona suavemente jogando
a cartada da pessoa individual, do seu bem-estar, da sua liberdade, do seu interesse próprio.
O processo de personalização começa a reordenar até a ordem da produ ção, muito
timidamente ainda, e devemos deixá-lo dito aqui. E sem dúvida o mundo do trabalho que
oferece a resistência mais tenaz à lógica da sedu ção, a despeito das revoluções tecnológiCaS
em curso. A tendência para a personaliZação, no entanto, também aqui se manifesta. Em A
Multidão Soli
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Guies Lipovetsky
tária, Riesman já a observava, mostrando como a cordialidade imposta, a personalização das
relações de trabalho e dos serviços se substituiam pouco a pouco ao enquadramento funcional e
mecânico da disciplina. Mais ainda, assistimos à multiplicação dos técnicos da comunicação e
dos psicoterapeu tas de empresa. Abatem-se as paredes que separam os escritórios, o
trabalho é feito em espaços abertos; a concentração e a participação são solicitadas por todos
o lados. Fazem-se aqui e ali tentativas, muitas vezes apenas a título experimental, de
humanização e de reorganização do trabalho ma nual: alargamento das tarefas, job
enric/zment, grupos autónomos de traba lho. A futura tecnologia electrónica, o número
crescente de empregos de in formação permitem imaginar alguns cenários futuros:
desconcentração das empresas, desenvolvimento do trabalho a domicílio, «casa electrónica».
Já hoje assistimos à flexibilização do tempo de trabalho: horários móveis ou à escolha,
trabalho intermitente. Para além das características específicas des tes dispositivos, desenhase uma mesma tendência, que define o processo de personalização: reduzir a rigidez das
organizações, substituir os modelos uniformes e pesados por dispositivos flexíveis, privilegiar
a comunicação em relação à coerção.
O processo conquista novos sectores e conhecerá uma extensão que nos é ainda difícil imaginar
com as novas tecnologias com base no microprocessa dor e dos circuitos integrados. Eis o que
actualmente se verifica já no ensi no: trabalho independente, sistemas opcionais, programas
individuais de tra balho e de auto-apoio por micro-computador; dentro de um prazo mais ou
menos curto, haverá o diálogo com o teclado, a auto-avaliação, a manipula ção pessoal da
informação. Os media estão em vias de experimentar uma reorganização que aponta no mesmo
sentido; para além das redes por cabo, as rádios livres, os sistemas «interactivos»: a explosão
do vídeo, o gravador, as video-cassertes, personalizando o acesso à informação, às imagens. Os
conjuntos de vídeo e os milhares de fórmulas que proporcionam alargam e privatizam em
grande escala as possibilidades lúdicas e interactivas (prevê-se que um lar americano em cada
quatro esteja dentro de pouco tempo equipa do com conjuntos de vídeo). A micro-informática e
a galáxia vídeo designam a nova vaga da sedução, o novo vector de aceleração da
individualização dos seres, após a idade heróica do automóvel, do cinema, do electrodoméstico.
«My computer likes me’: não nos enganemos, a sedução videomática não se refere apenas à
magia das performances das novas tecnologias; enraíza-se profundamente no aumento da
autonomia individual esperada, na possibili
A Era do Vazio
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dade para cada indivíduo de ser um livre agente do seu tempo, menos pre gado às normas das
organizações pesadas. A sedução em curso é uma sedu ção privática.
Todas as esferas são actualmente anexadas, cada vez mais depressa, por um processo de
personalização multiforme. Na ordem psicoterapêutica, sur giram novas técnicas (análise
transaccional, grito primal, bioenergia) que exacerbam a personalização psicanalítica
considerada demasiado «intelectua lista»; prioridade dada aos tratamentos rápidos, às
terapias «humanistas» de grupo, à libertação directa do sentimento, das emoções, das energias
corpo rais: a sedução investe todos os pólos, do software à descarga «primitiva». A medicina
sofre uma evolução paralela: acupunctura, visualização do corpo interno, tratamento natural
por meio de ervas, biofeedback, homeopatia, as terapias «suaves» conquistam terreno,
advogando a subjectivização da doen ça, a gestão «holística» da saúde pelo próprio indivíduo, a
exploração mental do corpo em ruptura com o dirigismo hospitalar; o doente já não deve conti
nuar a sofrer passivamente o seu estado, é responsável pela sua saúde, pelos seus sistemas de
defesa, graças às potencialidades da autonomia psíquica. Simultaneamente, o desporto assiste
à proliferação das práticas livres de cro nómetro, de confronto, de competição, e que
privilegiam o treino livremente escolhido, a sensação de planar, a audição do corpo (jogging,
windsurf, gi nástica suave, etc.); o desporto é reciclado através da psicologização do cor po, da
total tomada de consciência de si, do livre curso aberto à paixão dos ritmos individuais.
Os costumes inclinam-se também no sentido da lógica da personalização. O gosto do tempo
privilegia a diferença, a fantasia, a descontracção; a es tandardização e a rigidez já não têm
boa reputação. O culto da espontanei dade e a cultura psi estimulam o indivíduo a ser «mais»
ele próprio, a «sen tir», a analisar-se, a libertar-se dos papéis e «complexos». A cultura pósmoderna é a do feeiing e da emancipação individual alargada a todos os grupos de idade e sexo.
A educação, de autoritária que era, tornou-se alta mente permissiva, atenta aos desejos das
crianças e dos adolescentes, en quanto que, por todos os lados, a vaga hedonista desculpabiliza
o tempo li vre, encoraja cada um a realizar-se sem constrangimentos e a aumentar os seus
ócios. A sedução: uma lógica que abre caminho, que nada poupa e que, deste modo, realiza uma
socialização flexível, tolerante, empenhada na personalização-psicologização do indivíduo.
A sedução repercute-se na linguagem. Já não há surdos, cegos, coxos; es23
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Guies Lipovetsky
tamos no tempo dos que ouvem mal, dos invisuais, dos deficientes; os velhos tornaram-se
pessoas da terceira ou da quarta idade; as criadas, empregadas domésticas; os proletários,
parceiros sociais; as mães solteiras, mães celiba tárias. Os cábulas são crianças com problemas
ou casos sociais, o aborto é uma interrupção voluntária da gravidez. Até os analisados são
analisandos. O processo de personalização asseptiza o vocabulário como o coração das ci dades,
os centros comerciais e a morte. Tudo o que exibe uma conotação de inferioridade, de
deformidade, de passividade, de agressividade, deve desa parecer em proveito de uma
linguagem diáfana, neutra e objectiva — tal é o último estádio das sociedades individualistas.
Paralelamente às organizações flexíveis e abertas organiza-se uma linguagem eufemística e
lenitiva, um lif ting semântico conforme ao processo de personalização centrado no desen
volvimento, no respeito e na tolerância relativamente às diferenças indivi duais. «Sou um ser
humano. Não dobrar, estragar ou deformar». A sedução liquida numa mesma vaga as regras
disciplinares e as últimas reminiscências do mundo do sangue e da crueldade. Tudo deve
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comunicar sem resistência, sem relegação, num hiper-espaço fluido e acósmico, na esteira das
telas e cartazes de Folon.
Se o processo de personalização é inseparável de uma esterilização acon dicionada do espaço
público e da linguagem, de uma sedução irreal à ma neira das vozes adocicadas das hospedeiras
dos aeroportos, é igualmente in separável de uma animação rítmica da vida privada. Vivemos
uma formidá vel explosão musical: música ininterrupta, hit-parade, a sedução pós-moder na é
hi-fi. Doravante, a aparelhagem sonora é um bem de primeira necessi dade; faz-se desporto,
deambula-se, trabalha-se, sempre no meio de música; anda-se de automóvel em estéreo, a
música e o ritmo tornaram-se, no espaço de algumas décadas, um ambiente quase permanente,
um engodo de massa. Para o homem disciplinar-autoritário, a música circunscrevia-se a lugares
e momentos específicos, concerto, dancing, music-haii, baile, rádio; o indiví duo pós-moderno,
pelo contrário, está ligado à música de manhã à noite; tudo se passa como se tivesse
necessidade de estar sempre noutro lugar, de ser transportado e envolvido por uma atmosfera
ambiente sincopada; tudo se passa como se precisasse de uma desrealização estimulante,
eufórica ou inebriante do mundo. Revolução musical ligada, sem dúvida, às inovações
tecuológicas, ao império da ordem mercantil, do show-business, mas que nem por isso manifesta
menos o processo de personalização, uma das faces da transformação pós-moderna do
individuo. Da mesma maneira que as ins
A Era do Vazio
tituições se tornam flexíveis e móveis, o indivíduo torna-se cjnétjcO, aspira ao ritmo, a uma
participação de todo o corpo e de todos os sentidos, participa ção hoje possível através da
estereofonia, do waikman, dos sons cósmicos ou parox’IsticOs das músicas da idade
electrónica. À personalização por medida da sociedade corresponde uma personalização do
indivíduo, que se traduz no desejo de sentir «mais», de planar, de vibrar em directo, de
experimentar sensações imediatas, de ser posto integralmente em movimento numa espécie de
trip sensorial e pulsional. As realizações técnicas da estereofonia, os sons eléctricos, a cultura
do ritmo inaugurada pelo jazz e prolongada pelo rock, permitiram à música tornar-se esse
inedium privilegiado do nosso tempo, porque em consonância estreita com o novo perfil do
indivíduo personaliza do, narcísico, sedento de imersão instantânea, sedento de «descarregar»
náo apenas ao ritmo dos últimos êxitos, mas das mais diversas espécies de músi ca, das
variedades mais sofisticadas, actualmente postas à sua constante dis posiÇãO.
A sedução pós-moderna não é um ersatz de comunicação ausente nem um cenário destinado a
ocultar a abjecção das relações mercantis. Seria vê- la de novo como um consumo de objectos
e de signos artificiais, reinjectar o logro onde exjste, antes do mais, uma operaÇão sistemática
de personaliza ção, ou, por outras palavras, uma atomização do social ou uma extensão em
abismo da lógica individualista. Fazer da sedução uma «representação ilusó ria do não-vivido»
(Debord) é reconduzir o imaginário das pseudo des, a oposição moral entre o real e a
aparências um real objectivo ao abrigo da sedução, quando esta se define, sobretudo, como
processo de transforma ção do real e do indivíduo. Longe de ser um agente de mistificação e
de pas sividade, a sedução é destruição cool do social através de um processo de isolamento,
que já não surge administrado pela força bruta ou pelo quadri culado regulamentar, mas
através cio hedonismo, da informação e da res ponsabilização. Com o reino dos media, dos
objectos e do sexo, cada indiví duo se observa, se testa, se vira mais para si próprio à espreita
da sua pró pria verdade e do seu bem-estar, tornando-se responsável pela sua vida, de vendo
11
gerir o melhor possível o seu capital est&icO, afectivo, fisico, libidinal, etc. Aqui, socialização e
essocializaÇã0 identificam-se; no centro do deserto social ergue-se o indivíduo soberano,
informado, livre, prudente administra dor da sua vida: ao volante, cada um aperta o seu próprio
cinto de seguran ça. Fase pós-moderna da socialização, o processo de personalização é um novo
tipo de controlo social desembaraçado dos processos pesados de massi
25
24
Gil/es Lipovetsky
ficação-reificação-repressão. A integração realiza-se por meio da persuasão, invocando a
saúde, a segurança e a racionalidade: anúncios e sensibilizações médicas, mas também
conselhos das associações de consumidores. Dentro em breve, o vídeotex passará a apresentar
«árvores de decisão», sistemas de pergunta-resposta permitindo ao consumidor dar a conhecer
ao computador os seus próprios critérios a fim de efectuar uma escolha racional e, ao mes mo
tempo, porém, persoializada. A sedução deixou de ser libertina.
Sem dúvida, nem tudo isto data de agora. Foi já há séculos que as socie dades modernas
inventaram a ideologia do indivíduo livre, autónomo e se melhante aos outros. Paralelamente, ou
com inevitáveis desfasamentos histó ricos, edificou-se uma economia livre baseada no
empresário independente e no mercado, ao mesmo tempo que se instalaram regimes políticos
democrá ticos. Neste quadro,. no que se refere à vida quotidiana, ao modo de vida, à
sexualidade, o individualismo viu-se, até uma data recente, contido na sua expansão por
estruturas ideológicas rígidas, instituições, costumes ainda tra dicionais ou disciplinaresautoritários. E esta última fronteira que se desfaz ante os nossos olhos a uma velocidade
prodigiosa. O processo de personali zação impulsionado pela aceleração das técnicas, pela
gestão, pelo consumo de massa, pelos media, pelos desenvolvimentos da ideologia individualista,
pelo psicologismo, leva ao seu ponto culminante o reino do indivíduo, faz explodir as últimas
barreiras. A sociedade pós-moderna ou, por outras pa lavras, a sociedade que generaliza o
processo de personalização em ruptura com a organização moderna disciplinar-coerciva, realiza
de algum modo, no interior do quotidiano e através de novas estratégias, o ideal moderno da au
tonomia individual, ainda que esta se revele, até à evidência, de um teor iné dito.
Os discretos encantos da política
O mundo político não se mantém à margem da sedução. A começar pela personalização imposta
da imagem dos dirigentes ocidentais: simplicidade ostensiva, o homem político surge de jeans
ou puli-over, reconhece humilde mente os seus limites e fraquezas, faz entrar em cena a
família, o seu bole tim de saúde, a sua juventude. Em França, Giscard, na esteira de Kennedy ou
de P. -E. Trudeau, foi o símbolo autêntico desta humanização psicologização do poder: um
presidente à «escala humana», que declara não
A Era do Vazio
querer sacrificar a sua vida privada, toma o pequeno com os homens dos serviços de limpeza,
janta fora com esta ou aquela família francesa. Não nos iludamos: o desenvolvimento dos novos
media, da televisão em particu lar, por capital que seja nesta questão, não pode explicar tio
fundamental esta promoção da personalidades esta necessidade de confeccionar semelhan te
imagem de marca. A política personalizada corresponde à emergência desses novos valores que
12
são a cordialidade, as confidências íntimas, a proxi midade, a autenticidade, a personalidades
valores individualista5demo cos por excelência, difundidos em larga escala pelo consumo de
massa. A se dução: filha do individualismo hedonista e psi, muito mais do que do ma quiavelismo
político. Perversão das democracias, jntoxicaÇão, manipulação do eleitorado por um
espectáculo de ilusões? Sim e não, porque se é exacto que existe realmente um marketing
político programado e cínico, é igual mente correcto dizer que as vedetas políticas não fazem
senão adaptar-se ao habitus pós-moderno do homo democratiCúS, com uma sociedade já
persona lizada desejosa de contacto humano, refractária ao anonimato, às lições pe dagógicas
abstractas, à linguagem estereotipada, aos papéis distantes e con vencionais. Quanto ao
impacto real do design da personalização, poderemos perguntar-nos se não será este
consideravelmellte sobrevalOrizado pelos pu blicistaS e pelos políticos 1, eles próprios
amplamente seduzidos pelos meca nismos de sedução do star systetn: na medida em que
actualmente todas as cabeças de cartaz se submetem mais ou menos à mesma lógica, o seu
efeito anula-se por difusão e saturação mediática; a sedução surge como uma at mosfera soft,
imperativa e sem surpresas, que distrai epidermicamente um público que está muito longe de
ser tão ingénuo e passivo como imaginam os actuais detractores do «espectáculo».
Mais significativa ainda no que se refere à sedução é a tendência que as democracias hoje
revelam para jogarem a cartada da descentralizaÇão. De pois da unificaçáo nacional e da
supremacia das administrações centrais, o recente poder dos conselhos regionais e de eleição
local, as políticas culturais regionais. A época é a do desprendimento do Estado, das iniciativas
locais e regionais, do reconhecimento dos particulariSmos e identidades territoriais; a nova
distribuição do jogo da sedução democrática humaniza a nação, ventila os poderes, aproxima as
instâncias de decisão dos cidadãos, redistribui uma dignidade às periferias. O Estado nacionaljacobino esboça uma reconversão
1 R.G. wartzenbCtg, L’État spectacle FlammariOfl, 1971.
26
Gil/es Lipovetsky
centrífuga destinada a reduzir a rigidez das burocracias, reavalia o «país», promove de certo
modo uma democracia do contacto, da proximidade, atra vés de uma reterritorializaçãopersonalização regionalista. Simultaneamente, organiza-se uma política do património que se
inscreve na mesma linha que a da descentralização ou da ecologia: deixar de devastar, de
desenraizar ou de inferiorizar, para proteger e valorizar as riquezas regionais, memoriais ou
naturais. A nova política museográfica tem como correspondente a política de regionalismo
administrativo e cultural, aplicando-se a desenvolver do mesmo modo forças e entidades
excentradas, montando um mesmo disposi tivo de diálogo entre presente e passado, entre
população e torrão natal. Não se trata de um efeito de nostalgia de uma sociedade devastada
pela conquis ta do futuro, e ainda menos de um show media-político; mais obscuramente, mas
mais profundamente, trata-se de uma personalização do presente atra vés da salvaguarda do
passado, de uma humanização dos objectos e monu mentos antigos análoga à das instituições
públicas e das relações interindivi duais. De modo nenhum imposto do exterior, de modo
nenhum conjuntural, este interesse museográfico encontra-se em consonância com a
sensibilidade pós-moderna em busca de identidade e de comunicação, nada apaixonada pelo
futuro histórico, acabrunhada com a ideia de destruições irreversíveis. Aniquilar os vestígios é
como devastar a natureza; uma mesma repulsa se apodera dos nossos espíritos hoje
13
curiosamente inclinados a dotarem de al ma, a psicologizarem toda a realidade, homens, pedras,
plantas, meio am biente. O efeito património é indissociável da suavização dos costumes, do
crescente sentimento de respeito e de tolerância, de uma psicologização sem limites.
A autogestão cujo projecto consiste em suprimir as relações burocráticas de poder, em fazer
de cada indivíduo um sujeito político autónomo, repre senta um outro aspecto da sedução.
Abolição da separação dirigente- executante, descentralização e disseminação do poder, é à
liquidação da me cânica do poder clássico e da sua ordem linear que se aplica a autogestão,
sistema cibernético de distribuição e de circulação da informação. A auto- gestão é a
mobilização e o tratamento optimizado de todas as fontes de in formação, a instituição de um
banco de dados universal, relativamento ao qual cada um é ao mesmo tempo e a todo o momento
emissor e receptor — é a informatização política da sociedade. Doravante, torna-se necessário
ven cer a entropia constitutiva das organizações burocráticas, reduzir os blo queamentos da
informação, os segredos e desafecções. A sedução não fun
A Era do Vazio
27
ciona graças ao mistério, mas graças à informação, ao feed-back à ilumina ção sem resíduos do
social, à maneira de um strip-teaSe integral e generali zado. Nestas condições, não é
surpreendente que numerosas correntes ecoló gicas adoptem no seu programa a autogeStãO.
Rejeitando a predominância da espécie humana e a unilateralidade da relação entre o homem e
a nature za, que conduzem à poluição e à expansão cega, a ecologia substitui à mecâ nica pesada
do crescimento a regulação cibernética, a omuniCaÇã0, ofeed back, deixando a natureza de ser
um tesouro a pilhar, uma força a explorar, para se converter num interlocutor a ouvir e a
respeitar. Solidariedade das espécies vivas, protecção e saúde do meio ambiente, toda a
ecologia repousa num processo de personalização da natureza, no tomar em onsideraÇá0 essa
unidade insubstituível, não finita, ainda que planetária que é a natureza. Correlativamente, é no
sentido da responsabilização do homem que a ecologia trabalha, alargando o campo dos
deveres, do social ao plane tário: se a ecologia se esforça efectivamente por travar e deter o
processo ili mitado da expansãO económica, contribui, em contrapartida, para uma ex pansão
do sujeito. Recusando o modelo produtivista a ecologia aspira a uma mutação tecnológica, à
utilização de técnicas suaves, não poluentes e, para os mais radicais, a uma reconversão total
dos métodos e unidades de trabalho: reimplantação e dissemiflaÇã0 das unidades industriais e
da po pulação, pequenas oficinas autogeridas, integradas em comunidades à escala humana, de
dimensões reduzidas. A cosmogoflia ecológica não conseguiu es capar aos encantos do
humanismo. Redução das relações hierárquicas e da temperatura histórica, persoflaliZaçã0
crescimento do sujeito, a sedução des dobra a sua panóplia cobrindo até os espaços verdes da
natureza.
O próprio PCF não quer ficar para trás e apanha o comboio em anda mento abandonando a
ditadura do proletariado’ último dispositivo sangrento da época revolucionária e da teleologia
da história. A sedução abole a Revo lução e o emprego da força, destrói as grandes finalidades
históricas, mas também emancipa o Partido do autoritarismo estaliniaflo e da sua sujeição ao
grande Centro; a partir daqui, o PCF pode começar a admoestar timida- mente Moscovo e a
«tolerar» as críticas dos seus intelectuais sem praticar purgas nem exclusões. A luta final não
terá lugar: grande operadora de sínteseS, de unidade, a sedução, na esteira de Eros, actua por
ligação, coe são e aproximação. O engate por meio de estatísticas, o compromisso histó rico, a
14
União do povo de França substituem a guerra de classes. Quer flirtar comigo? Só a Revolução
fascinas porque se coloca do lado de Thanatos, da
28
Guies Lipovetskv
descontinuidade, do desligamento. A sedução, essa, rompeu todos os laços que a uniam ainda, no
dispositivo donjuanesco, à morte, à subversão. Sem dúvida, o PCF continua a ser na sua
ideologia e na sua organização o parti do menos inclinado a ceder às piscadelas de olho da
sedução, o partido mais rétro, o mais preso ao moralismo, ao centralismo, ao burocratismo, e é
mes mo essa rigidez congénita que, em parte, está na origem dos retumbantes fracassos
eleitorais que sabemos, Mas, por outro lado, o PCF apresenta-se como um partido dinâmico e
responsável, identificandose cada vez mais com um organismo de gestão sem missão histórica,
tendo adoptado, por sua vez, após prolongadas hesitações, os vectores-chave da sedução
management, inquéritos através de sondagens, reciclagens regulares, etc., incluindo a ar
quitectura da sua sede, prédio de vidro sem segredo, montra iluminada pe las luzes das
metamorfoses «in do aparelho. Formação de compromisso en tre a sedução e a era passada da
revolução, o PC joga duas cartadas ao mes mo tempo, condenando-se obstinadamente ao papel
de sedutor envergonha do e infeliz, O mesmo perfil se encontra no marxismo deles, para
falarmos aqui à maneira de Lenine. Por exemplo, a voga do althusserianismo: rigor e
austeridade do conceito, anti-humanismo teórico, o marxismo faz sua uma imagem de marca
dura, sem concessões, nos atípodas da sedução. Mas em penhando-se na via da articulação dos
conceitos, o marxismo entra simulta neamente na sua fase de desarmamento: o seu objectivo
já não é a formação revolucionária de uma consciência de classe unificada e disciplinada, mas a
formação de uma consciência epistemológica. A sedução triste do marxismo envergou o fato
completo dos homens de «ciência».
Sexdução
Em torno da inflação erótica actual e da pornografia, uma espécie de de núncia unânime
reconcilia as feministas, os moralistas, os estetas, escandali zados pelo aviltamento do ser
humano reduzido à categoria de objecto e pelo sexo-máquina que faz desaparecer as relações
de sedução num deboche re petitivo e sem mistério. Mas se o essencial não estivesse aí — se a
pornogra fia não fosse afinal senão mais uma figura da sedução? Que faz a pornogra fia, com
efeito, senão suspender a ordem arcaica da Lei e do Interdito, abo lir a ordem coerciva da
Censura e do recalcamento em benefício de um ver- tudo, fazer-tudo, dizer-tudo, que define
exactamente o trabalho da sedução?
A Era do Vazio
29
É ainda o ponto de vista moral que reduz a ponografia à reificação e à or dem industrial ou
serial do sexo: aqui tudo é permitido, é preciso ir cada vez mais longe, procurar dispositivos
inéditos, novas combinações numa livre disposição do corpo, numa livre empresa do sexo que
faz do pomo, contra riamente ao que dizem os seus detractores, um agente de
desestandartização e de subjectivização do sexo e pelo sexo, à semelhança dos movimentos de
li bertação sexual. Diversificação libidinal, constelação de «pequenos anúncios» singulares:
depois da economia, da educação, da política, a sedução anexa o sexo e o corpo de acordo com o
mesmo imperativo de personalização do in divíduo. Na hora do self-service libidinal, o corpo e o
15
sexo tornam-se instru mentos de subjectivização-responsabilizaçáo; é preciso acumular as
experiên cias, explorar o capital libidinal pessoal, inovar em matéria de combinações. Tudo o
que se pareça com a imobilidade, com a estabilidade tem que desa parecer em proveito da
experimentação e da iniciativa. Assim se produz um sujeito já não através da disciplina, mas da
personalização do corpo sob a égide do sexo. O seu corpo é você, o corpo deve ser cuidado,
amado, exibi do; já nada tem a ver com a máquina. A sedução alarga o ser-sujeito atri buindo ao
corpo outrora oculto uma dignidade e uma integridade novas: nu dismo, seios nus, são os
sintomas espectaculares desta mutação através da qual o corpo se torna pessoa a respeitar, a
acarinhar ao calor do sol, O jerk é um outro sintoma desta emancipação: se, com o rock ou o
twist, o corpo estava ainda submetido a certas regras, com o jerk caem todas as imposições
das figuras codificadas, o corpo já só tem que se exprimir, tornando-se, na esteira do
Inconsciente, linguagem singular. Nas pistas dos night-clubs, gra vitam sujeitos autónomos,
seres activos, já ninguém convida ninguém, as ra parigas já não fazem «renda» e os «tipos» já
não monopolizam a iniciativa. Ficam apenas mónadas silenciosas cujas trajectórias aleatórias se
cruzam nu ma dinâmica de grupo açaimada pelo feitiço do som.
Que se passa quando o sexo se torna político, quando as relações sexuais se traduzem em
relações de forças, em relações de poder? Denunciando a mulher-mercadoria, chamando à
mobilização de massa em torno de um «programa comum», constituindo-se em movimento
específico que exclui os homens, o neo-feminismo não introduzirá uma linha dura, maniqueísta,
e por isso irredutível ao processo de sedução? Não é, de resto, assim que os movimentos
feministas se apresentam? No entanto, algo de mais fundamen tal se encontra em jogo: assim,
através do combate pelo aborto livre e gra tuito, é o direito à autonomia e à responsabilidade
em matéria de procriação
30
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
31
que se visa; trata-se de retirar a mulher do seu estatuto de passividade e de resignação
relativamente ao carácter aleatório da procriação. Dispor de si, escolher, deixar para trás a
máquina reprodutora e o destino biológico e so cial — o neo-feminismo é também uma das
figuras do processo de personali zação. Com as recentes campanhas contra a violação, surgiu
uma publicida de inédita em torno de um fenómeno outrora mantido em segredo e na ver gonha,
como se nada devesse continuar oculto, obedecendo ao imperativo de transparência e de ilui
sistemática do presente que governa as nossas sociedades. Por meio desta redução das
sombras e das obscuri o movi mento de libertação das mulheres, seja qual for o seu
radicalismo, faz parte integrante do strip -tease generalizado dos tempos modernos.
Informação, co municação, tais são os caminhos da sedução. Empenhado, por outro lado, em não
dissociar o nível político do psicanalítico, o neo-feminismo veícula uma vontade explícita de
psicologização, como mostram os pequenos grupos chamados de self-heip ou de tomada de
consciência, em que as mulheres se escutam, se analisam, falam procurando descobrir os seus
desejos e os seus corpos. É o «vivido» que doravante vem em primeiro lugar: prevenção com o
teórico, com o conceptual, que são o poder, a máquina imperial masculina.
«Comissões de experiências pessoais»: a emancipação, a busca de uma iden tidade própria
passa pela expressão e pelo confronto das experiências exis tenciais.
16
Igualmente característica é a questão do «discurso feminino» em deman da de uma diferença,
de uma afirmação independente do referencial mascu lino. Nas suas versões mais radicais,
trata-se de abandonar a economia do logos, da coerência discursiva, afirmando o feminino numa
auto-de terminação, numa «auto-afecção» (Luce Irigaray) desembaraçada de todo o centrismo,
de todo o falocentrismo enquanto última posição panóptica do poder. Mais importante do que a
reinscrição de um território marcado é a flutuação deste lugar em si próprio, a impossibilidade
de o circunscrever e de o identificar: nunca idêntico a si próprio, nunca idêntico a nada,
«espécie de universo em expansão ao qual não é possível fixar quaisquer limites, mas que não é
por tão pouco iêit, o feminino é plural, todo fluência, contiguidade e proximidade, ignora o
«próprio» e, portanto, a posição de su jeito. Nem sequer se trata já de elaborar um outro
conceito de feminilidade, que não deixaria de retomar a máquina teórico-fálica e de
reintroduzir a
economia do Mesmo e do Um. Para se definir, o hiperfeminismo reivindica o estilo, a sintaxe
Outra, «táctil» e fluida, sem sujeito nem objecto. Como não reconhecer nesta economia dos
fluidos, nesta multiplicidade condutível, o próprio trabalho da sedução que, por toda a parte,
abole o Mesmo, o Centro, a linearidade e procede à diluição das formas rígidas e dos «sóli
dos»? Longe de representar uma involução, a suspensão da vontade teórica não é mais do que
um último estádio da racionalidade psicológica; longe de se identificar ao recalcado da história,
o feminino assim definido é um pro duto e uma manifestação da sedução pós-moderna,
libertando e desestan dartizando, no mesmo movimento, a identidade pessoal e o sexo: «A
mulher tem sexos um pouco por toda a parte» Nada mais errado, então, do que partir em
guerra contra esta mecânica dos fluidos acusada de restabelecer a imagem arcaica e
falocrática da mulher É o contrário que é verdade: sex dução generalizada, o neo-feminismo
apenas exacerba o processo de perso nalização, organiza uma figura inédita do feminino,
polimorfa e sexuada, emancipada dos papéis e identidades estritas de grupo, em consonância
com a instituição da sociedade aberta. Tanto ao nível teórico como militante, o neo-feminismo
trabalha para a reciclagem do ser-feminino, valorizando-o sob todas as perspectivas:
psicológica, sexual, política, linguística. Trata-se, antes do mais, de responsabilizar e
psicologizar a mulher, liquidando uma última «parte maldita», ou, por outras palavras, de
promover a mulher a uma categoria de individualidade plena, adaptada a sistemas democráticos
hedonistas incompatíveis com seres presos a códigos de socialização arcaicos, feitos de
silêncio, de submissão casta. de hi misteriosas.
Entendamo-nos bem, esta inflação de análises e de comunicações, esta proliferação de grupos
de discussão não porão fim ao isolamento da sedu ção. Com o feminismo passa-se o mesmo que
com o psicanalismo: quanto mais se interpreta, mas as energias refluem no sentido do Eu, o
inspeccio nam e examinam por todos os lados; quanto mais se analisa, mais a interio rização e a
subjectivização do indivíduo ganham em profundidade; quanto mais Inconsciente e quanto mais
interpretação, mais se intensifica a auto- sedução. Máquina nascisica incomparável, a
interpretação analítica é um agente de personalização por meio do desejo e, no mesmo acto, um
agente de dessocialização, de atomização sistemática e interminável, do mesmo mo
Luce Irigaray Cc sexe qui n en es! pus un, Êd. de Minuit, T977, p. 30.
L. Irigaray, op. cO., p. 28.
2 c, Alzon, Femme mythifi fe,nme mystijiée, P1JF, 1978, pp. 25-42.
Guies Lipovetsk
17
do que os arranjos da sedução. Sob a égide do Inconsciente e do Recalca mento, o indivíduo é
remetido para si próprio e para o seu reduto libidina em busca da sua imagem desmistificada,
privado até, nos últimos avatari lacanianos, da autoridade e da verdade do analista. Silêncio,
morte do an lista, somos todos analisandos, simultaneamente interpretados e intérpret numa
circularidade sem portas nem janelas. Don Juan está realmente mo to; uma nova figura, muito
mais inquietante, se ergue agora, Narciso, subji gado por si próprio na sua cápsula de vidro.
32
A deserção de massa
CAPITULO II
A indiferença pura
Para nos limitarmos aos séculos XIX e XX, teríamos que evocar, citar ao mesmo tempo, o
desenraizamento sistemático das populações rurais e depois urbanas, os langores românticos, o
spleen dandy, Oradour, os genocídios e os etnocídios, Hiroshima com os seus 10 km devastados,
os seus 75 000 mortos e os seus 62 000 edifícios destruIdos, os milhões de toneladas de
bombas lançadas no Vietname e a guerra ecológica com herbicidas, a escala da do stock mundial
de armas nucleares, Phnom Penh varrida pelos Khmers vermelhos, as figuras do nihilismo
europeu, as personagens mortas-vivas de Beckett, a angústia, a desolação interior de
Antonioni, Messidor de A. Tan ner, o acidente de Harrisburg, e certamente que a lista se
prolongaria para além de toda a medida se quiséssemos inventariar todos os nomes do deser to.
Alguma vez se terá organizado, edificado, acumula’do tanto e, ao mesmo tempo, alguma vez se
terá sentido tanto a paixão do nada, da tábua rasa, do extermínio total? Neste tempo, em que
as formas do aniquilamento assu mem dimensões planetárias, o deserto, fim e meio da
civilização, designa es sa figura trágica que a modernidade substitui à reflexão metafísica
sobre o
34
Gil/es Lipovetsky
nada. O deserto cresce, lemos nele a ameaça absoluta, a potência do negati vo, o símbolo do
trabalho mortífero dos tempos modernos até ao seu termo apocalíptico.
Estas formas de aniquilamento, destinadas a reproduzirem-se por um tempo ainda
indeterminado, não devem, no entanto, ocultar a presença de um outro deserto, este de tipo
inédito, escapando às categorias nihilistas ou apocalípticas e tanto mais estranho quanto mais
ocupa em silêncio a existên cia quotidiana, a vossa, a minha, no coração das metrópoles
contemporâ neas. Um deserto paradoxal, sem catástrofe, sem trágico nem vertigem, que
deixou de se identificar com o nada e com a morte: não é verdade que o de serto obrigue à
contemplação de crepúsculos mórbidos. Consideremos, com efeito, esta imensa vaga de
desinvestimento na qual todas as instituições, to dos os grandes valores e finalidades que
organizaram as épocas anteriores se esvaziam a pouco e pouco da sua substância — que é isso
senão uma deser tificação de massa, transformando o corpo social em corpo exangue, em or
ganismo desafectado? Inútil’querer reduzir a questão às dimensões dos «jo vens»: um
problema de civilização não se resolve com uma geração. Quem é poupado ainda por tal maré
alta? Aqui, como noutros lugares, o deserto cresce: o saber, o poder, o trabalho, o exército, a
família, a Igreja, os parti dos, etc. já globalmente deixaram de funcionar como princípios
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absolutos e intocáveis; em graus diferentes, já ninguém lhes dá crédito, já ninguém neles
investe seja o que for. Quem acredita ainda no trabalho quando se conhe cem as taxas de
absentismo e de turn over( quando o frenesim das férias, dos fins de semana, dos tempos
livres não pára de aumentar, quando a re forma se torna uma aspiração de massa, ou até um
ideal; quem acredita ainda na família quando as taxas de divórcio não deixam de subir, quando
os velhos são corridos para os lares, quando os pais querem continuar «jo vens» e reclamam a
assistência dos psi, quando os casais se tornam «livres», qúando o aborto, a contracepção, a
esterilização são legalizados; quem acre dita ainda no exército quando todos os meios servem
para obter a passagem à reserva, quando escapar ao serviço militar já não é uma vergonha;
quem acredita ainda nas virtudes do esforço, da poupança, da consciência profis sional, da
autoridade, das sanções? Depois da Igreja, que já não consegue recrutar padres, o sindicalismo
experimenta uma queda de influência análo ga: em França, em trinta anos, passámos de 50 por
cento de trabalhadores
A Era do Vazio
sindicalizados para 25 por cento. Por toda a parte, a onda de desafecção cres ce,
desembaraçando as instituições da sua dimensão anterior e simultanea mente do seu poder de
mobilização emocional. E, no entanto, o sistema fun ciona, as instituições reproduzem-se e
desenvolvem-se, mas em roda livre, no vazio, sem adesão nem sentido, cada vez mais
controladas pelos «especialis tas», os últimos sacerdotes, como diria Nietzsche, os únicos que
querem ain da injectar sentido e valor onde já nada reina para além de um deserto apá tico.
Deste modo, se o sistema em que vivemos se assemelha a essas cápsulas de astronauta, de que
fala Roszak, é menos pela racionalidade e pela previ sibilidade que o governam do que pelo vazio
emocional, pela inconsistência indiferente em que se efectuam as operações sociais. E o loft,
antes de ser a moda de habitação dos entrepostos, poderia bem ser a lei geral que rege a
nossa quotidianidade, a saber: a vida nos espaços desafectados.
Apatia new-look
Nada disto deve ser lido no registo das eternas lamentações sobre a deca dência ocidental,
morte das ideologias e «morte de Deus», O nihilismo euro peu, tal como o analisou Nietzsche,
enquanto depreciação mórbida de todos os valores superiores e deserto de sentido, já não
corresponde a esta desmo bilização de massa, que não é acompanhada por um sentimento de
absurdo nem de desespero. Todo feito de indiferença, o deserto pós-moderno encon tra-se tão
longe do nihilismo «passivo» e do seu deleite comprazido na inani dade universal como do
nihilismo «activo» e da sua auto-destruição. Deus morreu, as grandes finalidades extinguem-se,
mas toda a gente se estí a li xar para isso, eis a jubilosa nova, eis o limite do diagnóstico de
Nietzsche a respeito da queda europeia. O vazio do sentido, a derrocada dos ideais não
levaram, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais pessimismo. Esta
maneira de ver ainda religiosa e trágica é desmentida pelo surto da apatia de massa, da qual as
categorias de plenitude e decadência, de afirmação e negação, de saúde e doença são incapazes
de dar conta. Mesmo o nihilismo «incompleto», com os seus sucedâneos de ideais laicos, passou,
e a nossa bulimia de sensações, de sexo, de prazer, nada esconde, nada compensa e, sobretudo,
não esconde nem compensa o abismo de senti do aberto pela morte de Deus. A indiferença e
não a infelicidade metafísica. O ideal ascético já não é a figura dominante do capitalismo
moderno; o con sumo, os tempos livres, a permissividade, já nada têm a ver com as grandes
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1 Ver J. Rousselet, LAliergie au travail. Éd. du Seuil, coil. «Points-actuels pp. 41-42.
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Gil/es Lipoveiskv
operações da medicação sacerdotal: hipnotização-estivação da vida, crispa ção das
sensibilidades por meio de actividades maquinais e de estritas obe diências, intensificação das
emoções estimuladas pelas noções de pecado e de culpa’. Que resta de tudo isso no momento
actual em que o capitalismo funciona à força de líbido, de criatividade, de personalizaçáo? A
desenvol tura pós-moderna liquida o cansaço, o enquadramento ou o transbordar ni hilista; a
descontracção abole a fixação ascética. Desconectar o desejo das composições colectivas,
fazer circular as energias, temperar os entusiasmos e as indignações referentes ao social, o
sistema convida ao desanuviamento, ao desprendimento emocional.
Algumas grandes obras contemporâneas, citemos A Mulher Canhota de
P. Handke, Palazzo mentale de G. Lavaudant, India song de M. Duras, Edison de B. Wilson, o
hiperrealismo americano, são já, em maior ou me nor medida, reveladores deste espírito do
tempo, deixando muito para trás a angústia e a nostalgia do sentido, características do
existencialismo ou do teatro do absurdo. O deserto já não se traduz pela revolta, o grito ou o
desa fio de comunicação; nada para além de uma indiferença pelo sentido, uma ausência
inelutável, uma estética fria da exterioridade e da distância, mas nunca da distanciação. Os
quadros hiperrealistas não veiculam qualquer mensagem, não querem dizer nada, mas o seu
vazio está nos antípodas da carência de sentido trágica que encontramos em obras anteriores.
Não há nada a dizer, não importa, tudo pode, por conseguinte, ser pintado com o mesmo apuro,
a mesma objectividade fria, carroçarias brilhantes, reflexos de montras, retratos gigantes,
pregas de vestuário, cavalos e vacas, motores ni quelados, cidades panorâmicas, sem
inquietação nem denúncia. Pela sua in diferença pelo motivo, pelo sentido, pelo fantasma
singular, o hiperrealismo torna-se jogo puro que se oferece ao simples prazer do trompe-l’oeil
e do es pectáculo. Resta apenas o trabalho pictórico, o jogo da representação esva Nietzsche,
A Genealogia da Moral, terceira dissertação.
2 Em contrapartida, certos fragmentos póstumos de Nietzsche descrevem com grande luci dez
os sinais característicos do «espírito moderno»: a «tolerância» (por «incapacidade para o sim e
para o não»); a extensão da simpatia (um terço de indiferença, um terço de curiosidade, um
terço de excitabilidade mórbida); a «objectividade» (falta de personalidade, falta de vontade,
in capacidade para o «amor»); a «liberdade» contra a regra (romantismo); a «verdade» contra
a fal sificação e a mentira (naturalismo); a «cientificidade» (o «documento humano»: em
alemão, o folhetim e a adição — substituindo a composição)... » (Primavera — Outono de 1887),
in Fr. Nietzsche, Le Nihiisme Europ tr. fr. A. Kremer-Marietti, UGE, coil. 10/18, p. 242.
ziada do seu conteúdo clássico, sendo o real posto fora do circuito pelo em prego de modelos
eles próprios representativos, essencialmente fotográficos. Desinvestimeflto do real e
circularidade hiperrealista, no topo da sua realiza ção, a representação, instituída
historicamente como espaço humanista, me tamorfoseia-se num dispositivo gelado, maquínico,
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desembaraçado da escala humana pelo tamanho aumentado e pela acentuação das formas e das
cores:
nem transgredida nem «superada», a ordem da representação é, de algum modo, desafectada
na própria perfeição do seu cumprimento.
O que é verdade para a pintura é-o igualmente para a vida quotidiana. A oposição do sentido e
do não-sentido deixou de ser dilacerante e perde a sua radicalidade perante a frivolidade ou a
futilidade da moda, dos tempos livres, da publicidade. Na era do espectacular, as antinomias
duras, as do verdadeiro e do falso, do belo e do feio, do real e da ilusáo, do sentido e do nãosentido, esbatem-se; os antagonismos tornam-se «flutuantes»; começa-se a compreender, por
muito que isso desagrade aos nossos metafísicos e anti- metafísicos, que doravante é possível
viver sem finalidade nem sentido, nu ma espécie de sequência-f/ash, e isso é de facto novo.
«Qualquer sentido é preferível à completa ausência de sentido», dizia Nietzsche; mesmo isto
dei xou hoje de ser verdade, a própria necessidade de sentido foi varrida de cena e a
existência indiferente ao sentido pode desdobrar-se sem patético nem abismo, sem aspiração a
novas tábuas de valores; tanto melhor, surgem no vas questões, livres dos devaneios
nostálgicos e é de desejar que pelo menos a apatia new-look tenha a virtude de desencorajar as
loucuras mortíferas dos grandes sacerdotes do deserto.
A indiferença cresce. Em lado algum o fenómeno é tão visível como no ensino, onde, em poucos
anos, com a velocidade de um relâmpago, o prestí gio e a autoridade dos docentes
desapareceram quase por completo. Hoje, o discurso do Mestre encontra-se banalizado,
dessacralizado, em pé de igual dade com o dos media, e o ensino é uma máquina neutralizada
pela apatia escolar, feita de atenção dispersa e de cepticismo desenvolto ante o saber. Grande
desapontamento dos Mestres. E esta desafecção do saber que é sig nificativa, muito mais do
que o tédio, de resto variável, dos alunos dos li ceus. Assim, o liceu é menos parecido com uma
caserna do que com um de serto (ressalvando-se o facto de a caserna ser ela própria um
deserto), onde os jovens vegetam sem grande motivação ou interesse. Portanto, torna-se ne
cessário inovar a todo o custo: sempre mais liberalismo, participação, inves tigação pedagógica,
e o escândalo está nisso mesmo, porque, quanto mais a
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escola se põe a ouvir os alunos, mais estes desabitam sem ruído nem convul sões esse lugar
vazio. Deste modo, as greves do pós-68 desapareceram, a contestação extinguiu-se, o liceu é
um corpo mumificado e os docentes um corpo fatigado, incapaz de lhe devolver a vida.
É esta mesma apatia que encontramos também na área política, onde não é raro ver nos EUA
percentagens de abstenção de 40 a 45 por cento, mesmo nas eleições presidenciais. Não se
trata, para falar com propriedade, de «despolitização»; os partidos, as eleições, continuam a
«interessar» os ci dadãos, mas do mesmo modo (e em menor medida, aliás) que as apostas nas
corridas, a meteorologia do fim-de-semana ou os resultados desportivos. A política entrou na
era do espectacular, liquidando a consciência rigorista e ideológica em benefício de uma
curiosidade dispersa, captada por nada e por tudo. Daí a importância capital de que se
revestem os media de massa aos olhos dos políticos; não tendo outro impacto para além do que
a infor mação veicula, a política é obrigada a adoptar o estilo da animação, dos de bates
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personalizados, das perguntas-resposta, etc., único estilo capaz de mo bilizar pontualmente a
atenção do eleitorado. A declaração de um ministro não vale mais que o folhetim; passa-se sem
hierarquia da política às «varie dades», sendo a audiência determinada pela qualidade do
divertimento. A nossa sociedade não conhece o privilégio, as codificações definitivas, o centro,
nada para além de estimulações e de opções equivalentes em cadeia. Daqui resulta a
indiferença pós-moderna, indiferença por excesso, não por defeito, por hiper-solicitação, não
por privação. O que é que se mostra ain da capaz de espantar ou escadalizar? A apatia
corresponde à plétora de in formações, à sua velocidade de rotação; logo que é registado, o
acontecimen to é esquecido, varrido de cena por outros ainda mais espectaculares. Cada vez
mais informações, cada vez mais depressa, os acontecimentos são objecto da mesma
desafecção que os lugares e as habitações: nos EUA, desde a Se gunda Guerra Mundial, um
indivíduo em cada cinco muda anualmente de local de residência, ou seja, 40 milhões de
americanos; nem a terra natal, o «home resistiu à vaga de indiferença.
Sem dúvida, desde há alguns anos, surgiram novos comportamentos que dão testemunho de uma
sensibilidade inédita: viver e trabalhar na região torna-se uma reivindicação popular; mesmo
nos EUA, uma proporção cada vez maior da população manifesta relutância em mudar de cidade
por razões profissionais; a partir dos anos 70, os problemas do ambiente e da natureza
sensibilizam uma camada muito mais vasta do que a dos simples militantes;
os media, pelo seu lado, não deixam de pôr em destaque a actual redesco berta dos «valores».
Seria isso o pós-modernismo, o reinvestimento do regio nal, da natureza, do espiritual, do
passado. Depois do desenraizamento mo derno, o regionalismo e a ecologia, e mais ainda o
«regresso dos valores» que mudam todos os seis meses, oscilando entre a religião e a família, a
tradição e o romantismo, na mesma indiferença geral feita de curiosidade e de tole rância.
Nem todos estes fenómenos pós-modernos são da mesma escala ou do mesmo teor; dito isto,
todos eles traduzem, cada um a seu nível, uma transformação significativa relativamente a uma
primeira fase de modernis mo hot. Estamos numa fase de equilíbrio, de qualitativo, de
desenvolvimen to da pessoa, de preservação dos patrimónios naturais e culturais. Mas não nos
enganemos: o regionalismo, a ecologia, o «retorno do sagrado», todos es ses movimentos, longe
de se encontrarem em ruptura com ela, limitam-se a rematar a lógica da indiferença. Primeiro
porque os grandes valores do mo dernismo se encontram esgotados; doravante o progresso, o
crescimento, o cosmopolitismo, a velocidade, a mobilidade, e de igual maneira a Revolu ção,
esvaziaram-se do seu conteúdo. A modernidade, o futuro, já não entu siasmam ninguém. Será
em proveito de novos valores? Melhor seria dizer que em proveito de uma personalização e de
uma libertação do espaço priva do, que arrasta tudo na sua órbita, incluindo os valores
transcendentes. O momento pós-moderno é muito mais do que uma moda, revela o processo da
indiferença pura na medida em que todos os gostos, todos os comporta mentos, podem coabitar
sem se excluirem, tudo pode ser escolhido conforme o gosto, tanto o mais operatório como o
mais esotérico, tanto o novo como o antigo, a vida simples e ecológica e a vida hipersofisticada, num tempo des vitalizado sem referências estáveis, sem coordenadas principais.
Para a maioria, as questões públicas, incluindo a ecologia, tornam-se uma atmosfe ra, mobilizam
por algum tempo e desaparecem tão depressa como aparece ram. O ressurgimento da família
deixa-nos pelo menos perplexos quando há cada vez mais casais que desejam não ter filhos,
child-free, e quando uma criança em cada quatro nos centros urbanos americanos é criada
apenas por um dos pais. O retorno do sagrado é ele próprio arrastado pela celeridade e pela
precaridade das existências individuais entregues apenas a si próprias. A indiferença pura
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designa a apoteose do temporário e do sincretismo indivi dualista. Pode-se assim ser
simultaneamente cosmopolita e regionalista, ra cionalista no trabalho e discípulo intermitente
de certo guru oriental, viver numa época permissiva e respeitar, escolhendo-as à lista, as
prescrições reli40
Gil/es Lipovetsk A Era do Vazio
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giosas. O indivíduo pós-moderno é um indivíduo desestabilizado e de certo modo «ubiquista», O
pós-modernismo não passa de um grau mais da escala da da personalização do indivíduo
consagrado ao self-service narcísico e a combinações caleidoscópicas indiferentes.
Nestas condições, torna-se claro que a actual indiferença só muito par cialmente corresponde
àquilo a que os marxistas chamam alienação, ainda que alargada. A alienação, como se sabe, é
inseparável das categorias de ob jecto, da mercadoria, de alteridade e, portanto, do processo
de reificação, enquanto que a apatia se estende tanto mais quanto mais certo é que se re fere
a sujeitos informados e educados. A deserção e não a reificação: quanto mais o sistema dá
responsabilidades e informa, maior é o desinvestimento; é este paradoxo que impede a
assimilação entre alienação e indiferença, embo ra esta última se manifeste através do tédio e
da monotonia. Para além do «desapossamento» e da miséria quotidiana, a indiferença designa
uma nova consciência, não uma inconsciência, uma disponibilidade, não uma «exterio ridade»,
uma dispersão, não uma «depreciação». Indiferença não significa passividade, resignação ou
mistificação; precisamos de romper definitiva mente com esta cadeia de identificações
marxistas, O absentismo, as greves selvagens, o turn over revelam que o desinvestimento do
trabalho caminha a par de novas formas de combatividade e de resistência. O homem cool não
é nem o decadente pessimista de Nietzsche nem o trabalhador oprimido de Marx; assemelhase mais ao telespectador que experimenta «para ver», um a um, todos os programas da noite,
ao consumidor que enche o seu carrinho de supermercado, ao veraneante que hesita entre uma
estadia nas praias es panholas e o campismo na Córsega. A alienação analisada por Marx, resul
tante da mecanização do trabalho, deu lugar a uma apatia induzida pelo campo vertiginoso dos
possíveis e o self-service generalizado; começa então a indiferença pura, desembaraçada da
miséria e da «perda de realidade» dos início da industrialização.
Ind operacional
O processo de deserção não resulta de modo algum de um défice ou ca rência de sentido.
Efeito imputável ao processo de personalização, a errância apática deve ser referida à
atomização programada que rege o funcionamen to das nossas sociedades: dos media à
produção, dos transportes ao consu
mo, já nenhuma «instituição» escapa a esta estratégia da separação, hoje cientificamente
experimentada e, além disso, destinada a conhecer um de senvolvimento considerável graças
aos progressos da telemática. Num siste ma organizado segundo o princípio do isolamento
«suave», os ideais e valores públicos não podem deixar de declinar, enquanto permanece apenas
a de manda do ego e do seu interesse próprio, o êxtase da libertação «pessoal», a obsessão do
corpo e do sexo: hiper-investimento do privado e, por conse guinte, desmobilização do espaço
público. Com a sociabilidade de tipo au toclave começa a desmotivação generalizada, a
retracção autárcica ilustrada pela paixão de consumir, mas igualmente pela voga da psicanálise
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e das téc nicas relacionais: quando o social é desafectado, o desejo, a fruição, a comu nicação
tornam-se os únicos «valores» e os «psi» os grandes sacerdotes do de serto. A era «psi»
começa com a deserção de massa e a líbido é um fluxo do deserto.
Longe de representar uma crise maior do sistema anunciando a mais ou menos longo prazo a sua
falência, a deserção social é tão só o seu resultado extremo, a sua lógica fundamental, como se,
depois de ter feito já às coisas, o capitalismo tivesse que tornar igualmente os homens
indiferentes. Não há aqui malogro ou resistência perante o sistema, a apatia não é uma
ausência de socialização, mas uma nova socialização flexível e «económica», uma descrispação
necessária ao funcionamento do capitalismo moderno enquanto sistema experimental acelerado
e sistemático. Baseando-se na organização incessante de combinações inéditas, o capitalismo
descobre na indiferença uma condição ideal para a sua experimentação, que pode agora
realizar-se com um mínimo de resistência. Todos os dispositivos se tornam possíveis num tempo
mínimo, a inconstância e a inovação capitalistas já não deparam com as adesões e fidelidades
tradicionais, as combinações fazem-se e desfa zem-se cada vez mais depressa, o sistema do
«porque não?» torna-se puro a favor da indiferença, doravante sistemática e operacional. A
apatia torna as sim possível a aceleração das experimentações, de todas as experimentações e
não apenas da exploração. A indiferença ao serviço do lucro? E esquecer que esta atinge todos
os sectores e que, sendo assim, qualquer recentramen to deixa escapar o essencial, ou seja a
generalização da indiferença. Sem ser instrumento de qualquer instância particular, a
indiferença é metapolítica, meta-económica, permitindo ao capitalismo entrar na sua fase de
funciona mento operacional.
Neste caso, como compreender a acção dos partidos, dos sindicatos, da
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Guies Lipovetsky A Era do Vazio
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informação que, ao que parece, não param de combater a apatia, sensibili zando, mobilizando,
informando a todos os ventos? Porque é que um siste ma cujo funcionamento exige a
indiferença se esforça continuamente por conseguir participação, educação, interesse?
Contradição do sistema? Muito mais do que isso, simulacro de contradição na medida em que
são precisa mente as mesmas organizações que produzem a apatia de massa, fazendo-o
directamente, em virtude da sua própria forma; é inútil imaginarmos planos maquiavélicos, o
trabalho neste sentido é directo e sem mediação. Quanto mais os políticos se explicam e
exibem na televisão, mais toda a gente se es tá marimbando, quanto mais comunicados os
sindicatos distribuem, menos lidos são, quanto mais os professores se esforçam por fazer com
que os alu nos leiam, mais estes deixam de lado os livros. Indiferença por saturação,
informação e isolamento. Agentes directos da indiferença, compreende-se porque é que o
sistema reproduz numa escala alargada os aparelhos de sen tido e de responsabilização cuja
tarefa consiste em produzir um empenha mento vazio: pensem o que quiserem da televisão, mas
tenham-na ligada; votem em nós; paguem as quotas; cumpram a palavra de ordem de greve;
partidos e sindicatos não exigem mais do que esta «responsabilidade» indife rente.
Empenhamento teórico que nem por isso é menos necessário à repro dução dos poderes
burocráticos modernos. A indiferença não se identifica com a ausência de motivação;
identifica-se com a pouca motivação, com a «anemia emocional» (Riesman), com a
desestabilização dos comportamentos e juízos hoje «flutuantes» na esteira das flutuações da
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opinião pública. O ho mem indiferente não se apega a nada, não tem uma certeza absoluta, está
preparado para tudo e as suas opiniões são susceptíveis de modificações rá pidas: para
conseguirem um tal grau de socialização, os burocratas do saber e do poder têm que mobilizar
tesouros de imaginação e toneladas de infor mações.
Resta que, ultrapassado um limiar «crítico», os poderes não ficam inacti vos relativamente a
certas formas de desafecção, como o absentismo ou as greves selvagens, a queda da
natalidade, a droga, etc. Quererá isto dizer que a indiferença, ao contrário do que até aqui
dissemos, é um dispositivo em antagonismo com o sistema? Sim e não, porque se estas
deserções introdu zem realmente a prazo um disfuncionamento intolerável, este não resulta de
um excesso de indiferença, mas antes de um defeito de indiferença. Margi nais, desertores,
jovens grevistas enfurecidos são ainda «românticos» ou sel vagens, o seu deserto quente
corresponde à imagem do seu desespero e da
sua fúria de viver de outro modo. Alimentada de utopias e paixões, a indife rença é aqui
«impura», embora saia da mesma fria cama de profusão e de atomização. Serão, portanto,
necessários mais enquadramento, mais anima ção e mais educação para arrefecer estes
nómadas: o deserto encontra-se diante de nós, e devemos inscrevê-lo entre as grandes
conquistas do futuro, ao lado do espaço e da energia.
Também não há dúvida de que, com a sua mobilização de massa e a sua «tomada de palavra»,
Maio 68 foi a mais significativa das resistências ma croscópicas ao deserto das metrópoles. A
informaçáo substituiam-se os gru pos nas ruas e os graffiti; ao aumento do nível de vida, a
utopia de uma vi da diferente; as barricadas, as «ocupações» selvagens, as discussões intermi
náveis reintroduziam o entusiasmo no espaço urbano. Mas, simultaneamen te, como não
assinalar em Maio 68 a deserção e a indiferença que traba lham o mundo contemporâneo:
«revolução sem finalidade», sem programa, sem vítima nem traidor, sem enquadramento
político, Maio 68, a despeito da sua utopia viva, continuava a ser um movimento laxista e
descrispado, a primeira revolução indiferente, prova de que não há motivo para se desespe rar
do deserto.
Conduzindo ao sobre-investimento do existencial (na multidão de 1968, surgem os movimentos
radicais de libertação das mulheres e dos homosse xuais), bem como à diluição dos estatutos e
oposições rígidas, o processo de personalização desfaz a forma das pessoas e identidades
sexuais, monta combinações inesperadas, produz novas plantas desconhecidas e estranhas;
quem pode prever o que quererá dizer, dentro de algumas décadas, mulher, criança, homem, ou
segundo que figuras pitorescas se distribuirão estes ter mos? O desinvestimento dos papéis e
identidades instituídas, das disjunções e exclusões «clássicas», faz do nosso tempo uma
paisagem aleatória, rica em singularidades complexas. Que significará o «político»? O político e
o exis tencial deixaram já de pertencer a esferas separadas, as fronteiras confun dem-se, as
prioridades oscilam, surgem paradas inéditas com pontos de refe rência menos «duros»: a
uniformidade, a monotonia, não ameaçam o deser to, não temos que chorar sobre ele.
o «f1ip
Que acontece quando a vaga de deserção, deixando de se circunscrever ao social, invade a
esfera privada até então deixada de parte? Que se passa
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Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
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quando a lógica do desinvestimento já nada poupa? Seria o suicídio o termi nal do deserto? Mas
todas as estatísticas revelam que, contrariamente a uma opinião muito difundida, a taxa global
de suicídios não pára de diminuir, por comparação com o que acontecia nos finais do século
passado: em Fran ça, a taxa de suicídio global passa de 260 (por milhão de habitantes) em 1913
para 160, em 1977, e, mais significativamente ainda, a taxa de suicídio na região parisiense
atinge 500 por milhão de habitantes no último decénio do século XIX, enquanto cai para 105
em 19681. O suicídio torna-se de cer to modo «incompatível» com a era da indiferença: pela
sua solução radical ou trágica, o seu investimento extremo da vida e da morte, o seu desafio, o
suicídio já não condiz com o laxísmo pós-moderno No horizonte do deserto perfila-se menos a
autodestruição, o desespero definitivo, do que uma pato logia de massa, cada vez mais
banalizada, a depressão, o «enjoo», oflip, ex pressões do processo de desinvestimento e de
indiferença pela ausência de teatralidade espectacular, por um lado, e pela oscilação
permanente e indife rente que se instaura de maneira endémica entre excitabilidade e
depressivi dade, por outro lado. Todavia, o apaziguamento que se pode ler na regres são do
suicídio não permite sustentar a tese optimista de E. Todd, que re conhece nesta inflexão o
signo global de uma ansiedade menor, de um «equilíbrio» superior do homem contemporâneo. E
esquecer que a angústia pode também distribuir-se segundo outros dispositivos igualmente
«instá veis». A tese do «progresso» psicológico é insustentável ante a extensão e a
generalização dos estados depressivos, outrora reservados prioritariamente às classes
burguesas Já ninguém se pode gabar de lhes escapar: a deserção social implicou uma
democratização sem precedentes do mal de vivre, flage lo actualmente difuso e endémico. Do
mesmo modo, o homem coo! não é mais «sólido» do que o homem formado pelo puritanismo e em
termos dis ciplinares. Seria antes o contrário. Num sistema desafectado, basta um
acontecimento módico, um nada, para que a indiferença se generalize e con quiste a própria
existência. Atravessando sozinho o deserto, carregando-se a si próprio sem qualquer apoio
transcendente, o homem de hoje caracteriza- se pela vulnerabilidade. A generalização da
depressividade deve ser atribuída
1 Números citados por E. Todd, in Le Fou et te prolétaire, Laffont, p. 183 e p. 205.
2 Esta questão é matizada e discutida com maior detença no capítulo VI.
E. Todd, ibid., p. 71-87.
não às vicissitudes psicológicas de cada um ou às «dificuldades» da vida ac tual, mas sim à
deserção da res publica, que varreu o terreno até à emergên cia do indivíduo puro, Narciso em
busca de si próprio, obcecado apenas por sim mesmo e, por isso, susceptível de fraquejar ou de
cair a todo o momen to, frente a uma adversidade que encara a descoberto, sem força
exterior. O homem descontraído é um homem desarmado. Os problemas pessoais as sumem
assim uma dimensão desmesurada e quando mais nos debruçamos sobre eles, com ou sem auxilio
psi, menos os resolvemos. Acontece com o existencial o mesmo que com o ensino ou a política:
quanto mais tratado e ouvido é, mais insuperável se torna. Quem não está hoje sujeito à
dramati zação e ao stress? Envelhecer, engordar, desfear-se, dormir, educar os f i lhos, partir
para férias, tudo é um problema, as actividades elementares tor naram-se impossíveis.
«Não propriamente uma ideia, mas uma espécie de iluminação... Sim, foi isso, Bruno, vai-te
embora. Deixa-me ficar sozinha». A Mulher Canhota, o romance de P. Handke, conta a história
de uma mulher jovem que sem razão, sem finalidade, pede ao marido que a deixe sozinha, com o
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filho de oito anos. Exigência inintelígível de solidão que é preciso, antes do mais, não reduzir a
uma vontade de independência ou de libertação feminista. Sentindo-se todas as personagenS
igualmente sós, o romance não pode redu zir-se a um drama pessoal; de resto, que grelha
psicológica ou psicanalítica seria susceptível de explicitar o que justamente nos é apresentado
como es quivo ao sentido? Metafísica da separação das consciências e do solipsismo? Talvez,
mas o mais interessante situa-se noutro lugar; A Mulher Canhota descreve a solidão deste fim
do século XX, mais do que a essência intempo ral da derrelição. A solidão indiferente das
personagens de P. Handke já na da tem a ver com a solidão dos heróis da idade clássica nem
mesmo com o spleen de Baudelaire. O tempo em que a solidão designava as almas poéticas e de
excepção passou; aqui, todas as personagenS a conhecem com a mesma inércia. Nenhuma
revolta, nenhuma vertigem a acompanham; a solidão tor nou-se um facto, uma banalidade do
mesmo registo que os gestos quotidia nos. As consciências já não se definem pela dilaceraçáo
recíproca; o reco nhecimento, o sentimento de incomunicabilidade, o conflito deram lugar à
apatia e a própria intersubjectividade se encontra desinvestida. Após a de serção social dos
valores e instituições, é a relação com o Outro que, seguin do a mesma lógica, sucumbe ao
processo de desafecção. O Eu já não habita um inferno povoado de outros ego rivais ou
desprezados; o relaciona apagaGuies Lipovetsky
-se sem gritos, sem razão, num deserto de autonomia e de neutralidade asfi xiantes. A
liberdade, na esteira da guerra, propagou o deserto, a estranheza absoluta perante outrém.
«Deixa-me ficar sozinha», desejo e dor de ser-se só. Estamos assim no extremo do deserto; já
atomizado e separado cada um de nós se torna agente activo do deserto, estende-o e
aprofunda-o, incapaz que é de «viver» o Outro. Não satisfeito com produzir o isolamento, o
sistema en gendra o seu desejo, desejo impossível que, logo que realizado, se revela in
tolerável: o indivíduo pede para ficar só, cada vez mais só e simultaneamen te não se suporta a
si próprio, a sós consigo. Aqui o deserto já não tem co meço nem fim.
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CAPITULO III
Narciso ou a estratégia do vazio
Uma geração gosta de se reconhecer e de descobrir a sua identidade nu ma grande figura
mitológica ou lendária, que reinterpreta em função dos problemas do momento: Edipo como
emblema universal, Prometeu, Fausto ou Sísifo como espelhos da condição moderna. Hoje, é
Narciso que, aos olhos de um importante número de investigadores, sobretudo americanos,
simboliza o tempo presente: «O narcisismo tornou-se um dos temas centrais da cultura
americana» Enquanto o livro de R. Sennett As Tiranias da In timidade (T.I.) acaba de ser
traduzido em francês, The Culture of Narcis
Chr. Lasch, The Culture ofNarcissism, Nova lorque, Warner Books, 1979, p. 61. Sobre a
temática narcísica, para além dos trabalhos de R. Sennett, Chr. Lasch cita os de: Jim Hou gan,
Decadence: Radical nostalgia, narcissism and decline in the seventies, Nova lorque, Mor row,
1975; Peter Martin, «The new narcissism», Harper ‘s, Outubro de 1975; Edwin Schur, The
Awarness Trap: self-absorption intead of social change, Nova lorque, Quadrangle, N.Y. Timet,
1976, bem como um número importante de trabalhos de inspiração psi (cf. notas pp. 404-407);
27
nomeadamente P. L. Giovachinni, Psychoanalysis of Character Disorders, Nova lorque, Jason
Aronson, 1975; H. Kohut, The Analysis of the self, Nova Lorque, International Universities
Press, 1971; O. F. Kernberg, Borderline conditions and pathological narcissism, New York, Ja.
son Aronson, 1975
Existe tradução francesa do livro de Chr. Lasch: Le Complexe de Narcisse, Baffont, 1980.
As páginas indicadas aqui são as da edição americana.
2 Richard Sennett, Les Tyrannies de l’intimiu trad. fr. de Antoine Rerman e Rebecca
Folkman, Paris. Ed. du Seuil, 1979.
48
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
49
sjsm (C.N.) torna-se um verdadeiro best-seller nos Estados Unidos. Para além da moda e da sua
espuma ou de certas caricaturas que se fazem, aqui e ali, deste neo-narcisismo, o seu
aparecimento na cena intelectual tem o interesse essencial de nos obrigar a ter em conta, em
toda a sua radicalida de, a mutação antropológica que se realiza diante dos nossos olhos e que
to dos nós sentimos, cada um à sua maneira, ainda que confusamente. Instau ra-se um novo
estádio do individualismo: o narcisismo designa a emergência
de um perfil inédito do indivíduo nas suas relações consigo próprio e com o seu corpo, com
outrém, com o mundo e com o tempo, no momento em que
o «capitalismo» autoritário dá a vez a um capitalismo hedonista e permissi vo. A idade de ouro
do individualismo, concorrencial ao nível económico, sentimental ao nível doméstico
revolucionário ao nível político e artístico, chega ao fim.; afirma-se um indidualismo puro,
desembaraçado dos últimos valores sociais e morais que coexistiam ainda com o reinado
glorioso do ho mo aeconomicus, da família, da revolução e da arte; emancipada de qual quer
enquadramento transcendente, a própria esfera privada muda de senti do, entregue como está
apenas aos desejos em transformação dos indivíduos.
Se a modernidade se identifica com o espírito de empresa, com a esperança futurista, é claro
que o narcisismo inaugura, pela sua indiferença histórica a pós-modernidade, a última fase do
homo aequalis.
Narciso por medida
Após a agitação política e cultural dos anos sessenta, que podia parecer ainda um investimento
de massa da coisa pública, é uma desafecção genera lizada que ostensivamente se afirma no
social, tendo por corolário o refluir dos interesses no sentido de preocupações puramente
pessoais e isto indepen dentemente da crise económica. A despolitização e a dessindicalização
ga nham proporções nunca antes atingidas, a esperança revolucionária e a con testação
estudantil desapareceram, a contra-cultura esgota-se, raras são as causas ainda capazes de
galvanizarem a longo prazo as energias. A res pu blica encontra-se desvitalizada, as grandes
questões «filosóficas», económi cas, políticas ou militares suscitam mais ou menos a mesma
curiosidade de senvolta do que um qualquer fait divers; todos os «cumes» se abatem pouco
28
a pouco, arrastados pela vasta operação de neutralização e banalização so ciais. Só a esfera
privada parece sair vitoriosa desta vaga de apatia; zelar pe la própria saúde, preservar a sua
situação material, perder os «complexos», esperar que cheguem as férias: viver sem ideal e
sem fim transcendente tor nou-se possível. Os filmes de Woody AlIen e o sucesso que obtêm
são o símbolo autêntico deste hiper-investimento do espaço privado; como o pró prio Woody
Alien o diz: «political solutions don ‘t work» — citado por Chr. Lasch, p. 30 —; sob muitos
aspectos, esta fórmula traduz o novo espírito do tempo, este neo-narcisismo que nasce da
deserção do político. Fim do homo politicus e advento do homo psychologicus, à espreita do seu
ser e do seu bem estar.
Viver no presente, apenas no presente e não já em função do passado e do futuro, é esta
«perda do sentido da continuidade histórica» (C.N., p. 30), esta erosão do sentimento de
pertença a uma «sucessão de gerações enraiza das no passado e prolongando-se no futuro»
que, segundo Chr. Lasch, ca racteriza e engendra a sociedade narcísica. Hoje vivemos para nós
próprios, sem nos preocuparmos com as nossas tradições nem com a nossa posterida de: o
sentido histórico sofre a mesma deserção que os valores e as institui ções sociais. A derrota
no Vietname, o caso Watergate, o terrorismo interna cional, mas também a crise económica, a
rarefacção das matérias-primas, a angústia nuclear, os desastres ecológicos (C.N., pp. 17 e 28)
provocaram uma crise de confiança relativamente aos dirigentes políticos, um clima de
pessimismo e de catástrofe iminente que explicam o desenvolvimento das es tratégias
narcísicas de «sobrevivência», que prometem a saúde física e psico lógica. Quando o futuro se
mostra ameaçador e incerto, resta a retracção sobre o presente, que não pára de ser
protegido, arranjado e reciclado numa juventude sem fim. Ao mesmo tempo que põe o futuro
entre parêntesis, o sistema procede à «desvalorização do passado», impaciente por cortar as
amarras das tradições e territorialidades arcaicas e por instituir uma socie dade sem base de
ancoragem nem opacidade; juntamente com esta indife rença pelo tempo histórico, instaura-se
o «narcIsismo colectivo», sintoma so cial da crise generalizada das sociedades burguesas,
incapazes de enfrenta rem o futuro sem desespero.
A coberto d ffiodernidade, não estaremos a deixar escapar o essencial por entre os dedos?
Querendo, de acordo com uma sacrossanta tradição marxista, fazer assentar o narcisismo na
«bancarrota» (c.N., p. 18) do siste ma e interpretá-losob o signo da «desmoralização», não se
estará a sobreva
Edward Shorter, Naissance de Ia familie moderne, Ëd. du Seuil, trad. fr. 1977.
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Guies Lipovetsky A Era do Vazio
51
lorizar, por um lado, a «tomada de consciência» e, por outro, a situação conjuntural? De facto,
o narcisismo contemporâneo afirma-se numa sur preendente ausência de nihilismo trágico; é
numa apatia frívola que maci çamente se instala, a despeito das realidades catastróficas
largamente exibi das e comentadas pelos media. Quem, à excepção dos ecologistas, tem a
consciência permanente de viver uma idade apocalíptica? A «tanatocracia» desenvolve-se, as
catástrofes ecológicas multiplicam-se sem engendrarem com isso um sentimento trágico de
«fim do mundo». As pessoas habituam-se sem dilacerações ao «pior» que se consome nos
media; instalamo-nos na crise que, segundo parece, em nada muda os desejos de bem estar e
29
tempos li vres. A ameaça económica e ecológica não conseguiu penetrar em profundi dade a
consciência indiferente dos nossos dias; temos que nos decidir a dizê lo: o narcisismo não é de
modo nenhum a última retracção de um Eu desen cantado pela «decadência» ocidental e
precipitando-se de corpo e alma no gozo egoísta. Nem nova versão do «divertimento», nem
alienação — a infor mação nunca foi tão desenvolvida —, o narcisismo abole o trágico e surge
como uma forma inédita de apatia feita de sensibilização epidérmica ao mundo e
simultaneamente de profunda indiferença em relação a ele: para doxo que explica parcialmente
a plétora de informações que nos assaltam e a rapidez com que os acontecimentos massmediatizados se expulsam uns aos outros, impedindo toda e qualquer emoção duradoura.
Nunca explicaremos, por outro lado, o narcisismo a partir de uma acu mulação de
acontecimentos e dramas conjunturais: se o narcisismo for real mente, como Chr. Lasch nos
convida a pensar, uma consciência radicalmen te inédita, uma estrutura constitutiva da
personalidade pós-moderna, tere mos que o apreender como a resultante de um processo global
que rege o funcionamento social. Novo perfil coerente do indivíduo, o narcisismo não pode
resultar de uma constelação avulsa de acontecimentos pontuais, ainda que reforçada por uma
mágica «tomada de consciência». Com efeito, é da deserção generalizada dos valores e
finalidades sociais, implicada pelo pro cesso de personalização, que o narcisismo surge.
Desafecção dos grandes sis temas de sentido e hiper-investimento do Eu caminham a par: nos
sistemas de «rosto humano» funcionando à força de prazer, bem-estar, desestandardi zação,
tudo concorre para a promoção de um individualismo puro, ou, por outras palavras, psi,
desembaraçado dos enquadramentos de massa e orien tado para a valorização generalizada do
sujeito. Ë a revolução das necessida des e a sua ética hedonista que, atomizando suavemente os
indivíduos, esva
ziando pouco a pouco as finalidades sociais da sua significação profunda, permitiu ao discurso
psi enxertar-se no social, tornar-se um novo ethos de massa: foi o «materialismo» exacerbado
das sociedades de abundância que, paradoxalmente, tornou possível a eclosão de uma cultura
centrada na ex pansão subjectiva, não por reacção ou «suplemento de alma», mas por isola
mento à lista. A vaga do «potencial humano» psíquico e corporal não passa do último momento
de uma sociedade que se arranca à ordem disciplinar e leva ao seu termo a privatização
sistemática já operada pela idade do consu mo. Longe de derivar de uma «tomada de
consciência» desencantada, o nar cisismo é efeito do crescimento de uma lógica social
individualista hedonista impulsionada pelo universo dos objectos e signos, e de uma lógica
terapêuti ca e psicológica elaborada a partir do século XIX com base na abordagem
psicopatológica.
O zombie e o psi
Simultaneamente à revolução informática, as sociedades pós-modernas conhecem uma
«revolução interior», um imenso «movimento de consciência» ( movement C.N., pp. 43-48), um
fascínio sem precedentes pelo auto-conhecimento e pela auto-realização, como prova a
proliferação dos or ganismos psi, técnicas de expressão e de comunicação, meditações e ginásti
cas orientais. A sensibilidade política dos anos sessenta deu lugar a uma «sensibilidade
terapêutica»; mesmo os mais duros (sobretudo esses) entre os ex-líderes contestatários
sucumbem aos encantos da self-examination: en quanto Rennie Davis abandona o combate
radical para seguir o guru Maha raj ii, Jerry Rubin conta que, entre 1971 e 1975, praticou com
delícia a tera pia gestaltista, a bioenergia, o rolfing, as massagens, o jogging, tai chi, Esa len, o
30
hipnotismo, a dança moderna, a meditação, Silva Mmd Control, Ari ca, a acupunctura, a terapia
reichiana (citado por Chr. Lasch, p. 43-44)... No momento em que o crescimento económico se
esgota, o desenvolvimento psíquico reveza-o; no momento em que a informação se substitui à
produ çã o consumo de consciência torna-se uma nova bulimia: ioga, psicanálise, expressão
corporal, zen, terapia primal, dinâmica de grupo, meditação transcendental; à inflação
económica responde a inflação psi e o formidável surto narcísico que esta engendra.
Canalizando as paixões no sentido do Eu, promovido assim à categoria de umbigo do mundo, a
terapia psi, ainda que
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A Era do Vazio
Gil/es Lipovetsky
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colorida de corporeidade e de filosofia oriental, gera uma figura inédita de Narciso,
indentificando-se doravante este com o homo psychologicus. Narci so obcecado por si próprio
não sonha, não se encontra atingido de narcose, trabalha assiduamente na libertação do Eu, no
seu grande destino de auto nomia e de independência: renunciar ao amor, «to love myself
enough so that 1 do not need another to make me happy, tal é o novo programa revo lucionário
de J. Rubin (citado por Chr. Lasch, p. 44).
Neste dispositivo psi, o inconsciente e o recalcamento ocupam uma posi ção estratégica. Pelo
desconhecimento radical que instituem sobre a verdade do sujeito, são operadores decisivos
do neo-narcisismo: afirmar o logro do desejo e a barra do recalcamento é uma provocação que
desencadeia uma tendência irresistível para a reconquista da verdade do Eu: «Onde era Isso,
devo eu chegar.» O narcisismo é uma resposta ao desafio do inconsciente:
instado a redescobrir-se, o Eu precipita-se num trabalho de libertação inter minável, de
observação, de interpretação. Reconheçamo-lo: o inconsciente, antes de ser imaginário ou
simbólico, teatro ou máquina, é um agente pro vocador cujo efeito principal é um processo de
personalização sem fim: cada indivíduo deve «dizer tudo», libertar-se dos sistemas de defesa
anónimos que se opõem à continuidade histórica do sujeito, personalizar o seu desejo por meio
das associações «livres», e hoje também do não-verbal, o grito e o senti mento primais. Por
outro lado, tudo o que seria susceptível de funcionar co mo subproduto (o sexo, o sonho, o
lapso, etc.) será reciclado na ordem da subjectividade libidinal e do sentido. Alargando deste
modo o espaço da pes soa, incluindo todas as escórias no campo do sujeito, o inconsciente abre
ca minho a um narcisismo sem limites. Narcisismo total que revela de outro modo os últimos
avatares psi, em que a palavra de ordem já não é a inter pretação, mas o silêmúo do analista:
libertado da palavra do Mestre e do re ferencial de verdade, o analisando é entregue apenas a
si próprio numa cir cularidade regida exclusivamente pela auto-sedução do desejo. Quando o
sjgnifjcado cede a vez aos jogos do significante e o próprio discurso à emo ção directa, quando
caem os referentes exteriores, o narcisismo já não tem obstáculos e pode cumprir-se em toda
a sua radicalidade.
Deste modo, a auto-consciência substituiu a consciência de classe, a consciência narcísica à
consciência política, substituição qu não devemos em caso algum explicar reabrindo o eterno
debate sobre as manobras de di versão da luta de classes. O essencial está noutro lado. Antes
de tudo o res to, instrumento de socialização, o narcisismo, pela sua auto-absorção, per
31
mite radicalizar a desafecção da esfera pública e promover, por isso mesmo, uma adaptação
funcional ao isolamento social, continuando a reproduzir a estratégia correspondente.
Tornando o Eu o alvo de todos os investimentos, o narcisismo empenha-se em ajustar a
personalidade à atomização acolchoa da engendrada pelos sistemas personalizados. Para que o
deserto social seja viável, o Eu deve tornar-se a preocupação central: não importa que a
relação seja destruida, contanto que o indivíduo seja levado a absorver-se em si próprio.
Assim, o narcisismo realiza uma estranha «humanização» aprofun dando a fragmentação social:
solução económica para a «dispersão» generali zada, o narcisismo, numa circularidade perfeita,
adapta o Eu ao mundo de onde este nasce. O adestramento social já não se efectua através da
coerção disciplinar nem mesmo da sublimação; efectua-se por meio da auto-sedução. O
narcisismo, nova tecnologia de controlo flexivel e autogerido, socializa dessocializando, põe os
indivíduos de acordo com um social pulverizado, glo rificando o reino da plena realização do Ego
puro.
Mas o narcisismo talvez tenha a sua função mais elevada no deslastra mento dos conteúdos
rígidos do Eu a que a procura inflacionária de verdade conduz inelutavelmente. Quanto mais o
Eu é jnvestido, feito objecto de aten ção e de interpretação, mais a incerteza e a interrogação
crescem. O Eu tor na-se um espelho vazio à força de «informações», uma questão sem resposta
à força de associações e de análises, uma estrutura aberta e indeterminada que exige, em
contrapartida, cada vez mais terapia e anamnese. Freud não se enganava quando, num texto
célebre, se comparava a Copérnico e a Dar win, por ter infligido um dos três grandes
«desmentidos» que se opõem à megalomania humana. Narciso já não está imobilizado diante da
sua ima gem fixa, já nem sequer há imagem, nada para além de uma busca intermi nável de Si,
um processo de desestabilização ou flutuação psi na esteira da flutuação monetária ou da
opinião pública: Narciso entrou em órbita. O neo-narcisismo não se contentou com neutralizar o
universo social, esvazian do as instituições dos seus investimentos emocionais; também o Eu,
desta feita, se vê corroido, esvaziado da sua identidade, o que paradoxalmente su cede em
virtude do seu hiper-investimento. Como o espaço público se esvazia emocionalmente por
excesso de informações, de solicitações e de animações:
o Eu tornou-se um «conjunto frouxo». Por toda a parte, eis que o real pesa do desaparece, e é
a dessubstancialização, última figura da desterritorializa ção, que condena a pós-modernidade.
No sentido da mesma dissolução do Eu actua a nova ética permissiva e
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hedonista: o esforço deixou de estar na moda, o que significa coerção ou dis ciplina austera é
desvalorizado em proveito do culto do desejo e da sua reali zação imediata, tudo se passa como
se se tratasse de levar ao extremo o diagnóstico de Nietzsche sobre a tendência moderna
para favorecer a «fra queza da vontade», ou seja a anarquia dos impulsos e das tendências e,
cor relativamente, a perda de um centro de gravidade que hierarquize o todo:
«A pluralidade e a desagregação dos impulsos, a falta de sistematização en tre eles, leva a uma
‘vontade fraca’; a coordenação dos impulsos sob o pre domínio de um deles leva a uma ‘vontade
forte’» Associações livres, espon taneidade criadora, não-directividade, a nossa cultura da
expressão, mas também a nossa ideologia do bem-estar estimulam a dispersão em detrimen to
32
da concentração, o temporário em vez do voluntário, e trabalham a favor da fragmentação do
Eu, do aniquilamento dos sistemas psíquicos organiza dos e sintéticos. A falta de atenção dos
alunos, de que todos os professores hoje se queixam, não é senão uma das formas desta nova
consciência cool e desenvolta, ponto por ponto análoga à consciência telespectadora, captada
por tudo e por nada, ao mesmo tempo excitada e indiferente, sobressaltada pelas informações,
consciência opcional, disseminada, nos antípodas da consciência voluntária, «introdeterminada». O fim da vontade coincide com a era da indiferença pura, com o
desaparecimento dos grandes fins e gran des iniciativas que merecem o sacrifício da vida:
«tudo imediatamente» e já não per aspera ad astra «Expludam!», lemos por vezes num graijiti:
não há que temer, o sistema encarrega-se disso, o Eu já foi pulverizado em tendên cia parciais
de acordo com o mesmo processo de desagregação que fez explo dir a socialidade num
copglomerado de moléculas personalizadas. E o social átono é a réplica exacta do Eu
indiferente, cuja vontade esmorece, novo zombie atravessado de mensagens. Inútil sentirmonos desesperados: o «en fraquecimento da vontade» não é catastrófico, não prepara uma
humanidade submissa e alienada, em nada anuncia a ascensão do totalitarismo: a apatia
desenvolta representa, bem pelo contrário, uma barreira contra os sobressaI tos de
religiosidade histórica e os grandes desígnios paranóicos. Obsecado apenas por si próprio,
procurando a sua realização pessoal e o seu equilí brio, Narciso constitui um obstáculo ante os
discursos de mobilização de
1 Nietzsche, Le Nihilisrne européen. fragmentos póstumos reunidos e traduzidos por A.
Kremer-Marietti, UGE, coil. «10/18», p. 207.
2 «De obstáculo em obstáculo até às estrelas», citado por D. Riesman, La Foule so1i Arthaud,
1964, p. 164.
massas; hoje, os apelos à aventura, ao risco político, não encontram eco; se a revolução se
desprestigiou, não temos que incriminar qualquer «traição» burocrática: a revolução extinguiuse sob os spots sedutores da personaliza ção do mundo. Deste modo, a era da «vontade»
desaparece: mas não preci samos de recorrer, imitando Nietzsche, a qualquer «decadência».
Trata-se da lógica de um sistema experimental baseado na rapidez da criação de combi nações
que exige a eliminação da «vontade», porque esta se revela como um obstáculo ao seu
funcionamento operacional. Um centro «voluntário» com as suas certezas íntimas, a sua força
intrínseca, representa ainda um núcleo de resistência à aceleração das experimentações: mais
vale a apatia narcísica, um Eu lábil, o único capaz de avançar em movimentos sincronizados com
uma experimentação sistemática e acelerada.
Liquidando a rigidez «intro-determinada» incompatível com os sistemas «flutuantes», o
narcisismo trabalha igualmente a favor da dissolução da «ex tro-determinação», que, aos olhos
de Riesman, era a personalidade rica em futuro, mas que rapidamente se revelou não passar de
uma última personali dade de massa, correspondendo ao estádio inaugural dos sistemas de
consu mo e fazendo a transição entre o indivíduo disciplinar-voluntário (introdeter minado) e o
indivíduo narcísico. No momento em que a lógica da personali zação reorganiza a integralidade
dos sectores da vida social, a extro determinação, com a sua necessidade de aprovação do
Outro, o seu compor tamento orientado pelo Outro, dá lugar ao narcisismo, a uma autoabsorção que reduz a dependência do Eu ante os outros. R. Sennett tem em parte ra zão: «As
sociedades ocidentais estão a passar de um tipo de sociedade mais ou menos dirigida pelos
outros a uma sociedade dirigida do interior» (T.I., p. 14). No tempo dos sistemas à lista, a
33
personalidade já não deve ser de ti po gregário ou mimético, mas aprofundar a sua diferença, a
sua singularida de: o narcisismo representa este desprendimento da preensão do Outro, esta
ruptura com a ordem da estandardização dos primeiros tempos da «socieda de de consumo».
Liquefacção da identidade rígida do Eu e suspensão do pri mado do olhar do Outro, em todos os
casos, é realmente como agente do processo de personalização que o narcisismo funciona.
Comete-se um grave erro quando se quer dar conta da «sensibilidade te rapêutica» a partir de
uma qualquer ruína da personalidade causada pela organização burocrática da vida: «O culto da
intimidade não tem a sua ori gem na afirmação da personalidade, mas na sua queda» (C.N., p.
69). A paixão narcísica não procede da alienação de uma unidade perdida, não
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compensa uma falta de personalidade, gera um novo tipo de personalidade, uma nova
consciência, toda feita de indeterminação e flutuação. Tornar o Eu um espaço «flutuante», sem
fixação nem pontos de referência, uma dis ponibilidade pura, adaptada à aceleração das
combinações, à fluidez dos nossos sistemas, tal é a função do narcisismo, instrumento flexível
dessa re ciclagem psi permanente, necessária à experimentação pós-moderna. E, si
multaneamente, expurgando do Eu as resistências e os estereotipos, o narci sismo torna
possível a assimilação dos modelos de comportamentb apurados por todos os ortopedistas da
saúde física e mental: instituindo um «espírito» vergado à formação permanente, o narcisismo
coopera na grande obra de gestão científica dos corpos e das almas.
A erosão dos pontos de referência do Eu é a réplica exacta da dissolução que hoje conhecem
as identidades e os papéis sociais, outrora estritamente definidos, integrados como estavam
em oposições reguladas: assim os estatu tos da mulher, do homem, da criança, do louco, do
civilizado, etc., entra ram num período de indefinição, de incerteza, enquanto não pára de se de
senvolver a interrogação sobre a natureza das «categorias» sociais. Mas ao passo que a erosão
das formas da alteridade deve ser pelo menos em parte atribuída ao processo democrático, ou
seja ao trabalho da igualdade, cuja tendência consiste, como mostrou admiravelmente M.
Gauchet, em reduzir tudo o que figura a alteridade social ou a diferença de substância entre
os seres pela instituição de uma similitude independente dos dados visíveis’, aquilo a que
chamámos a dessubstancialização do Eu procede em primeiro lugar do processo de
personalização. Se o movimento democrático dissolve os pontos de referência tradicionais do
outro, o esvazia de toda a disseme lhança substancial afirmando uma identidade entre os
indivíduos, sejam quais forem, sob outros aspectos, as suas diferenças aparentes, o processo
de personalização narcísico, pelo seu lado, faz vacilar os pontos de referência do Eu, esvazia-o
de todo o conteúdo definitivo, O reinado da igualdade transformou por inteiro a apreensão da
alteridade, do mesmo modo que o reinado hedonista e psicológico transforma por inteiro a
apreensão da nossa própria identidade. Mais ainda: a explosão psi sobrevém no momemto preci
so em que todas as figuras da alteridade (perverso, louco, delinquente, mu lher, etc.) se vêem
contestadas e oscilam no sentido daquilo a que Tocquevil le chama a «igualdade das condições».
Não será justamente quando a alteri
dade social dá maciçamente lugar à identidade, a diferença à igualdade, que o problema da
identidade própria, íntima desta vez, pode surgir? Não será porque o processo democrático se
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encontra doravante generalizado, sem li mite ou fronteira determinável, que pode levantar-se a
vaga de fundo psico lógica? Quando a relação do indivíduo consigo próprio suplanta a relação
com o outro, o fenómeno democrático deixa de ser problemático; deste pon to de vista, a
afirmação do narcisismo significaria a deserção do reino da igualdade, sem que esta, no
entanto, deixe de prosseguir a sua obra. Tendo resolvido a questão do outro (quem não é hoje
reconhecido, objecto de solici tude e de interrogação(?), a igualdade varreu o terreno e
permitiu a emer gência da questão do Eu; doravante, a autenticidade leva a melhor sobre a
reciprocidade, o conhecimento de si próprio sobre o reconhecimento. Mas, em simultâneo com
este desaparecimento da cena social da figura do Outro, reaparece uma nova divisão, a do
consciente e do inconsciente, a clivagem psíquica, como se a divisão devesse ser
permanentemente reproduzida, ainda que numa modalidade psicológica, a fim de a obra de
socialização poder continuar. «Eu é um Outro» esboça o processo narcísico, o nascimento de
uma nova alteridade, o fim da familiaridade do Si para conSigo, quando quem está diante de
mim deixa de ser um absolutamente Outro: a identida de do Eu vacila quando a identidade
entre os indivíduos se afirma, quando todo e qualquer ser se torna um «semelhante».
Deslocamento e reprodução da divisão, ao interiorizar-se o conflito assume sempre uma função
de inte gração social desta vez menos através da conquista da dignidade pela luta de classe do
que da busca da autenticidade e da verdade do desejo.
O corpo reciclado
Quando se tenta assimilar, à maneira de R. Sennett, o narcisismo ao psi cologismo, depara-se
rapidamente com a dificuldade maior do cortejo das so licitudes e dos cuidados que doravante
rodeiam o corpo, promovido assim à categorïa de verdadeiro objecto de culto. Investimento
narcísico do corpo di rectamente legível através de mil práticas quotidianas: angústia da idade
e das rugas (C. N., pp. 351-367); obsessões com a saúde, com a «linha», com a higiene: rituais
de controlo (check-up) e de manutenção (massagens, sau
1 Marcel Gauchet, «Tocquevil!e, I’Amérique et nous», Libre, n.° 7, pp. 83-104.
M. Gauchet, ibid., p. 116.
59
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Guies Lipovetsky
na, desportos, regimes); cultos solares e terapêuticos (sobreconsumo de cui dados médicos e
de produtos farmacêuticos), etc. Incontestavelmente, a re presentação social do corpo sofreu
uma mutação cuja profundidade pôde já ser posta em paralelo com o abalo democrático da
representa de outrém; é do advento deste novo imaginário social do corpo que resulta o
narcisismo. Do mesmo modo que a apreensão da alteridade de outrém desaparece em benefício
do reinado da identidade entre os seres, assim também o corpo perdeu o seu estatuto de
alteridade, de res extensa, de materialidade muda, em proveito da sua identificação como o
ser-sujeito, com a pessoa. O corpo já não designa uma abjecção ou uma máquina, designa a
nossa identidade profunda da qual não há motivo para ter vergonha e que pode, portanto, ex
ibir-se nua nas praias ou nos espectáculos, na sua verdade natural. Enquan to pessoa, o corpo
ganha dignidade; devemos respeitá-lo, quer dizer zelar permanentemente pelo seu bom
funcionamento, lutar contra a sua obsoles cência, combater os signos da sua degradação
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através de uma constante re ciclagem cirúrgica, desportiva, dietética, etc.: a decrepitude
«física» tornou- se uma torpeza.
Chr. Lasch mostra-o bem: o modermo medo de envelhecer e de morrer é um elemento
constitutivo do neo-narcisismo; o desinteresse pelas gerações futuras intensifica a angústia da
morte, enquanto que a degradação das con dições de existência das pessoas idosas e a
necessidade permanente de valori zação, de se ser admirado pela beleza, pelo encanto, pela
celebridade, tor nam a perspectiva do envelhecimento intolerável (C. N., pp. 354-357). De
facto, é o processo de personalização que, esvaziapdo sistematicamente toda a posição
transcendente, engendra uma existência puramente actual, uma subjectividade total sem
finalidade nem sentido, entregue à vertigem da sua auto-sedução. O indivíduo, encerrado no
seu ghetto de mensagens, enfrenta doravante a sua condição mortal sem qualquer apoio
«transcendente» (políti co, moral ou religioso). «O que verdadeiramente revolta contra a dor
não é a dor em si, mas o sem-sentido da dor», dizia Nietzsche: pas e com a morte e com a
idade o mesmo que com a dor; é o seu sem-sentido contemporâneo que lhes exacerba o horror.
Num sistema personalizado, só resta ao indiví duo durar e conservar-se, aumentar a fiabilidade
do seu corpo, ganhar tem po e ganhar contra o tempo. A personalização do corpo mobiliza o
imperati vo da juventude, a luta contra a adversidade temporal, o combate tendo em vista a
identidade a conservar sem hiato nem desgaste. Continuar jovem, não envelhecer: é o mesmo
imperativo de funcionalidade pura, o mesmo im
A Era do Vazio
perativo de reciclagem, o mesmo im de dessubstancialização, espian do os estigmas do tempo a
fim de dissolver as heterogeneidades da idade.
Como todas as grandes dicotomias, a do corpo e a do espírito esbateu-se; o processo de
personalização, e especialmente aqui, a expansão do psicolo gismo, apaga as oposjçôes e
hierarquias rígidas, confunde os pontos de refe rência e as identidades vincadas. O processo
de psicologização é um agente de desestabilização, sob o seu registo todos os critérios vacilam
e flutuam numa incerteza generalizada; assim, o corpo deixa de ser relegado para um estatuto
de positividade material opondo-se a uma consciência acósmica e torna-se um espaço
indecidível, um «objecto-sujeito», um misto flutuante de sentido e de sensível, como dizia
Merleau-Ponty. Com a expressão corporal e a dança moderna (a de Nikolaïs, Cunningham,
Carolyn Carison), com a eu tonia e o ioga, com a bioenergia, o ro(fing, a terapia gestaltista,
onde come ça ou acaba o corpo? As suas fronteiras recuam, tornam-se fluidas; o «movi mento
de consciência» é simultaneamente uma redescoberta do corpo e das suas potências
subjectivas. O corpo psicológico substituiu-se ao corpo objec tivo e a tomada de consciência do
corpo por si próprio tornou-se uma finali dade característica do narcisismo: fazer existir o
corpo para si próprio, esti mular a sua auto-reflexividade, reconquistar a interioridade do
corpo, tal é a obra do narcisismo. Se o corpo e a consciência se trocam um pelo outro, se o
corpo, na esteira do inconsciente, fala, é preciso amá-lo e escutá-lo, é pre ciso que ele se
expresse, que comunique, e daí emana a vontade de redes cobrir o corpo de dentro, a busca
forçada da idiossincrasia, ou seja o pró prio narcisismo, esse agente da psicologização do
corpo, esse instrumento de conquista da subjectividade do corpo através de todas as técnicas
contempo râneas de expressão, concentração e relaxação.
Humanização, subjectivização, R. Sennett viu bem, estamos de facto nu ma »cultura da
personalidade», contanto que precisemos que o próprio corpo se torna um sujeito e, como tal, é
36
colocado na órbita da libertação, ou até da revolução, sexual sem dúvida, mas também estética,
dietética, sanitária, etc., sob a égide de «modelos directivos» Não devemos omitir que em si
multâneo com uma função de personalização, o narcisismo realiza uma mis são de normalização
do corpo: o interesse febril que temos pelo corpo não é
‘ J. Baudrillard fala justificadamente de um «narcisismo dirigido»; cf. L Échange symboli que et
la ,nort. Gailimard, 197ó, pp. 171-173.
60
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
de modo nenhum espontâneo e «livre», obedece a imperativos sociais, como a «linha», a
«forma», o orgasmo, etc. O narcisismo joga e ganha em todos os tabuleiros, funcionando ao
mesmo tempo como operador de ‘desestandardi zação e como operador de estandardização,
sem que esta última se apresente jamais como tal, mas como sujeição às exigências mínimas da
personaliza ção: a normalização pós-moderna apresenta-se sempre como o único meio de
o indivíduo ser realmente ele próprio, jovem, esbelto, dinâmico Passa-se com a exaltação do
corpo o mesmo que com a inflação psi: é a deslastrar o corpo dos tabus e pesos arcaicos,
tornando-o assim permeável às normas so ciais, que se aplica o narcisismo. Paralelamente à
dessubstancialização do Eu, a dessubstancialização do corpo, ou seja a eliminação da
corporeidade selvagem ou estática por meio de um trabalho que já não se realiza como outrora
segundo uma lógica ascética por defeito, mas pelo contrário, segun do uma lógica pletórica que
acumula informações e normas, O narcisismo, pela atenção escrupulosa que concede ao corpo,
pela sua preocupação per manente de funcionalidade óptima, faz cair as resistências
«tradicionais» e torna o corpo disponível para todas as experimentações, O corpo, na esteira
da consciência, torna-se um espaço flutuante, um espaço des-localizado, en tregue à
«mobilidade social»: limpar o terreno, obter o vazio por saturação, abater os núcleos
refractários à infiltração das normas, assim procede o nar cisismo, e vemos bem que é ingénuo
fazê-lo nascer, nos termos de R. Sen nett, a partir da «erosão dos papéis públicos», quer dizer
do desinvestimento de tudo o que é convenção, artifício ou uso, considerado doravante como
«algo seco, formal, senão factício» (T.I., p. 12), e como obstáculo à expres são da intimidade e
da autenticidade do Eu. Seja qual for, de resto, a vali dade parcial desta tese, ela não resiste à
prova da idolatria codificada do corpo, sobre a qual R. Sennett curiosamente não diz uma
palavra: se o nar cisismo é realmente veiculado por uma vaga de desafecção, são os valores e as
finalidades «superiores» que estão em causa e de modo nenhum os papéis e códigos sociais.
Nada menos do que o grau zero do social, o narcisismo procede de um hiper-investimento de
códigos e funciona como tipo inédito de controlo social sobre as almas e os corpos.
1 O processo de personalização anexou a própria norma do mesmo modo que anexou a produção,
o consumo, a educação ou a informação. À norma dirigista ou autoritária substituiu- se a norma
«indicativa», flexível, os «conselhos práticos», as terapias «por medida», as campa nhas de
informação e de sensibilização através de filmes humorísticos e de anúncios sorridentes.
Um teatro discreto
Com o que R. Sennett chama a «condenação moral da impessoalidade», que equivale à erosão
dos papéis sociais, começa o reinado da personalida de, a cultura psicomórfica e a obsessão
moderna do Eu no seu desejo de re velar o seu ser verdadeiro ou autêntico. O narcisismo não
designa apenas a paixão do conhecimento de si, mas também a paixão da revelação íntima do
37
Eu, como o testemunha a inflação actual das biografias e autobiografias ou a psicologização da
linguagem política. As convenções parecem-nos repressi vas, «as questões impessoais só
despertam o nosso interesse quando as enca ramos — erradamente — sob um ponto de vista
personalizado» (T.I., p. 15); tudo deve ser psicologizado, dito na primeira pessoa: o indivíduo de
ve implicar-se a si próprio, revelar as suas motivações, desvendar a todo o momento a sua
personalidade e as suas emoções, exprimir o seu sentimento íntimo, à falta do que incorrerá no
vício imperdoável da frieza e do anoni mato. Numa sociedade «intimista», que tudo mede pela
bitola da psicologia, a autenticidade e a sinceridade tornam-se, como já Riesman notava,
virtudes cardiais, e os indivíduos, absorvidos pelo seu eu íntimo, vêem-se cada vez mais
incapazes de «desempenhar» papéis sociais: tornámo-nos «actores priva dos de arte» (T.I., p.
249). Com a sua obsessão de verdade psicológica, o narcisismo enfraquece a capacidade de
lidar com a vida social, torna im possível toda a distância entre o que se sente e o que se
exprime: «A capaci dade de ser expressivo perde-se, porque o indivíduo tenta identificar a sua
aparência com o seu ser profundo e porque liga o problema da expressão efectiva ao da
autenticidade desta» (T.I., p. 205). E é aqui que reside a ar madilha, porque quanto mais os
indivíduos se libertam de códigos e costu mes em busca de uma verdade pessoal, mais as suas
relações se tornam «fra tricidas» e associais. Com a exigência crescente de mais imediato e de
maior proximidade, assaltando-se o outro à força de confidências pessoais, já não se observa a
distância necessária ao respeito da vida privada dos outros: o intimismo é tirânico e «incivil».
«A civilidade é a actividade que protege o eu dos outros, e lhe permite portanto fruir da
companhia de outrem. O uso da máscara é a própria essência da civilidade... Quanto mais forem
as másca ras mais reviyer mentalidade ‘urbana’, bem como o amor da urbanida de» (T.I., p.
202). A sociabilidade exige barreiras, regras impessoais que, só elas, podem proteger os
indivíduos uns dos outros; onde, pelo contrário, rei na a obscenidade da intimidade, a
comunidade viva desfaz-se em pedaços e
62
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
63
as relações humanas tornam-se «destrutivas». A dissolução dos papéis públi cos e a compulsão
de autenticidade engendraram uma incivilidade que se manifesta, por um lado, na rejeição das
relações anónimas com os «desco nhecidos» na cidade e a retracção para o aconchego do nosso
ghetto íntimo, por outro lado, no estreitamento do sentimento de pertença a um grupo e pela
acentuação correlativa dos fenómenos de exclusão. Morta a con de classe, os indivíduos
confraternizam agora na base do bairro, da região ou dos sentimentos comuns: «O próprio acto
de partilhar remete cada vez mais para operações de exclusão ou, inversamente, de inclusão...
A fraterni dade já não passa da união d um grupo selectivo que rejeita todos os que não fazem
parte dele... A fragmentação e as divisões internas são o produto da fraternidade moderna»
(T.I., p. 203).
Digamo-lo sem rodeios: a ideia segundo a qual o narcisismo debilita a energia lúdica e se revela
incompatível com a noção de «papel» não resiste ao exame. Sem dúvida, as convenções rígidas
que enquadravam as condutas fo ram desfeitas pelo processo de personalização que tende por
toda a parte a desregular e a flexibilizar os quadros estritos; neste sentido, é verdade que os
indivíduos recusam as coacções «vitorianas» e aspiram a mais autenticida de e liberdade nas
suas relações. Mas isso não significa que o indivíduo se veja entregue a si próprio,
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desembaraçado de toda a codificação social. O processo de personalização não abole os
códigos, descongela-os, ao mesmo tempo que impõe novas regras adaptadas ao imperativo de
produzir precisa- mente uma pessoa pacificada. Dizer tudo, talvez, mas sem grito, diga o que
quiser, mas nada de passagem ao acto; mais ainda, é esta libertação do dis curso, ainda que
acompanhada de violência verbal, que contribui para fazer regredir o uso da violência física:
sobreinvestimento do verbo íntimo e corre lativamente desafecção da violência física: através
deste deslocamento, o strip-tease psi revela-se um instrumento de controlo e de pacificação
social. Mais do que uma realidade psicológica actual, a autenticidade é um valor social e assim
não há lugar para a explosão sem coerção: o deboche da reve lação acerca de si próprio deve
vergar-se a novas normas, a do gabinete do analista, a do género literário ou a do «sorriso
familiar» do homem político na televisão. De qualquer maneira, a autenticidade deve
corresponder ao que esperamos dela, aos signos codificados da autenticidade: uma manifes
tação demasiado exuberante, um discurso demasiado teatral já não têm efei to de sinceridade;
esta deve adoptar o estilo cool, caloroso e comunicativo; para além ou para aquém disto, temos
o histrião, a neurose. E necessário
que nos expressemos sem reserva (e mesmo isto, de resto, deve ser conside ravelmente
matizado, como veremos), livremente, mas num quadro pré- estabelecido. Há uma procura de
autenticidade, mas de maneira nenhuma de espontaneidade: Narciso não é um actor atrofiado,
as faculdades expres sivas e lúdicas não são hoje nem mais nem menos desenvolvidas do que on
tem. Veja-se a proliferação de todos os pequenos «arranjos» da vida quoti diana, as astúcias e
«truques» do mundo do trabalho: a arte da dissimula ção, as máscaras nada perderam da sua
eficácia. Veja-se como a sinceridade é «interdita» ante a morte: devemos esconder a verdade
ao moribundo, não devemos manifestar a nossa dor quando morre um parente, mas fingir «indi
ferença», como diz Ariès «A discrição surge como a forma moderna da dignidade» O
narcisismo define-se menos pela explosão livre das emoções do que pelo encerramento em si
próprio, ou pela «discrição», signo e instru mento de self-controi. Sobretudo, nada de
excessos, de transportes, de ten sões que nos ponham fora de nós; é a retracção sobre si
próprio, a «reserva» ou a interiorização que caracteriza o narcisismo, e não a exibição
«românti ca».
De resto, longe de exacerbar as exclusões e de engendrar o sectarismo, o psicologismo tem
efeitos opostos: o trabalho da personalização consiste em desarmar os antagonismos rígidos,
as excomunhões e as contradições. O la xismo leva a melhor sobre o moralismo ou o purismo, a
indiferença sobre a intolerância. Demasiado absorvido por si próprio, Narciso renuncia aos miii
tantismos religiosos, desinveste as grandes ortodoxias, as suas adesões são efeito da moda,
flutuantes, sem grande motivação. Aqui como noutros luga res, a personalização conduz ao
desinvestimento do conflito, ao desanuvia inento. Nos sistemas personalizados, os cismas, as
heresias já não têm senti do: quando uma sociedade «valoriza o sentimento subjectivo dos
actores e desvaloriza o carácter objectivo da acção» (TI., p. 21), põe em acção um processo de
dessubstancialização das acções e doutrinas, cujo efeito mais imediato é uma descrispação
ideológica e política. Neutralizando os contez dos em benefício da sedução psi, o intimismo
generaliza a indiferença, ela bora uma estratégia de desarmamento nos antípodas do
dogmatismo das ex clusões.
A tese de R. Sennett, a propósito das relações intersubjectivas, deixa de
1 Ph. Ariès, Essa is sur 1histoire de la mort en Occident, Éd. du Seuil, 1975, p. 187.
39
2 Ibid., p. 173.
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Guies Lipovetsky A Era do Vazio
65
ser convincente: «Quanto mais íntimas são as pessoas, mais as suas relações se tornam
dolorosas, fratricidas e associais» (T.I., p. 274). As convenções ri tuais impediam, então, os
homens de se matarem uns aos outros e se feri rem? A cultura pública ignoraria a tal ponto a
crueldade e o ódio? Teremos tido que esperar pela era intimista para que a luta das
consciências conhe cesse o seu pleno surto? Se é evidente que não podemos aderir a
semelhante maniqueísmo ingénuo (máscaras = civilidade; autenticidade = incivilidade), tão
visivelmente contrário à apatia narcísica, não é menos verdade que sub siste um problema
justamente no lugar em que se declara esta dramatização do conflito: o que é que impele para
uma tal representação catastrófica? O que é que a torna uma ideia dominante do nosso tempo?
Apocalipse now?
Encontramos a mesma verificação trágica em Chr. Lasch, reforçada des ta feita por um
discurso nitidamente apocalíptico; quanto mais a sociedade dá de si própria uma imagem
tolerante, mais, de facto, o conflito se intensi fica e generaliza: assim, passamos da guerra de
classes à «guerra de todos contra todos» (C. N., p. 125). No universo económico, antes do mais,
reina uma rivalidade pura, esvaziada de qualquer significação moral ou histórica:
o culto do self-made man e do enriquecimento como signo de progresso indi vidual e social
terminou, doravante o (êxito» só tem um sentido psicológico:
«A busca da riqueza tem apenas como objectivo suscitar a admiração ou a inveja» (C. N., p.
118). Nos nossos sistemas narcísicos, o indivíduo adula os seus superiores para avançar na
carreira, deseja mais ser invejado do que respeitado, e a nossa sociedade, indiferente ao
futuro, apresenta-se como uma selva burocrática onde reina a manipulação e a concorrência de
todos contra todos (C. N., pp. 114-117). A própria vida privada deixa de ser um refúgio e
reproduz este estado de guerra generalizado: peritos da comunica ção redigem tratados
psicológicos destinados a garantir aos indivíduos uma posição dominante nos cocktails, enquanto
novas estratégias, como a asserti veness therapy, visam desembaraçar os sujeitos dos
sentimentos de ansieda de, de culpabilidade ê de inferioridade que os seus parceiros
frequentemente utilizam para chegarem aos seus fins. As relações humanas, públicas e pri
vadas, tornaram-se relações de dominação, relações conflituais assentes na sedução fria e na
intimidação. Por fim, sob a influência do neo-feminismo,
as relações entre o homem e a mulher deterioram-se consideravelmente, des ligadas das
regras pacificadoras da cortesia. A mulher, com as suas exigên cias sexuais e as suas
capacidades orgásticas vertiginosas — os trabalhos de Masters e Johnson, K. Millett, M. J.
Sherfey mostram a mulher como «insa ciável» —, torna-se para o homem uma companheira
ameaçadora, assusta dora e geradora de angústia: «O espectro da impotência assombra a imagi
nação contemporânea» (C. N., p. 345), essa impotência masculina que, se gundo os últimos
relatórios, aumentaria em razão do medo da mulher e da sexualidade libertada. Neste
contexto, o homem nutre um ódio desenfreado contra a mulher, como mostra o modo de
tratamento desta nos filmes ac tuais, com a frequência das cenas de violação (C. N., p. 324).
40
Simultanea mente, o feminismo desenvolve na mulher o ódio pelo homem, assimilando-o a um
inimigo, fonte de opressão e de frustração; com a mulher portadora de um número sempre
crescente de exigências relativas ao homem, que se acha incapaz de as satisfazer, o ódio e a
recriminação aumentam neste sexual warfare característico do nosso tempo.
Chr. Lasch, rejeitando as teorias de Riesman e de Fromm, culpadas a seus olhos de terem
exagerado a capacidade de socialização das pulsões agressivas pela sociedade permissiva,
limita-se a cair na representação domi nante, mass-mediática, do crescimento da violência no
mundo moderno: a guerra bate-nos à porta, vivemos em cima de um barril de pólvora, basta ver
o terrorismo internacional, os crimes, a insegurança nas cidades, a violência racial nas ruas e
nas escolas, os hold-up, etc. (C. N., p. 130). O estado de natureza de Hobbes encontra-se assim
no termo da História: a burocracia, a proliferação das imagens, as ideologias terapêuticas, o
culto do consumo, as transformação da família, a educação permissiva engendraram uma
estrutu ra da personalidade, o narcisismo, que é acompanhada por relações huma nas cada vez
mais bárbaras e conflituais. Só na os indivíduos se tornam mais sociáveis e cooperantes; por
trás da fachada de hedonismo e de solicitude, cada indivíduo explora cinicamente os
sentimentos dos outros e procura o seu próprio interesse sem qualquer preocupação com as
gerações futuras. Curiosa concepção a deste narcisismo, apresentado como estrutura psíquica
inédita e que, de facto, se vê repescado pelas redes do «amor pró prio» e do desejo de
reconhecimento já identificados por Hobbes, Rousseau e Hegel como responsáveis pelo estado
de guerra. Se o narcisismo representa realmente um novo estádio do individualismo — é esta
hipótese que é fru tuosa nos trabalhos americanos actuais, muito mais do que os seus conteú
66
Gil/es Lipovetskv
dos demasiado tendentes a um catastrofismo simplista —, é necessário esta belecermos que
acompanha uma relação original com o Outro, do mesmo modo que dela decore uma relação
inédita com o corpo, o tempo, o afecto, etc.
Esta transformação da dimensão intersubjectiva é já amplamente mani festa, tanto no que se
refere ao espaço público como ao espaço privado. O primado da sociabilidade pública e a luta
em torno dos signos manifestos do reconhecimento começam a apagar-se em correlação com o
desenvolvimento da personalidade psi. O narcisismo tempera a selva humana pelo desinvesti
mento que opera das categorias e hierarquias sociais, pela redução do desejo de ser admirado
e invejado pelos semelhantes. Profunda revolução silenciosa da relação interpessoal: o que
actualmente importa é que o indivíduo seja absolutamente ele próprio, que se realize em pleno
e independentemente dos critérios do Outro; o sucesso visível, a busca de uma cotação
honorífica ten dem a perder o seu poder de fascínio, o espaço da rivalidade inter-humana dá
lugar pouco a pouco a uma relação pública neutra em que o Outro, esva ziado de toda a
espessura, já não é hostil nem concorrencial, mas indiferen te, dessubstancializado, no rasto
das personagens de Wim Wenders e P. Handke. Enquanto o interesse e a curiosidade pelos
problemas pessoais do Outro, ainda que este seja um estranho para mim, não páram de crescer
(sucesso do «correio sentimental», das confidências radiodifundidas, das biografias), como é
natural numa sociedade baseada no indivíduo psicológi co, o Outro como pólo de referência
anónimo vê-se desafectado do mesmo modo que as instituições e os valores superiores. Sem
dúvida, a ambição so cial está longe de se ter esbatido identicamente para todos: assim,
categorias inteiras (dirigentes e quadros de empresas, homens políticos, artistas, inteili
gentsia) continuam a lutar rudemente pela conquista do prestígio, da glória ou do dinheiro; mas
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quem não vê ao mesmo tempo que se trata, antes do mais, de grupos pertencentes, em graus
diversos, àquilo a que podemos cha mar de facto uma «elite» social, que se reserva de algum
modo o privilégio de reintroduzir um ethos de rivalidade necessário aos desenvolvimentos das
nossas sociedades? Em contrapartida, para um número crescente de indiví duos, o espaço
público já não é o teatro em que se agitam as paixões «arri vistas»; fica somente a vontade que
o indivíduo nutre de se realizar à parte e de se integrar em círculos conviviais ou calorosos, que
se transformam nos satélites psi de Narciso, nas suas conexões privilegiadas: a decadência da
in tersubjectividade pública não conduz apenas à relação de si para consigo,
A Era do Vazio 67
caminha a par também do investimento emocional dos espaços privados que, por ser instável,
não é menos efectivo. E deste modo que, curto-circuitando o desejo de reconhecimento,
temperando os desejos de ascenção social, o narcisismo prossegue de maneira diferente, a
partir do interior, o processo de igualização das condições. O homo psychologicus aspira menos
a içar-se acima dos outros do que a viver num meio ambiente distendido e comunica tivo, em
atmosferas «sim sem elevação nem pretensões excessivas. O culto do relacional personaliza ou
psicologiza as formas de sociabilidade, desfaz as últimas barreiras anónimas que separam os
homens, e, agindo as sim, é um agente da revolução democrática que trabalha continuamente pa
ra a dissolução das distâncias sociais.
Sendo assim, é óbvio que a luta pelo reconhecimento não desaparece; mais precisamente,
privatiza-se, manifestando-se com prioridade nos circui tos íntimos, nos problemas relacionais;
o desejo de reconhecimento foi colo nizado pela lógica narcísica, transistoriza-se, tornando-se
cada vez menos competitivo, cada vez mais estético, erótico, afectivo. O conflito das cons
ciências personaliza-se; é menos a classificação social que está em jogo do que o desejo de
agradar, de seduzir e, durante o máximo de tempo possível; o desejo também de ser ouvido,
aceite, tranquilizado, amado. E por isso que a agressividade dos seres, a dominação e a servidão
se lêem hoje menos nas relações e conflitos sociais do que nas relações sentimentais de pessoa
a pes soa. Por um lado, a cena pública e os comportamentos individuais não pá- ram de se
pacificar através da auto-absorção narcísica; por outro lado, o es paço privado psicologiza-se,
perde as suas amarras convencionais e torna-se uma dependência narcísica onde cada um não
descobre mais do que aquilo que «deseja»: o narcisismo não significa a forclusão de outrem,
designa a transcrição progressiva das realidades individuais e sociais no código da sub
jectividade.
A despeito das suas declarações de guerra estrondosas e do seu apelo à mobilização geral, o
neo-feminismo, pelo seu lado, não descobre a sua ver dade nesta intensificação, afinal
superficial, da luta dos sexos. A relação de forças que parece hoje definir as relações entrL os
sexos é talvez o último sobressalto da divisão tradicional dos sexos e simultaneamente o signo
do seu apagamento. A exacerbação do conflito não é o essencial e circunscre ver-se-á
provavelmente às gerações «intermédias», que foram sacudidas e se viram desconcertadas
pela revolução feminista. Estimulando uma interroga ção sistemática sobre a «natureza» e o
estatuto da mulher, procurando a
1
68
Gil/es Lipovetsky
42
identidade perdida desta última, recusando toda e qualquer posição pré- estabelecida, o
feminismo desestabiliza as oposições reguladas e confunde os pontos de referência estáveis:
começa verdadeiramente o fim da antiga divi são antropológica e dos seus conflitos
concomitantes. Não a guerra dos se xos, mas ofim do mundo do sexo e das suas oposições
codificadas. Quanto mais o feminismo questiona o ser do feminino, mais este se apaga e perde
na incerteza; quanto mais a mulher faz cair muralhas inteiras do sèu estatu to tradicional, mais
a própria virilidade perde a sua identidade. Às classes relativamente homogéneas do sexo,
substituem-se indivíduos cada vez mais aleatórios, combinações até agora improváveis de
actividade e de passivida de, miríades de seres híbridos sem pertença forte de grupo. É a
identidade pessoal que se torna problemática, e é no sentido de que o indivíduo seja ele
próprio, para além das oposições constituídas do mundo do sexo, fundamen talmente
trabalhadas pelo neo-feminismo. Ainda que consiga, por muito tempo ainda, mobilizar o
combate das mulheres através de um discurso mi litar e unitário, todos poderemos ver já que a
parada se situa alhures: um pouco por toda a parte, as mulheres reúnem-se entre elas, falam,
escrevem, liquidando com esse trabalho de auto-consciencialização, a sua identidade de grupo,
o seu pretenso narcisismo de outrora, essa eterna «vaidade corpo ral» que Freud lhes atribuía
ainda. A sedução feminina, misteriosa ou histé rica, dá lugar a uma auto-sedução narcísica que
homens e mulheres parti lham por igual, sedução fundamentalmente transsexual, à margem das
dis tribuições e atribuições de sexo. A guerra entre os sexos não terá lugar: lon ge de ser uma
máquina de guerra, o feminismo é muito mais uma máquina de desestandardização do sexo, uma
máquina que se aplica à reprodução alargada do narcisismo.
24 000 watts
À guerra de cada um contra todos acrescenta-se uma guerra interior con duzida e amplificada
pelo desenvolvimento de um Supereu duro e punitivo, resultando das transformações da
família, comd a «ausência» do pai e a de pendência da mãe relativamente aos especialistas e
conselheiros psicopedagó gicos (C. N., cap. VII). O «desaparecimento» do pai, por motivo da
frequên cia dos divórcios, leva a criança a imaginar a mãe como castradora do pai: é
A Era do Vazio
69
nestas condições que o filho alimenta o sonho de substituir o pai, de ser o falo, conquistando a
celebridade ou ligando-se àqueles que representam o sucesso. A educação permissiva, a
socialização crescente das funções paren tais, que tornam difícil a interiorização da
autoridade familiar, não des troem, contudo, o Supereu: transformam o seu conteúdo num
sentido cada vez mais «ditatorial» e mais feroz (C., N., p. 305). O Supereu apresenta-se
actualmente sob a forma de imperativos de celebridade, de sucesso, que, se não forem
cumpridos, desencadeiam uma crítica implacável contra o Eu. Assim se explica a fascinação
exercida pelos indivíduos célebres, estrelas e ídolos, vivamente estimulada pelos media que
«intensificam os sonhos narci sicos de celebridade e de glória, encorajam o homem da rua a
identificar-se com as estrelas, a odiar o ‘rebanho’, tornando-lhe mais difícil de aceitar a
banalidade da existência quotidiana» (C. N., pp. 55-56): a América tornou- se uma nação de fãs.
Do mesmo modo que a proliferação dos conselheiros médico-psicológicos destrói a confiança
dos pais na sua capacidade educati va e aumenta a sua ansiedade, assim as imagens da
felicidade associadas às da celebridade têm como efeito engendrar novas dúvidas e angústias.
Acti vando o desenvolvimento de ambições desmedidas e tornando o seu cumpri mento
43
impossível, a sociedade narcísica favorece a auto-acusação e o despre zo do indivíduo por si
próprio. A sociedade hedonista só em superfície en gendra a tolerância e a indulgência; na
realidade, nunca a ansiedade, a in certeza, a frustração conheceram maiores proporções. O
narcisismo nutre-se mais de ódio do que de admiração pelo Eu (C. N., p. 72).
Culto da celebridade? Mas o que é muito mais significativo é, pelo con trário, a queda de
veneração que sofrem as vedetas e os grandes deste mun do. O destino das «estrelas» de
cinema corre paralelamente ao dos grandes dirigentes políticos e pensadores «filosóficos». As
figuras imponentes do sa ber e do poder extinguem-se, pulverizadas por um processo de
personaliza ção que não pode tolerar por mais tempo a manifestação ostentatória de tal
desigualdade, de semelhante distância. O mesmo momento assiste à dissolu ção dos discursos
sagrados marxistas e psicanalíticos, o fim dos gigantes his tóricos, o fim das estrelas pelas
quais se cometiam suicídios e simultanea mente a multiplicação dos pequenos mestres de
pensamento, o silêncio do psicanalista, as estrelas de um Verão, as cavaqueiras intimistas dos
homems políticos. Tudo o que designa um absoluto, uma altura demasiado imponen te
desaparece, as celebridades perdem a sua aura, enquanto a sua capacida de de galvanizar as
massas se embota. As vedetas não ocupam já por muito
70
Gil/es Lipovetsky
tempo o cartaz, porque as novas «revelações» eclipsam as de ontem segundo a lógica da
pejsonalização, a qual é imcompatível com a sedimentação, sempre susceptível de reproduzir
uma sacralidade impessoal. A obsolescên cia dos objectos responde a obsolescência das
estrelas e dos gurus; a perso nalização implica a multiplicação e a aceleração na rotação dâs
«presenças na primeira página» a fim de que nenhuma figura possa erigir-se em ídolo inumano,
em «monstro sagrado». E através do excesso de imagens e da sua celeridade que se realiza a
personalização: a «humanização» surge com a in fiação galopante da moda. Assim há cada vez
mais «vedetas» e cada vez me nos investimento emocional que as vise; a lógica da
personalização gera uma indiferença pelos ídolos feita de atracção passageira e de desafecção
instan tânea. O tempo presta-se menos à devoção pelo Outro do que à realização e
transformação de si própio, como afirmam, cada um na sua linguagem e em graus diversos, os
movimentos ecológicos, o feminismo, a cultura psi, a edu cação coo! das crianças, a moda
«prática», o trabalho intermitente ou a tem po parcial.
Dessubstancialização das grandes figuras da Alteridade e do Imaginário, concomitante de uma
dessubstancialização do real através do mesmo proces so de acumulação e de aceleração. Por
toda a parte o real deve perder a sua dimensão de alteridade ou de espessura selvagem:
restauração dos bairros antigos, protecção dos locais, animação das cidades, iluminação
artificial, «planos paisagisticos», ar condicionado, é preciso salubrizar o real, expurgá lo das
suas últimas resistências, tornando-o um espaço sem sombra, aberto e personalizado. Ao
princípio de realidade substituiu-se o princípio de trans parência que transforma o real num
lugar de trânsito, num território onde a deslocação é imperativa: a personalização é um pôr em
circulação. Que di zer desses subúrbios intermináveis dos quais só é possível fugir? Climatiza
do, sobressaltado por informações, o real torna-se irrespirável e condena ci clicamente à
viagem: «mudar de ares», ir não importa onde, mas sair do lu gar onde se está, tudo isto traduz
essa indiferença de que o real se encontra doravante afectado. Todo o nosso ambiente urbano
e tecnológico (parques de estacionamento subterrâneos, galerias de lojas, auto-estradas,
44
arranha- céus, desaparecimento das praças públicas nas cidades, aviões a jacto, auto móveis,
etc.) se encontra organizado de modo a acelerar a circulação dos in divíduos, a entravar a
fixação e, portanto, a pulverizar a socialidade: «O es paço público tornou-se um produto
derivado do movimento» (T. L, p. 23); as nossas paisagens «desenferrujadas pela velocidade»,
como bem diz Vinho,
A Era do Vazio
71
perdem a sua consistência ou índice de realidade Circulação, informação, iluminação trabalham
para uma mesma anemização do real, o que por sua vez reforça o investimento narcísico: uma
vez tornado inabitável o real, resta a retracção sobre si próprio, o refúgio autárcico, bem
ilustrado pela nova va ga dos decibéis, auscultadores e concertos pop. Neutralizar o mundo pela
força do som, fechar-se em si próprio, descarregar e sentir o corpo aos rit mos dos
amplificadores, eis que hoje os ruídos e vozes da vida se transfor maram em parasitas: é
preciso que o indivíduo se identifique com a música e esqueça a exterioridade do real.
Actualmente é-nos dado observar o se guinte: adeptos dojogging e do ski praticando os seus
desportos com auscul tadores estereo directamente aplicados nos tímpanos, carros equipados
com colunas e amplificador de 100 W, discotecas de 4000 W, concertos pop onde a
aparelhagem de som atinge os 24 000 W, toda uma civilização que fabri ca, como recentemente
se lia em título em Le Monde, uma «geração de sur dos», uma vez que há jovens que perderam
já 50 por cento da sua capacida de auditiva. Surge uma nova indiferença ante o mundo, já nem
sequer acompanhada pelo êxtase narcísico da contemplação de si próprio; hoje Nar ciso
descarrega, cercado de amplificadores, com um capacete de auscultado res, auto-suficiente na
sua prótese de sons «graves».
O vazio
«Se eu ao menos pudesse sentir alguma coisa!»: esta fórmula traduz o «novo» desespero que
fere um número cada maior de sujeitos. Sobre este ponto, o acordo dos psi parece unânime:
desde há vinte e cinco ou trinta anos, são as desordens de tipo narcísico que constituem a
maior parte das perturbações psíquicas tratadas pelos terapeutas, enquanto as neuroses
«clássicas» do século XIX, histerias, fobias, obsessões, a partir das quais a psicanálise deitou
corpo, já não representam a forma predominante dos sin tomas (T. 1., p. 259 e C. N., pp. 8889). As perturbações narcisicas apresen tam-se menos sob a forma de perturbações com
sintomas nitidos e bem defi nidos do que sob a forma de «perturbações caracteriais»,
caracterizadas por um mal-estar difuso e invasor, um sentimento de vazio interior e de
absurdo
P. Vinho, «Un confort subliminal», Traverses n.° 14-IS, p. 159. Sobre a »imposição de
mobilidade», ver igualmente P. Vinho, Vitesse et politique, Gahilée, 1977.
72
Guies Lipovetsky
da vida, uma incapacidade de sentir as coisas e os seres. Os sintomas neuró ticos que
correspondiam ao capitalismo autoritário e puritano deram lugar, sob impulsão da sociedade
permissiva, a desordens narcísicas, informes e in termitentes. Os pacientes já não sofrem de
sintomas fixos, mas de perturba ções vagas e difusas; a patologia mental obedece à lei do
45
tempo cuja tendên cia é para a redução da rigidez bem como para a diluição dos pontos de refe
rência estáveis: à crispação neurótica substituiu-se a flutuação narcísica. Im possibilidade de
sentir, vazio emotivo, a dessubstancialização toca aqui o seu termo, revelando a verdade do
processo narcísico como estratégia do vazio.
Mais ainda: segundo Chr. Lasch seria a um desprendimento emocional que os indivíduos cada
vez mais aspirariam, em razão dos riscos de instabili dade que as relações pessoais conhecem
nos nossos dias. Ter relações inte rindividuais sem ligação profunda, não se sentir vulnerável,
desenvolver a sua independência afectiva, viver sozinho tal seria o perfil de Narciso (C. N., p.
339). O medo de ser decepcionado, o medo das paixões incontro ladas, traduz ao nível
subjectivo o que Chr. Lasch chama the flight from feeling — « a fuga diante do sentimento »
—, processo que se manifesta tanto na protecção íntima como na separação, que todas as
ideologias «progressis tas» pretendem realizar, entre o sexo e o sentimento. Quando se prega
o coo! sex e as relações livres, quando se condenam o ciúme e a possessivida de, trata-se de
facto de climatizar o sexo, de o expurgar de toda a tensão
emocional e de conseguir assim um estado de indiferença, de desprendimen to, não só a fim de
o indivíduo se proteger contra as decepções amorosas, mas também contra os seus próprios
impulsos, que podem sempre ameaçar o seu equilíbrio interior (C. N., p. 341). A libertação
sexual, o feminismo, a pornografia trabalham para um mesmo fim: erguer barreiras contra as
emoções e manter afastadas as intensidades afectivas. Fim da cultura sentimen tal, fim do
happy end, fim do melodrama e emergência de uma cultura coo! onde cada um vive no seu
bunker de indiferença, ao abrigo das suas paixões e das dos outros.
Certamente Chr. Lasch tem razão ao sublinhar o refluxo da moda «senti mental», uma vez que
esta se mostra destronada pelo sexo, pela fruição, pe Entre 1970 e 1978, o número de
Americanos entre os catorze e os trinta e quatro anos
que vivem sós, à margem de qualquer situação familiar, quase triplicou, passandó de um mi lhão
e meio para 4 300 000. «Hoje, 20 por cento dos lares americanos reduzem-se a uma pessoa
que vive só... perto de um quinto dos compradores são actualmente celibatários» (Alvin Toffler,
La Troisiême Vague, Denoel, 1980, p. 265).
A Era do Vazio
73
la autonomia, pela violência espectacular. A sentimentalidade sofreu o mes mo destino que a
morte; torna-se incómodo exibir os próprios afectos, decla rar ardentemente o fogo íntimo,
chorar, manifestar com demasiada ênfase os impulsos internos. Tal como a morte, a
sentimentalidade tornou-se emba raçosa; é preciso ser-se digno em matéria de afecto, quer
dizer: discreto. Mas longe de designar um processo anónimo de desumanização, o «senti mento
interdito» é um efeito do processo de personalização, que trabalha aqui na irradicação dos
signos rituais e ostentatórios do sentimento. O senti mento deve chegar ao seu estádio
personalizado, eliminando os sintagmas inteiriçados, a teatralidade melodramática, o kitsch
convencional. O pudor sentimental é exigido por um princípio de economia e de sobriedade,
consti tutivo do processo de personalização. Deste modo, é menos a fuga perante o sentimento
que caracteriza o nosso tempo do que a fuga perante os signos da sentimentalidade. Não é
verdade que os indivíduos procurem um dás prendimento emocional e se protejam contra a
irrupção do sentimento; a es se inferno povoado de mónadas insensíveis e independentes,
46
devemos opor os clubes de encontros, os «pequenos anúncios», a «rede», todos esses milhões e
milhões de esperanças de encontros, de ligações, de amor, que precisamente se realizam com
cada vez mais dificuldade. E aqui que o drama é mais pro fundo do que o pretenso
desprendimento coo!: homens e mulheres conti nuam a aspirar tanto como antes (ou talvez
nunca tenha havido até tanta «procura» afectiva como nesta época de deserção generalizada)
à intensidade emõcional de relações privilegiadas, mas quanto mais forte é a expectativa mais
raro parece tornar-se o milagre fusional, ou, em todo o caso, mais bre ve Quanto mais a cidade
desenvolve as possibilidades de encontros, mais sós se sentem os indivíduos; quanto mais livres
e emancipadas das coacções antigas as relações se tornam, mais rara se faz a possibilidade de
conhecer uma relação intensa. Por toda a parte encontramos a solidão, o vazio, a difi culdade
de sentir, de ser transportado para fora de si; de onde uma fuga pa ra a frente de
«experiências», que mais não faz do que traduzir esta busca de uma «experiência» emocional
forte. Porque não posso amar e vibrar? De
O processo de desestandardização precipita o curso das «aventuras», uma vez que as rela ções
repetitivas, com a sua inércia ou o seu peso, ofendem a disponibilidade e a «personalidade» viva
do sujeito. Frescura de viver, é preciso reciclar os afectos, deitar fora tudo o que envelhece:
nos sistemas desestabilizados, a única «ligação perigosa» é uma ligação indefinidamente prolon
gada. Daí uma queda e uma alta de tensão cíclica: do stress à euforia, a existência torna-se sis
mográfica (cf. Manhattan de Woody Alien).
74
Gil/es Lipovets)
solação de Narciso, demasiado bem programado na sua absorção em próprio para poder ser
afectado pelo Outro, para sair de si — e, no entani insuficientemente programado, pois que
deseja ainda um mundo relacior afectivo.
CAPITULO IV
Modernismo e pós-modernismo
Surgida ao longo da última década na cena artística e intelectual e não escapando inteiramente
a um efeito de moda, a noção sem dúvida equívoca de pós-modernismo apresenta, no entanto,
como principal ponto de interes se, o de convidar, por oposição às sempre estrondosas
proclamações da ené sima novidade decisiva, a um regresso prudente às nossas origens, a uma
perspectivação histórica do nosso tempo, a uma interpretação em profundi dade da era de que
parcialmente estamos a sair, mas que, sob muitos aspec tos, continua a sua obra, por muito que
isso desagrade aos arautos ingénuos do corte absoluto. Se uma nova época da arte, do saber e
da cultura se anuncia, impõe-se a tarefa de determinar o que foi o ciclo anterior, a novi dade
requer aqui a memória, a ordenação cronológica, a genealogia.
Pós-moderno: no mínimo, dir-se-á que, não se trata de uma noção clara, remetendo antes para
níveis e esferas de análise que é por vezes difícil fazer coincidir. Esgotamento de uma cultura
hedonista e vanguardista ou emer gência de uma nova potência inovadora? Decadência de uma
época sem tra dição ou revitalização do presente através de uma reabilitação do passado?
Continuidade de uma nova espécie na trama modernista ou descontinuida de? Peripécia na
história da arte ou destino global das sociedades democráti cas? Recusánio-nos aqui a
47
circunscrever o pós-modernismo a um quadro re gional, estético, episteniológico ou cultural: se
surge uma pós-modernidade.
76
esta deve designar uma vaga profunda e geral à escala do todo social, pois
que é certo que vivemos num tempo em que s oposições rígidas se esbatem e as
preponderâncias se tornam frouxas, em que a inteligência do momento exige que se sublinhem
correlações e homologias. Elevar o pós-modernismo à categoria de uma hipótese global, dando
nome à passagem lenta e comple xa para um novo tipo de sociedade, de cultura e de indivíduo,
que nasce do interior e no prolongamento da era moderna; estabelecer o teor do moder nismo,
as suas linhas genealógicas e as suas funções históricas principais; apreender a inversão de
lógica que, pouco a pouco, se operou ao longo do século XX, em proveito de um predomínio cada
vez mais acentuado dos sis temas flexíveis e abertos, tal foi o objectivo, que aqui visámos,
tomando por fio de Ariana as análises de Daniel BelI, cuja mais recente obra traduzida para o
francês oferece o mérito incomparável de fornecer uma teoria geral do funcionamento do
capitalismo justamente à luz do modernismo e do seu «pós». Este livro, ao contrário do
anterior 2, não teve em França um eco po sitivo: sem dúvida que as suas posições neoconservadoras e puritanas não são estranhas a este acolhimento reservado. Mas mais ainda, o
livro ressen te-se da falta de construção, da rapidez da argumentação, do aspecto por vezes
caótico das análises, factores que incontestavelmente prejudicam a maior parte das suas ideias
estimulantes e sob muitos aspectos incontorná veis. Sejam quais forem os seus defeitos, esta
obra traz ar fresco, interroga o papel da cultura relativamente à economia e à democracia,
arranca a inter pretação da cultura aos compartimentos estanques da erudição microscópi ca,
aplica-se à elaboração de uma teoria que articula a arte e o modo de vi da no que se refere às
sociedades capitalistas avançadas; perante a fragmen tação extrema do saber sociológico e ao
retraimento constante das nossas perspectivas acerca do mundo actual, torna-se necessário
examinarmos de perto as teses de Daniel Beil, dando-lhes todo o desenvolvimento que mere
cem, embora, é certo, para assinalar insistentemente tudo o que dele nos se para.
A cultura antinomiana
Desde há mais de um século, o capitalismo encontra-se dilacerado por uma crise cultural
profunda, aberta, que podemos resumir numa palavra: o
Les Contradictions cuitureiles du capitalisme, tradução de M. Matignon, PUF, 1979. No texto,
os números entre parêntesis remetem para as páginas desta edição da obra.
2 Vers la societé post -industriei/e, traduçáo de P. Andier, Laffont, 1976.
modernismo, ou seja essa nova lógica artística baseada em rupturas e des continuidades,
assentando na negação da tradição, no culto da novidade e da mudança. O código do novo e da
actualidade descobre a sua primeira formulação teórica em Baudelaire, para quem o belo é
inseparável da mo dernidade, da moda, do contingente 1; mas é, sobretudo, entre 1880 e 1930
que o modernismo ganha toda a sua amplitude com o abalar do espaço da representação
clássica, com a emergência de uma escrita desprendida das imposições da significação
codificada, e depois com as explosões dos grupos e artistas de vanguarda. A partir de então,
os artistas não páram de destruir as formas e sintaxes instituídas, insurgem-se violentamente
contra a ordem oficial e o academismo: ódio à tradição e raiva de renovação total. Sem dú vida,
todas as grandes obras artísticas do passado inovaram sempre de uma maneira ou de outra,
48
introduzindo aqui e ali a derrogação dos cânones em vigor, mas é apenas neste fim de século
que a mudança se torna revolução, ruptura clara na trama do tempo, descontinuidade entre um
antes e um de pois, afirmação de uma ordem resolutamente outra. O modernismo não se
contenta com produzir variações estilísticas e temas inéditos, quer romper a continuidade que
nos liga ao passado, instituir obras absolutamente novas. Mas o mais notável ainda é que a raiva
modernista desqualifica, no mesmo impulso, as obras mais modernas: as obras de vanguarda,
logo depois de produzidas, tornam-se retaguarda e afundam-se no déjà-vu; o modernismo
proíbe o estacionamento, impõe a invenção perpétua, a fuga para diante, e é essa a
«contradição» que lhe é imanente: «A modernidade é uma espécie de auto-destruição
criadora.., a arte moderna não é somente filha da idade critica, mas crítica de si própria»
Adorno dizia-o de outra maneira: o mo dernismo define-se menos por declarações e manifestos
positivos do que por um processo de negação sem limites e que, por isso, não se poupa a si
próprio: a «tradição do novo» (H. Rosenberg), fórmula paradoxal do moder nismo, destrói e
desvaloriza inelutavelmente aquilo que institui, o novo incli na-se de pronto na direcção do
antigo, nenhum conteúdo positivo é já afir mado, sendo a própria forma da mudança o único
princípio que governa a arte. O inédito tornou-se o imperativo categórico da liberdade
artística.
1 Sobre Baudelaire e a modernidade, ver H. R. Jauss, Pour une estht de ia r Gailimard, 1978,
pp. 197-209.
2 O. Paz, Points de convergence. Gallimard, 1976, p. 16.
T. W. Adorno, Th esthétique. Klincksieck, 1974, p. 35.
Gil/es Lipovetsky
A Era do Vazio
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A esta contradição dinâmica do modernismo criativo seguiu-se uma fase não menos
contraditória, mas, para além disso, fastidiosa e esvaziada de to da a originalidade, O
dispositivo modernista que se incarnou de modo ex emplar nas vanguardas encontra-se hoje
exausto, ou, mais exactamente, aos olhos de Daniel Bel!, tal é a sua condição desde há meio
século. As vanguar das não páram de girar no vazio, incapazes de inovação artística maior. A
negação perdeu o seu valor criador, os artistas mais não fazem do que re produzir e plagiar as
grandes descobertas do primeiro terço do século, entrá mos naquilo a que D. Bel! chama o pósmodernismo, fase de declínio da criatividade artística, a que já não resta mais do que uma
exploração extre mista dos princípios modernistas. Daí a contradição de uma cultura cujo fito
é gerar sem interrupção o absolutamente outro e que, no termo do seu pro cesso, produz o
idêntico, o estereotipo, uma repetição tristonha. Neste pon to, D. BelI adopta o juízo de O.
Paz, ainda que faça recuar o momento da crise: desde há anos, as negações da arte moderna
«são repetições rituais: a rebelião torna-se procedimento técnico, a crítica retórica, a
transgressão ce rimonial. A negação deixou de ser criadora. Não digo que estejamos a viver o
fim da arte: vivemos o fim da ideia de arte moderna» Esgotamento da vanguarda que não se
49
explica nem a partir do «oficio perdido» nem a partir da «sociedade técnica»: a cultura do
sem-sentido, do grito, do ruído, não corresponde ao processo técnico, ainda que como seu duplo
negativo; não é imagem do império da técnica que «é por si evacuadora de todo o sentido»
D. Bel! observa com justeza que nas nossas sociedades, as transformações tecno-económicas
não determinam as transformações culturais, e o pós- modernismo não é o reflexo da
sociedade pós-industrial. O impasse da van guarda liga-se ao modernismo, a uma cultura
radicalmente individualista e extremista, no fundo suicidária, que afirma a inovação como único
valor. O marasmo pós-moderno resulta apenas da hipertrofia de uma cultura finaliza da pela
negação de toda a ordem estável.
O modernismo não é só rebelião contra si próprio, é simultaneamente re volta contra todas as
normas e valores da sociedade burguesa: a «revolução cultural» começa aqui, neste fim do
século XIX. Longe de reproduzirem os valores da classe economicamente dominante, os
inovadores artísticos da se1 O. Paz, op. cit., p. 190.
A Era do Vazio
79
gunda metade do século XIX e do século XX far-se-ão porta-vozes, nisso se inspirando no
romantismo, de valores assentes na exaltação do eu, na auten ticidade e no prazer, valores
directamente hostis aos costumes da burguesia, centrados estes no trabalho, na poupança, na
moderação, no puritanismo. De Baudelaire a Rimbaud e a Jarry, de V. Woolf a Joyce, de Dada
ao Sur realismo, os artistas inovadores radicalizam as suas críticas às convenções e
instituições sociais, tornam-se adversários encarniçados do espírito burguês, desprezando o
seu culto do dinheiro e do trabalho, o seu ascetismo, o seu racionalismo estreito. Viver com o
máximo de intensidade, «desregramento de todos os sentidos», seguir os impulsos e a
imaginação, abrir o campo das próprias experiências, «a cultura modernista é por excelência
uma cultura da personalidade. Tem por centro o ‘eu’. O culto da singularidade começa com
Rousseau» (p. 141) e prolonga-se com o romantismo e o seu culto da paixão. Mas a partir da
segunda metade do século XIX, o processo adquire uma fei ção agónica, as normas da vida
burguesa tornam-se objecto de ataques cada vez mais virulentos por parte de uma boémia
revoltada. Assim surge um in dividualismo ilimitado e hedonista, realizando o que a ordem
mercantil contrariara: «Enquanto a sociedade burguesa introduzia um individualismo radical no
domínio económico e estava pronta a suprimir todas as relações sociais tradicionais, temia as
experiências do individualismo moderno no domínio da cultura» (p. 28). Se a burguesia
revolucionou a produção e as trocas, em contrapartida, a ordem cultural em que se desenvolveu
continuou a ser disciplinar, autoritária e, se nos ativermos aos EUA, mais precisamen te,
puritana. E esta moral protestante-ascética que sofrerá, no decurso dos primeiros anos do
século XX, a ofensiva dos artistas inovadores.
Mas é com o aparecimento do consumo de massa nos EUA, nos anos vinte, que o hedonismo, até
então apanágio de uma pequena minoria de ar tistas ou de intelectuais, se tornará o
comportamento geral na vida corrente; é aí que reside a grande revolução cultural das
sociedades modernas. Se en cararmos a cultura na perspectiva do modo de vida, será o próprio
capitalis mo e não o modernismo artístico o artesão principal da cultura hedonista. Com a
difusão a grande escala de objectos considerados até então como ob jectos de luxo, com a
50
publicidade, a moda, o mass-media e sobretudo o crédito, cuja instituição mina directamente o
princípio de poupança, a mo ral puritana cede lugar a valores hedonistas que encorajam a
gastar, a gozar a vida, a obedecer aos impulsos: a partir dos anos cinquenta, a sociedade
americana e mesmo a europeia passam a gravitar em boa medida em torno
2 J• Eliul, L ‘Empire du non -sena, PUF, 1980, p. 96.
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Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
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do culto do consumo, dos tempos livres e do prazer. «A ética protestante foi minada não pelo
modernismo, mas pelo próprio capitalismo. O maior ins trumento de destruição da ética
protestante foi a invenção do crédito. Ante riormente, para comprar era preciso começar por
economizar. Mas com um cartão de crédito, era possível satisfazer imediatamente os desejos»
(p. 31). O estilo de vida moderno resulta não só das transformações de sensibilidade
impulsionadas pelos artistas desde há mais de um século, mas, mais profun damente ainda,
pelas transformações do capitalismo desde há sessenta anos.
Instalou-se, portanto, sob o efeito conjugado do modernismo e do consu mo de massa, uma
cultura centrada na realização do eu, na espontaneidade e na fruição: o hedonismo torna-se o
«princípio axial» da cultura moderna, e entra a partir daí em oposição aberta com a lógica do
económico e do políti co — eis a hipótese geral que orienta as análises de D. BelI. A sociedade
moderna está clivada, já não possui um carácter homogéneo e apresenta-se como a articulação
complexa de três ordens distintas, a tecno-económica, a do regime político e a da cultura,
obedecendo cada uma delas a um princí pio axial diferente, ou até contrário. Estas esferas
«não estão em conformi dade umas com as outras e têm diferentes ritmos de transformação.
Obede cem a normas diferentes que justificam comportamentos diferentes e mesmo opostos.
São as discordâncias entre estas esferas que são responsáveis pelas diversas contradições da
sociedade» (pp. 20-21). A ordem «tecno-económica» ou «estrutura social» (organização da
produção, tecnologia, estrutura socio profissional, repartição dos bens e serviços) é regida
pela racionalidade fun cional, quer dizer pela eficácia, pela meritocracia, pela utilidade, pela
pro dutividade. Em compensação, o princípio fundamental que regula a esfera do poder e a
justiça social é a igualdade: a exigência de igualdade não pára de se alargar (pp. 269-278); não
se refere já apenas à igualdade de todos pe rante a lei, ao sufrágio universal, à igualdade das
liberdades públicas, mas à «igualdade dos meios» (reivindicação da igualdade de oportunidades,
explo são dos novos direitos sociais relativos à instrução, à saúde, à segurança eco nómica) e
até à «igualdade dos resultados» (exames especiais para as mino rias a fim de remediar a
disparidade dos resultados, exigência de uma igual participação de todos nas decisões
respeitantes ao funcionamento dos hospi tais, universidades, jornais ou bairros: é a época da
«democracia de partici pação»). Daqui decorre uma «disjunção das ordens», uma tensão
estrutural entre três ordens assentes em lógicas antinómicas: o hedonismo, a eficácia, a
igualdade. Nestas condições, temos que renunciar a considerar o capitalismo
moderno como um todo unificado, de acordo com as análises sociológicas dominantes: desde há
um século, o divórcio entre as esferas cresce, nomea damente a disjunção entre a estrutura
social e a «cultura antinomiana» da plena realização da liberdade do eu torna-se cada vez mais
profunda. En quanto o capitalismo se desenvolveu sob a égide da ética protestante, a or dem
51
tecno-económica e a cultura formavam um conjunto coerente, favorável à acumulação do
capital, ao progresso, à ordem social, mas à medida que o hedonismo se impôs como valor último
e legitimação do capitalismo, este úl timo perdeu o seu carácter de totalidade orgânica, o seu
consenso. a sua vontade. A crise das sociedades modernas é, antes do mais, cultural ou espi
ritual.
Modernismo e valores democráticos
Para D. BeIl, a análise do modernismo deve apoiar-se em dois princípios solidários. Por um lado
a arte moderna, definida como expressão do eu e re volta contra todos os estilos reinantes, é
antinómica em relação às normas cardiais da sociedade, a eficácia e a igualdade. Por outro lado,
por motivo desta discordância, é vão querermos dar conta da natureza do modernismo em
termos de reflexo social ou económico: «As ideias e as formas resultam de uma espécie de
diálogo com as ideias e as formas anteriores, admitidas ou rejeitadas» (p. 64). Hostil às
teorias organicistas e marxistas, D. BeIl descreve o funcionamento heterogéneo das
sociedades democráticas, as lógi cas adversas que as dilaceram, a autonomia e
incompatibilidade das estrutu ras. Aqui reside o interesse desta análise que multiplica os
parâmetros e re cusa as fórmulas simples da modernidade; aqui se depara igualmente com o
ponto fraco de uma problemática que acusa excessivamente as descontinui dades e os
antagonismos. Se nos ativermos a estas disjunções, de resto me nos estruturais do que
fenomenológicas, perdemos de vista a continuidade histórica em que se inscreve a cultura
modernista e nomeadamente os laços que prendem à igualdade. E preciso sermos cautelosos
perante as oposições irreconciliáveis que o sociólogo nos apresenta; só um corte histórico mais
amplo permite avaliar o teor exacto das rupturas e descontinuidades. A aná lise da sociedade
moderna em termos de «disjunção das ordens» só parcial1 Vers la societépost-industrielle, op. cit., pp. 411-416.
1
82
Guies Lipovetsky
mente é exacta; à falta de uma temporalidade mais longa, acabamos por es quecer que o
modernismo artístico e a igualdade, longe de serem discordan tes, fazem parte integrante de
uma mesma cultura democrática e individua lista.
O modernismo não é uma ruptura primeira e incomparável: na sua raiva de destruir a tradição e
de inovar radicalmente, o modernismo prossegue na ordem cultural, após o intervalo de um
século, a obra própria das socieda des modernas visando instituir-se de modo democrático. O
modernismo é apenas uma face do vasto processo secular que conduz ao advento das socie
dades democráticas assentes na soberania do indivíduo e do povo, sociedades libertas da
submissão aos deuses, das hierarquias hereditárias e da força da tradição. Prolongamento
cultural do processo que se manifestou com brilho na ordem política e jurídica no fim do século
XVIII, culminar do empreen dimento revolucionário democrático, constituindo uma sociedade
sem funda mento divino, pura expressão da vontade dos homens reconhecidos como iguais.
Doravante a sociedade está votada a inventar-se por inteiro segundo a razão humana, não
segundo a herança do passado colectivo, já nada é in tocável, a sociedade apropria-se do
direito de se conduzir a si própria sem exterioridade, sem modelo decretado absoluto. Não é
precisamente esta mes ma destituição da preeminência do passado que se encontra em acção
52
na ofensiva dos artistas inovadores? Do mesmo modo que a revolução democrá tica emancipa a
sociedade das forças do invisível e do seu correlativo, o uni verso hierárquico, assim o
modernismo artístico liberta a arte e a literatura do culto da tradição, do respeito pelos
Mestres, do código da imitação. Ar rancar a sociedade da sua subordinação às potências
fundadoras externas e não humanas, desligar a arte dos códigos da narração-representação: é
a mesma lógica que actua, instituindo uma ordem autónoma cujo fundamento é o indivíduo livre.
«O que a nova arte busca é a inversão da relação entre o objecto e o quadro, a subordinação
manifesta do objecto ao quadro», escre via Malraux após Maurice Denis: o objectivo do
modernismo é a «composi ção pura» (Kandinsky), o acesso a um universo de formas, de sons, de
senti dos, livres e soberanos, não submetidos a regras exteriores, sejam religiosas, sociais,
ópticas ou estilísticas. De modo algum em contradição com a ordem da igualdade, o modernismo
é a continuação por outros meios da revolução democrática e do seu trabalho de destruição das
formações heterónomas. O modernismo institui uma arte desligada do passado, soberanamente
mestra de si própria; é uma figura da igualdade, a primeira manifestação da deA Era do Vazio
83
mocratização da cultura, ainda que possa surgir sob a feição elitista de uma arte separada das
massas.
Vemos nestas condições o limite da abordagem sociológica que analisa a arte como «prática
classificante», sistema regido por uma lógica da diferen ciação estatutária e da distinção: a
partir do fim do século XIX, é o processo modernista que esclarece a verdadeira função da
arte, não a imposição sim bólica e social do reconhecimento e da diferença através do consumo
cultu ral dos grupos. A escala da história, a arte moderna não pode ser reduzida a uma ordem
que distribui costados de nobreza cultural, é antes o meio de promover uma cultura
experimental e livre, com as fronteiras em perpétua deslocação, uma criação aberta e
ilimitada, uma ordem de signos em revolu ção permanente, ou, por outras palavras, uma cultura
estritamente indivi dualista, a inventar por completo, paralelamente a um sistema político as
sente unicamente na soberania das vontades humanas. O modernismo, vec tor da
individualização e do pôr em circulação contínuo da cultura, instru mento de exploração de
novos materiais, de novas significações e combina ções.
Do mesmo modo que a arte moderna prolonga a revolução democrática, prolonga também, a
despeito do seu carácter subversivo, uma cultura indivi dualista já presente aqui e além em
numerosos comportamentos da segunda metade do século XIX e começos do século XX:
citemos, sem ordem, a bus ca do bem-estar e dos gozos materiais já assinalada por Tocqueville,
a mul tiplicação dos «casamentos de inclinação» decididos por amor, o gosto nas cente pelo
desporto, a esbelteza e as danças novas, a emergência de uma moda vestimentar acelerada,
mas também o aumento do suicídio e a dimi nuição das violências interindividuais. O modernismo
artístico não introduz uma ruptura absoluta na cultura; completa, na febre revolucionária, a
lógica do mundo individualista.
O modernismo é de essência democrática: desliga a arte da tradição e da imitação, e
simultaneamente inicia um processo de legitimação de todos os temas. Manet rejeita o lirismo
das poses, os arranjos teatrais e majestosos, a pintura deixa de ter tema privilegiado, já não
tem que idealizar o mundo, um modelo pode ser fraco e indigno, os homens podem mostrar-se
de jaque tas e casacos pretos, uma natureza morta está em pé de igualdade com um retrato e
53
mais tarde, um esboço com um quadro. Com os Impressionistas, o anterior brilho dos temas dá
lugar à familiaridade das paisagens de subúr bio, à simplicidade das margens da TIe-de-France,
dos cafés, ruas e gares; os
1
84
Guies Lipovetsky
cubistas integrarão nos seus quadros algarismos, letras, pedaços de papel, de vidro ou de
ferro. Com o ready-made, importa que o objecto escolhido se ja absolutamente «indiferente»,
dizia Duchamp; o urinol, a prateleira de gar rafas entram na lógica do museu, ainda que para
destruir ironicamente os seus alicerces. Mais tarde, os pintores pop, os Novos Realistas
tomarão co mo tema objectos, signos e desperdícios do consumo de massa. A arte mo derna
assimila progressivamente todos os temas e materiais, e fazendo-o pas sa a definir-se por um
processo de dessublimação das obras, corresponden te exacto da dessacralização democrática
da instância política, da redução dos signos de ostentação do poder, da secularização da lei:
intervém nos dois casos o mesmo trabalho de destituição das alturas e majestades da obra, to
dos os temas são postos no mesmo plano, todos os elementos podem entrar nas criações
plásticas e literárias. Em Joyce, em Proust, em Faulkner, já não há qualquer momento
privilegiado, todos os factos se equivalem e merecem ser descritos; «gostaria de fazer com
que tudo entrasse neste romance», dizia Joyce a propósito de Ulisses, a banalidade, o
insignificante, o trivial, as as sociações de ideias são narradas sem juízo hierárquico, sem
discriminação, em pé de igualdade com o facto importante. Renúncia à organização hierár quica
dos factos, integração de todos os temas de toda e qualquer espécie, a significação imaginária
da igualdade moderna anexou a operação artística.
Mesmo os ataques contra as Luzes das vanguardas são ainda ecos da cul tura democrática. Com
Dada, é a própria arte que se sabota e exige a sua própria destruição. Trata-se de abolir o
fetichismo artístico, a separação hie rárquica da arte e da vida em nome do homem total, da
contradição, do processo criador, da acção, do acaso. Sabe-se que os Surrealistas, Artaud e
depois os happenings, as acções de anti-arte, procurarão também superar a oposição entre a
arte e a vida. Mas, atenção, este alvo constante do moder nismo, e não do pós-modernismo,
como quer D. BeIl não é a insurreição do desejo, a desforra das pulsões contra o quadriculado
da vida moderna; é a ëultura da igualdade que arruína inelutavelmente a sacralidade da arte e
re 1 O processo de dessublimação tal como aqui o entendemos não corresponde ao sentido
que lhe dá H. Marcuse. EmLHomme unidimensionnel (Ed. de Minuit, 1968), a dessublimação
designa a integração dos conteúdos de oposição da cultura superior no quotidiano, a assimila
ção e a banalização das obras por uma sociedade que difunde em grande escala as mais altas
realizações: a liquidação de uma cultura distanciada em contradição com o real é corolário da
sociedade do centro comercial e da televisão. Na realidade, a dessublimação iniciou-se um sécu
lo mais cedo.
A Era do Vazio
85
valoriza correlativamente o fortuito, os ruídos, os gritos, o quotidiano. A mais longo ou a mais
breve prazo, tudo ganha dignidade, a cultura da igual dade engendra uma promoção, uma
54
reciclagem universal das significações e objectos menores. Sem dúvida, a revolta surrealista
não é prosaica e conce be-se inteiramente sob o signo do maravilhoso, de uma vida outra, mas
não podemos ignorar que o «surreal» não se identifica com o imaginário puro nem com a evasão
romântica das viagens exóticas: é nas ruas de Paris ou na feira da ladra, nas aproximações
insólitas e coincidências do quotidiano que devem ser buscados os signos mais perturbantes. A
arte e a vida são aqui e agora. Mais tarde, J. Cage proporá que se considere como música
qualquer ruído de um concerto, e Ben chega à ideia de «arte total»: «Escultura de arte total:
erga-se uma coisa qualquer — Música de arte total: ouça-se seja o que for — Pintura de arte
total: olhe-se qualquer coisa». Fim da elevação sobree minente da arte, que se reúne à vida e
sai para a rua, «a poesia deve ser fei ta por todos, não por um», a acção é mais interessante do
que o resultado, tudo é arte: o processo democrático corrói as hierarquias e cumes, a insur
reição contra a cultura, seja qual for a sua radicalidade nihilista, só foi possível pela cultura do
homo aequalis.
Se os artistas modernos estão ao serviço de uma sociedade democrática, fazem-no não pelo
trabalho silencioso característico do Antigo Regime, mas tomando o caminho da ruptura
radical, a via extremista, a das revoluções políticas modernas. O modernismo, sejam quais
forem as intenções dos ar tistas, deve ser compreendido como a extensão da dinâmica
revolucionária à ordem cultural. As analogias entre processo revolucionário e processo mo
dernista são manifestas: a mesma vontade de instituir um corte brutal e irre versível entre o
passado e o presente; a mesma desvalorização da herança tradicional ( ser como um recémnascido, não saber nada, absoluta mente nada da Europa... ser quase um primitivo», P. Klee); o
mesmo so breinvestimento ou sacralização laica da era nova em nome do povo, da igualdade, da
nação num caso, em nome da própria arte ou do «homem no vo», noutro; o mesmo processo de ir
até ao fim, mesma exasperação visível quer na ordem ideológica e terrorista, quer na raiva de
levar cada vez mais longe as inovações artísticas; a mesma vontade de desafiar as fronteiras
na cionais e de universalizar o mundo novo (a arte de vanguarda formula um estilo cosmopolita);
a mesma constituição de grupos «avançados», os militan tes, os artistas de vanguarda; o mesmo
mecanismo maniqueu engendrando a exclusão dos mais próximos: se a Revolução tem
necessidade de traidores
1
86
Gil/es Lipovetsky
saídos das sua próprias fileiras, a vanguarda, pelo seu lado, considera os seus predecessores,
os seus contemporâneos ou a arte no seu conjunto como impostura ou obstáculo à verdadeira
criação. Se, como dizia Tocqueville, a Revolução Francesa procedeu à maneira das revoluções
religiosas, devería mos também dizer que os artistas modernos procederam à maneira dos revo
lucionários. O modernismo é a importação do modelo revolucionário para a esfera artística. E
por isso que não podemos subscrever as análises de Ador no que, fiel neste ponto à
problemática marxista, vê no modernismo um processo «abstracto» análogo à lógica do sistema
do valor de troca generali zado no estádio do grande capitalismo’. O modernismo não é mais a
repro dução da ordem da mercadoria do que a Revolução Francesa foi uma «revo lução
burguesa» a ordem económica, quer a compreendamos em termos de interesses de classe quer
de lógica mercantil, não é de molde a tornar inte ligível a exasperação modernista, a revolta
contra a «religião fanática do pas sado», o entusiasmo pela «magnjficência radiosa do futuro»
55
(Manifesto Futu rista), a vontade de renovação radical. O processo vanguardista é a própria
lógica da Revolução, com o seu maniqueísmo nos antípodas do sistema regu lado do valor, da
acumulação, da equivalência. D. BeIl sublinha-o com ra zão, a cultura moderna é antiburguesa.
Mais do que isso, é revolucionária, quer dizer de essência democrática, e como tal inseparável,
na esteira das grandes revoluções políticas, da significação imaginária central, característi ca
das nossas sociedades, do indivíduo livre e auto-suficiente. Como a ideo logia do indivíduo
tornou irremediavelmente ilegítima a soberania política cuja origem não fosse humana, do
mesmo modo é a nova representação dos indivíduos livres e iguais que está na base dos abalos
revolucionários da esfe ra cultural e da «tradição do novo».
Tem-se insistido muitas vezes, de resto bastante imprudentemente, no papel decisivo das
transformações «filosóficas» (o bergsonismo, W. James, Freud) e científicas (geometrias nãoeuclidianas, axiomáticas, teoria da rela tividade) no aparecimento da arte moderna. Com as
análises marxistas, não deixou de se ver na arte moderna o reflexo mais ou menos directo da
aliena ção capitalista. Recentemente ainda, J. ElIul não hesitava em afirmar que «todas as
particularidades da arte moderna» se explicavam a partir do «meio
Adorno, op. ci p. 36.
2 Estas linhas devem muito às análises de F. Furet, cf. Penser Ia R française, Gailimard, 1978.
A Era do Vazio
87
técnico»’. P. Francastel dava conta do desaparecimento do espaço plástico euclidiano a partir
de uma nova representação entre o homem e o universo, ou seja dos novos valores suscitados
pela ciência e pela técnica, privilegiando a velocidade, o ritmo, o movimento Nem todas estas
análises de profundi dade desigual devem ser postas no mesmo plano: mas não deixa de ser ver
dade que nenhuma delas permite explicar a especificidade do modernismo, o imperativo do
Novo e a tradição da ruptura. Porquê uma multiplicação tão próxima de grupos e estilos que se
excluem mutuamente? Porquê esta casca ta de interrupções e de iconoclasmos? Nem o triunfo
da técnica nem os seus valores concomitantes bastam para explicar a cadeia de rupturas que
carac teriza a arte moderna, a emergência de uma ordem estética que desafia as regras da
percepção e da comunicação. Acontece aqui como com as teorias científicas: as mutações não
se impõem inelutavelmente, novos factos podem ser interpretados na ordem dos sistemas
estabelecidos, mediante a introdu ção de parâmetros suplementares. O universo da velocidade
podia fornecer novos temas — o que, aliás, não deixou de fazer —, não exigia obras acro
nológicas, fragmentadas, abstractas, pulverizadoras do sentido, e menos ain da a necessidade
de levar cada vez mais longe as derrogações e experimenta ções. A análise sociológica encontra
aqui o seu limite: como ver na arte mo derna o efeito das transformações científicas e técnicas
quando a arte que se forma recusa toda a estabilização, nega imediatamente o que instaurou e
produz obras tanto figurativas como abstractas, oníricas e funcionalistas, ex pressionistas ou
geométricas, formalistas e «anartistas» (Duchamp): no mo mento em que a arte se torna
cosmopolita, já não há unidade, coexistem ne la as tendências mais resolutamente adversas.
Não é partindo da unidade científica e técnica do mundo industrial que se poderá elucidar a
multidirec cionalidade da arte moderna.
O modernismo só pôde surgir veiculado por uma lógica social e ideológi ca tão flexível que
permite produzir contrastes, divergências e antinomias. Já o sugerimos, trata-se da revolução
56
individualista através da qual, pela pri meira vez na história, o ser individual, igual a qualquer
outro, é percebido e se percebe como fim último, se concebe isoladamente e conquista o
direito à livre disposição de si próprio, que constitui o fermento do modernismo. Toc
J. ElIul, op. cit., p. 83.
2 p• Francastel, Peinture et soci 1dées/Art» Gailimard, 1965, 3. parte. Ver tb. Art e!
Technique, sobretudo pp. 170-179 e 210-216.
88
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
89
quevilie já o mostrara, o indivíduo fechado sobre si próprio e considerando- se à parte quebra a
cadeia das gerações, o passado e a tradição perdem o seu prestígio: o indivíduo que se
reconhece como livre já não se encontra adstrito à veneração dos antepassados que limitam o
seu direito absoluto a ser ele próprio, o culto da inovação e do actual é estritamente
correlativo desta desqualificação individualista do passado. Toda a Escola que constitua uma
autoridade definitiva, toda a sedimentação estilística, toda a fixação es tá destinada a ser
criticada e superada a partir do momento em que prevale ce o ideal da autonomia pessoal: a
desvalorização dos estilos reinantes, a propensão dos artistas a mudarem de «maneira», a
multiplicação dos gru pos, são inseparáveis de uma cultura do indivíduo livre, pura actividade or
ganizadora cujo ideal é criar sem Mestre e escapar ao estatismo, ao estacio namento
repetitivo. O código do Novo é precisamente o instrumento de que a sociedade individualista se
dotou para esconjurar o sedentarismo, a repeti ção, a unidade, a fidelidade aos Mestres e a si
próprio e tudo isto com vista a uma cultura livre, cinética e plural.
A inovação modernista tem de particular o facto de se aliar ao escândalo e à ruptura; surgem
assim obras em contradição com a harmonia e o senti do, divorciadas da nossa experiência
familiar do espaço e da linguagem. Nu ma sociedade assente no valor insubstituível, último, de
cada unidade huma na, a arte organiza figuras deslocadas, abstractas, herméticas; surge como
inumana. Este paradoxo reside precisamente na nossa representação do in divíduo, que «é
quase sagrado, absoluto; não há nada acima das suas exi-’ gências legítimas; os seus direitos
não são limitados senão pelos direitos idênticos dos outros indivíduos» Os modernos
inventaram a ideia de uma liberdade sem fronteiras, que permite explicar o que nos separa do
humanis mo clássico. O Renascimento considerava que o homem se deslocava num universo
imutável e geométrico dotado de atributos permanentes. O mundo exterior, mesmo infinito e
aberto à acção, obedecia, no entanto, a leis fixas, e eternas que o homem só podia registar
Com os modernos, a ideia de um real que impõe as suas leis mostra-se incompatível com o valor
da mónada individual ontologicamente livre. Desafio às leis, ao real, ao sentido, a liber dade
entre os modernos não podia admitir limites ao seu exercício; manifes
ta-se por um processo hiperbólico de negação das regras heterónomas e correlativamente por
uma criação autónoma, decretando as suas próprias leis. Tudo o que se estabelece numa
independência intocável, tudo o que implica uma submissão a priori não pode resistir a prazo ao
trabalho da au tonomia individual. «Quis estabelecer o direito de ousar tudo», dizia Gau guin: a
liberdade já não é adaptação ou variação da tradição, exige a ruptu ra e a insubmissão, a
destruição das leis e significações herdadas, uma cria ção soberana, uma invenção sem modelo.
Do mesmo modo que o homem moderno conquistou o direito de dispor livremente de si próprio
57
na sua vida privada, de deliberar sobre a natureza do poder e da lei, assim conquista também o
poder demiúrgico de organizar as formas livremente, seguindo as leis internas à própria obra,
para além dos dados pré-existentes: «criar tor nar-se-á uma operação consciente»
(Kandisnky). Uma sociedade a inventar, uma vida privada a administrar, uma cultura a criar e a
desestabilizar, o modernismo não pode ser apreendido independentemente do indivíduo livre e
origem de si próprio. Foi a fractura da organização «holista», a inversão da relação do indivíduo
com o conjunto social, em benefício do ser individual apreendido como livre e semelhante aos
outros, que permitiu o aparecimen to de uma arte desligada das imposições ópticas e
linguísticas, desligada dos códigos da representação, da intriga, da verosimilhança e da
consonância.
Sem dúvida, a liberdade exigiu condições económicas e sociais que per mitissem aos artistas
libertarem-se da tutela financeira e estética em que os mantinham a Igreja e a aristrocracia
desde a Idade Média e do Renascimen to. O instrumento desta libertação foi, como sabemos, a
instituição de um mercado artístico: à medida que os artistas se dirigiam a um público mais
extenso e diversificado, à medida que a «clientela» se alargava, que as obras entravam no ciclo
da mercadoria mediatizada por instituições específicas de difusão e promoção culturais
(teatros, casas editoras, academias, salões, críticos de arte, galerias, exposições, etc.), a
criação artística podia emanci par-se do sistema do mecenato, dos critérios exteriores a si
própria e afirmar
1 Nestas condições, a obra e o projecto de Sade representariam uma primeira manifestação
exemplar do modernismo: «O que ele (Sade) procurou foi a soberania através do espírito de ne
gação levado ao seu ponto extremo. Nesta negação serviu-se ele alternadamente dos homens,
de Deus, da natureza, para a pôr à prova». Cf. M. Blanchot, Lautréamont et Sade, Ed. de
Minuit, 1963, p. 42.
1 L. Dumont, Homo hierarchicus, Gallimard, 1966, p. 17.
2 p• Francastel, Peinture ei sociÓté.
90
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
91
cada vez mais abertamente a sua soberana autonomia Por crucial que seja, esta base material
da arte moderna não autoriza um determinismo que ocul te a força intrínseca da significação
imaginária da liberdade, sem a qual o modernismo é inconcebível. A actividade artística
inscreve-se num movimen to social global e os artistas estão envolvidos por sistemas de valores
que ex cedem a esfera artística: impossível compreender a insurreição artística inde
pendentemente desses valores que estruturam e orientam o fazer dos indiví duos e dos grupos.
A existência de um mercado literário e artístico não pode explicar por si só a raiva
experimental e desconstrutora dos artistas: o mer cado tornava possível a criação livre, não a
tornava imperativa; tornava ca ducos os critérios aristocráticos, não produzia em si próprio o
valor, a exi gência da inovação sem fim. Porque é que um outro estilo não se substituiu ao
antigo? Porquê esta valorização do Novo, esta explosão de movimentos? Como se sabe, a lógica
do mercado pode muito bem levar a um novo confor mismo (a produção cinematográfica, a
música de variedades, por exemplo):
58
continua por explicar porque é que os artistas, uma vez desligados do mece nato, entraram em
oposição com os critérios do público, aceitaram a miséria e a incompreensão em nome da Arte.
Para que chegasse a vez da paixão modernista do Novo, era preciso que existissem novos
valores que os artistas não inventaram, mas tiveram «à sua disposição», em resultado da
organiza ção do todo colectivo, valores enraizados na preeminência concedida ao in divíduo em
relação à colectividade e cujo efeito maior será o de desvalorizar o instituído, o princípio do
modelo, seja ele qual for. Ideologia individualista que não se pode reduzir à «concorrência pela
legitimidade cultural»: não são nem a vontade de originalidade, nem a obrigação de se distinguir
que expli cam as grandes rupturas modernistas, mesmo que seja verdade que, a partir de um
certo momento, a criação se volve em competição tendo em vista ape nas a diferença
estatutária. A ideologia individualista teve um efeito incom paravelmente mais profundo do que
a luta pelo reconhecimento artístico; foi ela a força histórica que desvalorizou a tradição e as
formas da heteronomia, que desqualificou o princípio da imitação, que obrigou a uma
prospecção in cessante, à invenção de combinações em ruptura com a experiência imedia
Modernismo e cultura aberta
Não obstante a ausência de unidade e o sincretismo da arte moderna, destaca-se nela uma
tendência bastante forte, a que D. Bell chama o «eclip se da distância» (pp. 117-127), processo
inédito que recobre a nova estrutu ra, a nova finalidade e a nova recepção das obras. Nas artes
plásticas, o eclipse da distância corresponde à destruição do espaço cenográfico euclidia no,
profundo e homogéneo, constituído por planos seleccionados, por um conteúdo e um continente
frente a um espectador imóvel, mantido a uma certa distância. «Doravante colocaremos o
espectador no centro do quadro», declaravam os Futuristas; nas obras modernas, já não se
contempla um ob jecto afastado, o observador está no próprio interior do espaço e numerosos
pintores aplicar-se-ão a elaborar espaços abertos, curvos ou «poli-sen soriais» nos quais é
mergulhado aquele que olha. Na literatura, a mesma dissipação do ponto de vista único e
estático: o Livro em Malarmé, o Ulisses de Joyce, o romance dos anos vinte já não é dominado
pelo olhar omniscien te e exterior de um autor que possui por inteiro a alma das suas persona
gens, a continuidade da narrativa quebra-se, o fantasma e o real entremistu ram-se, a
«história» conta-se por si própria ao sabor das impressões subjecti vas e aventurosas das
personagens.
A consequência deste abalo da cena representativa, é o «eclipse da dis tância» entre a obra e o
espectador, ou seja o desaparecimento da contem plação estética e da interpretação
reflectida em proveito da «sensação, simul taneidade, carácter imediato e impacto» (p. 119),
que são os grandes valores do modernismo. Impacto de uma música directa, violenta, impelindo
ao mo vimento e à contorsão das ancas (swing, rock). Impacto também da imagem gigante na
câmara escura do cinema. Imediato dos romances de V. Woolf,
É o homo clausus, dessocializado, desligado do princípio imperioso de seguir as prescri ções
colectivas, existindo para si próprio e igual aos outros, que «trabalha» ou «desconstrói» as
formas, e não o processo primário ou a energia do desejo. Acerca da interpretação «libidinal»
do modernismo, J.-Fr. Lyotard, Discours/Figure, Klinckisieck, 1971, e Dérive a partir de Marx
et Freud, UGE, col. «10/18», 1973.
ta. A arte moderna enraíza-se no trabalho convergente destes valores indivi dualistas que são
a liberdade, a igualdade, a revolução
1 P. Bourdieu, «Champ intellectuel et projet créateur», Les Temps Modernes, n.° 246,
59
1966.
2 p• Francastel, op. cit. p. 195-212.
1
92
Guies Lipovetsky
Proust, Joyce, Faulkner, em busca da autenticidade das consciências liberta das das
convenções sociais e entregues a uma realidade ela própria instável, fragmentária e
contingente. Simultaneísmo dos Cubistas ou de Apollinaire. Culto da sensação e da emoção
directa nos Surrealistas que recusam uma poesia puramente formal e encaram a beleza
«exclusivamente com fins pas sionais» (Breton). As pesquisas dos modernos tiveram como fim e
efeito mer gulhar o espectador num universo de sensações, de tensões e de desorienta ção;
assim opera o eclipse da distância, assim surge uma cultura à base de dramatização, de emoção
e de estimulação constantes, O que leva D. BelI a declarar: «A cultura modernista insiste na
modalidade anti-intelectual e nas faculdades anti-cognitivas que aspiram a redescobrir as
fontes instintuais da expressão» (p. 94).
Sem dúvida, podemos considerar o eclipse da distância como um dos al vos da arte moderna, na
condição de não ocultarmos assim o seu efeito estri tamente inverso, o seu carácter
hermético, « intelectualista», « intransigente», como dizia Adorno. E excessivamente
simplificador tomar apenas em consi deração as intenções dos artistas; igualmente
significativo é o acolhimento dessas obras que, hoje como ontem, perturbam profundamente o
processo de comunicação e deixam o público pelo menos perplexo. Como falar de eclipse da
distância acerca de obras cujas construções insólitas, abstractas ou deslocadas, dissonantes
ou minimais, provocam o escândalo, confundem a evidência da comunicação, desordenam a
ordem reconhecível da continui dade espacio-temporal e levam por isso o espectador menos a
receber emo cionalmente a obra do que a interrogá-la de modo crítico. O que Brecht quis
realizar de um ponto de vista político e didáctico no seu teatro épico, a pin tura, a literatura, a
música haviam-no já cumprido sem preocupação mate rialista e pedagógica. Neste ponto, é
preciso dar razão a Brecht; toda a arte moderna, devido às suas produções experimentais, se
baseia no efeito de dis tanciação e provoca espanto, suspeição ou recusa, interrogação sobre
as fi nalidades da obra e da própria arte: o que é uma obra, o que é pintar, por quê escrever?
«Existirá algo como as Letras?», pergunta-se Mallarmé. A arte moderna, longe de remeter
para uma estética da sensação bruta, é insepará vel de uma busca originária, de uma
investigação que incide sobre os crité rios, as funções, os constituintes últimos da criação
artística, o que tem por consequência uma abertura permanente das fronteiras da arte. E por
isso que manifestos, escritos, panfletos, prefácios de catálogos se tornarão tão frequentes a
partir do início do século XX; até então os artistas contentaA Era do Vazio
93
vam-se com escrever romances e pintar quadros, doravante explicam ao pú blico a significação
do seu trabalho, tornam-se teóricos das suas práticas. A arte que tem por objectivo a
espontaneidade e o impacto imediato é parado xalmente acompanhada de uma excrescência
discursiva. Não se trata de uma contradição, mas do aspecto correlativo estrito de uma arte
60
individua lista designada de toda a convenção estética e exigindo por isso o equivalente de uma
grelha de leitura, de um suplemento-modo de emprego.
Cultura modernista, cultura individualista, tal não autoriza a assimilar a obra a uma confissão
pessoal; o modernismo «recompõe a realidade ou reti ra-se para o interior do eu cuja
experiência pessoal se torna a fonte da inspi ração e das preocupações estéticas» (p. 119). A
obra moderna não procura rá, pelo contrário, tudo aquilo que rompe com a experiência
subjectiva e vo luntária, com a percepção e as significações convencionais? Experimentação que
repousa na superação dos limites do eu, na exploração do que excede o intencional e o
deliberado, a arte moderna está obcecada pelo olhar e pelo espírito em estado selvagem
(escrita automática, dripping, cut up). Promo ção do insólito, valorização do não-concertado e
do irracional, o trabalho de mocrático da igualdade prossegue a sua obra de integração e de
reconheci mento universal, mas já sob uma forma aberta, fluida, «solúvel», dizia Bre ton. A
cultura modernista, universalista no seu projecto, é ao mesmo tempo regida por um processo
de personalização, ou, por outras palavras, por uma tendência para reduzir ou abolir a
estereotipia do Eu, do real e da lógica, por uma tendência para dissolver o mundo das
antinomias, as do objectivo e do subjectivo, do real e do imaginário, da vigília e do sonho, do
belo e do feio, da razão e da loucura, e tudo isto para emancipar o espírito, escapar às
imposições e tabús, libertar a imaginação, reapaixonar a existência e a criação. Longe de um
retraimento no interior do Eu, trata-se de um intento revolucionário dirigido contra as
barreiras e distinções tirânicas da «vida dos cães», uma vontade de personalizar radicalmente
o indivíduo, de fazer nas cer um homem novo, de lhe abrir a vida verdadeira. O processo de
persona lização cuja obra consiste em tornar fluida a rigidez e em afirmar a idiosin crasia do
indivíduo manifesta-se aqui na sua fase inaugural revolucionária.
Mesmo o romance que surge no início deste século não pode ser interpre tado como tradução
literal da intimidade e ainda menos como reflexo bruto do solipsismo psicológico. Michel
Zéraffa mostrou-o: a novidade romanesca dos anos vinte, «de dominante subjectiva», não é a
confidência de um eu, é a consequência da nova significação social-histórica do indivíduo cuja
existên
94
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
95
cia é identificada com a fugacidade e a contradição das experiências imedia tas Os romances
do stream não foram possíveis senão em função desta concepção do indivíduo que privilegia «o
espasmódico, o obscuro, o frag mentário, o falhado» (V. Woolf). Atenção, não foi nem uma
observação psi cológica mais fina, nem a esclerose das convenções burguesas, nem a desu
manização do mundo industrial e urbano que pôde conduzir a esta nova in terpretação da
pessoa; sem dúvida, tais factores desempenharam um papel de catalizadores, mas se a
espontaneidade, as impressões fortuitas, a auten ticidade se tornaram valores artísticos e
íntimos, foi muito mais em razão da ideologia do indivíduo autónomo e não social. Como é que o
homem reco nhecido como ontologicamente livre poderia a prazo escapar a uma apreen são
informal, indecisa, fluida? Como poderia eliminar-se a significação ins tável e dispersa do
sujeito, essa manifestação existencial e estética da liber dade? Um indivíduo livre a prazo é
móvel, sem contornos definíveis; a sua existência está votada à indeterminação e à
contradição. Para mais, a igual dade sapa a hierarquia das faculdades e dos acontecimentos,
61
dignifica cada instante, legitima cada impressão; o indivíduo pode surgir, por isso, sob um
aspecto personalizado ou, por outras palavras, fragmentário, descontínuo, incoerente. O
romance em V. Woolf, Joyce, Proust, Faulkner não apresenta já personagens retratadas,
etiquetadas dominadas pelo romancista; doravan te, são menos explicadas do que entregues nas
suas reacções espontâneas; os contornos rígidos do romanesco dissolvem-se, o discursivo dá
lugar ao asso ciativo, a descrição objectiva à interpretação relativista e cambiante, a conti
nuidade às rupturas brutais de sequência. Liquefacção dos pontos de refe rência fixos e das
oposições exterioridade-interioridade, pontos de vista múl tiplos e por vezes indecidíveis
(Pirandello), espaços sem limite nem centro, a obra moderna, literária ou plástica é aberta. O
romance já não tem verda deiramente começo nem fim, a personagem é «inacabada» na esteira
de um interior de Matisse ou de um rosto de Modigliani. A obra inacabada é a própria
manifestação do processo desestabilizador de personalização, que substitui a organização
hierarquizada, contínua, discursiva, das obras clássi cas, por construções instáveis de escala
variável, indeterminadas pela ausên cia de pontos de referência absolutos, estranhas às
coacções da cronologia.
Pela sua busca incansável de novos materiais, de novos arranjos de sig nos sonoros ou visuais, o
modernismo destrói todas as regras e convenções
estilísticas; o resultado são obras desestandardizadas, personalizadas, no sentido em que a
«comunicação» é cada vez mais independente de toda a es tética codificada, seja esta musical,
linguística ou óptica. O modernismo personaliza a comunicação artística mais do que a destrói,
confecciona «mensagens» improváveis onde até o próprio código é singular. A expressão
elabora-se sem código pré-estabelecido, sem linguagem comum, de acordo com a lógica de um
tempo individualista e livre. Ao mesmo tempo, o humor ou a ironia tornam-se valores essenciais
de uma arte soberana que já nada tem a respeitar e que, a partir daí, se abre a prazer do
desvio lúdico. «O hu mor e o riso — não necessariamente a derrisão depreciativa — são os meus
utensílios predilectos» (Duchamp); o deslastrar dos códigos acompanha-se de uma descrispação
do sentido, de uma personalização fantasista, último grau da liberdade artística e da
dessublimação das obras. A distensão humorísti ca, elemento decisivo da obra aberta. Mesmo
os artistas que se vão empe nhar em afirmar que o sentido é inútil, que nada há a dizer para
além desta vacuidade, continuarão a exprimir-se na tonalidade ligeira do humor (Bec kett,
lonesco). A arte moderna não esvazia a função de comunicação, perso naliza-a dessocializando
as obras, criando códigos e mensagens por medida, pulverizando o público doravante
disseminado, instável e circunscrito, con fundindo no humor a divisão do sentido e do nãosentido, da criação e do jogo.
A própria recepção das obras se personaliza, torna-se uma experiência estética «não
amarrada» (Kandinsky), polivalente e fluida. Com a arte mo derna, já não há espectador
privilegiado, a obra plástica deixa de ter que ser contemplada de um ponto de vista
determinado, o observador dinamizou-se, é um ponto de referência móvel. A percepção
estática exige de quem olha um percurso, uma deslocação imaginária ou real através da qual a
obra é recomposta em função das referências e associações próprias do observador.
Indeterminada, modificável, a obra moderna instaura assim uma primeira forma de
participação sistemática, o observador é «chamado de certo modo a colaborar na obra do
criador», torna-se o seu «co-criador» A arte moder na é aberta, requer a intervenção
manipuladora do utente, as ressonâncias mentais do leitor ou do espectador, a actividade
combinatória e aleatória do intérprete musical. Esta participação real ou imaginária, doravante
62
constitu 1 Liliane Brion-Guerry, «L’évo!ution des formes structurales dans I’architecture des
anées
1910-1914», inLanée 1913, Klincksieck, 1971, t. 1, p. 42.
Cf. M. Zéraffa, La R romanesque, UGE, coil. 10/18», cap. II.
,
96
Guies Lipovetsky
tiva da obra, ligar-se-á, como pensa Umberto Eco, ao facto de a ambiguida de, a
indeterminação, a equivocidade, se terem transformado em valores, em novas finalidades
estéticas? «E preciso evitar que uma interpretação unívoca se imponha ao leitor», escreve U.
Eco se todas as obras de arte se prestam a uma multiplicidade de interpretações, só a obra
moderna seria construída intencionalmente tendo em vista signos não unívocos, só ela buscaria
expres samente o vago, o fluido, a sugestão, a ambiguidade. Estará, de facto, aqui o essencial?
Na realidade, a indeterminação é mais um resultado do que uma finalidade deliberada, a
ambiguidade moderna é efeito dessas novas problemáticas artísticas que são a adopção de
vários pontos de vista, a emancipação do «peso inútil do objecto» (Malevitch), a valorização do
arbi trário, do fortuito e do automatismo, do humor e dos trocadilhos, a recusa das separações
clássicas, as da arte e da vida, da prosa e da poesia, do mau gosto e do bom gosto, do jogo e da
criação, do objecto habitual e da arte. O modernismo liberta o espectador ou o leitor da
«sugestão dirigida» das obras anteriores porque essencialmente dissolve os pontos de
referência da arte, explora todas as possibilidades, faz ir pelos ares todas as convenções, sem
experimentar quaisquer limites a priori. A estética «não directiva» aparece com esta explosão,
com a desterritorialização moderna. A obra é aberta por que o próprio modernismo é abertura,
ou seja destruição dos enquadramen tos e critérios anteriores, e conquista de espaços cada
vez mais inauditos.
Corrosão das antinomias, liquefacção dos quadros do romanesco, comu nicação de código
flexível ou sem código, participação activa dos espectado res, o modernismo obedece já a um
processo de personalização num tempo em que noutros aspectos a lógica social dominante
continua a ser discipli nar. A arte moderna tem de decisivo o facto de inaugurar na febre
revolu cionária, na charneira do nosso século, um tipo de cultura cuja lógica vence rá mais
tarde, quando o consumo, a educação, a distribuição, a informação deslizarem no sentido de
uma organização à base de participação, solicita ção, subjectivização, comunicação. D. BelI viu
o carácter antecipador da cultura modernista; não viu que o essencial não estava no
aparecimento dos conteúdos hedonistas, mas na emergência de uma forma social inédita, o
processo de personalização, que não parará de conquistar novas esferas a ponto de se tornar a
característica fundamental das sociedades presentes e por vir, sociedades personalizadas,
móveis e flutuantes. A arte modernista:
A Era do Vazio
97
primeiro dispositivo desestabilizado e personalizado, protótipo da Open So ciety, com a
diferença de que a vanguarda obedecia ao mesmo tempo a uma lógica hot ou revolucionária,
enquanto que o processo de personalização que anexará a vida social e individual minará a
63
paixão revolucionária e estabele cer-se-á no registo cool programado. Nestas condições, é
preciso rever o cre do caro aos anos sessenta: a arte moderna não é o Outro do universo do
consumo dirigido. Revolucionária, a lógica profunda do modernismo não deixa por isso de ser
isomorfa da da sociedade pós-moderna, participativa, fluida, narcísica.
A personalização da esfera artística realizada pelos artistas de vanguarda não é sem analogia
com o trabalho desse outro movimento de vanguarda, teórico, que é a psicanálise. Arte
moderna e psicanálise: na aurora do sécu lo XX, a cultura conhece o mesmo processo de
personalização montando dispositivos abertos. Com a regra do «dizer tudo» e das associações
livres com o silêncio do analista e a transferência, a relação clínica liberaliza-se e introduz-se
na órbita flexível da personalização. A análise torna-se «intermi nável» de acordo com a
representação moderna do indivíduo, valor último; o diagnóstico dirigista dá lugar à atenção
igualmente flutuante, já não há na da a excluir, a hierarquia das significações desmorona-se,
toda a representa ção faz sentido, incluindo e sobretudo o sem sentido. Do mesmo modo que na
arte moderna a essência e o anedótico são identicamente tratados e todos os temas se tornam
legítimos, assim todas as escórias humanas se vêem re cicladas na dimensão antropológica, tudo
fala, o sentido e o não-sentido dei xam de ser antinómicos e hierarquizados de acordo com o
trabalho da igual dade. Peças constitutivas da cultura moderna, o Inconsciente e o Recalca
mento são vectores de personalização, de erosão das divisões da nossa repre sentação
antropológica: o sonho, o lapso, a neurose, o acto falhado, o fan tasma já não relevam de
esferas separadas, unificam-se de certo modo sob a égide das «formações do inconsciente»,
que exigem uma interpretação na «primeira pessoa», baseada nas associações próprias do
sujeito. Sem dúvida, a criança, o selvagem, a mulher, o perverso, o louco, o neurótico conservam
uma especificidade, mas os territórios perdem a sua heterogeneidade sob o impulso de uma
problemática que reconhece a omnipotência da arqueologia do desejo, do recalcamento e do
processo primário. A psicanálise personali zou a representação do indivíduo desestabilizando as
oposições rígidas da psicologia ou da nosografia, reintegrando no circuito antropológico os des
U. Eco, L’Oeuvre ouverte, Êd. du Seuil, 1965, p. 22
II
98
Gil/es Lipovetsky
perdícios da razão, largando os pontos de referência e os fundamentos da verdade.
Vanguarda artística, vanguarda analítica; o mesmo processo de persona lização surge num e
noutro caso, é certo que acompanhado por um processo discordante, hierárquico e duro,
revelando os laços que ainda unem a cultu ra aberta ao mundo disciplinar e autoritário
circundante. Por um lado, os artistas de vanguarda destacam-se como batalhões de élite
aniquilando toda a tradição, arrastando a história da arte de revolução em revolução; por ou
tro, a psicanálise reinscreve a sua prática num ritual estrito, assente na dis tância entre o
analista e o analisado. O que é mais, a psicanálise institucio naliza-se numa Associação
Internacional, com um mestre incontestado à ca beça, exigindo a fidelidade a Freud e a
obediência aos dogmas, eliminando os traidores e heréticos, trabalhando na conquista de
adeptos. As vanguar das artísticas e psicanalíticas são formações de compromisso entre o
mundo personalizado e o mundo disciplinar, tudo se passa como se o advento de uma lógica
64
aberta, desembocando no indivíduo singular, só tivesse podido surgir enquadrada pela lógica
adversa, hierárquica e coerciva, que continua va a prevalecer no todo social.
Consumo e hedonismo: rumo ó sociedade pós-moderna
A grande fase do modernismo, a que viu florescer os escândalos da van guarda, terminou. Hoje,
a vanguarda perdeu a sua virtude provocadora, já não há tensão entre os artistas inovadores e
o público, porque já ninguém defende a ordem e a tradição. A massa cultural institucionalizou a
revolta modernista, «no domínio artístico, são raros os que se opõem a uma liberda de total, a
experiências ilimitadas, a uma sensibilidade desenfreada, ao pri mado do instinto sobre a
ordem, à imaginação que recusa as críticas da ra zão» (p. 63). Transformação do público que se
liga ao facto de o hedonismo, que era na viragem do século apanágio de um número reduzido de
artistas antiburgueses, se ter tornado, apoiado no consumo de massa, o valor central da nossa
cultura: «A mentalidade liberal que hoje prevalece toma como ideal cultural o movimento
modernista cuja linha ideológica conduz à busca do impulso como modo de comportamento» (p.
32). E então que se entra na cultura pós-moderna, designando esta categoria para D. BelI o
momento em que a vanguarda já não suscita indignação, em que as pesquisas inovadoras são
legítimas, em que o prazer e a estimulação dos sentidos se tornam os va
A Era do Vazio
99
lores dominantes da vida corrente. Neste sentido, o pós-modernismo aparece como a
democratização do hedonismo, a consagração generalizada do Novo, o triunfo da «anti-moral e
do anti-institucionalismo» (p. 63), o fim do divór cio entre os valores da esfera artística e os
valores do quotidiano.
Mas pós-modernismo significa igualmente a instauração de uma cultura extremista que leva «a
lógica do modernismo até aos seus limites extremos» (p. 61). E no decurso dos anos sessenta
que o pós-modernismo revela as suas características maiores com o seu radicalismo cultural e
político, o seu hedo nismo exacerbado; revolta estudantil, contra-cultura, voga de inar e do
LSD, libertação sexual, mas também filmes e publicações porno-pop, ex asperação da violência
e da crueldade nos espectáculos: a cultura comum ac tualiza-se em termos de libertação, de
prazer e de sexo. Cultura de massa hedonista e psicadélica que só aparentemente é
revolucionária, «na realida de, era simplesmente uma extensão do hedonismo dos anos
cinquenta e uma democratização da libertinagem que havia muito tempo praticavam certas
fracções da alta sociedade» (p. 84). Deste ponto de vista, os sixties assinalam «um começo e
um fim» (p. 64). Fim do modernismo: os anos sessenta são a última manifestação da ofensiva
lançada contra os valores puritanos e utili taristas, o último movimento de revolta cultural,
desta feita de massas. Mas também, começo de uma cultura pós-moderna, quer dizer sem
inovação nem audácia verdadeiras, contentando-se com democratizar a lógica hedo nista, com
radicalizar a tendência para privilegiar «as inclinações mais bai xas em lugar das mais nobres»
(p. 130). Como se terá já tornado claro, é uma repulsa neo-puritana que orienta a radioscopia do
pós-modernismo.
A despeito deste limite evidente e desta fraqueza, D. BelI põe a tónica no essencial ao
reconhecer no hedonismo e no consumo que é o seu vector o epicentro do modernismo e do pósmodernismo. Para caracterizar a socieda de e o indivíduo moderno, não há referência mais
decisiva do que o consu mo: «A verdadeira revolução da sociedade moderna sobrevém no
65
decurso dos anos vinte quando a produção de massa e um consumo muito forte começa ram a
transformar a vida da classe média» (p. 84). Que resolução? Para D. BeIl, esta indentifica-se
com o hedonismo, com uma revolução dos valo res que põe estruturalmente em crise a unidade
da sociedade burguesa. Po demos perguntar-nos, todavia, se a obra histórica do consumo não é
de al gum modo minimizada por uma problemática que a assimila a uma revolu ção ideológica, a
conteúdos culturais em ruptura. A revolução do consumo, que só instaurará plenamente o seu
regime a seguir à Segunda Guerra Mun
100
Guies Lipovetsky
dia!, é, com efeito e na nossa opinião, de um alcance mais profundo: reside essencialmente na
realização definitiva da meta secular das sociedades mo dernas, a saber o controlo total da
sociedade e, por outro lado, a libertação crescente da esfera privada, abandonada doravante
ao self-servive generali zado à velocidade da moda, à flutuação dos princípios, papéis e
estatutos. Absorvendo o indivíduo na corrida pelo nível de vida, legitimando a sua bus ca da
auto-realização, assediando-o de imagens, de informações, de cultura, a sociedade do bemestar gerou uma atomização e uma dessocialização radi cal, sem medida comum com a accionada
pela escolarização obrigatória, o recrutamento militar, a urbanização e a industrialização do
século XIX. A era do consumo não só desqualificou a ética protestante, como liquidou o valor e
a existência de costumes e tradições, produziu uma cultura nacional e efectivamente
internacional com base na solicitação das necessidades e das informações, arrancou o indivíduo
ao local e, mais ainda, à estabiliade da vida quotidiana, ao estatismo imemorial das relações,
com os objectos, com os outros, com o corpo e consigo próprio. É a revolução do quotidiano que
ganha corpo, após as revoluções económicas e políticas dos sécios XVIII e XIX, após a
revolução artística na charneira do século actual. O homem moderno encontra-se doravante
aberto às novidades, apto a mudar sem re sistência de modo de vida, tornou-se cinético: «O
consumo de massa signifi cava que se aceitava, no importante domínio do modo de vida, a ideia
de mudança social e de transformação pessoal» (p. 76). Com o universo dos ob jectos, da
publicidade, dos media, a vida quotidiana e o indivíduo já não têm peso próprio, anexados como
se encontram pelo processo da moda e da obsolescência acelerada: a realização definitiva do
indivíduo coincide com a sua dessubstancialização, com a emergência de átomos flutuantes
esvaziados pela circulação dos modelos e por isso continuamente recicláveis. Cai assim o último
pano de muralha que escapava ainda à penetração burocrática, à gestão científica e técnica dos
comportamentos, ao controlo dos poderes mo dernos que por toda a parte abolem as formas
tradicionais de sociabilidade e se aplicam a produzir-organizar aquilo que deve ser a vida dos
grupos e in divíduos, até nos seus desejos e intimidades. Controlo flexível, não mecânico ou
totalitário; o consumo é um processo que funciona por sedução, os indiví duos adoptam sem
dúvida os objectos, as modas, as fórmulas dos tempos livres elaboradas pelas organizações
especializadas, mas a seu gosto, aceitan do isto e não aquilo, combinando livremente os
elementos programados. A administração generalizada do quotidiano não deve fazer esquecer a
sua face
/
A Era do Vazio
correlativa, a constituição de uma esfera privada cada vez mais personaliza da e independente;
a era do consumo inscreve-se no vasto dispositivo moder no da emancipação do indivíduo, por
66
um lado, e da regulação total e mi croscópica do social, por outro A lógica acelerada dos
objectos e mensa gens leva ao seu ponto culminante a auto-determinação dos homens na sua
vida privada enquanto que, simultaneamente, a sociedade perde a sua espes sura autónoma
anterior, tornada cada vez mais objecto de uma programação burocrática generalizada: à
medida que o quotidiano é elaborado integral mente por planeadores e engenheiros, o leque das
escolhas dos indivíduos aumenta — tal é o efeito paradoxal da época do consumo.
Consumo de massa: a despeito da sua incontestável verdade, a fórmula não é isenta de
ambiguidade. Sem dúvida, o acesso de todos ao automóvel ou à televisão, ao blue-jean e à cocacola, as migrações sincronizadas do week-end ou do mês de Agosto designam uma
uniformização dos comporta mentos. Mas esquecemo-nos demasiadas vezes de considerar a
face comple mentar e inversa do fenómeno: a acentuação das singularidades, a personali zação
sem precedente dos indivíduos. A oferta em abismo do consumo des multiplica as referências e
modelos, destrói as fórmulas imperativas, exacer ba o desejo do indivíduo de ser plenamente
ele próprio e de gozar da vida, transforma cada um num operador permanente de selecção e de
combinação livre, é um vector de diferenciação dos seres. Diversificação extrema das
condutas e gostos, amplificada ainda pela «revolução sexual», pela dissolu ção das
compartimentações sócio-antropológicas do sexo e da idade. A era do consumo tende a reduzir
as diferenças desde sempre instituídas entre os sexos e as gerações e isso em proveito de uma
hiperdiferenciação dos com portamentos individuais hoje libertados dos papéis e convenções
rígidas. Aqui poderia surgir a objecção da revolta das mulheres, da «crise de gera ções», da
cultura rock e pop, do drama das terceira e quarta idades, convi dando todos estes problemas
a pensar o nosso tempo sob o signo da exclu são, de um fosso cada vez mais acentuado entre os
diversos grupos. Os so ciólogos não têm, de resto, qualquer dificuldade, apoiando-se nas
estatísti cas, em demonstrarem empiricamente estas distâncias: porém, dessa manei ra,
perdemos de vista o mais interessante, o processo de meeting p0 o apa 1 Do mesmo modo, a
autonomia pessoal caminhou a par do aumento do papel do Estado
moderno, Cf. Marcel Gauchet, «Les droits de L’homme ne sont pas une politique», Le Débat, n’o
3, 1980. pp. 16-21.
102
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
103
gamento progressivo das grandes entidades e indentidades sociais em beneft cio não da
homogeneidade dos seres, mas de uma diversificação atomística incomparável. O masculino e o
feminino confundem-se, perdem as suas níti das características de outrora; a
homossexualidade de massa de hoje começa a já não ser considerada como uma perversão,
todas as sexualidades, ou per to disso, são admitidas e formam combinações inéditas; o
comportamento dos jovens e dos menos jovens tende a aproximar-se e, em poucas décadas, os
últimos reciclaram-se, com uma velocidade surpreendente, no culto da ju ventude, na época psi,
na educação permissiva, no divórcio, no vestuário descontraído ,nos seios nus, nos jogos e
desportos, na ética hedonista. Sem dúvida, os múltiplos movimentos de reivindicação animados
pelos ideais de igualdade contribuíram para esta desestabilização, mas foi muita mais a
profusão dos objectos e a estimulação das necessidades, os valores hedonis tas e permissivos
juntamente com as técnicas da contracepção, em suma o processo de personalização que
permitiu esta diluição dos pontos de referên cia sociais, a legitimação de todos os modos de
67
vida, a conquista da identi dade pessoal, o direito do indivíduo a ser abolutamente ele próprio, o
apetite da personalidade até ao seu desfecho narcísico.
Numa sociedade em que mesmo o corpo, o equilíbrio pessoal, o tempo livre são solicitados pela
plétora dos modelos, o indivíduo é obrigado perma nentemente a escolher, a tomar iniciativas, a
informar-se, a criticar a quali dade dos produtos, a auscultar-se e a testar-se, a manter-se
jovem, a delibe rar acerca dos actos mais simples: que carro comprar, que filme ir ver, para
onde ir de férias, que livro ler, que regime, que terapia seguir? O consumo obriga o indivíduo a
tomar-se a seu cargo, responsabiliza-o, é um sistema de participação inelutável, ao contrário do
que dizem os vitupérios lançados contra a sociedade do espectáculo e da passividade. Deste
ponto de vista, a oposição estabelecida por Toifler entre consumidor de massa passivo e «pro
sumidor» criativo e independente ignora em excesso função histórica do consumo. Seja qual
for a sua estandardização, a era do consumo revelou-se e continua a revelar-se um agente de
personalização, quer dizer de responsa bilização dos indivíduos, coagindos-os a escolher e
transformar os elementos do seu modo de vida. É preciso não sobrevalorizarmos o alcance dos
fenó menos actuais de tomada directa a cargo pelos interessados dos seus pró prios assuntos:
a responsabilização e a participação limitam-se a prosseguir na sua obra, mas segundo um
dispositivo ainda mais personalizado. E pelo menos imprudente afirmar que, nestas condições,
as fronteiras entre produ
ção e consumo se apagam o do-it-yourself, as vendas em kit, os grupos de auto-assistência, o
selj-care não indicam o «fim iminente» da expansão do mercado, da especialização e dos
grandes sistemas de distribuição, não fa zem mais do que personalizar até ao extremo a lógica
do consumo. Dova rante o bricolage, a saúde, os conselhos são eles próprios consumidos, mas na
órbita do self-service. Não devemos ter ilusões, a lógica do mercado, a es pecialização e a
burocratização das tarefas não deterão a sua progressão, ainda que paralelamente se
desenvolvam algumas ilhotas de intervenção criadora, de auxílio mútuo e de reciprocidade. Por
isso, embora num registo diferente, também não podemos seguir D. BelI quando este vê no
consumo o agente por excelência de um neo-libertinismo desenfreado e impulsivo. A so ciedade
de consumo não se pode reduzir à estimulação das necessidades e ao hedonismo; é inseparável
da profusão das informações, da cultura mass mediática, da solicitude comunicacional.
Consomem-se em altas doses e por flashes, actualidades, emissões médicas, históricas ou
tecnológicas, música clássica ou pop, conselhos turísticos, culinários ou psi, confissões privadas,
filmes: a hipertrofia, a aceleração das mensagens, da cultura, da comunica ção, são ao mesmo
título que a abundância de mercadorias, parte integrante da sociedade de consumo. O
hedonismo, por um lado, o consumo, por ou tro. A sociedade de consumo é fundamentalmente
um sistema de abertura e de despertar, um meio de instrução flexível, «digest» sem dúvida,
mas per manente. Gozar a vida, mas também estar ao corrente, estar «ligado», cui dar da
siiúde, como atestam a obsessão crescente com os problemas de saú de, a inflação da procura
médica, a multiplicação das obras de divulgação e das revistas informativas, o sucesso dos
festivais, as multidões de turistas de máquina fotográfica na mão desfilando pelos museus e
ruínas históricas. Se o consumo esvazia a cultura puritana e autoritária, não o faz em proveito
de uma cultura irracional ou impulsiva; mais profundamente, instala-se um no vo tipo de
socialização «racional» do sujeito, não por certo através dos con teúdos escolhidos, que
continuam largamente submetidos às flutuações im previsíveis das personalidades, mas através
o imperativo sedutor que quer que o indivíduo sè informe, se administre a si próprio, preveja,
se recicle, se subordine à regra da entrevista e do teste. A era do consumo dessocializa os
68
indivíduos e correlativamente socializa-os pela lógica das necessidades e da informação,
socialização sem conteúdo pesado, socialização na mobilidade.
1 A. Toifler, La Troisi Vague, Denüel, 1980, p. 333.
104
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
105
O processo de personalização faz aparecer um indivíduo informado e respon sabilizado,
dispatcher constante de si próprio.
Responsabilização de um género novo, narcísica como lhe poderemos chamar, na medida em que
a acompanham, por um lado, uma desmotiva ção ante a coisa pública e, por outro lado, uma
descrispação e desestabiliza ção da personalidade. Inúmeros sinais o indicam: descontracção
nas relações interindividuais, culto do natural, uniões livres, aumento dos divórcios, ace leração
nas transformações dos gostos, valores e aspirações, ética tolerante e permissiva, mas
também explosão dos síndromas psicopatológicos, do stress, da depressão: um indivíduo em
cada quatro conhecerá ao longo da sua vida uma depressão nervosa profunda, um alemão em
cada cinco refugia-se em perturbações psi, um em cada quatro sofre de perturbações do sono.
Sendo assim, nada mais falso do que reconhecer nestes fenómenos a presença de um «homem
unidimensional», ainda que sob a etiqueta de uma’privatização flutuante, O neo-narcisismo
define-se pela desunificação, pela fragmentação da personalidade, a sua lei é a coexistência
pacífica dos contrários. A medi da que os objectos e mensagens, próteses psi e desportivas
invadem a exis tência, o indivíduo desagrega-se num patchwork heteróclito, numa combina tória
polimorfa, que é a própria imagem do pós-modernismo. Coo! nas suas maneiras de ser e de
fazer, libertado da culpabilidade moral, o indivíduo narcísico é, no entanto, propenso à angústia
e à ansiedade; gestor da sua saúde, constantemente preocupado com ela, e arriscando a vida
nas auto- estradas e nas montanhas; formado e informado num universo científico, mas ao
mesmo tempo permeável, ainda que epidermicamente, a todos os gadgets do sentido, ao
esoterismo, à parapsicologia, aos médiuns e aos gu rus; descontraído em relação ao saber e às
ideologias e simultaneamente per feccionista nas actividades desportivas ou de bricolage;
alérgico ao esforço, às normas estritas e coercivas, procura-as por conta própria nos regimes
de emagrecimento, em certas práticas desportivas, no trekking, nos refúgios místicoreligiosos; discreto perante a morte, controlado nas sua relações pú blicas e gritando,
vomitando, chorando, invectivando nas novas terapias psi; flutuante, «im, produzido pelos
modelos internacionais da moda e reinves tindo nas línguas menores periféricas, no to ou em
certas tradições reli giosas e populares. E isto a personalização narcísica: a fragmentação
díspar do eu, a emergência de um indivíduo que obedece a múltiplas lógicas na es teira das
justaposições compartimentadas dos artistas pop ou das combina ções chás e aleatórias de
Adami.
O consumo é uma estrutura aberta e dinâmica: desprende o indivídu dos seus laços de
dependência social e acelera os movimentos de assimilação e de rejeição, produz indivíduos
flutuantes e cinéticos, universaliza os modos de vida, ao mesmo tempo que permite um máximo
de singularização dos ho mens. Modernismo do consumo regido pelo processo de
personalização, pa ralelo neste ponto à vanguarda artística ou à psicanálise e opondo-se ao mes
mo tempo ao modernismo prevalecente noutras esferas. Porque é assim o modernismo, um
69
momento histórico complexo ordenando-se em torno de duas lógicas antinómicas, uma rígida,
uniforme, coerciva, a outra flexível, opcional, sedutora. Lógica disciplinar e hierárquica, por um
lado: a ordem da produção funciona segundo uma estrutura burocrática estrita, apoiada nos
princípios da organização científica do trabalho (os Principies of scienti fic management de
Taylor datam de 1911); a esfera do político tem um ideal de centralização e de unificação
nacional, a Revolução e a luta de classes são as suas traves mestras; os valores consagram a
poupança, o trabalho, o esforço; a educação é autoritária e normalizadora; o indivíduo é, ele
próprio, voluntário, «intro-determinado». Mas a partir do fim do século XIX e da era do
consumo instauraram-se sistemas regidos por um outro processo, flexível, plural,
personalizado. Neste sentido, pode dizer-se que a fase moderna das nossas sociedades se
caracterizou pela coexistência de duas lógicas adversas com a evidente predominância até aos
anos cinquenta e sessenta da ordem disciplinar e autoritária. Chamamos, em contrapartida,
sociedade pós- moderna à inversão desta organização predominante, no momento em que as
sociedades ocidentais tendem cada vez mais a rejeitar as estruturas uni formes e a
generalizar os sistemas personalizados à base de solicitação, de opção, de comunicação, de
informação, de descentralização, de participa ção. A idade pós-moderna, deste ponto de vista,
não é de maneira nenhuma a idade paroxística libidinal e pulsional do modernismo; pensaríamos
antes o contrário: o tempo pós-moderno é a fase coo! e desencantada do modernis mo, a
tendência para a humanização por medida da sociedade, o desenvolvi mento de estruturas
fluídas moduladas em função do indivíduo e dos seus desejos, a neutralização dos conflitos de
classe, a dissipação do imaginário revolucionário, a apatia crescente, a dessuLstancialização
narcísica, o rein vestimento coo! do passado. O pós-modernismo é o processo e o momento
histórico em que se opera esta viragem de tendência em proveito do processo de
personalização, o qual não pára de anexar novas esferas, como já hoje se verifica em matéria
de educação, de ensino, de tempos livres, de desporto,
“1/
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Guies Lipovetsky
moda, relações humanas e sexuais, informação, horários, trabalho, sendo es te último sector o
de longe mais refractário ao processo em curso. Foi, aliás, uma inversão de tendência paralela
que levou D. Beli a falar de uma socie dade pós-industrial, quer dizer de uma sociedade já não
assente na produ ção em série de mercadorias industriais e na classe operária, mas no prima do
do saber teórico no desenvolvimento técnico e económico, no sector dos serviços (informação,
saúde, ensino, investigação, actividades culturais, tem pos livres, etc.), na classe especializada
dos «profissionais e técnicos». Socie dade pós-laboral, sociedade pós-moderna: estes dois
esquemas não se so brepõem, embora designem movimentos de transformação histórica conco
mitantes; o primeiro insiste na nova estrutura sócio-profissional e no novo rosto da economia
cujo núcleo é o saber; o segundo, tal como aqui o empre gamos, não se limita, como em D. BelI,
ao campo cultural, mas insiste, pelo contrário, nos efeitos e na extensão de um novo modo de
socialização, o pro cesso de personalização que percorre doravante, mais ou menos iptensamen
te, todos os sectores das nossas sociedades.
Longe de estar numa relação de descontinuidade com o modernismo, a era pós-moderna definese pelo prolongamento e a generalização de uma das suas tendências constitutivas, o processo
de personalização,e correlativamen te pela redução progressiva da sua outra tendência, o
70
processo disciplinar. E por isso que não podemos aderir às problemáticas recentes que, em
nome da indeterminação e da simulação ou em nome da deslegitimação das meta- narrativas se
esforçam por pensar o presente como um momento absoluta mente inédito na história. Se nos
ativermos ao tempo curto, ocultando o campo histórico, sobrestimamos o corte pós-moderno,
perdemos de vista que este prossegue ainda, mesmo quando por outros meios, a obra secular
das sociedades modernas democráticas-individualistas. Do mesmo modo que o modernismo
artístico se revelou como uma manifestação da igualdade e da liberdade, também a sociedade
pós-moderna, erigindo o processo de perso nalização em modalidade dominante, continua a
realizar as significações centrais do mundo moderno. O universo dos objectos, da informação e
do hedonismo completa «a igualdade das condições», eleva o nível de vida e cul tiva as massas,
ainda que sob a égide do mínimo denominador comum,
J. Baudrillard, LÉchange symbolique et la mort. Gallimard, 1976.
2 J.-Fr. Lyotard, La Condition post-moderne, Éd. de Minuit, 1979.
A Era do Vazio
107
emancipa as mulheres e as minorias sexuais, unifica as idades por meio do imperativo de
juventude, banaliza a originalidade, informa todos os indiví duos, põe no mesmo plano o bestseller e o Prémio Nobel, trata identica menté o fait divers, as proezas tecnológicas e as curvas
económicas: as dis semelhanças hierárquicas não páram de recuar em benefício do reino indife
rente da igualdade. Deste ponto de vista, a comutação dos signos, a ordem dos simulacros não é
senão um último estádio no devir das sociedades de mocráticas. O mesmo se passa com o saber
pós-moderno e com as suas dis seminações de regras: «o reconhecimento da heteromorfia dos
jogos de lin guagem» interina na ordem epistemológica a lógica da personalização e tra balha no
sentido de democratizar-desestandardizar a verdade, igualizar os discursos liquidando o valor
do consenso universal, afirmando como princí pio a regra temporária dos «golpes». O estilhaçar
das grandes narrativas:
instrumento da igualdade e da emancipação do indivíduo actualmente liber to do terror dos
mega-sistemas, da uniformidade da Verdade e votado assim à instabilidade experimental dos
«contratos temporários», em estreita con gruência com a desestabilização e a particularização
narcísica. A denúncia do imperialismo da Verdade é uma figura exemplar do pós-modernismo: o
processo de personalização dissolve uma última rigidez e cume, trabalha pa ra a produção de
uma tolerância cool através da afirmação do direito às di ferenças, aos particularismos, às
multiplicidades na esfera do saber, deslas trado este de toda a autoridade suprema, de todo o
referencial de realidade. Anexação da ordem linear-dirigista da Verdade na da flutuação das
hipóte ses e das constelações das linguagens miniaturizadas. E o mesmo processo flexível que
liberaliza os costumes, desmultiplica os grupos de reivindicação, desestandardiza a moda e os
comportamentos, organiza p narcisismo e li quefaz a Verdade: a operação saber pós-moderno,
heterogeneidade e disper são das linguagens, teorias flutuantes, não passa de uma
manifestação do deslocamento geral, fluido e plural, que nos faz sair da idade disciplinar e que,
assim, aprofunda a lógica do homo clausus ocidental. Só no quadro desta ampla continuidade
democrática e individualista é que se delineia a originalidade do momento pós-moderno, a saber
a predominância do indivi dual sobre o universal, do psicológico sobre o ideológico, da
comunicação sobre a politização, da diversidade sobre a homogeneidade, do permissivo sobre o
coercivo.
71
1 Ibid., p. 107.
108
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
109
Tocqueville dizia que os povos democráticos mostravam «um amor mais ardente e mais
duradouro pela igualdade do que pela liberdade» temos o direito de perguntar se o processo de
personalização não modificou em pro fundidade esta prioridade. Sem dúvida, a exigência de
igualdade continua a afirmar-se, mas há uma exigência mais significativa, mais imperativa
ainda:
é a da liberdade individual. O processo de personalização engendrou uma explosão de
reivindicações de liberdade que se manifesta em todos os domí nios, na vida sexual e familiar
(sexo à lista, educação liberal, modo de vida child-free), no vestuário, na dança, nas actividades
corporais e artísticas (desporto livre, improvisação, expressão livre), na comunicação e no
ensino (rádios livres, trabalho independente), na paixão pelos tempos livres e pela sua
extensão, nas novas terapias que têm por fim a libertação do eu. Mesmo se as reivindicações
dos grupos continuam a ser formuladas em termos de ideal de justiça, de igualdade e de
reconhecimento social, é sobretudo em ra zão do desejo de viver mais livremente que
descobrem uma autêntica audiên cia de massa. Hoje toleram-se mais facilmente as
desigualdades sociais do que os interditos relativos à esfera privada; consente-se mais ou
menos no poder da tecnocracia, legitimam-se as elites do poder e do saber, mas recu sa-se a
regulamentação do desejo e dos costumes. A inversão de tendência em benefício do processo
de personalização levou ao seu ponto culminante o desejo de libertação pessoal, produziu uma
inversão de prioridade nas aspi rações; o ideal de autonomia individual é o grande vencedor da
condição pós-moderna.
D. Bel! tem razão ao sublinhar o lugar central que o hedonismo ocupa na cultura moderna, mas
não vê as transformações que esse valor sofreu a partir dos anos sessenta. Depois de uma fase
triunfante em que, com efeito, o orgasmo enchia as primeiras páginas e a corrida da aquisição
de objectos era identificada com o sucesso, entrámos numa fase desencantada, pósmaterialista em que a qualidade de vida leva a melhor sobre as marcas quantitativas; o próprio
hedonismo se personaliza e converte em narcisismo psi. Os anos sessenta são, quanto a este
ponto, anos charneira. Por um la do, os sixties completam efectivamente, como diz D. Bell, a
lógica hedonis ta: oposição violenta ao puritanismo, à autoridade, ao trabalho alienado, cultura
de massa erótico-pornográfica, irrupção psicadélica. Mas, por outro
lado, este decénio adianta os ideais coo!, esses mesmos que acabarão por se impôr
prioritariamente após os anos de contestação: crítica da bulimia con sumista, crítica da vida
urbana estandardizada, crítica dos valores agressivos e viris, psicologização do militantismo,
integração da auto-análise e do eu na crítica social, vontade de «mudar a vida», transformando
directamente as re lações do sujeito consigo próprio e com os outros. A fruição ilimitada, o de
boche, o desregramento dos sentidos não são nem a imagem nem o futuro provável das nossas
sociedades: o entusiasmo psicadélico extinguiu-se e o «desejo» passou de moda, o culto do
desenvolvimento espiritual, psi e des portivo, subsituíu a contra-cultura, o feeling superou o
standing, a «vida simples», convivial e ecológica a melhor sobre a paixão do ter; a medi cina
alternativa, baseada na meditação, nas ervas, na vigilância do próprio corpo e dos seus
72
«biorritmos», revelam a distância que nos separa do hedo nismo hot, da primeira fase. O pósmodernismo tem tendência a afirmar o equilíbrio, a escala humana, o regresso a si próprio,
ainda que seja verdade que coexiste com movimentos duros e extremistas (droga, terrorismo,
por nografia, punk). O pós-modernismo é sincrético, simultaneamente coo! e hard, convivial e
vazio, psi e maximalista: aqui, uma vez mais, é a coabita ção dos contrários que caracteriza o
nosso tempo, e não a pretensa cultura desenfreada hipdrug-rock. A idade heróica do
hedonismo passou; nem as páginas de oferta e procura erótica multi-serviço, nem a importância
do nú mero dos leitores das revistas sexológicas, nem a publicidade aberta de que gozam a
maior parte das «perversões» bastam para acreditar a ideia deum crescimento exponencial do
hedonismo. Signos menos visíveis testemunham já de uma transformação notável do valor-gozo:
nos EUA, há grupos de ho mens que reivindicam o direito de serem impotentes, a sexologia
tenuemente ornamentada com os atributos do mérito científico vê-se acusada de ser di
rectiva, ou até terrorista com o seu imperativo do gozo; mulheres e homens redescobrem a
virtude do silêncio e da solidão, da paz interior e da ascese nas comunidades monásticas,
ashrams ou comunidades de lamas. Acontece com a fruição o mesmo que com os outros valores:
não escapa ao processo da indiferença. O gozo esvazia-se do seu conteúdo subversivo, os seus
con tornos desgastam-se, a sua preeminência banaliza-se; o gozo entra no ciclo da humanização
na razão inversa da linguagem técnica hipertrofiada de que se reveste nas revistas da
especialidade: doravante, há tanta reivindicação de
A. de Tocqueville, De la démocratie en Ainérique, Oeuvres complètes, Gaflimard, T. 1,
vol. II, pp. 101-104.
Th. Roszak, L’Homme-planéte, Stock, 1980, pp. 460-464.
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Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
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sexo como de relação; procura erótica e procura comunicacional, perversão e meditação
interpenetram-se ou coexistem sem choque, sem contradição. Disseminação dos modos de vida,
o gozo já não passa de um valor relativo, equivalente à comunicação, à paz interior, à saúde ou à
meditação; o pós- modernismo varreu toda a carga subversiva dos valores modernistas, é o
ecletismo da cultura que reina.
Nada mais estranho neste tempo planetário do que aquilo que se designa como «regresso do
sagrado» sucesso das sabedoria e religiões orientais (zen, taoísmo, budismo), dos esoterismos
e tradições europeias (cabala, pita gorismo, teosofia, alquimia), estudo intensivo do Talmude e
da Torah nos Yéchivot, multiplicação das seitas; incontestavelmente, trata-se de um fenó meno
muito pós-moderno em ruptura declarada com as Luzes, com o culto da razão e do progresso.
Crise do modernismo tomado de dúvidas sobre si próprio, incapaz de resolver os problemas
fundamentais da existência, inca paz de respeitar a diversidade das culturas e de trazer a
todos a paz e o bem-estar? Ressurreição do recalcado ocidental no momento em que este já
não tem qualquer sentido a oferecer-nos? Resistência dos indivíduos e gru pos à uniformização
planetária? Alternativa ao terror da mobilidade, revalo rizando as crenças do passado?
Reconheçamos que este tipo de análises não nos convence. Convém, em primeiro lugar, repor no
seu justo lugar a atrac ção de que actualmente gozam as múltiplas formas de sacralidade. O
pro cesso de personalização tem por efeito uma deserção sem precedentes da es fera sagrada,
73
o individualismo contemporâneo não pára de minar os funda mentos do divino: em França, em
1967, 81 por cento dos jovens de quinze a trinta anos de idade declaravam crer em Deus; em
1977, 62 por cento, e em 1979, apenas 45,5 por cento dos estudantes declaravam acreditar em
Deus. Mais ainda, a própria religião é arrastada pelo processo de personalização:
é-se crente mas à lista, conserva-se este dogma e elimina-se aquele, mistu ram-se os
Evangelhos com o Corão, o zen ou o budismo, a espiritualidade entrou na época caleidoscópica
do super-mercado e do self-service. O turn over, a desestabilização investiu o sagrado ao
mesmo titulo que o trabalho ou a moda: durante algum tempo cristão, alguns meses budista,
alguns anos discípulo de Krishna ou de Maharaj Ji. A renovação espiritual não resulta de uma
ausência trágica de sentido, não é uma resistência à dominação tec nocrática, mas, causada
pelo individualismo pós-moderno, reproduz a sua
lógica flutuante. A atracção do religioso é inseparável da dessusbstancia!iza ção narcísica, do
indivíduo flexível em busca de si próprio, sem referencjais nem certezas — nem sequer a do
poder da ciência — não é de ordem dife rente da atracção efémera, mas intensa, por esta ou
aquela técnica relacio na!, dietética ou desportiva. Necessidade de o indivíduo se redescobrir a
si próprio ou de se aniquilar enquanto sujeito, exaltação das relações interpes soais ou da
meditação pessoal, extrema tolerância e fragilidade podendo consentir nos imperativos mais
drásticos, o neo-misticismo participa da gad getização personalizada do sentido e da verdade,
do narcisismo psi, seja qual for a referência ao Absoluto que lhe subjaz. Longe de ser
antinómica em relação à lógica maior do nosso tempo, o ressurgimento das espirituali dades e
esoterismos de toda a espécie não faz mais do que cumpri-la, au mentando o leque das escolhas
e possibilidades da vida privada, permitindo um cocktail individualista do sentido de acordo com
o processo de personali
zação.
Exaustão da vanguarda
Manifestação artística do pós-modernismo: a vanguarda está esgotada, atola-se na repetição e
substitui a invenção pela exasperação pura e simples. Os anos sessenta dão o pontapé de saída
do pós-modernismo: a despeito da sua agitação, «não realizaram a mínima revolução no domínio
da forma es tética» (p. 132), exceptuadas algumas inovações no romance. No resto, a ar te
macaqueia as inovações do passado, com a violência, a crueldade e o ruí do por acrescento. Para
D. BelI, a arte perde então toda a medida, nega de finitivamente as fronteiras entre a arte e a
vida, recusa a distância entre o espectador e o acontecimento, põe-se no encalço do efeito
imediato (acções, happenings, Living theatre). Os anos sessenta querem «reencontrar as raízes
primitivas do impulso» (p. 150); uma sensibilidade irracionalista dá-se livre curso exigindo
sempre mais sensações, choque e emoção na esteira da Body art e dos espectáculos rituais de
H. Nietzsch. Os artistas recusam a discipli na do ofício, têm por ideal o «natural», a
espontaneidade e entregam-se a uma improvisação acelerada (Ginsberg, Kerouac). A literatura
toma como tema privilegiado a loucura, a imundície, a degradação moral e sexual (Bur roughs,
Guyotat, Selby, Mailer): «A nova sensibilidade é uma desforra dos sentidos sobre o espíritol
(p. 139), todas as imposições são abandonadas com vista a uma liberdade orgíaca e obscena,
com vista a uma glorificação
P. Gaudibert, Du culturel au sacr Casterman, 1981.
112
74
Guies Lipovetsky
instintual da personalidade. O pós-modernismo não passa de um outro no me para designar a
decadência moral e estética do nosso tempo. Ideia que não é, aliás, nada original, uma vez que
H. Read escrevia já no início dos anos cinquenta: «A obra dos jovens não passa do reflexo
atrasado de explo sões que datam de há trinta ou quarenta anos».
Dizer que a vanguarda é estéril desde 1930 é certamente um juízo exces sivo, inaceitável, a
que seria fácil contrapor numerosos criadores e movimen tos cheios de originalidade e riqueza.
Deste modo, e seja qual for o exagero da afirmação, esta levanta, muito particularmente nos
nossos dias, um ver dadeiro problema sociológico e estético. No conjunto, com efeito, as ruptu
ras tornam-se cada vez mais raras, a impressão de déj vu prevalece sobre a de novidade, as
transformações são monótonas, já não temos a impressão de viver num período revolucionário.
Esta queda tendencial da taxa de criativi dade das vanguardas coincide, por outro lado, com a
própria dificuldade da afirmação de se ser vanguarda: «A moda dos ‘ismos’ já passou» (p. 113),
as manifestações estrondosas do início do século, as grandes provocações, dei xaram de ser
apreciadas hoje em dia. Perda de fôlego da vanguarda, tal não significa que a arte esteja
morta, que os artistas já não tenham imaginação, mas que as obras mais iPiteressantes se
deslocaram, já não procuram inven tar linguagens de ruptura, se tornam mais «subjectivas»,
bricoleuses ou ob sessivas, abandonando os cumes da pura busca do Novo. Na esteira dos dis
cursos revolucionários duros ou do terrorismo político, a vanguarda gira no vazio, as
experimentações continuam, mas com resultados pobres, idênticos ou inessenciais, as
fronteiras transgredidas são-no de maneira infinitesimal, a arte conhece a sua fase
depressiva. A despeito de algumas proclamações vãs, a revolução permanente já não descobre
na arte o seu modelo. Basta vermos certos filmes «experimentais» para disso nos
convercermos: sem dúvi da, sai-se do circuito comercial e da narração-representação, mas para
cair na descontinuidade pela descontinuidade, no extremismo dos planos- sequência em que
tudo fica imóvel, na experimentação não como pesquisa mas como procedimento. J.-M. Straub
filma a perder de vista a mesma es trada monótona, A. Warhol filmara já um homem a dormir
durante seis ho ras e meia e o Empire State Building durante oito horas, sendo a duração do
filme a do tempo real. «Ready-made cinematográfico», houve quem dis sesse; mas a diferença
está em que o gesto de Duchamp tinha uma parada maior, subvertendo a noção de obra, de
ofício e de emoção artística. Reco meçar sessenta anos mais tarde, com a duração a mais e o
humor a menos,
A Era do Vazio
a operação do urinol, é um sinal da desorientação, da dessubstancialização da vanguarda. De
facto, há mais experimentação, surpresa, audácia no walkman, nos jogos de vídeo, no surf. nos
filmes comerciais para o grande público do que em todos os filmes de vanguarda e todas as
desconstruções «telquelianas» da narrativa e da linguagem. A situação pós-moderna: a arte já
não é um vector revolucionário, perde o seu estatuto pioneiro e desbrava dor, esgota-se num
até ao fim estereotipado e os seus heróis, por toda a par te, estão fatigados.
É, aliás, neste momento que começa a ter êxito do outro lado do Atlânti co e, depois, cada vez
mais também na Europa, a noção propriamente dita de «pós-modernismo», que devemos
enteiider, por uni lado, Cofio crítica à obsessão da inovação e à revolução a todo o custo, e, por
outro lado, como reabilitação do recalcado do modernismo: a tradição, o local, a ornamenta ção.
Primeiro para os arquitectos, e hoje para os pintores, trata-se de atacar o conceito de
75
vanguarda no que ele contém de elitismo, de terrorismo, de austeridade: pós-modernismo, ou
também pós-vanguardismo. Enquanto que o modernismo era exclusivo, «o pós-modernismo é
inclusivo, chegando ao ponto de integrar o purismo do seu adversário quando tal parece
justificar- se» Pós-modernismo no sentido em que já não se trata de criar um novo estilo, mas
de integrar todos os estilos, até os mais modernos: vira-se a pági na, a tradição torna-se fonte
viva de inspiração ao mesmo título que a novi dade, toda a arte moderna surge ela própria como
uma tradição entre ou tras. Daqui decorre que os valores até há pouco banidos são agora
postos na primeira linha, contrariando a radicalidade modernista: tornam-se proemi nentes o
ecletismo, a heterogeneidade dos estilos no interior de uma mesma obra, o decorativo, o
metafórico, o lúdico, o vernáculo, a memória histórica. O pós-modernismo insurge-se contra a
unidimensionalidade da arte moderna e propugna obras fantasistas, despreocupadas, híbridas:
«Os edifícios mais representativos do pós-modernismo dão, com efeito, testemunho de uma
dualidade muito nítida, de uma deliberada esquizofrenia» Revivalismo pós-moderno inseparável,
por certo, do apetite generalizado pelo rétro, mas cuja teorização explícita revela que a sua
significação não se esgota numa simples nostalgia do passado.
O que está em jogo é outra coisa: o pós-modernismo não tem como ob
1 C. Jencks, Le Langage de L ‘architecture post-moderne. Denoel, 1979, p. 7.
2 Ibid., p. 6.
114
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
jectivo nem a destruição das formas modernas nem o ressurgimento do pas sado, mas a
coexistência pacífica dos estilos, a descrispação da oposição tra dição-modernidade, o
afrouxar da antinomia local-internacional, a desesta bilização das tomadas de partido rígidas
pela figuração ou pela abstracção, em suma a descontracção do espaço artístico paralelamente
a uma sociedade em que as ideologias duras já não vingam, em que as instituições se alimen tam
de opção e de participação, em que os papéis e as identidades se con fundem, em que o
indivíduo é flutuante e tolerante. E demasiado redutor re conhecer nisto a eterna estratégia
do capital ávido de comercialização rápida ou mesmo uma figura do «nih passivo», de acordo
com o que escreveu um crítico contemporâneo. O pós-modernismo é o registo e a manifestação
do processo de personalização que, incompatível com todas as formas de ex clusão e de
dirigismo, substitui pela livre escolha a autoridade das imposi ções pré-fixadas, pelo cocktall
fantasista a rigidez da «linha justa». O inte resse do pós-modernismo reside no facto de ele
revelar que a arte moderna, a primeira, apesar de tudo, a ter adoptado a ordem das lógicas
abertas, con tinuava tributária de uma &a dirigista dados os seus valores vanguardistas
exclusivamente orientados para o futuro. A arte moderna era uma formação de compromisso,
um ser «contraditório» feito de «terrorismo» futurista e de personalização flexível. O pósmodernismo tem por ambição resolver este an tagonismo desprendendo a arte do seu
enquadramento disciplinar-vanguar dista, instituindo obras regidas unicamente pelo processo
de personalização. Ao proceder assim, o pós-modernismo obedece ao mesmo destino que as
nossas sociedades abertas, pós-revolucionárias, que têm como objectivo au mentar sem fim as
possibilidades individuais de escolha e de combinações. Substituindo a exclusão pela inclusão,
legitimando todos os estilos de todas s épocas, a liberdade criadora já não é intimada a vergarse ao estilo inter nacional, vê as suas fontes de inspiração, os seus jogos de combinações,
crescerem indefinidamente: «O ecletismo é a tendência natural de uma cul tura livre nas suas
76
escolhas No início do século, a arte era revolucionária e a sociedade conservadora; esta
situação inverteu-se à medida que se verifica va a anquilose da vanguarda e das
transformações da sociedade engendradas pelo processo de personalização. Nos nossos dias, a
sociedade, os costumes, o próprio indivíduo movem-se mais depressa, mais profundamente do
que a vanguarda: o pós-modernismo é a tentativa de reinsuflar dinamismo na arte,
flexibilizando e desmultiplicando as suas regras de funcionamento à imagem de uma sociedade
já maleável, opcional e que reduz as relegações.
Advogando o reinvestimento do património cultural e um sincretismo ad hoc o pós-modernismo
apresenta-se sob o signo de uma nítida transforma ção de valores e de perspectiva, de uma
descontinuidade na lógica modernis ta. Esta ruptura, no entanto, é sob muitos aspectos mais
aparente do que real. Por um lado, o projecto pós-moderno é obrigado a ir buscar ao moder
nismo a sua própria essência, a saber a ruptura: romper com o modernismo não é possível a não
ser pela afirmação de um Novo suplementar, aqui a reintegração do passado, o que está
profundamente de acordo com a lógica modernista. Não devemos iludir-nos, o culto do Novo
não foi nem será aboli do, quando muito torna-se agora cool e descrispado. Por outro lado, se o
efeito do modernismo foi de facto incluir continuamente novos temas, mate riais e
organizações, dessublimando ou democratizando assim a esfera estéti ca, o pós-modernismo
limita-se a dar mais um passo em frente no mesmo caminho. Doravante, a arte integra todo o
museu imaginário, legitima a me mória, trata por igual o passado e o presente, faz coabitar sem
contradição todos os estilos. Fiel neste ponto ao modernismo, o pós-modernismo conti nua a
definir-se pelo processo de abertura, pelo alargamento das fronteiras. Por fim, declarando
situar-se fora do culto vanguardista do Novo, o pós- modernismo abandona um último ideal
revolucionário, renuncia à face de elite do modernismo, quer acompanhar os gostos do público
satisfazendo ao
1 Curiosamente, é o processo inverso que parece espreitar o futuro filosófico. Os anos ses
senta e o início dos setenta são vanguardistas: o sincretismo é a regra do momento, trata-se
de quebrar as fronteiras, de descontruir campos e conceitos, de lançar pontes entre as
disciplinas separadas e as teorias adversas. O conceito adopta a estratégia da abertura e da
desestabiliza çáo: freudo-marxismo, marxismo estruturalista, freudismo estruturalista,
antipsiquiatria, esqui zo-análise, economia libidinal, etc. A filosofia recusa o fechamento e
adopta o estilo nómada. Esta fase heteróclita e revolucionária parece estar a dar lugar a uma
fase em que as disciplinas reafirmam a sua especificidade, em que a filosofia reconstrói o seu
território e reconquista uma virgindade momentaneamente desflorada pelo contacto com as
ciências humanas. O pós- modernismo artístico é sincrético e humorístico, o «pós-modernismo
intelectual» é estrito e aus tero, desconfia das promiscuidades e já não tem como modelo, ao
contrário do que se passava nos «anos loucos», a arte ou as schizes desejantes. Os bilhetes de
identidade estão de novo na ordem do dia. O pós-modernismo artístico reata com o museu; o
pós-modernismo filosófico igualmente, mas ao preço da exclusão da história e do social, de
novo relegados para a ordem empírica trivial. O regresso em força do pensamento do Ser e dos
jogos da metafísica não é um remake, mas a manifestação filosófica da era narcísica.
1 C. Jencks, op. cii., p. 128
116
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
77
117
mesmo tempo os criadores: a arte vê-se expurgada da sua meta revolucioná ria e da sua
imagem hierárquica de acordo com a linha de força predomi nante da estratégia igualitária. O
pós-modernismo não passa de uma ruptu ra de superfície, conclui a reciclagem democrática da
arte, continua o tra balho de reabsorção da distância artística, leva até ao extremo limite o
pro cesso de personalização da obra aberta, fagocitando todos os estilos, autori zando as
construções mais divergentes, desestabilizando a definição da arte moderna.
O movimento pós-moderno continua a inscrever-se no devir democrático e individualista da
arte. Os pintores new-wave da «Figuração Livre» decla ram-se contra a vanguarda, recusam-se
a entrar, segundo dizem, no jogo da corrida à novidade, reivindicam o direito de ser eles
próprios, vulgares, chãos, sem talento, o direito de se exprimirem livremente alimentando-se
de todas as fontes sem a preocupação de serem originais: bad painting. Ao «é preciso ser-se
absolutamente moderno» substituíu-se a palavra de ordem pós- moderna e narcísica: «é
preciso ser-se absolutamente o que se é», num ecle tismo laxista. Nada há a desejar para além
de uma arte sem pretensões, sem elevação nem pesquisa, livre e espontânea, à imagem e
semelhança da socie dade narcísica e indiferente. A democratização e a personalização das
obras descobre a sua conclusão num individualismo flutuante e discount; a arte, a moda, a
publicidade deixam de se distinguir radicalmente, fazendo até um largo uso do efeito minuto ou
do paradoxo: é novo justamente aquilo que o não quer ser, para se ser novo é preciso troçar-se
do novo. Esta face promo cional do pós-modernismo é a tentativa de criar um scoop a partir da
pró pria ausência de acontecimento, de transformar em originalidade a confissão parcial de
não-originalidade; o pós-modernismo interina aqui o vazio e a sa ciedade, cria um pseudoacontecimento, alinha pelos mecanismos publicitá rios em que a afirmação enfática da marca
basta para designar uma realida de incomparável. A operação «trans-vanguarda» (B. Oliva) ou
«figuração li vre» não procede sequer do «nihilismo passivo», não há qualquer negação em
actividade nela; é o processo de dessubstancialização que conquista aberta mente a arte por
meio de uma amálgama indiferente, de uma -assimilação acelerada e vazia de todo o projecto.
Na esteira das grandes ideologias, a ar te, veiculada quer pela vanguarda quer pela «transvanguarda», é regida pela mesma lógica do vazio, da moda e do marketing.
Enquanto a arte oficial é arrastada pelo processo de personalização e de democratização, a
aspiração dos indivíduos à criação artística não pára pa
ralelamente de crescer: o pós-modernismo não significa apenas o declínio vanguardista, mas
simultaneamente a disseminação e multiplicação dos nú cleos e vontades artísticas.
Proliferação dos grupos de teatro amador, dos grupos de música rock ou pop, paixão da
fotografia e do vídeo, fascínio pela dança, pelas profissões artísticas e pelo artesanato, pelo
estudo de certo ins trumento, pela escrita; esta bulimia só tem par na dos desportos e viagens.
Toda a gente tem mais ou menos uma vontade de expressão artística, entra mos deveras na
ordem personalizada da cultura. O modernismo era uma fa se de criação revolucionária de
artistas em processo de ruptura, o pós- modernismo é uma fase de expressão livre aberta a
todos. O momento em que se tratava de fazer aceder as massas ao consumo das grandes obras
cul turais viu-se ultrapassado por uma democratização espontânea e real das práticas
artísticas avançando ao mesmo tempo que a personalidade narcísica ávida de expressão de si,
de criatividade, ainda que à maneira cool, oscilan do os gostos ao sabor das estações do ano, da
prática do piano à pintura sobre seda, da dança moderna aos jogos com o sintetizador. Sem
78
dúvida, es ta cultura de massa foi tornada possível pelo processo de personalização, li bertando
faixas de tempo, privilegiando a expressão e valorizando a criação, mas o surpreendente é que,
de certo modo, a vanguarda também contribuiu para o resultado ao experimentar sem descanso
novos materiais e composi ções, desqualificando o saber técnico em benefício da imaginação e
da ideia. A arte moderna dissolveu a tal ponto as normas estéticas que um campo artístico
aberto a todos os níveis, a todas as formas de expressão, pôde por fim emergir. A vanguarda
facilitou e desculpabilizou as tentativas e diligên cias artísticas de todos, lavrou o campo onde
eclodiria uma expressão artísti ca de massa.
Crise da democracia?
Se o modernismo artístico já não perturba a ordem social, as coisas são diferentes com a
cultura de massa centrada no hedonismo, em conflito cada vez mais aberto com a ordem tecnoeconómica. O hedonismo é a contradi ção cultural do capitalismo: «Por um lado, a corporação
dos assuntos econó micos exige que o indivíduo trabalhe enormemente, aceite deixar para mais
tarde as recompensas e satisfações, sendo, numa palavra, uma engrenagem da organização. E
por outro lado, a corporação encoraja o prazer, a des
118
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
contracção, o deixar-andar. É preciso ser-se consciencioso de dia e libertino à noite» (p. 81).
São estas discordâncias, e não as contradições inerentes ao modo de produção, que explicam as
diversas crises do capitalismo. Pondo a tónica no divórcio existente entre a ordem económica
hierárquica-utilitária e a ordem hedonista, D. Bel! dá incontestavelmente conta de uma
contradição essencial, vivida todos os dias por cada um de nós. Mais ainda, esta tensão não
parece, pelo menos dentro de um futuro previsível, poder ser sensivel mente reduzida, por
grandes que sejam o alargamento e a multiplicação dos dispositivos flexíveis da personalização.
A ordem coo! depara aqui com o seu limite objectivo; o trabalho continua a ser impositivo e a
sua ordem, compa rada com os tempos livres, continua a ser rígida, impessoal e autoritária.
Quanto maiores forem os tempos livres, a personalização, mais fastidioso se arrisca a parecer
o trabalho, uma coisa sem sentido, de algum modo tempo roubado ao único tempo pleno que é o
da vida privada do eu livre. Horários móveis, trabalho ao domicílio, job enrichment, tudo isso,
contrariamente ao optimismo dos crentes da «Terceira Vaga», em nada modificará o perfil
principal do nosso tempo, ou seja, um trabalho obrigatório, repetitivo, mo nótono, opondo-se a
um desejo ilimitado de auto-realização, de liberdade e ócio: é sempre a coabitação dos
contrários, a desestabilização, a desunifica ção da existência o que nos caracteriza.
Dito isto, fixar uma disjunção estrutural entre economia e cultura não dei xa de colocar
algumas dificuldades: no essencial, semelhante teoria mascara a organização real da cultura,
oculta as funções «produtivas» do hedonismo e a dinâmica do capitalismo, simplifica e
cristaliza excessivamente a nature za das contradições culturais. Assim, um dos fenómenos
marcantes reside no facto de actualmente a cultura se encontrar submetida às normas de
gestão prevalecentes na «infraestrutura»: os produtos culturais são industrializados,
subordinados aos critérios de eficácia e de rentabilidade, conhecem as mes mas campanhas de
promoção publicitária e de marketing. Simultaneamente, a ordem tecno-económica é
inseparável da promoção das necessidades e, por conseguinte, do hedonismo, da moda, das
relações públicas e humanas, dos estudos de motivação, da estética industrial: a produção
integrou no seu funcionamento os valores culturais do modernismo enquanto que a explosão das
79
necessidades permitia ao capitalismo, durante os «gloriosos trinta» e mais tarde ainda,
escapar às suas crises periódicas de super-produção. Como sustentar nestas condições que o
hedonismo é a contradição do capitalismo quando se torna claro que se trata de uma condição
essencial do seu funcio
namento e da sua expansão? Não há relançamento, não há crescimento possível a longo e médio
prazo sem uma forte procura de consumo. Como manter a ideia de uma cultura antinomiana
quando o consumo se revela precisamente o instrumento flexível de integração dos indivíduos
no social, o meio de neutralizar a luta de classes e de abolir a perspectiva revolucioná ria? Não
há antinomia simples ou unidimensional: o bedonismo produz conflitos, desarma outros. Se o
consumo e o hedonismo permitiram resolver a radicalidade dos conflitos de classe, fizeram-no
ao preço de uma generali zação da crise subjectiva. A contradição nas nossas sociedades não
resulta apenas do fosso entre a cultura e a economia, resulta do próprio processo de
personalização, de um processo sistemático de atomização e de individuali zação narcísica:
quanto mais a sociedade se humaniza, mais o sentimento do anonimato se estende; quanto mais
há indulgência e tolerância, mais au menta a falta de segurança do indivíduo em relação a si
próprio; quanto mais se prolonga o tempo de vida, mais medo se tem de envelhecer; quanto
menos se trabalha, menos se quer trabalhar; quanto mais os costumes se li beralizam, mais
avança a impressão de vazio; quanto mais a comunicação e o diálogo se institucionalizam, mais
sós se sentem os indivíduos, e com maiores dificuldades de contacto; quanto mais cresce o
bem-estar, mais a depressão triunfa. A era do consumo engendra uma dessocialização geral e
polimorfa, invisível e miniaturizada; a anomia perde os seus pontos de refe rência, e a exclusão,
também ela agora por medida, desligou-se igualmente da ordem disciplinar.
Mais grave ainda aos olhos de D. Beli, o hedonismo está na origem de uma crise espiritual
susceptível de levar ao abalo das instituições liberais, O hedonismo tem como efeito inelutável
a perda da civitas, o egocentrismo e a indiferença pelo bem comum, a ausência de confiança no
futuro, o declínio da legitimidade das instituições (pp. 253-254). Valorizando exclusivamente a
busca da auto-realização, a era do consumo mina o civismo, sapa a coragem e a vontade (p. 92),
deixa de proporcionar qualquer valor superior ou razão de esperança: o capitalismo americano
perdeu a sua legitimidade tradicional assente na santificação protestante do trabalho e revelase incapaz de fome cer um sistema de motivação e de justificação como o que toda a sociedade
deve ter e sem o qual a vitalidade de uma nação de desfaz. Sem dúvida, ou tros factores
entraram em jogo: os problemas raciais, as bolsas de miséria no coração da abundância, a
guerra do Vietname, a contra-cultura contribuí ram para esta crise de confiança da América.
Mas por toda a parte, o hedo
Guies Lipovetsky
120
A Era do Vazio
nismo juntamente com a recessão económica cria uma frustração dos desejos que o sistema
dificilmente pode reduzir, que se arrisca a favorecer as solu ções extremistas e terroristas,
conduzindo à queda das democracias. A crise cultural leva à instabilidade política: «Ê nestas
circunstâncias que as institui ções tradicionais e os procedimentos democráticos de uma
sociedade se des moronam e que se afirmam cóleras irracionais acompanhadas pelo desejo de
ver surgir um homem providencial que salve a situação» (p. 258). Só uma acção política
empenhada em reduzir os desejos ilimitados, em equilibrar o domínio privado e o domínio
80
público, em reintroduzir coerções legais como a interdição da obscenidade, da pornografia, das
perversões, será capaz de reinsuflar uma legitimidade às instituições democráticas: «A
legitimidade po derá assentar nos valores do liberalismo político se se dissociar do hedonis mo
burguês» (p. 260). A política neo-conservadora, a ordem moral, remédios para a doença senil do
capitalismo!
Privatização exacerbada dos indivíduos, divórcio entre as aspirações e as gratificações reais,
perda da consciência cívica, isto não autoriza nem a diagnosticar uma «mistura explosiva
prestes a deflagrar» nem a prognosticar o declínio das democracias. Não deveremos antes
reconhecer aqui índices de um reforço da legitimidade democrática? A desmotivação política,
insepará vel dos progressos do processo de personalização, não deve esconder a sua face
complementar, o apagamento das dilacerações da idade revolucionária, a renúncia às
perspectivas insurreccionais violentas: o consenso pode ser frouxo, mas é generalizado no que
se refere às regras do jogo democrático. Crise de legitimação? Não o pensamos: já nenhum
partido recusa a regra da concorrência pacífica em torno do poder, nunca a democracia
funcionou co mo hoje sem inimigo interior declarado (à excepção dos grupos terroristas ultraminoritários e sem qualquer audiência), nunca esteve tão segura do bom fundamento das suas
instituições pluralistas, nunca se encontrou em tal consonância com os costumes, com um perfil
de um indivíduo treinado na escolha permanente, alérgico ao autoritarismo e à violência,
tolerante e ávi do de transformações frequentes mas sem riscos maiores. «Atribui-se dema
siada importância às leis e muito pouca aos costumes», escrevia Tocqueville, observando já que
a conservação da democracia na América assentava de modo preponderante nos costumes: isto
é ainda mais verdadeiro nos nossos dias, enquanto o processo de personalização não pára de
reforçar a procura de liberdade, de escolha, de pluralidade e de promover um indivíduo des
crispado,fair-piay, aberto às diferenças. A medida que o narcisismo cresce,
a legitimidade democrática leva a melhor, ainda que numa modalidade coo!; os regimes
democráticos, com o seu pluralismo partidário, as suas eleições, o seu direito à oposição e à
informação, mantêm um parentesco cada vez mais estreito com a sociedade personalizada do
se/f-servjce, do teste e da liberda de combinatória. Ainda que os cidadãos não usem os seus
direitos políticos, ainda que o militantismo decaia, ainda que a política se torne espectacular, o
apego à democracia não é menos profundo por isso. Se os indivíduos se absorvem na esfera
privada, não devemos deduzir demasiado rapidamente que se desinteressam da natureza do
sistema político; a desafecção político- ideológica não é contraditória com um consenso fluido,
vago, mas real acer ca dos regimes democráticos. A indifirença pura não significa a indiferença
pela democracia, significa desafecção emocional dos grandes referentes ideo lógicos, apatia
nas consultas eleitorais, banalização espectacular do político, a transformação em «ambiência»
da política, mas tudo isto na arena própria da democracia. Mesmo os que apenas se interessam
pela dimensão privada da sua vida permanecem ligados, graças aos laços tecidos pelo processo
de personalização, ao funcionamento democrático das sociedades. A indiferença pura e a
coabitação pós-moderna dos contrários caminham a par: não se vo ta, mas quer poder-se votar;
não há interesse pelos programas políticos, mas faz-se questão da existência de partidos; não
se lêem jornais, nem livros, mas defende-se a liberdade de expressão. Como seria de outro
modo na era comunicação, da super-escolha e do consumo generalizado? O processo de
personalização trabalha no sentido de legitimar a democracia na medida em que é, em toda a
parte, um operador da valorização da liberdade e do plu ral. Seja qual for a sua despolitização,
o homo psychologicus não é indife rente à democracia, continua a ser nas suas aspirações
81
profundas um humo democraticus, converte-se no melhor garante da democracia. Sem dúvida, a
legitimação não se liga a um investimento ideológico, mas é nisso que está a sua força; a
legitimação contemporânea da era disciplinar deu lugar a um consenso existencial e tolerante, a
democracia tornou-se uma segunda natu reza, um meio de vida, um ambiente. A
«despolitização» de que somos teste munhas é acompanhada pela aprovação muda, frouxa, não
política do espa ço democrático. D. Bel! inquieta-se com o futuro dos regimes da Europa
Ocidental, mas que vemos passar-se neles? Na Itália, a despeito de acções terroristas
espectaculares, o regime parlamentar mantém-se, ainda que em equilíbrio instável; em França,
a vitória socialista não deu lugar a qualquer confronto de classe e a situação, a partir daí, temse desenrolado sem cho
122
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
123
ques nem tensões especiais; apesar de uma crise económica e de dezenas de milhões de
desempregados, a Europa não se vê de modo nenhum dilacerada por lutas sociais ou políticas
violentas. Como dar conta desse facto sem to mar em consideração a obra do processo de
personalização, o indivíduo coo! e tolerante que dele resulta, a legitimidade surda, mas eficaz
por todos con cedida à ordem democrática?
Restam as contradições ligadas à igualdade. De acordo com D.Bell, a crise económica que as
democracias ocidentais atravessam explica-se em par te pelo hedonismo que causa aumentos
de salários permanentes, mas tam bém pela exigência de igualdade conduzindo a um aumento
das despesas so ciais do Estado, de maneira nenhuma compensadas por um aumento corres
pondente de produtividade. Desde a Segunda Guerra Mundial, o Estado, tornado peça central
do controlo da sociedade por força das suas funções alargadas, vê-se cada vez mais obrigado a
satisfazer reivindicações que se afirmam como direitos colectivos e não já individuais; a
sociedade pós- industrial é uma «sociedade comunitária» Estamos a viver uma «revolução das
reivindicações», todas as categorias da sociedade apresentam doravante reivindicações de
direitos específicos em nome do grupo, mais do que em no me do indivíduo: «revolução dos
novos detentores de direitos» (p. 242), ba seada no ideal da igualdade, que engendra um
desenvolvimento considerável das despesas sociais do Estado (saúde, educação, auxílios sociais,
meio am biente, etc.). Ora esta subida das reivindicações coincide com a tendência pósindustrial para o predomínio crescente dos serviços, sectores onde preci samente o aumento
de produtividade é mais fraco: «A absorção pelos servi ços de uma parcela cada vez mais
importante da mão-de-obra trava necessa riamente a produtividade e o crescimento globais;
esta transferência é acom panhada por uma alta brutal do custo dos serviços tanto privados
como pú blicos» A preponderância das actividades de serviços, a alta contínua dos seus custos,
as despesas sociais do Estado-Providência engendram uma infla ção estrutural devida ao
desequilíbrio da produtividade. O hedonismo, bem como a igualdade, com os seus «apetites
desmedidos», contribuem assim pa ra amplificar uma crise «profunda e persistente»: «A
sociedade democrática apresenta reivindicações que a capacidade produtiva da sociedade não
pode satisfazer» (p. 245).
Vers la société post-industrie/le, op. cit., p. 203 e pp. 417-418.
2 Ibid. p. 200.
82
Está fora de questão discutir, ainda que rapidamente, nos limites deste ensaio, a natureza da
crise económica do capitalismo e do Welfare State. Sublinhemos apenas o paradoxo que
conduz um pensamento resolutamente orientado contra o marxismo a desposar por fim uma das
suas característi cas essenciais, uma vez que, de novo, vemos o capitalismo ser aqui analisado
em função de contradições objectivas (ainda que seja a cultura a ser antinó mica e já não o
modo de produção), de leis mais ou menos inevitáveis que levarão os EUA a perder a sua
hegemonia mundial e a viver o fim do século «como um velho proprietário» (p. 223). Sem
dúvida, nem tudo está decidido, mas as medidas que se imporiam para arrancar, por exemplo, o
Estado- Providência à crise fiscal em que se encontra, opõem-se tanto à cultura he donista e
igualitária que é permitido «perguntarmo-nos se a sociedade pós- industrial alguma vez poderá
adoptá-las» De facto, ao estabeler uma dis junção entre igualdade e economia, D. BelI reifica
as antinomias do capita lismo, proibe-se de pensar a flexibilidade dos sistemas democráticos, a
in venção e a reafirmação históricas. Que haja tensões entre a igualdade e a eficácia, é uma
evidência, mas não basta para concluirmos que existe con tradição entre as duas ordens. De
resto, que devemos entender ao certo por «contradição» ou «disjunção das ordens»? O
equívoco não é desfeito nunca, remetendo o esquema ora para uma crise estrutural de um
sistema em vias de decadência inelutável, ora para estrangulamentos profundos, mas sobre os
quais é possível, apesar de tudo, intervir. Igualdade contra utilidade? O que é notável, pelo
contrário, é o facto de a igualdade ser um valor maleá vel, que se pode traduzir na linguagem
economista dos preços e dos salários, modulável, por conseguinte, em função das opções
políticas. Noutras passa gens, de resto, o próprio D. Bel! o reconhece: «A prioridade do
político, no sentido em que o entendemos, é constante» A igualdade não é contrária à eficácia,
ou só o é aqui ou ali, pontualmente ou conjunturalmente, em fun ção dos ritmos e pressão das
reivindicações, em função desta ou daquela política da igualdade. Sobretudo, não devemos
perder de vista que onde a democracia se encontra estruturalmente reprimida, as dificuldades
económi cas são incomparavelmente maiores e conduzem, no melhor dos casos, a so ciedade à
penúria e, nos casos piores, à pura e simples bancarrota. A igual dade não produz unicamente
disfunções, obriga também o sistema político e
1 Vers la société post-industrzelle, op. cit.. p. 201.
2 Ibid.. p. 363.
124
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
125
económico a transformar-se, a «racionalizar-se», a inovar, é um factor de de sequilíbrio, mas
também de invenção histórica. Assim deixam-se já adivi nhar novas políticas sociais que
tenderiam a conduzir não ao «Estado mmi- mal», mas a uma redefinição da solidariedade social.
As dificuldades do Es tado-Providência, pelo menos em França, não anunciam o fim das políticas
sociais de redistribuição, mas talvez o fim do estádio rígido ou homogéneo da igualdade em
proveito de uma «fragmentação do sistema entre um regime de protecção social reservada às
categorias modestas da população e o recur so aos seguros para as camadas mais abastadas»
exceptuados os grandes direitos e riscos: a igualdade introduzir-se-ia na era personalizada ou
flexível das redistribuições desiguais. P. Rosanvalion tem razão em ver nos proble mas actuais
do Estado-Providência uma crise que excede as simples dificul dades financeiras e em ver nela
um deslocamento mais global das relações entre a sociedade e o Estado; em compensação, é
83
mais difícil acompanhá-lo quando interpreta a crise como uma dúvida acerca do valor da
igualdade:
«Se há uma dúvida essencial que atravessa o Estado-Providência é realmente esta: a igualdade
será um valor ainda com futuro?» Com efeito, a igualda de enquanto valor não está posta em
causa, a redução das desigualdades continua na ordem do dia, sejam quais forem as
dificuldades, que aliás não são novas, em determinar a norma do justo e do injusto, O que
alimenta a presente contestação do We/fare State, nomeadamente nos EUA, é a verifi cação
dos efeitos perversos de uma política burocrática da igUaldade, é a ineficácia dos mecanismos
de subsídio na redução das desigualdades, é o ca rácter anti-redistributivo dos sistemas de
prestações uniformes baseados nos serviços gratuitos e nas múltiplas formas de subvenção.
Não se trata do eclipse da igualdade, mas da sua prossecução através de meios mais maleá veis,
de menores custos para a colectividade: daí essas ideias novas que são o «imposto negativo», o
«auxílio directo à pessoa», os «créditos» de educação, saúde, alojamento dispositivos
concebidos para adaptarem a igualdade a uma sociedade personalizada, preocupada com o
aumento das possibilidades de escolha individual. A igualdade sai da fase moderna e uniforme e
recicla se de acordo com a era pós-moderna da diversificação e personalização dos
1 A. Mi, Laprês-crise est cornniencé, Gallimard, 1982, p. 60. Deste modo, n se trata de sair de
uma cultura da igualdade, mas de ponderaras suas deficiências (ibid., pp. 46-61).
2 P. Rosanvallon, La Crise de 1Etat-providence, Ed. du Seuil, 1981, p. 36.
H. Lepage, Demain le capitalisme, R. Laffont, col. «Pluriel», 1978, pp. 280-292.
modos de redistribuição, da coexistência dos sistemas de seguros individuais e dos sistemas de
protecção social no momento em que justamente a procura de liberdade é superior à de
igualdade. Crítica do carácter gratuito dos ser viços, denúncia dos monopólios públicos, apelo à
desregulamentação e à pri vatização dos serviços, tudo isto caminha no sentido da tendência
pós- moderna para privilegiar a liberdade relativamente ao igualitarismo unifor me, mas
também para responsabilizar mais o indivíduo e as empresas obrigando-os a mais mobilidade,
inovação, escolhas. A crise da social-democracia coincide como movimento pós-moderno de redução da rigidez individual e
institucional: menos relação vertical e paternalista entre o Esta do e a sociedade, menos
regime único, mais iniciativa, diversidade e respon sabilidade na sociedade e nos indivíduos, e
as novas políticas sociais, a mais breve ou mais longo prazo, terão que continuar a mesma obra
de abertura que o consumo de massa pôs em movimento. A crise do Estado-Providência:
meio de disseminar e de multiplicar as responsabilidades sociais, meio de re forçar o papel das
associações, das cooperativas, das colectividades locais, meio de reduzir a distância
hierárquica que separa o Estado da sociedade, meio de «aumentar a flexibilidade das
organizações como contrapartida ao aumento das flexibilidades dos indivíduos meio, por
conseguinte, de adap tar o Estado à sociedade pós-moderna, centrada no culto da liberdade
indi vidual, da proximidade, da diversidade. Está aberta a via pela qual o Estado poderá entrar
no ciclo da personalização, pôr-se de acordo com uma socie dade móvel e aberta, recusando a
rigidez burocrática, a distância política, ainda que benevolente, como acontece no caso da
social-democracia.
P. Rosanvallon, op. cit., p. 136.
84
CAPITULO V
A sociedade humorística
Tem-se sublinhado de há muito a amplitude do fenómeno de dramatiza ção suscitado pelos
mass-media: clima de crise, insegurança urbana e plane tária, escândalos, catástrofes,
entrevistas dilacerantes, pelo que, sob a sua objectividade de superfície, as informações se
orientam no sentido da emo ção, do «pseudo-acontecimento», do cliché sensacional, do
suspense. Tem-se observado menos um fenómeno igualmente inédito, de certo modo inverso,
apesar de legível a todos os níveis da quotidianidade: o desenvolvimento ge neralizado do
código humorístico. Cada ve mais, a publicidade, as emissões de animação, os siogans das
manifestações, a moda adoptam um estilo hu morístico. Os comics suscitam um tal apetite que
um jornal de San Francis co sofreu uma queda espectacular do seu número de leitores por ter
decidido suprimir a BD de Schulz, os Peanuts. Até as publicações sérias se deixam influenciar
em maior ou menor medida pela atmosfera da época: basta ler os títulos ou subtítulos dos
diários, dos semanários e mesmo dos artigos científicos ou filosóficos. O tom universitário dá
lugar a um estilo mais tóni co feito de piscadelas de olho e jogos de palavras. A ai-te,
adiantando-se nis so a todas as outras produções, integrou de há muito o humor como uma das
suas dimensões constitutivas: impossível, com efeito, eliminar a carga e
128
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
129
a orientação humorística das obras, com Duchamp, a anti-arte, os surrealis tas, o teatro do
absurdo, a arte pop, etc. Mas o fenómeno não pode sequer ser circunscrito à produção
expressa dos signos humorísticos, ainda que ao nível de uma produção de massa; o fenómeno
designa simultaneamente o devir inelutável de todas as nossas significações e valores, do sexo
ao Outro, da cultura ao político e isto contra a nossa própria vontade. A descrença pósmoderna, o neo-nihilismo que ganha corpo, não é nem ateu nem mortí fero, mas doravante
humorístico.
Do cómico grotesco ao humor pop
O nosso tempo não detém, longe disso, o monopólio do cómico. Em to das as sociedades,
incluindo as selvagens, nas quais a etnografia revela a existência de cultos e mitos cómicos, os
divertimentos e o riso ocuparam um lugar fundamental que temos tendência a subestimar em
excesso. Mas se ca da cultura desenvolve de modo preponderante um esquema cómico, só a so
ciedade pós-moderna pode dizer-se humorística, só ela se instituiu global mente sob a égide de
um processo tendente a dissolver a oposição, até então estrita, do sério e do não-sério; na
esteira das outras grandes divisões, a do cómico e do cerimonial esbate-se em benefício de um
clima largamente hu morístico. Enquanto que a partir da instituição das sociedades estatais, o
có mico se opõe às normas sérias, ao sagrado, ao Estado, representando assim um segundo
mundo, mundo carnavalesco e popular na Idade Média, mundo da liberdade satírica do espírito
subjectivo a partir da idade clássica, esta dualidade tende a liquefazer-se sob o impulso
invasor do fenómeno hu morístico que anexa todas as esferas da vida social, ainda que apesar
da nossa oposição. Os carnavais e festas estão reduzidos a uma existência fol clórica, o
princípio de alteridade social que incarnavam pulverizou-se e, cu riosamente, é a uma luz
humorística que doravante nos aparecem. Os pan fletos violentos perderam a sua
85
preponderância, os cantores deixaram de ser cabeças de cartaz; um novo estilo descontraído e
inofensivo, sem negação nem mensagem, emergiu, caracterizando o humor da moda, da escrita
jor nalística, dos jogos radiofónicos, da publicidade, de numerosas BD. O cómi co, longe de ser
a festa do povo ou do espírito, tornou-se um imperativo so cial generalizado, uma atmosfera
coo1, uni meio ambiente permanente que o indivíduo sofre até na sua existência quotidiana.
Nesta perspectiva, podemos determinar três grandes fases históricas do cómico a partir da
Idade Média, sendo cada uma delas caracterizada por um princípio dominante. Na Idade Média,
a cultura cómica popular encon tra-se profundamente ligada às festas, aos divertimentos de
tipo carnavales co, que, digamo-lo de passagem, chegavam a ocupar um total de três meses por
ano. Neste contexto, o cómico vê-se unificado pela categoria de «realis mo grotesco» baseado
no princípio de rebaixamento do sublime, do po der, do sagrado, por meio de imagens
hipertrofiadas da vida material e cor poral. No espaço da festa, tudo o que é elevado,
espiritual, ideal é transpos to, parodiado, para a dimensão corporal e inferior (comer, beber,
digestão, vida sexual). O mundo do riso edifica-se essencialmente a partir das mais di versas
formas de grosseria, de rebaixamentos grotescos dos ritos e símbolos religiosos, de
arremedos paródicos dos cultos oficiais, de coroações e destro namentos bufos. Assim, por
altura do Carnaval, a hierarquia é invertida, o bufão é sagrado rei pelo conjunto do povo, depois
ridicularizado pelo mesmo povo que o injuria e lhe bate quando o seu reinado chega ao fim;
durante a «festa dos loucos», elege-se um abade, um arcebispo e um papa de mascara da que
entoam refrões obscenos e grotescos sobre árias de cantos litúrgicos, transformam o altar em
mesa de banquete e utilizam excrementos à guisa de incenso. Depois do ofício religioso, a
paródia escatológica continuava, per correndo este «clero» as ruas e lançando excrementos
sobre o povo que o es coltava. Introduzia-se igualmente na igreja um burro em honra do qual se
celebrava a missa: no fim do ofício, o padre zurrava, seguido pelos fiéis. E este mesmo esquema
carnavalesco que, até ao Renascimento, impregnará as obras literárias cómicas (paródias dos
cultos e dogmas religiosos), bem como os gracejos, ditos, pragas e injúrias: o riso surge sempre
ligado à profanação dos elementos sagrados, à violação das regras oficiais. Todo o cómico
medie val oscila assim no sentido de uma imaginária grotesca que, antes de tudo, devemos não
confundir com a paródia moderna, de algum modo dessociali zada, formal ou «estetizada». A
mascarada cómica do rebaixamento é uma simbólica através da qual a morte se afirma como
condição de um novo nas cimento. Invertendo o alto e o baixo, precipitando tudo o que é
sublime e
Mikhaïl Bakhtine, LOeuvre de François Rabelais et la culture populaire ou Moyen Âge ei sous la
Renaissance. 1970, pp. 28-29. O livro de Bakhtine é essencial para tudo o que se re fere à
história do cómico popular da época. Fornece, além disso, elementos muito úteis para uma
interpretação mais global da história do riso. As análises que a seguir desenvolvemos de vei
muito da sua inspiração.
130
Gil/es Lipovetsky 1 A Era do Vazio
digno nos abismos da materialidade, prepara-se a ressurreição, um novo co meço após a morte.
O cómico medieval é «ambivalente»;em toda a parte se trata de dar a morte (rebaixar,
ridicularizar, injuriar, blasfemar) para dar alento a uma nova juventude, para iniciar a
renovação
86
A partir da idade clássica, inicia-se o processo de decomposição do riso da festa popular, ao
mesmo tempo que se formam os novos géneros da literatu ra cómica, satírica e de
divertimento, afastando-se cada vez mais da tradi ção grotesca. O riso, expurgado do seus
elementos alegres, das suas grosse rias e ultrajes bufos, da sua base obscena e escatológica,
tende a reduzir-se ao espírito, à ironia pura que se exerce à custa dos costumes e individualida
des típicas. O cómico já não é simbólico, torna-se agora crítico, tanto na co média clássica
como na sátira, na fábula, na caricatura, na revista ou no vaudevilie. Com isto, o cómico entra na
sua fase de dessocialização, privati za-se e torna-se «civilizado» e aleatório. Com o processo
de empobrecimento do mundo carnavalesco, o cómico perde o seu carácter público e colectivo,
metamorfoseia-se em prazer subjectivo perante este ou aquele facto engraça do isolado, o
indivíduo fica no exterior do objecto do sarcasmo, nos antípo das da festa popular que ignorava
qualquer distinção entre actores e espec tadores e abrangia o conjunto do povo ao longo de
todo o tempo que dura vam os festejos. Em simultâneo com esta privatização, o riso disciplinase:
devemos entender o desenvolvimento dessas formas modernas do riso que são o humor, a
ironia, o sarcasmo, como um tipo de controlo ténue e infini tesimal exercido sobre as
manifestações do corpo, análogo por esse lado ao adestramento disciplinar analisado por
Foucault. Trata-se, num e noutro ca so, de decompor os agrupamentos maciços e confusos,
isolando os indiví duos, de quebrar as familiaridades e comunicações não-hierárquicas, de ins
tituir barreiras e compartimentações, de domesticar as funções de um modo constante, de
produzir «corpos dóceis», comedidos e previsíveis nas suas reacções. Nas sociedades
disciplinares, o riso, com os seus excessos e exube râncias, vê-se inelutavelmente
desvalorizado, o riso que, justamente, não exi ge qualquer aprendizagem: no século XVIII, o
riso livre torna-se um com portamento desprezado e vil e, até ao século XIX, será considerado
baixo e de mau tom, tão perigoso como tolo, encorajando a superficialidade e mes mo a
obscenidade. A mecanização do corpo disciplinado corresponde a espi ritualizaçãointeriorização do cómico: uma mesma economia funcional visan 1 M. Bakhtjne, op. cit. p. 30-31.
131
do Poupar as despesas desordenadas um mesmo proces celular que pro duza o indivíduo
moderno.
Actualmente, estamos para além da era satíi-jca e do seu cómico mordaz. Através da
publicidade, da moda, dos gadgets, das emissões de animação, dos comies, quem não vê que a
tonalidade dominante e inédita do cómico já não é sarcástica, mas 1i O humor que se instala
suprime o negativo ca racterístico da fase satírjca ou caricatural À denúncia trocista
corresponden te a uma sociedade baseada em valores reconhecidos substjtuiuse um humor
positivo e desenvolto, um cómico teen-ager à base de despropósito gratuito e sem pretensões o
humor na publicidade ou na moda não tem vítima, não troça, não critica, esforçand somente por
prodigalizar uma atmosfera eu fórica de bom humor e de felicidade sem reverso, O humor de
massa já não repousa num fundo de amargura ou aborrecimento: longe de mascarar um
pessimismo ou de ser a «delicadeza do desespero», o humor contemporâneo quer-se sem
espessura e descreve um universo radioso. «Há uma festa super em cada iogurte»: a
tradicional gravidade ou impassibilidade do humor in glês ( verdadeiro humor é característico
de um autor que afecta gravidade e seriedade, mas pinta os objectos com uma cor tal que
provoca alegria e o riso», Lord Kames) desapareceu na mesma vaga que levou também a descri
87
ção minuciosa e imparcial do real ( humorista é um moralista que se dis farça de sábio»,
Bergson), Actualmente o cómico é bizarro e hiperbólico (a publicidade anexa o Oriente e os
gurus declaram: «A sua serenidade consiste em reunir todos os seus contratos de seguros na
UAP»), o gosto dos porme nores, a objectivjda do estilo inglês deu lugar à embriaguez do spot
e do siogan. Tendo deixado de fingir a indiferença e O desprendimento, o humor de massa é
sedutor, tónico e psicadélico; o seu registo pretende-se expressi vo, caloroso e cordial. Para
disso nos convencermos basta ouvirmos o estilo dos animadores das emissões radiofónicas para
«jovens» (Gérard Klein): o humor aqui já nada tem a ver com o espírito, como se tudo o que
tivesse uma certa profundidade pusesse em perigo o ambiente de proximidade e de comunhão.
O humor, doravante, é aquilo que seduz e aproxima os indiví duos: W. AlIen surge no hit-parade
dos sedutores de Play Boy. As pessoas tratam-se por «tu», ninguém se leva a sério, tudo é
«giro», multipJjcam os gracejos que procuram evitar o paternalismo a distância, o logro ou a
clás sica história de fim de banquete. O humor radiofónico, na esteira do colori do da pintura
pop, manifesta-se por camadas, o tom é o das verdades de Lapalíss da familiaridade vazia, dos
balões da BD, tanto mais prezado
132
Guies Lipovetsky
quanto mais simples e cursivo. Do mesmo modo, na vida quotidiana, con tam-se muito menos
histórias curiosas, como se a personalização da vida se tornasse incompatível com essas formas
de narração transmitidas pcrr ouvir dizer, repetitivas e codificadas. Nas sociedades mais
crispadas, uma tradição viva apoia-se nas anedotas com alvos relativamente precisos (os loucos,
o se xo, o poder, certos grupos étnicos): hoje o humor tende a desligar-se destes moldes
demasiado rígidos e sólidos em benefício de uma boa - disposição sem ossatura, sem cabeça de
turco, e de um gracejar vazio que se alimenta de si próprio O humor, como o mundo subjectivo
e intersubjectivo, dessubstan cializa-se, aspirado pela lógica generalizada de uma
inconsistência maior. Os ditos de espírito, os jogos de palavras vão igualmente perdendo o seu
prestí gio: quase nos desculpamos por causa de um trocadilho ou rimo-nos acto contínuo do
nosso próprio espírito. O humor dominante já não se acomoda com a inteligência das coisas e da
linguagem, com essa superioridade que o espírito se arroga; precisa de um cómico discount e
pop que já não sugira qualquer eminência ou distância hierárquica. Banalização, dessubstanciali
zação, personalização, encontramos todos estes processos entre os novos se dutores dos
grandes media: as personagens burlescas, heróicas ou melodra máticas fizeram o seu tempo,
hoje é o estilo aberto, desenvolto e humorístico que se impõe. Os filmes de James Bond, as
«séries» americanas (Starky et Hutch, Sinceramente Seu) põem em cena personagens que têm
em comum unia mesma descontração dinâmica acompanhada por uma eficácia exem plar. O
«novo» herói não se leva a sério, desdramatiza o real e caracteriza-se por uma atitude
maliciosamente desprendida ante os acontecimentos. A ad versidade é ininterruptamente
atenuada pelo seu humor coo! e empreende dor enquanto a violência e o perigo o cercam por
todos os lados. À imagem do nosso tempo, o herói é eficiente, embora não invista
emocionalmente os seus actos. Doravante, não há entrada para ninguém que se leve a sério,
ninguém é sedutor se não for simpático.
O humor vazio, desestruturado, conquista o próprio significante e desdobra-se no excesso
lúdico dos signos: testemunha-o a invasão dos comics por onomatopeias, palavras bárbaras in
ventadas intencionalmente para traduzirem, num registo hiperexpressivo e cómico, os ruídos
do mundo. «Chnaf», «plomp*, «ghuuhugrptch», rrhaawh», hugnuptch», «grmf» — estes
significan tes já não têm sentido e desprendem-se de todo o referente. O cómico resulta
88
desta autonomia hiperbólica da linguagem, da vacuidade dos signos que se abandonam à
exasperação sonora, ortográfica e tipográfica. Cf. Fresnault-Dereuelle, Récits et discours par
la banda. Hachette, 1977, pp. 185-199.
A Era do Vazio
133
A par do humor de massa eufórico e convivial afirma um humor de certo modo undergro
descontraído sem dúvida mas de tom deseiiga. nado, hard. «Ê preciso ter unia cabeça lixada
para chegar a esse Ponto. Mas é unia condição sifle qua lion; caso contrário, dá-se em maluco,
com o Iggy Pop, quer dizer, fica-se com os fusíveis da tola todos queimados e com um sorriso
idiota e babado... E os tipos bem podem dizer que o inferno é um sítio fixe e bem aqueci com
um concerto do Gene Vincent e do Hendriz todos os dias, quanto mais tarde lá formos parar,
melhor, não acham? po bres barracas, como vos odeio!» (Libóration) Humor Pós-moderno, new
wave, que não devemos confundir com o humor negro: o tom é baço, vaga- mente Provocador,
sobre o vulgar, exibindo ostensivamente a emancipação da linguagem do sujeito e muitas vezes
do sexo. £ a face dura do narcisis mo que se deleita aqui na negaç estética e nas figuras de um
quotidia metalizado Num outro género e sem desencanto Mad Max II de G. Milier é um
exemplo muito característico de um humor hard onde se misturam in dissociavelmente a
extrema violência e o cómico. A «graça» está aqui na en genhosida no excesso hiper-realista
das máquinas de ficção científica «pri mitivas», atrozes, bárbaras. Não há meias tintas, o
humor trabalha ao vivo, em grandes planos e com efeitos especiais; o macabro é ultrapassado
pela apoteose do teatro hollywoodjano da crueldade
Simultaneamente é a uma esterjlizaç a uma pacifjcaç do cómico que assistimos na vida
quotidiana Assim os disfarces divertimentos ainda muito apreciados nos campos do século xix,
deixaram de se ver, excepto nas festas infantis ou em festas privadas Outrora, os camponeses
divertiam. se passeando nas suas aldeias vestidos de soldados, de burgueses ricos ou em trajes
do sexo oposto. O mimo também já não tem grande êxito, quando, na mesma época, não era
raro, nomeadamente por altura dos casamentos, ver caricaturadas as sogras de modo grotesc .
As pragas e blasfémias iá não dão vontade de rir, as grosseri medida que passaram a ser
generaliz mente utilizadas e anexadas pela moda, banalizamse, perdem o seu poder de
provocação e a sua intensidade agress Só os sketc/zes de nzusjc-hal/ ou de café-concerto
(Coluche) conseguem dar ainda às grosseria a sua virtude hilariante, e mesmo isso, não como
violaç da norma, mas como amplifica. ção e reflexo do quotidia Os arremedos, que nos meios
Populares do sé culo XIX eram os gracejos mais apreciados e que muitas vezes não se mos
Zeldin, Htstojye des Êd. Recherches 1979 . II p. 394.
1
134
Gil/es Lipovetsky
A Era do Vazio
travam desprovidos de certa brutalidade, já não têm grande eco: inventar uni argumento
destinado a ridicularizar outrém aos olhos de todos suscita hoje mais reprovação do que
encorajamento. Mesmo as «imitações e adivi nhas» caíram em desuso e passaram a ser
reservadas às crianças: o cómico exige nos nossos dias mais discrição e novidades: já não
89
estamos no tempo em que as pessoas se riam invariavelmente com as mesmas graças; o humor
requer hoje o espontâneo, o «natural».
Apesar de tudo isto, verifica-se desde há dois ou três anos um reatar dos grupos mascarados
de jovens, nas ruas e nos liceus, por ocasião da Terça- feira Gorda. Fenómeno novo, pósmoderno, com efeito: o indivíduo moderno achava ridículo ou infantil disfarçar-se; o mesmo já
não se passa hoje, uma vez que essa recusa parecia austera, rígida, convencional. A atitude
pós- moderna é menos ávida de emancipação séria do que de animação desenvol ta e de
personalização fantasista. Tal é de facto o sentido deste regresso descrispado do
carnavalesco: de modo nenhum um reinvestimento da tradi ção, mas um efeito tipicamente
narcísico, hiper-individualizado, espectacu lar, dando lugar a uma profusão exasperada de
máscaras, ouropéis, caracte rizações, ornamentos heteróclitos. A «festa» pós-moderna: meio
lúdico de uma sobre-diferenciação individualista e que, no entanto, não é um meio menos
curiosamente sério pela aplicação cuidadosa e sofisticada que o carac teriza.
Pouco a pouco, tudo o que possui uma componente agressiva perde a sua capacidade de fazer
rir os rituais de entrada em certas grandes escolas mantêm-se, mas a iniciação, para ser
engraçada, não deve ultrapassar um certo limiar de agressão: para além desse limite, surge
como uma violação, destituída de dimensão cómica. De acordo com o irreversível processo de
«abrandamento dos costumes», de que falava Tocqueville, o cómico torna-se incompatível com
os divertimentos cruéis de outrora: não só já ninguém riria vendo queimar gatos como era
costume no século XVI por altura da festa de
Na imprensa ou no desenho (Woljnski, Reiser, Cabu, Gébé), assistimos à tendência in versa, a
uma escalada sem precedentes de ferocidade caricatural, de humor «estúpido e mau», de modo
nenhum em contradição com o processo de abrandamento dos costumes, mas a favor deste: o
humor atroz pode dar-se tanto mais livre curso quanto mais os costumes e relações hu manas
se pacificam. A vulgaridade, a obscenidade ressurgem sob forma humorística ao mesmo tempo
que a higiene é um credo universal e o corpo se transforma em objecto de solicitudes e de
cuidados permanentes.
135
S. João mas as próprias crianças já não acham graça, ao contrário do que se passava em todas
as civilizações anteriores, a martirizar os animais. À medida que o cómico se espiritualiza,
começa prudentemente a poupar o outro: devemos sublinhar esta atitude sociainiente nova que
consiste em re provar o riso à custa de outrém. O outro deixa de ser a presa privilegiada dos
sarcasmos, rimo-nos hoje muito menos dos vícios e defeitos de outrém:
no século XIX e durante a primeira metade do século XX, amigos, vizinhos, com os seus
infortúnios (o cornudo, por exemplo), os seus desvios em rela ção à norma, eram objecto de
gracejos. Actualmente, os que nos estão pró ximos são poupados, no preciso momento em que,
como veremos, a imagem do outro perde consistência e se torna humorística à força de
singularidade. Tal como o humor lúdico na ordem dos signos de massa toma o lugar do espírito
satírico, assim, ao nível da quotidianjdade, a crítica trocista em rela ção a outrém atenua-se e
perde o seu efeito hilariante, de acordo com uma personalidade psi em busca de calor convivial
e de comunicação inter- pessoal.
Correlativamente, é o Eu que se torna um alvo privilegiado do humor, objecto de deri-isão e de
auto-depreciação como testemunham os filmes de W. Alien. A personagem cómica já não releva
90
do burlesco (B. Keaton, Ch. Chaplin, os irmãos Marx), a sua graça já não resulta nem da
inadaptação nem da subversão das lógicas, decorre da reflexividade, da hiper-consciência
narcísjca, libidinal e corporal. A personagem burlesca é inconsciente da ima gem que
Proporciona ao outro, faz rir contra-vontade e Sem se observar, sem se ver a agir; são as
situações absurdas que engendra, os gags que põe em cena segundo uma mecânica irremediável
que são cómicos. Pelo contrário, com o humor narcísico, Woody Allen faz rir sem deixar nunca
de se anali sar, dissecando o seu próprio ridículo, estendendo-se a si próprio e ao espec tador o
espelho do seu Eu desvalorizado. o Ego, a consciência de si, que se torna objecto de humor e já
não os vícios de outrém ou os actos extrava gantes.
Paradoxalmente é com a sociedade humorística que na realidade começa a fase de liquidaç do
riso: pela primeira vez funciona um dispositivo que consegue dissolver progressjvame a
propensão para o riso. A despeito do código das boas maneiras e da condenação moral do riso,
os indivíduos de
Norbert Elias, La Civz/isati des Fnoeurs, Le livre de poche «Pluriel», p. 341.
Guies Lipovetsky
136
A Era do Vazio
todas as classes nunca deixaram de conhecer o riso demonstrativo, o riso louco, a explosão de
jovialidade. No século XIX, nas representações do café- concerto, o público tinha o costume
de interpelar jovialmente os artistas, de rir ruidosamente, de lançar comentários e gracejos
em voz alta. Há pouco tempo ainda, um ambiente semelhante podia encontrar-se nas salas de
cine ma populares: Fellini soube restituir esse clima rico de vida e risos mais ou menos
grosseiros numa das cenas de Roma. Nos espectáculos de J. Pujol, as enfermeiras tinham que
levar para fora mulheres literalmente doentes de ri so; as farsas e vaudevilies de Feydeau
desencadeavam tais acessos de riso que os actores se viam obrigados a mimar o fim dos
espectáculos, de tal mo do a hilariedade era descontrolada Que resta de tudo isto hoje que as
grandes algazarras de classe desapareceram, que a cidade vê terminarem os «gritos», os
gracejos dos palhaços, mercadores e charlatães, que os cinemas de bolso substituem os
cinemas de bairro, que o som nas boí’tes apaga as vo zes, que a música-ambiente anima o
silêncio discreto dos restaurantes e su permercados? Porque é que os grandes acessos de
hilaridade dão tanto nas vistas senão por nos termos a pouco e pouco desabituado de ouvir
essas gar galhadas espontâneas que eram tão frequentes em tempos anteriores? A me dida que
a poluição sonora conquista a cidade, o riso extingue-se, o silêncio invade o espaço humano, só
as crianças parecem escapar, por um tempo ainda, a esta espantosa discrição. A observação
impõe-se: depois do riso da festa, são as explosões intempestivas de riso que se encontram em
vias de desaparecimento; entrámos numa fase da pauperização do riso que se desen volve à
medida que o neo-narcisimo se consolida. Pelo desinvestimento gene ralizado dos valores sociais
que produz, pelo seu culto da auto-realização, a personalização pós-moderna encerra o
indivíduo em si próprio, fá-lo desertar não só da vida pública, mas no fim do ciclo também da
esfera privada, en tregue esta às perturbações proliferantes da depressão e das neuroses
narcísi cas o .processo de personalização tem no seu termo o indivíduo zombiesco, ora cool e
apático, ora esvaziado do sentimento de existir. Como não ver, as sim, que a indiferença e a
desmotivação de massa, o aumento do vazio exis tencial e a extinção progressiva do riso são
fenómenos paralelos: é por toda a parte a mesma desvitalização que surge, a mesma
91
erradicação das espon taneidades pulsionaís, a mesma neutralização das emoções, a mesma
auto- absorção narc’isica. As instituições esvaziam-se da sua carga emocional do
137
mesmo modo que o riso tende a rarear e a moderar-se. Enquanto a nossa sociedade adianta os
valores da comunicação, o indivíduo, pelo seu lado, já não sente a necessidade de se manifestar
por meio desse ríso demonstrativo que a sensibilidade popular diz tão bem ser «contagioso».
Na sociedade narcísica, o contacto entre os seres renuncia aos signos manifestos, interiorj zase ou psicologiza-se; o refluxo do riso não passa de uma das manifesta ções da dessocialização
das formas de comunicação, do isolamento sofi pós- moderno. £ coisa muito diferente de uma
discrição civilizada o que devemos reconhecer na atrofia contemporânea do riso: é deveras a
capacidade de riso que foi atingida, exactamente do mesmo modo que o hedonismo acarretou
um enfraquecimento da vontade, O desapossamento, a dessubstanciajização do indivíduo, longe
de se circunscrever ao trabalho, ao poder, invade agora a sua unidade, a sua vontade, a sua
hilaridade. Recolhido em si próprio, o homem pós-moderno tem cada vez mais dificuldade em
«rebentar» de riso, em sair de si, em sentir entusiasmo, em entregar-se à jovialidade. A
faculda de de riso regride: «um certo sorriso» substituiu o riso desenfreado. A «bel/e épo
que) é apenas o começo, a civilização continua a sua obra, promovendo uma humanidade naicísjca sem exuberância, sem riso, mas sobre-saturada de signos humorísticos.
Metapubijcjdade
Provavelmente é a publicidade que revela de modo mais manifesto a na tureza do fenómeno
humorístico: filmes, painéis, anúncios renunciam cada vez mais aos discursos sentenciosos e
austeros em proveito de um estilo feito de jogos de palavras, de fórmulas indirectas (»Tens
uns olhos lindos, sa bias?», para uma armação de óculos), de pastiches (Renault Fuego: «o auto
móvel que anda mais depressa do que a sua própria sombra»), de desenhos jocosos (os bonecos
Michelin ou Esso), de grafismos tomados de empréstimo aos comics, de paradoxos (»Olhem,
não há nada que ver»: fita-cola Scotch), de homofonias, de exageros e amplificações ridículas,
de gags, em suma, um tom homorístico vazio e ligeiro nos antípodas da ironia mordaz. «Viver de
amor e de Gini», isto não quer dizer nada, não chega a ser megalomaníaco, é uma forma
humorística a meio caminho entre a mensagem de solicitação e o nonsense. Certamente, o spot
publicitário não é nihilista, não cai na incoe
1 Th. Zeldin. op. cit., p. 399 e p. 408.
Gil/es Lipovetsky
138
A Era do Vazio
rência verbal e no irracional absoluto, sendo as suas declarações controladas pela vontade de
pôr em evidência o valor positivo do produto. Tal é o limite
do nonsense publicitário: nem tudo é permitido, a extravagância deve acabar por servir para
realçar a imagem do produto. Mas mesmo assim a publicida de pode levar muito longe a lógica
do absurdo, o jogo do sentido e do não- sentido, e isto num espaço em que, sem dúvida, a
parada é a inscrição da marca, mas que — e é este o ponto essencial — de facto não se atribui
os meios necessários para garantir a sua própria credibilidade. Eis o paradoxo:
92
a publicidade, que é estígmatizada por todos os quadrantes como instrumen to de doutrinação,
de matraqueamento ideológico, não se atribui os meios necessários a esse inçulcar de doutrina.
Nas suas formas avançadas, hu morísticas, a publicidade não diz nada, diverte-se consigo
própria: a verda deira publicidade troça da publicidade, do sentido como do não-sentido, es
vazia a dimensão da verdade, e é aí que está a sua força. A publicidade re nunciou, não sem
lucidez, à pedagogia, à solenidade do sentido; quanto mais lições, menos ouvintes: com o código
humorístico, a realidade do pro duto ganha tanto mais relevo quanto mais aparece sobre um
fundo de inve rosimilhança e de irrealidade espectaculares. O discurso demonstrativo fasti
dioso apaga-se, fica apenas um sinal que acende e apaga, o nome da marca:
o essencial.
O humor publicitário diz a verdade da publicidade, a saber que ela não é narrativa nem
mensagem, nem mítica nem ideológica: forma vazia na esteira das grandes instituições e
valores sociais, a publicidade nada diz, aplana o sentido, desarma o não-sentido trágico; o seu
modelo é sobretudo o desenho animado. Disneyland aqui e agora, nas revistas, nos muros da
cidade e nas paredes do metro, um vago surrealismo expurgado de todo o mistério, de to da a
profundidade que nos rodeia, entregando-nos à embriaguez desencanta da da vacuidade e da
inocuidade. Quando o humor se torna uma forma do minante, a ideologia, com as suas oposições
rígidas e a sua escrita de maiús culas apaga-se. Se, na verdade, continua a ser possível
identificar conteú dos ideológicos, o funcionamento publicitário, na sua especificidade hu
morística, nem por isso deixa de curto-circuitar a dimensão ideológica, que se vê desviada do
seu uso maior. Enquanto a ideologia visa o Universal, diz a Verdade, o humor publicitário está
para além do verdadeiro e do falso,
Cl. Lefort, «Esquisse d’une genèse de l’idéologie dans les sociétés modernes», in Textures,
1974, 8-9. Texto retomado em Les Formes de l’histoire, Paris, Gailimard, 1978.
139
para além dos grande significantes, para além das oposições distintivas. O código humorístico
mina a pretensão de sentido, destitui os conteúdos: em vez e em lugar da transmissão
ideológica, a dessubstancialização humorísti ca, a reabsorção do pólo referencial. Á
glorificação do sentido substituíu-se uma depreciação lúdica, uma lógica do inverosímil.
Pela sua tonalidade ligeira e inconsistente, a publicidade, antes até de querer convencer e
incitar ao consumo, designa-se imediatamente como pu blicidade: o medium publicitário tem
como mensagem primeira o próprio medium, a publicidade é aqui metapublicitária. Neste ponto,
as categorias de alienação e de ideologia deixam de ser operatórias: está em curso um no vo
processo que, longe de mistificar escondendo as suas molas, se apresenta como «mistificação»,
enunciando proposições que por si próprias anulam o seu índice de verdade. De tal maneira que
a publicidade já não tem grande coisa a ver com as funções tradicionalmente ligadas à
ideologia: ocultação do real, inculcar de conteúdos, ilusão do sujeito. Sob o risco de chocar a
nossa consciência contemporânea, largamente hostil ao facto publicitário, não devemos recear
situar este último, na sua versão humorística, como par ticipante no amplo movimento
«revolucionário» da crítica da ilusão, movi mento inaugurado muito anteriormente na pintura e
continuado pela litera tura, pelo teatro, pelo cinema experimental ao longo do século XX. Por
cer to que é impossível ignorar que o espaço publicitário adopta uma cenografia clássica,
continua a ser imediatamente legível e comunicacional, que ne nhum trabalho formal perturba a
sua leitura e que a imagem, tal como o texto, permanece submetida às imposições de uma certa
93
narração- representação. Em suma, tudo o que os movimentos de vanguarda levavam a peito
desconstruir. No entanto, a despeito destas diferenças altamente sig nificativas, continua a
ser verdade que o código humorístico orienta a publi cidade segundo um registo que já não é o
da sedução clássica. O humor mantém à distância, impede o espectador de aderir à
«mensagem», obsta ao sonho diurno e ao processo de identificação. Não é isto mesmo, esta
distan ciação, o que a arte moderna precisamente realizou? Não se tratará da críti ca da
ilusão, da sedução, que animou de ponta a ponta a produção das grandes obras estéticas? Do
mesmo modo que com Cézanne, o cubismo, os abstraccionistas ou o teatro depois de Brecht, a
arte deixa de funcionar no registo da mim e da identificação, para surgir como puro espaço
pictural ou teatral, e já não como duplo fiel do real, também com o humor a cena
140
Guies Lipovetsky
A Era do Vazio
publicitária se desprende do referente, adquire uma autonomia própria e eri ge-se em facto
publicitário, numa espécie de formação de compromisso entre a representação clássica e a
distanciação moderna.
Crítica da ilusão e das magias da profundidade que devemos recolocar numa duração muito mais
longa, a das sociedades modernas que, na sua ex perimentação histórica, se definem pela sua
recusa de qualquer subordina ção a um modelo exterior, transcendente ou herdado, e
correlativamente pe la meta de uma auto-instituição, auto-produção do social por si próprio. Nu
ma sociedade cujo objectivo é possuir-se por inteiro, fazer-se, ver-se a partir da sua própria
localização, as formas da ilusão deixam de ser prevalecentes e estão destinadas a desaparecer
enquanto último vestígio de uma heterono mia social. A representação e o seu esquema de
fidelidade mimética, a sedu ção e o desapossamento do espectador que institui, não podem
subsistir em sistemas que rejeitam todo o fundamento ou exterioridade herdados. Por to da a
parte se manifesta o mesmo processo de autonomização ou de erradica ção dos modelos
transcendentes: com a instituição do capitalismo e do mer cado, a produção liberta-se das
antigas tradições, usos e controlos; com o Estado democrático e o princípio da soberania do
povo, o poder emancipa-se dos seus fundamentos outrora sagrados; com a arte moderna, as
formas re nunciam à sedução representativa, à ilusão da mimésis e descobrem a sua
inteligibilidade já não fora de si próprias, mas em si próprias. Recolocado neste contexto
amplo, o código humorístico já não passa de uma das figuras deste processo de destituição da
ilusão e de autonomização do social. E quando a publicidade se dá a ver como publicidade, não
faz mais do que incluir-se na obra já antiga da emergência de uma sociedade sem opacidade,
sem profundidade, uma sociedade transparente para si própria, cínica, a despeito do seu humor
cordial.
No quadro de um tempo mais curto, devemos interpretar a suspensão da ilusão engendrada pelo
código humorístico como uma das formas que assu me o fenómeno de participação, hoje
instalado a todos os níveis da socieda de. Fazer participar os indivíduos, torná-los activos e
dinâmicos, devolvê-los ao seu estatuto de agente de decisão, tornou-se um axioma da
sociedade aberta. Deste modo o ilusionismo e a desapropriação do sujeito que este m plica
torna-se incompatível com um sistema funcionando à base ie opção e de self-service. A
educação autoritária, as formas pesadas de manipulação e de domesticação tornam-se
94
obsoletas porque não levam em linha de conta a actividade e idiossincrasia do indivíduo. Em
contrapartida. o código hu
141
morístico e a distância que ele produz entre o sujeito e a informação revela- se
correspondente ao funcionamento de um sistema que exige a actividade, ainda que mínima, dos
indivíduos: não há, com efeito, humor que não re queira uma parte de actividade psíquica do
receptor. O tempo da persuasão maciça, da arregimentação mecanicista dirigida a indivíduos
rígidos eclipsa- se; o ilusionismo, os mecanismos de identificação cega tornam-se arcaicos; com
o código humorístico, a publicidade apela para a cumplicidade espiri tual dos sujeitos, dirige-se
a eles utilizando referências «culturais», alusões mais ou menos discretas, pressupondo que se
endereça a sujeitos esclarecido. Com isso, entra na sua época cibernética.
A moda: uma paródia lúdica
A moda é um outro indicador de ponta do facto humorístico. Basta fo lhear as revistas de
modas e olhar para as montras para nos convencermos:
tee-shirts com desenhos ou inscrições jocosas, estilo cockpit, meias com broches
representando esquimós ou elefantes (»Personalize as meias banais e sem humor fixando-lhe
um broche com as suas cores») casquette garçonne, cabelos em ouriço, palhetas e estrelinhas
de maquilhagem, óculos de strass, etc. «A vida é curta demais para nos vestirmos
tristemente». Abolindo tudo o que se aparenta à seriedade, que parece ter-se tornado, tal
como a morte, um interdito maior do nosso tempo, a moda liquida as últimas sequelas de um
mundo crispado e disciplinar e torna-se maciçamente humorística. O chic, a distinção parecem
hoje em desuso; é por isso que o pronto a vestir suplantou a alta costura na dinâmica viva da
moda. O que substituiu o bom gosto, o grande estilo, foi o «giro»: a idade humorística adiantase à idade estética.
Sem dúvida, a moda desde os anos vinte não parou de «libertar» a apa rência da mulher, de
criar um estilo «jovem», de fazer recuar a aparência faustosa, de inventar formas
extravagantes ou «giras» (E. Schiaparelli, por exemplo). Mas no conjunto, a moda feminina
continuou a ser tributária até aos anos sessenta de uma estética depurada, de uma valorização
da elegân cia discreta e distinta derivada, de certo modo, da moda dos homens a par tir de
Brummell. Estamos a sair desse universo, tanto no que se refere às mulheres como aos homens:
instala-se em seu lugar uma cultura dafanta
142
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
143
sia, o humor tornou-se um dos valores que regem a aparência do vestuário. O chic já não
consiste na adopção do último grito, reside na piscadela de olho, na independência em relação
aos estereotipos, no look personalizado, sofisticado e heteróclito dos tenores da moda, ou
banalizado e relax do co mum dos mortais. É cada vez mais a originalidade hipernarcísica para
al guns e a uniformidade desenvolta ou descontraída para a maioria; a socieda de narcísica
coincide com a desunificação do mundo da moda, com a lique facção dos seus critérios e
imperativos, com a coexistência pacífica dos esti los. Fim dos grandes escândalos, das grandes
excomunhões da elegância, basta que o indivíduo seja ele próprio com ou sem rebuscamento,
95
mas com humor; pode-se experimentar tudo, usar tudo, voltar a usar tudo: é o tempo do
«segundo grau»; na sua órbita personalizada a moda dessubstancializou se, já não tem aposta
nem desafio.
A moda râro, que apareceu há alguns anos, é a este respeito significati va. Anos cinquenta, anos
sessenta, voga de condimentos de todos os perío dos, o rétro não se assemelha a moda alguma
porque já não se define por cânones estritos e inéditos, mas apenas pela referência flexível ao
passado e pela ressurreição dos signos defuntos da moda, mais ou menos livremente
combinados. Neste sentido, o rétro encontra-se adaptado a uma sociedade personalizada,
desejosa de afrouxar os enquadramentos e de se instituir em termos de maleabilidade.
Paradoxalmente é assim pelo culto lúdico do pas sado que o rétro se mostra mais de acordo
com o funcionamento do presen te. O rétro como anti-moda ou como não-moda: o que não
designa o fim da moda, mas a sua fase humorística ou paródica, do mesmo modo que a antiarte nunca fez senão reproduzir e alargar a esfera artística, nela integrando a dimensão do
humor. Doravante, o destino dos anti-sistemas é aparecerem sob o signo humorístico. O rétro
não tem conteúdo, não significa nada e aplica-se, numa espécie de paródia ligeira, a explicitar e
a sobre-exibir os significantes arcaicos da moda. Nem nostálgica nem mortífera, esta revives
cência caricatural é sobretudo meta-sistemática: o rétro põe em cena o siste ma da moda e
significa a própria moda na sua reduplicação e imitação no segundo grau. Aqui como em toda a
parte, os signos têm como último está dio o momento em que se auto-representam, se autodesignam segundo um processo metalógico de tipo humorístico que se ridiculariza a si próprio
num efeito de espelho. Novo paradoxo das sociedades baseadas na inovação: a partir de um
certo limiar, os sistemas desenvolvem-se virando-se para si próprios. Se o modernismo
assentava na aventura e na exploração, o pósmodernismo repousa na reconquista, na auto-representação, humorística pa ra os sistemas
sociais, narcísica para os sistemas psíquicos. À fuga para a frente substituíu-se a redescoberta
dos fundamentos, o desenvolvimento inte rior.
«Nada está mais na moda do que aparentar não ligar à moda. Veste-se assim um mailiot de
dança ou um casaco tipo Mao, com o ar indiferente da mulher que renunciou para sempre aos
artifícios declarados vulgares para defender o conforto ultra-clássjco dos fatos de trabalho.
E como se nada fos se, com um short de boxeur ou uma bata de enfermeira habilmente
acessori zados, fica-se no ponto máximo da moda». Desde osjeans, a moda não pa rou ainda de
promover as roupas originárias do mundo do trabalho, do exército, do desporto. Calças de
peitilho, conjuntos de serapilheira, blusas de pintor, parkas e o casaco de marinheiro, estilo
/ogging, saia camponesa o frívolo identifica-se com o sério e o funcional, a moda macaqueia o
mundo profissional e, ao fazê-lo, adopta um estilo explicitamente paródico. Imitan do as roupas
utilitárias, a moda maleabiliza os seus pontos de referência, a solenidade «como deve ser»
dissipa-se, as formas perdem o que podiam ter de amaneirado ou estudado, a moda e o seu
exterior deixam de se opor radi calmente, em paralelo com o movimento, por toda a parte
visível, de dene gação das oposições. Hoje a moda pertence ao desleixado, ao descontraído;
o novo deve parecer usado e o estudado espontâneo. A moda mais sofistica da imita e parodia o
natural, também aqui em paralelo com a descrispação das instituições e costumes pósmodernos. Quando a moda deixa de ser um pólo altamente marcado, o seu estilo torna-se
humorístico, tendo por motor o plágio vazio e neutralizado.
96
A paródia não tem somente por objecto o trabalho, a natureza ou a própria moda; todas as
culturas e a cultura se vêem hoje anexadas pelo pro cesso humorístico. E o que acontece com a
voga do afro-styie: assim que é reciclado no registo da moda, o que era ritual e tradicional
perde toda a es pessura e cai na mascarada. Eis o novo rosto do etnocídio: ao extermínio das
culturas e populações exóticas sucedeu um neo-colonialismo humorísti co. Impossibilidade dos
Brancos de respeitarem o exterior e agora até o inte rior: já não é sequer a exclusão, a
relegação que governa a nossa relação com o Outro; a sociedade pós-moderna é demasiado
gulosa de novidades pa ra rejeitar seja o que for. Pelo contrário, acolhemos tudo, exumamos e
fago citamos tudo, mas ao preço da ridicularização desenvolta do Outro. Sejam quais forem as
nossas disposições subjectivas, a representação do Outro
144
Gil/es Lipovetsky
através da moda assume uma figura humorística, porque moldada segundo uma lógica do inédito
pelo inédito, expurgada de toda a significação cultu ral. Não se trata de desprezo, mas de uma
paródia inelutável, independente das nossas intenções.
Sem que se lhe preste atenção, um fenómeno inteiramente inédito e, pa ra mais, de massa
surgiu na moda destes últimos anos; actualmente, com efeito, a escrita foi anexada pelo
vestuário. Um pouco por toda a parte, nos jeans, camisas, camisolas, as marcas e as inscrições
oferecem-se ostensiva- mente ao olhar; nas tee-shirts, letras, siglas, sintagmas, fórmulas,
exibem-se com largueza. Invasão sinalética e tipográfica. Questão de publicidade? Se ria
reduzir excessivamente o problema, porque aquilo que se vê inscrito na roupa muitas vezes
nada tem a ver com o nome ou o produto das firmas. Vontade de quebrar o anonimato das
massas, de ostentar a pertença de gru po, uma classe etária, uma identidade cultural ou
regional? Não é isso se quer, as roupas são usadas por qualquer pessoa, em qualquer altura,
esta peça ou aquela, independentemente de qualquer afirmação de identidade. De facto,
integrando a escrita na sua lógica, a moda fez recuar as suas fron teiras, alargou o campo das
combinações possíveis e, com isso, são a escrita, a cultura, o sentido, a pertença que se vêem
afectados de um coeficiente hu morístico. Os signos são desligados da sua significação, do seu
uso, da sua função, do seu suporte, fica apenas um jogo paródico, um conjunto parado xal onde
o vestuário humoriza o escrito, o escrito humoriza o vestuário: Gu tenberg em BD descontraído
e disfarçado.
Tudo o que entra na órbita da moda fá-lo sob o signo do humor e, si multaneamente, tudo o que
se acha fora de moda conhece o mesmo destino. Que há de mais ridículo, de mais engraçado,
retrospectivamente, do que es sas roupas e penteados que faziam furor há alguns anos? O fora
de moda, o próximo e o distante, faz rir, como se fosse necessário o recuo do tempo pa ra
realizar em toda a sua radicalidade a natureza humorística da moda. Ao humor ligeiro,
descontraído e vivo do presente, corresponde o humor invo luntário, vagamente empertigado do
fora de moda. Se, por conseguinte, a moda é um sistema humorístico, não é apenas em função
dos seus contéudos mais ou menos contingentes; muito mais em profundidade, é-o pelo seu
próprio funcionamento, pela sua lógica interminável de promoção do novo ou do pseudo-novo e,
correlativamente, de desqualificação das formas. A moda é uma estrutura humorística, e não
estética, uma vez que, no seu re gisto, tanto o novo como o antigo se acham inelutavelmente
dotados de um
A Era do Vazio
97
coeficiente «giro», e isto em função do seu processo de inovação permanente e cíclico. Não há
novidade que não pareça uma forma frívola, curiosa e di vertida; não há rétro que não faça
sorrir.
Como a publicidade a moda nada diz, é uma estrutura vazia, por isso é um erro ver nela uma
forma moderna do mito. O imperativo da moda não é narrar ou fazer sonhar, mas mudar, mudar
por mudar e a moda só existe através deste proceso de desqualificação incessante das formas.
Ao fazê-lo, ela é a verdade dos nossos sistemas históricos baseados na experimentação
acelerada, a exposição do seu funcionamento intrínseco sob uma modalidade lúdica e
despreocupada. A transformação, com efeito, encontra-se aqui em acto, mas mais na sua forma
do que nos seus conteúdos: por certo que a moda inova, mas sobretudo parodia a mudança,
caricatura a inovação ao programar o ritmo das suas transformações, ao acelerar a cadência
dos seus ciclos, ao identificar o novo com a promoção de gadgets ao simular em ca da estação a
novidade fundamental. Grande paródia inofensiva do nosso tempo, a moda, a despeito do seu
forcing em matéria de novidades, da sua dinâmica indutora da obsolescência dos signôs, não é
mortífera nem suicidá ria (R. Kõnig), mas humorística.
Processo humorístico e sociedade hedonista
O fenómeno humorístico nada deve a qualquer voga efémera. É dura- doura e
constitutivamente que as nossas sociedades se instituem sob um mo do humorístico: pela
descontracção ou descrispação das mensagens que en gendra, o código humorístico faz, com
efeito, parte do vasto dispositivo poli morfo que, em todas as esferas, tende a maleabilizar ou
a personalizar as estruturas rígidas e coercivaS. Em vez das injunções de imposição, da distân
cia hierárquica e da austeridade ideológica, a proximidade e o desanuvia mento homoríStico, a
linguagem própria de uma sociedade flexível e aberta. Dando direito de cidade à fantasia, o
código humorístico aligeira as mensa gens e insufla-lhes uma rítmica e uma dinâmica que
acompanham a promo ção do culto da naturalidade e da juventude, O código humorístico produz
enunciados «jovens» e tónicos, abole o peso e a gravidade do sentido; está para as mensagens
como a «linha» e a «forma» estão para o corpo. Do mes mo modo que a obesidade se torna
«interdita» num sistema que exige a dis
145
146
Gil/es Lipovetsky
ponibilidade e a mobilidade permanente dos sujeitos, assim os discursos en fáticos se eclipsam,
incompatíveis como se revelam com a exigência de ope racionalidade e de celeridade do nosso
tempo. E preciso ser contundente, ter flash; os pesos dissipam-se em benefício da «vida», dos
spots psicadélicos, da esbelteza dos signos: o código humorístico electrifica o sentido.
Face jovial do processo de personalização, o fenómeno humorístico tal como se manifesta nos
nossos dias é inseparável da era do consumo. Foi o boom das necessidades e a cultura
hedonista que o acompanhou que torna ram possíveis tanto a expansão humorística como a
desqualificação das for mas cerimoniosas de comunicação. A sociedade em que a felicidade de
mas sa se converte em valor cardial é inelutavelmente levada a produzir e a con sumir a grande
escala signos adaptados a este novo ethos, ou seja, mensa gens bem dispostas, felizes, capazes
de proporcionar a todo o momento, pa ra a maioria, um prémio de satisfação directa. O código
humorístico é real mente o complemento, o «aroma espiritual» do hedonismo de massa, na con
dição de não assimilarmos este código ao sempiterno instrumento do capital, destinado a
98
estimular o consumo. Sem dúvida, as mensagens e comuniça ções engraçadas correspondem aos
interesses do marketing, mas o verdadei ro problema é saber porquê. Porquê a vaga dos comics
mesmo entre os adultos quando, há pouco tempo ainda, em França, a BD era ignorada ou
desprezada? Porquê uma imprensa saturada de títulos jocosos e ligeiros? Porque é que o spot
humorístico substituiu o reclame de outrora, «realista» e falador, sério e de texto pesado?
Impossível darmo-nos conta da evolução apenas através do imperativo de vender, dos
progressos do design ou das técnicas publicitárias. Se o código humorístico se impôs, «pegou»,
é porque corresponde a novos valores, a novos gostos (e não somente aos interesses de uma
classe), a um novo tipo de individualidade que aspira ao ócio e à des contracção, alérgico à
solenidade do sentido, ao cabo de meio século de so cialização via consumo, Decerto, o humor
eufórico destinado a um largo público não nasceu com a sociedade de consumo: nos EUA, desde
o início do século, existe um mercado da BD, o desenho animado conhece um gran de êxito na
mesma época, reclames divertidos começam a aparecer por vo!ta de 1900 (o pneu Michelin
bebe o obstáculo», silhueta jovial do «Père Lus tucru», facécias do trio «Ripolin»). No entanto,
é somente com a revolução das necessidades, com a emergência das novas finalidades
hedonistas que a generalização e a legitimação do humor lúdico se tornarão possíveis.
Actualmente, o humor pretende-se «natural» e tónico: o correio dos leitoA Era do Vazio
147
res, os textos jn em Libóration ou Actuei, por exemplo, fazem um largo uso de re exclamativas
e de epifenómenos, de interjeições de expres sões quotidja e directas; em momento algum
deve o humor parecer es dado ou demasiado intelectual: «De A (pronunciem ‘ei’) a W
(pronunciem dabliú), de AC/DC a Wild Horses, tudo o que é preciso saber (e aprender) sobre
os grupos de hard rock para não se fazer figura de parvo na festança de fim de ano organiza
pela filha do reitor. Não digo isto segunda vez. Ao trabalho kids, ao trabalho!» (Lib O código
humorístico já não se identifi ca com o tacto, com a elegância do saber-viver burguês; veicula a
linguagell) das ruas, um tom familiar e despreocupado A concorrência entre as classes em vista
da dominação simbólica só à superfície esclarece um fenómeno cuja origem deve ser situada na
revolução global do modo de vida e não nas lutas em torno do estatuto e do prestígio. nge de
ser um instrumento de nobre za cultural, o código humorístico esvazia a distinção e a
respeitabilidade dos signos de uma época anterior, destrona a ordem das proeminências e
distân cias hierárquicas em benefício de uma banalização relax, promovida hoje à categoria de
valor cultural Do mesmo modo não é de aceitar a lamentação marxista: são tantas mais as
representações joviais quanto mais flionótono e pobre é o real; a hipertrofia lúdica compensa e
dissimula a real infelicidade quotidia Na realidade, é a um trabalho de aligeírarn dos signos, a
fa zê-los soltar o lastro de toda a gravidade que se aplica o código humorístico, verdadeiro
vector da democratizaç dos discursos por meio de uma des substancialização e neutralização
lúdicas. Democratização que se liga menos à acção da ideologia igualit do que ao Sul-to da
sociedade de consumo, que alarga as paixões individualistas induz um desejo de massa de viver
li vremente e desvalorizando correlativamente as formas estritas: a cultura do espontâneo,
free style, de que o humor actual não passa de uma das ma nifestações caminha a par do
individualismo hedonjsta. historicamente só foi tornada Possível pelo ideal int da liberdade
individual nas socie dades personalizadas
99
É, porém, verdade que o humor que vemos transbordar hoje um pouco por toda a parte não é
uma invenção histórica radjcalmente inédita. Seja qual for a novidade do humor pop, há certos
laços de filiação que o unem ainda a um «estado de alma» particular, de origem anterior, o
sense of hu Pnour, difundido ao longo dos séculos Xviii e XIX, nomeadamente em In glaterra.
Pelo seu carácter convjvjal com efeito, o humor contemporâneo li ga-se ao humor Clássico, ele
próprio já sob muitos aspectos indulgente e ameJ
1’
í
Guies Lipovetsky
no; mas se o primeiro resulta da socialização hedonista, o segundo deve ser associado ao
advento das sociedades individualistas, a essa nova significação da unidade humana
relativamente ao conjunto colectivo, que teve como efei to, entre outros, o de contribuir para
desvalorizar e refrear o uso da violên cia. O humor, diferentemente da ironia, surge como uma
atitude que traduz uma espécie de simpatia, de cumplicidade, ainda que fingidas, para com o
sujeito visado: ri-se com ele e não dele. Como não associar este elemento afectivo próprio do
humor, esta colaboração subjectiva, à humanização geral das relações interpessoais
correlativas da entrada das sociedades ocidentais na ordem democrática Houve uma
suavização do cómico co mo houve uma suavização das punições, como houve uma diminuição da
violência de sangue; hoje não fazemos mais do que continuar por outros meios esta moderação.
«Optímismo triste e pessimismo alegre» (R. Escarpit), o sense of hurnour consiste em acentuar
o lado engraçado das coisas, sobre tudo nos momentos difíceis da vida, em gracejar, por
penosos que os aconte cimentos sejam. Mesmo hoje, quando a tonalidade dominante do cómico
se desloca, o humor «digno» continua a ser valorizado: os filmes de guerra americanos, por
exemplo, tornaram-se mestres na arte de pôr em cena he róis obscuros cujo humor frio é
proporcional aos perigos arrostados: após o código cavalheiresco da honra, o código
homoristico com ethos democrático. Impossível, com efeito, compreender a extensão deste
tipo de comportamen to sem o ligar à ideologia democrática, ao princípio da autonomia
individual moderna, que permitiu a valorização das declarações excêntricas voluntárias, das
atitudes não conformistas, desprendidas mas sem ostentação nem desa fio, de acordo com uma
sociedade de iguais: «Uma pitada de humor basta para tornar todos os homens irmãos» O
humor preenche esta dupla função democrática: permite ao indivíduo desligar-se, ainda que
pontualmente da imposição do destino, das evidências, das convenções, afirmando com ligei
reza a sua liberdade de espírito, e ao mesmo tempo impede o ego de se levar a sério, de forjar
uma imagem superior ou altaneira de si próprio, de se ma nifestar sem auto-domínio, de
maneira impulsiva ou brutal. O humor pacifi ca as relações entre os seres, desarma os motivos
de fricção, conservando a exigência da originalidade individual. Daí o prestígio social do humor,
códi go de aprendizagem igualitária que devemos conceber como um instrumento
A Era do Vazio 149
de socialização paralelo aos mecanismos disciplinares. Apesar de tudo, e sendo embora autocontrolado, disciplinado até na sua atitude humorística, o homem moderno náo pode ser
identificado com uma presa cada vez mais submissa à medida que se afirmam as tecnologias
microfísicas do poder: pe lo humor, com efeito, o indivíduo disciplinar revela já um
100
desprendimento, uma desenvoltura, pelo menos aparente, que inauguram a esse nível uma
emancipação da esfera subjectiva que, a partir de então, não parámos de alargar.
O sense of humour, com a sua dualidade de sátira e de sensibilidade fi na, de extravagância
idiossincrática e de seriedade, correspondia à primeira revolução individualista, ou seja ao
desenvolvimento dos valores de liberda de, de igualdade, de tolerância enquadrados pelas
normas disciplinares de auto-controlo; com a segunda revolução individualista veiculada pelo
hedo nismo de massa, o humor muda de tonalidade, ligando-se prioritariamente aos valores de
cordialidade e de comunicação. Assim, na imprensa e sobre tudo no humor quotidiano não se
trata, no fundo, tanto de ridicularizar a lógica, de denunciar ou de satirizar, ainda que com
benevolência, certos acontecimentos, como de estabelecer simplesmente um ambiente relax,
dis tendido: de certo modo, o humor preenche uma função fática. Dessubstan cialização do
cómico que corresponde à dessubstancialização narcísica e à sua necessidade de proximidade
comunicacional: humor pop e código convi vial fazem parte de um mesmo dispositivo, são ambos
correlativos da cultura psi e da individualidade narcísica, ambos produzem «calor» humano
numa sociedade que valoriza as relações personalizadas, ambos democratizam os discursos e
comportamentos humanos. Se o código humorístico conquistou tamanho lugar, mesmo na fala de
todos os dias, isso não se liga apenas ao hedonismo do consumo, mas também à psicologização
das relações humanas que paralelamente se desenvolveu. O humor fun e descontraído passa a
do minar quando a relação do indivíduo com o outro e consigo próprio se psico logiza ou esvazia
de dimensão colectiva, quando o ideal se transforma no es tabelecimento de «contacto»
humano, quando já ninguém, no fundo, acredi ta na importância das coisas. Não se tomar a
sério: esta democratização do indivíduo já não exprime somente um imperativo ideológico
igualitário, tra duz também a ascensão desses valores psi que são a espontaneidade e a co
municação, traduz uma transformação antropológica, a vinda ao mundo de uma personalidade
tolerante, sem grandes ambições, sem uma ideia elevada de si, sem crença firme. O humor que
nivela as figuras do sentido em pisca48
1
1 P1 D. Thompson, LHumour britannigue, Lausanne, 1947, p. 27.
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
151
las de olho lúdicas molda-se à imagem da flutuação narcísica, que se
ostra uma vez mais aqui um instrumento democrático.
Os domínios mais íntimos, outrora tabús, o sexo, o sentimento, entram o jogo; vejam-se os
«pequenos anúncios» que se pretendem a todo o custo ngraçados e originais: «Mais belo que
James Dean, mais depressa do que m Da tona. Mais arriscado do que Mad Max... Calha-te,
respondes, depois vê-se». Os tempos mudaram: já não fica mal exibir os problemas pessoais,
confessar as próprias fraquezas, desvendar a solidão que se sente, consistin do o ideal, no
entanto, em exprimir tudo isto no «segundo grau», através de hipérboles modernistas cuja
amplificação é de tal ordem que já não signifi cam nada a não ser o gosto humorístico do
destinador. Simultaneamente, o humor torna-se uma qualídade a exigir do outro;: «Es viva,
simpática, gos tas de dar e receber, de brincar, viajar, rir, rir, acariciar, de amor, amor, hé,
101
hé, eu também... Como é que eu fiz para não te descobtir? Ah! Ês um bocadinho tímida? Hum,
eu também, se quiseres (entoação de Coluche)». Dizer tudo, mas não se levar a sério, o humor
personalizado é narcísico, é tanto uma barreira protectora do sujeito como um meio cool de
este se ence nar. A dualidade pós-moderna reaparece aqui: o código privilegiado de co
municação com o outro estabelece-se de modo humorístico, enquanto que a relação do indivíduo
consigo próprio se baseia no trabalho e no esforço (te rapias, regimes, etc.). No entanto, um
novo híbrido apareceu: «O riso tera pêutico. Método suave, profundo, de redescobrir uma
energia vital decupli cada. Por meio de técnicas de respiração e de solicitação sensorial, aborda
mos o nosso corpo e a nossa mente numa óptica nova feita de abertura e de disponibilidade.
Este riso vindo das Indias’, reintroduz na nossa vida um fôlego antigo e esquecido».
O código humorístico penetrou no universo feminino, durante muito tem po afastado dessa
dimensão, votado como estava a uma frivolidade das apa rências, na realidade paralela, como o
observou. E. Sullerot, a uma inalterá vel seriedade conservadora e moralizante. Foi com o
aparecimento da mu lher «consumidora» no decurso dos anos vinte e trinta que o arquétipo
femi nino começou a mudar, passando de uma certa melancolia a uma jovialida de exibida, ao
optimismo do keep srniling. Hoje, o humor derrama-se larga mente na imprensa feminina, desde
há algum tempo a moda das roupas de dentro femininas passou até a ser apresentada em comic
strips (El/e), há mulheres que são cartoonistas célebres, a escrita, sobretudo depois da ofen
siva feminista, emprega livre e desculpabilizadamente as formas humorísti
cas; nos folhetins americanos, as mulheres têm as mesmas maneiras de falar e as mesmas
atitudes descontraídas que os homens. A sociedade hedonista, generalizando os gostos fun,
legitimou o humor em todas as categorias so ciais, em todos os grupos de idade e de sexo, um
humor de resto cada vez mais idêntico, acessível a todos, dos «sete aos setenta e sete anos».
Destino humorístico e idade pós-igualitária
Consequência última da idade do consumo, o processo humorístico inves te a esfera do sentido
social, os valores superiores tornam-se paródicos, inca pazes como são de suscitar qualquer
investimento emocional profundo. Sob o impulso dos valores hedonistas e narcísicos, os
referenciais importantes es vaziam-se da sua substância, os valores que estruturavam ainda o
mundo da primeira metade do século XX (poupança, castidade, consciência profissio nal,
sacrifício, esforço, pontualidade, autoridade), já não inspiram respeito, convidam mais ao
sorriso do que à veneração: espectros de vaudevilies, algo de vagamente vetusto ou ridículo se
prende, contra nossa vontade, aos seus nomes. Depois da fase de afirmação gloriosa e heróica
das democracias em que os signos ideológicos rivalizavam em ênfase (a nação, a igualdade, o so
cialismo, a arte pela arte) com os discursos hierárquicos destronados, entra mos na era
democrática pós-moderna que se identifica com a dessubstancia lização humorística dos
critérios sociais maiores.
Deste modo o processo humorístico não designa apenas a produção deli berada dos signos
«giros», mas simultaneamente o devir paródico das nossas representações e isto para além do
controlo voluntário dos indivíduos e gru pos: actualmente, mesmo as coisas mais sérias, mais
solenes — sobretudo essas — por contraste assumem uma tonalidade cómica. Que poderá
escapar ainda, no momento em que o próprio conflito político, a divisão direita- esquerda se
dissolve numa paródia de rivalidade bem simbolizada pelos no vos e altamente risíveis
espectáculos que são os debates televisivos? Ao per sonalizar-se, a representação do político
torna-se largamente humorística:
102
quanto mais as grandes opções deixam de se opor drasticamente, mais o político se torna
caricatural em cenas de catch a dois ou a quatro; quanto mais a desmotivação política cresce,
mais a cena política se assemelha a um strip-tease de boas intenções, de honestidade, de
responsabilidade e se meta morfoseia em mascarada bufa. O estádio supremo da autonomia do
político
A
152
A Era do Vazio
Guies Lipovetsky
153
não é a despolitização radical das massas, é a sua espectacularização, a sua decadência
burlesca: quando as oposições entre partidos se tornam uma far sa e são cada vez mais como
tal consideradas, a classe política pode funcio nar em sistema fechado, apurar-se em números
de televisão, entregar-se às delícias das manobras dos estados-maiores, das tácticas
burocráticas, prosse guindo, paradoxalmente, o jogo democrático da representação, ante a
apatia divertida do eleitorado. Instrumento de autonomizaçção dos sistemas e apa relhos, e
aqui do político, o processo humorístico entrou ele próprio na sua fase de autonomia: nos
nossos dias, a representação humorística investe os sectores mais «graves», afirma-se
segundo uma necessidade incontrolada, in dependentemente das intenções e finalidades dos
actores históricos. Tornou- se um destino.
Novembro de 1980. Coluche, candidato às eleições presidenciais, depara com uma ampla
corrente de simpatia, enquanto se forma uma comissão de apoio «séria». Poderia imaginar-se
fenómeno mais revelador do devir hu morístico da política? Um bobo candidato: já ninguém se
escandalizou ex cepto a própria classe política, sobretudo a de esquerda. No fundo, toda a
gente fica encantada ao ver um cómico profissional ocupar a cena política, uma vez que esta se
transformou já em espectáculo burlesco: com Coluche, a mascarada política limita-se a subir
aos extremos. Quando o político perde a eminência e se personaliza, não é supreendente que
um artista de varieda des consiga reunir uma percentagem notável de intenções de voto
destinadas inicialmente aos líderes políticos, esses cómicos de segundo plano: pelo me nos, rirse-á por uma vez a valer. O efeito Coluche não procede nem de uma nostalgia carnavalesca nem
de um lógica de transgressão (que supõe uma or dem fundamentalmente séria); devemos ver
nele uma paródia pura a investir os mecanismos democráticos, uma paródia que exacerba a
paródia do políti co.
Os valores, a política, a própria arte são presa desta degradação irresistí vel. Os bons velhos
tempos do fim do século passado e do início do século XX em que a arte causava escândalo
terminaram: doravante, as obras mais despojadas, mais problemáticas, as mais «minimais» —
sobretudo essas — têm um efeito cómico, independentemente do seu conteúdo. Tem-se
glosado muito acerca do humor dos artistas pop, sobre a dessacralização da arte que
operaram, mas, mais profundamente, foi o conjunto da arte moderna que adquiriu pouco a
pouco uma tonalidade humorística. Com as grandes des construções cubistas e a fantasia
surrealista, com a abstracção geométrica ou
103
expressionista e a explosão das correntes pop, novos realistas, land ar!, body art, happenings,
performances, pattern, pós-modernismo de hoje, a arte deixou de «parecer séria». Na sua
raiva de inovação, a arte dissolveu todas as suas referências clássicas, renunciou ao saberfazer e ao belo, não pára de destruir a representação, sabota-se enquanto esfera sublime e
entra, por essa via, na era humorística, esse último estádio de secularização das obras, está
dio em que a arte perde o seu estatuto transcendente e surge como uma acti vidade entregue à
escalada do «seja o que for», à beira da impostura. À caça de materiais desqualificados, de
«acções», de formas e volumes elementares, de novos suportes, a arte torna-se engraçada à
força de simplicidade e de reflexividade sobre a sua própria actividade, à força de tentar
escapar à Ar te, à força de novidades e de «revoluções». O humor das obras já não é fun ção
do seu teor intrínseco, associa-se à extrema radicalização da operação artística, às suas
desterritorializações-limite, que surgem aos olhos do grande público como gratuitas e
grotescas. A dissipação dos grandes códigos estéti cos, o extremismo das vanguardas,
transformou de maneira radical a per cepção das obras, que se tornam equivalentes a absurdos
gadgets de luxo.
Mais directamente ainda, com a fragmentação extrema dos particularis mos e a exasperação
minoritária das redes e associações (pais celibatários, lésbicas toxicómanas, associações de
agorafóbicos e claustrofóbicos, de obe sos, de calvos, de feios e feias, naquilo a que Roszak
chama «rede situacio nal»), é o próprio espaço da reivindicação social que assume uma
coloração humorística. Risibilidade ligada à desmultiplicação, à miniaturização inter minável do
direito às diferenças; à semelhança do jogo das caixas que têm dentro outras caixas cada vez
mais pequenas, o direito à diferença não pára de subdividir os grupos, de afirmar as microsolidariedades, de emancipar novas singularidades nas fronteiras do infinitesimal. A
representação hu morística resulta do excesso pletórico das ramificações e subdivisões capila
res do social. Novos siogans: Fat is beautifui, Bald is beautifui; novos gru pos: Jewish Lesbian
Gang, homens na menopausa, Non-parents organisa tions, quem não vê o carácter humorístico
desta afirmação de si e da socia bilidade pós-moderna a meio caminho entre o gadget e a
necessidade históri ca; cómico instantâneo, devemos acrescentar, que se esgota
imediatamente, pois qualquer associação entra com toda a rapidez nos costumes do tempo. Ao
transistorizar-se, a divisão social perdeu o seu fulgor trágico, a sua paté tica centralidade
anterior, gadgetizou-se sob a proliferação extrema das dife renciações microscópicas.
155
154
Gil/es Lipovetsky
Sem dúvida, nem todas as divisões são desta ordem: os conflitos centra dos em torno da
produção, da repartição, do ambiente, continuam portado res de caracteres
incontestavelmente sérios. No entanto, à medida que a ideologia revolucionária se dissipa, as
acções sociais, mesmo que enquadra das por aparelhos burocráticos, exploram uma linguagem e
siogans mais descontraídos; aqui ou ali, cartazes, bandeirolas, autocolantes, já não hesi tam em
adoptar um estilo humorístico, mais ou menos sarcástico, mais ou menos negro (os
antinucleares, os ecologistas); as manifestações dos movi mentos «de ruptura» vão muitas
vezes coloridas, por vezes mascaradas, que acabam em «festa»: com algum atraso, também o
militantismo a pouco e pouco se descrispa. Em particular nos novos movimentos sociais,
assistimos a uma vontade mais ou menos acentuada de personalizar as modalidades do combate,
de «arejar» o militantismo, de deixar de separar completamente a política da existência, com
104
vista a uma experiência mais global, reivindicati va, comunitária, ocasionalmente «divertida».
Levar os problemas a sério e lu tar, está bem; mas não perder o sentido do humor; a
austeridade militante já não se impõe com a necessidade de outrora, a descontracção dos
costumes hedonistas e psicologístas imiscui-se até na ordem das acções sociais que nem por
isso excluem algumas vezes confrontos duros.
Tal como a dispersão polimorfa dos grupos humoriza a diferenciação so cial, do mesmo modo o
hiper-individualismo do nosso tempo tende a susci tar uma apreensão do outro de tonalidade
cómica. À força de personaliza ção, cada indivíduo se torna um bicho curioso para o outro,
vagamente bi zarro e, todavia, desprovido de qualquer mistério inquietante: o outro como
teatro absurdo. A coexistência humorística, eis ao que nos força um universo personalizado;
outrém já não consegue chocar, a originalidade perdeu a sua força de provocação, resta apenas
a estranheza irrisória de um mundo em que tudo é permitido, em que se vê de tudo e em que
nada suscita mais do que um sorriso passageiro. Actualmente os adultos vivem, vestem-se, «ba
tem-se» como os cow-boys e os Índios da grande época durante os seus me ses de férias;
outros «adoptam» e acarinham bonecas como se fossem crian ças, deambulam de patins,
exibem com vigor e pormenor os seus problemas sexuais nas ondas da rádio; as crenças e
seitas, as práticas e modas mais ini magináveis descobrem acto contínuo adeptos em massa; o
outro entrou na fase do «tanto faz», do desalinhamento burlesco. A partir daqui, o modo de
apreensão de outrém não é nem a igualdade nem a desigualdade, é a curio sidade divertida,
estando cada um de nós condenado a aparecer a maior ou
A Era do Vazio
menor prazo como curioso, excêntrico, aos olhos dos outros. Última dessa cralização, a relação
inter-humana é aqui expurgada da sua gravidade ime morial no mesmo movimento que leva à
queda dos idolos e grandes deste mundo; última expropriaÇão a imagem que oferecemos a
outrém vê-se vota da ao cómico. DesapoSSamento correspondente ao instituído pelo inconscien
te e pelo recalcamento: tanto na ordem subjectiva como j o in divíduo conhece uma mesma
espoliação na sua representação. Com o in consciente, o ego perde o domínio e a verdade sobre
si próprio; com o pro cesso humorístico o Eu degradase em fantoche ectopláSmico. Por isso não
devemos ignorar o preço e a parada da era hedonista que dessubStaflcializ0I tanto a
representação como a própria unidade do indivíduo. O processo de personalização não se
contentou com quebrar desvalorizar, para falarmos como Nietzsche, a representação do ego
por meio do psicanaliSmO ao mes mo tempo degradou a representação inter fazendo de outrém
um ser do «terceiro tipo», um gadget bizarro.
Com o devir humorístico das significações sociais e dos seres, é a última fase da revolução
democrática que ganha corpo. Se esta se define por um trabalho de rradicaÇã0 progressiva de
todas as formas de hierarquia subs tancial e se aplica a produzir uma sociedade sem
jssernelha1lÇas de essên cia, sem elevação nem profundidades o processo humorístico que faz
com que jnstituições e grupos percam definitivamente a sua majestade prolonga de facto a
meta secular da modernidade democrática, ainda que com instru mentos diferentes dos da
ideologia igualitária. Com a era humorística que diminui as distâncias, O social torna-se
definitivamente adequado a si pró prio, já nada exige yeneraÇão, o sentimento das alturas
pulveriza-se numa desenvoltura generalizada o social fecha-se na sua plena autonomia de acor
do com a essência do projecto democrático. Mas simultafleamente a era hu morística e
personalizada introduz efeitos tão inéditos no regime do disposi tivo igualitário que temos o
105
direito de perguntar se não teremos já encontra do em sociedades de algum modo «pós Com
efeito, a sociedade que o trabalho da igualdade se preparava para organizar sem terogeneida
de nem j está em vias de metamOrf05e outrém num estranho radical, num verdadeiro mutante
incongruente; a sociedade baseada no princípio do valor absoluto de cada pessoa é a mesma em
que os seres ten dem a tornar-se uns para os outros zombies inconsistentes ou desopilafltes a
sociedade em que se manifesta o direito de todos ao reconhecimento social é também a
sociedade em que os indivídUoS deixam de se reconhecer como
f
í
absolutamente da mesma natureza à força de hipertrofia individualista. Quanto maior é o
reconhecimento igualitário, maior também a diferenciação minoritária, enquanto o encontro
inter-humano adquire uma estranheza ridícula. Estamos destinados a afirmar cada vez mais
igualdade «ideológica» e simultaneamente a sentir heterogeneidades psicológicas crescentes.
Depois da fase heróica e universalista da igualdade, ainda que evidentemente limita da por
acentuadas diferenças de classe, a fase humorística e particularista das democracias em que a
igualdade troça da igualdade.
Microtecaologia e sexo pomo
A fragmentação extrema da divisão social corresponde de certo modo à nova tendência
tecnológica para o «ligeiro»: à hiperpersonalização dos indiví duos e dos grupos corresponde a
corrida à miniaturização, acessível a um público cada vez mais amplo. Têm-se apontado desde
há muito os aspectos risíveis das inovações tecnológicas modernas, a sua proliferação de
acessó rios, as suas aberrações de funcionalidade absoluta (OS filmes de J. Tati, por
exemplo); mas na época da hi-fi, do vídeo, do «mmi», surgiu uma nova di mensão que deixa
muito para trás o ridículo dos automatismos «inúteis». Ac tualmente, a apreensão humorística
procede não da excrescência gratuita, mas da capacidade tecnológica de ocupar cada vez
menos espaço. Cada vez mais pequeno: Ultra Com pact Machine, tal como o outro se tornou
poten cialmente um gad à força de desestandardização, a tecnologia torna-se humorística à
força de «compacto», de dimensões reduzidas: niini-aparelha gem, micro-televisão, walkman,
jogos electrónicos em miniatura, computa dor de bolso. Efeito cuja graça reside no facto de o
mais pequeno se ligar ao mais complexo; o interminável processo de redução suscita o
divertimento maravilhado, comovido, do profano: chegámos já .às máquinas subminiaturi zadas,
à caneta electrónica, à mini-tradutora de resposta vocal, à televisão de pulso,flat-TV. Neste
exasperar da miniaturização, o funcional e o lúdico distribuem-se de maneira inédita; uma
segunda geração de gadgets (mas é evidente que esta palavra já não é a mais adequada) surgiu,
para lá da fun ção decorativa, para lá dos mecanismos meta-funcionais. Actualmente os ro
bota, os microcomputadores são frios, «inteligentes», económicos: o compu tador doméstico
gere o orçamento, compõe as ementas em função das esta ções do ano e dos gostos da família,
substitui-se à baby-sitter, previne a polí
cia ou os bombeiros se disso for caso. O cómico grotesco-surrealista dos gad gets deu lugar a
uma ficção científica soft. Fim da ridicularização: com a rniniaturização informática, o cómico
dos objectos moderou-se no momento em que o jogo se torna precisamente um alvo visado
pelas tecnologias de ponta (jogos de vídeo); small is beautiful: à semelhança do que se verificou
com os costumes, o impacto humorístico das técnicas perdeu-se na vaga dos
microprocessadores. Teremos talvez cada vez menos ocasião de troçar dos produtos da
106
técnica, hoje é a técnica que anexa o sector do humor: no Japão tornaram-se correntes robots
domésticos de aparência humana, verdadeiras imitações programadas, que se destinam
nomeadamente a rir e a fazer rir.
O tecnológico tornou-se pomo: o objecto e o sexo entraram, com efeito, no mesmo ciclo
ilimitado da manipulação sofisticada, da exibição e da proe za, dos comandos à distância, das
interconexões e comutações de circuitos, de «teclas sensitivas», de combinatórias livres de
programas, de existência vi sual absoluta. E é isso que impede que se leve a pornografia
completamente a sério. No seu estádio supremo, o pomo é engraçado, o erotismo de massa
inverte-se em paródia do sexo. Quem não se surpreendeu a sorrir ou a rir francamente numa
sex-shop ou durante uma projecção X? Passado um certo limiar, o excesso «tecnológico é
burlesco. Cómico que vai muito para além do prazer da transgressão ou do levantar do
recalcamento: o sexo-máquina, o sexo entregue ao jogo do «tanto faz», o sexo alta-fidelidade,
é assim o vec tor humorístico. O pomo como sexo tecnológico, o objecto como tecnologia pomo.
Como sempre, o estádio humorístico designa o estádio último do pro cesso de
dessubstancialização: o pomo liquida a profundidade do espaço erótico, a sua conexão com o
mundo da lei, do sangue, do pecado e meta morfoseia o sexo em tecnologia-espectáculo, em
teatro indissociavelmente hard e humorístico.
Narcisismo enlatado *
Quando o social entra na fase humorística, começa o neo-narcisismo, úl timo refúgio cerimonial
de um mundo sem potência superior. À desvaloriza ção paródica do social corresponde o sobreinvestimento litúrgico do Eu:
No original, narc,ssis en bofte: o autor Joga com o duplo sentido da expressão «en boi te», que
significa, ao mesmo tempo, «enlatado» e «na discoteca» (a última pai-te do capitulo descreve
uma discoteca parisiense) (NT.).
156
A Era do Vazio 157
Gil/es Lipovetsky
A Era do Vazio
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mais ainda, o devir humorístico do social é uma peça essencial na emergên cia do narcisismo. À
medida que as instituições e valores sociais se rendem à imanência humorística, o Eu ascende e
torna-se o grande objecto de culto da pós-modernidade. De que nos podemos ocupar
seriamente hoje a não ser do nosso equilíbrio psíquico e físico? Quando os ritos, costumes e
tradições ago nizam, quando tudo flutua num espaço paródico, aumentam a obsessão e as
práticas narcísicas, as únicas a serem ainda investidas de uma dignidade ce rimonial. Já tudo
foi dito acerca do ritual psi, da codificação estrita das ses sões, da aura da análise, etc.; temse observado menos que hoje o próprio desporto — embora maleável e independente — se
tornou de igual modo uma prática iniciática de um género novo. E já conhecido o progresso
fulgu rante da prática desportiva, e muito particularmente dos desportos indivi duais mais
interessante ainda é o desenvolvimento das actividades despor tivas chamadas «livres», sem
107
preocupação competitiva, fora da rede das fede rações, longe dos estádios e dos ginásios.
Jogging, bicicleta, ski de fundo, rolling. waiking, skate, prancha de vento — aqui os novos
oficiantes procu ram menos a proeza, a força, o reconhecimento, do que a forma e a saúde, a
liberdade e a elegância de movimentos, o êxtase do corpo. Cerimónia da sensação redobrada
por uma cerimónia do material técnico: para experimen tar o corpo, convém que o indivíduo se
informe de todas as inovações, que adquira e domine as próteses mais sofisticadas, que mude
regularmente de material. Narciso surge assim ajaezado. De tal modo que, tornando flexíveis
os quadros desportivos, promovendo o desporto «aberto», o processo de per sonalização só à
superfície descontraiu o desporto; pelo contrário, ao genera lizar-se, este limitou-se a
metamorfosear-se numa liturgia cada vez mais ab sorvente nos antípodas do código
humorístico. Já ninguém brinca nem com o próprio corpo nem com a saúde. Na esteira da
análise, o desporto trans formou-se num trabalho, num investimento permanente a gerir com
método, escrupulosamente, e, de alguma maneira, «profissionalmente». A única des 1 «Em
França, o número dos filiados em clubes de ténis passa de 50 000 em 1950 para
125 000, em 1968, atingindo mais de 500 000 em 1977, tendo quadruplicado assim em menos
de oito anos. O dos praticantes de ski triplica entre 1958 e 1978 para atingir hoje mais ou me
nos — o que não é inteiramente por acaso — 600 000. Simultaneamente, o número dos que jo
gam futebol permanece mais ou menos estável (cerca de 1 300 000), bem como o dos adeptos
do râguebi (í47 000). A preferência pelo tipo individual de prática afirma-se também nos des
portos populares. Os judocas triplicam em dez anos (200 000 em 1966 e 600 000 em 1977). Se
acompanharmos a análise dos conteúdos da evolução a partir de 1973, verificamos que o mús
culo recua por toda a parte.» (A. Cotta, La Société ludique, Grasset, 1980, pp. 102-103.)
159
forra do processo humorístico é que aquilo que se mostra capaz de mobilizar e apaixonar
intensamente o indivíduo desportivo, o que galvaniza todas as suas energias, se vê de seis em
seis meses, ou de dois em dois anos, abando nado. Uma nova atracção aparece: depois da
bicicleta o wind surf, com a mesma seriedade, o mesmo culto definitivo. A moda e os seus
ciclos investi ram o próprio narcisismo.
Certos locais têm o poder de se darem como símbolo puro do tempo através da condensação e
da integração que operam dos traços característi cos da modernidade: assim Le Pa/ace, onde
processo humorístico e narcisis mo se afirmam de peito aberto, sem contradição. Neonarcisismo dos jovens mais preocupados com electrizarem-se, sentirem o próprio corpo na
dança do que com comunicarem com o outro — o facto é já bem conhecido. Mas também desvio
extravagante do Palace. Desvio do espaço: a «botte» investe um teatro desafectado, respeitalhe a arquitectura vetusta, ao mesmo tempo que introduz aí as técnicas audiovisuais mais
sofisticadas: loft de massa. Desvio do night-club: aqui não há nada da boíte resguardada e da
sua fun ção confessa de lugar de engate; a boite é agora simultaneamente um lugar de
concertos, um espectáculo totàl, uma animação visual electroacústica fei ta de «efeitos
especiais», de /asers, de projecções de filmes, de robots electró nicos, etc. O espectáculo
está por todo o lado: na própria música, na multi dão, no exibicionismo in, nos shows luminocinéticos, na exasperação de /ooks, de sons, de jogos de luzes. É precisamente esta
hiperteatralização que esvazia Le Pa/ace de toda a gravidade, faz dele um lugar flutuante e
poliva lente, um lugar neo-barroco afectado de «delírio». Excesso de representações que por
certo desorienta, fascina, não sem efeitos humorísticos, de tal modo o espectacular surge sem
108
freio, desproporcionado, em órbita sobre si pró prio. Fascinação humorística, caleidoscópio
new-wave. Desvio do próprio es pectáculo: todo este luxo de demonstrações não se destina, no
fundo, a ser olhado ou admirado, mas a «brilhar», a esquecer e sentir. O espectacular, condição
do narcisismo; o fausto do exterior, condição do investimento do interior, a lógica paradoxal do
Pa/ace é humorística. Tudo é excessivo, o som, os light shows, a rítmica musical, a gente que
circula e se apinha, o frenesim das singularidades: inflação psicadélica, feira de signos e de
indiví duos, necessária à atomização narcísica, mas também à banalização irreal do lugar.
Circulamos como entre os dez mil produtos de um hipcrmercado:
já nada tem lugar certo, nada tem designação sólida, a superprodução noc turna esvazia da sua
substância tudo o que anexa. O Pa/ace como ponto de
160
Guies Lipovetsky
aglomeração-gadget, tecnologia-gadget, botte-gadget. Espectáculo ou disco teca, concerto ou
teatro, happening ou representação, dinâmica de grupo ou narcisismo, febre disco ou distância
cool, estas distinções aqui vacilam, cada uma anulando ou sobredeterminando a outra, cada uma
tornando a outra humorística num espaço multifuncional e indeterminado. Tudo está ali ao
mesmo tempo, indecidivelmente, todas as dimensões, todas as categorias se cruzam numa
coexistência cuja graça resulta da exasperação pela exaspera ção: o humor do Palace emana de
um processo hiperbólico vazio e generali zado. Assim, correndo o risco de contradizer o seu
promotor, Le Palace não tem o seu modelo na festa, ainda que adaptada à sociedade pósmoderna. Ao contrário de toda a transgressão, de toda a violência simbólica, Le Pala ce
funciona segundo uma lógica da acumulação e do espectacular; o sagra do, o estar em conjunto,
a revivescência do sol são aqui definitivamente abo udos em proveito de um narcisismo
colectivo. Primeira botte humorística — em Paris, entenda-se —, Le Palace é a réplica de
Beaubourg, primeiro gran de museu humorístico, aberto e descompartimentado, onde tudo
circula sem interrupção, indivíduos, grupos, escadas, exposições, onde as obras e o próprio
museu assumem uma coloração de gadgets. Do mesmo modo que a moda vestimentar se
descrispou imitando as roupas de trabalho, também Beaubourg tomou como modelo a fábrica e
a refinação. Democratizando-se, o museu perde a sua austeridade e, dotado dos seus tubos
polícromos, tor na-se ele próprio uma curiosidade humorística. Beaubourg, Le Palace: o
processo humorístico não poupou, no seu trabalho inexorável, nem os locais da cultura nem os
locais da noite.
Guies Lipovetaky
CAPíTULO 6
Violências selvagens, violências modernas
109
A violência não conseguiu, ou só em escassa medida, conquistar os favo res da investigação
histórica, pelo menos daquela que, por trás da espuma dos acontecimentos mais ou menos
contingentes, se esforça por teorizar os movimentos de dimensão maior, as grandes
continuidades e descontinuida des que escandem o devir humano. A questão, no entanto,
convida a uma conceptualização no plano da longa duração: durante milénios, através de
formações sociais bem distintas, a violência e a guerra foram valores domi nantes, a crueldade
manteve-se com uma legitimidade tal que pôde funcio nar como «ingrediente» dos prazeres
mais requintados. O que é que nos transformou tanto? Como é que as sociedades de sangue
puderam dar lugar a sociedades suaves, em que a violência inter-individual já não passa de um
comportamento anómico e degradante, nem a crueldade de um estado pato lógico? Estas
questões não têm hoje grande prestígio frente às que suscitam a força desmultiplicada dos
Estados modernos, o equilíbrio do terror e a corrida aos armamentos: tudo se passa corno se
depois do momento omnie conómico e do momento omnipoder, a revolução das relações de
homem a homem nascida com a sociedade individualista tivesse que continuar a ser
162
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
163
um tema menor, privado de qualquer eficácia específica, não merecendo no vos
desenvolvimentos. Tudo se passa como se, sob o choque das duas guer ras mundiais, dos campos
nazis e estalinianos, da generalização da tortura e actualmente do recrudescimento da
criminalidade violenta ou do terrorismo, os nossos contemporâneos se recusassem a tomar nota
desta mutação já multissecular e recusassem perante a tarefa de interpretar o irresistível
movi mento de pacificação da sociedade, ao mesmo tempo que a hipótese da pul são de morte e
a da luta de classes contribuem em grande medida para con firmar o imaginário de um princípio
de conservação da violência, retardando a interrogação sobre o seu destino.
Os grandes espíritos do século XIX não recorriam a este subterfúgio, e Tocqueville e
Nietzsche, para citar dois pensamentos sem dúvida estranhos um ao outro, embora igualmente
fascinados pela ascenção do fenómeno de mocrático, não hesitavam em pôr o problema em toda
a sua brutal clareza, tão insuportável ao pensamento-spot dos dias de hoje. Mais perto de nós,
os trabalhos de N. Elías e depois de P. Clastres contribuíram, a níveis diferen tes, para
revitalizar a interrogação. Torna-se necessário continuá-la, prolon gá-la analisando a violência e
a sua evolução, nas suas relações com os três eixos maiores que são o Estado, a economia, a
estrutura social. Conceptuali zar a violência: longe das leituras mecanicistas, sejam estas
políticas, econó micas ou psicológicas, é por estabelecer a violência como comportamento do
tado de sentido e em articulação com o todo social que devemos esforçar- nos. Violência e
história: para além do cepticismo erudito e do alarmismo estatístico jornalístico, precisamos
de recuar até ao tempo mais distante, tra zer à luz do dia as lógicas da violência, e tudo isto
para, tanto quanto possí vel, captarmos o presente de onde falamos, neste momento em que,
por to dos os lados, se ouve clamar com maior ou menor pertinência a entrada das sociedades
ocidentais numa era radicalmente nova.
Honra e vingança: violências selvagens
Ao longo de todos os milénios que viram as sociedades funcionar de mo do selvagem, a violência
dos homens, longe de se explicar a partir de consi derações utilitárias, ideológicas ou
110
económicas, organizou- se essencialmente em função de dois códigos estritamente corolários
um do outro, a honra e a vingança, cuja significação exacta temos dificuldade em compreender,
de tal
modo foram eliminados inexoravelmente da lógica do mundo moderno. Hon ra, vingança, dois
imperativos imemoriais, inseparáveis das sociedades pri mitivas, sociedades «holistas» embora
igualitárias, em que os agentes indivi duais estão subordinados à ordem colectiva e em que
simultaneamente «as relações entre homens são mais importantes, mais altamente valorizadas
do que as relações entre homens e coisas» Quando o indivíduo e a esfera eco nómica não têm
existência autónoma e se encontram submetidos à lógica do estatuto social, reina o código de
honra, o primado absoluto do prestígio e da estima social, bem como o código da vingança,
significando este, com efeito, a subordinação do interesse pessoal ao interesse do grupo, a
impossi bilidade de romper a cadeia das alianças e das gerações, dos vivos e dos mortos, a
obrigação de pôr em jogo a própria vida em nome do interesse su perior do clã ou da linhagem.
A honra e a vingança exprimem directamente a prioridade do conjunto colectivo sobre o agente
individual.
Estruturas elementares das sociedades selvagens, a honra e a vingança são códigos de sangue.
Onde a honra predomina, a vida tem pequeno preço, comparada com a estima pública; a
coragem, o desprezo da morte, o desafio são virtudes altamente valorizadas, a cobardia é
desprezada por toda a par te. O código da honra adestra os homens no sentido de se
afirmarem pela força, de conquistarem o reconhecimento dos outros antes de assegurarem a
sua segurança, de lutarem até à morte para serem respeitados. No universo primitivo, o ponto
de honra é o que ordena a violência, ninguém pode, sob pena de se ver desrespeitado, suportar
uma afronta ou uma injúria; quere las, insultos, ódios e invejas conhecem, mais facilmente do
que nas socieda des modernas, um desfecho sangrento. Longe de manifestar qualquer impul
sividade incontrolada, a belicosidade primitiva é uma lógica social, um mo do de socialização
consubstancial ao código da honra.
A própria guerra primitiva não pode ser separada da honra. E em fun ção do código da honra
que cada homem adulto tem o dever de ser um guerreiro, de ser valente e bravo perante a
morte. Mais ainda, o código da honra fornece o motor, o estímulo social p os empreendimentos
guerrei ros; sem ter de modo algum uma finalidade económica, a violência primitiva é, em
numerosos casos, guerra pelo prestígio, puro meio de adquirir glória e renome, sendo estes
conferidos pela captura de signos e presas, escalpes, ca valos, prisioneiros. O primado da honra
pode assim dar nascimento, como
1 Louis Dumont, Homo aequalis. Gailimard, 1977, p. 13.
164
A Era do Vazio
165
Guies Lipovetsky
P. Clastres demonstrou, a confrarias de guerreiros inteiramente consagradas às façanhas de
armas, obrigadas ao desafio permanente da morte, à escala da de bravura que lança os seus
membros em expedições cada vez mais au daciosas e conduzindo à morte de modo inelutável)
111
Se a guerra primitiva está estreitamente ligada à honra, está-o na mesma medida ao código da
vingança: a violência visa o prestígio ou a vingança. Os conflitos armados são deste modo
desencadeados para vingar um ultraje, um morto ou até um acidente, um ferimento, uma
doença atribuída às forças maléficas de um feiticeiro inimigo. Ê a vingança que exige que o
sangue ini migo seja derramado, que os prisioneiros sejam torturados, mutilados ou de vorados
ritualmente, é sempre ela que manda em última instância que um prisioneiro não deva tentar
evadir-se, como se os parentes e o seu grupo não tivessem coragem suficiente para vingar a
sua morte. Do mesmo modo, é o medo da vingança dos espíritos dos inimigos sacrificados que
impõe os ri tuais de purificação do carrasco e do seu grupo. Mais ainda: a vingança não se
exerce unicamente contra as tribos inimigas, exige igualmente o sacrifício de mulheres ou
crianças da comunidade à laia de reparação do desequilíbrio ocasionado, por exemplo, pela
morte de um adulto na força da idade. E preciso despsicologizar a vingança primitiva que nada
tem a ver com a hosti lidade acumulada internamente: entre os Tupinambas, um prisioneiro
vivia por vezes dezenas de anos no grupo que o capturara, gozava de grande li berdade, podia
casar e muitas vezes era amado e bem tratado pelos seus amos e mulheres, como se de um
homem da aldeia se tratasse; isso não im pedia que a sua execução sacrificial fosse inelutável
A vingança é um im perativo social, independente dos sentimentos experimentados pelos indiví
duos e grupos, independente das noções de culpabilidade ou responsabilida de individuais e que
fundamentalmente manifesta a exigência de ordem e de simetria do pensamento selvagem. A
vingança é «o contra-peso das coisas, o restabelecimento de um equilíbrio provisoriamente
quebrado, a garantia de que a ordem do mundo não sofrerá alteração» ou seja, a exigência de
que em parte alguma se estabeleça duradouramente um excesso ou um defeito. Se há uma
idade de ouro da vingança, é entre os selvagens que a encontra Pierre Clastres, «Malheur du
guerrier sauvage», in Libre, 1977, n.° 2.
2 Alfred Métraux, Religions e! tnagies indiennes, Gallimard, 1967, pp. 49-53.
P. Clastres, Chronique des Indiens Guayaki. PIon, 1972, p. 164.
mos: constitutiva de um extremo a outro do universo primitivo, a vingança impregna todas as
grandes acções individuais e colectivas, está para a violên cia como os mitos e sistemas de
classificação estão para o pensamento «espe culativo», tem por toda a parte a mesma função
de ordenação do cosmos e da vida colectiva, que se realiza em benefício da negação da
historicidadC.
Ê por isso que as recentes teorias de R. Girard a respeito da violên cia nos parecem assentar
num contra-senso radical: dizer, com efeito, que o sacrifício é um instrumento de prevenção
contra o processo interminável da vingança, um meio de protecção a que a comunidade inteira
recorre contra o ciclo infinito das represálias e contra-represálias, equivale a omitir essa
realidade primeira do mundo primitivo em que a vingança, longe de ser o que é preciso dominar,
é algo em que se torna necessário adestrar imperati vamente os homens. A vingança não é uma
ameaça, um terror a contornar, do mesmo modo que o sacrifício não é um meio de pôr termo à
violência pretensamente dissolvente das vinganças intestinas por meio de substitutos
indiferentes. A esta visão-pânico da vingança, devemos opor a dos selvagens para quem a
vingança é um instrumento de socialização, um valor tão indis cutível como a generosidade.
Inculcar o código da vingança, ripostar golpe por golpe, eis a regra fundamental: entre os
Yanomami, «se um rapazinho derrubar outro por descuido, a mãe deste último intima o seu
rebento a ata car o desajeitado. Grita-lhe de longe: vinga-te, vinga-te, então!» Longe de ser,
112
como pensa R. Girard uma manifestação não-histórica, bio-antro pológica, a violência vingadora
é uma instituição social; longe de ser um processo «apocalíptico», a vingança é uma violência
limitada que visa equi librar o mundo, instituir uma simetria entre os vivos e os mortos. Não
deve mos conceber as instituições primitivas como máquinas de recalcamento ou de desvio de
uma violência trans-histórica, mas como máquinas destinadas a produzir e a normalizar a
violência. Nestas condições, o sacríficio é uma ma nifestação do código da vingança e não algo
que impede a sua afirmação:
nem substituição nem deslocamento, o sacrifício é efeito directo do princípio da vingança, uma
exigência de sangue sem disfarce, uma violência ao servi ço do equilíbrio, da perenidade do
cosmos e do social.
1 René Girard, La Violence e! le sacré, Grasset. 1972.
2 Jacques Lizot, Le Cercie des jeux, Ed. du Seuil, 1976, p. 102.
A perspectiva clássica da vingança, tal como a vemos expressar-se em M.
R. Davie, por exemplo, também não é mais satisfatória: os grupos primiti vos «não possuem nem
sistema desenvolvido de legislação, nem juízes ou tri bunais para a punição dos crimes e, no
entanto, os seus membros vivem de um modo geral em paz e segurança. No seu caso, o que é
que faz então as vezes do procedimento judicial dos civilizados? Descobriremos a resposta a
esta pergunta na prática da justiça pessoal ou da vingança privada» 1 A vingança, condição da
paz interna, equivalente da justiça? Concepção muito discutível uma vez que a vingança ensina a
violência, legitima as represálias, arma os indivíduos, enquanto que a instituição judiciária tem
como meta in terditar o recurso às violências privadas. A vingança é um dispositivo que so
cializa por meio da violência, no registo desta, que faz com que ninguém possa deixar o crime
ou a ofensa por punir: ninguém detém assim o mono pólio da força física, ninguém pode
renunciar ao imperativo de derramar o sangue inimigo, ninguém pode confiar a outra pessoa a
garantia da sua se gurança. Que quer isto dizer senão que a vingança primitiva se afirma con
tra o Estado, que a sua acção visa impedir a constituição de sistemas de do minação política?
Tornando-se a vingança um dever imprescritível, todos os homens são iguais perante a
violência, nenhum pode monopolizar ou renun ciar a ela, nenhum será protegido por uma
instância especializada. Deste modo não é apenas através da guerra e da sua acção centrífuga
de dispersão que a sociedade primitiva logra esconjurar o advento do dispositivo estatal
consegue-o também por dentro, por meio do código da honra e da vingança, que contrariam o
desenvolvimento do desejo de submissão e de protecção e impedem a emergência de uma
instância que açambarque o poder e o direi to de morte.
Simultaneamente, é a impedir o aparecimento do indivíduo independen te, fechado no seu
interesse próprio, que se aplica o código da vingança. Aqui, a prioridade do todo social sobre as
vontades individuais torna-se ac to, os vivos têm o encargo de afirmar através do sangue a sua
solidariedade com os mortos, de fazerem corpo com o grupo. A vingança de sangue é contra a
divisão dos vivos e dos mortos, contra o indivíduo separado, e por isso é um instrumento de
socialização holista, do mesmo modo que a regra
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Guies Lipovetsky
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A Era do Vazio
113
da dávida, que institui menos a passagem da natureza à cultura do que o funcionamento holista
das sociedades, a preeminência do colectivo sobre o individual através da obrigação da
generosidade, da dávida das filhas e ir mãs e pela proibição da acumulação e do incesto.
A comparação pode ser continuada relativamente a uma outra institui ção, desta feita de tipo
violento: as cerimónias iniciáticas que assinalam a passagem dos jovens do sexo masculino à
idade adulta e que são acompa nhadas por torturas rituais intensas. Fazer sofrer, torturar, é
algo que proce de da ordem holista primitiva, porque o que interessa manifestar aqui de
maneira ostensiva, no profrio corpo, é a subordinação extrema do agente in dividual ao
conjunto colectivo, de todos os homens sem distinção a uma lei superior intangível. A dor ritual,
meio último de significar que a lei não é humana, que tem que ser recebida, e não deliberada ou
alterada, meio de assinalar a superioridade ontológica de uma ordem vinda de alhures e como
tal subtraída às iniciativas humanas que visem transformá-la. Pelo esmaga mento do iniciado
sob a prova da dor, trata-se de inscrever no corpo a hete ronomia das regras sociais, a sua
preeminência implacável e, portanto, de proibir o nascimento de uma instância separada de
poder que se atribua o direito de introduzir a transformação histórica A crueldade primitiva é,
como a vingança, uma instituição holista, contra a auto-determinação do in divíduo, contra a
divisão política, contra a história: do mesmo modo que o código da vingança exige dos homens
que estes arrisquem a vida em nome da solidariedade e da honra do grupo, a mesma iniciação
exige dos homens uma submissão muda dos seus corpos às regras transcendentes da comuni
dade.
Tal como a iniciação, a prática de suplícios revela a significação profun da da crueldade
primitiva. A guerra selvagem não consistia unicamente na organização de incursões e
massacres; tratava-se, além disso, de capturar inimigos aos quais eram depois infligidos ora
pelos homens, ora pelos jovens e pelas mulheres, suplícios de uma ferocidade inaudita que, no
entanto, não inspiravam qualquer horror ou indignação. Esta atrocidade dos costumes foi desde
há muito assinalada, mas, depois de Nietzche, que reconhecia nela uma festa das pulsões
agressivas e de Bataille que a considerava uma forma de dispêndio improdutivo, a lógica social e
política da violência foi duradou ramente ocultada pelas problemáticas «energéticas». A
crueldade primitiva
M. R. Davie, La Guerre dans les sociétés primitives. Payot, 1931, p. 188.
2 P. Clastres, «Archéologie dela violence», in Libre, 1977, n.° l,p. 171.
1 Cf. P. Clastres, La Société contre l’État, Êd. de Minuit, 1974, pp. 152-160.
A Era do Vazio
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Gil/es Lipovetsky
nada tem a ver com o «gozo de fazer sofrer», não pode ser assimilada a um equivalente
pulsional de um dano sofrido: «Fazer sofrer causava um prazer infinito; como compensação do
dano e dos aborrecimentos do dano propor cionava às partes lesadas um contra-gozo
extraordinário» Independente dos sentimentos e das emoções, o suplício selvagem é uma
prática ritual exi gida pelo código da vingança a fim de estabelecer o equilíbrio entre os vivos e
os mortos: a crueldade é uma lógica social, não uma lógica do desejo. Dito isto, Nietzsche
114
entrevira, apesar de tudo, o essencial do problema ao ligar a crueldade à dívida, ainda que a
tenha carregado de uma significação mate rialista, moderna, baseada na troca económica De
facto, a atrocidade das torturas selvagens só tem sentido quando referida a essa dívida
específica e extrema que liga os vivos aos mortos: dívida extrema, em primeiro lugar porque os
vivos não podem prosperar sem obterem a protecção ou a neutra lidade dos seus mortos
sempre dotados de uma força particular, represen tando uma das maiores ameaças
concebíveis; em segundo lugar, porque a dívida se refere a dois universos constantemente
ameaçados de disjunção ra dical, o visível e o invisível. E, por conseguinte, necessário um
excesso para preencher o défice da morte; é necessário um excesso de dor, de sangue ou de
carne (no festim antropófago) para se cumprir o código da vingança, quer dizer para
transformar a disjunção em conjunção, para restabelecer a paz e a aliança com os mortos.
Vingança primitiva e sistemas de crueldade são inseparáveis enquanto meios de reprodução de
uma ordem social imutá vel.
Decorre daqui que o excesso dos suplícios não é estranho à lógica da tro ca, pelo menos da que
põe em relação os vivos e os mortos. Sem dúvida, te remos que seguir as análises de P.
Clastres, que soube mostrar como a guer ra não era de maneira alguma um malogro acidental da
troca, mas uma es trutura primeira, uma finalidade central do ser social primitivo, sendo ela a
determinar a necessidade da troca e da aliança todavia, uma vez «reabili tada» a significação
política da violência, devemos ter cuidado e não trans formar a troca em instrumento
indiferente da guerra, em simples efeito tác— tico da guerra. A inversão das prioridades não
deve ocultar o que a violência deve ainda à troca e a troca à violência. Na sociedade primitiva,
guerra e
1 Nietzsche, A Genealogia da Moral: segunda dissertaçáo. § 6.
2 Ibid. § 4.
P. Clastres, «Archéologie de la violence», pp. 162-167.
troca encontram-se em consonância: a guerra é inseparável da regra da dá diva e esta é
apropriada ao estado de guerra permanente. Na medida em que a violência primitiva caminha a par da vingança, os laços que a unem à lógica
reciprocitária são imediatos. Do mesmo modo que existe a obrigação de se ser generoso, de
oferecer bens, mulheres, alimento, existe também a obrigação de se ser generoso nos termos
da própria vida, de se dar a vida de acordo com o imperativo da vingança; do mesmo modo que
qualquer bem tem que ser devolvido, também a morte deve ser paga e com pensada; o sangue
exige, à semelhança das dádivas, a sua contrapartida. À simetria das transacções corresponde
a simetria da vingança. A solidarieda de de grupo, que se manifesta pela circulação das
riquezas, revela-se igual mente através da violência vingadora. De modo que a violência não é
antinó mica em relação ao quadro da troca; a ruptura da reciprocidade articula-se ainda no
quadro da troca recíproca entre os vivos e os mortos.
Mas se a violência apresenta parentesco de estrutura com a troca, esta, pelo seu lado, não
pode ser pura e simplesmente assimilada a uma institui ção de paz. Sem dúvida, é de facto
através da regra da dádiva e da dívida dela decorrente que os primitivos instituem a aliança
mas isso não quer di zer que a troca nada tenha a ver com a guerra. Mauss sublinhou com insis
tência em páginas hoje célebres a violência constitutiva da reciprocidade através dessa
«guerra de propriedade» que é o potlatch. Mesmo quando o desafio e a rivalidade não atingem
115
tais dimensões, Mauss observa o seguinte facto capital, insuficientemente analisado, de que a
troca «conduz a querelas súbitas quando frequentemente tinha por fim apagá-las» Que quer
isto dizer senão que a troca produz uma paz instável, frágil, sempre à beira da ruptu ra? O
problema consiste assim em compreender porque é que a troca, cujo objectivo é estabelecer
relações pacificas, falha de tal maneira nos seus pro pósitos. Deveremos regressar à
interpretação de Lévi-Strauss, segundo a qual a guerra não passa de um malogro contingente,
de uma transacção in feliz, ou deveremos antes ver na reciprocidade uma instituição que a sua
própria forma torna propícia à violência? E esta segunda hipótese que nos parece justa: só há
malogro na aparência, a dádiva participa estruturalmen te na lógica da guerra, pois que institui
a aliança numa base necessariamen te precária. A regra de reciprocidade, porque funciona
como uma luta sim 1 Marshall Sahlins, Âge de pierre. áge dabondance, Gallimard, 1976, pp. 221236.
2 Marcel Mauss, Essai sur le doo, in Sociologie ef anthropologie. PUF, 1960, p. 173, nota
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Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
171
bólica ou de prestígio e não como meio de acumulação, instaura um frente- a-frente sempre à
beira do conflito e do confronto: nas trocas económicas e matrimoniais que presidem às
alianças das comunidades Yanomano, «os parceiros mantêm-se no extremo limite do ponto de
ruptura, mas é justa mente esse jogo arriscado, esse gosto pelo confronto o motivo de agrado»
Pouco é preciso para que os amigos se tornem inimigos, para que um pacto de aliança degenere
em guerra: a dádiva é uma estrutura potencialmente violenta porque basta que o parceiro se
recuse a entrar no ciclo das presta ções para que isso se identifique com uma ofensa, com um
acto de guerra. Enquanto estrutura assente no desafio, a troca proíbe as amizades duradou
ras, a emergência de laços permanentes que ligariam indissoluvelmente a co munidade a este ou
àquele dos seus vizinhos, levando-a a perder a prazo a sua autonomia. Se há uma inconstância
na vida internacional dos selvagens, se as alianças se fazem e desfazem de modo tão
sistemático, isso não se deve apenas ao imperativo da guerra, mas igualmente aos tipos de
relações man tidas através da troca. Ligando os grupos não pelo interesse, mas por meio de
uma lógica simbólica, a reciprocidade quebra as amizades com a mesma facilidade com que as
faz, nenhuma comunidade está ao abrigo do desenca dear das hostilidades. Longe de se
identificar a uma táctica de guerra, a re gra da reciprocidade é a condição social da guerra
primitiva permanente.
Mais indirectamente, a troca participa ainda da violência primitiva na medida em que ensina aos
homens o código da honra, prescrevendo a dádi va e o dever de generosidade. Da mesma
maneira que o imperativo da guer ra, a regra da reciprocidade socializa por meio da honra e da
violência cor respondente. Guerra e troca são paralelas; a sociedade selvagem é realmen te,
como dizia P. Clastres, uma sociedade «para-a-guerra», e até as institui ções que têm como
tarefa criar a paz só ó conseguem instaurando simulta neamente uma belicosidade estrutural.
Por fim, ter-se-ão sublinhado o suficiente os laços que unem troca e feiti çaria? A sua
coexistência, atestada por toda a parte no mundo selvagem, não é fruto do acaso; com efeito,
estamos perante duas instituições estrita mente solidárias. Na sociedade primitiva, como
sabemos, os acidentes e infe licidades da vida, os infortúnios dos homens, longe de serem
116
acontecimentos fortuitos, são resultados da feitiçaria, quer esta se deva à malevolência de
outrém, quer a uma vontade deliberada de fazer o mal. Se um escorpião pi
car uma criança, se a colheita ou a caça forem más, se uma ferida não ci catrizar, todos estes
acontecimentos pouco felizes são atribuídos a uma dis posição maligna de alguém. Sem dúvida
devemos ver na feitiçaria uma das formas dessa «ciência do concreto» que é o pensamento
selvagem, um meio de pôr ordem no caos das coisas e de explicar o melhor possível as
desgraças dos homens; mas não podemos deixar de observar também tudo o que esta
«filosofia» introduz de animosidade e de violênica na representaçdo da rela ção interhumana.
A feitiçaria é a prossecução do imperativo de guerra por outros meios; do mesmo modo que
cada comunidade local tem inimigos, as sim cada indivíduo tem inimigos pessoais, responsáveis
pelos seus males. To da a desgraça provém de uma violência mágica, de uma guerra perniciosa,
de tal maneira que aqui o outro só pode ser amigo ou inimigo segundo um esquema semelhante
ao instituído pela guerra e pela troca. Com a regra de reciprocidade com efeito, ou os homens
trocam presentes e são aliados, ou se interrompe o ciclo dos presentes e os homens tornam-se
inimigos. A socie dade primitiva que, por um lado, impede o aparecimento da divisão política,
gera, por outro lado, a divisão antagónica na representação da relação de homem a homem. Não
há indiferença, não há relações neutras como as que irão prevalecer na sociedade
individualista: com a guerras a troca, a feitiça ria, a apercepção do mundo humano é inseparável
do conflito e da violência.
Para além deste paralelismo a feitiçaria descobre na troca recíproca a condição social
característica do seu funcionamento. Através da regra da dá diva, os seres são obrigados a
existir e a definir-se uns por referência aos outros; os homens não podem conceber-se
separadamente uns dos outros
ora é exactamente este esquema que se reproduz, de maneira negativa, na feitiçaria, uma vez
que tudo o que de funesto acontece ao ego se liga neces sariamente a um outro. Nos dois casos,
os homens não podem pensar-se in dependentemente uns dos outros; o sortilégio não passa da
tradução inverti da da dádiva de acordo com a qual o homem só existe numa relação socialmente pré-determinada com o outro. E este contexto de troca obrigatória que torna possível a
interpretação dos acontecimentos nefastos em termos de malefícios: a feitiçaria não é a
afirmação livre de um pensamento não do mesticado, é ainda a regra de reciprocidade, a ncrma
holista do primado re lacional que constitui o seu enquadramento social necessário. A contrario.
não há feitiçaria na sociedade em que o indivíduo só existe para si próprio;
J. Lizot, op. cit. p. 239.
M. Gauchet e G. Swain, La Pratique de l’esprit humain. Gailimard, 1980, p. 391.
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Gil/es Lipoveisky A Era do Vazio
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o desaparecimento da feitiçaria na vida moderna não pode ser separado de um novo tipo de
sociedade em que o outro se torna a pouco e pouco um des conhecido, um estranho à verdade
intrínseca do ego.
Regime da barbárie
117
Com o advento do Estado, a guerra muda radicalmente de função, já que de instrumento de
equilíbrio ou de conservadorismo social que era na ordem primitiva se transforma num meio de
conquista, de expansão ou de captura. E é ao dissociar-se do código da vingança, quebrando a
preeminên cia da troca com os mortos, que a guerra se pode abrir ao espaço da domi nação.
Enquanto a dívida para com os mortos é um princípio supremo para o todo social, a guerra
permanece circunscrita a uma ordem territorial e sa grada que se trata, precisamente através
do emprego da violência, de repro duzir sem mudança, tal como os antepassados a legaram. Mas
a partir do momento em que se institui a divisão política, a instância do poder deixa de se
definir em função deste primado da relação com os mortos, que é regula da por uma lógica
reciprocitária, enquanto o Estado introduz, pela sua própria dissimetria, um princípio
antinómico do do mundo da troca. O Es tado não pôde constituir-se senão emancipando-se,
ainda que parcialmente, do código da vingança, da dívida para com os mortos, e renunciando a
iden tificar guerra e vingança. A partir de então, surge uma violência conquista dora, o Estado
apropria-se da guerra, apodera-se de territórios e de escra vos, edifica fortificações, recruta
exércitos, impõe a disciplina e uma condu ta militar; a guerra já não é contra o Estado, passa a
ser a missão gloriosa do soberano, o seu direito específico. Começa uma era nova do culto do po
der, a barbárie, que designa o regime da violência nas sociedades estatais pré-modernas.
Sem dúvida, as primeiras formas do Estado não se emancipam por completo da ordem da dívida,
devendo o Déspota a sua função e a sua legi timidade a um além transcendente ou a uma
referência religiosa de que é ele o representante ou a incarnação; mas constitutivamente o
Estado só pode ser devedor e estar subordinado a potências superiores e divinas, e não às
almas dos mortos, o que seria lesivo da sua grandeza sobre-eminente, degradando a sua
diferença irredutível relativamente à sociedade que domina.
Desligada do código da vingança, a guerra entra num processo de espe
cialização constituição de exércitos regulares de recrutas ou de mercenários, mas também
castas exclusivamente definidas pelo exercício das armas, pon do toda a sua glória e paixão na
conquista militar. Correlativamente, a maioria da população, os trabalhadores rurais, vão
encontrar-se excluídos, desapossados da actividade nobre por excelência, a guerra, e
consagrar-se-ão à tarefa de alimentar os exércitos profissionais. Este desarmamento de mas
sa não significou, todavia, para os miseráveis, a renúncia à violência, à hon ra e à vingança.
Manteve-se, com efeito, sob o Estado, um modo de sociali zação holista que dá conta da
violência dos costumes, ao mesmo título que a existência de valores militares e de guerras
permanenteS. Para nos atermos à Idade Média, o ponto de honra continua a ser responsável
pela frequência da violência interindividual, pelo seu carácter sangrento, e isto não apenas
entre os homens de guerra, mas para o conjunto do povo: até nos claustros, entre padres, se
descobre uma violência de sangue 1; os assassínios entre os servos parecem ter sido coisa
corrente os burgueses das cidades não hesita vam em puxar da faca para ajustarem as suas
contas Os registos judiciá rios da Baixa Idade Média confirmam ainda o lugar considerável que
as vio lências, rixas, ferimentos, assassínios, ocupavam na vida quotidiana das ci dades Com a
instalação do princípio hierárquico que distribui os homens em ordens heterogéneas, em
especialistas da guerra e produtores, surgiu, é certo, uma distinção radical entre honra nobre
e honra plebeia, tendo cada uma delas o seu código, mas continuando ambas a gerar uma
belicosidade mortífera.
118
O mesmo acontece com a vingança. Se a guerra e o Estado já não se or denam a partir da dívida
para com os mortos, isso não significa de modo nenhum que a sociedade tenha renunciado à
vingança. É verdade que, a partir da altura em que o Estado começou a afirmar a sua
autoridade, ele se esforçou também por limitar a prática da vingança privada, substituindo-lhe
o princípio de uma justiça pública e editando leis destinadas a moderar os excessos da
vingança: lei de talião, abandono noxal, tarifas legais de compo sição. Já o dissemos, a vingança
é, no seu princípio, hostil ao Estado, pelo menos à sua plena realização, e é por isso que o
nascimento deste coincidiu
1 Marc Bloch, La Sociótéféodale, Albin Michel, co!. «Êvolution de I’humanité’, p. 416.
2 Ibid, p. 568.
Norbert Elias, La Civilisation des moeurs, col. «Pluriel», pp. 331-335.
Bronislaw Geremek, Truands et ,nisérabels Gailimard, co!. «Archives», 1980, pp. 16-22.
174
Guies Lipovetsky
com a instauração de sistemas judiciários e penais, representando a autori dade suprema,
destinados nomeadamente a temperar as vinganças intestinas em proveito da lei do soberano.
Apesar disto, a despeito do poder e da lei, a vingança familiar manteve-se muito amplamente,
por um lado em razão da fraqueza da força pública, por outro lado em razão da legitimidade
imemo rial associada à vingança nas sociedades holistas. Na Idade Média, e parti cularmente
durante a época feudal, a faide (vingança privada) continua a impor-se como obrigação moral
sagrada do topo à base da sociedade, tanto para as grandes linhagens como para os rústicos; a
faide ordena ao grupo dos parentes que punam pelo sangue o assassínio de um dos seus ou uma
in júria sofrida. Vendettas intermináveis, por vezes originadas por questões anódinas, podiam
prolongar-se durante décadas e ter como saldo dezenas de mortos. A vingança e a ordem social
holista são a tal ponto consubstanciais que as próprias leis penais se limitam muitas vezes a
reproduzir a sua for ma: assim o direito grego ou a lei das Doze Tábuas de Roma proibiam efec
tivamente o princípio das vendettas e o direito de fazer justiça pelas próprias mãos, mas as
acções por motivo de assasínio eram, em contrapartida, deixa das a cargo do interessado mais
próximo; o mesmo dispositivo legal surge em certas regiões, no século XIII, quando em caso de
homicídio voluntário o corpo do culpado era atribuído aos parentes da vítima, de acordo com a
lei de talião. Assim, enquanto as sociedades, com ou sem Estado, funcionaram segundo as
normas holistas que impunham a solidariedade da linhagem, a vingança continuou a ser mais ou
menos um dever; a sua legitimidade só de saparecerá com a entrada em cena das sociedades de
ordem individualista e do Estado moderno que lhes corresponde, definindo-se este
precisamente pe lo monopólio da força física legítima, pela penetração e pela protecção cons
tante e regular da sociedade.
A honra e a vingança perduraram sob o Estado, do mesmo modo que a crueldade dos costumes.
Sem dúvida, a emergência do Estado e da sua or dem hierárquica transformou radicalmente a
relação com a crueldade que prevalecia na sociedade primitiva. De ritual sagrado que era, a
crueldade tornou-se uma prática bárbara, uma demonstração ostentatória de força, um
festejo público: lembremos o gosto muito vivo dos Romanos pelos espectácu los sangrentos de
combates de animais e de gladiadores; lembremos a paixão guerrreira dos cavaleiros, o
massacre dos prisioneiros e dos feridos, o as sassínio das crianças, a legitimidade da pilhagem
119
ou da mutilação dos venci dos. Como dar conta da persistência durante milénios, da Antiguidade
à
Idade Média, de costumes ferozes que hoje por certo não desapareceram. mas que, quando se
verificam, suscitam uma indignação colectiva? Não po demos deixar de observar a correlação
perfeita que existe entre crueldade dos costumes e sociedades holistas, ao mesmo tempo que
se verifica o anta gonismo entre a crueldade e o individualismo. Todas as sociedades que con
ferem prioridade à organização do conjunto são, numa medida ou noutra, sistemas de
crueldade. E que, com efeito, a preponderância da ordem colec tiva impede que se concedam à
vida e ao sofrimento pessoais o valor que lhes atribuímos. A crueldade bárbara não resulta de
uma ausência de recal camento ou de repressão social, é o efeito directo de uma sociedade em
que o elemento individual, subordinado às normas colectivas, não vê reconhecida a sua
existência autónoma.
Crueldade, holismo e sociedades guerreiras caminham a par: a crueldade só é possível como
habitus socialniente dominante quando reina a suprema cia dos valores guerreiros, direito
incontestado da força e do vencedor, des prezo pela morte, bravura e persistência, ausência
de campaixão pelo inimi go — valores que têm em comum o facto de suscitarem a ostentação e
o ex cesso nos signos da força física, desvalorizarem o vivido propriamente íntimo tanto de si
como do outro, considerarem pouca coisa a vida individual quan do comparada à glória do
sangue, ao prestígio social conferido pelos signos da morte- A crueldade é uni dispositivo
histórico que não pode desligar-se das significações sociais que erigem a guerra em actividade
soberana: a crueldade bárbara, filha de Polemos, emblema enfático da grandeza da or dem
guerreira conquistadora, instrumento sangrento da sua identidade, meio extremo de unificar
na carne a lógica holista e a lógica militar.
Um laço indissolúvel une a guerra concebida como comportamento supe rior e o modelo
tradicional das sociedades. As sociedades anteriores ao indi vidualismo só puderam reproduzirse conferindo à guerra um estatuto supre mo. Devemos desconfiar do nosso reflexo económico
moderno: as guerras imperiais, bárbaras ou feudais, embora permitissem a aquisição de
riquezas, escravos ou territórios, raramente eram empreendidas com um objectivo ex
clusivamente económico. A guerra e os valores guerreiros contribuiram mui to mais para
contrariar o desenvolvimento do mercado e dos valores estrita mente económicos.
Desvalorizando as actividades comerciais que tinham por finalidade o lucro, legitimando a
pilhagem e a aquisição das riquezas pela força, a guerra esconjurava a generalização do valor
de troca e a constitui ção de uma esfera separada da economia. Fazer da guerra um fim
suprema
A Era do Vazio
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mente valorizado não impede o comércio, mas circunscreve o espaço mer cantil e os fluxos de
moeda, tornando-se secundária a aquisição por via das trocas. Por fim, proibindo a
autonomização da economia, a guerra impedia igualmente o advento do indivíduo livre por si
próprio, que justamente cor responde a uma esfera económica independente, e revelou-se uma
peça in dispensável à reprodução da ordem holista.
O processo de civilização
120
A linha da evolução histórica é conhecida: no espaço de alguns séculos, as sociedades de sangue
regidas pela honra, a vingança, a crueldade deram pouco a pouco lugar a sociedades
profundamente (<policiadas», em que os actos de violência interindividual não param de
diminuir, em que o uso da força desconsidera aquele que se lhe entrega, em que a cureldade e
as bruta lidades suscitam a indignação e o horror, em que o prazer e a violência se dissociam. A
partir do século XVIII aproximadamente, o Ocidente passa a ser governado por um processo
de civilização ou de suavização dos costumes de que somos ainda herdeiros e continuadores:
confirma-o, a partir do sécu lo XVIII, a forte diminuição dos crimes de sangue, homicídios,
rixas, golpes e ferimentos confirmam-no o desaparecimento da prática do duelo e a queda do
infanticídio, que, ainda no século XVI, era muito frequente; con firmam-no por fim, na viragem
do século XVIII para o XIX, a renúncia à atrocidade dos suplícios corporais e, a partir do
início do século XIX, a que da do número das condenações à morte e das execuções capitais.
A tese de N. Elias a propósito da humanização dos comportamentos é hoje famosa: de
sociedades em que a belicosidade, a violência para com o outro se afirmavam livremente,
passamos a sociedades em que as impulsões
1 Limitando-nos aos crimes cometidos em Paris e nos seus arredores entre 1755 e 1785, e
julgados pelo Châtelet, as violências não representavam mais de 2,4 por cento das
condenações, os homicídios, 3,1 por cento, enquanto os roubos atingiam quase 87 por cento dos
delitos julga dos. «O lugar maciço ocupado pelos crimes contra os bens situa decididamente
Paris, nos anos 1750-1790, num tipo de criminalidade característico das grandes metrópoles
modernas» (P. Pe trovitch, in Crime ei criminalité en France aux XVIIe ei XVJII .si A. Colin,
1971, p. 208). Esta deslocação de uma criminalidade de violência a uma criminalidade de fraude
parece con firmar-se igualmente, no que que se refere à região normanda, pelos trabalhos
dirígidos por P. Cheunu.
A Era do Vazio
agressivas se encontram recalcadas, refreadas, por se terem tornado incom patíveis com a
«diferenciação» cada vez maior das funções sociais, por um lado, e com a monopolização da
coacção física pelo Estado moderno, por outro Quando não existe qualquer monopólio militar e
policial e quando, por conseguinte, a insegurança é constante, a violência individual, a agressi
vidade é uma necessidade vital. Em compensação, à medida que se desen volve a divisão das
funções sociais e que, sob a acção dos órgãos centrais que monopolizam a força física, se
institui uma ampla segurança quotidia na, o uso da violência individual revela-se excepcional, não
sendo já «nem necessário, nem útil, nem mesmo possível». À impulsividade extrema e de
senfreada dos homens, correlativas das sociedades que precederam o Estado absolutista,
substituiu-se uma regulação dos comportamentos, um «auto- controlo» do indivíduo; em suma, o
processo de civilização que acompanha a pacificação do território realizada pelo Estado
moderno.
Sem dúvida, o fenómeno da suavização dos costumes é inseparável da centralização estatal;
sendo assim, o risco é concebermos esta última como efeito directo e mecânico da pacificação
política. Não é aceitável dizer que os homens «recalcam» as suas pulsões agressivas pelo facto
de a paz civil es tar garantida e as redes de interdependência não pararem de se ampliar, co
mo se a violência não fosse mais do que um instrumento útil à conservação da vida, um meio
vazio de sentido, como se os homens renunciassem «racio nalmente» ao uso da violência a
partir do momento em que a sua segurança está garantida. É esquecer que a violência foi,
121
desde as épocas mais remo tas, um imperativo determinado pela organização holista da
sociedade, um comportamento de honra e de desafio, não de utilidade. Enquanto as nor mas
prioritárias tiverem prioridade sobre as vontades particulares, enquanto a honra e a vingança
continuarem a prevalecer, o desenvolvimento do apa relho policial, o aperfeiçoamento das
técnicas de vigilância e a intensificação da justiça, ainda quando sensíveis, terão apenas um
efeito limitado sobre as violências privadas: temos como prova a questão do duelo, que sabemos
ter sido definido, com os éditos reais do início do século XVII, como um delito passível
oficialmente de acarretar a perda dos direitos e títulos dos infracto res, para além de morte
infamante. Ora, no con.eço do século XVIII, a des peito de uma justiça mais rápida, mais
vigilante, mais escrupulosa, o duelo
1
177
N. Elias, La Dynamique de 1Occident, Calmann-Lévy, 1975, p. 195.
178
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
179
ainda não desaparecera, nem perto disso; parece mesmo que há então um maior número de
processos por duelo do que uni século antes O desenvol vimento repressivo do aparelho de
Estado só pôde desempenhar o seu papel de pacificação social na medida em que,
paralelamente, se instaurava uma nova economia da relação interindividual e, assim, também
uma nova signi ficação da violência. O processo de civilização não pode ser entendido nem como
um recalcamento nem como uma adaptação mecânica das pulsões ao estado de paz civil: a esta
versão objectivista, funcional e utilitarista, deve mos substituir uma problemática que
reconheça, no declínio das violências privadas, o advento de uma nova lógica social, de um
frente a frente carre gado de um sentido radicalmente inédito na história.
A explicação económica do fenómeno continua a ser igualmente parcial, porque não menos
objectivista e mecanicista: dizer que sob o efeito do au mento das riquezas, do recuo da
miséria, da elevação do nível de vida, os costumes se moderam, é omitir o facto historicamente
decisivo de que a prosperidade enquanto tal jamais foi um obstáculo à violência, nomeada
mente nas classes superiores que souberam conciliar na perfeição o seu gosto do fausto com o
da guerra e da crueldade. Não está na nossa intenção negar o papel dos factores políticos e
económicos que, seguramente, contribuiram de maneira decisiva para o advento do processo de
civilização: queremos di zer que a sua acção é ininteligível independentemente das significações
so ciais históricas que permitiram instaurar. A monopolização da violência legí tima em si ou o
nível de vida quantitativamente determinado, por si sós, não podem explicar directamente o
fenómeno plurissecular da suavização dos comportamentos. No entanto, foram realmente o
Estado moderno e o seu complemento, o mercado, que, de maneira convergente e indissociável,
con tribuiram para a emergência de uma nova lógica social, de uma nova signifi-. cação da
relação inter-humana, tornando-se inelutável, no tempo longo, o declínio da violência privada.
Foi, com efeito, a acção conjugada do Estado moderno e do mercado que possibilitou a grande
fractura que actualmente nos separa para sempre das sociedades tradicionais, o aparecimento
de um tipo de sociedade em que o homem individual se toma como fim último e existe apenas
para si próprio.
122
Pela centralização efectiva e simbólica que operou, o Estado moderno, a
partir do absolutismo, desempenhou um papel determinante na dissolução, na desvalorização
dos anteriores laços de dependência pessoal e, com isso, no advento do indivíduo autónomo,
livre, desligado dos laços feudais de ho mem a homem e progressivamente de todas as inércias
tradicionais. Mas foi igualmente a extensão da economia de mercado, a generalização do
sistema do valor de troca, que permitiu o nascimento do indivíduo atomizado tendo como
finalidade uma busca cada vez mais afirmada como tal do seu interes se privado Á medida que
as terras se compram e se vendem, que a pro priedade fundiária se torna uma realidade social
largamente difundida, que as trocas mercantis, o salariato, a industrialização e as deslocações
popula cionais se desenvolvem, produz-se uma transformação das relações do ho mem com a
comunidade que o enquadra, uma mutação que se pode resumir numa palavra, individualismo,
caminhando a par de uma aspiração sem precedentes pelo dinheiro, a intimidade, o bem-estar,
a propriedade, a segu rança, e subvertendo inconstestavelmente a organização social
tradicional. Com o Estado centralizado e o mercado, surge o indivíduo moderno, consi derandose a si próprio isoladamente, absorvendo-se na dimensão privada, recusando a submeter-se às
regras ancestrais exteriores à sua vontade ínti ma, não reconhecendo já como lei fundamental
senão a sua sobrevivência e o seu interesse próprio.
E é precisamente esta transformação da relação imemorial do homem com a comunidade que
vai funcionar como o agente por excelência da paci ficação dos comportamentos. A partir de
entáo, a prioridade do conjunto oficial apaga-se em benefício do interesse e das vontades das
partes indivi duais, os códigos sociais que fixavam o homem às solidariedades de grupo já não
podem subsistir: cada vez mais independente em relação às imposições colectivas, o indivíduo
já não reconhece como dever sagrado a vingança de sangue que, durante milénios, permitiu
soldar o homem à sua linhagem. Não foi apenas através da lei e da ordem pública que o Estado
conseguiu eliminar o código da vingança; de modo igualmente radical, foi o processo
individualista que, pouco a pouco, minou a solidariedade vingadora. En quanto nos anos 18751885, a taxa média de homicídio para cem mil habi Sobre as correlações entre Estado,
mercado e indivíduo, ver Marceí Gauchet e Gladys
Swain, La Pratique de lespri! humain, op. cit., pp. 387-396, e M. Gauchet ‘ !‘Amérique et nous»,
in Libre, 1980, n’o 7, pp. 104i06 Ver também Pierre Rosauvailon, Le Capitalisme Utopique. Ed.
du Seuil, 1979, pp. 113-124.
a. F. Biltacois, «Le Pariement de Paris et es duek au XVII° siécle, in Crime et crimina Iité en
France aux XVIP’ e XVHfr siècle
180
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
181
tante, em França, se fixava à volta de um, na Córsega era quatro vezes su perior; a mesma
distância acentuada se registava em Itália entre o Norte e o Sul, este último com uma taxa
muito elevada de homicídios: onde a família conserva a sua força antiga, a prática da vendetta
continua a ser mortífera a despeito da importância dos aparelhos repressivos do Estado.
Através do mesmo processo, o código de honra sofre uma mutação deci siva: quando o ser
individual se define cada vez mais pela relação com as coisas, quando a busca de dinheiro, a
123
paixão do bem-estar e da propriedade levam a melhor sobre o estatuto e o prestígio social, o
ponto de honra e a susceptibilidade agressiva atenuam-se: a vida torna-se valor supremo e o im
perativo de não perder a cara torna-se fraco. Já não é vergonhoso não res ponder à ofensa ou
à injúria: a uma moral da honra, fonte de duelos, de be licosidade permanente e sangrenta,
substituíu-se uma moral da utilidade própria, da prudência, em que o encontro do homem com o
homem se faz essencialmente sob o signo da indiferença. Se, na sociedade tradicional, o outro
surge imediatamente ,como amigo ou inimigo, na sociedade moderna, indentifica-se geralmente
com um estranho anónimo que não merece sequer o risco da violência. «Domínio de si próprio:
evita os extremos; evita levar muito a peito as ofensas, porque estas nunca são o que parecem
à primeira vista», escrevia Benjamin Franklin: o código da honra deu lugar ao código pacífico da
«respeitabilidade»; pela primeira vez na história, instaura-se uma civilização em que já não é
de rigor responder aos desafios, em que o juízo do outro importa menos do que o meu
interesse estritamente pessoal, em que o reconhecimento social se dissocia da força, do
sangue e da morte, da violência e do desafio. Mas geralmente, é a uma redução da dimensão do
desafio interpessoal que se aplica o processo individualista: a lógica do desa fio, que é
inseparável do primado holista e que, durante milénios, socializou os indivíduos e os grupos num
frente a frente antagónico, sucumbe a pouco e pouco, tronando-se uma relação anti-social.
Provocar o outro, esclarecê-lo, esmagá-lo simbolicamente, este tipo de relação está destinado
a desaparecer quando o código da honra dá lugar ao culto do interesse individual e da pri vacy.
À medida que se eclipsa o código da honra, a vida e a sua conservação afirmam-se como ideais
primeiros, enquanto o risco da morte deixa de ser um valor, bater-se deixa de ser uma glória, e
o indivíduo atomizado se em penha cada vez menos em discussões, rixas, confrontos
sangrentos, não por ser «auto-controlado», mais disciplinado do que os seus avós, mas porque a
violência já não tem sentido social, já não é meio de afirmação e de reconhe
cimento do indivíduo num tempo em que a sacralização investiu a longevida de, a poupança, o
trabalho, a prudência, a medida. O processo de civiliza ção não é efeito mecânico do poder ou
da economia, coincide com a emer gência de finalidades sociais inéditas, com a desagregação
individualista do corpo social e com a nova significação da relação interhumana baseada na
indiferença.
Com a ordem individualista, os códigos de sangue são desinvestidos, a violência perde toda a
dignidade ou legitimidade social, os homens renun ciam maciçamente a usar da sua força
privada para resolverem os seus dife rendos. Deste modo, esclarece-se a verdadeira função do
processo de civiliza ção: como Tocqueville já mostrara, à medida que os homens se retiram para
a sua esfera privada e só a si próprios se têm em vista, não param de recor rer ao Estado a fim
de este garantir uma protecção mais vigilante, mais constante da sua existência. É
essencialmente no sentido de aumentar as prer rogativas e o poder do Estado que o processo
de civilização opera: o Estado policial não é apenas efeito de uma dinâmica autónoma do
«monstro frio», é desejado pelos indivíduos doravante isolados e pacíficos, ainda que estes de
nunciem regularmente a sua natureza repressiva e os seus excessos. Multipli cação das leis
penais, aumento dos efectivos e dos poderes da polícia, vigi lância sistemática das populações,
são os efeitos inelutáveis de uma socieda de em que a violência é desvalorizada e em que
simultaneamente aumenta a necessidade de segurança pública. O Estado moderno criou o
indivíduo so cialmente desligado dos seus semelhantes, mas este cria, em contrapartida, pelo
seu isolamento, a sua ausência de belicosidade, o seu medo da violên cia, as condições
constantes de desenvolvimento da força pública. Quanto mais os indivíduos se sentem livres,
124
mais pedem uma protecção regular e sem falhas por parte dos órgãos estatais; quanto mais
abominam a brutali dade, mais necessário se torna o aumento das forças de segurança: a huma
nizaçáo dos costumes pode assim interpretar-se como um processo visando desapossar o
indivíduo dos princípios refractários à hegemonia do poder to tal, ao projecto de colocar a
sociedade inteira sob a tutela do Estado.
Inseparável do individualismo moderno, o processo de civilização não de ve, no entanto, ser
atribuído à revolução democrática concebida como disso lução do universo hierárquico e
advento do reino da igualdade. Sabe-se que na problemática tocquevilliana, é a «igualdade das
condições» que, reduzin do as dissemelhanças ditas de natureza entre os homens, instituindo
uma identidade antropológica universal, explica a suavização dos costumes, a re
182
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
183
gressão do emprego da violência interpessoal. Em séculos de desigualdade, não existindo a ideia
de semelhança entre os homens, a compaixão, a aten ção para com os que pertencem a uma
casta consíderada heterogénea, têm poucas probabilidades de se desenvolver; em
compensação, a dinâmica igua litária, produzindo uma identidade profunda entre todos os
seres, tornados doravante membros iguais de uma mesma humanidade homogénea, favorece a
identificação com a infelicidade ou a dor do outro e, desse modo, opõe-se aos excessos da
violência e da crueldade A esta interpretação, que tem o mérito de analisar a violência em
termos de lógicas e significações sociais históricas, devemos, contudo, objectar que a
crueldade e a violência dos tempos hierárquicos não se afirmava apenas entre indivíduos de
ordens dife rentes: os «iguais» eram também vítimas de uma violência não menos cruel. Os
ódios de sangue não eram tanto mais fortes quanto mais próximos e se melhantes eram os
seres humanos neles envolvidos? Assim as denúncias por feitiçaria dos séculos XVI e XVII
incidiam quase exclusivamente sobre pes soas que os acusadores conheciam bem, vizinhos e
iguais; os duelos e ven dettas desenrolavam-se essencialmente entre pessoas da mesma
condição. Se, entre iguais, a violência e a crueldade não eram menores, isso significa que não é
da igualdade, concebida como estrutura moderna de apercepção do outro enquanto «mesmo»,
que devemos partir para tornarmos inteligível a pacificação dos indivíduos. A civilização dos
comportamentos não surge com a igualdade, mas com a atomização social, com a emergência de
novos valo res privilegiando a relação com as coisas e a desafecção concomitante dos códigos
da honra e da vingança. Não é o sentimento de semelhança entre os seres que explica o declínio
das violências privadas; a crueldade começa a causar horror, as rixas tornam-se sinal de
selvajaria quando o culto da vida privada suplanta as prescrições holistas, quando o indivíduo se
retrai e fecha em si próprio, cada vez mais indiferente aos juízos dos outros. A este título, a
humanização da sociedade não passa de uma das expressões do processo de dessocialização
característico dos tempos modernos.
Apesar de tudo, tendo ligado a moderação dos comportamentos moder nos à promoção
democrática da iden4ficação entre os seres, Tocqueville sou be conduzir-nos ao coração do
problema. Num povo democrático, cada in divíduo sente espontaneamente a miséria do outro:
«Pouco importará que se
125
A. de Tocqueville, De la démocratie en Amérique, Gaflimard, 1961, t. 1, vol. II, pp. 171-175, e o
comentário de M. Gauchet, art. citado, sobretudo pp. 95-96.
trate de estrangeiros ou inimigos: a imaginação põe-no imediatamente no seu lugar. Mistura
qualquer coisa de pessoal à sua piedade e fá-lo sofrer en quanto o corpo do seu semelhante é
dilacerado» Contrariamente ao que pensava Rousseau, a «piedade» não ficou para trás de nós
no passado; é obra daquilo que, segundo ele pensava, a excluia, a saber, a atomização in
dividualista. O retraimento do indivíduo em si próprio, a privatização da vi da, longe de
abafarem a identificação do outro, estimulam-na. Temos que pensar conjuntamente o indivíduo
moderno e o processo de identificação, e este só tem verdadeiro sentido onde a
dessocialização libertou já o indivíduo dos seus laços colectivos e rituais, onde o sujeito e o
outro podem encontrar- se como indivíduos autónomos num frente a frente independente dos
mode los sociais pré-estabelecidos. Inversamente, pela preeminência atribuida ao todo social, a
organização holista constitui um obstáculo à identificação in tersubjectiva. Enquanto a relação
interpessoal não consegue emancipar-se das representações colectivas, a identificação não se
opera entre mim e ou trém, mas entre mim e uma imagem de grupo ou modelo tradicional. Nada
de semelhante encontramos na sociedade individualista que tem como conse quência tornar
possível uma identificação estritamente psicológica, quer di zer, implicando pessoas ou imagens
privadas, uma vez que já nada dita im perativamente e desde sempre o que deve ser feito, dito,
acreditado. Parado xalmente, é à força de se considerar de modo isolado, de viver para si pró
prio, que o indivíduo se abre à infelicidade do outro. Quanto mais o indiví duo existe como
pessoa privada, mais sente a aflição ou a dor do outro; o sangue, os ataques à integridade do
corpo tornam-se espectáculos insuportá veis, a dor surge como uma aberração caótica e
escandalosa, a sensibilidade tornou-se uma característica permanente do homo clausus. O
individualismo produz, por conseguinte, dois efeitos inversos e, todavia, complementares: a
indiferença ao outro e a sensibilidade à dor do outro: «Nos séculos democrá ticos, os homens
raramente se dedicam uns aos outros, mas mostram uma compaixão geral por todos os
membros da espécie humana»
Poderemos ignorar esta nova lógica social quando queremos compreender o processo de
humanização dos castigos que se inicia na charneira entre o século XVIII e o século XIX? Sem
dúvida, temos que ligar esta mutação pe nal ao advento de uni novo dispositivo do poder cuja
vocação já não é, como
1 A. de Tocqueville, ibid., p. 174.
2 Michel Foucault, Surveiller et punir, Gailimard, 1975.
184
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
185
foi o caso desde a origem dos Estados, afirmar na violência inumana dos suplícios a sua
superioridade eminente, a sua força soberana e desmedida, mas, pelo contrário, administrar e
penetrar lentamente a sociedade, quadri culando-a de forma contínua, comedida, homogénea,
regular, até aos seus pontos mais recônditos’. Mas a reforma penal não teria sido possível sem
a deslocação profunda da relação com o outro suscitada pela revolução indivi dualista,
correlativa do Estado moderno. Um pouco por todo o lado, na se gunda metade do século
XVIII, elevam-se protestos contra a atrocidade dos castigos corporais, estes começam a
126
tornar-se socialmente ilegítimos, a ser assimilados à barbárie. Aquilo que desde sempre parecia
natural, é agora escandaloso: o mundo individualista e a identificação específica com o outro
que ele engendra, constituiu o quadro social adaptado ao abandono das prá ticas legais da
crueldade. Precisamos de ter cuidado com o «tudo é política», ainda quando se distribui por
estratégias microscópicas: a humanização das penas não teria podido adquirir semelhante
legitimidade, não teria podido desenvolver-se com uma tal lógica na longa duração se não
tivesse coincidido ao nível mais profundo com a nova relação de homem a homem instituída pelo
processo individualista. Não é necessário retomar a questão das priori dades: o Estado e a
sociedade trabalham paralelamente na afirmação do princípio da moderação das penas.
A escalada da pacjficação
Que se passa com o processo de civilização no momento em que as socie dades ocidentais se
vêem regidas de maneira preponderante pelo processo de personalização? Apesar do leitmotiv
actual do crescimento da insegurança e da violência, é claro que a época do consumo e da
comunicação apenas continua por outros meios o trabalho inaugurado pela lógica estatal-individualista precedente. A estatística criminal, por imperfeita que seja, aponta nesse
sentido; na longa e média duração, as taxas de homicídio per manecem relativamente estáveis:
memo nos EVA, onde a taxa de homicídio é excepcionalmente elevada — embora muito menos
elevada do que em páí ses como a Colômbia e a Tailândia —, a taxa de 9 vítimas por 100 000
habi tantes atingida em 1930 mal chegou a ser ultrapassada em 1974 com 9,3. Em França, a
taxa de homicídio oficial (sem tomarmos, portanto, em consj
deração os «números negros») era de 0,7 em 1876-1880; de 0,8 em 1972. Em 1900-1910, a
taxa de mortalidade por homicídio em Paris era de 3,4 contra
1,1 em 1963-1966. A era do consumo acentua a pacificação dos comporta mentos e, em
particular, faz diminuir a frequência das rixas e da violência física: nos departamentos do Sena
e do Norte, as taxas das condenações por pancadas e ferimentos em 1875-1885 elevavam-se
respectivamente a 63 e a 110 para 100 000 habitantes; em 1975, fixavam-se à volta de 38 e
56. No sé culo da industrialização e até uma data recente, tanto em Paris como na província, as
rixas eram moeda corrente entre a classe operária, classe com um sentido da honra
susceptível, fiel ao culto da força. Mesmo as mulheres, a darmos crédito a certos jaits divers
referidos por L. Chevalier e às descri ções de Vallès e de Zola, não hesitavam em recorrer às
injúrias e às mãos para resolverem as suas disputas. Nos nossos dias, a violência desaparece
maciçamente da paisagem urbana, tornando-se, ao mesmo título e mais ain da do que a morte, o
interdito maior das nossas sociedades. As próprias classes populares renunciaram à tradicional
valorização da força e adopta ram um estilo coo! de comportamento — é esse o verdadeiro
sentido do «aburguesamento» da nossa sociedade. O que nem a educação disciplinar nem a
autonomia pessoal conseguiram realizar efectivamente, consegue-o a lógica da personalização
ao estimular a comunicação e o consumo, sacrali zando o corpo, o equilíbrio e a saúde,
destruindo o culto do herói, desculpa bilizando o medo, em suma instituindo um novo estilo de
vida, novos valo res, e levando ao seu ponto culminante a individualização dos seres, a re
tracção da vida pública, o desinteresse pelo Outro.
Cada vez mais fechados nas suas preocupações privadas, os indivíduos pacificam-se não por
ética, mas por hiper-absorção individualista: em socie dades que promovem o bem-estar e a
auto-realização, os indivíduos, com to da a evidência, sentem-se mais desejosos de se
descobrirem a si próprios, de se auscultarem, de «descarregarem» por meio de viagens, de
127
músicas, de desportos, de espectáculos, do que de se confrontarem fisicamente. A repul sa
profunda e geral dos nossos contemporâneos perante os comportamentos violentos é função
desta disseminação hedonista e informacional do corpo social realizada pelo reino do
automóvel, dos media, dos tempos livres. E a época do consumo e da informação que, além
disso, faz declinar um certo tipo de alcoolismo,os rituais do café, lugar sem dúvida de uma nova
sociabi
Michel Foucault, Surveji/er ei punir, Gailimard, 1975.
1 Louis Chevalier, Montmartre du plaisir ei du crime. Laffont, 1980.
186
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
187
lídade masculina no século XIX e até meio do século XX, como bem diz Ariès, mas igualmente
lugar entre todos favorável ao desencadear da violên cia: na viragem do século, um delito de
agressão em cada dois deve ser atri buído ao estado de embriaguez. Dispersando os indivíduos
através da lógica dos objectos e dos media, levando-os a desertar do café (pensamos evidentemente aqui no caso francês) em benefício da existência consumidora, o pro cesso de
personalização destruiu lentainente as normas de uma sociabilidade viril responsável por um
alto nível de criminalidade violenta.
Paralelamente, a sociedade de consumo completa a neutralização das re lações inter-humanas;
a indiferença pelo destino e pelos juízos do outro ad quire então toda a sua extensão. O
indivíduo renuncia à violência não só porque apareceram novos bens e fins privados, mas porque,
no mesmo mo vimento, o outro se torna dessubstancialjzado, um «figurante» sem importân cia
1, quer seja membro afastado do grupo familiar restrito, vizinho de pata- mar ou colega de
trabalho. É este discount da relação inter-humana reforça do pelo hiper-investimento
individualista ou narcísico que se encontra na ori gem do declínio dos actos de violência.
Indiferença pelos outros de um géne ro novo, devemos acrescentar, porque simultaneamente as
relações interindi viduais não param de ser reestruturadas, modeladas pelos valores psicologis
tas e comunicacionais. Tal é o paradoxo da relação interpessoal na socieda de narcísica: cada
vez menos interesse e consideração pelo outro e, todavia, cada vez maior desejo de comunicar,
de deixar de lado a agressividade, de compreender outrém. Convivialidade psi e indiferença
pelos outros desenvol vem-se hoje juntamente; nestas condições, como poderia a violência
deixar de recuar?
Enquanto a violência física interindiyjduaj regride inelutavelmente, a vio É precisamente onde a
relação inter-humana não se institui na base da indiferença, a
saber, no interior do meio familiar ou das pessoas mais chegadas, que a violência é mais fre
quente. Nos EUA, em 1970, um homicídio em cada quatro era de tipo familiar; em Inglaterra,
no final dos anos sessenta, mais de 46 por cento de todos os homicídios eram assassinatos de
ti- po doméstico ou visando pessoas chegadas; nos Estados-Unidos, o número total de vítimas
de violências familiares (mortes, golpes e ferimentos) era em 1975 da ordem de oito milhões
(cerca de 4 por cento da população). Cf. J. C. Chesnais, Histoire da la violence, Laffont, col.
«Pluriel», 1981, pp. 100-107. A violência de sangue é tributária da ordem narcísica das nossas
sociedades que estreitam e intensificam o campo das relações privadas; nestas condições,
128
desencadeia-se prioritariamente contra aqueles que nos abandonam ou enganam, aqueles que
ocupam a nossa proximidade mais íntima, aqueles que suportamos quotidianamente na mesma
casa.
lência verbal sofre, também ela, o choque narcísico. Deste modo as injúrias com um sentido
social, tão frequentes no século xviii (vadio, piolhoso, esfo meado, porco) deram lugar a insultos
de carácter mais « o mais das vezes de índole sexual. Da mesma maneira, os insultos como
cuspir no rosto ou à passagem de alguém desapareceram, incompatíveis que são com as nos sas
sociedades higiénicas e indiferentes. De um modo geral, o insulto banali zou-se, perdeu a sua
dimensão de desafio e designa menos uma vontade de humilhar o outro do que um impulso
anónimo desprovido de intenções beli cosas e, por isso, raramente seguido de embate físico: o
indivíduo que, ao volante do seu automóvel, injuria um outro condutor, não deseja de maneira
nenhuma rebaixá-lo, e o indivíduo que é objecto do insulto não se sente, no fundo, minimamente
lesado. Num tempo narcísico, a violência verbal des substancializou-se, já não tem significação
interindividual, tornou-se hard, quer dizer sem fim nem sentido, violência impulsiva e nervosa,
dessocializa da.
O processo de personalização é um operador de pacificação generalizada; de acordo com o seu
registo, as crianças, as mulheres, os animais deixam de ser os alvos tradicionais da violência
que continuavam ainda a ser no século XIX e, por vezes, na primeira metade do século XX.
Através da valorização sistemática do diálogo, da participação, da escuta do pedido subjectivo,
que a sedução pós-moderna põe a funcionar, é o próprio princípio da correcção física, mantido
ou até reforçado pela era das disciplinas, que se vê rejeitado pelo processo educativo, O
eclipse dos castigos corporais resulta da promo ção de modelos educativos à base de
comunicação recíproca, de psicologiza ção das relações no momento em que os pais justamente
deixam de se reco nhecer como modelos a imitar pelos seus filhos. O processo de personaliza
çáo dilui todas as grandes figuras da autoridade, mina o princípio de ex emplo, demasiado
tributário de uma era distante e autoritária que sufocava as espontaneidades singulares,
dissolve por fim as convicções em matéria de educaçáo: a essubstancialização narcísica
manifestava-se no centro da famí lia nuclear como impotência, desapropriaçãO e demissão
educativa. A puni ção física que, ontem ainda, tinha uma função positiva na aprendizagem e
transmissão das normas, já não passa de um malogro vergonhoso e culpabi lizador da
comunicação entre pais e filhos, de um último impulso descontro lado, em desespero de
autoridade.
A campanha em torno das mulheres espancadas desenvolve-se e encontra o eco que sabemos à
medida que a violência masculina regride nos usos,
188
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
189
desqualificada por um tempo «transsexual» em que a virilidade deixa de ser associada à força
e a feminilidade à passividade. A violência masculina era a actualização e a reafirmação de um
código de comportamento que assentava na divisão imemorial dos sexos: este código vê-se
desafectado quando, sob o efeito do processo de personalização, o masculino e o feminino já
não têm nem definições rigorosas nem lugares marcados, quando o esquema da supe rioridade
masculina é rejeitado por todos os lados, quando o princípio da autoridade musculada dá lugar
129
ao imaginário da livre disposição de si pró prio, do diálogo psi, da vida sem entraves nem
compromissos definitivos. Ê verdade que resta a questão da violação: em França, 1 600
violações foram registas em 1978 (3 violações por 100 000 habitantes), mas é verosímil que
tenham sido cometidas realmente perto de 8 000 (números negros); nos EUA, com mais de 60
000 violações, a taxa atinge valores extremos: 29 por 100 000 habitantes. Na maior parte dos
países desenvolvidos, regista-se um número crescente de violações sem que seja possível,
porém, determinar se esta elevação resulta de um aumento efectivo das agressões sexuais ou
de urna desculpabilização das mulheres violadas, permitindo-lhes declarar mais facilmente as
violências sofridas: na Suécia, o número das violações mais que duplicou num quarto de século;
nos EUA, a sua frecjência quadrupli cou entre 1957 e 1978. Em contrapartida, desde há um
século, tudo parece indicar uma queda muito sensível da violência sexual: a frequência da viola
ção em França seria cinco vezes menor do que durante a década de 1870 1• A despeito do
agravamento relativo da violência sexual, o processo coo! de personalização continua a moderar
os comportamentos masculinos, sendo o recrudescjrnento do número das violações
acompanhado pela sua relegação para uma população afinal muito circunscrita: por um lado, os
acusados recrutam-se em grande número nos grupos raciais e culturais (nos EUA, quase
metade das detenções têm por objecto indivíduos negros), por outro lado, não podemos ignorar
que pelo menos uma terça parte dos violadores, em França, são reincidentes.
Por fim, a relação com os animais foi também anexada pelo processo de civilização. Se as leis
de 1850 e 1898 permitiam em teoria punir as violências contra os animais, sabe-se que foram
letra morta e que, na realidade, esse tipo de crueldade estava longe de ser unanimemente
condenado. No século
XIX, a brutalidade nos matadouros era coisa corrente; os combates de ani mais eram dos
espectáculos favoritos dos operários, «punham-se os perús a dançar em cima de placas de
ferro aquecidas, atiravam-se pedras a pombos fechados em caixas com a cabeça de fora a
servir de alvo» 1 Todo um mun do nos separa desta sensibilidade; nos nossos dias as sevícias
sobre os ani mais são maciçamente condenadas, de toda a parte se levantam protestos contra a
caça e as touradas, contra as condições de criação do gado, contra certas normas de
experimentação científica. Mas em sector algum a humani zaçáo é mais visível do que entre as
crianças, que, facto único na história, já não tomam prazer em brincadeiras, outrora naturais,
que consistiam em tor turar os animais. Se o individualismo moderno foi acompanhado pela liber
tação do mecanismo da identificação com outrém, o individualismo pós- moderno tem como
característica o alargamento desta identificação para lá da ordem humana. Identificação
complexa que deve ser ligada à psicologiza ção do indivíduo:à medida que este se «personaliza»,
as fronteiras que sepa ram o homem do anin esbatem-se, toda a dor, ainda que experimentada
por um animal, se torna insuportável ao indivíduo doravante constitutiva- mente frágil, abalado,
horrorizado pela simples ideia de sofrimento. Organi zando o indivíduo como estrutura mole e
psi, o narcisismo aumenta a recep tividade relativamente ao exterior; a humanização dos
costumes que, de res to, é acompanhada por uma indiferença igualmente sistemática, como
comprovam as vagas de abandonos de animais durante as mígrações de ve rão, deve ser
interpretada como uma nova vulnerabilidade, uma nova inca pacidade dos homens de se
confrontarem com a provação da dor.
Prova de certo modo incontornável desta moderação sem precedentes da sociedade, em 1976,
95 por cento dos Franceses afirmavam não ter sofrido ao longo do mês no termo do qual foram
inquiridos qualquer violência; mais ainda, os interrogados afirmavam que, ao longo desse mês,
130
nenhum membro da sua família (87 por cento) ou nenhum conhecido (86 por cento) fora víti ma
de qualquer agressão. De maneira que nem o aumento de uma nova cri minalidade violenta, nem
os tumultos nos estádios ou nos bailes de sábado à noite devem ocultar-nos o pano de fundo
sobre o qual se destacam: a violên cia física entre indivíduos torna-se cada vez mais invisível,
transformou-se numa colecção defait divers traumatizantes. Isto não impedia que, no mes mo
momento, dois indivíduos em cada três pensassem que os comportamen
J.-C. Chesnais, ibid., pp. 181-188.
Théodore Zeldin, Histoire des passions françaises, Ed. Recherches, 1979, t. V, p. 180.
190
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
191
tos violentos eram hoje mais comuns que num passado próximo ou no come ço do século. Sabese que, em todos os países desenvolvidos, o sentimento de insegurança aumenta; em França, 80
por cento da população sente aguda- mente um acréscimo de violência; 73 por cento
reconhecem ter medo de vol tar a pé à noite para casa; um indivíduo em cada dois receia andar
à noite de carro numa estrada secundária. Na Europa, como nos EUA, a luta con tra a
criminalidade ocupa o primeiro lugar entre as preocupações e priorida de do público.
Deveremos então, dado este divórcio entre os factos e o vivi do, considerar a insegurança
actual como uma ilusão, uma maquinação do poder servindo-se dos media como intermediários,
exportando uma falsa consciência a fim de assegurar o seu controlo social num período de crise
e de decomposição ideológica? Mas como e porque é que esta «ideologia» con segue introduzirse na sociedade? É levar em pouca conta as transformações profundas da sociedade civil e da
relação com a violência delas decorrente. De facto, o sentimento de insegurança cresce,
alimentando-se do mais pe quenofait divers e isto independentemente das campanhas de
intoxicação. A insegurança actual não é uma ideologia, está inelutavelmente correlacionada com
um indivíduo desestabilizado e desarmado que amplifica todos os ris cos, se sente obcecado
pelos seus problemas pessoais, exasperado por um sistema repressivo considerado inactivo ou
«demasiado» c um indiví duo que se habituou a ser protegido e se sente traumatizado por uma
violên cia de que nada sabe: a insegurança quotidiana resume sob uma forma an gustiada a
dessubstancialização pó-moderna. O narcisismo, inseparável de um medo endémico, só se
constitui afirmando um exterior exageradamente ameaçador, o que, por seu turno, só pode
alargar a gama dos reflexos indi vidualistas: actos de auto-defesa, indiferença pelo outro,
aprisionamento em casa; enquanto um número não desprezível de habitantes das grandes cida
des se abrigam já por trás da sua porta blindada e renunciam a sair à noite, apenas 6 por cento
dos Parisienses interviriam se ouvissem à noite chamar por socorro.
Curiosamente, a representação da violência torna-se tanto mais exacerba da quanto mais a
violência regride na sociedade civil. No cinema, no teatro, na literatura, assistimos, com efeito,
a uma profusão de cenas de violência, a um deboche de horror e atrocidade sem precedentes;
nunca a «arte» se em penhou tanto em mostrar de tão perto a própria textura da violência,
violên cia hi-fi feita de cenas insuportáveis de ossos esmagados, jactos de sangue, gritos,
decapitações, amputações, castrações. Deste modo, a sociedade coo! é
acompanhada pelo estilo hard, pelo espectáculo em trompe !‘oei! de uma violência hiper-realista.
Não daremos conta desta pornografia do atroz a partir de qualquer necessidade sádica
131
recalcada pelas nossas sociedades de puradas; mais vale que registemos a radicalidade de
representações doravan te autónomas e, portanto, votadas a um puro processo maximalista. A
for ma hard não exprime a pulsão, não compensa uma falta, como também não descreve a
natureza intrínseca da violência pós-moderna; quando já não há nenhum código moral a
transgredir, resta a fuga para diante, a espiral ex tremista, o requinte do pormenor pelo
pormenor, o hiperrealismo da violên cia, tendo por único objectivo a sideração e a sensação
instantâneas.
E por isso que é possível identificar a presença do processo hard em to das as esferas, o sexo
(a pornografia; a prostituição de crianças cada vez mais jovens: em Nova York calcula-se em
perto de doze mil o número de ra pazes e raparigas com menos de dezasseis anos nas mãos dos
proxenetas), a informação (o frenesim do «directo»), a droga (com a sua escalada de priva ção
e de doses), os sons (a corrida aos decibéis), a «moda» (punks, ski nheads, couro), o ritmo (o
rock), o desporto (doping e super-preparação dos atletas; eclosão da prática do karaté; bodybuilding feminino com a sua fe bre de músculo); longe de ser uma moda mais ou menos
aleatória, o efeito hard é correlativo da ordem coo!, da desestabilização e da dessubstancializa
ção narcísica, ao mesmo título que o efeito humorístico, que representa a fa ce oposta, mas
logicamente homóloga. À dissolução gradual dos pontos de referência maiores, ao vazio do
hiper-individualismo, corresponde uma radi calidade sem conteúdo dos comportamentos e
representações, uma subida aos extremos nos signos e habitus do quotidiano; por toda a parte
o mesmo processo extremista está em acção, o tempo das significações, dos conteúdos
pesados vacila: vivemos a época dos efeitos especiais e da performance pura. da exasperação e
da amplificação vazias.
Crimes e suicídios: violências hard
A paisagem da violência não deixou de se alterar com o advento das so ciedades governadas
pelo processo de personalização. Se, no prolongamento dos séculos XVIII e XIX, os crimes
contra os bens (assaltos, roubos) e a delin quência astuciosa (escroquerie...) continuam a levar
de longe a melhor, em todos os países ocidentais, sobre os crimes contra as pessoas, resta o
facto de
192
Guies Lipovetsky
que a grande criminalidade deu um facto social inédito: em França, entre 1963 e 1976, os hoidups aumentaram 35 vezes; entre 1967 e 1976, 5 vezes mais roubos à mão armada e 20 vezes
mais hoid-ups foram cometidos. Sem dúvida, a partir de 1975, este tipo de criminalidade
parece ter encontrado uma espécie de ponto de equilíbrio e em números absolutos deixa de
apre sentar progressões espectaculares; não é menos verdade que o assalto à mão armada
representa hoje uma figura maior da violência urbana.
Se o processo de personalização suaviza os costumes da maioria, inversa mente endurece os
comportamentos criminosos dos desqualificados, favorece a emergência de actos energúmenos,
estimula a subida aos extremos no emprego da violência. Do desenquadramento individualista e
da desestabili zação actual suscitada nomeadamente pela solicitação das necessidades e pe la
sua frustração crónica, resulta uma exacerbação cínica da violência ligada ao ganho, na
condição de precisarmos prontamente os limites deste fenóme no, circunscrito a um número em
última análise reduzido de indivíduos que acumulam as agressões: na capital federal dos
132
Estados Unidos, 7 por cento dos criminosos detidos num período de quatro anos e meio foram
presos quatro vezes, e esses 7 por cento eram os presumíveis culpados de 24 por cento de
todos os crimes graves perpetrados ao longo dos mesmos anos.
Outrora, o grande banditismo referia-se sobretudo a uma população liga da ao proxenetismo,
ao racket, ao tráfico de armas eÂe estupefacientes; ho je assistimos a uma enchente ou
«desprofissionalização» do crime, quer dizer à emergência de uma violência cujos autores,
muitas vezes desconhecidos dos serviços da polícia, não têm qualquer familiaridade com o
«meio». A vio lência criminosa, de acordo com a flutuação generalizada, estende-se, perde as
suas fronteiras estritas, incluindo no que diz respeito aos grupos etários:
em França, em 1975, em cem pessoas que respondiam perante a justiça por actos de
criminalidade grave, dezoito eram menores; 24 por cento dos auto res de hoid-ups e de roubos
à mão armada tinham menos de vinte anos; nos EUA, 57 por cento dos auto.res de crimes
violentos tinham, em 1979, menos de vinte e cinco anos e ui em cada cinco menos de dezoito
anos. A delin quência juvenil não se desenvolveu muito em volume, mas tornou-se mais violenta.
O processo de personalização que generaliza o culto da juventude pacífica os adujtos, mas
endurece os mais novos, que, de acordo com a lógi ca hiper-individualista, tendem a afirmar
cada vez mais cedo, cada vez mais depressa, a sua autonomia, tanto material como psicológica,
mesmo que através do emprego da violência.
A Era do Vazio 193
O mundo hard é jovem e toca em primeira linha os desenraízados cultu rais, as minorias raciais,
imigrados e filhos de famílias imigradas. A ordem do consumo pulveriza muito mais
radicalmente as estruturas e personalidade tradicionais do que o pôde fazer a ordem racista
colonial: doravante o que caracteriza o retrato do «colonizado» é menos a inferiorização do
que uma desorganização sistemática da sua identidade, uma desorientação violenta do ego
suscitada pela estimulação de modelos individualistas eufóricos que con vidam a viver
intensamente. Por toda a parte, o processo de personalização desmantela a personalidade; no
jardim da fachada, temos a dispersão narcí sica e pacífica; nas traseiras, a explosão
energúmena e violenta. A sociedade hedonista produz sem dar por isso um composto explosivo
quando se imbri ca, como é aqui o caso, num universo de honra e de vingança à deriva. A
violência dos jovens excluídos em razão da cor ou da cultura é um patch work, resulta do
choque entre o desenquadramento personalizado e o en quadramento tradicional, entre um
sistema à base de desejos individualistas, de profusão, de tolerância e uma realidade
quotidiana de ghettos, de de semprego, de desocupação, de indiferença hostil ou racista. A
lógica coo! prossegue por outros meios o trabalho plurissecular da exclusão e da relega ção; não
já através da exploração ou da alienação decorrente da imposição autoritária das normas
ocidentais, mas através da criminalização.
Quando, em 1975, não representavam mais de 8 por cento da população francesa, os
estrangeiros eram responsáveis por 26 por cento dos roubos acompanhados de violência, 23
por cento dos espancamentos e ferimentos, 20 por cento dos homicídios, 27 por cento das
violações, 26 por cento das condenações por porte de arma indevido. Em 1980, em Marselha,
32 por cento das agressões e ferimentos e 50 por cento dos roubos acompanhados de violência
foram obra de jovens estrangeiros, o mais das vezes maghrebi nos: se observarmos que os
jovens nascidos de famílias imigradas, mas eles próprios já de nacionalidade francesa, não
figuram nestes números, sendo evidentemente contabilizados na estatística criminal francesa,
133
podemos ima ginar a representação muito forte, no conjunto de todos os grupos, dos imi grados
e filhos de imigrados nos actos de vio’ência, proporção que não se ex plica unicamente pelo
facto de a polícia ou a justiça investigarem, prende rem e condenarem mais facilmente os
«estrangeiros» do que os autóctones. Nos Estados-Unidos, onde de maneira geral a violência é
considerável — há um acto de violência em cada sete segundos, ao que se diz —, os Negros en
contram-se igualmente super-representados nos crimes violentos, quer como
194
Gil/es Lipovetsky 1 A Era do Vazio
195
agressores quer como vítimas. Com efeito, em larga medida, os actos violen tos desenrolam-se
entre indivíduos da mesma cor: há mais crimes entre Ne gros do que de Negros contra Brancos
e vice-versa. Na população negra, o homicídio é hoje a primeira causa de morte tanto para os
homens como para as mulheres entre os vinte e quatro e os trinta e quatro anos, enquanto para
a população branca da mesma idade essa causa são os acidentes de trânsito. Os Negros correm
um risco seis vezes maior de morrer por homicídio do que os Brancos: se considerarmos apenas
o caso dos homens, em 1978 as mortes por homicídio elevavam-se a 78,1 por 100 000
habitantes na população ne gra, sendo de 12,2 para os Brancos. Quase metade dos assassinos
presos são Negros. Prova a contrario do processo de civilização, a violência é cada vez mais o
apanágio de grupos periféricos; torna-se um facto relativo às mino rias. Apesar disso, não
devemos ver nesta violência de cor nem um habitus arcaico nem uma forma de revolta; é o
ponto culminante da desestabilização e da desintegração pós-moderna, da subida aos
extremos, dessocializada e cínica, ligada à liquefacção dos princípios, enquadramentos e autocontro los; é a manifestação hard da ordem coo!.
Desorganização ou degenerescência do banditismo que podemos ler so bretudo na própria
«qualidade» dos crimes. Enquanto os vadios profissionais organizam minuciosamente os seus
golpes, avaliam os ganhos e os riscos, pensam no alibi, os delinquentes da nova vaga lançam-se
em operações fre quentemente improvisadas, sem conhecerem o local, os fundos, os sistemas
de alarme, em iniciativas de extrema gravidade contrw um ganho mínimo. Num só dia, cinco,
seis hol-ups por somas ridículas; é esta desproporção entre riscos e ganhos, entre um fim
insignificante e meios extremos que ca racteriza a criminalidade hard, sem projecto, sem
ambições, sem imaginá rio. O processo de personalização que trabalha no sentido de aumentar
a responsabilidade dos indivíduos favorece, de facto, comportamentos aberran tes, instáveis,
indiferentes de algum modo ao princípio de realidade e por
1 Indiferença igualmente visível no vandalismo, raiva hard que interpretamos mal vendo nela
uma forma desqualificada de reivindicação ou de protesto simbólicos. O vandalismo dá tes
temunho dessa desafecção nova que conquista as coisas ao mesmo tempo que os valores e as
instituições sociais. Do mesmo modo que os ideais declinam e perdem a sua grandeza anterior,
também os objectos perdem toda a sua «sacralidade» nos sistemas acelerados de consumo: a
degradação vandálica tem como condição o fim do respeito pelas coisas, a indiferença pelo real
doravante vazio de sentido. Também aqui, uma vez mais a violência hard reproduz a ordem
social que a torna possível.
isso mesmo em consonância com o narcisismo dominante e correlativo: o real transformado em
espectáculo irreal, em expositor de vidro sem espessu ra, pela lógica das solicitações.
134
Consequência da desafecção das grandes fi nalidades sociais e da preeminência conferida ao
presente, o neo-narcisismo é uma personalidade flutuante, sem estrutura nem vontade, sendo a
labilida de e a emotividade as suas características maiores. A este título, a violência hard,
desesperada, sem projecto, sem consistência, incarna a imagem de um tempo sem futuro que
valoriza o «tudo, e já»; longe de estar em antinomia relativamente à ordem coo! e narcísica, é a
sua expressão exasperada: a mes ma indiferença, a mesma dessubstancialização, a mesma
desestabilização, o que se ganhou em individualismo perdeu-se em saber-fazer, em ambição,
mas também em sangue-frio, em controlo de si próprio: ao mesmo tempo que os jovens mafiosi
americanos se vão abaixo e quebram já sem grande re sistência a «lei do silêncio», vemos
aparecer essa figura mista e muito pós- moderna que é o jovem assaltante armado e sob o
efeito de tranquilizantes. A dessubstancialização, aqui como noutros lugares, é acompanhada
pelo flip e pela instabilidade. A violência contemporânea já nada tem a ver com o mundo da
crueldade; os nervos são o seu traço dominante, não só entre os autores de assaltos, mas
também entre os criminosos das habitações econó micas que se enfurecem com os que fazem
barulho e até entre a polícia, co mo demonstra a multiplicação dos inquietantes casos dos
«deslizes» recentes.
O crime quase por nada: certamente, não se trata de coisa nova, as épo cas anteriores
conheceram igualmente crimes crapulosos por ganhos miserá veis. No fim do século XIX,
existe ainda uma criminalidade chamada das barreiras ataca-se um burguês perdido, um
transeunte que é atraído aos fossos das fortificações. Mas estas violências tinham em comum
o facto de reafirmarem a conivência imemorial do crime e da noite, do ilegalismo e do segredo.
Hoje, este laço está em vias de ser desfeito; o crime hard exibe-se em pleno dia, no coração
da cidade, indiferente às cautelas do anonimato, indiferente aos lugares e às horas, como se o
crime se esforçasse por partici par na pornografia do nosso tempo, a da visibilidade total. Na
esteira da de sestabilização geral, a violência deslastra-se do seu princípio de realidade, os
critérios do perigo e da prudência esbatem-se, inicia-se assim uma banaliza ção do crime
reforçada por uma subida descontrolada aos extremos no em prego dos meios violentos.
L. Chevalier, op. cit., p. 196.
196
Gil/es Lipovetsky 1 A Era do Vazio
197
A violência criminosa não é o único factor que designa o mundo hard. Menos espectacular,
menos submetido ao scoop, o suicídio constitui a sua outra face, interiorizada se se quiser, mas
regida por uma mesma progressão e uma mesma lógica. Sem dúvida, a maré enchente de
suicídios não é carac terística da pós-modernidade; sabe-se, com efeito, que ao longo de todo o
século XIX, na Europa, o suicídio não parou de crescer. Em França, de 1826 a 1899, o número
de suicídios multiplicou-se por cinco enquanto a sua taxa por 100 000 habitantes passou de 5,6
a 23; na véspera da Primeira Guerra Mundial, esta taxa, já elevada, é ultrapassada, atingindo
26,2. co mo Durkheim analisou correctamente, onde a desinserção individualista to ma maior
amplitude, o suicídio agrava-se de maneira considerável. O suicí dio que, nas sociedades
primitivas ou bárbaras, era um acto de forte inte gração social efectivamente prescrito pelo
código holista da honra, torna-se, nas sociedades individualistas, um comportamento «egoísta»
cujo surto ful gurante não podia, segundo Durkheim, deixar de ser um fenómeno patológi co e,
135
portanto, evitável e passageiro, resultando menos da natureza da so ciedade moderna do que
das condições particulares em que ela se instituira.
A evolução da curva dos suicídios pôde, por um momento, confirmar o «optimismo» de
Durkheim, uma vez que a taxa muito elevada do início do século descera para 19,2 em 19261930 e mesmo para 15,4 durante a década que se inicia em 1960. Apoiando-se nestes números,
houve quem sustentasse que a sociedade contemporânea era «tranquila» e «equilibrada No
entanto, sabemos que não é assim: em primeiro lugar, a partir de 1977, em França, com uma
taxa próxima dos 20, assistimos de novo a um forte aumento do suicídio que restabelece quase
o nível do princípio do século ou do período entre as duas guerras. Mas, para além deste
agravamento, talvez conjuntu ral, da morte por suicídio, é o número de tentativas de suicídio
não seguidas de morte que nos força a retomar a questão da natureza suicidogénea das nossas
sociedades. Se verificarmos efectivamente uma queda do número de mortes voluntárias,
observamos ao mesmo tempo uma elevação contínua das tentativas de suicídio, e isso em todos
os países desenvolvidos. Calcula-se
Durkheim, Le Suicide, PUF, pp. 413-424.
2 Emmanuel Todd, Le Fou et le prol Laffont, 1979. Igualmente Hervé Le Bras e E.
Todd: «Depois da ruptura, os géneros de vida recompuseram-se e o indivíduo integrou-se de
outro modo. O suicídio apaga-se porque o mal-estar da civilização chega ao fim». lo L’Inven tion
dela France, Laffont, co!. «Pluriel», 1981, p. 296.
que há entre 5 e 9 tentativas por cada suicídio consumado: na Suécia, cerca de 2 000 pessoas
se suicidam por ano e 20 000 tentam fazê-lo; nos Estados- Unidos, são cometidos 25 000
suicídios e 200 000 tentados sem êxito. Em França, houve, em 1980, 10 500 suicídios
consumados e provavelmente cerca de 100 000 tentativas. Ora, tudo leva a pensar que o
número de tentativas no século XIX não podia ser equivalente ao que actualmente conhecemos.
Em primeiro lugar, porque os modos de preparação eram mais «eficazes»:
enforcamento, afogamento, armas de fogo eram os três instrumentos privile giados do suicídio
até 1960; depois, porque o estado da medicina não permi tia salvar o mesmo número de autores
de tentativas suicidárias; por fim, da da a proporção muito elevada, na população suicidante,
das pessoas idosas, ou seja, mais resolvidas, mais determinadas a morrer. Dada a extensão sem
precedentes das tentativas de suicídio, a epidemia do suicídio está longe de ter chegado ao
fim: a sociedade pós-moderna, acentuando o seu individualis mo, modificando o seu teor por
meio da lógica narcísica, multiplicou as ten dências para a auto-destruição, ainda que
transformando a sua intensidade; a era narcísica é mais suicidogénea do que a era autoritária.
Longe de ser um acidente inaugural das sociedades individualistas, o movimento ascensio nal
dos suicídios é correlativo delas, no plano da longa duração.
Se a distância entre as tentativas e as mortes por suicídio aumenta, isso liga-se sem dúvida aos
progressos da medicina em matéria de tratamento das intoxicações agudas, mas também ao
facto de a intoxicação por medica mentos e venenos se ter tornado uma forma largamente
predominante de ten tativa ou consumação do suicídio. Se encararmos o conjunto dos actos
suici dários (tentativas incluídas), as intoxicações, medicamentos e gás ocupam actualmente o
primeiro lugar entre os meios utilizados, sendo escolhidos por quatro quintos dos que se
suicidam ou tentam suicidar-se. De algum modo, o suicídio paga o seu tributo à ordem coo/:
cada vez menos sangrento e do loroso, o suicídio, como os comportamentos inter-individuais,
136
suaviza-se: a violência auto-destrutiva não desaparece, são os meios que perdem o antigo
brilho.
Se as tentativas aumentam, isso liga-se igualmente ao facto de a popula ção suicidante ser mais
jovem: acontece com o suicídio o mesmo que com a
grande criminalidade, e a violência hard é jovem. O processo de personaliza ção promove um
tipo de personalidade cada vez menos capaz de afrontar a
prova do real: a fragilidade, a vulnerabilidade crescem, e isto principalmente
entre a juventude, categoria social mais destituída de pontos de referência e
Guies Lipovetsky
de enraízamento. Os jovens, até há pouco relativamente preservados dos efeitos destruídores
do individualismo através de uma educação e de um en quadramento estáveis e autoritários,
sofrem em cheio a desestabijização narcísica; são eles que hoje representam a figura última
do indivíduo desin sendo, estilhaçado, desestabjljzado por excesso de protecção ou de
derrelição e, por isso, candidato ideal ao suicídio. Na América, os jovens entre quinze e vinte e
quatro anos suicidam-se a um ritmo duplo do de há dez anos, tri plo do de há vinte anos. O
suicídio diminui nas idades em que outrora era mais frequente, mas não deixa de aumentar
entre os mais jovens: nos EUA, o suicídio é já a segunda causa de morte dos jovens, a par dos
acidentes de viação. Talvez estejamos apenas no início do processo; é o que pensamos quando
nos damos conta, em toda a sua monstruosidade, do grau último a que chegou a escalada da
auto-destruição no Japão: facto inaudito, são ago ra as crianças entre cinco e catorze anos
que, em grande número, se matam
— de 56 em 1965 passaram a 100 em 1975, e a 265 em 1980.
Com a ingestão de barbitúrjcos e a taxa considerável das tentativas falha das, o suicídio entra
na era de massas, adquire um estatuto banalizado e disco unt, do mesmo modo que a depressão
e a fadiga. Actualmente o suicí dio vê-se anexado por um processo de indeterminação em que o
desejo de vi ver e desejo de morrer já não são antinómicos, mas flutuam entre um pólo e outro,
quase instantaneamente. Grande número de suicidantes, assim, inge rem o conteúdo da sua
farmácia para logo a seguir pedirem auxílio médico; o suicídio perde a radicaljdade, desrealizase no momento em que os pontos de referência individuais e sociais se flexibilizam, em que o
próprio real se esvazia da sua substância densa e se identifica com uma encenação progra
mada. Esta liquefacção do desejo de aniquilamento é apenas uma das faces do neo-narcisismo,
da desestruturação do Eu e da dessubstancialização da vontade. Quando o narcisismo é
preponderante, o suícídio procede mais de uma espontaneidade depressiva, doflip efémero do
que de um desespero ex istencial definitivo. Deste modo, nos nossos dias, o suicídio pode
verificar-se paradoxalmente sem desejo de morte, um pouco como esses crimes entre vi zinhos
em que o indivíduo mata menos por vontade de morte do que para se desembaraçar
simplesmente de uma fonte de poluição sonora. O indivíduo pós-moderno tenta matar-se sem
querer morrer, como esses assaltantes que disparam ao acaso e por nervosismo; os indivíduos
tentam pôr termo à vida por causa de qualquer observação menos lisonjeira, do mesmo modo
que outros matam para arranjar um bilhete de cinema; trata-se do efeito hard,
de uma violência sem projecto, sem vontade afirmada, uma subida aos ex tremos instantânea:
neste ponto a violência hard é veiculada pela lógica cool do processo de personalização.
137
Individualismo e revolução
O processo individualista que progride juntamente com a redução do de safio interpessoal é,
em contrapartida, acompanhado por um desafio inédito, de alcance muito mais radical, o da
sociedade frente ao Estado. Ê, com efei to, no momento em que a relação de homem a homem
se «humaniza» que se abrem o projecto e a acção revolucionárias, bem como uma luta de
classes declarada, consciente de si própria, tendo por missão dividir a história ao meio e abolir
a própria máquina estatal. Processos de civilização e revolução são concomitantes. Nas
sociedades holistas, a violência dos homens poupava a definição do seu estar-em-conjunto; a
despeito dos seus caracteres sangren tos, os motins e revoltas tradicionais não visavam
destruir a arquitectura do todo social. Pelo contrário, nas sociedades individualistas, são os
fundamen tos da sociedade, o teor intrínseco da lei e do poder que se tornam objectos do
debate público, alvos da luta dos indivíduos e das classes. Começa a era moderna da violência
social, doravante peça constitutiva da dinâmica histó rica, instrumento de transformação e de
adaptação da sociedade e do Esta do. A violência das massas torna-se um princípio útil e
necessário ao funcio namento, ao crescimento das sociedades modernas, tendo a luta de
classes permitido ao capitalismo nomeadamente superar as suas crises, reabsorven do o seu
desequilíbrio crónico entre produção e consumo.
Impossível compreender a emergência do fenómeno revolucionário, bem como a de uma luta de
classes permanente e institucionalizada, separando os da sociedade individualista que lhes é
correlativa, tanto pela sua organi zação económico-social como nos seus valores. Nas
sociedades holistas ou hierárquicas, quer dizer, em sistemas onde os seres particulares,
secundários em relação ao conjunto social em que os homens estão integrados assenta num
fundamento sagrado e, por isso mesmo, subtraído à iniciativa revolu cionária. Para que a
revolução se torne uma possibilidade histórica, é preciso que os homens estejam atomizados,
desinseridos das suas solidariedades tra dicionais; é preciso que a relação com as coisas leve a
melhor sobre a rela ção entre os seres e que, por fim, predomine uma ideologia do indivíduo que
198
A Era do Vazio 199
200
Gil/es Lipovetsky
lhe conceda um estatuto nativo de liberdade e de igualdade. A revolução e a luta de classes
pressupõem o universo social e ideológico do individualismo; a partir de então, já não há
organização em si exterior à vontade dos ho mens, o todo colectivo e a sua supremacia, que
anteriormente impediam a violência de abalar a ordem correspondente, perdem o seu princípio
de in tangibilidade e já nada, nem o Estado, nem a sociedade, escapam à acção transformadora
dos homens. Quando o indivíduo deixa de ser meio de um fim exterior e passa a ser
considerado e a considerar-se como fim último, as instituições sociais perdem o seu halo de
sagrado; tudo o que procede de uma transcendência inviolável e se dá numa heteronomia de
natureza vê-se a mais breve ou a mais longo prazo minado por uma ordem social e ideológica
cujo núcleo já não é o além, mas o indivíduo autónomo em si próprio
A sociedade homogénea de seres iguais e livres é indissociável, na sua era triunfante, de um
conflito aberto e violento relativo à organização da socie dade. Governada pelo papel decisivo
da ideologia, que doravante se substitui à instância religiosa, conservando o mesmo carácter
absoluto e passional, a primeira fase individualista é uma era de revoluções e de lutas sociais
138
san grentas. Emancipando-se do sagrado, a sociedade individualista só restitui aos homens o
pleno domínio do seu estar-em-conjunto ao fazê-los defronta rem-se em conflitos, é certo que
por vezes baseados no interesse, mas cujo maniqueísmo se prende sobretudo aos novos valores
associados aos direitos do indivíduo. Nesta perspectiva, a fase heróica do individualismo pode
ser comparada mais acertadamente a uma mobilização-politização de massa em torno de
valores do que a um recuo prudente para o campo de preocupações estritamente privadas.
Hipertrofia e antagonismo ideológicos são insepará veis da era individualista-democrática. Por
comparação com os nossos dias, esta fase continua de algum modo ligada às sociedades
holistas, ao primado do todo social, passando-se tudo como se o elemento de desorganização so
cial encerrado no princípio individualista tivesse sido prontamente contraria do por um tipo de
enquadramento omnipresente e inflexível, paralelo nesse ponto ao das disciplinas, e destinado a
neutralizar a dinâmica das singulari dades pessoais, a prender os indivíduos à coisa pública,
ainda que através da mediação dos confrontos de classe e dos valores.
Ver M. Gauchet, art. citado, pp. 111-114, e introdução a De la libertó chez les moder
nes, Laffont, col. «Pluriel», 1980, pp. 30-38. e
TN
A Era do Vazio
Com a era individualista abre-se a possibilidade de uma era de violência total da sociedade
contra o Estado, sendo uma das suas consequências uma violência não menos ilimitada do
Estado sobre a sociedade, ou seja o Terror como modo moderno de governo pela violência
exercida em massa, não só contra os opositores, mas também contra os partidários do regime.
As mes mas razões que permitem à violência civil subverter a ordem social e política tornam
possível um desafio sem precedentes do poder em relação à socieda de, nascendo o Terror na
nova configuração ideológica resultante da supre macia do indivíduo: quer os massacres, as
deportações, os processos se reali zem em nome da vontade do povo quer da emancipação do
proletariado, o Terror só é possível em função de uma representação democrática e, portan to,
individualista, do corpo social, embora, sem dúvida, para denunciar a sua perversão e para
restabelecer pela violência a prioridade do todo colecti vo. Do mesmo modo que a vontade
revolucionária não pode explicar-se por contradições objectivas de classe, também é vão
querer dar conta do Terror a partir de simples necessidades circunstanciaiS é porque o
Estado, de acor do com o ideal democrático, se proclama idêntico e homogéneo à sociedade
que, com efeito, pode chegar a desafiar toda a legalidade, a desenvolver uma repressão sem
limites, sistemática, indiferente às noções de inocência e de culpabilidade Se, por conseguinte,
a evolução individualista-de mocrática implica correlativamente, na longa duração, uma redução
dos sig nos ostentatóriOs do poder estatal e o advento de um poder benevolente, sua ve,
protector nem por isso deixou de permitir a emergência de uma forma particularmente
sangrenta de poder, que podemos interpretar como uma úl tima revivescência do brilho do
soberano condenado pela ordem moderna, uma formação de compromisso entre os sistemas da
crueldade simbólica tra dicional e a impessoalidade gestionária do poder democrático A grande
fase do individualismo revolucionário termina ante os nossos
olhos: depois de ter sido um agente de guerra social, o individualismo con tribui actualmente
para abolir a ideologia da luta de classes. Nos países oci dentais desenvolvidos, a era
revolucionária encerrou-se, a luta de classes ins titucionalizou-5e, já não é portadora de
descontinuidade histórica, os parti dos revolucionários encontram-se num estado de
139
deliquescência total, a ne gociação leva por todo o lado a melhor sobre os confrontos violentos.
A se 1 Ver C Lefort, Un homme en trop, Êd. du Seuji, 1976, pp. 50-54, e Bernard Manin,
«Saint-Just, la logique de la Terreur», iii Libre, 1979, n.° 6.
201
A Era do Vazio
203
202
Gil/es Lipovetsky
gunda «revolução» individualista, veiculada pelo processo de personalização, tem como
consequência uma desafecção de massa da res publica e em parti cular das ideologias políticas:
depois da hipertrofia ideológica, a desenvoltu ra perante os sistemas de sentido. Com a
emergência do narcisismo, a or dem ideológica e o seu maniqueísmo cedem o lugar à
indiferença, tudo o que é dotado ainda de uma certa densidade de universalismo e de oposições
exclusivas deixa de ter preensão sobre uma forma de individualidade muito amplamente
tolerante e móvel. A ordem rígida, disciplinar, da ideologia tor nou-se incompatível com a
desestabilização e com a humanização coo/. O processo de pacificação conquistou o todo
colectivo, a civilização do conflito social prolonga hoje a das relações inter-pessoais.
Mesmo os últimos sobressaltos da Revolução dão testemunho deste apa ziguamento do conflito
social. Foi o caso de Maio 68. As discussões que se travaram em torno do teor do movimento
são a este respeito significativas:
revolução ou happening? Luta de classes ou festa urbana? Crise da civiliza ção ou charivari? A
revolução torna-se indecidível, perde os seus referen de identidade. Por um lado, Maio 68
continua a inscrever-se na vaga do processo revolucionário e insurreccional: barricadas,
confrontos violentos com as forças da ordem, greve geral. Por outro lado, o movimento já não é
animado por qualquer meta global, política e social. Revolução sem projecto histórico, Maio 68 é
uma sublevação cool e sem mortes, uma «revolução» sem revolução, um movimento de
comunicação tanto como um confronto so cial. As jornadas de Maio, para além da violência das
noites quentes, repro duzem menos o esquema das revoluções modernas fortemente
articuladas em torno de paradas ideológicas do que prefiguram a revolução pós-moderna das
comunicações. A originalidade de Maio foi a sua civilidade espantosa: a discussão instaura-se
por todo o lado, os graffiti florescem nas paredes, os jornais, os cartazes, os comunicados
multiplicam-se, a comunicação estabe lece-se nas ruas, nos anfiteatros, nos bairros e nas
fábricas, nos lugares de onde habitualmente estava ausente. Sem dúvida, todas as revoluções
suscita ram uma inflação de discursos, mas, em 68, estes soltaram o lastro dos seus conteúdos
ideológicos pesados; já não se tratava, com efeito, de tomar o po der, de designar traidores,
de traçar linhas divisórias entre os bons e os maus; tratava-se, por intermédio da expressão
livre, da comunicação, da contestação, de «mudar a vida», de libertar o indivíduo das mil
alienações que quotidianamente pesam sobre ele, do trabalho ao supermercado, da te levisão à
universidade. Libertação da palavra, Maio 68 foi animado por uma
ideologia flexível, simultaneamente política e convivia!, patchwork de luta de classes e de
líbido, de marxismo e de espontaneísmo, de crítica política e de utopia poética; uma
descrispação, uma desestandardiZação teórica e prática habita o movimento, isomorfo nese
140
ponto do processo coo de personaliza ção. Maio 68 é já uma revolução persona!izada a revolta
faz-se contra a au toridade repressiva do Estado, contra as separações e imposições burocráti
cas incompatíveis com a livre afirmação e desenvolvimento do indivíduo. A ordem da revolução
humaniza-se, levando em conta as aspirações subjecti vas, a existencla e a vida: à revolução
sangrenta substituiu-se a revolução estilhaçada», multidimensiOnal, transição quente entre a
era das revoluções sociais e políticas em que o interesse colectivo prima sobre o dos
particulares e a era narcísica, apática, desideologizada.
Desligada do maniqueísmo ideológico, a violência das jornadas de Maio pôde mesmo surgir como
uma manifestação lúdica, exactamente ao invés do terrorismo actual que, no seu fundo,
continua a ser tributário do modelo re volucionário estrito, organizado em torno da guerra de
classe, em torno de dispositivos vanguardistas e ideológicos, o que explica o seu corte radical
com as massas indiferentes e descrispadas. Dito isto, apesar do seu enqua dramento
ideológico, o terrorismo reúne-se, por um estranho paradoxo, à ló gica do nosso tempo, já que
os discursos duros de legitimação de que proce dem os atentados, os «processos» e os raptos
se tornaram totalmente vazios, desconectados de toda a relação com o real à força de
intumescência revolu cionária e de autismo grupuscUlar. Processo extremista que apenas a si
próprio tem em vista, o terrorismo é uma pornografia da violência: a máquina ideológica ganha
velocidade por si própria, perde todo o enraizamento; a dessubstanCialização conquista a
esfera do sentido histórico, afirmando-se como violência hard exasperação maximalista e
vazia, espectro lívido, car caça ideológica liofilizada.
Maio 68, já o dissemos, tem uma dupla face: moderno pelo seu imaginá rio da Revolução, pósmoderno pelo seu imaginário do desejo e da comuni cação, mas também pelo seu carácter
imprevisível ou selvagem, modelo pro vável das violências sociais vindouras. À medid.t que o
antagonismo de das sé se normaliza, surgem explosões aqui e ali, sem passado nem futuro, desa
parecendo com a mesma rapidez que caracterizou a sua emergência. Actual mente, as violências
sociais têm muitas vezes em comum o facto de já não caberem no esquema dialéctico da luta de
classes articulada em torno de um proletariado organizado: os estudantes nos anos 60, hoje os
jovens desemPre
204
Guies Lupa vetsky
gados, squatters, Negros ou Jamaicanos — a violência marginalizou-se. Os motins que se
desenrolaram recentemente em Londres, Bristol, Liverpool, Brixton ilustram o novo perfil da
violência, seja qual for o carácter racial de alguns destes confrontos. Se a revolta libertária
dos anos sessenta era ainda «utópica», portadora de valores, nos nossos dias, as violências que
incen deiam os ghettos surgem desligadas de qualquer projecto histórico, fiéis nes se ponto ao
processo narcísico. Revolta pura da desocupação, do desempre go, do vazio social. Dissolvendo
a esfera ideológica e a personalidade, o pro cesso de personalização libertou uma violência
tanto mais dura quanto me nos esperança tem, no future, à imagem da nova criminalidade e da
droga. A evolução dos conflitos sociais violentos é a mesma que a da droga: depois da viagem
psicadélica dos anos sessenta, marca de contra-cultura e de revol ta, a era da toxicomania
banalizada, da depressão sem sonho, da descarga lumpen com medicamentos, verniz das unhas,
querosene, colas, dissolventes e lacas, para uma população cada vez mais jovem. Tudo o que
resta é ata car um bobby ou um Paquistanês, incendiar as ruas e os prédios, pilhar os armazéns,
numa acção a meio caminho entre a descarga e a revolta. A vio lência de classe deu lugar a uma
violência de jovens desclassificados, que destroem os seus próprios bairros; os ghettos
141
incendeiam-se como se se tra tasse de acelerar o vazio pós-moderno e de completar na raiva o
deserto que, por outros meios, o processo coo! de personalização realiza. Numa derradei ra
desqualificação, a violência entra no ciclo em que absorve os seus pró prios conteúdos; de
acordo com a era narcísica, a violência dessubstanciali za-se num culminar hiperrealista sem
programa nem ilusão, violência hard, desencantada.
CAPITULO V
A sociedade humorística
Tem-se sublinhado de há muito a amplitude do fenómeno de dramatiza ção suscitado pelos
mass-media: clima de crise, insegurança urbana e plane tária, escândalos, catástrofes,
entrevistas dilacerantes, pelo que, sob a sua objectividade de superfície, as informações se
orientam no sentido da emo ção, do «pseudo-acontecimento», do cliché sensacional, do
suspense. Tem-se observado menos um fenómeno igualmente inédito, de certo modo inverso,
apesar de legível a todos os níveis da quotidianidade: o desenvolvimento ge neralizado do
código humorístico. Cada ve mais, a publicidade, as emissões de animação, os siogans das
manifestações, a moda adoptam um estilo hu morístico. Os comics suscitam um tal apetite que
um jornal de San Francis co sofreu uma queda espectacular do seu número de leitores por ter
decidido suprimir a BD de Schulz, os Peanuts. Até as publicações sérias se deixam influenciar
em maior ou menor medida pela atmosfera da época: basta ler os títulos ou subtítulos dos
diários, dos semanários e mesmo dos artigos científicos ou filosóficos. O tom universitário dá
lugar a um estilo mais tóni co feito de piscadelas de olho e jogos de palavras. A ai-te,
adiantando-se nis so a todas as outras produções, integrou de há muito o humor como uma das
suas dimensões constitutivas: impossível, com efeito, eliminar a carga e
128
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
129
a orientação humorística das obras, com Duchamp, a anti-arte, os surrealis tas, o teatro do
absurdo, a arte pop, etc. Mas o fenómeno não pode sequer ser circunscrito à produção
expressa dos signos humorísticos, ainda que ao nível de uma produção de massa; o fenómeno
designa simultaneamente o devir inelutável de todas as nossas significações e valores, do sexo
ao Outro, da cultura ao político e isto contra a nossa própria vontade. A descrença pósmoderna, o neo-nihilismo que ganha corpo, não é nem ateu nem mortí fero, mas doravante
humorístico.
Do cómico grotesco ao humor pop
O nosso tempo não detém, longe disso, o monopólio do cómico. Em to das as sociedades,
incluindo as selvagens, nas quais a etnografia revela a existência de cultos e mitos cómicos, os
divertimentos e o riso ocuparam um lugar fundamental que temos tendência a subestimar em
excesso. Mas se ca da cultura desenvolve de modo preponderante um esquema cómico, só a so
ciedade pós-moderna pode dizer-se humorística, só ela se instituiu global mente sob a égide de
um processo tendente a dissolver a oposição, até então estrita, do sério e do não-sério; na
esteira das outras grandes divisões, a do cómico e do cerimonial esbate-se em benefício de um
clima largamente hu morístico. Enquanto que a partir da instituição das sociedades estatais, o
142
có mico se opõe às normas sérias, ao sagrado, ao Estado, representando assim um segundo
mundo, mundo carnavalesco e popular na Idade Média, mundo da liberdade satírica do espírito
subjectivo a partir da idade clássica, esta dualidade tende a liquefazer-se sob o impulso
invasor do fenómeno hu morístico que anexa todas as esferas da vida social, ainda que apesar
da nossa oposição. Os carnavais e festas estão reduzidos a uma existência fol clórica, o
princípio de alteridade social que incarnavam pulverizou-se e, cu riosamente, é a uma luz
humorística que doravante nos aparecem. Os pan fletos violentos perderam a sua
preponderância, os cantores deixaram de ser cabeças de cartaz; um novo estilo descontraído e
inofensivo, sem negação nem mensagem, emergiu, caracterizando o humor da moda, da escrita
jor nalística, dos jogos radiofónicos, da publicidade, de numerosas BD. O cómi co, longe de ser
a festa do povo ou do espírito, tornou-se um imperativo so cial generalizado, uma atmosfera
coo1, uni meio ambiente permanente que o indivíduo sofre até na sua existência quotidiana.
Nesta perspectiva, podemos determinar três grandes fases históricas do cómico a partir da
Idade Média, sendo cada uma delas caracterizada por um princípio dominante. Na Idade Média,
a cultura cómica popular encon tra-se profundamente ligada às festas, aos divertimentos de
tipo carnavales co, que, digamo-lo de passagem, chegavam a ocupar um total de três meses por
ano. Neste contexto, o cómico vê-se unificado pela categoria de «realis mo grotesco» baseado
no princípio de rebaixamento do sublime, do po der, do sagrado, por meio de imagens
hipertrofiadas da vida material e cor poral. No espaço da festa, tudo o que é elevado,
espiritual, ideal é transpos to, parodiado, para a dimensão corporal e inferior (comer, beber,
digestão, vida sexual). O mundo do riso edifica-se essencialmente a partir das mais di versas
formas de grosseria, de rebaixamentos grotescos dos ritos e símbolos religiosos, de
arremedos paródicos dos cultos oficiais, de coroações e destro namentos bufos. Assim, por
altura do Carnaval, a hierarquia é invertida, o bufão é sagrado rei pelo conjunto do povo, depois
ridicularizado pelo mesmo povo que o injuria e lhe bate quando o seu reinado chega ao fim;
durante a «festa dos loucos», elege-se um abade, um arcebispo e um papa de mascara da que
entoam refrões obscenos e grotescos sobre árias de cantos litúrgicos, transformam o altar em
mesa de banquete e utilizam excrementos à guisa de incenso. Depois do ofício religioso, a
paródia escatológica continuava, per correndo este «clero» as ruas e lançando excrementos
sobre o povo que o es coltava. Introduzia-se igualmente na igreja um burro em honra do qual se
celebrava a missa: no fim do ofício, o padre zurrava, seguido pelos fiéis. E este mesmo esquema
carnavalesco que, até ao Renascimento, impregnará as obras literárias cómicas (paródias dos
cultos e dogmas religiosos), bem como os gracejos, ditos, pragas e injúrias: o riso surge sempre
ligado à profanação dos elementos sagrados, à violação das regras oficiais. Todo o cómico
medie val oscila assim no sentido de uma imaginária grotesca que, antes de tudo, devemos não
confundir com a paródia moderna, de algum modo dessociali zada, formal ou «estetizada». A
mascarada cómica do rebaixamento é uma simbólica através da qual a morte se afirma como
condição de um novo nas cimento. Invertendo o alto e o baixo, precipitando tudo o que é
sublime e
Mikhaïl Bakhtine, LOeuvre de François Rabelais et la culture populaire ou Moyen Âge ei sous la
Renaissance. 1970, pp. 28-29. O livro de Bakhtine é essencial para tudo o que se re fere à
história do cómico popular da época. Fornece, além disso, elementos muito úteis para uma
interpretação mais global da história do riso. As análises que a seguir desenvolvemos de vei
muito da sua inspiração.
130
143
Gil/es Lipovetsky 1 A Era do Vazio
digno nos abismos da materialidade, prepara-se a ressurreição, um novo co meço após a morte.
O cómico medieval é «ambivalente»;em toda a parte se trata de dar a morte (rebaixar,
ridicularizar, injuriar, blasfemar) para dar alento a uma nova juventude, para iniciar a
renovação
A partir da idade clássica, inicia-se o processo de decomposição do riso da festa popular, ao
mesmo tempo que se formam os novos géneros da literatu ra cómica, satírica e de
divertimento, afastando-se cada vez mais da tradi ção grotesca. O riso, expurgado do seus
elementos alegres, das suas grosse rias e ultrajes bufos, da sua base obscena e escatológica,
tende a reduzir-se ao espírito, à ironia pura que se exerce à custa dos costumes e individualida
des típicas. O cómico já não é simbólico, torna-se agora crítico, tanto na co média clássica
como na sátira, na fábula, na caricatura, na revista ou no vaudevilie. Com isto, o cómico entra na
sua fase de dessocialização, privati za-se e torna-se «civilizado» e aleatório. Com o processo
de empobrecimento do mundo carnavalesco, o cómico perde o seu carácter público e colectivo,
metamorfoseia-se em prazer subjectivo perante este ou aquele facto engraça do isolado, o
indivíduo fica no exterior do objecto do sarcasmo, nos antípo das da festa popular que ignorava
qualquer distinção entre actores e espec tadores e abrangia o conjunto do povo ao longo de
todo o tempo que dura vam os festejos. Em simultâneo com esta privatização, o riso disciplinase:
devemos entender o desenvolvimento dessas formas modernas do riso que são o humor, a
ironia, o sarcasmo, como um tipo de controlo ténue e infini tesimal exercido sobre as
manifestações do corpo, análogo por esse lado ao adestramento disciplinar analisado por
Foucault. Trata-se, num e noutro ca so, de decompor os agrupamentos maciços e confusos,
isolando os indiví duos, de quebrar as familiaridades e comunicações não-hierárquicas, de ins
tituir barreiras e compartimentações, de domesticar as funções de um modo constante, de
produzir «corpos dóceis», comedidos e previsíveis nas suas reacções. Nas sociedades
disciplinares, o riso, com os seus excessos e exube râncias, vê-se inelutavelmente
desvalorizado, o riso que, justamente, não exi ge qualquer aprendizagem: no século XVIII, o
riso livre torna-se um com portamento desprezado e vil e, até ao século XIX, será considerado
baixo e de mau tom, tão perigoso como tolo, encorajando a superficialidade e mes mo a
obscenidade. A mecanização do corpo disciplinado corresponde a espi ritualizaçãointeriorização do cómico: uma mesma economia funcional visan 1 M. Bakhtjne, op. cit. p. 30-31.
131
do Poupar as despesas desordenadas um mesmo proces celular que pro duza o indivíduo
moderno.
Actualmente, estamos para além da era satíi-jca e do seu cómico mordaz. Através da
publicidade, da moda, dos gadgets, das emissões de animação, dos comies, quem não vê que a
tonalidade dominante e inédita do cómico já não é sarcástica, mas 1i O humor que se instala
suprime o negativo ca racterístico da fase satírjca ou caricatural À denúncia trocista
corresponden te a uma sociedade baseada em valores reconhecidos substjtuiuse um humor
positivo e desenvolto, um cómico teen-ager à base de despropósito gratuito e sem pretensões o
humor na publicidade ou na moda não tem vítima, não troça, não critica, esforçand somente por
prodigalizar uma atmosfera eu fórica de bom humor e de felicidade sem reverso, O humor de
massa já não repousa num fundo de amargura ou aborrecimento: longe de mascarar um
144
pessimismo ou de ser a «delicadeza do desespero», o humor contemporâneo quer-se sem
espessura e descreve um universo radioso. «Há uma festa super em cada iogurte»: a
tradicional gravidade ou impassibilidade do humor in glês ( verdadeiro humor é característico
de um autor que afecta gravidade e seriedade, mas pinta os objectos com uma cor tal que
provoca alegria e o riso», Lord Kames) desapareceu na mesma vaga que levou também a descri
ção minuciosa e imparcial do real ( humorista é um moralista que se dis farça de sábio»,
Bergson), Actualmente o cómico é bizarro e hiperbólico (a publicidade anexa o Oriente e os
gurus declaram: «A sua serenidade consiste em reunir todos os seus contratos de seguros na
UAP»), o gosto dos porme nores, a objectivjda do estilo inglês deu lugar à embriaguez do spot
e do siogan. Tendo deixado de fingir a indiferença e O desprendimento, o humor de massa é
sedutor, tónico e psicadélico; o seu registo pretende-se expressi vo, caloroso e cordial. Para
disso nos convencermos basta ouvirmos o estilo dos animadores das emissões radiofónicas para
«jovens» (Gérard Klein): o humor aqui já nada tem a ver com o espírito, como se tudo o que
tivesse uma certa profundidade pusesse em perigo o ambiente de proximidade e de comunhão.
O humor, doravante, é aquilo que seduz e aproxima os indiví duos: W. AlIen surge no hit-parade
dos sedutores de Play Boy. As pessoas tratam-se por «tu», ninguém se leva a sério, tudo é
«giro», multipJjcam os gracejos que procuram evitar o paternalismo a distância, o logro ou a
clás sica história de fim de banquete. O humor radiofónico, na esteira do colori do da pintura
pop, manifesta-se por camadas, o tom é o das verdades de Lapalíss da familiaridade vazia, dos
balões da BD, tanto mais prezado
132
Guies Lipovetsky
quanto mais simples e cursivo. Do mesmo modo, na vida quotidiana, con tam-se muito menos
histórias curiosas, como se a personalização da vida se tornasse incompatível com essas formas
de narração transmitidas pcrr ouvir dizer, repetitivas e codificadas. Nas sociedades mais
crispadas, uma tradição viva apoia-se nas anedotas com alvos relativamente precisos (os loucos,
o se xo, o poder, certos grupos étnicos): hoje o humor tende a desligar-se destes moldes
demasiado rígidos e sólidos em benefício de uma boa - disposição sem ossatura, sem cabeça de
turco, e de um gracejar vazio que se alimenta de si próprio O humor, como o mundo subjectivo
e intersubjectivo, dessubstan cializa-se, aspirado pela lógica generalizada de uma
inconsistência maior. Os ditos de espírito, os jogos de palavras vão igualmente perdendo o seu
prestí gio: quase nos desculpamos por causa de um trocadilho ou rimo-nos acto contínuo do
nosso próprio espírito. O humor dominante já não se acomoda com a inteligência das coisas e da
linguagem, com essa superioridade que o espírito se arroga; precisa de um cómico discount e
pop que já não sugira qualquer eminência ou distância hierárquica. Banalização, dessubstanciali
zação, personalização, encontramos todos estes processos entre os novos se dutores dos
grandes media: as personagens burlescas, heróicas ou melodra máticas fizeram o seu tempo,
hoje é o estilo aberto, desenvolto e humorístico que se impõe. Os filmes de James Bond, as
«séries» americanas (Starky et Hutch, Sinceramente Seu) põem em cena personagens que têm
em comum unia mesma descontração dinâmica acompanhada por uma eficácia exem plar. O
«novo» herói não se leva a sério, desdramatiza o real e caracteriza-se por uma atitude
maliciosamente desprendida ante os acontecimentos. A ad versidade é ininterruptamente
atenuada pelo seu humor coo! e empreende dor enquanto a violência e o perigo o cercam por
todos os lados. À imagem do nosso tempo, o herói é eficiente, embora não invista
emocionalmente os seus actos. Doravante, não há entrada para ninguém que se leve a sério,
ninguém é sedutor se não for simpático.
145
O humor vazio, desestruturado, conquista o próprio significante e desdobra-se no excesso
lúdico dos signos: testemunha-o a invasão dos comics por onomatopeias, palavras bárbaras in
ventadas intencionalmente para traduzirem, num registo hiperexpressivo e cómico, os ruídos
do mundo. «Chnaf», «plomp*, «ghuuhugrptch», rrhaawh», hugnuptch», «grmf» — estes
significan tes já não têm sentido e desprendem-se de todo o referente. O cómico resulta
desta autonomia hiperbólica da linguagem, da vacuidade dos signos que se abandonam à
exasperação sonora, ortográfica e tipográfica. Cf. Fresnault-Dereuelle, Récits et discours par
la banda. Hachette, 1977, pp. 185-199.
A Era do Vazio
133
A par do humor de massa eufórico e convivial afirma um humor de certo modo undergro
descontraído sem dúvida mas de tom deseiiga. nado, hard. «Ê preciso ter unia cabeça lixada
para chegar a esse Ponto. Mas é unia condição sifle qua lion; caso contrário, dá-se em maluco,
com o Iggy Pop, quer dizer, fica-se com os fusíveis da tola todos queimados e com um sorriso
idiota e babado... E os tipos bem podem dizer que o inferno é um sítio fixe e bem aqueci com
um concerto do Gene Vincent e do Hendriz todos os dias, quanto mais tarde lá formos parar,
melhor, não acham? po bres barracas, como vos odeio!» (Libóration) Humor Pós-moderno, new
wave, que não devemos confundir com o humor negro: o tom é baço, vaga- mente Provocador,
sobre o vulgar, exibindo ostensivamente a emancipação da linguagem do sujeito e muitas vezes
do sexo. £ a face dura do narcisis mo que se deleita aqui na negaç estética e nas figuras de um
quotidia metalizado Num outro género e sem desencanto Mad Max II de G. Milier é um
exemplo muito característico de um humor hard onde se misturam in dissociavelmente a
extrema violência e o cómico. A «graça» está aqui na en genhosida no excesso hiper-realista
das máquinas de ficção científica «pri mitivas», atrozes, bárbaras. Não há meias tintas, o
humor trabalha ao vivo, em grandes planos e com efeitos especiais; o macabro é ultrapassado
pela apoteose do teatro hollywoodjano da crueldade
Simultaneamente é a uma esterjlizaç a uma pacifjcaç do cómico que assistimos na vida
quotidiana Assim os disfarces divertimentos ainda muito apreciados nos campos do século xix,
deixaram de se ver, excepto nas festas infantis ou em festas privadas Outrora, os camponeses
divertiam. se passeando nas suas aldeias vestidos de soldados, de burgueses ricos ou em trajes
do sexo oposto. O mimo também já não tem grande êxito, quando, na mesma época, não era
raro, nomeadamente por altura dos casamentos, ver caricaturadas as sogras de modo grotesc .
As pragas e blasfémias iá não dão vontade de rir, as grosseri medida que passaram a ser
generaliz mente utilizadas e anexadas pela moda, banalizamse, perdem o seu poder de
provocação e a sua intensidade agress Só os sketc/zes de nzusjc-hal/ ou de café-concerto
(Coluche) conseguem dar ainda às grosseria a sua virtude hilariante, e mesmo isso, não como
violaç da norma, mas como amplifica. ção e reflexo do quotidia Os arremedos, que nos meios
Populares do sé culo XIX eram os gracejos mais apreciados e que muitas vezes não se mos
Zeldin, Htstojye des Êd. Recherches 1979 . II p. 394.
1
134
Gil/es Lipovetsky
146
A Era do Vazio
travam desprovidos de certa brutalidade, já não têm grande eco: inventar uni argumento
destinado a ridicularizar outrém aos olhos de todos suscita hoje mais reprovação do que
encorajamento. Mesmo as «imitações e adivi nhas» caíram em desuso e passaram a ser
reservadas às crianças: o cómico exige nos nossos dias mais discrição e novidades: já não
estamos no tempo em que as pessoas se riam invariavelmente com as mesmas graças; o humor
requer hoje o espontâneo, o «natural».
Apesar de tudo isto, verifica-se desde há dois ou três anos um reatar dos grupos mascarados
de jovens, nas ruas e nos liceus, por ocasião da Terça- feira Gorda. Fenómeno novo, pósmoderno, com efeito: o indivíduo moderno achava ridículo ou infantil disfarçar-se; o mesmo já
não se passa hoje, uma vez que essa recusa parecia austera, rígida, convencional. A atitude
pós- moderna é menos ávida de emancipação séria do que de animação desenvol ta e de
personalização fantasista. Tal é de facto o sentido deste regresso descrispado do
carnavalesco: de modo nenhum um reinvestimento da tradi ção, mas um efeito tipicamente
narcísico, hiper-individualizado, espectacu lar, dando lugar a uma profusão exasperada de
máscaras, ouropéis, caracte rizações, ornamentos heteróclitos. A «festa» pós-moderna: meio
lúdico de uma sobre-diferenciação individualista e que, no entanto, não é um meio menos
curiosamente sério pela aplicação cuidadosa e sofisticada que o carac teriza.
Pouco a pouco, tudo o que possui uma componente agressiva perde a sua capacidade de fazer
rir os rituais de entrada em certas grandes escolas mantêm-se, mas a iniciação, para ser
engraçada, não deve ultrapassar um certo limiar de agressão: para além desse limite, surge
como uma violação, destituída de dimensão cómica. De acordo com o irreversível processo de
«abrandamento dos costumes», de que falava Tocqueville, o cómico torna-se incompatível com
os divertimentos cruéis de outrora: não só já ninguém riria vendo queimar gatos como era
costume no século XVI por altura da festa de
Na imprensa ou no desenho (Woljnski, Reiser, Cabu, Gébé), assistimos à tendência in versa, a
uma escalada sem precedentes de ferocidade caricatural, de humor «estúpido e mau», de modo
nenhum em contradição com o processo de abrandamento dos costumes, mas a favor deste: o
humor atroz pode dar-se tanto mais livre curso quanto mais os costumes e relações hu manas
se pacificam. A vulgaridade, a obscenidade ressurgem sob forma humorística ao mesmo tempo
que a higiene é um credo universal e o corpo se transforma em objecto de solicitudes e de
cuidados permanentes.
135
S. João mas as próprias crianças já não acham graça, ao contrário do que se passava em todas
as civilizações anteriores, a martirizar os animais. À medida que o cómico se espiritualiza,
começa prudentemente a poupar o outro: devemos sublinhar esta atitude sociainiente nova que
consiste em re provar o riso à custa de outrém. O outro deixa de ser a presa privilegiada dos
sarcasmos, rimo-nos hoje muito menos dos vícios e defeitos de outrém:
no século XIX e durante a primeira metade do século XX, amigos, vizinhos, com os seus
infortúnios (o cornudo, por exemplo), os seus desvios em rela ção à norma, eram objecto de
gracejos. Actualmente, os que nos estão pró ximos são poupados, no preciso momento em que,
como veremos, a imagem do outro perde consistência e se torna humorística à força de
singularidade. Tal como o humor lúdico na ordem dos signos de massa toma o lugar do espírito
147
satírico, assim, ao nível da quotidianjdade, a crítica trocista em rela ção a outrém atenua-se e
perde o seu efeito hilariante, de acordo com uma personalidade psi em busca de calor convivial
e de comunicação inter- pessoal.
Correlativamente, é o Eu que se torna um alvo privilegiado do humor, objecto de deri-isão e de
auto-depreciação como testemunham os filmes de W. Alien. A personagem cómica já não releva
do burlesco (B. Keaton, Ch. Chaplin, os irmãos Marx), a sua graça já não resulta nem da
inadaptação nem da subversão das lógicas, decorre da reflexividade, da hiper-consciência
narcísjca, libidinal e corporal. A personagem burlesca é inconsciente da ima gem que
Proporciona ao outro, faz rir contra-vontade e Sem se observar, sem se ver a agir; são as
situações absurdas que engendra, os gags que põe em cena segundo uma mecânica irremediável
que são cómicos. Pelo contrário, com o humor narcísico, Woody Allen faz rir sem deixar nunca
de se anali sar, dissecando o seu próprio ridículo, estendendo-se a si próprio e ao espec tador o
espelho do seu Eu desvalorizado. o Ego, a consciência de si, que se torna objecto de humor e já
não os vícios de outrém ou os actos extrava gantes.
Paradoxalmente é com a sociedade humorística que na realidade começa a fase de liquidaç do
riso: pela primeira vez funciona um dispositivo que consegue dissolver progressjvame a
propensão para o riso. A despeito do código das boas maneiras e da condenação moral do riso,
os indivíduos de
Norbert Elias, La Civz/isati des Fnoeurs, Le livre de poche «Pluriel», p. 341.
Guies Lipovetsky
136
A Era do Vazio
todas as classes nunca deixaram de conhecer o riso demonstrativo, o riso louco, a explosão de
jovialidade. No século XIX, nas representações do café- concerto, o público tinha o costume
de interpelar jovialmente os artistas, de rir ruidosamente, de lançar comentários e gracejos
em voz alta. Há pouco tempo ainda, um ambiente semelhante podia encontrar-se nas salas de
cine ma populares: Fellini soube restituir esse clima rico de vida e risos mais ou menos
grosseiros numa das cenas de Roma. Nos espectáculos de J. Pujol, as enfermeiras tinham que
levar para fora mulheres literalmente doentes de ri so; as farsas e vaudevilies de Feydeau
desencadeavam tais acessos de riso que os actores se viam obrigados a mimar o fim dos
espectáculos, de tal mo do a hilariedade era descontrolada Que resta de tudo isto hoje que as
grandes algazarras de classe desapareceram, que a cidade vê terminarem os «gritos», os
gracejos dos palhaços, mercadores e charlatães, que os cinemas de bolso substituem os
cinemas de bairro, que o som nas boí’tes apaga as vo zes, que a música-ambiente anima o
silêncio discreto dos restaurantes e su permercados? Porque é que os grandes acessos de
hilaridade dão tanto nas vistas senão por nos termos a pouco e pouco desabituado de ouvir
essas gar galhadas espontâneas que eram tão frequentes em tempos anteriores? A me dida que
a poluição sonora conquista a cidade, o riso extingue-se, o silêncio invade o espaço humano, só
as crianças parecem escapar, por um tempo ainda, a esta espantosa discrição. A observação
impõe-se: depois do riso da festa, são as explosões intempestivas de riso que se encontram em
vias de desaparecimento; entrámos numa fase da pauperização do riso que se desen volve à
medida que o neo-narcisimo se consolida. Pelo desinvestimento gene ralizado dos valores sociais
que produz, pelo seu culto da auto-realização, a personalização pós-moderna encerra o
148
indivíduo em si próprio, fá-lo desertar não só da vida pública, mas no fim do ciclo também da
esfera privada, en tregue esta às perturbações proliferantes da depressão e das neuroses
narcísi cas o .processo de personalização tem no seu termo o indivíduo zombiesco, ora cool e
apático, ora esvaziado do sentimento de existir. Como não ver, as sim, que a indiferença e a
desmotivação de massa, o aumento do vazio exis tencial e a extinção progressiva do riso são
fenómenos paralelos: é por toda a parte a mesma desvitalização que surge, a mesma
erradicação das espon taneidades pulsionaís, a mesma neutralização das emoções, a mesma
auto- absorção narc’isica. As instituições esvaziam-se da sua carga emocional do
137
mesmo modo que o riso tende a rarear e a moderar-se. Enquanto a nossa sociedade adianta os
valores da comunicação, o indivíduo, pelo seu lado, já não sente a necessidade de se manifestar
por meio desse ríso demonstrativo que a sensibilidade popular diz tão bem ser «contagioso».
Na sociedade narcísica, o contacto entre os seres renuncia aos signos manifestos, interiorj zase ou psicologiza-se; o refluxo do riso não passa de uma das manifesta ções da dessocialização
das formas de comunicação, do isolamento sofi pós- moderno. £ coisa muito diferente de uma
discrição civilizada o que devemos reconhecer na atrofia contemporânea do riso: é deveras a
capacidade de riso que foi atingida, exactamente do mesmo modo que o hedonismo acarretou
um enfraquecimento da vontade, O desapossamento, a dessubstanciajização do indivíduo, longe
de se circunscrever ao trabalho, ao poder, invade agora a sua unidade, a sua vontade, a sua
hilaridade. Recolhido em si próprio, o homem pós-moderno tem cada vez mais dificuldade em
«rebentar» de riso, em sair de si, em sentir entusiasmo, em entregar-se à jovialidade. A
faculda de de riso regride: «um certo sorriso» substituiu o riso desenfreado. A «bel/e épo
que) é apenas o começo, a civilização continua a sua obra, promovendo uma humanidade naicísjca sem exuberância, sem riso, mas sobre-saturada de signos humorísticos.
Metapubijcjdade
Provavelmente é a publicidade que revela de modo mais manifesto a na tureza do fenómeno
humorístico: filmes, painéis, anúncios renunciam cada vez mais aos discursos sentenciosos e
austeros em proveito de um estilo feito de jogos de palavras, de fórmulas indirectas (»Tens
uns olhos lindos, sa bias?», para uma armação de óculos), de pastiches (Renault Fuego: «o auto
móvel que anda mais depressa do que a sua própria sombra»), de desenhos jocosos (os bonecos
Michelin ou Esso), de grafismos tomados de empréstimo aos comics, de paradoxos (»Olhem,
não há nada que ver»: fita-cola Scotch), de homofonias, de exageros e amplificações ridículas,
de gags, em suma, um tom homorístico vazio e ligeiro nos antípodas da ironia mordaz. «Viver de
amor e de Gini», isto não quer dizer nada, não chega a ser megalomaníaco, é uma forma
humorística a meio caminho entre a mensagem de solicitação e o nonsense. Certamente, o spot
publicitário não é nihilista, não cai na incoe
1 Th. Zeldin. op. cit., p. 399 e p. 408.
Gil/es Lipovetsky
138
A Era do Vazio
rência verbal e no irracional absoluto, sendo as suas declarações controladas pela vontade de
pôr em evidência o valor positivo do produto. Tal é o limite
149
do nonsense publicitário: nem tudo é permitido, a extravagância deve acabar por servir para
realçar a imagem do produto. Mas mesmo assim a publicida de pode levar muito longe a lógica
do absurdo, o jogo do sentido e do não- sentido, e isto num espaço em que, sem dúvida, a
parada é a inscrição da marca, mas que — e é este o ponto essencial — de facto não se atribui
os meios necessários para garantir a sua própria credibilidade. Eis o paradoxo:
a publicidade, que é estígmatizada por todos os quadrantes como instrumen to de doutrinação,
de matraqueamento ideológico, não se atribui os meios necessários a esse inçulcar de doutrina.
Nas suas formas avançadas, hu morísticas, a publicidade não diz nada, diverte-se consigo
própria: a verda deira publicidade troça da publicidade, do sentido como do não-sentido, es
vazia a dimensão da verdade, e é aí que está a sua força. A publicidade re nunciou, não sem
lucidez, à pedagogia, à solenidade do sentido; quanto mais lições, menos ouvintes: com o código
humorístico, a realidade do pro duto ganha tanto mais relevo quanto mais aparece sobre um
fundo de inve rosimilhança e de irrealidade espectaculares. O discurso demonstrativo fasti
dioso apaga-se, fica apenas um sinal que acende e apaga, o nome da marca:
o essencial.
O humor publicitário diz a verdade da publicidade, a saber que ela não é narrativa nem
mensagem, nem mítica nem ideológica: forma vazia na esteira das grandes instituições e
valores sociais, a publicidade nada diz, aplana o sentido, desarma o não-sentido trágico; o seu
modelo é sobretudo o desenho animado. Disneyland aqui e agora, nas revistas, nos muros da
cidade e nas paredes do metro, um vago surrealismo expurgado de todo o mistério, de to da a
profundidade que nos rodeia, entregando-nos à embriaguez desencanta da da vacuidade e da
inocuidade. Quando o humor se torna uma forma do minante, a ideologia, com as suas oposições
rígidas e a sua escrita de maiús culas apaga-se. Se, na verdade, continua a ser possível
identificar conteú dos ideológicos, o funcionamento publicitário, na sua especificidade hu
morística, nem por isso deixa de curto-circuitar a dimensão ideológica, que se vê desviada do
seu uso maior. Enquanto a ideologia visa o Universal, diz a Verdade, o humor publicitário está
para além do verdadeiro e do falso,
Cl. Lefort, «Esquisse d’une genèse de l’idéologie dans les sociétés modernes», in Textures,
1974, 8-9. Texto retomado em Les Formes de l’histoire, Paris, Gailimard, 1978.
139
para além dos grande significantes, para além das oposições distintivas. O código humorístico
mina a pretensão de sentido, destitui os conteúdos: em vez e em lugar da transmissão
ideológica, a dessubstancialização humorísti ca, a reabsorção do pólo referencial. Á
glorificação do sentido substituíu-se uma depreciação lúdica, uma lógica do inverosímil.
Pela sua tonalidade ligeira e inconsistente, a publicidade, antes até de querer convencer e
incitar ao consumo, designa-se imediatamente como pu blicidade: o medium publicitário tem
como mensagem primeira o próprio medium, a publicidade é aqui metapublicitária. Neste ponto,
as categorias de alienação e de ideologia deixam de ser operatórias: está em curso um no vo
processo que, longe de mistificar escondendo as suas molas, se apresenta como «mistificação»,
enunciando proposições que por si próprias anulam o seu índice de verdade. De tal maneira que
a publicidade já não tem grande coisa a ver com as funções tradicionalmente ligadas à
ideologia: ocultação do real, inculcar de conteúdos, ilusão do sujeito. Sob o risco de chocar a
nossa consciência contemporânea, largamente hostil ao facto publicitário, não devemos recear
150
situar este último, na sua versão humorística, como par ticipante no amplo movimento
«revolucionário» da crítica da ilusão, movi mento inaugurado muito anteriormente na pintura e
continuado pela litera tura, pelo teatro, pelo cinema experimental ao longo do século XX. Por
cer to que é impossível ignorar que o espaço publicitário adopta uma cenografia clássica,
continua a ser imediatamente legível e comunicacional, que ne nhum trabalho formal perturba a
sua leitura e que a imagem, tal como o texto, permanece submetida às imposições de uma certa
narração- representação. Em suma, tudo o que os movimentos de vanguarda levavam a peito
desconstruir. No entanto, a despeito destas diferenças altamente sig nificativas, continua a
ser verdade que o código humorístico orienta a publi cidade segundo um registo que já não é o
da sedução clássica. O humor mantém à distância, impede o espectador de aderir à
«mensagem», obsta ao sonho diurno e ao processo de identificação. Não é isto mesmo, esta
distan ciação, o que a arte moderna precisamente realizou? Não se tratará da críti ca da
ilusão, da sedução, que animou de ponta a ponta a produção das grandes obras estéticas? Do
mesmo modo que com Cézanne, o cubismo, os abstraccionistas ou o teatro depois de Brecht, a
arte deixa de funcionar no registo da mim e da identificação, para surgir como puro espaço
pictural ou teatral, e já não como duplo fiel do real, também com o humor a cena
140
Guies Lipovetsky
A Era do Vazio
publicitária se desprende do referente, adquire uma autonomia própria e eri ge-se em facto
publicitário, numa espécie de formação de compromisso entre a representação clássica e a
distanciação moderna.
Crítica da ilusão e das magias da profundidade que devemos recolocar numa duração muito mais
longa, a das sociedades modernas que, na sua ex perimentação histórica, se definem pela sua
recusa de qualquer subordina ção a um modelo exterior, transcendente ou herdado, e
correlativamente pe la meta de uma auto-instituição, auto-produção do social por si próprio. Nu
ma sociedade cujo objectivo é possuir-se por inteiro, fazer-se, ver-se a partir da sua própria
localização, as formas da ilusão deixam de ser prevalecentes e estão destinadas a desaparecer
enquanto último vestígio de uma heterono mia social. A representação e o seu esquema de
fidelidade mimética, a sedu ção e o desapossamento do espectador que institui, não podem
subsistir em sistemas que rejeitam todo o fundamento ou exterioridade herdados. Por to da a
parte se manifesta o mesmo processo de autonomização ou de erradica ção dos modelos
transcendentes: com a instituição do capitalismo e do mer cado, a produção liberta-se das
antigas tradições, usos e controlos; com o Estado democrático e o princípio da soberania do
povo, o poder emancipa-se dos seus fundamentos outrora sagrados; com a arte moderna, as
formas re nunciam à sedução representativa, à ilusão da mimésis e descobrem a sua
inteligibilidade já não fora de si próprias, mas em si próprias. Recolocado neste contexto
amplo, o código humorístico já não passa de uma das figuras deste processo de destituição da
ilusão e de autonomização do social. E quando a publicidade se dá a ver como publicidade, não
faz mais do que incluir-se na obra já antiga da emergência de uma sociedade sem opacidade,
sem profundidade, uma sociedade transparente para si própria, cínica, a despeito do seu humor
cordial.
No quadro de um tempo mais curto, devemos interpretar a suspensão da ilusão engendrada pelo
código humorístico como uma das formas que assu me o fenómeno de participação, hoje
151
instalado a todos os níveis da socieda de. Fazer participar os indivíduos, torná-los activos e
dinâmicos, devolvê-los ao seu estatuto de agente de decisão, tornou-se um axioma da
sociedade aberta. Deste modo o ilusionismo e a desapropriação do sujeito que este m plica
torna-se incompatível com um sistema funcionando à base ie opção e de self-service. A
educação autoritária, as formas pesadas de manipulação e de domesticação tornam-se
obsoletas porque não levam em linha de conta a actividade e idiossincrasia do indivíduo. Em
contrapartida. o código hu
141
morístico e a distância que ele produz entre o sujeito e a informação revela- se
correspondente ao funcionamento de um sistema que exige a actividade, ainda que mínima, dos
indivíduos: não há, com efeito, humor que não re queira uma parte de actividade psíquica do
receptor. O tempo da persuasão maciça, da arregimentação mecanicista dirigida a indivíduos
rígidos eclipsa- se; o ilusionismo, os mecanismos de identificação cega tornam-se arcaicos; com
o código humorístico, a publicidade apela para a cumplicidade espiri tual dos sujeitos, dirige-se
a eles utilizando referências «culturais», alusões mais ou menos discretas, pressupondo que se
endereça a sujeitos esclarecido. Com isso, entra na sua época cibernética.
A moda: uma paródia lúdica
A moda é um outro indicador de ponta do facto humorístico. Basta fo lhear as revistas de
modas e olhar para as montras para nos convencermos:
tee-shirts com desenhos ou inscrições jocosas, estilo cockpit, meias com broches
representando esquimós ou elefantes (»Personalize as meias banais e sem humor fixando-lhe
um broche com as suas cores») casquette garçonne, cabelos em ouriço, palhetas e estrelinhas
de maquilhagem, óculos de strass, etc. «A vida é curta demais para nos vestirmos
tristemente». Abolindo tudo o que se aparenta à seriedade, que parece ter-se tornado, tal
como a morte, um interdito maior do nosso tempo, a moda liquida as últimas sequelas de um
mundo crispado e disciplinar e torna-se maciçamente humorística. O chic, a distinção parecem
hoje em desuso; é por isso que o pronto a vestir suplantou a alta costura na dinâmica viva da
moda. O que substituiu o bom gosto, o grande estilo, foi o «giro»: a idade humorística adiantase à idade estética.
Sem dúvida, a moda desde os anos vinte não parou de «libertar» a apa rência da mulher, de
criar um estilo «jovem», de fazer recuar a aparência faustosa, de inventar formas
extravagantes ou «giras» (E. Schiaparelli, por exemplo). Mas no conjunto, a moda feminina
continuou a ser tributária até aos anos sessenta de uma estética depurada, de uma valorização
da elegân cia discreta e distinta derivada, de certo modo, da moda dos homens a par tir de
Brummell. Estamos a sair desse universo, tanto no que se refere às mulheres como aos homens:
instala-se em seu lugar uma cultura dafanta
142
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
143
sia, o humor tornou-se um dos valores que regem a aparência do vestuário. O chic já não
consiste na adopção do último grito, reside na piscadela de olho, na independência em relação
aos estereotipos, no look personalizado, sofisticado e heteróclito dos tenores da moda, ou
152
banalizado e relax do co mum dos mortais. É cada vez mais a originalidade hipernarcísica para
al guns e a uniformidade desenvolta ou descontraída para a maioria; a socieda de narcísica
coincide com a desunificação do mundo da moda, com a lique facção dos seus critérios e
imperativos, com a coexistência pacífica dos esti los. Fim dos grandes escândalos, das grandes
excomunhões da elegância, basta que o indivíduo seja ele próprio com ou sem rebuscamento,
mas com humor; pode-se experimentar tudo, usar tudo, voltar a usar tudo: é o tempo do
«segundo grau»; na sua órbita personalizada a moda dessubstancializou se, já não tem aposta
nem desafio.
A moda râro, que apareceu há alguns anos, é a este respeito significati va. Anos cinquenta, anos
sessenta, voga de condimentos de todos os perío dos, o rétro não se assemelha a moda alguma
porque já não se define por cânones estritos e inéditos, mas apenas pela referência flexível ao
passado e pela ressurreição dos signos defuntos da moda, mais ou menos livremente
combinados. Neste sentido, o rétro encontra-se adaptado a uma sociedade personalizada,
desejosa de afrouxar os enquadramentos e de se instituir em termos de maleabilidade.
Paradoxalmente é assim pelo culto lúdico do pas sado que o rétro se mostra mais de acordo
com o funcionamento do presen te. O rétro como anti-moda ou como não-moda: o que não
designa o fim da moda, mas a sua fase humorística ou paródica, do mesmo modo que a antiarte nunca fez senão reproduzir e alargar a esfera artística, nela integrando a dimensão do
humor. Doravante, o destino dos anti-sistemas é aparecerem sob o signo humorístico. O rétro
não tem conteúdo, não significa nada e aplica-se, numa espécie de paródia ligeira, a explicitar e
a sobre-exibir os significantes arcaicos da moda. Nem nostálgica nem mortífera, esta revives
cência caricatural é sobretudo meta-sistemática: o rétro põe em cena o siste ma da moda e
significa a própria moda na sua reduplicação e imitação no segundo grau. Aqui como em toda a
parte, os signos têm como último está dio o momento em que se auto-representam, se autodesignam segundo um processo metalógico de tipo humorístico que se ridiculariza a si próprio
num efeito de espelho. Novo paradoxo das sociedades baseadas na inovação: a partir de um
certo limiar, os sistemas desenvolvem-se virando-se para si próprios. Se o modernismo
assentava na aventura e na exploração, o pósmodernismo repousa na reconquista, na auto-representação, humorística pa ra os sistemas
sociais, narcísica para os sistemas psíquicos. À fuga para a frente substituíu-se a redescoberta
dos fundamentos, o desenvolvimento inte rior.
«Nada está mais na moda do que aparentar não ligar à moda. Veste-se assim um mailiot de
dança ou um casaco tipo Mao, com o ar indiferente da mulher que renunciou para sempre aos
artifícios declarados vulgares para defender o conforto ultra-clássjco dos fatos de trabalho.
E como se nada fos se, com um short de boxeur ou uma bata de enfermeira habilmente
acessori zados, fica-se no ponto máximo da moda». Desde osjeans, a moda não pa rou ainda de
promover as roupas originárias do mundo do trabalho, do exército, do desporto. Calças de
peitilho, conjuntos de serapilheira, blusas de pintor, parkas e o casaco de marinheiro, estilo
/ogging, saia camponesa o frívolo identifica-se com o sério e o funcional, a moda macaqueia o
mundo profissional e, ao fazê-lo, adopta um estilo explicitamente paródico. Imitan do as roupas
utilitárias, a moda maleabiliza os seus pontos de referência, a solenidade «como deve ser»
dissipa-se, as formas perdem o que podiam ter de amaneirado ou estudado, a moda e o seu
exterior deixam de se opor radi calmente, em paralelo com o movimento, por toda a parte
visível, de dene gação das oposições. Hoje a moda pertence ao desleixado, ao descontraído;
153
o novo deve parecer usado e o estudado espontâneo. A moda mais sofistica da imita e parodia o
natural, também aqui em paralelo com a descrispação das instituições e costumes pósmodernos. Quando a moda deixa de ser um pólo altamente marcado, o seu estilo torna-se
humorístico, tendo por motor o plágio vazio e neutralizado.
A paródia não tem somente por objecto o trabalho, a natureza ou a própria moda; todas as
culturas e a cultura se vêem hoje anexadas pelo pro cesso humorístico. E o que acontece com a
voga do afro-styie: assim que é reciclado no registo da moda, o que era ritual e tradicional
perde toda a es pessura e cai na mascarada. Eis o novo rosto do etnocídio: ao extermínio das
culturas e populações exóticas sucedeu um neo-colonialismo humorísti co. Impossibilidade dos
Brancos de respeitarem o exterior e agora até o inte rior: já não é sequer a exclusão, a
relegação que governa a nossa relação com o Outro; a sociedade pós-moderna é demasiado
gulosa de novidades pa ra rejeitar seja o que for. Pelo contrário, acolhemos tudo, exumamos e
fago citamos tudo, mas ao preço da ridicularização desenvolta do Outro. Sejam quais forem as
nossas disposições subjectivas, a representação do Outro
144
Gil/es Lipovetsky
através da moda assume uma figura humorística, porque moldada segundo uma lógica do inédito
pelo inédito, expurgada de toda a significação cultu ral. Não se trata de desprezo, mas de uma
paródia inelutável, independente das nossas intenções.
Sem que se lhe preste atenção, um fenómeno inteiramente inédito e, pa ra mais, de massa
surgiu na moda destes últimos anos; actualmente, com efeito, a escrita foi anexada pelo
vestuário. Um pouco por toda a parte, nos jeans, camisas, camisolas, as marcas e as inscrições
oferecem-se ostensiva- mente ao olhar; nas tee-shirts, letras, siglas, sintagmas, fórmulas,
exibem-se com largueza. Invasão sinalética e tipográfica. Questão de publicidade? Se ria
reduzir excessivamente o problema, porque aquilo que se vê inscrito na roupa muitas vezes
nada tem a ver com o nome ou o produto das firmas. Vontade de quebrar o anonimato das
massas, de ostentar a pertença de gru po, uma classe etária, uma identidade cultural ou
regional? Não é isso se quer, as roupas são usadas por qualquer pessoa, em qualquer altura,
esta peça ou aquela, independentemente de qualquer afirmação de identidade. De facto,
integrando a escrita na sua lógica, a moda fez recuar as suas fron teiras, alargou o campo das
combinações possíveis e, com isso, são a escrita, a cultura, o sentido, a pertença que se vêem
afectados de um coeficiente hu morístico. Os signos são desligados da sua significação, do seu
uso, da sua função, do seu suporte, fica apenas um jogo paródico, um conjunto parado xal onde
o vestuário humoriza o escrito, o escrito humoriza o vestuário: Gu tenberg em BD descontraído
e disfarçado.
Tudo o que entra na órbita da moda fá-lo sob o signo do humor e, si multaneamente, tudo o que
se acha fora de moda conhece o mesmo destino. Que há de mais ridículo, de mais engraçado,
retrospectivamente, do que es sas roupas e penteados que faziam furor há alguns anos? O fora
de moda, o próximo e o distante, faz rir, como se fosse necessário o recuo do tempo pa ra
realizar em toda a sua radicalidade a natureza humorística da moda. Ao humor ligeiro,
descontraído e vivo do presente, corresponde o humor invo luntário, vagamente empertigado do
fora de moda. Se, por conseguinte, a moda é um sistema humorístico, não é apenas em função
dos seus contéudos mais ou menos contingentes; muito mais em profundidade, é-o pelo seu
próprio funcionamento, pela sua lógica interminável de promoção do novo ou do pseudo-novo e,
correlativamente, de desqualificação das formas. A moda é uma estrutura humorística, e não
154
estética, uma vez que, no seu re gisto, tanto o novo como o antigo se acham inelutavelmente
dotados de um
A Era do Vazio
coeficiente «giro», e isto em função do seu processo de inovação permanente e cíclico. Não há
novidade que não pareça uma forma frívola, curiosa e di vertida; não há rétro que não faça
sorrir.
Como a publicidade a moda nada diz, é uma estrutura vazia, por isso é um erro ver nela uma
forma moderna do mito. O imperativo da moda não é narrar ou fazer sonhar, mas mudar, mudar
por mudar e a moda só existe através deste proceso de desqualificação incessante das formas.
Ao fazê-lo, ela é a verdade dos nossos sistemas históricos baseados na experimentação
acelerada, a exposição do seu funcionamento intrínseco sob uma modalidade lúdica e
despreocupada. A transformação, com efeito, encontra-se aqui em acto, mas mais na sua forma
do que nos seus conteúdos: por certo que a moda inova, mas sobretudo parodia a mudança,
caricatura a inovação ao programar o ritmo das suas transformações, ao acelerar a cadência
dos seus ciclos, ao identificar o novo com a promoção de gadgets ao simular em ca da estação a
novidade fundamental. Grande paródia inofensiva do nosso tempo, a moda, a despeito do seu
forcing em matéria de novidades, da sua dinâmica indutora da obsolescência dos signôs, não é
mortífera nem suicidá ria (R. Kõnig), mas humorística.
Processo humorístico e sociedade hedonista
O fenómeno humorístico nada deve a qualquer voga efémera. É dura- doura e
constitutivamente que as nossas sociedades se instituem sob um mo do humorístico: pela
descontracção ou descrispação das mensagens que en gendra, o código humorístico faz, com
efeito, parte do vasto dispositivo poli morfo que, em todas as esferas, tende a maleabilizar ou
a personalizar as estruturas rígidas e coercivaS. Em vez das injunções de imposição, da distân
cia hierárquica e da austeridade ideológica, a proximidade e o desanuvia mento homoríStico, a
linguagem própria de uma sociedade flexível e aberta. Dando direito de cidade à fantasia, o
código humorístico aligeira as mensa gens e insufla-lhes uma rítmica e uma dinâmica que
acompanham a promo ção do culto da naturalidade e da juventude, O código humorístico produz
enunciados «jovens» e tónicos, abole o peso e a gravidade do sentido; está para as mensagens
como a «linha» e a «forma» estão para o corpo. Do mes mo modo que a obesidade se torna
«interdita» num sistema que exige a dis
145
146
Gil/es Lipovetsky
ponibilidade e a mobilidade permanente dos sujeitos, assim os discursos en fáticos se eclipsam,
incompatíveis como se revelam com a exigência de ope racionalidade e de celeridade do nosso
tempo. E preciso ser contundente, ter flash; os pesos dissipam-se em benefício da «vida», dos
spots psicadélicos, da esbelteza dos signos: o código humorístico electrifica o sentido.
Face jovial do processo de personalização, o fenómeno humorístico tal como se manifesta nos
nossos dias é inseparável da era do consumo. Foi o boom das necessidades e a cultura
hedonista que o acompanhou que torna ram possíveis tanto a expansão humorística como a
desqualificação das for mas cerimoniosas de comunicação. A sociedade em que a felicidade de
mas sa se converte em valor cardial é inelutavelmente levada a produzir e a con sumir a grande
155
escala signos adaptados a este novo ethos, ou seja, mensa gens bem dispostas, felizes, capazes
de proporcionar a todo o momento, pa ra a maioria, um prémio de satisfação directa. O código
humorístico é real mente o complemento, o «aroma espiritual» do hedonismo de massa, na con
dição de não assimilarmos este código ao sempiterno instrumento do capital, destinado a
estimular o consumo. Sem dúvida, as mensagens e comuniça ções engraçadas correspondem aos
interesses do marketing, mas o verdadei ro problema é saber porquê. Porquê a vaga dos comics
mesmo entre os adultos quando, há pouco tempo ainda, em França, a BD era ignorada ou
desprezada? Porquê uma imprensa saturada de títulos jocosos e ligeiros? Porque é que o spot
humorístico substituiu o reclame de outrora, «realista» e falador, sério e de texto pesado?
Impossível darmo-nos conta da evolução apenas através do imperativo de vender, dos
progressos do design ou das técnicas publicitárias. Se o código humorístico se impôs, «pegou»,
é porque corresponde a novos valores, a novos gostos (e não somente aos interesses de uma
classe), a um novo tipo de individualidade que aspira ao ócio e à des contracção, alérgico à
solenidade do sentido, ao cabo de meio século de so cialização via consumo, Decerto, o humor
eufórico destinado a um largo público não nasceu com a sociedade de consumo: nos EUA, desde
o início do século, existe um mercado da BD, o desenho animado conhece um gran de êxito na
mesma época, reclames divertidos começam a aparecer por vo!ta de 1900 (o pneu Michelin
bebe o obstáculo», silhueta jovial do «Père Lus tucru», facécias do trio «Ripolin»). No entanto,
é somente com a revolução das necessidades, com a emergência das novas finalidades
hedonistas que a generalização e a legitimação do humor lúdico se tornarão possíveis.
Actualmente, o humor pretende-se «natural» e tónico: o correio dos leitoA Era do Vazio
147
res, os textos jn em Libóration ou Actuei, por exemplo, fazem um largo uso de re exclamativas
e de epifenómenos, de interjeições de expres sões quotidja e directas; em momento algum
deve o humor parecer es dado ou demasiado intelectual: «De A (pronunciem ‘ei’) a W
(pronunciem dabliú), de AC/DC a Wild Horses, tudo o que é preciso saber (e aprender) sobre
os grupos de hard rock para não se fazer figura de parvo na festança de fim de ano organiza
pela filha do reitor. Não digo isto segunda vez. Ao trabalho kids, ao trabalho!» (Lib O código
humorístico já não se identifi ca com o tacto, com a elegância do saber-viver burguês; veicula a
linguagell) das ruas, um tom familiar e despreocupado A concorrência entre as classes em vista
da dominação simbólica só à superfície esclarece um fenómeno cuja origem deve ser situada na
revolução global do modo de vida e não nas lutas em torno do estatuto e do prestígio. nge de
ser um instrumento de nobre za cultural, o código humorístico esvazia a distinção e a
respeitabilidade dos signos de uma época anterior, destrona a ordem das proeminências e
distân cias hierárquicas em benefício de uma banalização relax, promovida hoje à categoria de
valor cultural Do mesmo modo não é de aceitar a lamentação marxista: são tantas mais as
representações joviais quanto mais flionótono e pobre é o real; a hipertrofia lúdica compensa e
dissimula a real infelicidade quotidia Na realidade, é a um trabalho de aligeírarn dos signos, a
fa zê-los soltar o lastro de toda a gravidade que se aplica o código humorístico, verdadeiro
vector da democratizaç dos discursos por meio de uma des substancialização e neutralização
lúdicas. Democratização que se liga menos à acção da ideologia igualit do que ao Sul-to da
sociedade de consumo, que alarga as paixões individualistas induz um desejo de massa de viver
li vremente e desvalorizando correlativamente as formas estritas: a cultura do espontâneo,
156
free style, de que o humor actual não passa de uma das ma nifestações caminha a par do
individualismo hedonjsta. historicamente só foi tornada Possível pelo ideal int da liberdade
individual nas socie dades personalizadas
É, porém, verdade que o humor que vemos transbordar hoje um pouco por toda a parte não é
uma invenção histórica radjcalmente inédita. Seja qual for a novidade do humor pop, há certos
laços de filiação que o unem ainda a um «estado de alma» particular, de origem anterior, o
sense of hu Pnour, difundido ao longo dos séculos Xviii e XIX, nomeadamente em In glaterra.
Pelo seu carácter convjvjal com efeito, o humor contemporâneo li ga-se ao humor Clássico, ele
próprio já sob muitos aspectos indulgente e ameJ
1’
í
Guies Lipovetsky
no; mas se o primeiro resulta da socialização hedonista, o segundo deve ser associado ao
advento das sociedades individualistas, a essa nova significação da unidade humana
relativamente ao conjunto colectivo, que teve como efei to, entre outros, o de contribuir para
desvalorizar e refrear o uso da violên cia. O humor, diferentemente da ironia, surge como uma
atitude que traduz uma espécie de simpatia, de cumplicidade, ainda que fingidas, para com o
sujeito visado: ri-se com ele e não dele. Como não associar este elemento afectivo próprio do
humor, esta colaboração subjectiva, à humanização geral das relações interpessoais
correlativas da entrada das sociedades ocidentais na ordem democrática Houve uma
suavização do cómico co mo houve uma suavização das punições, como houve uma diminuição da
violência de sangue; hoje não fazemos mais do que continuar por outros meios esta moderação.
«Optímismo triste e pessimismo alegre» (R. Escarpit), o sense of hurnour consiste em acentuar
o lado engraçado das coisas, sobre tudo nos momentos difíceis da vida, em gracejar, por
penosos que os aconte cimentos sejam. Mesmo hoje, quando a tonalidade dominante do cómico
se desloca, o humor «digno» continua a ser valorizado: os filmes de guerra americanos, por
exemplo, tornaram-se mestres na arte de pôr em cena he róis obscuros cujo humor frio é
proporcional aos perigos arrostados: após o código cavalheiresco da honra, o código
homoristico com ethos democrático. Impossível, com efeito, compreender a extensão deste
tipo de comportamen to sem o ligar à ideologia democrática, ao princípio da autonomia
individual moderna, que permitiu a valorização das declarações excêntricas voluntárias, das
atitudes não conformistas, desprendidas mas sem ostentação nem desa fio, de acordo com uma
sociedade de iguais: «Uma pitada de humor basta para tornar todos os homens irmãos» O
humor preenche esta dupla função democrática: permite ao indivíduo desligar-se, ainda que
pontualmente da imposição do destino, das evidências, das convenções, afirmando com ligei
reza a sua liberdade de espírito, e ao mesmo tempo impede o ego de se levar a sério, de forjar
uma imagem superior ou altaneira de si próprio, de se ma nifestar sem auto-domínio, de
maneira impulsiva ou brutal. O humor pacifi ca as relações entre os seres, desarma os motivos
de fricção, conservando a exigência da originalidade individual. Daí o prestígio social do humor,
códi go de aprendizagem igualitária que devemos conceber como um instrumento
A Era do Vazio 149
157
de socialização paralelo aos mecanismos disciplinares. Apesar de tudo, e sendo embora autocontrolado, disciplinado até na sua atitude humorística, o homem moderno náo pode ser
identificado com uma presa cada vez mais submissa à medida que se afirmam as tecnologias
microfísicas do poder: pe lo humor, com efeito, o indivíduo disciplinar revela já um
desprendimento, uma desenvoltura, pelo menos aparente, que inauguram a esse nível uma
emancipação da esfera subjectiva que, a partir de então, não parámos de alargar.
O sense of humour, com a sua dualidade de sátira e de sensibilidade fi na, de extravagância
idiossincrática e de seriedade, correspondia à primeira revolução individualista, ou seja ao
desenvolvimento dos valores de liberda de, de igualdade, de tolerância enquadrados pelas
normas disciplinares de auto-controlo; com a segunda revolução individualista veiculada pelo
hedo nismo de massa, o humor muda de tonalidade, ligando-se prioritariamente aos valores de
cordialidade e de comunicação. Assim, na imprensa e sobre tudo no humor quotidiano não se
trata, no fundo, tanto de ridicularizar a lógica, de denunciar ou de satirizar, ainda que com
benevolência, certos acontecimentos, como de estabelecer simplesmente um ambiente relax,
dis tendido: de certo modo, o humor preenche uma função fática. Dessubstan cialização do
cómico que corresponde à dessubstancialização narcísica e à sua necessidade de proximidade
comunicacional: humor pop e código convi vial fazem parte de um mesmo dispositivo, são ambos
correlativos da cultura psi e da individualidade narcísica, ambos produzem «calor» humano
numa sociedade que valoriza as relações personalizadas, ambos democratizam os discursos e
comportamentos humanos. Se o código humorístico conquistou tamanho lugar, mesmo na fala de
todos os dias, isso não se liga apenas ao hedonismo do consumo, mas também à psicologização
das relações humanas que paralelamente se desenvolveu. O humor fun e descontraído passa a
do minar quando a relação do indivíduo com o outro e consigo próprio se psico logiza ou esvazia
de dimensão colectiva, quando o ideal se transforma no es tabelecimento de «contacto»
humano, quando já ninguém, no fundo, acredi ta na importância das coisas. Não se tomar a
sério: esta democratização do indivíduo já não exprime somente um imperativo ideológico
igualitário, tra duz também a ascensão desses valores psi que são a espontaneidade e a co
municação, traduz uma transformação antropológica, a vinda ao mundo de uma personalidade
tolerante, sem grandes ambições, sem uma ideia elevada de si, sem crença firme. O humor que
nivela as figuras do sentido em pisca48
1
1 P1 D. Thompson, LHumour britannigue, Lausanne, 1947, p. 27.
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
151
las de olho lúdicas molda-se à imagem da flutuação narcísica, que se
ostra uma vez mais aqui um instrumento democrático.
Os domínios mais íntimos, outrora tabús, o sexo, o sentimento, entram o jogo; vejam-se os
«pequenos anúncios» que se pretendem a todo o custo ngraçados e originais: «Mais belo que
James Dean, mais depressa do que m Da tona. Mais arriscado do que Mad Max... Calha-te,
respondes, depois vê-se». Os tempos mudaram: já não fica mal exibir os problemas pessoais,
confessar as próprias fraquezas, desvendar a solidão que se sente, consistin do o ideal, no
158
entanto, em exprimir tudo isto no «segundo grau», através de hipérboles modernistas cuja
amplificação é de tal ordem que já não signifi cam nada a não ser o gosto humorístico do
destinador. Simultaneamente, o humor torna-se uma qualídade a exigir do outro;: «Es viva,
simpática, gos tas de dar e receber, de brincar, viajar, rir, rir, acariciar, de amor, amor, hé,
hé, eu também... Como é que eu fiz para não te descobtir? Ah! Ês um bocadinho tímida? Hum,
eu também, se quiseres (entoação de Coluche)». Dizer tudo, mas não se levar a sério, o humor
personalizado é narcísico, é tanto uma barreira protectora do sujeito como um meio cool de
este se ence nar. A dualidade pós-moderna reaparece aqui: o código privilegiado de co
municação com o outro estabelece-se de modo humorístico, enquanto que a relação do indivíduo
consigo próprio se baseia no trabalho e no esforço (te rapias, regimes, etc.). No entanto, um
novo híbrido apareceu: «O riso tera pêutico. Método suave, profundo, de redescobrir uma
energia vital decupli cada. Por meio de técnicas de respiração e de solicitação sensorial, aborda
mos o nosso corpo e a nossa mente numa óptica nova feita de abertura e de disponibilidade.
Este riso vindo das Indias’, reintroduz na nossa vida um fôlego antigo e esquecido».
O código humorístico penetrou no universo feminino, durante muito tem po afastado dessa
dimensão, votado como estava a uma frivolidade das apa rências, na realidade paralela, como o
observou. E. Sullerot, a uma inalterá vel seriedade conservadora e moralizante. Foi com o
aparecimento da mu lher «consumidora» no decurso dos anos vinte e trinta que o arquétipo
femi nino começou a mudar, passando de uma certa melancolia a uma jovialida de exibida, ao
optimismo do keep srniling. Hoje, o humor derrama-se larga mente na imprensa feminina, desde
há algum tempo a moda das roupas de dentro femininas passou até a ser apresentada em comic
strips (El/e), há mulheres que são cartoonistas célebres, a escrita, sobretudo depois da ofen
siva feminista, emprega livre e desculpabilizadamente as formas humorísti
cas; nos folhetins americanos, as mulheres têm as mesmas maneiras de falar e as mesmas
atitudes descontraídas que os homens. A sociedade hedonista, generalizando os gostos fun,
legitimou o humor em todas as categorias so ciais, em todos os grupos de idade e de sexo, um
humor de resto cada vez mais idêntico, acessível a todos, dos «sete aos setenta e sete anos».
Destino humorístico e idade pós-igualitária
Consequência última da idade do consumo, o processo humorístico inves te a esfera do sentido
social, os valores superiores tornam-se paródicos, inca pazes como são de suscitar qualquer
investimento emocional profundo. Sob o impulso dos valores hedonistas e narcísicos, os
referenciais importantes es vaziam-se da sua substância, os valores que estruturavam ainda o
mundo da primeira metade do século XX (poupança, castidade, consciência profissio nal,
sacrifício, esforço, pontualidade, autoridade), já não inspiram respeito, convidam mais ao
sorriso do que à veneração: espectros de vaudevilies, algo de vagamente vetusto ou ridículo se
prende, contra nossa vontade, aos seus nomes. Depois da fase de afirmação gloriosa e heróica
das democracias em que os signos ideológicos rivalizavam em ênfase (a nação, a igualdade, o so
cialismo, a arte pela arte) com os discursos hierárquicos destronados, entra mos na era
democrática pós-moderna que se identifica com a dessubstancia lização humorística dos
critérios sociais maiores.
Deste modo o processo humorístico não designa apenas a produção deli berada dos signos
«giros», mas simultaneamente o devir paródico das nossas representações e isto para além do
controlo voluntário dos indivíduos e gru pos: actualmente, mesmo as coisas mais sérias, mais
solenes — sobretudo essas — por contraste assumem uma tonalidade cómica. Que poderá
159
escapar ainda, no momento em que o próprio conflito político, a divisão direita- esquerda se
dissolve numa paródia de rivalidade bem simbolizada pelos no vos e altamente risíveis
espectáculos que são os debates televisivos? Ao per sonalizar-se, a representação do político
torna-se largamente humorística:
quanto mais as grandes opções deixam de se opor drasticamente, mais o político se torna
caricatural em cenas de catch a dois ou a quatro; quanto mais a desmotivação política cresce,
mais a cena política se assemelha a um strip-tease de boas intenções, de honestidade, de
responsabilidade e se meta morfoseia em mascarada bufa. O estádio supremo da autonomia do
político
A
152
A Era do Vazio
Guies Lipovetsky
153
não é a despolitização radical das massas, é a sua espectacularização, a sua decadência
burlesca: quando as oposições entre partidos se tornam uma far sa e são cada vez mais como
tal consideradas, a classe política pode funcio nar em sistema fechado, apurar-se em números
de televisão, entregar-se às delícias das manobras dos estados-maiores, das tácticas
burocráticas, prosse guindo, paradoxalmente, o jogo democrático da representação, ante a
apatia divertida do eleitorado. Instrumento de autonomizaçção dos sistemas e apa relhos, e
aqui do político, o processo humorístico entrou ele próprio na sua fase de autonomia: nos
nossos dias, a representação humorística investe os sectores mais «graves», afirma-se
segundo uma necessidade incontrolada, in dependentemente das intenções e finalidades dos
actores históricos. Tornou- se um destino.
Novembro de 1980. Coluche, candidato às eleições presidenciais, depara com uma ampla
corrente de simpatia, enquanto se forma uma comissão de apoio «séria». Poderia imaginar-se
fenómeno mais revelador do devir hu morístico da política? Um bobo candidato: já ninguém se
escandalizou ex cepto a própria classe política, sobretudo a de esquerda. No fundo, toda a
gente fica encantada ao ver um cómico profissional ocupar a cena política, uma vez que esta se
transformou já em espectáculo burlesco: com Coluche, a mascarada política limita-se a subir
aos extremos. Quando o político perde a eminência e se personaliza, não é supreendente que
um artista de varieda des consiga reunir uma percentagem notável de intenções de voto
destinadas inicialmente aos líderes políticos, esses cómicos de segundo plano: pelo me nos, rirse-á por uma vez a valer. O efeito Coluche não procede nem de uma nostalgia carnavalesca nem
de um lógica de transgressão (que supõe uma or dem fundamentalmente séria); devemos ver
nele uma paródia pura a investir os mecanismos democráticos, uma paródia que exacerba a
paródia do políti co.
Os valores, a política, a própria arte são presa desta degradação irresistí vel. Os bons velhos
tempos do fim do século passado e do início do século XX em que a arte causava escândalo
terminaram: doravante, as obras mais despojadas, mais problemáticas, as mais «minimais» —
sobretudo essas — têm um efeito cómico, independentemente do seu conteúdo. Tem-se
glosado muito acerca do humor dos artistas pop, sobre a dessacralização da arte que
160
operaram, mas, mais profundamente, foi o conjunto da arte moderna que adquiriu pouco a
pouco uma tonalidade humorística. Com as grandes des construções cubistas e a fantasia
surrealista, com a abstracção geométrica ou
expressionista e a explosão das correntes pop, novos realistas, land ar!, body art, happenings,
performances, pattern, pós-modernismo de hoje, a arte deixou de «parecer séria». Na sua
raiva de inovação, a arte dissolveu todas as suas referências clássicas, renunciou ao saberfazer e ao belo, não pára de destruir a representação, sabota-se enquanto esfera sublime e
entra, por essa via, na era humorística, esse último estádio de secularização das obras, está
dio em que a arte perde o seu estatuto transcendente e surge como uma acti vidade entregue à
escalada do «seja o que for», à beira da impostura. À caça de materiais desqualificados, de
«acções», de formas e volumes elementares, de novos suportes, a arte torna-se engraçada à
força de simplicidade e de reflexividade sobre a sua própria actividade, à força de tentar
escapar à Ar te, à força de novidades e de «revoluções». O humor das obras já não é fun ção
do seu teor intrínseco, associa-se à extrema radicalização da operação artística, às suas
desterritorializações-limite, que surgem aos olhos do grande público como gratuitas e
grotescas. A dissipação dos grandes códigos estéti cos, o extremismo das vanguardas,
transformou de maneira radical a per cepção das obras, que se tornam equivalentes a absurdos
gadgets de luxo.
Mais directamente ainda, com a fragmentação extrema dos particularis mos e a exasperação
minoritária das redes e associações (pais celibatários, lésbicas toxicómanas, associações de
agorafóbicos e claustrofóbicos, de obe sos, de calvos, de feios e feias, naquilo a que Roszak
chama «rede situacio nal»), é o próprio espaço da reivindicação social que assume uma
coloração humorística. Risibilidade ligada à desmultiplicação, à miniaturização inter minável do
direito às diferenças; à semelhança do jogo das caixas que têm dentro outras caixas cada vez
mais pequenas, o direito à diferença não pára de subdividir os grupos, de afirmar as microsolidariedades, de emancipar novas singularidades nas fronteiras do infinitesimal. A
representação hu morística resulta do excesso pletórico das ramificações e subdivisões capila
res do social. Novos siogans: Fat is beautifui, Bald is beautifui; novos gru pos: Jewish Lesbian
Gang, homens na menopausa, Non-parents organisa tions, quem não vê o carácter humorístico
desta afirmação de si e da socia bilidade pós-moderna a meio caminho entre o gadget e a
necessidade históri ca; cómico instantâneo, devemos acrescentar, que se esgota
imediatamente, pois qualquer associação entra com toda a rapidez nos costumes do tempo. Ao
transistorizar-se, a divisão social perdeu o seu fulgor trágico, a sua paté tica centralidade
anterior, gadgetizou-se sob a proliferação extrema das dife renciações microscópicas.
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Sem dúvida, nem todas as divisões são desta ordem: os conflitos centra dos em torno da
produção, da repartição, do ambiente, continuam portado res de caracteres
incontestavelmente sérios. No entanto, à medida que a ideologia revolucionária se dissipa, as
acções sociais, mesmo que enquadra das por aparelhos burocráticos, exploram uma linguagem e
siogans mais descontraídos; aqui ou ali, cartazes, bandeirolas, autocolantes, já não hesi tam em
adoptar um estilo humorístico, mais ou menos sarcástico, mais ou menos negro (os
antinucleares, os ecologistas); as manifestações dos movi mentos «de ruptura» vão muitas
vezes coloridas, por vezes mascaradas, que acabam em «festa»: com algum atraso, também o
161
militantismo a pouco e pouco se descrispa. Em particular nos novos movimentos sociais,
assistimos a uma vontade mais ou menos acentuada de personalizar as modalidades do combate,
de «arejar» o militantismo, de deixar de separar completamente a política da existência, com
vista a uma experiência mais global, reivindicati va, comunitária, ocasionalmente «divertida».
Levar os problemas a sério e lu tar, está bem; mas não perder o sentido do humor; a
austeridade militante já não se impõe com a necessidade de outrora, a descontracção dos
costumes hedonistas e psicologístas imiscui-se até na ordem das acções sociais que nem por
isso excluem algumas vezes confrontos duros.
Tal como a dispersão polimorfa dos grupos humoriza a diferenciação so cial, do mesmo modo o
hiper-individualismo do nosso tempo tende a susci tar uma apreensão do outro de tonalidade
cómica. À força de personaliza ção, cada indivíduo se torna um bicho curioso para o outro,
vagamente bi zarro e, todavia, desprovido de qualquer mistério inquietante: o outro como
teatro absurdo. A coexistência humorística, eis ao que nos força um universo personalizado;
outrém já não consegue chocar, a originalidade perdeu a sua força de provocação, resta apenas
a estranheza irrisória de um mundo em que tudo é permitido, em que se vê de tudo e em que
nada suscita mais do que um sorriso passageiro. Actualmente os adultos vivem, vestem-se, «ba
tem-se» como os cow-boys e os Índios da grande época durante os seus me ses de férias;
outros «adoptam» e acarinham bonecas como se fossem crian ças, deambulam de patins,
exibem com vigor e pormenor os seus problemas sexuais nas ondas da rádio; as crenças e
seitas, as práticas e modas mais ini magináveis descobrem acto contínuo adeptos em massa; o
outro entrou na fase do «tanto faz», do desalinhamento burlesco. A partir daqui, o modo de
apreensão de outrém não é nem a igualdade nem a desigualdade, é a curio sidade divertida,
estando cada um de nós condenado a aparecer a maior ou
A Era do Vazio
menor prazo como curioso, excêntrico, aos olhos dos outros. Última dessa cralização, a relação
inter-humana é aqui expurgada da sua gravidade ime morial no mesmo movimento que leva à
queda dos idolos e grandes deste mundo; última expropriaÇão a imagem que oferecemos a
outrém vê-se vota da ao cómico. DesapoSSamento correspondente ao instituído pelo inconscien
te e pelo recalcamento: tanto na ordem subjectiva como j o in divíduo conhece uma mesma
espoliação na sua representação. Com o in consciente, o ego perde o domínio e a verdade sobre
si próprio; com o pro cesso humorístico o Eu degradase em fantoche ectopláSmico. Por isso não
devemos ignorar o preço e a parada da era hedonista que dessubStaflcializ0I tanto a
representação como a própria unidade do indivíduo. O processo de personalização não se
contentou com quebrar desvalorizar, para falarmos como Nietzsche, a representação do ego
por meio do psicanaliSmO ao mes mo tempo degradou a representação inter fazendo de outrém
um ser do «terceiro tipo», um gadget bizarro.
Com o devir humorístico das significações sociais e dos seres, é a última fase da revolução
democrática que ganha corpo. Se esta se define por um trabalho de rradicaÇã0 progressiva de
todas as formas de hierarquia subs tancial e se aplica a produzir uma sociedade sem
jssernelha1lÇas de essên cia, sem elevação nem profundidades o processo humorístico que faz
com que jnstituições e grupos percam definitivamente a sua majestade prolonga de facto a
meta secular da modernidade democrática, ainda que com instru mentos diferentes dos da
ideologia igualitária. Com a era humorística que diminui as distâncias, O social torna-se
definitivamente adequado a si pró prio, já nada exige yeneraÇão, o sentimento das alturas
162
pulveriza-se numa desenvoltura generalizada o social fecha-se na sua plena autonomia de acor
do com a essência do projecto democrático. Mas simultafleamente a era hu morística e
personalizada introduz efeitos tão inéditos no regime do disposi tivo igualitário que temos o
direito de perguntar se não teremos já encontra do em sociedades de algum modo «pós Com
efeito, a sociedade que o trabalho da igualdade se preparava para organizar sem terogeneida
de nem j está em vias de metamOrf05e outrém num estranho radical, num verdadeiro mutante
incongruente; a sociedade baseada no princípio do valor absoluto de cada pessoa é a mesma em
que os seres ten dem a tornar-se uns para os outros zombies inconsistentes ou desopilafltes a
sociedade em que se manifesta o direito de todos ao reconhecimento social é também a
sociedade em que os indivídUoS deixam de se reconhecer como
f
í
absolutamente da mesma natureza à força de hipertrofia individualista. Quanto maior é o
reconhecimento igualitário, maior também a diferenciação minoritária, enquanto o encontro
inter-humano adquire uma estranheza ridícula. Estamos destinados a afirmar cada vez mais
igualdade «ideológica» e simultaneamente a sentir heterogeneidades psicológicas crescentes.
Depois da fase heróica e universalista da igualdade, ainda que evidentemente limita da por
acentuadas diferenças de classe, a fase humorística e particularista das democracias em que a
igualdade troça da igualdade.
Microtecaologia e sexo pomo
A fragmentação extrema da divisão social corresponde de certo modo à nova tendência
tecnológica para o «ligeiro»: à hiperpersonalização dos indiví duos e dos grupos corresponde a
corrida à miniaturização, acessível a um público cada vez mais amplo. Têm-se apontado desde
há muito os aspectos risíveis das inovações tecnológicas modernas, a sua proliferação de
acessó rios, as suas aberrações de funcionalidade absoluta (OS filmes de J. Tati, por
exemplo); mas na época da hi-fi, do vídeo, do «mmi», surgiu uma nova di mensão que deixa
muito para trás o ridículo dos automatismos «inúteis». Ac tualmente, a apreensão humorística
procede não da excrescência gratuita, mas da capacidade tecnológica de ocupar cada vez
menos espaço. Cada vez mais pequeno: Ultra Com pact Machine, tal como o outro se tornou
poten cialmente um gad à força de desestandardização, a tecnologia torna-se humorística à
força de «compacto», de dimensões reduzidas: niini-aparelha gem, micro-televisão, walkman,
jogos electrónicos em miniatura, computa dor de bolso. Efeito cuja graça reside no facto de o
mais pequeno se ligar ao mais complexo; o interminável processo de redução suscita o
divertimento maravilhado, comovido, do profano: chegámos já .às máquinas subminiaturi zadas,
à caneta electrónica, à mini-tradutora de resposta vocal, à televisão de pulso,flat-TV. Neste
exasperar da miniaturização, o funcional e o lúdico distribuem-se de maneira inédita; uma
segunda geração de gadgets (mas é evidente que esta palavra já não é a mais adequada) surgiu,
para lá da fun ção decorativa, para lá dos mecanismos meta-funcionais. Actualmente os ro
bota, os microcomputadores são frios, «inteligentes», económicos: o compu tador doméstico
gere o orçamento, compõe as ementas em função das esta ções do ano e dos gostos da família,
substitui-se à baby-sitter, previne a polí
cia ou os bombeiros se disso for caso. O cómico grotesco-surrealista dos gad gets deu lugar a
uma ficção científica soft. Fim da ridicularização: com a rniniaturização informática, o cómico
dos objectos moderou-se no momento em que o jogo se torna precisamente um alvo visado
163
pelas tecnologias de ponta (jogos de vídeo); small is beautiful: à semelhança do que se verificou
com os costumes, o impacto humorístico das técnicas perdeu-se na vaga dos
microprocessadores. Teremos talvez cada vez menos ocasião de troçar dos produtos da
técnica, hoje é a técnica que anexa o sector do humor: no Japão tornaram-se correntes robots
domésticos de aparência humana, verdadeiras imitações programadas, que se destinam
nomeadamente a rir e a fazer rir.
O tecnológico tornou-se pomo: o objecto e o sexo entraram, com efeito, no mesmo ciclo
ilimitado da manipulação sofisticada, da exibição e da proe za, dos comandos à distância, das
interconexões e comutações de circuitos, de «teclas sensitivas», de combinatórias livres de
programas, de existência vi sual absoluta. E é isso que impede que se leve a pornografia
completamente a sério. No seu estádio supremo, o pomo é engraçado, o erotismo de massa
inverte-se em paródia do sexo. Quem não se surpreendeu a sorrir ou a rir francamente numa
sex-shop ou durante uma projecção X? Passado um certo limiar, o excesso «tecnológico é
burlesco. Cómico que vai muito para além do prazer da transgressão ou do levantar do
recalcamento: o sexo-máquina, o sexo entregue ao jogo do «tanto faz», o sexo alta-fidelidade,
é assim o vec tor humorístico. O pomo como sexo tecnológico, o objecto como tecnologia pomo.
Como sempre, o estádio humorístico designa o estádio último do pro cesso de
dessubstancialização: o pomo liquida a profundidade do espaço erótico, a sua conexão com o
mundo da lei, do sangue, do pecado e meta morfoseia o sexo em tecnologia-espectáculo, em
teatro indissociavelmente hard e humorístico.
Narcisismo enlatado *
Quando o social entra na fase humorística, começa o neo-narcisismo, úl timo refúgio cerimonial
de um mundo sem potência superior. À desvaloriza ção paródica do social corresponde o sobreinvestimento litúrgico do Eu:
No original, narc,ssis en bofte: o autor Joga com o duplo sentido da expressão «en boi te», que
significa, ao mesmo tempo, «enlatado» e «na discoteca» (a última pai-te do capitulo descreve
uma discoteca parisiense) (NT.).
156
A Era do Vazio 157
Gil/es Lipovetsky
A Era do Vazio
158
mais ainda, o devir humorístico do social é uma peça essencial na emergên cia do narcisismo. À
medida que as instituições e valores sociais se rendem à imanência humorística, o Eu ascende e
torna-se o grande objecto de culto da pós-modernidade. De que nos podemos ocupar
seriamente hoje a não ser do nosso equilíbrio psíquico e físico? Quando os ritos, costumes e
tradições ago nizam, quando tudo flutua num espaço paródico, aumentam a obsessão e as
práticas narcísicas, as únicas a serem ainda investidas de uma dignidade ce rimonial. Já tudo
foi dito acerca do ritual psi, da codificação estrita das ses sões, da aura da análise, etc.; temse observado menos que hoje o próprio desporto — embora maleável e independente — se
164
tornou de igual modo uma prática iniciática de um género novo. E já conhecido o progresso
fulgu rante da prática desportiva, e muito particularmente dos desportos indivi duais mais
interessante ainda é o desenvolvimento das actividades despor tivas chamadas «livres», sem
preocupação competitiva, fora da rede das fede rações, longe dos estádios e dos ginásios.
Jogging, bicicleta, ski de fundo, rolling. waiking, skate, prancha de vento — aqui os novos
oficiantes procu ram menos a proeza, a força, o reconhecimento, do que a forma e a saúde, a
liberdade e a elegância de movimentos, o êxtase do corpo. Cerimónia da sensação redobrada
por uma cerimónia do material técnico: para experimen tar o corpo, convém que o indivíduo se
informe de todas as inovações, que adquira e domine as próteses mais sofisticadas, que mude
regularmente de material. Narciso surge assim ajaezado. De tal modo que, tornando flexíveis
os quadros desportivos, promovendo o desporto «aberto», o processo de per sonalização só à
superfície descontraiu o desporto; pelo contrário, ao genera lizar-se, este limitou-se a
metamorfosear-se numa liturgia cada vez mais ab sorvente nos antípodas do código
humorístico. Já ninguém brinca nem com o próprio corpo nem com a saúde. Na esteira da
análise, o desporto trans formou-se num trabalho, num investimento permanente a gerir com
método, escrupulosamente, e, de alguma maneira, «profissionalmente». A única des 1 «Em
França, o número dos filiados em clubes de ténis passa de 50 000 em 1950 para
125 000, em 1968, atingindo mais de 500 000 em 1977, tendo quadruplicado assim em menos
de oito anos. O dos praticantes de ski triplica entre 1958 e 1978 para atingir hoje mais ou me
nos — o que não é inteiramente por acaso — 600 000. Simultaneamente, o número dos que jo
gam futebol permanece mais ou menos estável (cerca de 1 300 000), bem como o dos adeptos
do râguebi (í47 000). A preferência pelo tipo individual de prática afirma-se também nos des
portos populares. Os judocas triplicam em dez anos (200 000 em 1966 e 600 000 em 1977). Se
acompanharmos a análise dos conteúdos da evolução a partir de 1973, verificamos que o mús
culo recua por toda a parte.» (A. Cotta, La Société ludique, Grasset, 1980, pp. 102-103.)
159
forra do processo humorístico é que aquilo que se mostra capaz de mobilizar e apaixonar
intensamente o indivíduo desportivo, o que galvaniza todas as suas energias, se vê de seis em
seis meses, ou de dois em dois anos, abando nado. Uma nova atracção aparece: depois da
bicicleta o wind surf, com a mesma seriedade, o mesmo culto definitivo. A moda e os seus
ciclos investi ram o próprio narcisismo.
Certos locais têm o poder de se darem como símbolo puro do tempo através da condensação e
da integração que operam dos traços característi cos da modernidade: assim Le Pa/ace, onde
processo humorístico e narcisis mo se afirmam de peito aberto, sem contradição. Neonarcisismo dos jovens mais preocupados com electrizarem-se, sentirem o próprio corpo na
dança do que com comunicarem com o outro — o facto é já bem conhecido. Mas também desvio
extravagante do Palace. Desvio do espaço: a «botte» investe um teatro desafectado, respeitalhe a arquitectura vetusta, ao mesmo tempo que introduz aí as técnicas audiovisuais mais
sofisticadas: loft de massa. Desvio do night-club: aqui não há nada da boíte resguardada e da
sua fun ção confessa de lugar de engate; a boite é agora simultaneamente um lugar de
concertos, um espectáculo totàl, uma animação visual electroacústica fei ta de «efeitos
especiais», de /asers, de projecções de filmes, de robots electró nicos, etc. O espectáculo
está por todo o lado: na própria música, na multi dão, no exibicionismo in, nos shows luminocinéticos, na exasperação de /ooks, de sons, de jogos de luzes. É precisamente esta
165
hiperteatralização que esvazia Le Pa/ace de toda a gravidade, faz dele um lugar flutuante e
poliva lente, um lugar neo-barroco afectado de «delírio». Excesso de representações que por
certo desorienta, fascina, não sem efeitos humorísticos, de tal modo o espectacular surge sem
freio, desproporcionado, em órbita sobre si pró prio. Fascinação humorística, caleidoscópio
new-wave. Desvio do próprio es pectáculo: todo este luxo de demonstrações não se destina, no
fundo, a ser olhado ou admirado, mas a «brilhar», a esquecer e sentir. O espectacular, condição
do narcisismo; o fausto do exterior, condição do investimento do interior, a lógica paradoxal do
Pa/ace é humorística. Tudo é excessivo, o som, os light shows, a rítmica musical, a gente que
circula e se apinha, o frenesim das singularidades: inflação psicadélica, feira de signos e de
indiví duos, necessária à atomização narcísica, mas também à banalização irreal do lugar.
Circulamos como entre os dez mil produtos de um hipcrmercado:
já nada tem lugar certo, nada tem designação sólida, a superprodução noc turna esvazia da sua
substância tudo o que anexa. O Pa/ace como ponto de
160
Guies Lipovetsky
aglomeração-gadget, tecnologia-gadget, botte-gadget. Espectáculo ou disco teca, concerto ou
teatro, happening ou representação, dinâmica de grupo ou narcisismo, febre disco ou distância
cool, estas distinções aqui vacilam, cada uma anulando ou sobredeterminando a outra, cada uma
tornando a outra humorística num espaço multifuncional e indeterminado. Tudo está ali ao
mesmo tempo, indecidivelmente, todas as dimensões, todas as categorias se cruzam numa
coexistência cuja graça resulta da exasperação pela exaspera ção: o humor do Palace emana de
um processo hiperbólico vazio e generali zado. Assim, correndo o risco de contradizer o seu
promotor, Le Palace não tem o seu modelo na festa, ainda que adaptada à sociedade pósmoderna. Ao contrário de toda a transgressão, de toda a violência simbólica, Le Pala ce
funciona segundo uma lógica da acumulação e do espectacular; o sagra do, o estar em conjunto,
a revivescência do sol são aqui definitivamente abo udos em proveito de um narcisismo
colectivo. Primeira botte humorística — em Paris, entenda-se —, Le Palace é a réplica de
Beaubourg, primeiro gran de museu humorístico, aberto e descompartimentado, onde tudo
circula sem interrupção, indivíduos, grupos, escadas, exposições, onde as obras e o próprio
museu assumem uma coloração de gadgets. Do mesmo modo que a moda vestimentar se
descrispou imitando as roupas de trabalho, também Beaubourg tomou como modelo a fábrica e
a refinação. Democratizando-se, o museu perde a sua austeridade e, dotado dos seus tubos
polícromos, tor na-se ele próprio uma curiosidade humorística. Beaubourg, Le Palace: o
processo humorístico não poupou, no seu trabalho inexorável, nem os locais da cultura nem os
locais da noite.
CAPíTULO 6
Violências selvagens, violências modernas
A violência não conseguiu, ou só em escassa medida, conquistar os favo res da investigação
histórica, pelo menos daquela que, por trás da espuma dos acontecimentos mais ou menos
contingentes, se esforça por teorizar os movimentos de dimensão maior, as grandes
continuidades e descontinuida des que escandem o devir humano. A questão, no entanto,
convida a uma conceptualização no plano da longa duração: durante milénios, através de
166
formações sociais bem distintas, a violência e a guerra foram valores domi nantes, a crueldade
manteve-se com uma legitimidade tal que pôde funcio nar como «ingrediente» dos prazeres
mais requintados. O que é que nos transformou tanto? Como é que as sociedades de sangue
puderam dar lugar a sociedades suaves, em que a violência inter-individual já não passa de um
comportamento anómico e degradante, nem a crueldade de um estado pato lógico? Estas
questões não têm hoje grande prestígio frente às que suscitam a força desmultiplicada dos
Estados modernos, o equilíbrio do terror e a corrida aos armamentos: tudo se passa corno se
depois do momento omnie conómico e do momento omnipoder, a revolução das relações de
homem a homem nascida com a sociedade individualista tivesse que continuar a ser
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Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
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um tema menor, privado de qualquer eficácia específica, não merecendo no vos
desenvolvimentos. Tudo se passa como se, sob o choque das duas guer ras mundiais, dos campos
nazis e estalinianos, da generalização da tortura e actualmente do recrudescimento da
criminalidade violenta ou do terrorismo, os nossos contemporâneos se recusassem a tomar nota
desta mutação já multissecular e recusassem perante a tarefa de interpretar o irresistível
movi mento de pacificação da sociedade, ao mesmo tempo que a hipótese da pul são de morte e
a da luta de classes contribuem em grande medida para con firmar o imaginário de um princípio
de conservação da violência, retardando a interrogação sobre o seu destino.
Os grandes espíritos do século XIX não recorriam a este subterfúgio, e Tocqueville e
Nietzsche, para citar dois pensamentos sem dúvida estranhos um ao outro, embora igualmente
fascinados pela ascenção do fenómeno de mocrático, não hesitavam em pôr o problema em toda
a sua brutal clareza, tão insuportável ao pensamento-spot dos dias de hoje. Mais perto de nós,
os trabalhos de N. Elías e depois de P. Clastres contribuíram, a níveis diferen tes, para
revitalizar a interrogação. Torna-se necessário continuá-la, prolon gá-la analisando a violência e
a sua evolução, nas suas relações com os três eixos maiores que são o Estado, a economia, a
estrutura social. Conceptuali zar a violência: longe das leituras mecanicistas, sejam estas
políticas, econó micas ou psicológicas, é por estabelecer a violência como comportamento do
tado de sentido e em articulação com o todo social que devemos esforçar- nos. Violência e
história: para além do cepticismo erudito e do alarmismo estatístico jornalístico, precisamos
de recuar até ao tempo mais distante, tra zer à luz do dia as lógicas da violência, e tudo isto
para, tanto quanto possí vel, captarmos o presente de onde falamos, neste momento em que,
por to dos os lados, se ouve clamar com maior ou menor pertinência a entrada das sociedades
ocidentais numa era radicalmente nova.
Honra e vingança: violências selvagens
Ao longo de todos os milénios que viram as sociedades funcionar de mo do selvagem, a violência
dos homens, longe de se explicar a partir de consi derações utilitárias, ideológicas ou
económicas, organizou- se essencialmente em função de dois códigos estritamente corolários
um do outro, a honra e a vingança, cuja significação exacta temos dificuldade em compreender,
de tal
modo foram eliminados inexoravelmente da lógica do mundo moderno. Hon ra, vingança, dois
imperativos imemoriais, inseparáveis das sociedades pri mitivas, sociedades «holistas» embora
167
igualitárias, em que os agentes indivi duais estão subordinados à ordem colectiva e em que
simultaneamente «as relações entre homens são mais importantes, mais altamente valorizadas
do que as relações entre homens e coisas» Quando o indivíduo e a esfera eco nómica não têm
existência autónoma e se encontram submetidos à lógica do estatuto social, reina o código de
honra, o primado absoluto do prestígio e da estima social, bem como o código da vingança,
significando este, com efeito, a subordinação do interesse pessoal ao interesse do grupo, a
impossi bilidade de romper a cadeia das alianças e das gerações, dos vivos e dos mortos, a
obrigação de pôr em jogo a própria vida em nome do interesse su perior do clã ou da linhagem.
A honra e a vingança exprimem directamente a prioridade do conjunto colectivo sobre o agente
individual.
Estruturas elementares das sociedades selvagens, a honra e a vingança são códigos de sangue.
Onde a honra predomina, a vida tem pequeno preço, comparada com a estima pública; a
coragem, o desprezo da morte, o desafio são virtudes altamente valorizadas, a cobardia é
desprezada por toda a par te. O código da honra adestra os homens no sentido de se
afirmarem pela força, de conquistarem o reconhecimento dos outros antes de assegurarem a
sua segurança, de lutarem até à morte para serem respeitados. No universo primitivo, o ponto
de honra é o que ordena a violência, ninguém pode, sob pena de se ver desrespeitado, suportar
uma afronta ou uma injúria; quere las, insultos, ódios e invejas conhecem, mais facilmente do
que nas socieda des modernas, um desfecho sangrento. Longe de manifestar qualquer impul
sividade incontrolada, a belicosidade primitiva é uma lógica social, um mo do de socialização
consubstancial ao código da honra.
A própria guerra primitiva não pode ser separada da honra. E em fun ção do código da honra
que cada homem adulto tem o dever de ser um guerreiro, de ser valente e bravo perante a
morte. Mais ainda, o código da honra fornece o motor, o estímulo social p os empreendimentos
guerrei ros; sem ter de modo algum uma finalidade económica, a violência primitiva é, em
numerosos casos, guerra pelo prestígio, puro meio de adquirir glória e renome, sendo estes
conferidos pela captura de signos e presas, escalpes, ca valos, prisioneiros. O primado da honra
pode assim dar nascimento, como
1 Louis Dumont, Homo aequalis. Gailimard, 1977, p. 13.
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A Era do Vazio
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Guies Lipovetsky
P. Clastres demonstrou, a confrarias de guerreiros inteiramente consagradas às façanhas de
armas, obrigadas ao desafio permanente da morte, à escala da de bravura que lança os seus
membros em expedições cada vez mais au daciosas e conduzindo à morte de modo inelutável)
Se a guerra primitiva está estreitamente ligada à honra, está-o na mesma medida ao código da
vingança: a violência visa o prestígio ou a vingança. Os conflitos armados são deste modo
desencadeados para vingar um ultraje, um morto ou até um acidente, um ferimento, uma
doença atribuída às forças maléficas de um feiticeiro inimigo. Ê a vingança que exige que o
sangue ini migo seja derramado, que os prisioneiros sejam torturados, mutilados ou de vorados
ritualmente, é sempre ela que manda em última instância que um prisioneiro não deva tentar
168
evadir-se, como se os parentes e o seu grupo não tivessem coragem suficiente para vingar a
sua morte. Do mesmo modo, é o medo da vingança dos espíritos dos inimigos sacrificados que
impõe os ri tuais de purificação do carrasco e do seu grupo. Mais ainda: a vingança não se
exerce unicamente contra as tribos inimigas, exige igualmente o sacrifício de mulheres ou
crianças da comunidade à laia de reparação do desequilíbrio ocasionado, por exemplo, pela
morte de um adulto na força da idade. E preciso despsicologizar a vingança primitiva que nada
tem a ver com a hosti lidade acumulada internamente: entre os Tupinambas, um prisioneiro
vivia por vezes dezenas de anos no grupo que o capturara, gozava de grande li berdade, podia
casar e muitas vezes era amado e bem tratado pelos seus amos e mulheres, como se de um
homem da aldeia se tratasse; isso não im pedia que a sua execução sacrificial fosse inelutável
A vingança é um im perativo social, independente dos sentimentos experimentados pelos indiví
duos e grupos, independente das noções de culpabilidade ou responsabilida de individuais e que
fundamentalmente manifesta a exigência de ordem e de simetria do pensamento selvagem. A
vingança é «o contra-peso das coisas, o restabelecimento de um equilíbrio provisoriamente
quebrado, a garantia de que a ordem do mundo não sofrerá alteração» ou seja, a exigência de
que em parte alguma se estabeleça duradouramente um excesso ou um defeito. Se há uma
idade de ouro da vingança, é entre os selvagens que a encontra Pierre Clastres, «Malheur du
guerrier sauvage», in Libre, 1977, n.° 2.
2 Alfred Métraux, Religions e! tnagies indiennes, Gallimard, 1967, pp. 49-53.
P. Clastres, Chronique des Indiens Guayaki. PIon, 1972, p. 164.
mos: constitutiva de um extremo a outro do universo primitivo, a vingança impregna todas as
grandes acções individuais e colectivas, está para a violên cia como os mitos e sistemas de
classificação estão para o pensamento «espe culativo», tem por toda a parte a mesma função
de ordenação do cosmos e da vida colectiva, que se realiza em benefício da negação da
historicidadC.
Ê por isso que as recentes teorias de R. Girard a respeito da violên cia nos parecem assentar
num contra-senso radical: dizer, com efeito, que o sacrifício é um instrumento de prevenção
contra o processo interminável da vingança, um meio de protecção a que a comunidade inteira
recorre contra o ciclo infinito das represálias e contra-represálias, equivale a omitir essa
realidade primeira do mundo primitivo em que a vingança, longe de ser o que é preciso dominar,
é algo em que se torna necessário adestrar imperati vamente os homens. A vingança não é uma
ameaça, um terror a contornar, do mesmo modo que o sacrifício não é um meio de pôr termo à
violência pretensamente dissolvente das vinganças intestinas por meio de substitutos
indiferentes. A esta visão-pânico da vingança, devemos opor a dos selvagens para quem a
vingança é um instrumento de socialização, um valor tão indis cutível como a generosidade.
Inculcar o código da vingança, ripostar golpe por golpe, eis a regra fundamental: entre os
Yanomami, «se um rapazinho derrubar outro por descuido, a mãe deste último intima o seu
rebento a ata car o desajeitado. Grita-lhe de longe: vinga-te, vinga-te, então!» Longe de ser,
como pensa R. Girard uma manifestação não-histórica, bio-antro pológica, a violência vingadora
é uma instituição social; longe de ser um processo «apocalíptico», a vingança é uma violência
limitada que visa equi librar o mundo, instituir uma simetria entre os vivos e os mortos. Não
deve mos conceber as instituições primitivas como máquinas de recalcamento ou de desvio de
uma violência trans-histórica, mas como máquinas destinadas a produzir e a normalizar a
169
violência. Nestas condições, o sacríficio é uma ma nifestação do código da vingança e não algo
que impede a sua afirmação:
nem substituição nem deslocamento, o sacrifício é efeito directo do princípio da vingança, uma
exigência de sangue sem disfarce, uma violência ao servi ço do equilíbrio, da perenidade do
cosmos e do social.
1 René Girard, La Violence e! le sacré, Grasset. 1972.
2 Jacques Lizot, Le Cercie des jeux, Ed. du Seuil, 1976, p. 102.
A perspectiva clássica da vingança, tal como a vemos expressar-se em M.
R. Davie, por exemplo, também não é mais satisfatória: os grupos primiti vos «não possuem nem
sistema desenvolvido de legislação, nem juízes ou tri bunais para a punição dos crimes e, no
entanto, os seus membros vivem de um modo geral em paz e segurança. No seu caso, o que é
que faz então as vezes do procedimento judicial dos civilizados? Descobriremos a resposta a
esta pergunta na prática da justiça pessoal ou da vingança privada» 1 A vingança, condição da
paz interna, equivalente da justiça? Concepção muito discutível uma vez que a vingança ensina a
violência, legitima as represálias, arma os indivíduos, enquanto que a instituição judiciária tem
como meta in terditar o recurso às violências privadas. A vingança é um dispositivo que so
cializa por meio da violência, no registo desta, que faz com que ninguém possa deixar o crime
ou a ofensa por punir: ninguém detém assim o mono pólio da força física, ninguém pode
renunciar ao imperativo de derramar o sangue inimigo, ninguém pode confiar a outra pessoa a
garantia da sua se gurança. Que quer isto dizer senão que a vingança primitiva se afirma con
tra o Estado, que a sua acção visa impedir a constituição de sistemas de do minação política?
Tornando-se a vingança um dever imprescritível, todos os homens são iguais perante a
violência, nenhum pode monopolizar ou renun ciar a ela, nenhum será protegido por uma
instância especializada. Deste modo não é apenas através da guerra e da sua acção centrífuga
de dispersão que a sociedade primitiva logra esconjurar o advento do dispositivo estatal
consegue-o também por dentro, por meio do código da honra e da vingança, que contrariam o
desenvolvimento do desejo de submissão e de protecção e impedem a emergência de uma
instância que açambarque o poder e o direi to de morte.
Simultaneamente, é a impedir o aparecimento do indivíduo independen te, fechado no seu
interesse próprio, que se aplica o código da vingança. Aqui, a prioridade do todo social sobre as
vontades individuais torna-se ac to, os vivos têm o encargo de afirmar através do sangue a sua
solidariedade com os mortos, de fazerem corpo com o grupo. A vingança de sangue é contra a
divisão dos vivos e dos mortos, contra o indivíduo separado, e por isso é um instrumento de
socialização holista, do mesmo modo que a regra
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Guies Lipovetsky
A Era do Vazio
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da dávida, que institui menos a passagem da natureza à cultura do que o funcionamento holista
das sociedades, a preeminência do colectivo sobre o individual através da obrigação da
generosidade, da dávida das filhas e ir mãs e pela proibição da acumulação e do incesto.
170
A comparação pode ser continuada relativamente a uma outra institui ção, desta feita de tipo
violento: as cerimónias iniciáticas que assinalam a passagem dos jovens do sexo masculino à
idade adulta e que são acompa nhadas por torturas rituais intensas. Fazer sofrer, torturar, é
algo que proce de da ordem holista primitiva, porque o que interessa manifestar aqui de
maneira ostensiva, no profrio corpo, é a subordinação extrema do agente in dividual ao
conjunto colectivo, de todos os homens sem distinção a uma lei superior intangível. A dor ritual,
meio último de significar que a lei não é humana, que tem que ser recebida, e não deliberada ou
alterada, meio de assinalar a superioridade ontológica de uma ordem vinda de alhures e como
tal subtraída às iniciativas humanas que visem transformá-la. Pelo esmaga mento do iniciado
sob a prova da dor, trata-se de inscrever no corpo a hete ronomia das regras sociais, a sua
preeminência implacável e, portanto, de proibir o nascimento de uma instância separada de
poder que se atribua o direito de introduzir a transformação histórica A crueldade primitiva é,
como a vingança, uma instituição holista, contra a auto-determinação do in divíduo, contra a
divisão política, contra a história: do mesmo modo que o código da vingança exige dos homens
que estes arrisquem a vida em nome da solidariedade e da honra do grupo, a mesma iniciação
exige dos homens uma submissão muda dos seus corpos às regras transcendentes da comuni
dade.
Tal como a iniciação, a prática de suplícios revela a significação profun da da crueldade
primitiva. A guerra selvagem não consistia unicamente na organização de incursões e
massacres; tratava-se, além disso, de capturar inimigos aos quais eram depois infligidos ora
pelos homens, ora pelos jovens e pelas mulheres, suplícios de uma ferocidade inaudita que, no
entanto, não inspiravam qualquer horror ou indignação. Esta atrocidade dos costumes foi desde
há muito assinalada, mas, depois de Nietzche, que reconhecia nela uma festa das pulsões
agressivas e de Bataille que a considerava uma forma de dispêndio improdutivo, a lógica social e
política da violência foi duradou ramente ocultada pelas problemáticas «energéticas». A
crueldade primitiva
M. R. Davie, La Guerre dans les sociétés primitives. Payot, 1931, p. 188.
2 P. Clastres, «Archéologie dela violence», in Libre, 1977, n.° l,p. 171.
1 Cf. P. Clastres, La Société contre l’État, Êd. de Minuit, 1974, pp. 152-160.
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nada tem a ver com o «gozo de fazer sofrer», não pode ser assimilada a um equivalente
pulsional de um dano sofrido: «Fazer sofrer causava um prazer infinito; como compensação do
dano e dos aborrecimentos do dano propor cionava às partes lesadas um contra-gozo
extraordinário» Independente dos sentimentos e das emoções, o suplício selvagem é uma
prática ritual exi gida pelo código da vingança a fim de estabelecer o equilíbrio entre os vivos e
os mortos: a crueldade é uma lógica social, não uma lógica do desejo. Dito isto, Nietzsche
entrevira, apesar de tudo, o essencial do problema ao ligar a crueldade à dívida, ainda que a
tenha carregado de uma significação mate rialista, moderna, baseada na troca económica De
facto, a atrocidade das torturas selvagens só tem sentido quando referida a essa dívida
171
específica e extrema que liga os vivos aos mortos: dívida extrema, em primeiro lugar porque os
vivos não podem prosperar sem obterem a protecção ou a neutra lidade dos seus mortos
sempre dotados de uma força particular, represen tando uma das maiores ameaças
concebíveis; em segundo lugar, porque a dívida se refere a dois universos constantemente
ameaçados de disjunção ra dical, o visível e o invisível. E, por conseguinte, necessário um
excesso para preencher o défice da morte; é necessário um excesso de dor, de sangue ou de
carne (no festim antropófago) para se cumprir o código da vingança, quer dizer para
transformar a disjunção em conjunção, para restabelecer a paz e a aliança com os mortos.
Vingança primitiva e sistemas de crueldade são inseparáveis enquanto meios de reprodução de
uma ordem social imutá vel.
Decorre daqui que o excesso dos suplícios não é estranho à lógica da tro ca, pelo menos da que
põe em relação os vivos e os mortos. Sem dúvida, te remos que seguir as análises de P.
Clastres, que soube mostrar como a guer ra não era de maneira alguma um malogro acidental da
troca, mas uma es trutura primeira, uma finalidade central do ser social primitivo, sendo ela a
determinar a necessidade da troca e da aliança todavia, uma vez «reabili tada» a significação
política da violência, devemos ter cuidado e não trans formar a troca em instrumento
indiferente da guerra, em simples efeito tác— tico da guerra. A inversão das prioridades não
deve ocultar o que a violência deve ainda à troca e a troca à violência. Na sociedade primitiva,
guerra e
1 Nietzsche, A Genealogia da Moral: segunda dissertaçáo. § 6.
2 Ibid. § 4.
P. Clastres, «Archéologie de la violence», pp. 162-167.
troca encontram-se em consonância: a guerra é inseparável da regra da dá diva e esta é
apropriada ao estado de guerra permanente. Na medida em que a violência primitiva caminha a par da vingança, os laços que a unem à lógica
reciprocitária são imediatos. Do mesmo modo que existe a obrigação de se ser generoso, de
oferecer bens, mulheres, alimento, existe também a obrigação de se ser generoso nos termos
da própria vida, de se dar a vida de acordo com o imperativo da vingança; do mesmo modo que
qualquer bem tem que ser devolvido, também a morte deve ser paga e com pensada; o sangue
exige, à semelhança das dádivas, a sua contrapartida. À simetria das transacções corresponde
a simetria da vingança. A solidarieda de de grupo, que se manifesta pela circulação das
riquezas, revela-se igual mente através da violência vingadora. De modo que a violência não é
antinó mica em relação ao quadro da troca; a ruptura da reciprocidade articula-se ainda no
quadro da troca recíproca entre os vivos e os mortos.
Mas se a violência apresenta parentesco de estrutura com a troca, esta, pelo seu lado, não
pode ser pura e simplesmente assimilada a uma institui ção de paz. Sem dúvida, é de facto
através da regra da dádiva e da dívida dela decorrente que os primitivos instituem a aliança
mas isso não quer di zer que a troca nada tenha a ver com a guerra. Mauss sublinhou com insis
tência em páginas hoje célebres a violência constitutiva da reciprocidade através dessa
«guerra de propriedade» que é o potlatch. Mesmo quando o desafio e a rivalidade não atingem
tais dimensões, Mauss observa o seguinte facto capital, insuficientemente analisado, de que a
troca «conduz a querelas súbitas quando frequentemente tinha por fim apagá-las» Que quer
isto dizer senão que a troca produz uma paz instável, frágil, sempre à beira da ruptu ra? O
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problema consiste assim em compreender porque é que a troca, cujo objectivo é estabelecer
relações pacificas, falha de tal maneira nos seus pro pósitos. Deveremos regressar à
interpretação de Lévi-Strauss, segundo a qual a guerra não passa de um malogro contingente,
de uma transacção in feliz, ou deveremos antes ver na reciprocidade uma instituição que a sua
própria forma torna propícia à violência? E esta segunda hipótese que nos parece justa: só há
malogro na aparência, a dádiva participa estruturalmen te na lógica da guerra, pois que institui
a aliança numa base necessariamen te precária. A regra de reciprocidade, porque funciona
como uma luta sim 1 Marshall Sahlins, Âge de pierre. áge dabondance, Gallimard, 1976, pp. 221236.
2 Marcel Mauss, Essai sur le doo, in Sociologie ef anthropologie. PUF, 1960, p. 173, nota
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Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
171
bólica ou de prestígio e não como meio de acumulação, instaura um frente- a-frente sempre à
beira do conflito e do confronto: nas trocas económicas e matrimoniais que presidem às
alianças das comunidades Yanomano, «os parceiros mantêm-se no extremo limite do ponto de
ruptura, mas é justa mente esse jogo arriscado, esse gosto pelo confronto o motivo de agrado»
Pouco é preciso para que os amigos se tornem inimigos, para que um pacto de aliança degenere
em guerra: a dádiva é uma estrutura potencialmente violenta porque basta que o parceiro se
recuse a entrar no ciclo das presta ções para que isso se identifique com uma ofensa, com um
acto de guerra. Enquanto estrutura assente no desafio, a troca proíbe as amizades duradou
ras, a emergência de laços permanentes que ligariam indissoluvelmente a co munidade a este ou
àquele dos seus vizinhos, levando-a a perder a prazo a sua autonomia. Se há uma inconstância
na vida internacional dos selvagens, se as alianças se fazem e desfazem de modo tão
sistemático, isso não se deve apenas ao imperativo da guerra, mas igualmente aos tipos de
relações man tidas através da troca. Ligando os grupos não pelo interesse, mas por meio de
uma lógica simbólica, a reciprocidade quebra as amizades com a mesma facilidade com que as
faz, nenhuma comunidade está ao abrigo do desenca dear das hostilidades. Longe de se
identificar a uma táctica de guerra, a re gra da reciprocidade é a condição social da guerra
primitiva permanente.
Mais indirectamente, a troca participa ainda da violência primitiva na medida em que ensina aos
homens o código da honra, prescrevendo a dádi va e o dever de generosidade. Da mesma
maneira que o imperativo da guer ra, a regra da reciprocidade socializa por meio da honra e da
violência cor respondente. Guerra e troca são paralelas; a sociedade selvagem é realmen te,
como dizia P. Clastres, uma sociedade «para-a-guerra», e até as institui ções que têm como
tarefa criar a paz só ó conseguem instaurando simulta neamente uma belicosidade estrutural.
Por fim, ter-se-ão sublinhado o suficiente os laços que unem troca e feiti çaria? A sua
coexistência, atestada por toda a parte no mundo selvagem, não é fruto do acaso; com efeito,
estamos perante duas instituições estrita mente solidárias. Na sociedade primitiva, como
sabemos, os acidentes e infe licidades da vida, os infortúnios dos homens, longe de serem
acontecimentos fortuitos, são resultados da feitiçaria, quer esta se deva à malevolência de
outrém, quer a uma vontade deliberada de fazer o mal. Se um escorpião pi
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car uma criança, se a colheita ou a caça forem más, se uma ferida não ci catrizar, todos estes
acontecimentos pouco felizes são atribuídos a uma dis posição maligna de alguém. Sem dúvida
devemos ver na feitiçaria uma das formas dessa «ciência do concreto» que é o pensamento
selvagem, um meio de pôr ordem no caos das coisas e de explicar o melhor possível as
desgraças dos homens; mas não podemos deixar de observar também tudo o que esta
«filosofia» introduz de animosidade e de violênica na representaçdo da rela ção interhumana.
A feitiçaria é a prossecução do imperativo de guerra por outros meios; do mesmo modo que
cada comunidade local tem inimigos, as sim cada indivíduo tem inimigos pessoais, responsáveis
pelos seus males. To da a desgraça provém de uma violência mágica, de uma guerra perniciosa,
de tal maneira que aqui o outro só pode ser amigo ou inimigo segundo um esquema semelhante
ao instituído pela guerra e pela troca. Com a regra de reciprocidade com efeito, ou os homens
trocam presentes e são aliados, ou se interrompe o ciclo dos presentes e os homens tornam-se
inimigos. A socie dade primitiva que, por um lado, impede o aparecimento da divisão política,
gera, por outro lado, a divisão antagónica na representação da relação de homem a homem. Não
há indiferença, não há relações neutras como as que irão prevalecer na sociedade
individualista: com a guerras a troca, a feitiça ria, a apercepção do mundo humano é inseparável
do conflito e da violência.
Para além deste paralelismo a feitiçaria descobre na troca recíproca a condição social
característica do seu funcionamento. Através da regra da dá diva, os seres são obrigados a
existir e a definir-se uns por referência aos outros; os homens não podem conceber-se
separadamente uns dos outros
ora é exactamente este esquema que se reproduz, de maneira negativa, na feitiçaria, uma vez
que tudo o que de funesto acontece ao ego se liga neces sariamente a um outro. Nos dois casos,
os homens não podem pensar-se in dependentemente uns dos outros; o sortilégio não passa da
tradução inverti da da dádiva de acordo com a qual o homem só existe numa relação socialmente pré-determinada com o outro. E este contexto de troca obrigatória que torna possível a
interpretação dos acontecimentos nefastos em termos de malefícios: a feitiçaria não é a
afirmação livre de um pensamento não do mesticado, é ainda a regra de reciprocidade, a ncrma
holista do primado re lacional que constitui o seu enquadramento social necessário. A contrario.
não há feitiçaria na sociedade em que o indivíduo só existe para si próprio;
J. Lizot, op. cit. p. 239.
M. Gauchet e G. Swain, La Pratique de l’esprit humain. Gailimard, 1980, p. 391.
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Gil/es Lipoveisky A Era do Vazio
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o desaparecimento da feitiçaria na vida moderna não pode ser separado de um novo tipo de
sociedade em que o outro se torna a pouco e pouco um des conhecido, um estranho à verdade
intrínseca do ego.
Regime da barbárie
Com o advento do Estado, a guerra muda radicalmente de função, já que de instrumento de
equilíbrio ou de conservadorismo social que era na ordem primitiva se transforma num meio de
conquista, de expansão ou de captura. E é ao dissociar-se do código da vingança, quebrando a
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preeminên cia da troca com os mortos, que a guerra se pode abrir ao espaço da domi nação.
Enquanto a dívida para com os mortos é um princípio supremo para o todo social, a guerra
permanece circunscrita a uma ordem territorial e sa grada que se trata, precisamente através
do emprego da violência, de repro duzir sem mudança, tal como os antepassados a legaram. Mas
a partir do momento em que se institui a divisão política, a instância do poder deixa de se
definir em função deste primado da relação com os mortos, que é regula da por uma lógica
reciprocitária, enquanto o Estado introduz, pela sua própria dissimetria, um princípio
antinómico do do mundo da troca. O Es tado não pôde constituir-se senão emancipando-se,
ainda que parcialmente, do código da vingança, da dívida para com os mortos, e renunciando a
iden tificar guerra e vingança. A partir de então, surge uma violência conquista dora, o Estado
apropria-se da guerra, apodera-se de territórios e de escra vos, edifica fortificações, recruta
exércitos, impõe a disciplina e uma condu ta militar; a guerra já não é contra o Estado, passa a
ser a missão gloriosa do soberano, o seu direito específico. Começa uma era nova do culto do po
der, a barbárie, que designa o regime da violência nas sociedades estatais pré-modernas.
Sem dúvida, as primeiras formas do Estado não se emancipam por completo da ordem da dívida,
devendo o Déspota a sua função e a sua legi timidade a um além transcendente ou a uma
referência religiosa de que é ele o representante ou a incarnação; mas constitutivamente o
Estado só pode ser devedor e estar subordinado a potências superiores e divinas, e não às
almas dos mortos, o que seria lesivo da sua grandeza sobre-eminente, degradando a sua
diferença irredutível relativamente à sociedade que domina.
Desligada do código da vingança, a guerra entra num processo de espe
cialização constituição de exércitos regulares de recrutas ou de mercenários, mas também
castas exclusivamente definidas pelo exercício das armas, pon do toda a sua glória e paixão na
conquista militar. Correlativamente, a maioria da população, os trabalhadores rurais, vão
encontrar-se excluídos, desapossados da actividade nobre por excelência, a guerra, e
consagrar-se-ão à tarefa de alimentar os exércitos profissionais. Este desarmamento de mas
sa não significou, todavia, para os miseráveis, a renúncia à violência, à hon ra e à vingança.
Manteve-se, com efeito, sob o Estado, um modo de sociali zação holista que dá conta da
violência dos costumes, ao mesmo título que a existência de valores militares e de guerras
permanenteS. Para nos atermos à Idade Média, o ponto de honra continua a ser responsável
pela frequência da violência interindividual, pelo seu carácter sangrento, e isto não apenas
entre os homens de guerra, mas para o conjunto do povo: até nos claustros, entre padres, se
descobre uma violência de sangue 1; os assassínios entre os servos parecem ter sido coisa
corrente os burgueses das cidades não hesita vam em puxar da faca para ajustarem as suas
contas Os registos judiciá rios da Baixa Idade Média confirmam ainda o lugar considerável que
as vio lências, rixas, ferimentos, assassínios, ocupavam na vida quotidiana das ci dades Com a
instalação do princípio hierárquico que distribui os homens em ordens heterogéneas, em
especialistas da guerra e produtores, surgiu, é certo, uma distinção radical entre honra nobre
e honra plebeia, tendo cada uma delas o seu código, mas continuando ambas a gerar uma
belicosidade mortífera.
O mesmo acontece com a vingança. Se a guerra e o Estado já não se or denam a partir da dívida
para com os mortos, isso não significa de modo nenhum que a sociedade tenha renunciado à
vingança. É verdade que, a partir da altura em que o Estado começou a afirmar a sua
autoridade, ele se esforçou também por limitar a prática da vingança privada, substituindo-lhe
175
o princípio de uma justiça pública e editando leis destinadas a moderar os excessos da
vingança: lei de talião, abandono noxal, tarifas legais de compo sição. Já o dissemos, a vingança
é, no seu princípio, hostil ao Estado, pelo menos à sua plena realização, e é por isso que o
nascimento deste coincidiu
1 Marc Bloch, La Sociótéféodale, Albin Michel, co!. «Êvolution de I’humanité’, p. 416.
2 Ibid, p. 568.
Norbert Elias, La Civilisation des moeurs, col. «Pluriel», pp. 331-335.
Bronislaw Geremek, Truands et ,nisérabels Gailimard, co!. «Archives», 1980, pp. 16-22.
174
Guies Lipovetsky
com a instauração de sistemas judiciários e penais, representando a autori dade suprema,
destinados nomeadamente a temperar as vinganças intestinas em proveito da lei do soberano.
Apesar disto, a despeito do poder e da lei, a vingança familiar manteve-se muito amplamente,
por um lado em razão da fraqueza da força pública, por outro lado em razão da legitimidade
imemo rial associada à vingança nas sociedades holistas. Na Idade Média, e parti cularmente
durante a época feudal, a faide (vingança privada) continua a impor-se como obrigação moral
sagrada do topo à base da sociedade, tanto para as grandes linhagens como para os rústicos; a
faide ordena ao grupo dos parentes que punam pelo sangue o assassínio de um dos seus ou uma
in júria sofrida. Vendettas intermináveis, por vezes originadas por questões anódinas, podiam
prolongar-se durante décadas e ter como saldo dezenas de mortos. A vingança e a ordem social
holista são a tal ponto consubstanciais que as próprias leis penais se limitam muitas vezes a
reproduzir a sua for ma: assim o direito grego ou a lei das Doze Tábuas de Roma proibiam efec
tivamente o princípio das vendettas e o direito de fazer justiça pelas próprias mãos, mas as
acções por motivo de assasínio eram, em contrapartida, deixa das a cargo do interessado mais
próximo; o mesmo dispositivo legal surge em certas regiões, no século XIII, quando em caso de
homicídio voluntário o corpo do culpado era atribuído aos parentes da vítima, de acordo com a
lei de talião. Assim, enquanto as sociedades, com ou sem Estado, funcionaram segundo as
normas holistas que impunham a solidariedade da linhagem, a vingança continuou a ser mais ou
menos um dever; a sua legitimidade só de saparecerá com a entrada em cena das sociedades de
ordem individualista e do Estado moderno que lhes corresponde, definindo-se este
precisamente pe lo monopólio da força física legítima, pela penetração e pela protecção cons
tante e regular da sociedade.
A honra e a vingança perduraram sob o Estado, do mesmo modo que a crueldade dos costumes.
Sem dúvida, a emergência do Estado e da sua or dem hierárquica transformou radicalmente a
relação com a crueldade que prevalecia na sociedade primitiva. De ritual sagrado que era, a
crueldade tornou-se uma prática bárbara, uma demonstração ostentatória de força, um
festejo público: lembremos o gosto muito vivo dos Romanos pelos espectácu los sangrentos de
combates de animais e de gladiadores; lembremos a paixão guerrreira dos cavaleiros, o
massacre dos prisioneiros e dos feridos, o as sassínio das crianças, a legitimidade da pilhagem
ou da mutilação dos venci dos. Como dar conta da persistência durante milénios, da Antiguidade
à
Idade Média, de costumes ferozes que hoje por certo não desapareceram. mas que, quando se
verificam, suscitam uma indignação colectiva? Não po demos deixar de observar a correlação
perfeita que existe entre crueldade dos costumes e sociedades holistas, ao mesmo tempo que
176
se verifica o anta gonismo entre a crueldade e o individualismo. Todas as sociedades que con
ferem prioridade à organização do conjunto são, numa medida ou noutra, sistemas de
crueldade. E que, com efeito, a preponderância da ordem colec tiva impede que se concedam à
vida e ao sofrimento pessoais o valor que lhes atribuímos. A crueldade bárbara não resulta de
uma ausência de recal camento ou de repressão social, é o efeito directo de uma sociedade em
que o elemento individual, subordinado às normas colectivas, não vê reconhecida a sua
existência autónoma.
Crueldade, holismo e sociedades guerreiras caminham a par: a crueldade só é possível como
habitus socialniente dominante quando reina a suprema cia dos valores guerreiros, direito
incontestado da força e do vencedor, des prezo pela morte, bravura e persistência, ausência
de campaixão pelo inimi go — valores que têm em comum o facto de suscitarem a ostentação e
o ex cesso nos signos da força física, desvalorizarem o vivido propriamente íntimo tanto de si
como do outro, considerarem pouca coisa a vida individual quan do comparada à glória do
sangue, ao prestígio social conferido pelos signos da morte- A crueldade é uni dispositivo
histórico que não pode desligar-se das significações sociais que erigem a guerra em actividade
soberana: a crueldade bárbara, filha de Polemos, emblema enfático da grandeza da or dem
guerreira conquistadora, instrumento sangrento da sua identidade, meio extremo de unificar
na carne a lógica holista e a lógica militar.
Um laço indissolúvel une a guerra concebida como comportamento supe rior e o modelo
tradicional das sociedades. As sociedades anteriores ao indi vidualismo só puderam reproduzirse conferindo à guerra um estatuto supre mo. Devemos desconfiar do nosso reflexo económico
moderno: as guerras imperiais, bárbaras ou feudais, embora permitissem a aquisição de
riquezas, escravos ou territórios, raramente eram empreendidas com um objectivo ex
clusivamente económico. A guerra e os valores guerreiros contribuiram mui to mais para
contrariar o desenvolvimento do mercado e dos valores estrita mente económicos.
Desvalorizando as actividades comerciais que tinham por finalidade o lucro, legitimando a
pilhagem e a aquisição das riquezas pela força, a guerra esconjurava a generalização do valor
de troca e a constitui ção de uma esfera separada da economia. Fazer da guerra um fim
suprema
A Era do Vazio
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176
Guies Lipovetsky
mente valorizado não impede o comércio, mas circunscreve o espaço mer cantil e os fluxos de
moeda, tornando-se secundária a aquisição por via das trocas. Por fim, proibindo a
autonomização da economia, a guerra impedia igualmente o advento do indivíduo livre por si
próprio, que justamente cor responde a uma esfera económica independente, e revelou-se uma
peça in dispensável à reprodução da ordem holista.
O processo de civilização
A linha da evolução histórica é conhecida: no espaço de alguns séculos, as sociedades de sangue
regidas pela honra, a vingança, a crueldade deram pouco a pouco lugar a sociedades
profundamente (<policiadas», em que os actos de violência interindividual não param de
diminuir, em que o uso da força desconsidera aquele que se lhe entrega, em que a cureldade e
as bruta lidades suscitam a indignação e o horror, em que o prazer e a violência se dissociam. A
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partir do século XVIII aproximadamente, o Ocidente passa a ser governado por um processo
de civilização ou de suavização dos costumes de que somos ainda herdeiros e continuadores:
confirma-o, a partir do sécu lo XVIII, a forte diminuição dos crimes de sangue, homicídios,
rixas, golpes e ferimentos confirmam-no o desaparecimento da prática do duelo e a queda do
infanticídio, que, ainda no século XVI, era muito frequente; con firmam-no por fim, na viragem
do século XVIII para o XIX, a renúncia à atrocidade dos suplícios corporais e, a partir do
início do século XIX, a que da do número das condenações à morte e das execuções capitais.
A tese de N. Elias a propósito da humanização dos comportamentos é hoje famosa: de
sociedades em que a belicosidade, a violência para com o outro se afirmavam livremente,
passamos a sociedades em que as impulsões
1 Limitando-nos aos crimes cometidos em Paris e nos seus arredores entre 1755 e 1785, e
julgados pelo Châtelet, as violências não representavam mais de 2,4 por cento das
condenações, os homicídios, 3,1 por cento, enquanto os roubos atingiam quase 87 por cento dos
delitos julga dos. «O lugar maciço ocupado pelos crimes contra os bens situa decididamente
Paris, nos anos 1750-1790, num tipo de criminalidade característico das grandes metrópoles
modernas» (P. Pe trovitch, in Crime ei criminalité en France aux XVIIe ei XVJII .si A. Colin,
1971, p. 208). Esta deslocação de uma criminalidade de violência a uma criminalidade de fraude
parece con firmar-se igualmente, no que que se refere à região normanda, pelos trabalhos
dirígidos por P. Cheunu.
A Era do Vazio
agressivas se encontram recalcadas, refreadas, por se terem tornado incom patíveis com a
«diferenciação» cada vez maior das funções sociais, por um lado, e com a monopolização da
coacção física pelo Estado moderno, por outro Quando não existe qualquer monopólio militar e
policial e quando, por conseguinte, a insegurança é constante, a violência individual, a agressi
vidade é uma necessidade vital. Em compensação, à medida que se desen volve a divisão das
funções sociais e que, sob a acção dos órgãos centrais que monopolizam a força física, se
institui uma ampla segurança quotidia na, o uso da violência individual revela-se excepcional, não
sendo já «nem necessário, nem útil, nem mesmo possível». À impulsividade extrema e de
senfreada dos homens, correlativas das sociedades que precederam o Estado absolutista,
substituiu-se uma regulação dos comportamentos, um «auto- controlo» do indivíduo; em suma, o
processo de civilização que acompanha a pacificação do território realizada pelo Estado
moderno.
Sem dúvida, o fenómeno da suavização dos costumes é inseparável da centralização estatal;
sendo assim, o risco é concebermos esta última como efeito directo e mecânico da pacificação
política. Não é aceitável dizer que os homens «recalcam» as suas pulsões agressivas pelo facto
de a paz civil es tar garantida e as redes de interdependência não pararem de se ampliar, co
mo se a violência não fosse mais do que um instrumento útil à conservação da vida, um meio
vazio de sentido, como se os homens renunciassem «racio nalmente» ao uso da violência a
partir do momento em que a sua segurança está garantida. É esquecer que a violência foi,
desde as épocas mais remo tas, um imperativo determinado pela organização holista da
sociedade, um comportamento de honra e de desafio, não de utilidade. Enquanto as nor mas
prioritárias tiverem prioridade sobre as vontades particulares, enquanto a honra e a vingança
continuarem a prevalecer, o desenvolvimento do apa relho policial, o aperfeiçoamento das
técnicas de vigilância e a intensificação da justiça, ainda quando sensíveis, terão apenas um
178
efeito limitado sobre as violências privadas: temos como prova a questão do duelo, que sabemos
ter sido definido, com os éditos reais do início do século XVII, como um delito passível
oficialmente de acarretar a perda dos direitos e títulos dos infracto res, para além de morte
infamante. Ora, no con.eço do século XVIII, a des peito de uma justiça mais rápida, mais
vigilante, mais escrupulosa, o duelo
1
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N. Elias, La Dynamique de 1Occident, Calmann-Lévy, 1975, p. 195.
178
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
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ainda não desaparecera, nem perto disso; parece mesmo que há então um maior número de
processos por duelo do que uni século antes O desenvol vimento repressivo do aparelho de
Estado só pôde desempenhar o seu papel de pacificação social na medida em que,
paralelamente, se instaurava uma nova economia da relação interindividual e, assim, também
uma nova signi ficação da violência. O processo de civilização não pode ser entendido nem como
um recalcamento nem como uma adaptação mecânica das pulsões ao estado de paz civil: a esta
versão objectivista, funcional e utilitarista, deve mos substituir uma problemática que
reconheça, no declínio das violências privadas, o advento de uma nova lógica social, de um
frente a frente carre gado de um sentido radicalmente inédito na história.
A explicação económica do fenómeno continua a ser igualmente parcial, porque não menos
objectivista e mecanicista: dizer que sob o efeito do au mento das riquezas, do recuo da
miséria, da elevação do nível de vida, os costumes se moderam, é omitir o facto historicamente
decisivo de que a prosperidade enquanto tal jamais foi um obstáculo à violência, nomeada
mente nas classes superiores que souberam conciliar na perfeição o seu gosto do fausto com o
da guerra e da crueldade. Não está na nossa intenção negar o papel dos factores políticos e
económicos que, seguramente, contribuiram de maneira decisiva para o advento do processo de
civilização: queremos di zer que a sua acção é ininteligível independentemente das significações
so ciais históricas que permitiram instaurar. A monopolização da violência legí tima em si ou o
nível de vida quantitativamente determinado, por si sós, não podem explicar directamente o
fenómeno plurissecular da suavização dos comportamentos. No entanto, foram realmente o
Estado moderno e o seu complemento, o mercado, que, de maneira convergente e indissociável,
con tribuiram para a emergência de uma nova lógica social, de uma nova signifi-. cação da
relação inter-humana, tornando-se inelutável, no tempo longo, o declínio da violência privada.
Foi, com efeito, a acção conjugada do Estado moderno e do mercado que possibilitou a grande
fractura que actualmente nos separa para sempre das sociedades tradicionais, o aparecimento
de um tipo de sociedade em que o homem individual se toma como fim último e existe apenas
para si próprio.
Pela centralização efectiva e simbólica que operou, o Estado moderno, a
partir do absolutismo, desempenhou um papel determinante na dissolução, na desvalorização
dos anteriores laços de dependência pessoal e, com isso, no advento do indivíduo autónomo,
livre, desligado dos laços feudais de ho mem a homem e progressivamente de todas as inércias
179
tradicionais. Mas foi igualmente a extensão da economia de mercado, a generalização do
sistema do valor de troca, que permitiu o nascimento do indivíduo atomizado tendo como
finalidade uma busca cada vez mais afirmada como tal do seu interes se privado Á medida que
as terras se compram e se vendem, que a pro priedade fundiária se torna uma realidade social
largamente difundida, que as trocas mercantis, o salariato, a industrialização e as deslocações
popula cionais se desenvolvem, produz-se uma transformação das relações do ho mem com a
comunidade que o enquadra, uma mutação que se pode resumir numa palavra, individualismo,
caminhando a par de uma aspiração sem precedentes pelo dinheiro, a intimidade, o bem-estar,
a propriedade, a segu rança, e subvertendo inconstestavelmente a organização social
tradicional. Com o Estado centralizado e o mercado, surge o indivíduo moderno, consi derandose a si próprio isoladamente, absorvendo-se na dimensão privada, recusando a submeter-se às
regras ancestrais exteriores à sua vontade ínti ma, não reconhecendo já como lei fundamental
senão a sua sobrevivência e o seu interesse próprio.
E é precisamente esta transformação da relação imemorial do homem com a comunidade que
vai funcionar como o agente por excelência da paci ficação dos comportamentos. A partir de
entáo, a prioridade do conjunto oficial apaga-se em benefício do interesse e das vontades das
partes indivi duais, os códigos sociais que fixavam o homem às solidariedades de grupo já não
podem subsistir: cada vez mais independente em relação às imposições colectivas, o indivíduo
já não reconhece como dever sagrado a vingança de sangue que, durante milénios, permitiu
soldar o homem à sua linhagem. Não foi apenas através da lei e da ordem pública que o Estado
conseguiu eliminar o código da vingança; de modo igualmente radical, foi o processo
individualista que, pouco a pouco, minou a solidariedade vingadora. En quanto nos anos 18751885, a taxa média de homicídio para cem mil habi Sobre as correlações entre Estado,
mercado e indivíduo, ver Marceí Gauchet e Gladys
Swain, La Pratique de lespri! humain, op. cit., pp. 387-396, e M. Gauchet ‘ !‘Amérique et nous»,
in Libre, 1980, n’o 7, pp. 104i06 Ver também Pierre Rosauvailon, Le Capitalisme Utopique. Ed.
du Seuil, 1979, pp. 113-124.
a. F. Biltacois, «Le Pariement de Paris et es duek au XVII° siécle, in Crime et crimina Iité en
France aux XVIP’ e XVHfr siècle
180
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
181
tante, em França, se fixava à volta de um, na Córsega era quatro vezes su perior; a mesma
distância acentuada se registava em Itália entre o Norte e o Sul, este último com uma taxa
muito elevada de homicídios: onde a família conserva a sua força antiga, a prática da vendetta
continua a ser mortífera a despeito da importância dos aparelhos repressivos do Estado.
Através do mesmo processo, o código de honra sofre uma mutação deci siva: quando o ser
individual se define cada vez mais pela relação com as coisas, quando a busca de dinheiro, a
paixão do bem-estar e da propriedade levam a melhor sobre o estatuto e o prestígio social, o
ponto de honra e a susceptibilidade agressiva atenuam-se: a vida torna-se valor supremo e o im
perativo de não perder a cara torna-se fraco. Já não é vergonhoso não res ponder à ofensa ou
à injúria: a uma moral da honra, fonte de duelos, de be licosidade permanente e sangrenta,
substituíu-se uma moral da utilidade própria, da prudência, em que o encontro do homem com o
180
homem se faz essencialmente sob o signo da indiferença. Se, na sociedade tradicional, o outro
surge imediatamente ,como amigo ou inimigo, na sociedade moderna, indentifica-se geralmente
com um estranho anónimo que não merece sequer o risco da violência. «Domínio de si próprio:
evita os extremos; evita levar muito a peito as ofensas, porque estas nunca são o que parecem
à primeira vista», escrevia Benjamin Franklin: o código da honra deu lugar ao código pacífico da
«respeitabilidade»; pela primeira vez na história, instaura-se uma civilização em que já não é
de rigor responder aos desafios, em que o juízo do outro importa menos do que o meu
interesse estritamente pessoal, em que o reconhecimento social se dissocia da força, do
sangue e da morte, da violência e do desafio. Mas geralmente, é a uma redução da dimensão do
desafio interpessoal que se aplica o processo individualista: a lógica do desa fio, que é
inseparável do primado holista e que, durante milénios, socializou os indivíduos e os grupos num
frente a frente antagónico, sucumbe a pouco e pouco, tronando-se uma relação anti-social.
Provocar o outro, esclarecê-lo, esmagá-lo simbolicamente, este tipo de relação está destinado
a desaparecer quando o código da honra dá lugar ao culto do interesse individual e da pri vacy.
À medida que se eclipsa o código da honra, a vida e a sua conservação afirmam-se como ideais
primeiros, enquanto o risco da morte deixa de ser um valor, bater-se deixa de ser uma glória, e
o indivíduo atomizado se em penha cada vez menos em discussões, rixas, confrontos
sangrentos, não por ser «auto-controlado», mais disciplinado do que os seus avós, mas porque a
violência já não tem sentido social, já não é meio de afirmação e de reconhe
cimento do indivíduo num tempo em que a sacralização investiu a longevida de, a poupança, o
trabalho, a prudência, a medida. O processo de civiliza ção não é efeito mecânico do poder ou
da economia, coincide com a emer gência de finalidades sociais inéditas, com a desagregação
individualista do corpo social e com a nova significação da relação interhumana baseada na
indiferença.
Com a ordem individualista, os códigos de sangue são desinvestidos, a violência perde toda a
dignidade ou legitimidade social, os homens renun ciam maciçamente a usar da sua força
privada para resolverem os seus dife rendos. Deste modo, esclarece-se a verdadeira função do
processo de civiliza ção: como Tocqueville já mostrara, à medida que os homens se retiram para
a sua esfera privada e só a si próprios se têm em vista, não param de recor rer ao Estado a fim
de este garantir uma protecção mais vigilante, mais constante da sua existência. É
essencialmente no sentido de aumentar as prer rogativas e o poder do Estado que o processo
de civilização opera: o Estado policial não é apenas efeito de uma dinâmica autónoma do
«monstro frio», é desejado pelos indivíduos doravante isolados e pacíficos, ainda que estes de
nunciem regularmente a sua natureza repressiva e os seus excessos. Multipli cação das leis
penais, aumento dos efectivos e dos poderes da polícia, vigi lância sistemática das populações,
são os efeitos inelutáveis de uma socieda de em que a violência é desvalorizada e em que
simultaneamente aumenta a necessidade de segurança pública. O Estado moderno criou o
indivíduo so cialmente desligado dos seus semelhantes, mas este cria, em contrapartida, pelo
seu isolamento, a sua ausência de belicosidade, o seu medo da violên cia, as condições
constantes de desenvolvimento da força pública. Quanto mais os indivíduos se sentem livres,
mais pedem uma protecção regular e sem falhas por parte dos órgãos estatais; quanto mais
abominam a brutali dade, mais necessário se torna o aumento das forças de segurança: a huma
nizaçáo dos costumes pode assim interpretar-se como um processo visando desapossar o
indivíduo dos princípios refractários à hegemonia do poder to tal, ao projecto de colocar a
sociedade inteira sob a tutela do Estado.
181
Inseparável do individualismo moderno, o processo de civilização não de ve, no entanto, ser
atribuído à revolução democrática concebida como disso lução do universo hierárquico e
advento do reino da igualdade. Sabe-se que na problemática tocquevilliana, é a «igualdade das
condições» que, reduzin do as dissemelhanças ditas de natureza entre os homens, instituindo
uma identidade antropológica universal, explica a suavização dos costumes, a re
182
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
183
gressão do emprego da violência interpessoal. Em séculos de desigualdade, não existindo a ideia
de semelhança entre os homens, a compaixão, a aten ção para com os que pertencem a uma
casta consíderada heterogénea, têm poucas probabilidades de se desenvolver; em
compensação, a dinâmica igua litária, produzindo uma identidade profunda entre todos os
seres, tornados doravante membros iguais de uma mesma humanidade homogénea, favorece a
identificação com a infelicidade ou a dor do outro e, desse modo, opõe-se aos excessos da
violência e da crueldade A esta interpretação, que tem o mérito de analisar a violência em
termos de lógicas e significações sociais históricas, devemos, contudo, objectar que a
crueldade e a violência dos tempos hierárquicos não se afirmava apenas entre indivíduos de
ordens dife rentes: os «iguais» eram também vítimas de uma violência não menos cruel. Os
ódios de sangue não eram tanto mais fortes quanto mais próximos e se melhantes eram os
seres humanos neles envolvidos? Assim as denúncias por feitiçaria dos séculos XVI e XVII
incidiam quase exclusivamente sobre pes soas que os acusadores conheciam bem, vizinhos e
iguais; os duelos e ven dettas desenrolavam-se essencialmente entre pessoas da mesma
condição. Se, entre iguais, a violência e a crueldade não eram menores, isso significa que não é
da igualdade, concebida como estrutura moderna de apercepção do outro enquanto «mesmo»,
que devemos partir para tornarmos inteligível a pacificação dos indivíduos. A civilização dos
comportamentos não surge com a igualdade, mas com a atomização social, com a emergência de
novos valo res privilegiando a relação com as coisas e a desafecção concomitante dos códigos
da honra e da vingança. Não é o sentimento de semelhança entre os seres que explica o declínio
das violências privadas; a crueldade começa a causar horror, as rixas tornam-se sinal de
selvajaria quando o culto da vida privada suplanta as prescrições holistas, quando o indivíduo se
retrai e fecha em si próprio, cada vez mais indiferente aos juízos dos outros. A este título, a
humanização da sociedade não passa de uma das expressões do processo de dessocialização
característico dos tempos modernos.
Apesar de tudo, tendo ligado a moderação dos comportamentos moder nos à promoção
democrática da iden4ficação entre os seres, Tocqueville sou be conduzir-nos ao coração do
problema. Num povo democrático, cada in divíduo sente espontaneamente a miséria do outro:
«Pouco importará que se
A. de Tocqueville, De la démocratie en Amérique, Gaflimard, 1961, t. 1, vol. II, pp. 171-175, e o
comentário de M. Gauchet, art. citado, sobretudo pp. 95-96.
trate de estrangeiros ou inimigos: a imaginação põe-no imediatamente no seu lugar. Mistura
qualquer coisa de pessoal à sua piedade e fá-lo sofrer en quanto o corpo do seu semelhante é
dilacerado» Contrariamente ao que pensava Rousseau, a «piedade» não ficou para trás de nós
no passado; é obra daquilo que, segundo ele pensava, a excluia, a saber, a atomização in
182
dividualista. O retraimento do indivíduo em si próprio, a privatização da vi da, longe de
abafarem a identificação do outro, estimulam-na. Temos que pensar conjuntamente o indivíduo
moderno e o processo de identificação, e este só tem verdadeiro sentido onde a
dessocialização libertou já o indivíduo dos seus laços colectivos e rituais, onde o sujeito e o
outro podem encontrar- se como indivíduos autónomos num frente a frente independente dos
mode los sociais pré-estabelecidos. Inversamente, pela preeminência atribuida ao todo social, a
organização holista constitui um obstáculo à identificação in tersubjectiva. Enquanto a relação
interpessoal não consegue emancipar-se das representações colectivas, a identificação não se
opera entre mim e ou trém, mas entre mim e uma imagem de grupo ou modelo tradicional. Nada
de semelhante encontramos na sociedade individualista que tem como conse quência tornar
possível uma identificação estritamente psicológica, quer di zer, implicando pessoas ou imagens
privadas, uma vez que já nada dita im perativamente e desde sempre o que deve ser feito, dito,
acreditado. Parado xalmente, é à força de se considerar de modo isolado, de viver para si pró
prio, que o indivíduo se abre à infelicidade do outro. Quanto mais o indiví duo existe como
pessoa privada, mais sente a aflição ou a dor do outro; o sangue, os ataques à integridade do
corpo tornam-se espectáculos insuportá veis, a dor surge como uma aberração caótica e
escandalosa, a sensibilidade tornou-se uma característica permanente do homo clausus. O
individualismo produz, por conseguinte, dois efeitos inversos e, todavia, complementares: a
indiferença ao outro e a sensibilidade à dor do outro: «Nos séculos democrá ticos, os homens
raramente se dedicam uns aos outros, mas mostram uma compaixão geral por todos os
membros da espécie humana»
Poderemos ignorar esta nova lógica social quando queremos compreender o processo de
humanização dos castigos que se inicia na charneira entre o século XVIII e o século XIX? Sem
dúvida, temos que ligar esta mutação pe nal ao advento de uni novo dispositivo do poder cuja
vocação já não é, como
1 A. de Tocqueville, ibid., p. 174.
2 Michel Foucault, Surveiller et punir, Gailimard, 1975.
184
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
185
foi o caso desde a origem dos Estados, afirmar na violência inumana dos suplícios a sua
superioridade eminente, a sua força soberana e desmedida, mas, pelo contrário, administrar e
penetrar lentamente a sociedade, quadri culando-a de forma contínua, comedida, homogénea,
regular, até aos seus pontos mais recônditos’. Mas a reforma penal não teria sido possível sem
a deslocação profunda da relação com o outro suscitada pela revolução indivi dualista,
correlativa do Estado moderno. Um pouco por todo o lado, na se gunda metade do século
XVIII, elevam-se protestos contra a atrocidade dos castigos corporais, estes começam a
tornar-se socialmente ilegítimos, a ser assimilados à barbárie. Aquilo que desde sempre parecia
natural, é agora escandaloso: o mundo individualista e a identificação específica com o outro
que ele engendra, constituiu o quadro social adaptado ao abandono das prá ticas legais da
crueldade. Precisamos de ter cuidado com o «tudo é política», ainda quando se distribui por
estratégias microscópicas: a humanização das penas não teria podido adquirir semelhante
legitimidade, não teria podido desenvolver-se com uma tal lógica na longa duração se não
183
tivesse coincidido ao nível mais profundo com a nova relação de homem a homem instituída pelo
processo individualista. Não é necessário retomar a questão das priori dades: o Estado e a
sociedade trabalham paralelamente na afirmação do princípio da moderação das penas.
A escalada da pacjficação
Que se passa com o processo de civilização no momento em que as socie dades ocidentais se
vêem regidas de maneira preponderante pelo processo de personalização? Apesar do leitmotiv
actual do crescimento da insegurança e da violência, é claro que a época do consumo e da
comunicação apenas continua por outros meios o trabalho inaugurado pela lógica estatal-individualista precedente. A estatística criminal, por imperfeita que seja, aponta nesse
sentido; na longa e média duração, as taxas de homicídio per manecem relativamente estáveis:
memo nos EVA, onde a taxa de homicídio é excepcionalmente elevada — embora muito menos
elevada do que em páí ses como a Colômbia e a Tailândia —, a taxa de 9 vítimas por 100 000
habi tantes atingida em 1930 mal chegou a ser ultrapassada em 1974 com 9,3. Em França, a
taxa de homicídio oficial (sem tomarmos, portanto, em consj
deração os «números negros») era de 0,7 em 1876-1880; de 0,8 em 1972. Em 1900-1910, a
taxa de mortalidade por homicídio em Paris era de 3,4 contra
1,1 em 1963-1966. A era do consumo acentua a pacificação dos comporta mentos e, em
particular, faz diminuir a frequência das rixas e da violência física: nos departamentos do Sena
e do Norte, as taxas das condenações por pancadas e ferimentos em 1875-1885 elevavam-se
respectivamente a 63 e a 110 para 100 000 habitantes; em 1975, fixavam-se à volta de 38 e
56. No sé culo da industrialização e até uma data recente, tanto em Paris como na província, as
rixas eram moeda corrente entre a classe operária, classe com um sentido da honra
susceptível, fiel ao culto da força. Mesmo as mulheres, a darmos crédito a certos jaits divers
referidos por L. Chevalier e às descri ções de Vallès e de Zola, não hesitavam em recorrer às
injúrias e às mãos para resolverem as suas disputas. Nos nossos dias, a violência desaparece
maciçamente da paisagem urbana, tornando-se, ao mesmo título e mais ain da do que a morte, o
interdito maior das nossas sociedades. As próprias classes populares renunciaram à tradicional
valorização da força e adopta ram um estilo coo! de comportamento — é esse o verdadeiro
sentido do «aburguesamento» da nossa sociedade. O que nem a educação disciplinar nem a
autonomia pessoal conseguiram realizar efectivamente, consegue-o a lógica da personalização
ao estimular a comunicação e o consumo, sacrali zando o corpo, o equilíbrio e a saúde,
destruindo o culto do herói, desculpa bilizando o medo, em suma instituindo um novo estilo de
vida, novos valo res, e levando ao seu ponto culminante a individualização dos seres, a re
tracção da vida pública, o desinteresse pelo Outro.
Cada vez mais fechados nas suas preocupações privadas, os indivíduos pacificam-se não por
ética, mas por hiper-absorção individualista: em socie dades que promovem o bem-estar e a
auto-realização, os indivíduos, com to da a evidência, sentem-se mais desejosos de se
descobrirem a si próprios, de se auscultarem, de «descarregarem» por meio de viagens, de
músicas, de desportos, de espectáculos, do que de se confrontarem fisicamente. A repul sa
profunda e geral dos nossos contemporâneos perante os comportamentos violentos é função
desta disseminação hedonista e informacional do corpo social realizada pelo reino do
automóvel, dos media, dos tempos livres. E a época do consumo e da informação que, além
disso, faz declinar um certo tipo de alcoolismo,os rituais do café, lugar sem dúvida de uma nova
sociabi
184
Michel Foucault, Surveji/er ei punir, Gailimard, 1975.
1 Louis Chevalier, Montmartre du plaisir ei du crime. Laffont, 1980.
186
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
187
lídade masculina no século XIX e até meio do século XX, como bem diz Ariès, mas igualmente
lugar entre todos favorável ao desencadear da violên cia: na viragem do século, um delito de
agressão em cada dois deve ser atri buído ao estado de embriaguez. Dispersando os indivíduos
através da lógica dos objectos e dos media, levando-os a desertar do café (pensamos evidentemente aqui no caso francês) em benefício da existência consumidora, o pro cesso de
personalização destruiu lentainente as normas de uma sociabilidade viril responsável por um
alto nível de criminalidade violenta.
Paralelamente, a sociedade de consumo completa a neutralização das re lações inter-humanas;
a indiferença pelo destino e pelos juízos do outro ad quire então toda a sua extensão. O
indivíduo renuncia à violência não só porque apareceram novos bens e fins privados, mas porque,
no mesmo mo vimento, o outro se torna dessubstancialjzado, um «figurante» sem importân cia
1, quer seja membro afastado do grupo familiar restrito, vizinho de pata- mar ou colega de
trabalho. É este discount da relação inter-humana reforça do pelo hiper-investimento
individualista ou narcísico que se encontra na ori gem do declínio dos actos de violência.
Indiferença pelos outros de um géne ro novo, devemos acrescentar, porque simultaneamente as
relações interindi viduais não param de ser reestruturadas, modeladas pelos valores psicologis
tas e comunicacionais. Tal é o paradoxo da relação interpessoal na socieda de narcísica: cada
vez menos interesse e consideração pelo outro e, todavia, cada vez maior desejo de comunicar,
de deixar de lado a agressividade, de compreender outrém. Convivialidade psi e indiferença
pelos outros desenvol vem-se hoje juntamente; nestas condições, como poderia a violência
deixar de recuar?
Enquanto a violência física interindiyjduaj regride inelutavelmente, a vio É precisamente onde a
relação inter-humana não se institui na base da indiferença, a
saber, no interior do meio familiar ou das pessoas mais chegadas, que a violência é mais fre
quente. Nos EUA, em 1970, um homicídio em cada quatro era de tipo familiar; em Inglaterra,
no final dos anos sessenta, mais de 46 por cento de todos os homicídios eram assassinatos de
ti- po doméstico ou visando pessoas chegadas; nos Estados-Unidos, o número total de vítimas
de violências familiares (mortes, golpes e ferimentos) era em 1975 da ordem de oito milhões
(cerca de 4 por cento da população). Cf. J. C. Chesnais, Histoire da la violence, Laffont, col.
«Pluriel», 1981, pp. 100-107. A violência de sangue é tributária da ordem narcísica das nossas
sociedades que estreitam e intensificam o campo das relações privadas; nestas condições,
desencadeia-se prioritariamente contra aqueles que nos abandonam ou enganam, aqueles que
ocupam a nossa proximidade mais íntima, aqueles que suportamos quotidianamente na mesma
casa.
lência verbal sofre, também ela, o choque narcísico. Deste modo as injúrias com um sentido
social, tão frequentes no século xviii (vadio, piolhoso, esfo meado, porco) deram lugar a insultos
de carácter mais « o mais das vezes de índole sexual. Da mesma maneira, os insultos como
185
cuspir no rosto ou à passagem de alguém desapareceram, incompatíveis que são com as nos sas
sociedades higiénicas e indiferentes. De um modo geral, o insulto banali zou-se, perdeu a sua
dimensão de desafio e designa menos uma vontade de humilhar o outro do que um impulso
anónimo desprovido de intenções beli cosas e, por isso, raramente seguido de embate físico: o
indivíduo que, ao volante do seu automóvel, injuria um outro condutor, não deseja de maneira
nenhuma rebaixá-lo, e o indivíduo que é objecto do insulto não se sente, no fundo, minimamente
lesado. Num tempo narcísico, a violência verbal des substancializou-se, já não tem significação
interindividual, tornou-se hard, quer dizer sem fim nem sentido, violência impulsiva e nervosa,
dessocializa da.
O processo de personalização é um operador de pacificação generalizada; de acordo com o seu
registo, as crianças, as mulheres, os animais deixam de ser os alvos tradicionais da violência
que continuavam ainda a ser no século XIX e, por vezes, na primeira metade do século XX.
Através da valorização sistemática do diálogo, da participação, da escuta do pedido subjectivo,
que a sedução pós-moderna põe a funcionar, é o próprio princípio da correcção física, mantido
ou até reforçado pela era das disciplinas, que se vê rejeitado pelo processo educativo, O
eclipse dos castigos corporais resulta da promo ção de modelos educativos à base de
comunicação recíproca, de psicologiza ção das relações no momento em que os pais justamente
deixam de se reco nhecer como modelos a imitar pelos seus filhos. O processo de personaliza
çáo dilui todas as grandes figuras da autoridade, mina o princípio de ex emplo, demasiado
tributário de uma era distante e autoritária que sufocava as espontaneidades singulares,
dissolve por fim as convicções em matéria de educaçáo: a essubstancialização narcísica
manifestava-se no centro da famí lia nuclear como impotência, desapropriaçãO e demissão
educativa. A puni ção física que, ontem ainda, tinha uma função positiva na aprendizagem e
transmissão das normas, já não passa de um malogro vergonhoso e culpabi lizador da
comunicação entre pais e filhos, de um último impulso descontro lado, em desespero de
autoridade.
A campanha em torno das mulheres espancadas desenvolve-se e encontra o eco que sabemos à
medida que a violência masculina regride nos usos,
188
Gil/es Lipovetsky A Era do Vazio
189
desqualificada por um tempo «transsexual» em que a virilidade deixa de ser associada à força
e a feminilidade à passividade. A violência masculina era a actualização e a reafirmação de um
código de comportamento que assentava na divisão imemorial dos sexos: este código vê-se
desafectado quando, sob o efeito do processo de personalização, o masculino e o feminino já
não têm nem definições rigorosas nem lugares marcados, quando o esquema da supe rioridade
masculina é rejeitado por todos os lados, quando o princípio da autoridade musculada dá lugar
ao imaginário da livre disposição de si pró prio, do diálogo psi, da vida sem entraves nem
compromissos definitivos. Ê verdade que resta a questão da violação: em França, 1 600
violações foram registas em 1978 (3 violações por 100 000 habitantes), mas é verosímil que
tenham sido cometidas realmente perto de 8 000 (números negros); nos EUA, com mais de 60
000 violações, a taxa atinge valores extremos: 29 por 100 000 habitantes. Na maior parte dos
países desenvolvidos, regista-se um número crescente de violações sem que seja possível,
porém, determinar se esta elevação resulta de um aumento efectivo das agressões sexuais ou
186
de urna desculpabilização das mulheres violadas, permitindo-lhes declarar mais facilmente as
violências sofridas: na Suécia, o número das violações mais que duplicou num quarto de século;
nos EUA, a sua frecjência quadrupli cou entre 1957 e 1978. Em contrapartida, desde há um
século, tudo parece indicar uma queda muito sensível da violência sexual: a frequência da viola
ção em França seria cinco vezes menor do que durante a década de 1870 1• A despeito do
agravamento relativo da violência sexual, o processo coo! de personalização continua a moderar
os comportamentos masculinos, sendo o recrudescjrnento do número das violações
acompanhado pela sua relegação para uma população afinal muito circunscrita: por um lado, os
acusados recrutam-se em grande número nos grupos raciais e culturais (nos EUA, quase
metade das detenções têm por objecto indivíduos negros), por outro lado, não podemos ignorar
que pelo menos uma terça parte dos violadores, em França, são reincidentes.
Por fim, a relação com os animais foi também anexada pelo processo de civilização. Se as leis
de 1850 e 1898 permitiam em teoria punir as violências contra os animais, sabe-se que foram
letra morta e que, na realidade, esse tipo de crueldade estava longe de ser unanimemente
condenado. No século
XIX, a brutalidade nos matadouros era coisa corrente; os combates de ani mais eram dos
espectáculos favoritos dos operários, «punham-se os perús a dançar em cima de placas de
ferro aquecidas, atiravam-se pedras a pombos fechados em caixas com a cabeça de fora a
servir de alvo» 1 Todo um mun do nos separa desta sensibilidade; nos nossos dias as sevícias
sobre os ani mais são maciçamente condenadas, de toda a parte se levantam protestos contra a
caça e as touradas, contra as condições de criação do gado, contra certas normas de
experimentação científica. Mas em sector algum a humani zaçáo é mais visível do que entre as
crianças, que, facto único na história, já não tomam prazer em brincadeiras, outrora naturais,
que consistiam em tor turar os animais. Se o individualismo moderno foi acompanhado pela liber
tação do mecanismo da identificação com outrém, o individualismo pós- moderno tem como
característica o alargamento desta identificação para lá da ordem humana. Identificação
complexa que deve ser ligada à psicologiza ção do indivíduo:à medida que este se «personaliza»,
as fronteiras que sepa ram o homem do anin esbatem-se, toda a dor, ainda que experimentada
por um animal, se torna insuportável ao indivíduo doravante constitutiva- mente frágil, abalado,
horrorizado pela simples ideia de sofrimento. Organi zando o indivíduo como estrutura mole e
psi, o narcisismo aumenta a recep tividade relativamente ao exterior; a humanização dos
costumes que, de res to, é acompanhada por uma indiferença igualmente sistemática, como
comprovam as vagas de abandonos de animais durante as mígrações de ve rão, deve ser
interpretada como uma nova vulnerabilidade, uma nova inca pacidade dos homens de se
confrontarem com a provação da dor.
Prova de certo modo incontornável desta moderação sem precedentes da sociedade, em 1976,
95 por cento dos Franceses afirmavam não ter sofrido ao longo do mês no termo do qual foram
inquiridos qualquer violência; mais ainda, os interrogados afirmavam que, ao longo desse mês,
nenhum membro da sua família (87 por cento) ou nenhum conhecido (86 por cento) fora víti ma
de qualquer agressão. De maneira que nem o aumento de uma nova cri minalidade violenta, nem
os tumultos nos estádios ou nos bailes de sábado à noite devem ocultar-nos o pano de fundo
sobre o qual se destacam: a violên cia física entre indivíduos torna-se cada vez mais invisível,
transformou-se numa colecção defait divers traumatizantes. Isto não impedia que, no mes mo
momento, dois indivíduos em cada três pensassem que os comportamen
187
J.-C. Chesnais, ibid., pp. 181-188.
Théodore Zeldin, Histoire des passions françaises, Ed. Recherches, 1979, t. V, p. 180.
190
Guies Lipovetsky A Era do Vazio
191
tos violentos eram hoje mais comuns que num passado próximo ou no come ço do século. Sabese que, em todos os países desenvolvidos, o sentimento de insegurança aumenta; em França, 80
por cento da população sente aguda- mente um acréscimo de violência; 73 por cento
reconhecem ter medo de vol tar a pé à noite para casa; um indivíduo em cada dois receia andar
à noite de carro numa estrada secundária. Na Europa, como nos EUA, a luta con tra a
criminalidade ocupa o primeiro lugar entre as preocupações e priorida de do público.
Deveremos então, dado este divórcio entre os factos e o vivi do, considerar a insegurança
actual como uma ilusão, uma maquinação do poder servindo-se dos media como intermediários,
exportando uma falsa consciência a fim de assegurar o seu controlo social num período de crise
e de decomposição ideológica? Mas como e porque é que esta «ideologia» con segue introduzirse na sociedade? É levar em pouca conta as transformações profundas da sociedade civil e da
relação com a violência delas decorrente. De facto, o sentimento de insegurança cresce,
alimentando-se do mais pe quenofait divers e isto independentemente das campanhas de
intoxicação. A insegurança actual não é uma ideologia, está inelutavelmente correlacionada com
um indivíduo desestabilizado e desarmado que amplifica todos os ris cos, se sente obcecado
pelos seus problemas pessoais, exasperado por um sistema repressivo considerado inactivo ou
«demasiado» c um indiví duo que se habituou a ser protegido e se sente traumatizado por uma
violên cia de que nada sabe: a insegurança quotidiana resume sob uma forma an gustiada a
dessubstancialização pó-moderna. O narcisismo, inseparável de um medo endémico, só se
constitui afirmando um exterior exageradamente ameaçador, o que, por seu turno, só pode
alargar a gama dos reflexos indi vidualistas: actos de auto-defesa, indiferença pelo outro,
aprisionamento em casa; enquanto um número não desprezível de habitantes das grandes cida
des se abrigam já por trás da sua porta blindada e renunciam a sair à noite, apenas 6 por cento
dos Parisienses interviriam se ouvissem à noite chamar por socorro.
Curiosamente, a representação da violência torna-se tanto mais exacerba da quanto mais a
violência regride na sociedade civil. No cinema, no teatro, na literatura, assistimos, com efeito,
a uma profusão de cenas de violência, a um deboche de horror e atrocidade sem precedentes;
nunca a «arte» se em penhou tanto em mostrar de tão perto a própria textura da violência,
violên cia hi-fi feita de cenas insuportáveis de ossos esmagados, jactos de sangue, gritos,
decapitações, amputações, castrações. Deste modo, a sociedade coo! é
acompanhada pelo estilo hard, pelo espectáculo em trompe !‘oei! de uma violência hiper-realista.
Não daremos conta desta pornografia do atroz a partir de qualquer necessidade sádica
recalcada pelas nossas sociedades de puradas; mais vale que registemos a radicalidade de
representações doravan te autónomas e, portanto, votadas a um puro processo maximalista. A
for ma hard não exprime a pulsão, não compensa uma falta, como também não descreve a
natureza intrínseca da violência pós-moderna; quando já não há nenhum código moral a
transgredir, resta a fuga para diante, a espiral ex tremista, o requinte do pormenor pelo
188
pormenor, o hiperrealismo da violên cia, tendo por único objectivo a sideração e a sensação
instantâneas.
E por isso que é possível identificar a presença do processo hard em to das as esferas, o sexo
(a pornografia; a prostituição de crianças cada vez mais jovens: em Nova York calcula-se em
perto de doze mil o número de ra pazes e raparigas com menos de dezasseis anos nas mãos dos
proxenetas), a informação (o frenesim do «directo»), a droga (com a sua escalada de priva ção
e de doses), os sons (a corrida aos decibéis), a «moda» (punks, ski nheads, couro), o ritmo (o
rock), o desporto (doping e super-preparação dos atletas; eclosão da prática do karaté; bodybuilding feminino com a sua fe bre de músculo); longe de ser uma moda mais ou menos
aleatória, o efeito hard é correlativo da ordem coo!, da desestabilização e da dessubstancializa
ção narcísica, ao mesmo título que o efeito humorístico, que representa a fa ce oposta, mas
logicamente homóloga. À dissolução gradual dos pontos de referência maiores, ao vazio do
hiper-individualismo, corresponde uma radi calidade sem conteúdo dos comportamentos e
representações, uma subida aos extremos nos signos e habitus do quotidiano; por toda a parte
o mesmo processo extremista está em acção, o tempo das significações, dos conteúdos
pesados vacila: vivemos a época dos efeitos especiais e da performance pura. da exasperação e
da amplificação vazias.
Crimes e suicídios: violências hard
A paisagem da violência não deixou de se alterar com o advento das so ciedades governadas
pelo processo de personalização. Se, no prolongamento dos séculos XVIII e XIX, os crimes
contra os bens (assaltos, roubos) e a delin quência astuciosa (escroquerie...) continuam a levar
de longe a melhor, em todos os países ocidentais, sobre os crimes contra as pessoas, resta o
facto de
192
Guies Lipovetsky
que a grande criminalidade deu um facto social inédito: em França, entre 1963 e 1976, os hoidups aumentaram 35 vezes; entre 1967 e 1976, 5 vezes mais roubos à mão armada e 20 vezes
mais hoid-ups foram cometidos. Sem dúvida, a partir de 1975, este tipo de criminalidade
parece ter encontrado uma espécie de ponto de equilíbrio e em números absolutos deixa de
apre sentar progressões espectaculares; não é menos verdade que o assalto à mão armada
representa hoje uma figura maior da violência urbana.
Se o processo de personalização suaviza os costumes da maioria, inversa mente endurece os
comportamentos criminosos dos desqualificados, favorece a emergência de actos energúmenos,
estimula a subida aos extremos no emprego da violência. Do desenquadramento individualista e
da desestabili zação actual suscitada nomeadamente pela solicitação das necessidades e pe la
sua frustração crónica, resulta uma exacerbação cínica da violência ligada ao ganho, na
condição de precisarmos prontamente os limites deste fenóme no, circunscrito a um número em
última análise reduzido de indivíduos que acumulam as agressões: na capital federal dos
Estados Unidos, 7 por cento dos criminosos detidos num período de quatro anos e meio foram
presos quatro vezes, e esses 7 por cento eram os presumíveis culpados de 24 por cento de
todos os crimes graves perpetrados ao longo dos mesmos anos.
Outrora, o grande banditismo referia-se sobretudo a uma população liga da ao proxenetismo,
ao racket, ao tráfico de armas eÂe estupefacientes; ho je assistimos a uma enchente ou
189
«desprofissionalização» do crime, quer dizer à emergência de uma violência cujos autores,
muitas vezes desconhecidos dos serviços da polícia, não têm qualquer familiaridade com o
«meio». A vio lência criminosa, de acordo com a flutuação generalizada, estende-se, perde as
suas fronteiras estritas, incluindo no que diz respeito aos grupos etários:
em França, em 1975, em cem pessoas que respondiam perante a justiça por actos de
criminalidade grave, dezoito eram menores; 24 por cento dos auto res de hoid-ups e de roubos
à mão armada tinham menos de vinte anos; nos EUA, 57 por cento dos auto.res de crimes
violentos tinham, em 1979, menos de vinte e cinco anos e ui em cada cinco menos de dezoito
anos. A delin quência juvenil não se desenvolveu muito em volume, mas tornou-se mais violenta.
O processo de personalização que generaliza o culto da juventude pacífica os adujtos, mas
endurece os mais novos, que, de acordo com a lógi ca hiper-individualista, tendem a afirmar
cada vez mais cedo, cada vez mais depressa, a sua autonomia, tanto material como psicológica,
mesmo que através do emprego da violência.
A Era do Vazio 193
O mundo hard é jovem e toca em primeira linha os desenraízados cultu rais, as minorias raciais,
imigrados e filhos de famílias imigradas. A ordem do consumo pulveriza muito mais
radicalmente as estruturas e personalidade tradicionais do que o pôde fazer a ordem racista
colonial: doravante o que caracteriza o retrato do «colonizado» é menos a inferiorização do
que uma desorganização sistemática da sua identidade, uma desorientação violenta do ego
suscitada pela estimulação de modelos individualistas eufóricos que con vidam a viver
intensamente. Por toda a parte, o processo de personalização desmantela a personalidade; no
jardim da fachada, temos a dispersão narcí sica e pacífica; nas traseiras, a explosão
energúmena e violenta. A sociedade hedonista produz sem dar por isso um composto explosivo
quando se imbri ca, como é aqui o caso, num universo de honra e de vingança à deriva. A
violência dos jovens excluídos em razão da cor ou da cultura é um patch work, resulta do
choque entre o desenquadramento personalizado e o en quadramento tradicional, entre um
sistema à base de desejos individualistas, de profusão, de tolerância e uma realidade
quotidiana de ghettos, de de semprego, de desocupação, de indiferença hostil ou racista. A
lógica coo! prossegue por outros meios o trabalho plurissecular da exclusão e da relega ção; não
já através da exploração ou da alienação decorrente da imposição autoritária das normas
ocidentais, mas através da criminalização.
Quando, em 1975, não representavam mais de 8 por cento da população francesa, os
estrangeiros eram responsáveis por 26 por cento dos roubos acompanhados de violência, 23
por cento dos espancamentos e ferimentos, 20 por cento dos homicídios, 27 por cento das
violações, 26 por cento das condenações por porte de arma indevido. Em 1980, em Marselha,
32 por cento das agressões e ferimentos e 50 por cento dos roubos acompanhados de violência
foram obra de jovens estrangeiros, o mais das vezes maghrebi nos: se observarmos que os
jovens nascidos de famílias imigradas, mas eles próprios já de nacionalidade francesa, não
figuram nestes números, sendo evidentemente contabilizados na estatística criminal francesa,
podemos ima ginar a representação muito forte, no conjunto de todos os grupos, dos imi grados
e filhos de imigrados nos actos de vio’ência, proporção que não se ex plica unicamente pelo
facto de a polícia ou a justiça investigarem, prende rem e condenarem mais facilmente os
«estrangeiros» do que os autóctones. Nos Estados-Unidos, onde de maneira geral a violência é
190
considerável — há um acto de violência em cada sete segundos, ao que se diz —, os Negros en
contram-se igualmente super-representados nos crimes violentos, quer como
194
Gil/es Lipovetsky 1 A Era do Vazio
195
agressores quer como vítimas. Com efeito, em larga medida, os actos violen tos desenrolam-se
entre indivíduos da mesma cor: há mais crimes entre Ne gros do que de Negros contra Brancos
e vice-versa. Na população negra, o homicídio é hoje a primeira causa de morte tanto para os
homens como para as mulheres entre os vinte e quatro e os trinta e quatro anos, enquanto para
a população branca da mesma idade essa causa são os acidentes de trânsito. Os Negros correm
um risco seis vezes maior de morrer por homicídio do que os Brancos: se considerarmos apenas
o caso dos homens, em 1978 as mortes por homicídio elevavam-se a 78,1 por 100 000
habitantes na população ne gra, sendo de 12,2 para os Brancos. Quase metade dos assassinos
presos são Negros. Prova a contrario do processo de civilização, a violência é cada vez mais o
apanágio de grupos periféricos; torna-se um facto relativo às mino rias. Apesar disso, não
devemos ver nesta violência de cor nem um habitus arcaico nem uma forma de revolta; é o
ponto culminante da desestabilização e da desintegração pós-moderna, da subida aos
extremos, dessocializada e cínica, ligada à liquefacção dos princípios, enquadramentos e autocontro los; é a manifestação hard da ordem coo!.
Desorganização ou degenerescência do banditismo que podemos ler so bretudo na própria
«qualidade» dos crimes. Enquanto os vadios profissionais organizam minuciosamente os seus
golpes, avaliam os ganhos e os riscos, pensam no alibi, os delinquentes da nova vaga lançam-se
em operações fre quentemente improvisadas, sem conhecerem o local, os fundos, os sistemas
de alarme, em iniciativas de extrema gravidade contrw um ganho mínimo. Num só dia, cinco,
seis hol-ups por somas ridículas; é esta desproporção entre riscos e ganhos, entre um fim
insignificante e meios extremos que ca racteriza a criminalidade hard, sem projecto, sem
ambições, sem imaginá rio. O processo de personalização que trabalha no sentido de aumentar
a responsabilidade dos indivíduos favorece, de facto, comportamentos aberran tes, instáveis,
indiferentes de algum modo ao princípio de realidade e por
1 Indiferença igualmente visível no vandalismo, raiva hard que interpretamos mal vendo nela
uma forma desqualificada de reivindicação ou de protesto simbólicos. O vandalismo dá tes
temunho dessa desafecção nova que conquista as coisas ao mesmo tempo que os valores e as
instituições sociais. Do mesmo modo que os ideais declinam e perdem a sua grandeza anterior,
também os objectos perdem toda a sua «sacralidade» nos sistemas acelerados de consumo: a
degradação vandálica tem como condição o fim do respeito pelas coisas, a indiferença pelo real
doravante vazio de sentido. Também aqui, uma vez mais a violência hard reproduz a ordem
social que a torna possível.
isso mesmo em consonância com o narcisismo dominante e correlativo: o real transformado em
espectáculo irreal, em expositor de vidro sem espessu ra, pela lógica das solicitações.
Consequência da desafecção das grandes fi nalidades sociais e da preeminência conferida ao
presente, o neo-narcisismo é uma personalidade flutuante, sem estrutura nem vontade, sendo a
labilida de e a emotividade as suas características maiores. A este título, a violência hard,
desesperada, sem projecto, sem consistência, incarna a imagem de um tempo sem futuro que
191
valoriza o «tudo, e já»; longe de estar em antinomia relativamente à ordem coo! e narcísica, é a
sua expressão exasperada: a mes ma indiferença, a mesma dessubstancialização, a mesma
desestabilização, o que se ganhou em individualismo perdeu-se em saber-fazer, em ambição,
mas também em sangue-frio, em controlo de si próprio: ao mesmo tempo que os jovens mafiosi
americanos se vão abaixo e quebram já sem grande re sistência a «lei do silêncio», vemos
aparecer essa figura mista e muito pós- moderna que é o jovem assaltante armado e sob o
efeito de tranquilizantes. A dessubstancialização, aqui como noutros lugares, é acompanhada
pelo flip e pela instabilidade. A violência contemporânea já nada tem a ver com o mundo da
crueldade; os nervos são o seu traço dominante, não só entre os autores de assaltos, mas
também entre os criminosos das habitações econó micas que se enfurecem com os que fazem
barulho e até entre a polícia, co mo demonstra a multiplicação dos inquietantes casos dos
«deslizes» recentes.
O crime quase por nada: certamente, não se trata de coisa nova, as épo cas anteriores
conheceram igualmente crimes crapulosos por ganhos miserá veis. No fim do século XIX,
existe ainda uma criminalidade chamada das barreiras ataca-se um burguês perdido, um
transeunte que é atraído aos fossos das fortificações. Mas estas violências tinham em comum
o facto de reafirmarem a conivência imemorial do crime e da noite, do ilegalismo e do segredo.
Hoje, este laço está em vias de ser desfeito; o crime hard exibe-se em pleno dia, no coração
da cidade, indiferente às cautelas do anonimato, indiferente aos lugares e às horas, como se o
crime se esforçasse por partici par na pornografia do nosso tempo, a da visibilidade total. Na
esteira da de sestabilização geral, a violência deslastra-se do seu princípio de realidade, os
critérios do perigo e da prudência esbatem-se, inicia-se assim uma banaliza ção do crime
reforçada por uma subida descontrolada aos extremos no em prego dos meios violentos.
L. Chevalier, op. cit., p. 196.
196
Gil/es Lipovetsky 1 A Era do Vazio
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A violência criminosa não é o único factor que designa o mundo hard. Menos espectacular,
menos submetido ao scoop, o suicídio constitui a sua outra face, interiorizada se se quiser, mas
regida por uma mesma progressão e uma mesma lógica. Sem dúvida, a maré enchente de
suicídios não é carac terística da pós-modernidade; sabe-se, com efeito, que ao longo de todo o
século XIX, na Europa, o suicídio não parou de crescer. Em França, de 1826 a 1899, o número
de suicídios multiplicou-se por cinco enquanto a sua taxa por 100 000 habitantes passou de 5,6
a 23; na véspera da Primeira Guerra Mundial, esta taxa, já elevada, é ultrapassada, atingindo
26,2. co mo Durkheim analisou correctamente, onde a desinserção individualista to ma maior
amplitude, o suicídio agrava-se de maneira considerável. O suicí dio que, nas sociedades
primitivas ou bárbaras, era um acto de forte inte gração social efectivamente prescrito pelo
código holista da honra, torna-se, nas sociedades individualistas, um comportamento «egoísta»
cujo surto ful gurante não podia, segundo Durkheim, deixar de ser um fenómeno patológi co e,
portanto, evitável e passageiro, resultando menos da natureza da so ciedade moderna do que
das condições particulares em que ela se instituira.
A evolução da curva dos suicídios pôde, por um momento, confirmar o «optimismo» de
Durkheim, uma vez que a taxa muito elevada do início do século descera para 19,2 em 1926-
192
1930 e mesmo para 15,4 durante a década que se inicia em 1960. Apoiando-se nestes números,
houve quem sustentasse que a sociedade contemporânea era «tranquila» e «equilibrada No
entanto, sabemos que não é assim: em primeiro lugar, a partir de 1977, em França, com uma
taxa próxima dos 20, assistimos de novo a um forte aumento do suicídio que restabelece quase
o nível do princípio do século ou do período entre as duas guerras. Mas, para além deste
agravamento, talvez conjuntu ral, da morte por suicídio, é o número de tentativas de suicídio
não seguidas de morte que nos força a retomar a questão da natureza suicidogénea das nossas
sociedades. Se verificarmos efectivamente uma queda do número de mortes voluntárias,
observamos ao mesmo tempo uma elevação contínua das tentativas de suicídio, e isso em todos
os países desenvolvidos. Calcula-se
Durkheim, Le Suicide, PUF, pp. 413-424.
2 Emmanuel Todd, Le Fou et le prol Laffont, 1979. Igualmente Hervé Le Bras e E.
Todd: «Depois da ruptura, os géneros de vida recompuseram-se e o indivíduo integrou-se de
outro modo. O suicídio apaga-se porque o mal-estar da civilização chega ao fim». lo L’Inven tion
dela France, Laffont, co!. «Pluriel», 1981, p. 296.
que há entre 5 e 9 tentativas por cada suicídio consumado: na Suécia, cerca de 2 000 pessoas
se suicidam por ano e 20 000 tentam fazê-lo; nos Estados- Unidos, são cometidos 25 000
suicídios e 200 000 tentados sem êxito. Em França, houve, em 1980, 10 500 suicídios
consumados e provavelmente cerca de 100 000 tentativas. Ora, tudo leva a pensar que o
número de tentativas no século XIX não podia ser equivalente ao que actualmente conhecemos.
Em primeiro lugar, porque os modos de preparação eram mais «eficazes»:
enforcamento, afogamento, armas de fogo eram os três instrumentos privile giados do suicídio
até 1960; depois, porque o estado da medicina não permi tia salvar o mesmo número de autores
de tentativas suicidárias; por fim, da da a proporção muito elevada, na população suicidante,
das pessoas idosas, ou seja, mais resolvidas, mais determinadas a morrer. Dada a extensão sem
precedentes das tentativas de suicídio, a epidemia do suicídio está longe de ter chegado ao
fim: a sociedade pós-moderna, acentuando o seu individualis mo, modificando o seu teor por
meio da lógica narcísica, multiplicou as ten dências para a auto-destruição, ainda que
transformando a sua intensidade; a era narcísica é mais suicidogénea do que a era autoritária.
Longe de ser um acidente inaugural das sociedades individualistas, o movimento ascensio nal
dos suicídios é correlativo delas, no plano da longa duração.
Se a distância entre as tentativas e as mortes por suicídio aumenta, isso liga-se sem dúvida aos
progressos da medicina em matéria de tratamento das intoxicações agudas, mas também ao
facto de a intoxicação por medica mentos e venenos se ter tornado uma forma largamente
predominante de ten tativa ou consumação do suicídio. Se encararmos o conjunto dos actos
suici dários (tentativas incluídas), as intoxicações, medicamentos e gás ocupam actualmente o
primeiro lugar entre os meios utilizados, sendo escolhidos por quatro quintos dos que se
suicidam ou tentam suicidar-se. De algum modo, o suicídio paga o seu tributo à ordem coo/:
cada vez menos sangrento e do loroso, o suicídio, como os comportamentos inter-individuais,
suaviza-se: a violência auto-destrutiva não desaparece, são os meios que perdem o antigo
brilho.
Se as tentativas aumentam, isso liga-se igualmente ao facto de a popula ção suicidante ser mais
jovem: acontece com o suicídio o mesmo que com a
193
grande criminalidade, e a violência hard é jovem. O processo de personaliza ção promove um
tipo de personalidade cada vez menos capaz de afrontar a
prova do real: a fragilidade, a vulnerabilidade crescem, e isto principalmente
entre a juventude, categoria social mais destituída de pontos de referência e
Guies Lipovetsky
de enraízamento. Os jovens, até há pouco relativamente preservados dos efeitos destruídores
do individualismo através de uma educação e de um en quadramento estáveis e autoritários,
sofrem em cheio a desestabijização narcísica; são eles que hoje representam a figura última
do indivíduo desin sendo, estilhaçado, desestabjljzado por excesso de protecção ou de
derrelição e, por isso, candidato ideal ao suicídio. Na América, os jovens entre quinze e vinte e
quatro anos suicidam-se a um ritmo duplo do de há dez anos, tri plo do de há vinte anos. O
suicídio diminui nas idades em que outrora era mais frequente, mas não deixa de aumentar
entre os mais jovens: nos EUA, o suicídio é já a segunda causa de morte dos jovens, a par dos
acidentes de viação. Talvez estejamos apenas no início do processo; é o que pensamos quando
nos damos conta, em toda a sua monstruosidade, do grau último a que chegou a escalada da
auto-destruição no Japão: facto inaudito, são ago ra as crianças entre cinco e catorze anos
que, em grande número, se matam
— de 56 em 1965 passaram a 100 em 1975, e a 265 em 1980.
Com a ingestão de barbitúrjcos e a taxa considerável das tentativas falha das, o suicídio entra
na era de massas, adquire um estatuto banalizado e disco unt, do mesmo modo que a depressão
e a fadiga. Actualmente o suicí dio vê-se anexado por um processo de indeterminação em que o
desejo de vi ver e desejo de morrer já não são antinómicos, mas flutuam entre um pólo e outro,
quase instantaneamente. Grande número de suicidantes, assim, inge rem o conteúdo da sua
farmácia para logo a seguir pedirem auxílio médico; o suicídio perde a radicaljdade, desrealizase no momento em que os pontos de referência individuais e sociais se flexibilizam, em que o
próprio real se esvazia da sua substância densa e se identifica com uma encenação progra
mada. Esta liquefacção do desejo de aniquilamento é apenas uma das faces do neo-narcisismo,
da desestruturação do Eu e da dessubstancialização da vontade. Quando o narcisismo é
preponderante, o suícídio procede mais de uma espontaneidade depressiva, doflip efémero do
que de um desespero ex istencial definitivo. Deste modo, nos nossos dias, o suicídio pode
verificar-se paradoxalmente sem desejo de morte, um pouco como esses crimes entre vi zinhos
em que o indivíduo mata menos por vontade de morte do que para se desembaraçar
simplesmente de uma fonte de poluição sonora. O indivíduo pós-moderno tenta matar-se sem
querer morrer, como esses assaltantes que disparam ao acaso e por nervosismo; os indivíduos
tentam pôr termo à vida por causa de qualquer observação menos lisonjeira, do mesmo modo
que outros matam para arranjar um bilhete de cinema; trata-se do efeito hard,
de uma violência sem projecto, sem vontade afirmada, uma subida aos ex tremos instantânea:
neste ponto a violência hard é veiculada pela lógica cool do processo de personalização.
Individualismo e revolução
O processo individualista que progride juntamente com a redução do de safio interpessoal é,
em contrapartida, acompanhado por um desafio inédito, de alcance muito mais radical, o da
sociedade frente ao Estado. Ê, com efei to, no momento em que a relação de homem a homem
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se «humaniza» que se abrem o projecto e a acção revolucionárias, bem como uma luta de
classes declarada, consciente de si própria, tendo por missão dividir a história ao meio e abolir
a própria máquina estatal. Processos de civilização e revolução são concomitantes. Nas
sociedades holistas, a violência dos homens poupava a definição do seu estar-em-conjunto; a
despeito dos seus caracteres sangren tos, os motins e revoltas tradicionais não visavam
destruir a arquitectura do todo social. Pelo contrário, nas sociedades individualistas, são os
fundamen tos da sociedade, o teor intrínseco da lei e do poder que se tornam objectos do
debate público, alvos da luta dos indivíduos e das classes. Começa a era moderna da violência
social, doravante peça constitutiva da dinâmica histó rica, instrumento de transformação e de
adaptação da sociedade e do Esta do. A violência das massas torna-se um princípio útil e
necessário ao funcio namento, ao crescimento das sociedades modernas, tendo a luta de
classes permitido ao capitalismo nomeadamente superar as suas crises, reabsorven do o seu
desequilíbrio crónico entre produção e consumo.
Impossível compreender a emergência do fenómeno revolucionário, bem como a de uma luta de
classes permanente e institucionalizada, separando os da sociedade individualista que lhes é
correlativa, tanto pela sua organi zação económico-social como nos seus valores. Nas
sociedades holistas ou hierárquicas, quer dizer, em sistemas onde os seres particulares,
secundários em relação ao conjunto social em que os homens estão integrados assenta num
fundamento sagrado e, por isso mesmo, subtraído à iniciativa revolu cionária. Para que a
revolução se torne uma possibilidade histórica, é preciso que os homens estejam atomizados,
desinseridos das suas solidariedades tra dicionais; é preciso que a relação com as coisas leve a
melhor sobre a rela ção entre os seres e que, por fim, predomine uma ideologia do indivíduo que
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lhe conceda um estatuto nativo de liberdade e de igualdade. A revolução e a luta de classes
pressupõem o universo social e ideológico do individualismo; a partir de então, já não há
organização em si exterior à vontade dos ho mens, o todo colectivo e a sua supremacia, que
anteriormente impediam a violência de abalar a ordem correspondente, perdem o seu princípio
de in tangibilidade e já nada, nem o Estado, nem a sociedade, escapam à acção transformadora
dos homens. Quando o indivíduo deixa de ser meio de um fim exterior e passa a ser
considerado e a considerar-se como fim último, as instituições sociais perdem o seu halo de
sagrado; tudo o que procede de uma transcendência inviolável e se dá numa heteronomia de
natureza vê-se a mais breve ou a mais longo prazo minado por uma ordem social e ideológica
cujo núcleo já não é o além, mas o indivíduo autónomo em si próprio
A sociedade homogénea de seres iguais e livres é indissociável, na sua era triunfante, de um
conflito aberto e violento relativo à organização da socie dade. Governada pelo papel decisivo
da ideologia, que doravante se substitui à instância religiosa, conservando o mesmo carácter
absoluto e passional, a primeira fase individualista é uma era de revoluções e de lutas sociais
san grentas. Emancipando-se do sagrado, a sociedade individualista só restitui aos homens o
pleno domínio do seu estar-em-conjunto ao fazê-los defronta rem-se em conflitos, é certo que
por vezes baseados no interesse, mas cujo maniqueísmo se prende sobretudo aos novos valores
associados aos direitos do indivíduo. Nesta perspectiva, a fase heróica do individualismo pode
ser comparada mais acertadamente a uma mobilização-politização de massa em torno de
195
valores do que a um recuo prudente para o campo de preocupações estritamente privadas.
Hipertrofia e antagonismo ideológicos são insepará veis da era individualista-democrática. Por
comparação com os nossos dias, esta fase continua de algum modo ligada às sociedades
holistas, ao primado do todo social, passando-se tudo como se o elemento de desorganização so
cial encerrado no princípio individualista tivesse sido prontamente contraria do por um tipo de
enquadramento omnipresente e inflexível, paralelo nesse ponto ao das disciplinas, e destinado a
neutralizar a dinâmica das singulari dades pessoais, a prender os indivíduos à coisa pública,
ainda que através da mediação dos confrontos de classe e dos valores.
Ver M. Gauchet, art. citado, pp. 111-114, e introdução a De la libertó chez les moder
nes, Laffont, col. «Pluriel», 1980, pp. 30-38. e
TN
A Era do Vazio
Com a era individualista abre-se a possibilidade de uma era de violência total da sociedade
contra o Estado, sendo uma das suas consequências uma violência não menos ilimitada do
Estado sobre a sociedade, ou seja o Terror como modo moderno de governo pela violência
exercida em massa, não só contra os opositores, mas também contra os partidários do regime.
As mes mas razões que permitem à violência civil subverter a ordem social e política tornam
possível um desafio sem precedentes do poder em relação à socieda de, nascendo o Terror na
nova configuração ideológica resultante da supre macia do indivíduo: quer os massacres, as
deportações, os processos se reali zem em nome da vontade do povo quer da emancipação do
proletariado, o Terror só é possível em função de uma representação democrática e, portan to,
individualista, do corpo social, embora, sem dúvida, para denunciar a sua perversão e para
restabelecer pela violência a prioridade do todo colecti vo. Do mesmo modo que a vontade
revolucionária não pode explicar-se por contradições objectivas de classe, também é vão
querer dar conta do Terror a partir de simples necessidades circunstanciaiS é porque o
Estado, de acor do com o ideal democrático, se proclama idêntico e homogéneo à sociedade
que, com efeito, pode chegar a desafiar toda a legalidade, a desenvolver uma repressão sem
limites, sistemática, indiferente às noções de inocência e de culpabilidade Se, por conseguinte,
a evolução individualista-de mocrática implica correlativamente, na longa duração, uma redução
dos sig nos ostentatóriOs do poder estatal e o advento de um poder benevolente, sua ve,
protector nem por isso deixou de permitir a emergência de uma forma particularmente
sangrenta de poder, que podemos interpretar como uma úl tima revivescência do brilho do
soberano condenado pela ordem moderna, uma formação de compromisso entre os sistemas da
crueldade simbólica tra dicional e a impessoalidade gestionária do poder democrático A grande
fase do individualismo revolucionário termina ante os nossos
olhos: depois de ter sido um agente de guerra social, o individualismo con tribui actualmente
para abolir a ideologia da luta de classes. Nos países oci dentais desenvolvidos, a era
revolucionária encerrou-se, a luta de classes ins titucionalizou-5e, já não é portadora de
descontinuidade histórica, os parti dos revolucionários encontram-se num estado de
deliquescência total, a ne gociação leva por todo o lado a melhor sobre os confrontos violentos.
A se 1 Ver C Lefort, Un homme en trop, Êd. du Seuji, 1976, pp. 50-54, e Bernard Manin,
«Saint-Just, la logique de la Terreur», iii Libre, 1979, n.° 6.
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gunda «revolução» individualista, veiculada pelo processo de personalização, tem como
consequência uma desafecção de massa da res publica e em parti cular das ideologias políticas:
depois da hipertrofia ideológica, a desenvoltu ra perante os sistemas de sentido. Com a
emergência do narcisismo, a or dem ideológica e o seu maniqueísmo cedem o lugar à
indiferença, tudo o que é dotado ainda de uma certa densidade de universalismo e de oposições
exclusivas deixa de ter preensão sobre uma forma de individualidade muito amplamente
tolerante e móvel. A ordem rígida, disciplinar, da ideologia tor nou-se incompatível com a
desestabilização e com a humanização coo/. O processo de pacificação conquistou o todo
colectivo, a civilização do conflito social prolonga hoje a das relações inter-pessoais.
Mesmo os últimos sobressaltos da Revolução dão testemunho deste apa ziguamento do conflito
social. Foi o caso de Maio 68. As discussões que se travaram em torno do teor do movimento
são a este respeito significativas:
revolução ou happening? Luta de classes ou festa urbana? Crise da civiliza ção ou charivari? A
revolução torna-se indecidível, perde os seus referen de identidade. Por um lado, Maio 68
continua a inscrever-se na vaga do processo revolucionário e insurreccional: barricadas,
confrontos violentos com as forças da ordem, greve geral. Por outro lado, o movimento já não é
animado por qualquer meta global, política e social. Revolução sem projecto histórico, Maio 68 é
uma sublevação cool e sem mortes, uma «revolução» sem revolução, um movimento de
comunicação tanto como um confronto so cial. As jornadas de Maio, para além da violência das
noites quentes, repro duzem menos o esquema das revoluções modernas fortemente
articuladas em torno de paradas ideológicas do que prefiguram a revolução pós-moderna das
comunicações. A originalidade de Maio foi a sua civilidade espantosa: a discussão instaura-se
por todo o lado, os graffiti florescem nas paredes, os jornais, os cartazes, os comunicados
multiplicam-se, a comunicação estabe lece-se nas ruas, nos anfiteatros, nos bairros e nas
fábricas, nos lugares de onde habitualmente estava ausente. Sem dúvida, todas as revoluções
suscita ram uma inflação de discursos, mas, em 68, estes soltaram o lastro dos seus conteúdos
ideológicos pesados; já não se tratava, com efeito, de tomar o po der, de designar traidores,
de traçar linhas divisórias entre os bons e os maus; tratava-se, por intermédio da expressão
livre, da comunicação, da contestação, de «mudar a vida», de libertar o indivíduo das mil
alienações que quotidianamente pesam sobre ele, do trabalho ao supermercado, da te levisão à
universidade. Libertação da palavra, Maio 68 foi animado por uma
ideologia flexível, simultaneamente política e convivia!, patchwork de luta de classes e de
líbido, de marxismo e de espontaneísmo, de crítica política e de utopia poética; uma
descrispação, uma desestandardiZação teórica e prática habita o movimento, isomorfo nese
ponto do processo coo de personaliza ção. Maio 68 é já uma revolução persona!izada a revolta
faz-se contra a au toridade repressiva do Estado, contra as separações e imposições burocráti
cas incompatíveis com a livre afirmação e desenvolvimento do indivíduo. A ordem da revolução
humaniza-se, levando em conta as aspirações subjecti vas, a existencla e a vida: à revolução
sangrenta substituiu-se a revolução estilhaçada», multidimensiOnal, transição quente entre a
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era das revoluções sociais e políticas em que o interesse colectivo prima sobre o dos
particulares e a era narcísica, apática, desideologizada.
Desligada do maniqueísmo ideológico, a violência das jornadas de Maio pôde mesmo surgir como
uma manifestação lúdica, exactamente ao invés do terrorismo actual que, no seu fundo,
continua a ser tributário do modelo re volucionário estrito, organizado em torno da guerra de
classe, em torno de dispositivos vanguardistas e ideológicos, o que explica o seu corte radical
com as massas indiferentes e descrispadas. Dito isto, apesar do seu enqua dramento
ideológico, o terrorismo reúne-se, por um estranho paradoxo, à ló gica do nosso tempo, já que
os discursos duros de legitimação de que proce dem os atentados, os «processos» e os raptos
se tornaram totalmente vazios, desconectados de toda a relação com o real à força de
intumescência revolu cionária e de autismo grupuscUlar. Processo extremista que apenas a si
próprio tem em vista, o terrorismo é uma pornografia da violência: a máquina ideológica ganha
velocidade por si própria, perde todo o enraizamento; a dessubstanCialização conquista a
esfera do sentido histórico, afirmando-se como violência hard exasperação maximalista e
vazia, espectro lívido, car caça ideológica liofilizada.
Maio 68, já o dissemos, tem uma dupla face: moderno pelo seu imaginá rio da Revolução, pósmoderno pelo seu imaginário do desejo e da comuni cação, mas também pelo seu carácter
imprevisível ou selvagem, modelo pro vável das violências sociais vindouras. À medid.t que o
antagonismo de das sé se normaliza, surgem explosões aqui e ali, sem passado nem futuro, desa
parecendo com a mesma rapidez que caracterizou a sua emergência. Actual mente, as violências
sociais têm muitas vezes em comum o facto de já não caberem no esquema dialéctico da luta de
classes articulada em torno de um proletariado organizado: os estudantes nos anos 60, hoje os
jovens desemPre
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gados, squatters, Negros ou Jamaicanos — a violência marginalizou-se. Os motins que se
desenrolaram recentemente em Londres, Bristol, Liverpool, Brixton ilustram o novo perfil da
violência, seja qual for o carácter racial de alguns destes confrontos. Se a revolta libertária
dos anos sessenta era ainda «utópica», portadora de valores, nos nossos dias, as violências que
incen deiam os ghettos surgem desligadas de qualquer projecto histórico, fiéis nes se ponto ao
processo narcísico. Revolta pura da desocupação, do desempre go, do vazio social. Dissolvendo
a esfera ideológica e a personalidade, o pro cesso de personalização libertou uma violência
tanto mais dura quanto me nos esperança tem, no future, à imagem da nova criminalidade e da
droga. A evolução dos conflitos sociais violentos é a mesma que a da droga: depois da viagem
psicadélica dos anos sessenta, marca de contra-cultura e de revol ta, a era da toxicomania
banalizada, da depressão sem sonho, da descarga lumpen com medicamentos, verniz das unhas,
querosene, colas, dissolventes e lacas, para uma população cada vez mais jovem. Tudo o que
resta é ata car um bobby ou um Paquistanês, incendiar as ruas e os prédios, pilhar os armazéns,
numa acção a meio caminho entre a descarga e a revolta. A vio lência de classe deu lugar a uma
violência de jovens desclassificados, que destroem os seus próprios bairros; os ghettos
incendeiam-se como se se tra tasse de acelerar o vazio pós-moderno e de completar na raiva o
deserto que, por outros meios, o processo coo! de personalização realiza. Numa derradei ra
desqualificação, a violência entra no ciclo em que absorve os seus pró prios conteúdos; de
acordo com a era narcísica, a violência dessubstanciali za-se num culminar hiperrealista sem
programa nem ilusão, violência hard, desencantada.
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Guies Lipovetaky
ÍNDICE
Prólogo 7
Sedução non stop
17
A indiferença pura 33
Narciso ou a estratégia do vazio 47
Modernismo e pós-modernismo 75
A sociedade humorística 127
Violências selvagens, violências modernas 161