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O que fazer depois de passar em um concurso público

O que fazer depOis de passar em um cOncursO públicO Organizadores Jefferson Aparecido Dias Antonio Henrique Graciano Suxberger Carlos Roberto Diogo Garcia Ruben Rockenbach Manente O que fazer depOis de passar em um cOncursO públicO IDHID Instituto de Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento 2009 Copyright © 2009 Jefferson Aparecido Dias, Antonio Henrique Graciano Suxberger e Carlos Roberto Diogo Garcia Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida sem prévia autorização dos autores por escrito. Ficha Catalográica Impresso no Brasil sumáriO apresentação idhid ..........................................................................7 apresentação por flávia piovesan ....................................................9 reflexões sObre O “dia seguinte” à aprOvaçãO num cOncursO para a magistratura André Luiz Machado ................................................................... 11 O tamanhO dOs nOssOs sOnhOs: pOlítica e demOcracia nO espaçO entre nós e O cOntextO Antonio Henrique Graciano Suxberger............................................21 a impOrtância dO pensamentO críticO nO desempenhO de uma funçãO pública Daniele Corrêa Santa Catarina.........................................................33 um cOmprOmissO éticO pela riqueza humana Jefferson Aparecido Dias .................................................................43 vOcê já fOi aprOvadO em cOncursO públicO? a missãO agOra é ser aprOvadO cOmO servidOr públicO, na vida pública, cOm espíritO públicO, em benefíciO dO públicO Ramiro Rockenbach da Silva Matos Teixeira de Almeida .................51 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO a realizaçãO de um sOnhO: a criaçãO dO idhid! O Instituto Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento (IDHID) é a realização de um sonho e o resultado da união de duas perspectivas: teoria e prática. O viés de ordem teórica vem sendo desempenhado, há mais de uma década de docência e coordenação junto a cursos de graduação e pós-graduação na universidad pablo de Olavide (Sevilhaespanha), pelo professor espanhol Joaquín Herrera flores nos termos da elaboração e constante (re)invenção de sua Teoria Crítica dos Direitos Humanos. por sua vez, a seara prática é reflexo da iniciativa dos alunos e alunas do “maestro” Herrera flores (em especial dos cursos de Doutorado em “Derechos Humanos y Desarrollo”, 5ª edição, e do Máster Oficial em “Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo”, edição 2007-2008), com o objetivo de levar a cabo – através da criação do Instituto – os ideais e as lutas em prol dos direitos humanos. São, pois, objetivos do IDHID: promover o estudo, capacitação, desenvolvimento e fortalecimento da Teoria Crítica dos Direitos Humanos; realizar o intercâmbio de experiências e a harmonização de soluções; estabelecer e manter relações de caráter acadêmico com organismos, instituições, governos e associações; entre outros. frise-se que o Instituto possui sede e/ou representação na América Latina, África e europa. Acreditamos que a referida soma entre teoria e prática abrirá novos caminhos em prol de nossa fundamental e maior luta: um acesso mais igualitário aos bens (materiais e imateriais) indispensáveis a uma vida digna de ser vivida. eis nosso entendimento dos direitos humanos como processos de luta pela abertura e consolidação dos espaços da dignidade humana em direção de um mundo 7 IDHID menos injusto e cruel, na tarefa de reduzir (e, quiçá, eliminar) as múltiplas formas de exclusão em que vivem os seres humanos. essa é marca genuína de nossa luta, nossa bandeira, nosso ideal! Garopaba-SC, abril de 2009. Ruben Rockenbach Manente presidente do IDHID - brasil 8 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO apresentaçãO para Habermas, “a sociedade justa deixa a critério de todas as pessoas aquilo que elas querem iniciar com o tempo de suas vidas”, garantindo a todos a mesma liberdade para uma autocompreensão ética. A obra “O que fazer depois de passar em um concurso público” é expressão maior da busca de sentido vital, pautada na perspectiva crítica, realista, visionária e marcada pelo compromisso ético e social. É fruto e produto das atividades iniciais do “Instituto Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento”, criado em Sevilha, no programa de pós-Graduação em Direitos Humanos da universidade pablo de Olavide, em 2008, com o objetivo de desenvolver a teoria crítica dos direitos humanos. A coletânea de textos elaborados por profissionais de distintas instituições jurídicas (Ministério público, Magistratura), em sua diversidade, converge na mesma direção: assume a aprovação em um concurso público não como um ponto de chegada, mas como ponto de partida para uma atuação emancipatória, que permita fazer a diferença na defesa e proteção da dignidade humana. De forma instigante, os autores convidam ao desafio de uma reinvenção institucional, guiada pela ética dos direitos humanos. Os textos, cada qual ao seu modo, compartilham do enfoque da teoria crítica dos direitos humanos, tendo como inspiração e referência a obra de Joaquin Herrera flores. nesta visão, os direitos humanos são compreendidos como processos institucionais e sociais que possibilitam a abertura e a consolidação de espaços de luta pela dignidade humana. fundamental é captar os direitos humanos em sua dinâmica, em sua complexidade, em sua natureza híbrida e impura, com o respeito à pluralidade, no marco de uma concepção material e concreta de dignidade. A todo tempo a obra comunga de uma mesma crença: os direitos humanos como racionalidade de resistência, a traduzir processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. É a partir desta crença que o papel dos atores públicos, em suas diversas instituições, demanda uma nova perspectiva, 9 IDHID contextualizada em práticas sociais emancipatórias, que realce a vocação da ética pública e republicana, orientada pela afirmação dos direitos humanos. A ética dos direitos humanos é a ética que vê no outro um ser merecedor de igual consideração e profundo respeito, dotado do direito de apropriar-se e desenvolver as potencialidades humanas, de forma livre, autônoma e plena. É a ética orientada pela afirmação da dignidade e pela prevenção ao sofrimento humano. Como lembra Ortega y Gasset: “viver é precisamente a necessidade inexorável de tomar decisões (...); de realizar o nosso programa vital, a nossa personagem e a nossa vocação”. esta obra vem a romper com o imobilismo da apatia, da passividade, do conformismo e da indiferença social. na aventura de vidas inconclusas, a voz plural de seus atores vem a celebrar o princípio da esperança, da ação emancipatória e da capacidade criativa e transformadora de realidades. Juquehy, 17 de julho de 2008. flávia piovesan professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da pontifícia universidade Católica de São paulo, professora de Direitos Humanos dos programas de pós-Graduação da pontifícia universidade Católica de São paulo, da pontifícia universidade Católica do paraná e da universidade pablo de Olavide (Sevilha, espanha); visiting fellow do Human Rights program da Harvard Law School (1995 e 2000), visiting fellow do Centre for brazilian Studies da university of Oxford (2005), visiting fellow do Max planck Institute for Comparative public Law and International Law (Heidelberg – 2007 e 2008), membro do CLADeM (Comitê LatinoAmericano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), membro do Conselho nacional de Defesa dos Direitos da pessoa Humana e membro da SuR – Human Rights university network. 10 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO reflexões sObre O “dia seguinte” à aprOvaçãO num cOncursO para a magistratura andré luiz machado Juiz do Trabalho 1. cOncursO públicO e demOcracia A Constituição federal de 1988 marcou um divisor de águas na história do constitucionalismo nacional por diversos aspectos, entre eles destacamos: a ampliação considerável do rol dos direitos fundamentais, transformando-os em diretrizes éticas do estado, e a moralização da administração pública mediante a exigência de concurso público como condição indispensável para preenchimento e formação das carreiras administrativas. O presente ensaio pretende analisar o último aspecto destacado. Como se sabe, as Constituições anteriores previam a realização do concurso apenas visando à primeira investidura em cargo público, ou seja, o candidato poderia ter acesso a um cargo de baixa qualificação profissional e, uma vez aprovado, poderia ocupar qualquer outro cargo dentro das carreiras públicas. A situação consolidada antes da Constituição de 1988 reforçava o nepotismo e o clientelismo no interior do estado, práticas por intermédio das quais se criavam vínculos espúrios de fidelidade político-partidária1. Com a institucionalização da exigência do concurso para todos os cargos e empregos públicos, houve uma elevação na qualidade dos quadros funcionais do estado, permitindo, por via de consequência, uma melhoria (ainda pouco sentida) nos serviços prestados à população. 1 O clientelismo e o nepotismo são fenômenos do patrimonialismo que embora seja encontrado em diferentes sociedades ao redor do mundo, no brasil assume a função de instrumento de promoção e manutenção das desigualdades sociais (SORJ, bernardo. a nova sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Jorge zahar editor, 2001). 11 IDHID esse inegável avanço, entretanto, vem sendo corroído pelo sistemático desmantelamento do estado brasileiro em decorrência das novas exigências do capitalismo globalizado. O ataque do capitalismo ao estado de bem-estar Social2 inaugura uma ruptura do acordo do pós-guerra construído entre as elites econômicas e o mundo do trabalho em torno da adoção de garantias de estabilidade no emprego, seguridade social, mecanismos de defesa contra o desemprego e aumentos progressivos de salários3. A partir dos anos setenta, em todo o mundo ocidental as transformações do capitalismo atingiram em cheio os trabalhadores públicos e privados. no setor privado, as empresas passaram por profunda reestruturação organizativa, abandonando gradualmente o modelo de produção fordista-taylorista4 em favor da adoção de novos processos de trabalho que determinaram o fim da grande indústria e o surgimento dos modos de produção em rede5. O setor público foi atingido de duas maneiras: pela redução da interferência do estado no setor econômico diretamente produtivo mediante um processo brutal de privatizações e pelo congelamento dos salários dos servidores públicos, tudo em razão da formação de superávit primário para o pagamento das dívidas externa e interna. 2 que no caso da América Latina permaneceu apenas como promessa constitucional sem alcançar a efetividade conhecida nos países da europa Ocidental. 3 entre o período do imediato pós-guerra e o início dos anos setenta praticamente todos os países de capitalismo avançado (estados unidos e europa Ocidental) se estruturavam em torno desse pacto, adotando políticas públicas vantajosas para o proletariado. 4 “entendemos o fordismo fundamentalmente como a forma pela qual a indústria e o processo de trabalho consolidaram-se ao longo deste século, cujos elementos constitutivos básicos eram dados pela produção em massa, através da linha de montagem e de produtos mais homogêneos; através do controle dos tempos e movimentos pelo cronômetro fordista e produção em série taylorista; pela existência do trabalho parcelar e pela fragmentação das funções; pela separação entre elaboração e execução no processo de trabalho; pela existência de unidades fabris concentradas e verticalizadas e pela constituição/consolidação do operário-massa, do trabalhador coletivo fabril, entre outras dimensões.” (AnTuneS, Ricardo. adeus ao trabalho? ensaio sobre as metamorfoses do mundo do trabalho. São paulo: Cortez; Campinas: editora da universidade estadual de Campinas, 1998, página 17) 5 para uma visão mais aprofundada da matéria: ALVeS, Giovanni. dimensões da reestruturação produtiva. ensaios de Sociologia do Trabalho, Londrina, pR: práxis e bauru, Sp: Canal 6, 2007. 12 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO A terceirização e a precarização dos contratos de trabalho dos empregados do setor privado invadiram o serviço público, comprometendo ainda mais a sua qualidade. não obstante todos esses percalços, a ocupação de um cargo ou emprego público continua a exercer um grande fascínio em uma parcela considerável da população, sobretudo naquela localizada em regiões em que a atividade privada não apresenta um dinamismo capaz de absorver satisfatoriamente a avalanche de profissionais que anualmente chegam ao mercado de trabalho. A necessidade de se buscar uma ocupação profissional pelas pressões naturais da sobrevivência cria um problema no campo da subjetividade profissional: a incidência de um baixo índice de realização pessoal no exercício da função pública. Aliado a esse problema há um outro ingrediente não menos relevante, o qual consiste no frágil sistema de aperfeiçoamento continuado do servidor, que, de maneira geral, enfraquece a perspectiva de carreira e subtrai a capacidade para atividades mais criativas. 2. cOncursO públicO e magistratura Ao que tudo indica, nas carreiras típicas de estado6 o nível de satisfação profissional é mais elevado em razão de dois aspectos relevantes: a ocupação desses cargos ainda decorre de uma aspiração pessoal cultivada pelas tradições familiares e o acesso a eles tem relação estreita com a oferta de excelente remuneração, em geral acima da média dos salários pagos na esfera privada. nesse universo podem ser incluídos aqueles que respondem a uma vocação tardia, ou seja, optam por uma das carreiras de estado em virtude da decepção com uma determinada atividade no setor privado ou mesmo no setor público (insatisfação profissional ou deterioração salarial). no caso específico do acesso à magistratura, é possível afirmar que, no passado, a arregimentação para o preenchimento de 6 Conceito bastante impreciso, mas que geralmente está associado às funções políticas do estado. 13 IDHID seus quadros atendia aos mecanismos sociais de formação de uma elite burocrática comprometida com a preservação do status quo7. esse quadro prevaleceu no brasil desde o período colonial até a promulgação da Constituição de 1988 e ainda molda o perfil das magistraturas estaduais (também em processo de transformação). É exatamente a democratização do acesso aos cargos públicos que impõe uma inflexão a esse modelo de arregimentação profissional. Os mecanismos de seleção e arregimentação profissional para o quadro da magistratura vêm sofrendo uma considerável oxigenação, permitindo que a ele tenham acesso candidatos procedentes de diferentes classes sociais com visões de mundo bastante heterogêneas8. Além disso, cresce o número de magistrados afro-descendentes e mulheres, fato que impõe uma transformação inegável no perfil geral da magistratura, corrigindo, dessa forma, uma distorção histórica decorrente dos processos elitistas de arregimentação mencionados anteriormente. É possível afirmar que esse quadro de democratização proporcionado pelo concurso público, num verdadeiro processo de “afinidade eletiva”, contribui para as transformações que remodelam o poder Judiciário no brasil. essas transformações comumente são definidas como um processo de judicialização da política que alude à interferência cada vez mais intensa do poder Judiciário no campo das decisões tradicionalmente originárias dos poderes executivo e legislativo9. no nosso modo de entender, esse novo protagonismo atribuído ao poder Judiciário decorre de uma crescente crise de legitimidade dos demais poderes, sobretudo em razão da incapacidade de 7 em relação ao tema: WOLKMeR, Antônio Carlos. história do direito no brasil. Rio de Janeiro: forense, 2002. 8 uma comparação entre a forma de arregimentação da magistratura dos países do continente europeu (em geral idêntica ao sistema brasileiro) e dos países da common law, com vantagens e desvantagens de cada um dos sistemas pode ser vista em GARApOn, Antoine. O juiz e a democracia. O guardião das promessas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2001. 9 Conferir: VIAnA, Luiz Werneck et al. a judicialização da política e das relações sociais no brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, e GuARnIeRe, Carlo e peDeRzOLI, patrizia. los jueces y la política. Madrid: Taurus,1999. 14 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO gerarem respostas satisfatórias às demandas cada vez mais complexas derivadas da sociedade civil10. Como se sabe, esse papel crescente do poder Judiciário é incentivado por muitos, mas também recebe muitas críticas. para os que defendem o papel mais ativo do judiciário (o papel de juiz guardião), o principal argumento é ético. Ao judiciário cabe a relevante tarefa de resguardar os valores éticos consubstanciados no rol de direitos fundamentais contidos na Constituição, mesmo que para isso contrarie a vontade da maioria dos cidadãos. para os que são contrários, o argumento é político, isto é, o consenso entre os valores fundamentais da sociedade deve ser tarefa dos atores políticos (com legitimidade popular) num processo dinâmico e comunicativo de persuasão. para essa última corrente, o judiciário padece de um déficit democrático que lhe retira a legitimidade para interferir num espaço de atuação tradicional dos mecanismos de representação política11. O espaço deste ensaio obviamente não permite um aprofundamento dessa discussão, mas a referência serve pelo menos para sublinhar a relevância da função judicial12. 3. sugestões para “O dia seguinte” à aprOvaçãO nO cOncursO para a magistratura em face das considerações desenvolvidas nos itens epigrafados, a sugestão para uma agenda de compromissos para os recémingressos nos quadros da magistratura deve partir de uma advertência: como qualquer outra atividade profissional, o exercício da judicatura exige entrega e dedicação apaixonada por tudo que envolve a prestação jurisdicional. 10 “A judicialização do conflito social na América Latina não pode ser, portanto, avaliada simplesmente como um processo virtuoso ou negativo. ela é expressão da democratização da sociedade e ocupa o espaço das instituições políticas incapazes de gerar respostas e visões de futuro que organizem o conflito social dentro do quadro político partidário”. (SORJ, bernardo. Op. cit., página 94). 11 para aprofundamento do tema: STReCK, Lênio Luiz. verdade e consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Júris editora, 2006, e ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico? florianópolis: Habitus, 2006. 12 Mutatis mutandis, o mesmo pode ser dito em relação a outras carreiras típicas de estado como o Ministério público, a diplomacia e outras. 15 IDHID Vale acrescentar ainda que o dia-a-dia da atividade judicante coloca o juiz diante de casos intrincados, exigindo dele uma aprofundada reflexão teórica que não poucas vezes o leva ao dilaceramento emocional diante das dúvidas sobre qual a mais justa decisão a ser tomada. Ademais, o alto grau de responsabilidade que é transferido ao juiz e o poder que lhe é conferido para interferir de forma radical na vida das pessoas podem gerar uma distorção na avaliação que faz de si mesmo sobre o seu papel na sociedade13. Com efeito, não poucas vezes nos deparamos com magistrados que assumem uma postura arrogante e infensa a uma relação mais amistosa com os advogados e com os jurisdicionados de modo geral. Contrastando posturas dessa natureza, sempre é bom lembrar o princípio republicano da atividade administrativa que deve sempre solidificar uma visão de serviço público calcado na cidadania. um raciocínio simples que decorre dessa reflexão pode ser assim enunciado: o cidadão que, em última análise, sustenta os cofres públicos e, por conseguinte, paga os subsídios da magistratura deve receber a melhor prestação jurisdicional possível. feitas essas considerações, formulamos duas sugestões para o “dia seguinte” à aprovação no concurso para a magistratura: integração ao associativismo judicial e a busca incessante pelo aperfeiçoamento profissional. a) engajamento no associativismo judicial Ousamos afirmar que muito do protagonismo democrático da magistratura moderna decorre da atuação das associações de juízes espalhadas por todos os estados da federação e vinculadas aos diferentes ramos do poder Judiciário. 13 falando sobre os mitos que cercam a figura do juiz e que constroem no imaginário popular a imagem de uma pessoa cujos poderes são incontrastáveis, pondera José Renato nalini: “Considerável parcela daquilo que se pode identificar como a insensibilidade do juiz, sua assepsia em relação às partes e à comunidade, sua falta de consequencialismo, a arrogância de alguns, a incapacidade de se considerar servidor do povo que o remunera, deriva dessa ficção tão bem elaborada e tão repetida no decorrer dos séculos.” (nALInI, José Renato. a rebelião da toga. Campinas, Sp: Millennium editora, 2008, página 102) 16 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO As grandes transformações pelas quais passou e vem passando o poder Judiciário contaram com a luta decisiva das associações de magistrado em todo o brasil. em particular, mencionamos a luta da Associação nacional da Magistratura do Trabalho (Anamatra) pelo fim da magistratura classista e do nepotismo no âmbito da administração pública (com a colaboração decisiva da Associação dos Magistrados do brasil, Associação dos Juízes federais e diversas associações vinculadas ao Ministério público federal e estadual). A militância na rotina associativa da magistratura também propicia uma vasta e intensa circulação de conhecimento jurídico14 e o arrefecimento da sensação de isolamento que todo juiz experimenta no cumprimento de suas rotinas. b) O aperfeiçoamento profissional não é necessário dizer que o juiz contemporâneo não atua mais como a “boca da lei”. estamos na época da criação judicial do direito que demanda uma hermenêutica multidisciplinar e engajada15. Como se sabe, a emenda Constitucional 45/04 conferiu especial ênfase na formação inicial e continuada da magistratura16. no nosso entender, o constituinte derivado atendeu aos reclamos da sociedade no que diz respeito à exigência de um poder Judiciário preparado para os desafios impostos pela crescente complexidade dos conflitos sociais. O que se requer do magistrado hoje é a habilidade de empreender um raciocínio político a partir de uma hermenêutica baseada em princípios, capaz de superar a abordagem positivista do ordenamento jurídico. 14 Além das inumeráveis publicações produzidas pelas Associações de Magistrados, as listas de discussão na internet figuram como fontes inesgotáveis de compartilhamento de decisões inovadoras nos mais diversos campos do Direito. 15 Sobre uma hermenêutica engajada conferir CÁRCOVA, Carlos Maria. direito, política e magistratura. São paulo: LTr, 1996. 16 O artigo 93 da Cf/88 estabelece que Lei Complementar disporá sobre o estatuto da Magistratura e no inciso II relaciona os critérios para a promoção do juiz, entre eles: “aferição do merecimento conforme o desempenho e pelos critérios objetivos da produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela freqüência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento”. 17 IDHID uma hermenêutica dessa natureza obviamente pressupõe a subsunção de todo o ordenamento jurídico às diretrizes constitucionais, sempre na perspectiva de adensamento dos direitos fundamentais como diretrizes éticas do estado17. um outro aspecto ainda vinculado a essa necessidade de conferir efetividade às normas e princípios constitucionais é a inegável convocação que vem recebendo o poder Judiciário no sentido de concretizar os direitos sociais18. O atendimento a essas demandas exige hoje, mais do que nunca, uma atuação pró-ativa dos juízes, sempre contando com a sua criatividade e capacidade de gerar expectativas positivas nos jurisdicionados e, sobretudo, com a humildade de reconhecer a necessidade de se submeter a um permanente aprendizado, sempre na perspectiva de que todos somos seres inconclusos19. referências bibliOgráficas ALVeS, Giovanni. dimensões da reestruturação produtiva. ensaios de Sociologia do Trabalho, Londrina, pR: práxis e bauru, Sp: Canal 6, 2007. AnTuneS, Ricardo. adeus ao trabalho? ensaio sobre as metamor17 “Além de todos os direitos fundamentais assegurados na Constituição dependerem do judiciário para a sua efetiva concretização, a exata compreensão do papel dos princípios fará com o que o juiz possa implementar todas as mensagens normativas da Carta. A adoção de um texto fundante principiológico é eloquente prova de que o estado-nação brasileiro pretendeu confiar ao intérprete da Constituição a missão de adensar, aprimorar e concretizar a vontade constituinte” (GOMeS, Luiz flávio. A dimensão da magistratura, apud: Leardini Márcia. a importância da formação do magistrado para o exercício de sua função política, in Almeida, José Maurício pinto e Leardini, Márcia. recrutamento e formação de magistrados no brasil. Juruá: Curitiba, 2007, página 123). 18 “É aí, justamente, que se percebe como os direitos humanos e sociais, apesar de cantados em prosa e verso pelos defensores dos paradigmas jurídicos de natureza normativista e formalista, nem sempre são tornados efetivos por uma Justiça burocraticamente inepta administrativa e processualmente superada; uma Justiça ineficiente diante dos novos tipos de conflito – principalmente os “conflitos limites” para a manutenção da integridade social; ou seja o conflito de caráter intergrupal, intercomunitário e interclassista; uma Justiça que se revelando incapaz de assegurar os direitos humanos e sociais, na prática acaba sendo conivente com a sua sitemática violação” (fARIA, José eduardo (organizador). direitos humanos, direitos sociais e justiça. São paulo: Malheiros, 2002). 19 fReIRe, paulo. pedagogia do Oprimido. 21. ed. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1993. 18 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO foses do mundo do trabalho. São paulo: Cortez; Campinas: editora da universidade estadual de Campinas, 1998. CÁRCOVA, Carlos Maria. direito, política e magistratura. São paulo: LTr, 1996. fARIA, José eduardo (organizador). direitos humanos, direitos sociais e justiça. São paulo: Malheiros, 2002. fReIRe, paulo. pedagogia do Oprimido. 21. ed. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1993. GARApOn, Antoine. O juiz e a democracia. O guardião das promessas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2001. GOMeS, Luiz flávio. A Dimensão da Magistratura. Apud: LeARDInI, Márcia. A Importância da formação do Magistrado para o exercício de sua função política. In: ALMeIDA, José Maurício pinto e LeARDInI, Márcia. recrutamento e formação de magistrados no brasil. Juruá: Curitiba, 2007. GuARnIeRe, Carlo; peDeRzOLI, patrizia. los jueces y la política. Madrid: Taurus,1999. nALInI, José Renato. a rebelião da toga. Campinas, Sp: Millennium editora, 2008. ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico? florianópolis: Habitus, 2006. SORJ, bernardo. a nova sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Jorge zahar editor, 2001. STReCK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso. constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Júris editora, 2006. VIAnA, Luiz Werneck et al. a judicialização da política e das relações sociais no brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. WOLKMeR, Antônio Carlos. história do direito no brasil. Rio de Janeiro: forense, 2002. 19 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO O tamanhO dOs nOssOs sOnhOs: pOlítica e demOcracia nO espaçO entre nós e O cOntextO antonio henrique graciano suxberger promotor de Justiça Há uma frase de fernando pessoa que diz muito sobre os compromissos que assumimos e a nossa capacidade de modificar a realidade. O poeta português, valendo-se de seu Álvaro de Campos, cunhou a máxima de que “(…) tenho em mim todos os sonhos do mundo”. A verdadeira maratona que é um concurso público de provas e títulos para se chegar a um cargo público evidencia que, mais que a capacidade de sonhar, devemos fortalecer a nossa capacidade de acreditar neles, de fazer sacrifícios para transformá-los em realidade. A frase ainda guarda outra lição preciosa. por si só, pouca importância têm os cargos ou as posições ocupadas pelas pessoas; é mais relevante questionar como os ocupantes dos cargos reagem diante da realidade à sua volta. essas duas premissas se destacam quando se cuida de responder à pergunta que é o mote para este texto: o que fazer depois de ser aprovado num concurso público? Sem que as considerações aqui expendidas se reduzam às carreiras jurídicas, não há como negar, até mesmo pela formação do autor, que nos referimos a elas. Mas, ainda assim, ora em menor, ora em maior grau, algumas considerações são aplicáveis aos mais diferentes cargos públicos. As carreiras jurídicas de estado – Defensoria pública, Advocacia pública, Magistratura, Ministério público – são, por opção política do estado brasileiro, acessíveis por meio de concurso público de provas e títulos. A assertiva é tão difundida que se torna óbvia; mas o óbvio só o é quando evidente. Há um componente nessa assertiva que é pouco evidente: o político. essa forma de acesso aos cargos públicos deriva de uma opção política levada a efeito num determinado momento histórico e contextualizado da realidade brasileira. Há países, convém lembrar, que observam sistemas diversos para investidura nos cargos públicos. Os estados unidos, 21 IDHID para mencionar apenas um exemplo, realizam eleições para acesso tanto para cargos de juiz quanto para cargos assemelhados àqueles que, no brasil, são identificados como Ministério público. Os funcionários públicos investidos em cargos por meio de concurso público ostentam certo orgulho na tola crença de que seriam neutros em relação aos interesses em jogo nos casos que são levados à sua apreciação. uma vez que o acesso ao cargo não se deu por meio de uma prática de convencimento ou mesmo de composição de interesses, mas por concurso público, querem acreditar que não veiculam um componente de ação política. Ledo engano. Diga-se desde logo que o componente político aqui mencionado não se confunde com a política partidária tão em voga, sempre mencionada pela mídia, no senso comum ou mesmo é visto como algo menor, depreciado e, por isso mesmo, desvirtuado. O componente político refere-se à impossibilidade de eliminação de antagonismos sociais. A negação do político pode ser atribuída à crença liberal de que o interesse geral é produto do livre jogo dos interesses privados e que é possível alcançar um consenso universal com base na livre discussão. no campo da política ou no campo do direito, contudo, é inviável dissociar o domínio das relações de poder, visto que nenhum consenso pode ser estabelecido como resultado de um processo de raciocínio puro, abstrato. Onde há poder, a força e a violência não podem ser completamente eliminadas, ainda que assumam apenas a forma de “força argumentativa” ou “violência simbólica”. essa concepção guarda afinidade com a idéia de que todas as identidades são relacionais e que a condição de existência de qualquer identidade é a afirmação de uma diferença, determinação de um “outro” que desempenhará o papel de “elemento externo constitutivo”. em outras palavras, a criação de um espaço de “nós” por meio da delimitação do que seja “eles” tem por consectário a possibilidade de essa relação “nós/eles” transformar-se numa relação amigo/inimigo, e nisso reside a essência do político1. O político 1 A categoria relacional amigo/inimigo aqui mencionada é aquela desenvolvida por Carl Schmitt sobre o conceito de política. para ele, o campo de origem e de aplicação da política seria o antagonismo e a sua função consistiria na atividade de associar e defender os amigos e de desagregar e combater os inimigos. Cf. SCHMITT, Carl. el concepto de lo político, passim. 22 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO não pode ser limitado a um certo tipo de instituição ou encarado como uma esfera ou nível específico da sociedade. Como adverte Chantal Mouffe, o político “(…) tem de ser concebido como uma dimensão inerente a todas as sociedades humanas e que determina a nossa própria condição ontológica”2. Ignorar esse componente político e o processo de construção das nossas próprias identidades tem por consectário um alijamento das razões que justificam ou, quando menos, mantêm a possibilidade de, no exercício de funções públicas, concretizar um compromisso ético de modificar a cruel realidade brasileira. não se faz necessário enumerar as desigualdades que existem no brasil; parece claro que isso é perceptível por todos. O desafio hoje não é demonstrá-las, mas efetivamente provocar reações face a elas. A realidade mostra-se cruel e até mesmo absurda, mas por muitas vezes nos falta a sensibilidade ou mesmo a aptidão de nos chocarmos com ela. É esse “choque” que reclama de nós uma reação que veicule práticas compromissadas com mudanças. que compromisso seria esse? É possível acreditar que as pretensões que alimentaram e serviram de concreto à construção dos sonhos, que só se tornaram realidade às custas de sacrifícios que somente a trajetória plural e distinta de cada uma das pessoas que ascenderam aos cargos públicos pode contar, vão um pouco além das benesses materiais. A estabilidade no cargo, a obtenção de considerável status social, prerrogativas pessoais e institucionais, garantias, enfim, são mais que estímulos a que se alcancem esses cargos. Depois da aprovação no concurso público, hão de se prestar a permitir dignamente que esforços sejam envidados para que as benesses materiais de uns poucos sejam estendidas a muitos. A construção de uma identidade comprometida com o resgate da ação política deriva da necessidade de fundar práticas sociais que permitam a emancipação popular e o empoderamento daqueles que são o destinatário do trabalho daquele que ocupa um cargo público: a coletividade. Joaquín Herrera flores fala da necessidade de recuperar a 2 MOuffe, Chantal. O regresso do político, p. 13. 23 IDHID ação política como um dos passos necessários em direção a uma concepção contextualizada e não abstrata da realidade dos direitos humanos. essa recuperação da ação política permitiria romper com as posições naturalistas que concebem os direitos como uma esfera separada e prévia à ação política democrática3. Tendemos a uma reificação da realidade, a tomar como coisas as relações sociais e suas complexas tramas econômicas, sociais, históricas, como se estivéssemos alheios ou fora do contexto. Somente uma prática democrática de textura aberta permitirá que avancemos rumo a uma legitimação permanente das razões que permitiram alcançar o exercício de uma função pública. É evidente que o concurso público, se é democrático porque permite o acesso ao cargo a quem se apresente a concorrer, por si só não basta para assegurar o componente democrático do exercício das funções próprias desse cargo. Isso porque o substrato que legitima o exercício dos poderes próprios de cargos públicos só se justifica quando o seu ocupante é consciente desse já afirmado componente político na construção de sua identidade social e, igualmente, do que venha a ser o conteúdo democrático dos poderes públicos por ele manejados. Diz-se usualmente que o concurso público é a forma de acesso mais democrática aos cargos públicos. É verdade, pois permite a todos – em princípio – a possibilidade de acesso a esses cargos. Aliás, sob uma perspectiva histórica, o acesso ao cargo público por concurso público foi uma das maiores conquistas estampadas no texto constitucional. porém, é possível falar de “igualdade de oportunidades” num contexto social de pobreza e má formação educacional e profissional de tantos? Avancemos sobre o que interessa aqui amiúde: esse sentido democrático encerra-se após a investidura no cargo? Há razão para se preocupar a respeito do que seja uma atuação democrática no exercício do cargo público? Impõe-se mudar a forma como se vê a democracia. encerrados em nossas estruturas jurídicas, tendemos à procedimentalização também da democracia, para que seja ela considerada apenas 3 la reinvención de los derechos humanos. p. 66 et seq. 24 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO como técnica. É essa a forma pela qual nos resignamos com uma pretensa suficiência da democracia representativa. Se pretendemos, contudo, a construção de uma identidade social comprometida com o resgate da ação política, devemos fomentar a construção de um conteúdo democrático substancial a essa ação política, e parece que a democracia representativa não se coaduna com essa exigência. em verdade, a democracia representativa nos serve como definição ao mesmo tempo neutra e avalorativa. não traz em si elementos políticos, econômicos, culturais. Sua definição é objetiva, carente de sujeitos, externa e afastada de qualquer experiência empírica. ela reduz a participação popular a uma regra procedimental (regra do jogo). Sem adjetivos, a democracia representativa mostra-se objetiva, universal, autorreferencial. existe notadamente como técnica, que se converte ao mesmo tempo num fator possível de composição, uma vez que toda técnica tem sua tecnologia.4 Se há um componente que legitime o conteúdo democrático daqueles que ocupamos cargos públicos, ele há de ser buscado por meio de uma democracia visualizada como prática política constituinte. Há de se compreendê-la não como uma imposição, mas como autonomia de cidadania, como vivência. O resgate da ação política num marco crítico exige a democracia como opção radical de articulação entre o particular e o universal. A democracia considerada como prática política implica um projeto de construção ética do bem comum a partir da participação cidadã. Mais que regras procedimentais – e não se trata aqui de rechaçá-las, mas sim de afirmá-las e ir além disso –, cuida-se de uma forma de vivência, pois não se restringe a âmbitos ou esferas específicas. Implica uma cidadania plena que não deriva do estado, mas decorre de uma prática plural de controle e de exercício do poder a partir do “dever ser” do poder. por evidente, a democracia assumida como prática política veicula um valor ético. pressupõe que a cidadania conduz a uma 4 nesse sentido, cf. ROITMAn ROSenMAnn, Marcos. democracia sin demócratas, p. 1314. 25 IDHID relação que tem como objetivo unir a diferença e a alteridade (unir o uno e o diferente, aceitando as diferenças), que implica a construção do “político” como aqui desenvolvido, a construção da autonomia do ser. A democracia, assim, assume-se como uma prática plural de exercício de poder. pressupõe a autonomia do sujeito e a sua responsabilidade de atuar, pois fixa sua responsabilidade a partir justamente da diferença. A democracia como prática plural de controle de exercício do poder se relaciona com o político e com a autoridade e suas formas (ou com as formas da autoridade e do poder). A democracia, como projeto político, tem de expressar a liberdade de realização do ser, que é a capacidade de realização das expectativas na sociedade em que se insere o sujeito. Ao guardar relação com suas consequências, vê-se o valor ético da consecução da democracia. Ao contrário de uma abordagem instrumental, que apenas considera uma causa eficiente, a democracia como prática política substancia um projeto de realização do ser humano e, assim, há de ser fomentada em todos os graus e medidas de atuação estatal e popular. A liberdade de potencialidades é que constrói a democracia. não há dualidade entre a ideologia do ser e a ética do ser (o que implica a proliferação de exemplos do tipo “democracia da porta de casa para fora”). A análise da democracia inclui, portanto, como pressuposto básico para seu estudo, a realização do bem comum, isto é, a satisfação de direitos sociais e individuais, o que impõe refletir sobre a democracia não como modelo teórico baseado em princípio metafísicos, mas como realmente se apresenta (desigual ou mesmo morta).5 Trata-se de reconhecer a democracia como parte da luta pelo poder político, não apenas a luta representativa, mas articulada com objetivos sociais, econômicos, culturais e políticos em sua ampla acepção. A relação entre o conceito de desenvolvimento e o conceito de democracia como instrumento de resgate da ação política deixa claro que essas categorias operacionais atuam numa concepção 5 A observação precisa é de Roitman (las razones de la democracia em américa latina, p. 148-149). 26 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO de sociedade e de política fundada em valores constitutivos do ser humano. A idéia de desenvolvimento não se resume a um conceito econômico quantitativo6, mas substancia uma qualidade inerente da condição humana, pois incorpora os distintos âmbitos de atuação da pessoa em sua vida social. A idéia de “desenvolvimento”, dessa forma apresenta-se como uma categoria integral. O desenvolvimento e o conjunto de esferas que o constituem – isto é, o político, o social, o cultural, o étnico e o econômico – são um todo indivisível. A assunção de uma identidade política, compromissada com um projeto democrático, tem por premissa fixar a democracia como fundamento que explica, dá sentido e orienta o desenvolvimento humano. Caso contrário, uma leitura reduzida da idéia de desenvolvimento inevitavelmente produzirá uma deficitária compreensão teórica que, por sua vez, alijará a concretização desse desenvolvimento democrático como opção política. para os integrantes das carreiras jurídicas, isso implicaria continuar com a vista centrada apenas no “seguro” e autorreferente mundo jurídico. Muito se afirma sobre o risco que corre a democracia quando o consenso e a fidelidade aos valores que ela encarna são insuficientes, mas se olvida de que, deveras, a democracia também experimenta sério risco quando a sua dinâmica combativa é ignorada em favor de um excesso de consenso que, normalmente, mascara uma apatia inquietante. Acreditar que o conteúdo democrático do exercício das carreiras jurídicas esgota-se por conta do meio de acesso – concurso público – substancia adesão a essa apatia. Igualmente a democracia experimenta risco quando permite uma crescente marginalização de grupos inteiros, por vezes compreendidos como subclasses e, justamente por isso, alijados da comunidade política. É o que pode ocorrer se os ocupantes de cargos públicos 6 Alijado de uma unidade integradora, o conceito de desenvolvimento em geral é utilizado apenas como critério de interpretação quantitativa em relação a avaliações de economia, investimento e tecnologia, isto é, dados a respeito de progresso técnico, crescimento econômico, renda per capita, índices de consumo e bem-estar social. Roitmann adverte que essa perspectiva quantificada, ao relacionar-se com a democracia, acaba por transferir para a área econômica toda e qualquer potencialidade de eficiência, ao custo da perda da vitalidade política da concepção de desenvolvimento. um panorama dessas construções e suas relações com a idéia de democracia pode ser encontrado em ROITMAn ROSenMAnn, Marcos. las razones de la democracia en américa latina, p. 48 et seq. 27 IDHID de maior relevância nos afastamos demasiadamente daquilo que ocorre no dia-a-dia, dos anseios, das frustrações das pessoas em geral, em favor de um isolamento erroneamente confundido com “altivez” ou mesmo “distinção”. A democracia, portanto, está longe de ser um acabado; ao revés, possui natureza frágil, sem qualquer ponto a ser alcançado que assegure, só por isso, a continuidade de sua existência. na prática, há, pois, de se buscar uma teoria democrática moderna que permita a criação de espaços para concepções divergentes da identidade de cidadão. Caso contrário, é mais que evidente o risco de uma ruptura das próprias razões que justificaram a construção de uma teia de garantias jurídicas formalmente construídas no sistema de justiça. O compromisso de realização desse projeto político deriva, é claro, de uma eleição racional dirigida a um critério que oriente as escolhas politicamente assumidas pelos sujeitos dessa necessária mudança social. O critério a ser eleito, segundo um marco compromissado com mudanças na realidade social e com a realização dos direitos humanos concretamente considerados – para além do que sejam apenas as previsões contidas em tratados e convenções internacionais –, é o da riqueza humana, o qual se compromete com o desenvolvimento das capacidades humanas e com a construção de condições que permitam a apropriação e o desenvolvimento de capacidades pelos indivíduos, grupos, culturas e qualquer forma de vida.7 A esta altura, o leitor, se aqui chegou por pura persistência, está a imaginar que isso tudo parece abstrato ou mesmo distante das decisões que tomamos, das mais simples às mais complexas, no exercício das nossas funções. essa aparente distância, contudo, só existirá se não compreendermos o que nós temos (parcela de poder) e o que fazemos com o que temos (a prática desse poder). É útil nesse particular a lição de pierre bordieu, para quem o espaço entre o texto e o contexto – campo – seria o universo em que estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reprodu7 HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos, p. 178. 28 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO zem ou difundem a arte, a literatura, a ciência, o direito, etc. esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas.8 Todo campo é um campo de forças e de lutas para conservá-lo ou transformá-lo. Como afirma bordieu, “(…) é a estrutura das relações objetivas entre os agentes que determina o que eles podem e não podem fazer. Ou, mais precisamente, é a posição que eles ocupam nessa estrutura que determina ou orienta, pelo menos negativamente, suas tomadas de posição”9. A compreensão, portanto, do que diz ou do que faz um agente engajado num campo depende das condições de perceber a posição que ocupa nesse campo, isto é, de perceber e conhecer “de onde ele fala”. Se os campos são lugares de força, eles não se orientam ao acaso. Há estruturas objetivas – as chamadas posições – e há lutas em torno dessas estruturas. Os agentes sociais, em lugar de passivamente assistirem a esses conflitos, titularizam disposições adquiridas, isto é, maneiras de ser permanentes, duráveis, que podem levar os agentes a resistir, a se opor às forças do campo. O campo é objeto de luta tanto em sua representação quanto em sua realidade. por conseguinte, os agentes sociais – os ocupantes desses cargos públicos – estão inseridos na estrutura e em posições (relações objetivas existentes entre as estruturas) que orientam as estratégias que se desenvolvem nos limites de suas disposições. essas estratégias orientam-se seja para a conservação da estrutura seja para a sua transformação. quanto mais os agentes ocupam posição favorecida na estrutura, mais tendem a conservar ao mesmo tempo a estrutura e a 8 Cf. bORDIeu, pierre. Os usos sociais da ciência, p. 20-21. 9 Os usos sociais da ciência, p. 23. Afirma bordieu que essa estrutura é determinada no campo científico, grosso modo, “(…) pela distribuição do capital científico num dado momento. em outras palavras, os agentes (indivíduos ou instituições) caracterizados pelo volume de seu capital determinam a estrutura do campo em proporção ao seu peso, que depende do peso de todos os outros agentes, isto é, de todo o espaço. Mas, contrariamente, cada agente age sob a pressão da estrutura do espaço que se impõe a ele tanto mais brutalmente quanto seu peso relativo seja mais frágil. essa pressão estrutural não assume, necessariamente a forma de uma imposição direta que se exerceria na interação (ordem, ‘influência’ etc.)” (Idem, p. 24). Alterado o qualificativo “científico”, a assertiva guarda total pertinência em relação aos demais campos (jurídico, político, econômico etc.). 29 IDHID sua posição, nos limites, porém, de suas disposições (isto é, de sua trajetória social, de sua origem social) que são apropriadas mais ou menos à sua posição.10 É na relação entre a posição e a disposição que hoje ocupam aqueles que ascenderam a seus cargos por meio de concurso público que se encontra o grande desafio de implementação dos direitos humanos. em outras palavras, após assumirmos uma relevante posição, será o modo como reagimos diante dessas estruturas objetivas que concretizará o compromisso por nós racionalmente eleito de realizar os direitos humanos. É tolo imaginar que estamos neutros diante dessa tensão: mesmo a inércia é forma de compromisso com a mantença de um panorama injusto. não existe neutralidade; se o que pensamos e produzimos decorre de um atuar humano, falamos de produtos culturais necessariamente. e esses produtos culturais (formas de governo, decisões políticas, normas jurídicas, estruturas institucionais, literatura, música, arte etc.) não são neutros tampouco assépticos; ao revés, são impuros, mundanos, contaminados pelo contexto em que se inserem.11 A prática massacrante, o dia-a-dia carregado de tecnicismo, a burocracia que cega, o volume de trabalho que impulsiona o estímulo apenas de soluções pragmáticas, quantificáveis e eficientistas são desafios à mantença dos sonhos que impulsionaram a decisão de ascender a um cargo público. Somos levados a repetir e a manter as estruturas objetivas que um dia sonhamos integrar. Mas é preciso realmente revolucioná-las para que, por meio da mudança delas, possamos mudar o exterior. É certo que em algum momento mesmo a porção mais apática de nós mesmos foi tocada pelo desejo de mudar a realidade, de “salvar o mundo” no melhor estilo cartunesco da expressão. Talvez seja o caso de começar salvando o mundo de nós mesmos e da nossa tendência a ser apenas mais uma peça nessa máquina gigante que é o estado. Daí, então, a partir de onde nos encontramos, podemos fomentar as mudanças que toquem aos que se encontram de fora: alijados de condições 10 bORDIeu, p. Os usos sociais da ciência, p. 29. 11 A referência é à concepção impura de direitos humanos que propõe Herrera flores (la reinvención de los derechos humanos, p. 42 e passim; el vuelo de anteo, p. 21 et seq.). 30 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO materiais de uma vida digna de ser vivida, excluídos do acesso à cultura, sem acesso ao lazer, à margem do acesso aos bens materiais e imateriais que permitem o gozo de uma vida plena. As respostas à pergunta inicial – o que fazer depois de passar num concurso público? – não surgirão dos textos, mas deste espaço em que nos encontramos, entre os textos e os contextos em que nós estamos inseridos, isto é, de nós. porque a tensão entre aquilo que fazemos e aquilo que somos será definida pela nossa capacidade de tornar realidade aquilo com que um dia sonhamos. um desses sonhos – aprovação no concurso público – já virou realidade. Mas há apenas um sonho? não, porque não podemos ser tão pequenos. Sejamos grandes; afinal, o mesmo fernando pessoa citado, agora por meio de seu Alberto Caeiro, bem justificou: “(…) porque eu sou do tamanho do que vejo / e não do tamanho da minha altura”. referências bibliOgráficas bOuRDIeu, pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. Trad. Denice barbara Catani. São paulo: uneSp, 2004. 88 p. HeRReRA fLOReS, Joaquín (org.). el vuelo de anteo: Derechos Humanos y crítica de la razón liberal. bilbao: Desclée de brouwer, 2000. 308p. ______. la reinvención de los derechos humanos. Sevilla: Atrapasueños, 2008. 224p. MOuffe, Chantal. O regresso do político. Trad. Ana Cecília Simões. Lisboa: Gradiva, 1996. 206p. ROITMAn ROnSenMAnn, Marcos. democracia sin demócratas: y otras invenciones. Madrid: Sequitur, 2007. 114p. ______. las razones de la democracia en américa latina. México: Siglo XXI, 2005. 264p. SCHMITT, Carl. el concepto de lo político. Trad. Rafael de Agapito Serrano. Madrid: Alianza, 1998. 160p. 31 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO a impOrtância dO pensamentO críticO nO desempenhO de uma funçãO pública daniele corrêa santa catarina procuradora do Trabalho A educação é um dos mecanismos mais importantes para a formação do ser humano. no meio jurídico, a maioria das universidades de Direito dedica-se ao conhecimento dogmático e tradicional, não ensinando, em regra, ao estudante pensar de uma forma crítica. Trabalha-se com a ordem normativa vigente, sem haver o aprofundamento em outras questões, como a origem da lei, a sua fundamentação, o contexto em que foi criada, a sua justificativa. não se ensina a pensar se a lei é ou não justa, se foi criada para defender interesses daqueles que estão no poder e que têm acesso a todos os meios e bens necessários para a garantia de seus direitos ou se realmente foi criada para garantir os direitos de pessoas marginalizadas, oprimidas e discriminadas, que não possuem o acesso igualitário para aceder a seus direitos. Diante desta realidade, a aprovação em um concurso público - e pretendo abordar precipuamente as funções de um membro do Ministério publico do Trabalho - exigirá do novo agente público uma visão mais ampla do ordenamento jurídico como um todo. O conhecimento que a priori se possui é aquele tradicional, necessário para se obter o título de bacharel em direito e para a aprovação no concurso público. e muitas vezes nos deparamos com situações em que a normatividade posta traz injustiças e não justiça. Ou, então, com casos em que as normas existentes não são suficientes para efetivamente garantir os direitos daquele trabalhador ou daquele grupo social. O que fazer? Como de fato realizar justiça com tantas leis injustas? Como dar efetividade a uma lei justa? De acordo com WOLKMeR1, (…) o discurso, a produção e a prática jurídica reinante no brasil, calcados na lógica da racionalidade técnico-formal e nos 1 WOLKMeR, Antônio Carlos. introdução ao pensamento jurídico crítico, p. 88. 33 IDHID pressupostos de dogmática do cientificismo positivista, não respondem mais aos reclamos e às aspirações do atual estágio de desenvolvimento socioeconômico e dos parâmetros de modernização das instituições políticas da sociedade brasileira. Justifica-se, assim, colocar em discussão, articular e operacionalizar um pensamento crítico no Direito, ainda que se reconheçam as dificuldades de sua elaboração epistemológica. O mesmo autor também afirma que2: Os modelos culturais e normativos que justificaram o mundo da vida, a organização social e os critérios de cientificidade tornaram-se inadequados e reduzidos, abrindo espaço para se repensar padrões novos de referência e legitimação. Isso transposto para o jurídico nos permite consignar que a estrutura normativa do moderno Direito positivo formal é pouco eficaz e não consegue atender à mundialidade competitiva das atuais sociedades periféricas que passam por distintas espécies de reprodução do capital, por acentuadas contradições sociais e por fluxos que refletem tanto crises de legitimidade quanto crises na efetivação da justiça. Desta forma, passa a ser necessário repensar e refletir a estrutura jurídica, social, econômica e cultural atual, a fim de estabelecer critérios para a construção de novos instrumentos de luta pela dignidade humana. Há necessidade de um pensamento plural, tendo em mente que a ordem jurídica vigente é somente uma das diversas formas existentes para a garantia dos direitos. neste sentido, ao exercer a função pública, passa a ser fundamental trabalhar com outros critérios que possam respaldar sua atuação em busca de maior efetividade dos direitos. Os membros do Ministério público do Trabalho diuturnamente investigam, por exemplo, casos de trabalho infantil e de acidentes de trabalho sofridos por crianças que nem sequer deveriam estar trabalhando, mas sim tendo a sua infância protegida, por meio da garantia de sua educação, de seu lazer, de seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, de seu direito de ser criança. não obstante a legislação constitucional prevista no artigo 7º, inciso XXIII, da Carta Magna, que proíbe o trabalho noturno, pe2 WOLKMeR, Antônio Carlos. introdução ao pensamento jurídico crítico, p. 183. 34 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO rigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos, vivenciam-se cenas como a de crianças pedindo dinheiro na rua, no sinal de trânsito, vendendo balas, picolés e chicletes, trabalhando no comércio, no meio rural, em indústrias em trabalhos insalubres, ou seja, sendo submetidas a todo tipo de risco à sua integridade física, moral, psicológica ou de outras ordens. A Constituição federal, em seu artigo 227, também prevê a doutrina da proteção integral, estabelecendo que: (…) é dever da família, da sociedade e do estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. no entanto, nem a família, nem a sociedade, nem o estado asseguram a proteção integral a estas crianças e adolescentes, que, em contrapartida, garantem a sobrevivência da família, em total afronta à previsão constitucional. Há uma completa inversão de valores. existem, assim, garantias jurídicas que, em tese, protegem os direitos destas crianças, mas que, na prática, não garantem a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. As Convenções n.ºs 138 e 182 da Organização Internacional do Trabalho também prevêem regras contra o trabalho infantil, estabelecendo que todos os estados-membros devem seguir uma política nacional que assegure a efetiva abolição do trabalho infantil e eleve, progressivamente, a idade mínima de admissão a emprego ou a trabalho a um nível adequado ao pleno desenvolvimento físico e mental do jovem e também que o trabalho em ruas e logradouros é uma das piores formas do trabalho infantil, porque conduz, em regra, meninas e meninos à prostituição infantil e/ou ao tráfico de entorpecentes. Além disso, diversas pesquisas demonstram que o trabalho infantil gera a evasão escolar. A criança que trabalha perde a concentração, não tem tempo para estudar, pesquisar e fazer os 35 IDHID deveres de casa, perdendo assim o interesse, por não conseguir acompanhar as aulas como os demais amigos e colegas, gerando, por evidente, o abandono escolar. Diante da realidade citada, faz-se necessário partir de uma base diferente da existente, de um conhecimento contra-hegemônico, a fim de efetivar os direitos violados, já que, mesmo havendo previsão constitucional e internacional acerca da matéria, ainda são vivenciadas cenas como estas, em que a infância é sacada de milhares de crianças, e suas integridades físicas, morais e psicológicas são expostas a todo tipo de risco. De acordo com SAnCHez RubIO3, os direitos fundamentais foram instrumentos tanto de exclusão como de inclusão, de desigualdades como de igualdades, a teor dos seres humanos que ficaram dentro ou fora da condição de sua titularidade. pode ocorrer, assim, que os critérios de reconhecimento sejam universais do ponto de vista constitucional, formal e normativo, mas os contextos e as tramas sociais sobre as quais as normas se assentaram reproduzam exclusão, marginalização e discriminação, inclusive reduzindo os âmbitos formais de manifestação popular. Daí a importância que tem a seara democrática como modo de vida e os direitos humanos como processos de criação contínua de tramas sociais. Há lutas que não logram ou não podem constituir-se como conquistas positivadas e nem por isso deixam de ser direitos humanos pontuais, contingentes e precários no caso de serem rechaçados. Os direitos humanos nem existem em abstrato, nem são algo dado, nem ficam congelados em uma norma. É imprescindível a sua positivação como direitos fundamentais, mas não é suficiente. Os sistemas de garantias jurídicos para fazê-los efetivos devem vir acompanhados de mais garantias. Incumbe, desta forma, aos operadores do Direito repensar a estrutura jurídica, cultural, social e econômica existente e propor alternativas. e a teoria crítica dos direitos humanos, fundamentada por HeRReRA fLOReS, cumpre este papel. Com base numa teoria crítica, os direitos humanos, mais que 3 SÁnCHez RubIO, David. repensar derechos humanos: de la anestesia a la sinestesia, p. 26-31, tradução nossa. 36 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO direitos, são processos, são resultados de lutas que os seres humanos colocam em prática para poder ter acesso aos bens necessários para a vida. Assim, os direitos humanos não devem ser confundidos com os direitos positivados a um nível nacional ou internacional, já que uma constituição ou um tratado internacional não criam direitos. Deve-se começar não pelo direito, mas pelos bens exigíveis para viver com dignidade, uma vez que os direitos virão depois das lutas pelo acesso aos bens.4 Deve-se conhecer qual o contexto em que se está situado, para somente assim reconhecer as mudanças e transformações que tal contexto impõe aos direitos e, partindo daí, propor novas formas de lutas e de ação social. Os direitos humanos estão penetrados por interesses ideológicos e não podem ser entendidos à margem do cultural, não podendo jamais ser negado o seu caráter ideológico, já que, na medida em que é retirado do seu contexto, universaliza e subtrai a sua capacidade e possibilidade de transformar-se e transformar o mundo a partir de uma posição que não seja hegemônica.5 Desta forma, de acordo com HeRReRA fLOReS6, para aplicação de uma teoria crítica de direitos humanos, quatro condições e cinco deveres básicos devem ser observados. As condições são: 1- assegurar uma visão realista do mundo em que vivemos e sobre o que desejamos atuar, utilizando os meios que nos proporcionam os direitos humanos; 2- desempenhar um forte papel de conscientização que nos ajude a lutar contra o adversário e a reforçar os próprios objetivos e fins, sendo eficaz para a mobilização; 3- assegurar às coletividades sociais determinadas uma visão alternativa do mundo e segurança na hora de lutar pela dignidade, sustentando-se em dois pilares: reforço das garantias formais reconhecidas juridicamente e fortalecimento dos grupos mais desfavorecidos na hora de lutar por novas formas, mais igua4 HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos, p. 22-24, tradução nossa. 5 HeRReRA fLOReS, Joaquín. el vuelo de anteo: derechos humanos y critica de la razón liberal, p. 23, tradução nossa. 6 HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos, p. 50-58, tradução nossa. 37 IDHID litárias e gerais, de acesso aos bens protegidos pelo direito; 4- buscar permanentemente a exterioridade, não em relação ao mundo em que vivemos, mas em relação com o sistema capitalista dominante, saindo, quando possível, do marco hegemônico de idéias e valores. Os deveres são: 1- o reconhecimento de que devemos ter a possibilidade de reagir culturalmente frente ao ambiente de relações em que vivemos; 2- o respeito como forma de conceber o reconhecimento como condição necessária mas não suficiente na hora de colocar em prática as lutas pela dignidade; 3- a reciprocidade, como base para saber devolver o que tomamos dos outros para construir nossos privilégios; 4- a nossa responsabilidade em relação aos outros e o dever de exigir a responsabilização daqueles que cometeram a destruição das condições de vida dos demais; 5- a redistribuição, ou seja, a fixação de regras jurídicas, fórmulas institucionais e ações políticas e econômicas concretas que possibilitem a todos não somente satisfazer as necessidades vitais primárias, mas também a reprodução secundária de vida, ou seja, a construção da dignidade humana não submetida aos processos depredadores do sistema capitalista imposto. Diante de tais condições e deveres, as bases para um pensamento crítico no meio jurídico seriam: 1- reconhecer que nascemos e vivemos necessitando de satisfação de bens materiais e imateriais e que o primeiro não é o direito e sim os bens; 2- que temos de satisfazer nossas necessidades imersos em sistemas de valores e processos que impõem um acesso restrito, desigual e hierarquizado7, materializado ao longo da história através de marcos hegemônicos de divisão social, sexual, étnica e territorial; 3- que a história dos grupos marginalizados e oprimidos por esses proces7 por exemplo, qual a efetividade que possui uma norma que garante, após o ajuizamento de uma ação civil coletiva pelo Ministério público do Trabalho, órgão estruturado e criado para a defesa dos interesses sociais indisponíveis, em defesa de crianças reduzidas a condição análoga a de escravo, que as próprias crianças, representadas por seus pais, tenham que pessoalmente buscar a execução desta sentença? O conhecimento cultural, econômico e social para estar em juízo para buscar a execução de uma sentença ajuizada por outro Órgão é quase inexistente. porque então não garantir o acesso aos bens destes trabalhadores de uma forma mais efetiva, por meio do órgão criado constitucionalmente para esta função? 38 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO sos de divisão do fazer humano é a história de esforço para levar adiante práticas e dinâmicas sociais de luta; 4- o objetivo principal destas lutas é poder viver com dignidade, o que significa poder generalizar processos igualitários e não hierarquizados a priori de acesso aos bens materiais e imateriais que conformam o valor da dignidade humana; 5- estabelecer, acaso se tenha os poderes político e legislativo necessários, sistemas de garantias (econômicas, políticas, sociais e, sobretudo, jurídicas) que comprometam as instituições nacionais e internacionais ao cumprimento do conseguido por essas lutas pela dignidade8. então, não basta para a garantia dos direitos humanos destas crianças utilizadas como exemplo apenas a aplicação da legislação já proclamada e garantida, não basta dizer que estas crianças possuem o direito de ser crianças. É necessário agir, garantir e conceder a elas o acesso igualitário aos bens materiais e imateriais que possam trazer dignidade. para tanto, necessitamos partir de uma visão diferente, precisamos construir uma sociedade mais justa, dar educação de qualidade, quebrar estigmas, construir um espaço político amplo e justo não somente de mera democracia formal, com eleição dos governantes, mas um espaço político onde os grupos sociais, onde as classes discriminadas e oprimidas tenham voz e sejam ouvidas, onde os direitos não sejam somente da burguesia. Como ensina HeRReRA fLOReS9, a recuperação do político é uma das tarefas mais importantes em uma teoria crítica e complexa dos direitos humanos. Com ele, rompe-se com as posições naturalistas que concebem os direitos como uma esfera separada e prévia da ação política democrática. esta separação produz, pelo menos, duas consequências perversas; primeiro, uma concepção separada da ação social: de um lado a ação social dirigida aos interesses individuais e privados e de outro voltada à construção de espaços sociais, econômicos e culturais coletivos, públicos e 8 HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos, p. 27-29, tradução nossa. 9 HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos, p. 66-68, tradução nossa. 39 IDHID democráticos. Segundo, dita condição prévia dos direitos humanos conduz a uma visão estreita, pois, ao não estar afetada pelo político, pelo polêmico, pelo que muda em função dos contextos e das relações de poder, é considerada como um mundo de coisas imodificáveis e imutáveis. Os direitos humanos não podem ser entendidos separados do político, já que, se assim fosse, haveria uma dicotomia absoluta entre ideais e fatos. Os ideais formariam parte de um mundo separado das realidades cotidianas, não situados em contextos reais de convivência. enquanto os fatos seriam vistos como elementos que conformam a objetividade social, ou seja, o conjunto de obstáculos objetivos que impedem a implementação real desses ideais abstratos. Além da recuperação do político, a educação é outro fator principal para a transformação social. É necessário trabalhar, como ensina bOAVenTuRA10, com a invenção social de um novo conhecimento emancipatório, o qual é uma das condições essenciais para romper com a autorreprodução do capitalismo. essa invenção é um longo processo social já em curso e os seus indícios mais evidentes são a crítica epistemológica radical da ciência moderna. Tal crítica permite-nos ver como a ciência moderna, vista como solução para todos os problemas das sociedades modernas, acabou por se tornar ela própria um problema. A transformação gradual da ciência numa força produtiva neutralizou-lhe o potencial emancipatório e submeteu-a ao utopismo automático da tecnologia. A educação é, sem dúvida, a base de uma sociedade democrática. Sem educação, não há direitos, não há luta pela dignidade, não há igualdade. e, para tanto, será necessária uma reformulação de todo o ensino público e privado, já que é evidente a fragilidade hoje existente nesta área. por fim, outra garantia importante a ser trabalhada é a cultural. no que tange ao trabalho infantil, citado como exemplo, há uma barreira muito grande a ser vencida, que é a cultura que a sociedade tem acerca do trabalho infantil. É preciso vencer os mitos do trabalho infantil e não mais pensar que é melhor que a criança 10 SAnTOS, boaventura de Souza. a crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, p. 117. 40 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO esteja trabalhando a estar roubando ou cheirando cola. em um mundo onde mais de um bilhão de pessoas são analfabetas, não se pode pensar que o filho de uma família pobre deve estar trabalhando e o de uma família rica deve estar estudando. Deve-se garantir um futuro digno a todas as crianças, o que somente será obtido através da educação e da mudança de cultura da sociedade. O direito de estudar e de ter uma visão ampla da sociedade e do mundo não é um direito restrito, mas acessível a toda criança. Assim, trabalhar com garantias culturais também passa a ser de fundamental importância para que a visão estigmatizada que a sociedade tem acerca da matéria seja mudada. portanto, ao ser aprovado em um concurso público, o novo ator jurídico, em especial um membro do Ministério público do Trabalho, deverá ter consciência de que a nossa sociedade possui leis justas e injustas, que muitas das leis justas não são efetivas e não garantem, de fato, o respeito à dignidade humana, e que é necessário lutar para garantir os direitos de milhões de pessoas que acreditam na sua função, na sua capacidade, no seu poder de transformação. para tanto, terá de ter consciência de que as garantias jurídicas são apenas uma forma para resguardar os direitos, não podendo esquecer de outras, de cunho social, econômico, cultural e político, que completam o arcabouço de garantias. Assim, tendo em mente uma teoria crítica, voltada a garantir o acesso igualitário e não hierarquizado aos bens materiais e imateriais a todas as pessoas indistintamente, estará fazendo a sua parte. e é assim que chegaremos a uma sociedade mais justa, que conseguiremos reduzir as desigualdades sociais e que lutaremos por um mundo melhor. referências bibliOgráficas HeRReRA fLOReS, Joaquín. (Org.). el vuelo de anteo: derechos humanos y critica de la razón liberal. bilbao: Desclée de brouwer, 2000. ______. la reinvención de los derechos humanos. Andalucia: Atrapasueños, 2008. 41 IDHID SÁnCHez RubIO, David. repensar derechos humanos: de la anestesia a la sinestesia. Sevilla: Mad, 2007. SAnTOS, boaventura de Souza. a crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 6. ed. São paulo: Cortez, 2007. v. 1. WOLKMeR, Antônio Carlos. introdução ao pensamento jurídico crítico. 5. ed. rev. São paulo: Saraiva, 2006. 42 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO um cOmprOmissO éticO pela riqueza humana jefferson aparecido dias procurador da República Ainda nos bancos universitários, me perguntava o que teria que fazer para ser aprovado em um concurso público no âmbito jurídico, uma vez que a advocacia, apesar de reconhecer a sua importância, não estava em meus planos. Terminado o curso de direito e passados alguns anos, um dia fui aprovado no concurso público do Ministério público federal para procurador da República, e a pergunta de outrora se transformou em outra: o que devo fazer agora que já passei em um concurso público? Daquele dia até hoje já se passaram mais de dez anos, o número de concursos aumentou e o de candidatos multiplicou-se de forma assustadora, mas as dúvidas dos recém-aprovados quase sempre são as mesmas, o que inspirou a redação deste artigo. Tal qual ocorreu com a primeira, a resposta para essa nova pergunta também não é simples e envolve muitas variáveis, já que uma simples leitura da Constituição brasileira demonstra que o papel do Ministério público no brasil é bastante amplo e envolve temas muito distintos: meio ambiente, matéria criminal, criança e adolescente, improbidade administrativa, patrimônio público e cultural, etc. Com um âmbito de atuação tão grande, que não encontra paralelo em nenhum outro lugar do mundo, é normal que existam dúvidas quanto à melhor forma de atuar. Apesar das dúvidas, um dos primeiros sentimentos que assolam um recém-aprovado para procurador da República é o de que se tornou um super-herói, daqueles que povoam as histórias em quadrinhos e as telas do cinema. nesse momento, o recém-aprovado deve se recordar que “grandes poderes envolvem grandes responsabilidades”, como disse Dr. paulo Vasconcelos Jacobina, procurador-Regional da Repúbli43 IDHID ca na 1ª Região, durante um curso de iniciação para procuradores da República recém-aprovados, relembrando frase dita num filme envolvendo um dos super-heróis mais famosos da atualidade1. Assim, é importante recordar que os poderes são grandes justamente em razão dessas responsabilidades, uma vez que são poderes instrumentais, ou seja, não são um fim em si mesmo, mas sim meios para que seja possível atingir os seus fins. A tendência é que com o tempo o sentimento de “super-herói” desapareça diante do enorme volume de trabalho que diariamente se apresenta para ser realizado. Surge um outro problema: como o número de processos não cede, existe uma tendência em todas as instituições, e que acaba contagiando as pessoas, de prestigiar os processos que envolvam maiores valores ou que possuam maior repercussão na sociedade ou na mídia, os quais seriam os processos “importantes”, deixando de lado os demais que seriam “normais”, por envolver pessoas e fatos “normais”. Ainda, como consequência dessa visão equivocada, pode ocorrer que nosso ex-candidato e agora servidor público acabe se tornando um escravo das estatísticas, fazendo somente o necessário para atingir uma produtividade (às vezes mínima) que lhe evite problemas. É claro que alguns casos são mais complexos do que outros e, em razão disso, exigem maior tempo de estudo e de efetiva atuação, o que não significa que sejam mais ou menos importantes. Afinal, todos os processos envolvem pessoas que esperam ver reconhecidos os seus direitos. São milhares, e algumas vezes milhões de pessoas, para as quais o seu processo é o mais importante. nesse ponto, nos parece que o grande problema é que o capitalismo, atualmente intensificado por sua vertente neoliberal, tem provocado uma apropriação econômica de tudo o que envolve a vida humana. Assim, são importantes os processos nos quais estejam “em jogo” grandes quantidades de recursos econômicos ou outros bens que possam ser avaliados economicamente. 1 frase dita por “Tio ben” para “peter parker/Homem Aranha”, no filme Homem Aranha. SpIDeR-MAn. Direção Sam Raimi. 2002. 121 minutos. euA. Ação. 44 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO um dos maiores defensores dessa análise econômica do direito é Richard posner que, partindo da premissa de que o homem é um maximizador racional de seu autointeresse, defende que tudo e todos podem ser reduzidos a um equivalente valor em dinheiro. Assim, todos os bens materiais (móveis e imóveis) e imateriais (saúde, alegria, etc.), possuem um equivalente econômico e “o valor econômico de algo consiste no que alguém está disposto a pagar por ele ou, se já o tem, a quantidade de dinheiro que pede para desfazer-se dele”.2 A soma de todos esses valores econômicos representaria a riqueza econômica que3: (…) é o valor em dinheiro ou moeda equivalente de tudo na sociedade. Se mede pelo que as pessoas estão dispostas a pagar por algo ou, se já o possui, o que exigiria em dinheiro para separar-se dele. A única preferência que conta em um sistema de maximização da riqueza é, portanto, aquela que se vê respaldada pelo dinheiro, em outras palavras, aquela que se registra no mercado. A partir dessa definição, posner defende que o poder Judiciário e todos os demais órgãos públicos devem atuar para que os bens materiais e imateriais alcancem as mãos daquelas pessoas que mais os valorizam, independentemente de qual a situação em que sejam remetidas ou mantidas as demais pessoas. essa teoria, algumas vezes de forma inconsciente e outras não, tem justificado que se dê maior atenção aos processos que envolvam grandes valores e que, portanto, seriam mais importantes, mas o maior problema dessa teoria é que pretende nos convencer de que maximizar a riqueza é algo natural e, portanto, atuar dessa forma seria a única postura racional que se pode admitir dos seres humanos. Desde já gostaríamos de deixar claro que não concordamos com essa teoria, que nada tem de natural, uma vez que esta moti2 pOSneR, Richard A. el análisis económico del derecho. México: fondo de Cultura económica, 1997, p. 19. Tradução livre. 3 Conceito de Richard posner, citado por ROeMeR, Andrés. introducción al análisis económica del derecho. México: Instituto Tecnológico Autónomo de México, Sociedad Mexicana de Geografía y estadística e fondo de Cultura económica, 1994, p. 32. Tradução livre. 45 IDHID vada pelos interesses econômicos dos detentores do poder, para os quais interessa manter o status quo de exclusão da maior parte da sociedade mundial. O que defendemos, baseados na proposta de Joaquín Herrera flores, é que essa teoria seja substituída por outra que reconheça o valor imanente de cada vida ou pessoa, independentemente dos valores econômicos que delas decorrem: substituir a riqueza econômica pela riqueza humana4. para tanto, precisamos adotar a posição de que toda vida humana, independente dos aspectos econômicos que a envolvam, tem um valor intrínseco, que deve ser respeitado por todas as pessoas e instituições. precisamos aceitar que o valor está em “uma vida” e em cada uma delas, e não apenas nos recursos econômicos que essa vida pode gerar. Gilles Deleuze nos dá um bom exemplo do que é reconhecer o valor da vida, usando para tanto a obra “nosso amigo comum”, de Charles Dickens5: um canalha, um sujeito vil desprezado por todos está agonizando e os encarregados de curá-lo manifestam uma espécie de esmero, de respeito, de amor pelo menor sinal de vida do moribundo. Todos se empenham em salvá-lo, ao ponto de que no mais profundo de seu coma o vilão sente que algo doce o penetra. Mas a medida que retorna à vida seus salvadores se tornam mais frios, e ele recupera toda sua grosseria e sua maldade. entre sua vida e sua morte, há um momento que não é mais que o de uma vida que joga com a morte. A vida do indivíduo cedeu lugar a uma vida impessoal, e todavia singular, da qual se desprende um puro acontecimento liberado dos acidentes da vida interior e exterior, é dizer, da subjetividade e da objetividade do que passa ... Se trata de uma “hecceidad”, que não é uma individualização mas sim uma singularização: vida de pura imanência, neutra, mais além do bem e do mal, porque somente o sujeito que a encarnava no meio das coisas a tornava boa ou má. 4 HeRReRA fLOReS, Joaquín. O nome do riso – breve tratado sobre arte e dignidade. porto Alegre : Movimento; florianópolis : CeSuSC; florianópolis : bernúncia, 2007, p. 121. 5 DeLeuze, Gilles. La inmanencia: una vida (…) in: GIORGI, Gabriel; RODRIGuez, fermín (comps). ensayos sobre biopolítica – excesos de vida. buenos Aires : paidós, 2007, p. 38. Tradução nossa. 46 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO A adoção da riqueza humana como ponto de partida deve decorrer não de uma origem transcendental, alheia ao ser humano, ou mesmo natural, como se fosse da própria essência dos seres humanos, mas sim de um compromisso ético de cada um de nós, em relação a nós mesmos, aos outros e à natureza6: Deste modo, toda assunção individual de responsabilidade é sempre corresponsabilidade com a situação dos outros, já que o máximo grau de compromisso com nós mesmos, com os outros e com a natureza, é dizer, o máximo grau de responsabilidade a que podemos aspirar – o compromisso com os direitos humanos – é o de criar as condições e possibilidades sociais, econômicas, culturais, políticas e jurídicas de ter, exigir e garantir as responsabilidades que assumimos nesse processo de humanização do humano. Dessa forma, a vida de cada pessoa, a partir desse compromisso ético, antes de individualizada, deve ser singularizada e reconhecida como única, impossível de ser comparada com a vida de outra pessoa. Assim, cada vida deve ter reconhecido o mesmo valor, que não é econômico, mas decorre dela própria, como uma vida em potencial, que não pode ser reduzida a um valor econômico. precisamos reconhecer que7: A vida não pode fixar-se em uma descrição que imobilize o seu poder de mudança e “devenir”. Ou, em outras palavras, a vida não se define pelo que é, mas sim pelo que pode ser, pelo poder de um corpo de afetar e ser afetado, de multiplicar suas conexões, de criar novas relações, de aumentar sua capacidade de atuar. Definir um corpo a partir do verbo “ser” supõe separá-lo do que pode e ajustá-lo a uma imagem ou a uma identidade já determinada (ou teleológica) que domina ao conjunto em função de certo resultado, que opera uma codificação em relação a uma norma. e o que um corpo é capaz de fazer não pode definir-se de antemão: depende de seus encontros e conexões com outras linhas de “devenir” onde o que se atualiza é somente uma porção de seus poderes. uma 6 HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos. Andalucía : Atrapasueños, 2008, p. 200. Tradução nossa. 7 GIORGI, Gabriel; RODRIGuez, fermín (comps). ensayos sobre biopolítica – excesos de vida. buenos Aires : paidós, 2007, p. 22. Tradução nossa. 47 IDHID vida “devene” junto a outras produzindo relações, afirmando diferencialmente seu poder, seu ritmo, seu estilo singular de mudar, em um processo aberto e em formação que não tende a um standard prévio de medida. A partir dessa premissa de que a vida humana tem um valor que é imanente e que independe de outros fatores externos, defendemos que todos os nossos atos devem partir do reconhecimento da riqueza humana, abandonando qualquer consenso ao redor do valor econômico que a vida possa produzir. A mesma lógica deve ser aplicada nos processos, pois, se todos eles envolvem pessoas dotadas de um mesmo valor imanente, todos são importantes e não podem ser colocados de lado ou mesmo menosprezados. não podemos, então, dividir os processos em “importantes” e “normais”, pois todos teriam de ser reconhecidos como importantes, em razão das vidas que envolvem. Assim, para aquela pergunta feita no início, a minha resposta é que, depois de aprovado em um concurso público, reconheça que toda pessoa tem um valor que lhe é imanente, decorrente de sua riqueza humana, e, portanto, o processo do qual faz parte traz consigo esse valor, independentemente dos valores econômicos envolvidos, razão pela qual todos os processos demandam uma atuação responsável, comprometida com a dignidade humana, que seria o fim a ser atingido por meio do exercício dos já mencionados poderes instrumentais. Dignidade humana que aqui é adotada: “não (como) o simples acesso aos bens, mas sim que dito acesso seja igualitário e não esteja hierarquizado a priori por processos de divisão do fazer que colocam a uns em âmbitos privilegiados na hora de aceder aos bens e a outros em situações de opressão e subordinação”8. Se todos os servidores públicos, inclusive os que ocupam cargos no meio jurídico, adotarem esse compromisso ético, temos certeza de que, muito em breve, poderemos estar vivendo em um mundo melhor, no qual a dignidade humana de todas as pessoas seja respeitada e não apenas daquelas que possuam maiores recur8 HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos. Andalucía : Atrapasueños, 2008, p. 26. Tradução nossa. 48 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO sos econômicos e se encontram envolvidas em processos considerados “importantes”. esperamos que juntos possamos construir esse futuro melhor. e se você ainda não foi aprovado num concurso público, talvez a solução seja comprometer-se com a riqueza humana e lutar pelo reconhecimento, respeito e garantia da dignidade de todas as pessoas, pois esse nos parece o melhor caminho não só para ser aprovado, mas para toda a vida. referências bibliOgráficas DeLeuze, Gilles. La inmanencia: una vida… in: GIORGI, Gabriel; RODRIGuez, fermín (comps). ensayos sobre biopolítica – excesos de vida. buenos Aires : paidós, 2007. GIORGI, Gabriel; RODRIGuez, fermín (comps). ensayos sobre biopolítica – excesos de vida. buenos Aires : paidós, 2007. HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos. Andalucía: Atrapasueños, 2008. HeRReRA fLOReS, Joaquín. O nome do riso – breve tratado sobre arte e dignidade. porto Alegre : Movimento; florianópolis : CeSuSC; florianópolis: bernúncia, 2007. pOSneR, Richard A. el análisis económico del derecho. México: fondo de Cultura económica, 1997. ROeMeR, Andrés. introducción al análisis económica del derecho. México: Instituto Tecnológico Autónomo de México, Sociedad Mexicana de Geografía y estadística e fondo de Cultura económica, 1994. SpIDeR-MAn. Direção Sam Raimi. 2002. 121 minutos. euA. Ação. 49 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO vOcê já fOi aprOvadO em cOncursO públicO? a missãO agOra é ser aprOvadO cOmO servidOr públicO, na vida pública, cOm espíritO públicO, em benefíciO dO públicO ramiro rockenbach da silva matos teixeira de almeida procurador da República Seja um servidor público consciente e crítico. não reclame, proponha alternativas. não lamente, crie. não se acomode, renove-se a cada dia. O momento tão esperado chegou. Após centenas ou milhares de horas de muito estudo e dedicação, aquele incansável estudante está a poucos momentos de sua posse no cargo público sonhado. um olhar para trás revela uma trajetória de angústias e incertezas. Dia após dia a pergunta, cedo ou tarde, surgia: será que vou conseguir ser aprovado num concurso público? O presente, felizmente, lhe deu um presente. A aprovação é uma realidade. O cotidiano mudou. O estudante se tornou servidor público. entretanto, a vida é, em certo aspecto, um conjunto de momentos. um novo momento emerge com todo o vigor. O agora apresenta outra questão: o que fazer depois de passar num concurso público? uma nova jornada se inicia. O primeiro passo está consolidado (a aprovação no concurso público), mas a longa caminhada está apenas começando. e é sobre algumas sugestões desse tão relevante caminhar que passaremos a tratar nas próximas linhas. O que deve ser concretizado? Como e com quais objetivos deve atuar todo aquele que foi aprovado num concurso público? qual o caminho a seguir? quais as diretrizes? por certo é possível fazer muito e não existem fórmulas acabadas. O caminho não está pronto, justamente porque o caminho se faz ao caminhar. O poema do espanhol Antonio Machado, sob o título “Caminante no 51 IDHID hay camino”1, é enriquecedor e serve de incentivo, nesse momento inicial e através da arte, para que o servidor público esteja sempre atento aos desafios constantes e às possibilidades infinitas que surgem à sua frente em razão do cargo público que ocupa: Todo pasa y todo queda, pero lo nuestro es pasar, pasar haciendo caminos, caminos sobre el mar. nunca perseguí la gloria, ni dejar en la memoria de los hombres mi canción; yo amo los mundos sutiles, ingrávidos y gentiles, como pompas de jabón. Me gusta verlos pintarse de sol y grana, volar bajo el cielo azul, temblar súbitamente y quebrarse... nunca perseguí la gloria. Caminante, son tus huellas el camino y nada más; caminante, no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se hace camino y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar. Caminante no hay camino 1 Letra disponível em <http://www.poemas-del-alma.com>. Acesso em 28 dez. 2007. 52 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO sino estelas en la mar... Hace algún tiempo en ese lugar donde hoy los bosques se visten de espinos se oyó la voz de un poeta gritar “Caminante no hay camino, se hace camino al andar...” Golpe a golpe, verso a verso… Murió el poeta lejos del hogar. Le cubre el polvo de un país vecino. Al alejarse le vieron llorar. “Caminante no hay camino, se hace camino al andar...” Golpe a golpe, verso a verso... Cuando el jilguero no puede cantar. Cuando el poeta es un peregrino, cuando de nada nos sirve rezar. “Caminante no hay camino, se hace camino al andar...” Golpe a golpe, verso a verso. De fato, “não há caminho, o caminho se faz ao caminhar”. É claro que existem regras, procedimentos, rotinas e todo um histórico próprio do serviço público. Os órgãos públicos existem há anos. Logo, “fazer caminho ao caminhar” não significa começar do zero como se nada existisse ou não tivesse valor. Ao contrário, o serviço público, os órgãos públicos, via de regra, vão-se aprimorando com o tempo. Com os erros e acertos dos outros devemos sempre aprender, corrigindo e aprimorando. Tudo isso, em verdade, é para afirmar com todas as letras: é preciso ser um servidor público consciente e crítico. 53 IDHID exatamente. Ser um servidor público consciente e crítico. Ou seja, estar atento à realidade para não se tornar refém de um sistema burocrático e desprovido de efetividade. formas e procedimentos são importantes, claro. entretanto, é necessário ter sempre presente que são meros instrumentos e nada mais. Têm extrema relevância em busca de resultados, pois garantem um registro histórico de atos e fatos e permitem a comprovação de que as tarefas do servidor público foram realizadas em conformidade com regras e normas. Mas, ainda assim, continuam sendo somente instrumentos (meios em busca de um fim). O atuar do servidor público não pode estar limitado ao cumprimento de etapas procedimentais (que, repita-se, são meros instrumentos!). uma situação hipotética, mas real no dia-a-dia do serviço público, explica melhor a questão. Imagine um cidadão que tem um problema relacionado à saúde, ou à educação, ou à moradia, ou que simplesmente almeja determinada informação do poder público. Como o serviço público é compartimentado (divisão de tarefas e atribuições), o cidadão estará sujeito a uma série de atos procedimentais e burocráticos (registro do pedido em um setor, encaminhamento para outro, decisão noutro, enfim). Ora, o cidadão deseja uma resposta ao seu problema. e o dever do servidor público é assegurar essa resposta. para tanto, todos os setores do serviço público devem funcionar e de modo harmônico. Se uma parte do todo falha, o todo não funciona. e a responsabilidade pelo funcionamento do todo é de todas as partes. O que se está querendo dizer é que o serviço público, embora possa parecer óbvio, tem um fim a cumprir. e o papel do servidor público é atuar para que o fim seja cumprido. não basta executar suas “tarefas procedimentais”. É essencial agir para que o todo funcione. quando for sua atribuição atuar diretamente, atue. quando não for, aponte erros, faça sugestões, debata, proponha mudanças, demonstre que algo, em algum setor, precisa ser revisto, já que, apesar do seu esforço e dedicação no desempenhar de suas funções, o resultado desejado não está ocorrendo no mundo real. formule-se sempre, no mínimo, três questões: 54 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO 1) eu, servidor público, estou exercendo da melhor forma possível as minhas funções? 2) O resultado do serviço público no qual exerço minhas funções é o esperado? 3) Se eu estou exercendo bem minhas funções e o resultado do serviço público no qual as exerço não é o esperado, o que estou fazendo para mudar essa realidade? São questões que pretendem sedimentar o seguinte: uma vez aprovado em um concurso público, não seja refém do sistema, de procedimentos, de atos burocráticos e de divisão de atribuições. seja um servidor público consciente e crítico. não reclame, proponha alternativas. não lamente, crie. não se acomode, renove-se a cada dia. É claro que o grau de interferência do servidor público varia de acordo com a função que exerce. quanto maior o nível de responsabilidade, maior a possibilidade de concretizar mudanças e melhorar o serviço público. no entanto, mesmo as tarefas aparentemente menores podem ser aprimoradas. Todos têm a colaborar. Seja um servidor público de corpo, alma e coração. Seja um servidor público impulsionado pelo espírito público! e o que é o espírito público? É, pensamos, o atuar e o caminhar em busca de dias melhores para todos e todas, por acreditarmos, do início ao fim de cada dia, que, nos termos do lema do fórum Social Mundial2, sim, “um outro mundo é possível”! Mas, enfim, o que significa agir pelo bem de todos e todas? É preciso, claro, delimitar esse “todos” e “todas” para que algo seja realizável no âmbito do serviço público. A jornalista brasileira Cláudia Werneck nos apresenta um questionário sugerindo que marquemos com um “x” as minorias, reais ou virtuais, que fazem parte do nosso “todos” ou do nosso “todas” social, isto é, quem cada um considera como “todos” e “todas”. que tal marcar o seu “todos” e “todas”? então, “quem pertence a teu todos”3? 2 Informações complementares disponíveis em <http:// www.forumsocialmundial.org.br>. Acesso em 30 mar. 2009. 3 WeRneCK, Cláudia. ¿quién pertenece a tu todos? Rio de Janeiro: WVA, 2004, p. 51-52. 55 IDHID ( ) Jornalistas ( ) pessoas com deficiência intelectual ( ) pessoas com deficiência física ( ) pessoas com transtornos mentais ( ) Caudilhos ( ) Antropófagos ( ) Refugiados ( ) Homossexuais ( ) Hermafroditas ( ) Aposentados ( ) Grávidas ( ) negros ( ) filhos de presos/as ( ) Assassinos ( ) Argentinos ( ) Indígenas ( ) Operadores de Telemarketing ( ) pessoas com deficiência múltipla ( ) Ciganos ( ) pessoas com perna-de-pau ( ) Lixeiros ( ) Mendigos ( ) ex-presidentes ( ) palhaços de circo ( ) presos/as ( ) brasileiros ( ) Chineses ou orientais ( ) políticos ( ) prostitutas ( ) empregadas domésticas ( ) pessoas com deficiência sensorial ( ) Imigrantes ( ) bissexuais ( ) brancos ( ) estrelas de Hollywood ( ) Vendedores de rua ( ) Criadinhas Vamos analisar o resultado? em verdade, a conclusão de Cláudia Werneck, com a qual comungamos em gênero, número e grau, é a de que “quem deixou de marcar um item deve revisar o uso que faz da palavra TODOS urgentemente”.4 De fato, “todos” são “todos”. não podem existir exceções nem observações, tampouco qualquer preconceito ou justificativa de exclusão. Trata-se de “todos” e não de “alguns”, ou da “maioria”, ou de um “quase-todos”. e é um aspecto muito relevante. um serviço público que almeja o bem comum, uma vida digna para todos, deve transparecer claramente o que entende por “todos”. Isso significa que as melhores condições de vida buscadas são para os trabalhadores e para as trabalhadoras, presos e presas, políticos 4 Op. cit., p. 52. 56 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO e políticas, professores e professoras, desempregados e desempregadas, empresários e empresárias, criminosos e criminosas, pessoas com deficiência, corruptos e corruptas, enfim. É importante, sobretudo em se tratando de serviço público, o completo afastamento de preconceitos. A razão de existir do servidor público, lembre-se, é a necessidade imperiosa de uma atuação em busca de dias melhores para todos e todas. um agir sem discriminar, sem prejulgar. um olhar consciente e crítico. uma postura ativa sem ser refém do sistema (o sistema que para atingir seu fim divide tarefas; tarefas que, quando executadas de modo burocrático, procedimental e isolado, são desprovidas de efetividade; efetividade que muitas vezes não é alcançada pelo fato de o sistema, funcionando em suas partes e não funcionando no todo, não funcionar como sistema). O servidor público não deve apenas funcionar no sistema. Deve, exercendo suas funções, fazer de tudo para que o sistema funcione! O caminho, remarque-se, ainda está sendo traçado. não importa o quanto se mostre árduo. O fundamental é que todo servidor público esteja atento e disposto a fazer prevalecer o espírito público e o desejo incessante e infinito de dias melhores para todos e todas. As transparentes palavras de frei betto fazem eco: não é o poder, a vitória, o lapidar cartesiano das ideologias que movem meus passos. É o escândalo da miséria, a vergonha da pobreza, o sofrimento de meus semelhantes, a razão dessa invencível teimosia em juntar cacos, costurar retalhos, começar de novo, refazer o caminho, ainda que a roda do moinho deixe a impressão de que anda sem sair do lugar, tudo gira em torno de um mesmo ponto, nessa cíclica labuta sobrecarregada de esperanças abortivas. Venho de um povo peregrino. Venho da confiança de noé na reinvenção do humano, da persistência dos hebreus na travessia do deserto, do desalento de elias clamando pela morte, do aparente fracasso do nazareno dependurado na cruz. e trago em mim a marca indelével do pecado original. Sei que novos projetos exibirão fraturas, sonhos virarão pesadelos, o militante de hoje será o arrogante de amanhã. Se os coxos não tropeçam é por prestarem mais atenção aos acidentes do percurso. 57 IDHID ainda assim, salvam-me do ceticismo a fé no ser humano, os avanços históricos, a proclamação dos direitos humanos, a indignação coletiva frente à corrupção e à injustiça, o repúdio à guerra, à escravidão e à tortura, a progressiva conquista de cidadania e democracia. salva-me a genética bíblica do grão de mostarda – a menor de todas as sementes engendra uma árvore frondosa onde os pássaros se aninham.5 Com efeito, um dos fundamentos básicos no serviço público talvez deva ser o de jamais deixar de acreditar que sempre é possível fazer algo novo, reinventar, começar outra vez se for necessário. não se acomodar. não desistir. não se deixar afetar por eventuais desilusões e decepções. A vida, rememore-se, é marcada por momentos. Lembre-se de quando a dificuldade era ser aprovado em um concurso público. Os tempos agora são outros. Imerso no serviço público, os obstáculos surgem a todo instante. e é a postura do servidor público que faz toda a diferença. É válido sedimentar: “seja um servidor público consciente e crítico. não reclame, proponha alternativas. não lamente, crie. não se acomode, renove-se a cada dia”. não faça apenas a sua parte! faça a diferença do todo! Os bem lançados comentários de Amilton bueno de Carvalho, tratando de temas relacionados à lei e ao papel de magistrados e demais juristas podem, com as devidas adaptações, servir de referência a todo e qualquer cargo ou função pública: Ora, ante o insuportável volume de trabalho, a forma mais rápida de o Juiz livrar-se dos processos é julgar mecanicamente. Ao invés de ter atividade criadora, crítica, transformadora, o excesso de trabalho faz com que, de maneira menos desgastante no plano físico, seja aplicado o saber consagrado ou apenas a dita vontade do legislador por menos nobre que possa ser. (...) O excessivo volume de trabalho carrega, pois, vantagem: o juiz continua conservador e acomodado. aliás, é extremamente perigoso dar condições para uma pessoa pensar. mais perigoso ainda é deixar pensar criativamente aquele que tem o poder de julgar. é que se perde o controle sobre ele.6. 5 beTTO, frei. a mosca azul: reflexão sobre o poder. Rio de Janeiro: Rocco, 2006, p. 122123. Destaque nosso. 6 CARVALHO, Amilton bueno de. magistratura e direito alternativo. Rio de Janeiro: Luam, 1997, p. 95. Destaque nosso. 58 O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO em definitivo, é preciso estar atento ao mundo lá fora para que o atuar no serviço público não se torne uma fria e infrutífera repetição sistêmica de atos burocráticos e procedimentais. não deixe de pensar. não permita que a rotina excessiva de trabalho prevaleça sobre a necessidade de contribuir para um mundo melhor. O serviço público não pode estar restrito a um funcionar de modo mecânico, automático, sem pensamento crítico e construtivo. O servidor público, em qualquer órgão, cargo ou função deve travar uma luta árdua e contínua para não se tornar verdadeiro refém do sistema que aliena e produz máquinas de trabalhar: trabalho em quantidade, mas questionável. Ganham as estatísticas, vence a produtividade. Mas o que realmente estamos fazendo para mudar a dura realidade social? Você já foi aprovado em concurso público. A missão agora é ser aprovado como servidor público, na vida pública, com espírito público, em benefício do público. A resposta a esses questionamentos finais cada servidor público deve tornar realidade no seu dia-a-dia de trabalho no serviço público. Do início ao fim do expediente e da posse à aposentadoria. não faça apenas a sua parte! faça a diferença do todo! referências bibliOgráficas beTTO, frei. a mosca azul: reflexão sobre o poder. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. CARVALHO, Amilton bueno de. magistratura e direito alternativo. Rio de Janeiro: Luam, 1997. fÓRuM SOCIAL MunDIAL. Disponível em <http://www.forumsocialmundial.org.br>. Acesso em 28 dez. 2007. MACHADO, Antônio. Caminante no hay camino. Disponível em <http://www.poemas-del-alma.com>. Acesso em 28 dez. 2007. WERNECK, Cláudia. ¿Quién pertenece a tu todos? Rio de Janeiro: WVA, 2004. 59