O que fazer depOis de passar em um
cOncursO públicO
Organizadores
Jefferson Aparecido Dias
Antonio Henrique Graciano Suxberger
Carlos Roberto Diogo Garcia
Ruben Rockenbach Manente
O que fazer depOis de passar em um
cOncursO públicO
IDHID
Instituto de Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento
2009
Copyright © 2009 Jefferson Aparecido Dias, Antonio Henrique Graciano Suxberger e Carlos
Roberto Diogo Garcia
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida sem prévia autorização dos
autores por escrito.
Ficha Catalográica
Impresso no Brasil
sumáriO
apresentação idhid ..........................................................................7
apresentação por flávia piovesan ....................................................9
reflexões sObre O “dia seguinte” à aprOvaçãO num
cOncursO para a magistratura
André Luiz Machado ................................................................... 11
O tamanhO dOs nOssOs sOnhOs:
pOlítica e demOcracia nO espaçO entre nós e O cOntextO
Antonio Henrique Graciano Suxberger............................................21
a impOrtância dO pensamentO críticO nO
desempenhO de uma funçãO pública
Daniele Corrêa Santa Catarina.........................................................33
um cOmprOmissO éticO pela riqueza humana
Jefferson Aparecido Dias .................................................................43
vOcê já fOi aprOvadO em cOncursO públicO?
a missãO agOra é ser aprOvadO cOmO
servidOr públicO, na vida pública,
cOm espíritO públicO, em benefíciO dO públicO
Ramiro Rockenbach da Silva Matos Teixeira de Almeida .................51
O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
a realizaçãO de um sOnhO:
a criaçãO dO idhid!
O Instituto Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento (IDHID) é a realização de um sonho e o resultado da união
de duas perspectivas: teoria e prática.
O viés de ordem teórica vem sendo desempenhado, há mais
de uma década de docência e coordenação junto a cursos de graduação e pós-graduação na universidad pablo de Olavide (Sevilhaespanha), pelo professor espanhol Joaquín Herrera flores nos termos da elaboração e constante (re)invenção de sua Teoria Crítica
dos Direitos Humanos.
por sua vez, a seara prática é reflexo da iniciativa dos alunos
e alunas do “maestro” Herrera flores (em especial dos cursos de
Doutorado em “Derechos Humanos y Desarrollo”, 5ª edição, e do
Máster Oficial em “Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo”, edição 2007-2008), com o objetivo de levar a cabo – através
da criação do Instituto – os ideais e as lutas em prol dos direitos
humanos.
São, pois, objetivos do IDHID: promover o estudo, capacitação, desenvolvimento e fortalecimento da Teoria Crítica dos Direitos Humanos; realizar o intercâmbio de experiências e a harmonização de soluções; estabelecer e manter relações de caráter
acadêmico com organismos, instituições, governos e associações;
entre outros. frise-se que o Instituto possui sede e/ou representação na América Latina, África e europa.
Acreditamos que a referida soma entre teoria e prática abrirá
novos caminhos em prol de nossa fundamental e maior luta: um
acesso mais igualitário aos bens (materiais e imateriais) indispensáveis a uma vida digna de ser vivida. eis nosso entendimento dos
direitos humanos como processos de luta pela abertura e consolidação dos espaços da dignidade humana em direção de um mundo
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IDHID
menos injusto e cruel, na tarefa de reduzir (e, quiçá, eliminar) as
múltiplas formas de exclusão em que vivem os seres humanos.
essa é marca genuína de nossa luta, nossa bandeira, nosso
ideal!
Garopaba-SC, abril de 2009.
Ruben Rockenbach Manente
presidente do IDHID - brasil
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
apresentaçãO
para Habermas, “a sociedade justa deixa a critério de todas
as pessoas aquilo que elas querem iniciar com o tempo de suas
vidas”, garantindo a todos a mesma liberdade para uma autocompreensão ética.
A obra “O que fazer depois de passar em um concurso público” é
expressão maior da busca de sentido vital, pautada na perspectiva crítica, realista, visionária e marcada pelo compromisso ético e
social. É fruto e produto das atividades iniciais do “Instituto Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento”, criado em
Sevilha, no programa de pós-Graduação em Direitos Humanos da
universidade pablo de Olavide, em 2008, com o objetivo de desenvolver a teoria crítica dos direitos humanos.
A coletânea de textos elaborados por profissionais de distintas instituições jurídicas (Ministério público, Magistratura), em sua
diversidade, converge na mesma direção: assume a aprovação em
um concurso público não como um ponto de chegada, mas como
ponto de partida para uma atuação emancipatória, que permita
fazer a diferença na defesa e proteção da dignidade humana. De
forma instigante, os autores convidam ao desafio de uma reinvenção institucional, guiada pela ética dos direitos humanos.
Os textos, cada qual ao seu modo, compartilham do enfoque
da teoria crítica dos direitos humanos, tendo como inspiração e
referência a obra de Joaquin Herrera flores. nesta visão, os direitos humanos são compreendidos como processos institucionais e
sociais que possibilitam a abertura e a consolidação de espaços de
luta pela dignidade humana. fundamental é captar os direitos humanos em sua dinâmica, em sua complexidade, em sua natureza
híbrida e impura, com o respeito à pluralidade, no marco de uma
concepção material e concreta de dignidade.
A todo tempo a obra comunga de uma mesma crença: os direitos humanos como racionalidade de resistência, a traduzir processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade
humana. É a partir desta crença que o papel dos atores públicos,
em suas diversas instituições, demanda uma nova perspectiva,
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IDHID
contextualizada em práticas sociais emancipatórias, que realce a
vocação da ética pública e republicana, orientada pela afirmação
dos direitos humanos.
A ética dos direitos humanos é a ética que vê no outro um ser
merecedor de igual consideração e profundo respeito, dotado do
direito de apropriar-se e desenvolver as potencialidades humanas,
de forma livre, autônoma e plena. É a ética orientada pela afirmação da dignidade e pela prevenção ao sofrimento humano.
Como lembra Ortega y Gasset: “viver é precisamente a necessidade inexorável de tomar decisões (...); de realizar o nosso programa vital, a nossa personagem e a nossa vocação”. esta obra vem
a romper com o imobilismo da apatia, da passividade, do conformismo e da indiferença social. na aventura de vidas inconclusas, a
voz plural de seus atores vem a celebrar o princípio da esperança,
da ação emancipatória e da capacidade criativa e transformadora
de realidades.
Juquehy, 17 de julho de 2008.
flávia piovesan
professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos
da pontifícia universidade Católica de São paulo, professora de
Direitos Humanos dos programas de pós-Graduação da pontifícia universidade Católica de São paulo, da pontifícia universidade
Católica do paraná e da universidade pablo de Olavide (Sevilha,
espanha); visiting fellow do Human Rights program da Harvard
Law School (1995 e 2000), visiting fellow do Centre for brazilian
Studies da university of Oxford (2005), visiting fellow do Max
planck Institute for Comparative public Law and International Law
(Heidelberg – 2007 e 2008), membro do CLADeM (Comitê LatinoAmericano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher),
membro do Conselho nacional de Defesa dos Direitos da pessoa
Humana e membro da SuR – Human Rights university network.
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
reflexões sObre O “dia seguinte”
à aprOvaçãO num cOncursO para a
magistratura
andré luiz machado
Juiz do Trabalho
1. cOncursO públicO e demOcracia
A Constituição federal de 1988 marcou um divisor de águas
na história do constitucionalismo nacional por diversos aspectos,
entre eles destacamos: a ampliação considerável do rol dos direitos fundamentais, transformando-os em diretrizes éticas do estado, e a moralização da administração pública mediante a exigência
de concurso público como condição indispensável para preenchimento e formação das carreiras administrativas. O presente ensaio
pretende analisar o último aspecto destacado.
Como se sabe, as Constituições anteriores previam a realização do concurso apenas visando à primeira investidura em cargo
público, ou seja, o candidato poderia ter acesso a um cargo de baixa qualificação profissional e, uma vez aprovado, poderia ocupar
qualquer outro cargo dentro das carreiras públicas.
A situação consolidada antes da Constituição de 1988 reforçava o nepotismo e o clientelismo no interior do estado, práticas por
intermédio das quais se criavam vínculos espúrios de fidelidade
político-partidária1.
Com a institucionalização da exigência do concurso para todos os cargos e empregos públicos, houve uma elevação na qualidade dos quadros funcionais do estado, permitindo, por via de
consequência, uma melhoria (ainda pouco sentida) nos serviços
prestados à população.
1 O clientelismo e o nepotismo são fenômenos do patrimonialismo que embora seja encontrado em diferentes sociedades ao redor do mundo, no brasil assume a função de instrumento de promoção e manutenção das desigualdades sociais (SORJ, bernardo. a nova
sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Jorge zahar editor, 2001).
11
IDHID
esse inegável avanço, entretanto, vem sendo corroído pelo
sistemático desmantelamento do estado brasileiro em decorrência das novas exigências do capitalismo globalizado.
O ataque do capitalismo ao estado de bem-estar Social2 inaugura uma ruptura do acordo do pós-guerra construído entre as
elites econômicas e o mundo do trabalho em torno da adoção de
garantias de estabilidade no emprego, seguridade social, mecanismos de defesa contra o desemprego e aumentos progressivos de
salários3.
A partir dos anos setenta, em todo o mundo ocidental as
transformações do capitalismo atingiram em cheio os trabalhadores públicos e privados.
no setor privado, as empresas passaram por profunda reestruturação organizativa, abandonando gradualmente o modelo de
produção fordista-taylorista4 em favor da adoção de novos processos de trabalho que determinaram o fim da grande indústria e o
surgimento dos modos de produção em rede5.
O setor público foi atingido de duas maneiras: pela redução
da interferência do estado no setor econômico diretamente produtivo mediante um processo brutal de privatizações e pelo congelamento dos salários dos servidores públicos, tudo em razão
da formação de superávit primário para o pagamento das dívidas
externa e interna.
2 que no caso da América Latina permaneceu apenas como promessa constitucional sem
alcançar a efetividade conhecida nos países da europa Ocidental.
3 entre o período do imediato pós-guerra e o início dos anos setenta praticamente todos
os países de capitalismo avançado (estados unidos e europa Ocidental) se estruturavam em
torno desse pacto, adotando políticas públicas vantajosas para o proletariado.
4 “entendemos o fordismo fundamentalmente como a forma pela qual a indústria e o processo de trabalho consolidaram-se ao longo deste século, cujos elementos constitutivos
básicos eram dados pela produção em massa, através da linha de montagem e de produtos
mais homogêneos; através do controle dos tempos e movimentos pelo cronômetro fordista
e produção em série taylorista; pela existência do trabalho parcelar e pela fragmentação
das funções; pela separação entre elaboração e execução no processo de trabalho; pela
existência de unidades fabris concentradas e verticalizadas e pela constituição/consolidação
do operário-massa, do trabalhador coletivo fabril, entre outras dimensões.” (AnTuneS, Ricardo. adeus ao trabalho? ensaio sobre as metamorfoses do mundo do trabalho. São paulo:
Cortez; Campinas: editora da universidade estadual de Campinas, 1998, página 17)
5 para uma visão mais aprofundada da matéria: ALVeS, Giovanni. dimensões da reestruturação
produtiva. ensaios de Sociologia do Trabalho, Londrina, pR: práxis e bauru, Sp: Canal 6, 2007.
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
A terceirização e a precarização dos contratos de trabalho dos
empregados do setor privado invadiram o serviço público, comprometendo ainda mais a sua qualidade.
não obstante todos esses percalços, a ocupação de um cargo
ou emprego público continua a exercer um grande fascínio em
uma parcela considerável da população, sobretudo naquela localizada em regiões em que a atividade privada não apresenta um
dinamismo capaz de absorver satisfatoriamente a avalanche de
profissionais que anualmente chegam ao mercado de trabalho.
A necessidade de se buscar uma ocupação profissional pelas
pressões naturais da sobrevivência cria um problema no campo
da subjetividade profissional: a incidência de um baixo índice de
realização pessoal no exercício da função pública.
Aliado a esse problema há um outro ingrediente não menos
relevante, o qual consiste no frágil sistema de aperfeiçoamento
continuado do servidor, que, de maneira geral, enfraquece a perspectiva de carreira e subtrai a capacidade para atividades mais
criativas.
2. cOncursO públicO e magistratura
Ao que tudo indica, nas carreiras típicas de estado6 o nível de
satisfação profissional é mais elevado em razão de dois aspectos
relevantes: a ocupação desses cargos ainda decorre de uma aspiração pessoal cultivada pelas tradições familiares e o acesso a eles
tem relação estreita com a oferta de excelente remuneração, em
geral acima da média dos salários pagos na esfera privada.
nesse universo podem ser incluídos aqueles que respondem
a uma vocação tardia, ou seja, optam por uma das carreiras de estado em virtude da decepção com uma determinada atividade no
setor privado ou mesmo no setor público (insatisfação profissional
ou deterioração salarial).
no caso específico do acesso à magistratura, é possível afirmar que, no passado, a arregimentação para o preenchimento de
6 Conceito bastante impreciso, mas que geralmente está associado às funções políticas do
estado.
13
IDHID
seus quadros atendia aos mecanismos sociais de formação de uma
elite burocrática comprometida com a preservação do status quo7.
esse quadro prevaleceu no brasil desde o período colonial até
a promulgação da Constituição de 1988 e ainda molda o perfil das
magistraturas estaduais (também em processo de transformação).
É exatamente a democratização do acesso aos cargos públicos
que impõe uma inflexão a esse modelo de arregimentação profissional.
Os mecanismos de seleção e arregimentação profissional para
o quadro da magistratura vêm sofrendo uma considerável oxigenação, permitindo que a ele tenham acesso candidatos procedentes
de diferentes classes sociais com visões de mundo bastante heterogêneas8.
Além disso, cresce o número de magistrados afro-descendentes e mulheres, fato que impõe uma transformação inegável no
perfil geral da magistratura, corrigindo, dessa forma, uma distorção histórica decorrente dos processos elitistas de arregimentação
mencionados anteriormente.
É possível afirmar que esse quadro de democratização proporcionado pelo concurso público, num verdadeiro processo de
“afinidade eletiva”, contribui para as transformações que remodelam o poder Judiciário no brasil.
essas transformações comumente são definidas como um processo de judicialização da política que alude à interferência cada
vez mais intensa do poder Judiciário no campo das decisões tradicionalmente originárias dos poderes executivo e legislativo9.
no nosso modo de entender, esse novo protagonismo atribuído ao poder Judiciário decorre de uma crescente crise de legitimidade dos demais poderes, sobretudo em razão da incapacidade de
7 em relação ao tema: WOLKMeR, Antônio Carlos. história do direito no brasil. Rio de
Janeiro: forense, 2002.
8 uma comparação entre a forma de arregimentação da magistratura dos países do continente europeu (em geral idêntica ao sistema brasileiro) e dos países da common law, com
vantagens e desvantagens de cada um dos sistemas pode ser vista em GARApOn, Antoine. O
juiz e a democracia. O guardião das promessas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2001.
9 Conferir: VIAnA, Luiz Werneck et al. a judicialização da política e das relações sociais no
brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, e GuARnIeRe, Carlo e peDeRzOLI, patrizia. los jueces y
la política. Madrid: Taurus,1999.
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
gerarem respostas satisfatórias às demandas cada vez mais complexas derivadas da sociedade civil10.
Como se sabe, esse papel crescente do poder Judiciário é incentivado por muitos, mas também recebe muitas críticas.
para os que defendem o papel mais ativo do judiciário (o papel
de juiz guardião), o principal argumento é ético. Ao judiciário cabe
a relevante tarefa de resguardar os valores éticos consubstanciados
no rol de direitos fundamentais contidos na Constituição, mesmo
que para isso contrarie a vontade da maioria dos cidadãos.
para os que são contrários, o argumento é político, isto é, o
consenso entre os valores fundamentais da sociedade deve ser tarefa dos atores políticos (com legitimidade popular) num processo
dinâmico e comunicativo de persuasão.
para essa última corrente, o judiciário padece de um déficit democrático que lhe retira a legitimidade para interferir num espaço
de atuação tradicional dos mecanismos de representação política11.
O espaço deste ensaio obviamente não permite um aprofundamento dessa discussão, mas a referência serve pelo menos para
sublinhar a relevância da função judicial12.
3. sugestões para “O dia seguinte” à aprOvaçãO nO cOncursO para a magistratura
em face das considerações desenvolvidas nos itens epigrafados, a sugestão para uma agenda de compromissos para os recémingressos nos quadros da magistratura deve partir de uma advertência: como qualquer outra atividade profissional, o exercício da
judicatura exige entrega e dedicação apaixonada por tudo que envolve a prestação jurisdicional.
10 “A judicialização do conflito social na América Latina não pode ser, portanto, avaliada
simplesmente como um processo virtuoso ou negativo. ela é expressão da democratização
da sociedade e ocupa o espaço das instituições políticas incapazes de gerar respostas e visões de futuro que organizem o conflito social dentro do quadro político partidário”. (SORJ,
bernardo. Op. cit., página 94).
11 para aprofundamento do tema: STReCK, Lênio Luiz. verdade e consenso. Constituição,
hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Júris editora, 2006, e ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico? florianópolis: Habitus, 2006.
12 Mutatis mutandis, o mesmo pode ser dito em relação a outras carreiras típicas de estado
como o Ministério público, a diplomacia e outras.
15
IDHID
Vale acrescentar ainda que o dia-a-dia da atividade judicante coloca o juiz diante de casos intrincados, exigindo dele uma
aprofundada reflexão teórica que não poucas vezes o leva ao dilaceramento emocional diante das dúvidas sobre qual a mais justa
decisão a ser tomada.
Ademais, o alto grau de responsabilidade que é transferido ao
juiz e o poder que lhe é conferido para interferir de forma radical
na vida das pessoas podem gerar uma distorção na avaliação que
faz de si mesmo sobre o seu papel na sociedade13.
Com efeito, não poucas vezes nos deparamos com magistrados que assumem uma postura arrogante e infensa a uma relação mais amistosa com os advogados e com os jurisdicionados de
modo geral.
Contrastando posturas dessa natureza, sempre é bom lembrar
o princípio republicano da atividade administrativa que deve sempre solidificar uma visão de serviço público calcado na cidadania.
um raciocínio simples que decorre dessa reflexão pode ser
assim enunciado: o cidadão que, em última análise, sustenta os
cofres públicos e, por conseguinte, paga os subsídios da magistratura deve receber a melhor prestação jurisdicional possível.
feitas essas considerações, formulamos duas sugestões para
o “dia seguinte” à aprovação no concurso para a magistratura: integração ao associativismo judicial e a busca incessante pelo aperfeiçoamento profissional.
a) engajamento no associativismo judicial
Ousamos afirmar que muito do protagonismo democrático
da magistratura moderna decorre da atuação das associações de
juízes espalhadas por todos os estados da federação e vinculadas
aos diferentes ramos do poder Judiciário.
13 falando sobre os mitos que cercam a figura do juiz e que constroem no imaginário popular a imagem de uma pessoa cujos poderes são incontrastáveis, pondera José Renato nalini:
“Considerável parcela daquilo que se pode identificar como a insensibilidade do juiz, sua
assepsia em relação às partes e à comunidade, sua falta de consequencialismo, a arrogância
de alguns, a incapacidade de se considerar servidor do povo que o remunera, deriva dessa
ficção tão bem elaborada e tão repetida no decorrer dos séculos.” (nALInI, José Renato. a
rebelião da toga. Campinas, Sp: Millennium editora, 2008, página 102)
16
O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
As grandes transformações pelas quais passou e vem passando o poder Judiciário contaram com a luta decisiva das associações
de magistrado em todo o brasil.
em particular, mencionamos a luta da Associação nacional
da Magistratura do Trabalho (Anamatra) pelo fim da magistratura
classista e do nepotismo no âmbito da administração pública (com
a colaboração decisiva da Associação dos Magistrados do brasil,
Associação dos Juízes federais e diversas associações vinculadas
ao Ministério público federal e estadual).
A militância na rotina associativa da magistratura também
propicia uma vasta e intensa circulação de conhecimento jurídico14
e o arrefecimento da sensação de isolamento que todo juiz experimenta no cumprimento de suas rotinas.
b) O aperfeiçoamento profissional
não é necessário dizer que o juiz contemporâneo não atua mais
como a “boca da lei”. estamos na época da criação judicial do direito que demanda uma hermenêutica multidisciplinar e engajada15.
Como se sabe, a emenda Constitucional 45/04 conferiu especial ênfase na formação inicial e continuada da magistratura16. no
nosso entender, o constituinte derivado atendeu aos reclamos da
sociedade no que diz respeito à exigência de um poder Judiciário
preparado para os desafios impostos pela crescente complexidade
dos conflitos sociais.
O que se requer do magistrado hoje é a habilidade de empreender um raciocínio político a partir de uma hermenêutica baseada em princípios, capaz de superar a abordagem positivista do
ordenamento jurídico.
14 Além das inumeráveis publicações produzidas pelas Associações de Magistrados, as listas
de discussão na internet figuram como fontes inesgotáveis de compartilhamento de decisões inovadoras nos mais diversos campos do Direito.
15 Sobre uma hermenêutica engajada conferir CÁRCOVA, Carlos Maria. direito, política e
magistratura. São paulo: LTr, 1996.
16 O artigo 93 da Cf/88 estabelece que Lei Complementar disporá sobre o estatuto da Magistratura e no inciso II relaciona os critérios para a promoção do juiz, entre eles: “aferição
do merecimento conforme o desempenho e pelos critérios objetivos da produtividade e
presteza no exercício da jurisdição e pela freqüência e aproveitamento em cursos oficiais ou
reconhecidos de aperfeiçoamento”.
17
IDHID
uma hermenêutica dessa natureza obviamente pressupõe a
subsunção de todo o ordenamento jurídico às diretrizes constitucionais, sempre na perspectiva de adensamento dos direitos fundamentais como diretrizes éticas do estado17.
um outro aspecto ainda vinculado a essa necessidade de conferir efetividade às normas e princípios constitucionais é a inegável convocação que vem recebendo o poder Judiciário no sentido
de concretizar os direitos sociais18.
O atendimento a essas demandas exige hoje, mais do que
nunca, uma atuação pró-ativa dos juízes, sempre contando com a
sua criatividade e capacidade de gerar expectativas positivas nos
jurisdicionados e, sobretudo, com a humildade de reconhecer a
necessidade de se submeter a um permanente aprendizado, sempre na perspectiva de que todos somos seres inconclusos19.
referências bibliOgráficas
ALVeS, Giovanni. dimensões da reestruturação produtiva. ensaios
de Sociologia do Trabalho, Londrina, pR: práxis e bauru, Sp: Canal
6, 2007.
AnTuneS, Ricardo. adeus ao trabalho? ensaio sobre as metamor17 “Além de todos os direitos fundamentais assegurados na Constituição dependerem do
judiciário para a sua efetiva concretização, a exata compreensão do papel dos princípios fará
com o que o juiz possa implementar todas as mensagens normativas da Carta. A adoção de
um texto fundante principiológico é eloquente prova de que o estado-nação brasileiro pretendeu confiar ao intérprete da Constituição a missão de adensar, aprimorar e concretizar
a vontade constituinte” (GOMeS, Luiz flávio. A dimensão da magistratura, apud: Leardini
Márcia. a importância da formação do magistrado para o exercício de sua função política,
in Almeida, José Maurício pinto e Leardini, Márcia. recrutamento e formação de magistrados no brasil. Juruá: Curitiba, 2007, página 123).
18 “É aí, justamente, que se percebe como os direitos humanos e sociais, apesar de cantados em prosa e verso pelos defensores dos paradigmas jurídicos de natureza normativista
e formalista, nem sempre são tornados efetivos por uma Justiça burocraticamente inepta
administrativa e processualmente superada; uma Justiça ineficiente diante dos novos tipos
de conflito – principalmente os “conflitos limites” para a manutenção da integridade social;
ou seja o conflito de caráter intergrupal, intercomunitário e interclassista; uma Justiça que se
revelando incapaz de assegurar os direitos humanos e sociais, na prática acaba sendo conivente com a sua sitemática violação” (fARIA, José eduardo (organizador). direitos humanos,
direitos sociais e justiça. São paulo: Malheiros, 2002).
19 fReIRe, paulo. pedagogia do Oprimido. 21. ed. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1993.
18
O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
foses do mundo do trabalho. São paulo: Cortez; Campinas: editora
da universidade estadual de Campinas, 1998.
CÁRCOVA, Carlos Maria. direito, política e magistratura. São paulo: LTr, 1996.
fARIA, José eduardo (organizador). direitos humanos, direitos
sociais e justiça. São paulo: Malheiros, 2002.
fReIRe, paulo. pedagogia do Oprimido. 21. ed. Rio de Janeiro: paz
e Terra, 1993.
GARApOn, Antoine. O juiz e a democracia. O guardião das promessas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2001.
GOMeS, Luiz flávio. A Dimensão da Magistratura. Apud: LeARDInI,
Márcia. A Importância da formação do Magistrado para o exercício
de sua função política. In: ALMeIDA, José Maurício pinto e LeARDInI, Márcia. recrutamento e formação de magistrados no brasil.
Juruá: Curitiba, 2007.
GuARnIeRe, Carlo; peDeRzOLI, patrizia. los jueces y la política.
Madrid: Taurus,1999.
nALInI, José Renato. a rebelião da toga. Campinas, Sp: Millennium
editora, 2008.
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico? florianópolis: Habitus, 2006.
SORJ, bernardo. a nova sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Jorge
zahar editor, 2001.
STReCK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso. constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Júris editora,
2006.
VIAnA, Luiz Werneck et al. a judicialização da política e das relações sociais no brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
WOLKMeR, Antônio Carlos. história do direito no brasil. Rio de
Janeiro: forense, 2002.
19
O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
O tamanhO dOs nOssOs sOnhOs:
pOlítica e demOcracia nO espaçO entre nós
e O cOntextO
antonio henrique graciano suxberger
promotor de Justiça
Há uma frase de fernando pessoa que diz muito sobre os compromissos que assumimos e a nossa capacidade de modificar a realidade. O poeta português, valendo-se de seu Álvaro de Campos,
cunhou a máxima de que “(…) tenho em mim todos os sonhos do
mundo”. A verdadeira maratona que é um concurso público de
provas e títulos para se chegar a um cargo público evidencia que,
mais que a capacidade de sonhar, devemos fortalecer a nossa capacidade de acreditar neles, de fazer sacrifícios para transformá-los
em realidade. A frase ainda guarda outra lição preciosa. por si só,
pouca importância têm os cargos ou as posições ocupadas pelas
pessoas; é mais relevante questionar como os ocupantes dos cargos reagem diante da realidade à sua volta.
essas duas premissas se destacam quando se cuida de responder à pergunta que é o mote para este texto: o que fazer depois
de ser aprovado num concurso público? Sem que as considerações
aqui expendidas se reduzam às carreiras jurídicas, não há como
negar, até mesmo pela formação do autor, que nos referimos a
elas. Mas, ainda assim, ora em menor, ora em maior grau, algumas
considerações são aplicáveis aos mais diferentes cargos públicos.
As carreiras jurídicas de estado – Defensoria pública, Advocacia pública, Magistratura, Ministério público – são, por opção política do estado brasileiro, acessíveis por meio de concurso público
de provas e títulos. A assertiva é tão difundida que se torna óbvia;
mas o óbvio só o é quando evidente. Há um componente nessa assertiva que é pouco evidente: o político. essa forma de acesso aos
cargos públicos deriva de uma opção política levada a efeito num
determinado momento histórico e contextualizado da realidade
brasileira. Há países, convém lembrar, que observam sistemas diversos para investidura nos cargos públicos. Os estados unidos,
21
IDHID
para mencionar apenas um exemplo, realizam eleições para acesso
tanto para cargos de juiz quanto para cargos assemelhados àqueles que, no brasil, são identificados como Ministério público.
Os funcionários públicos investidos em cargos por meio de
concurso público ostentam certo orgulho na tola crença de que
seriam neutros em relação aos interesses em jogo nos casos que
são levados à sua apreciação. uma vez que o acesso ao cargo não
se deu por meio de uma prática de convencimento ou mesmo
de composição de interesses, mas por concurso público, querem
acreditar que não veiculam um componente de ação política. Ledo
engano. Diga-se desde logo que o componente político aqui mencionado não se confunde com a política partidária tão em voga,
sempre mencionada pela mídia, no senso comum ou mesmo é visto como algo menor, depreciado e, por isso mesmo, desvirtuado.
O componente político refere-se à impossibilidade de eliminação de antagonismos sociais. A negação do político pode ser atribuída à crença liberal de que o interesse geral é produto do livre
jogo dos interesses privados e que é possível alcançar um consenso universal com base na livre discussão. no campo da política ou
no campo do direito, contudo, é inviável dissociar o domínio das
relações de poder, visto que nenhum consenso pode ser estabelecido como resultado de um processo de raciocínio puro, abstrato.
Onde há poder, a força e a violência não podem ser completamente eliminadas, ainda que assumam apenas a forma de “força argumentativa” ou “violência simbólica”.
essa concepção guarda afinidade com a idéia de que todas
as identidades são relacionais e que a condição de existência de
qualquer identidade é a afirmação de uma diferença, determinação
de um “outro” que desempenhará o papel de “elemento externo
constitutivo”. em outras palavras, a criação de um espaço de “nós”
por meio da delimitação do que seja “eles” tem por consectário a
possibilidade de essa relação “nós/eles” transformar-se numa relação amigo/inimigo, e nisso reside a essência do político1. O político
1 A categoria relacional amigo/inimigo aqui mencionada é aquela desenvolvida por Carl
Schmitt sobre o conceito de política. para ele, o campo de origem e de aplicação da política
seria o antagonismo e a sua função consistiria na atividade de associar e defender os amigos e
de desagregar e combater os inimigos. Cf. SCHMITT, Carl. el concepto de lo político, passim.
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
não pode ser limitado a um certo tipo de instituição ou encarado
como uma esfera ou nível específico da sociedade. Como adverte
Chantal Mouffe, o político “(…) tem de ser concebido como uma
dimensão inerente a todas as sociedades humanas e que determina a nossa própria condição ontológica”2.
Ignorar esse componente político e o processo de construção das nossas próprias identidades tem por consectário um alijamento das razões que justificam ou, quando menos, mantêm a
possibilidade de, no exercício de funções públicas, concretizar um
compromisso ético de modificar a cruel realidade brasileira. não
se faz necessário enumerar as desigualdades que existem no brasil; parece claro que isso é perceptível por todos. O desafio hoje
não é demonstrá-las, mas efetivamente provocar reações face a
elas. A realidade mostra-se cruel e até mesmo absurda, mas por
muitas vezes nos falta a sensibilidade ou mesmo a aptidão de nos
chocarmos com ela. É esse “choque” que reclama de nós uma reação que veicule práticas compromissadas com mudanças. que
compromisso seria esse?
É possível acreditar que as pretensões que alimentaram e serviram de concreto à construção dos sonhos, que só se tornaram
realidade às custas de sacrifícios que somente a trajetória plural
e distinta de cada uma das pessoas que ascenderam aos cargos
públicos pode contar, vão um pouco além das benesses materiais.
A estabilidade no cargo, a obtenção de considerável status social,
prerrogativas pessoais e institucionais, garantias, enfim, são mais
que estímulos a que se alcancem esses cargos. Depois da aprovação no concurso público, hão de se prestar a permitir dignamente
que esforços sejam envidados para que as benesses materiais de
uns poucos sejam estendidas a muitos. A construção de uma identidade comprometida com o resgate da ação política deriva da necessidade de fundar práticas sociais que permitam a emancipação
popular e o empoderamento daqueles que são o destinatário do
trabalho daquele que ocupa um cargo público: a coletividade.
Joaquín Herrera flores fala da necessidade de recuperar a
2 MOuffe, Chantal. O regresso do político, p. 13.
23
IDHID
ação política como um dos passos necessários em direção a uma
concepção contextualizada e não abstrata da realidade dos direitos humanos. essa recuperação da ação política permitiria romper
com as posições naturalistas que concebem os direitos como uma
esfera separada e prévia à ação política democrática3. Tendemos
a uma reificação da realidade, a tomar como coisas as relações
sociais e suas complexas tramas econômicas, sociais, históricas,
como se estivéssemos alheios ou fora do contexto. Somente uma
prática democrática de textura aberta permitirá que avancemos
rumo a uma legitimação permanente das razões que permitiram
alcançar o exercício de uma função pública. É evidente que o concurso público, se é democrático porque permite o acesso ao cargo
a quem se apresente a concorrer, por si só não basta para assegurar o componente democrático do exercício das funções próprias
desse cargo.
Isso porque o substrato que legitima o exercício dos poderes
próprios de cargos públicos só se justifica quando o seu ocupante
é consciente desse já afirmado componente político na construção de sua identidade social e, igualmente, do que venha a ser o
conteúdo democrático dos poderes públicos por ele manejados.
Diz-se usualmente que o concurso público é a forma de acesso
mais democrática aos cargos públicos. É verdade, pois permite a
todos – em princípio – a possibilidade de acesso a esses cargos.
Aliás, sob uma perspectiva histórica, o acesso ao cargo público
por concurso público foi uma das maiores conquistas estampadas
no texto constitucional. porém, é possível falar de “igualdade de
oportunidades” num contexto social de pobreza e má formação
educacional e profissional de tantos? Avancemos sobre o que interessa aqui amiúde: esse sentido democrático encerra-se após a
investidura no cargo? Há razão para se preocupar a respeito do
que seja uma atuação democrática no exercício do cargo público?
Impõe-se mudar a forma como se vê a democracia. encerrados em nossas estruturas jurídicas, tendemos à procedimentalização também da democracia, para que seja ela considerada apenas
3 la reinvención de los derechos humanos. p. 66 et seq.
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
como técnica. É essa a forma pela qual nos resignamos com uma
pretensa suficiência da democracia representativa. Se pretendemos, contudo, a construção de uma identidade social comprometida com o resgate da ação política, devemos fomentar a construção de um conteúdo democrático substancial a essa ação política,
e parece que a democracia representativa não se coaduna com
essa exigência.
em verdade, a democracia representativa nos serve como definição ao mesmo tempo neutra e avalorativa. não traz em si elementos políticos, econômicos, culturais. Sua definição é objetiva,
carente de sujeitos, externa e afastada de qualquer experiência
empírica. ela reduz a participação popular a uma regra procedimental (regra do jogo). Sem adjetivos, a democracia representativa mostra-se objetiva, universal, autorreferencial. existe notadamente como técnica, que se converte ao mesmo tempo num
fator possível de composição, uma vez que toda técnica tem sua
tecnologia.4
Se há um componente que legitime o conteúdo democrático
daqueles que ocupamos cargos públicos, ele há de ser buscado por
meio de uma democracia visualizada como prática política constituinte. Há de se compreendê-la não como uma imposição, mas
como autonomia de cidadania, como vivência. O resgate da ação
política num marco crítico exige a democracia como opção radical
de articulação entre o particular e o universal. A democracia considerada como prática política implica um projeto de construção
ética do bem comum a partir da participação cidadã. Mais que regras procedimentais – e não se trata aqui de rechaçá-las, mas sim
de afirmá-las e ir além disso –, cuida-se de uma forma de vivência,
pois não se restringe a âmbitos ou esferas específicas. Implica uma
cidadania plena que não deriva do estado, mas decorre de uma
prática plural de controle e de exercício do poder a partir do “dever ser” do poder.
por evidente, a democracia assumida como prática política
veicula um valor ético. pressupõe que a cidadania conduz a uma
4 nesse sentido, cf. ROITMAn ROSenMAnn, Marcos. democracia sin demócratas, p. 1314.
25
IDHID
relação que tem como objetivo unir a diferença e a alteridade (unir
o uno e o diferente, aceitando as diferenças), que implica a construção do “político” como aqui desenvolvido, a construção da autonomia do ser. A democracia, assim, assume-se como uma prática
plural de exercício de poder. pressupõe a autonomia do sujeito e
a sua responsabilidade de atuar, pois fixa sua responsabilidade a
partir justamente da diferença. A democracia como prática plural
de controle de exercício do poder se relaciona com o político e
com a autoridade e suas formas (ou com as formas da autoridade
e do poder).
A democracia, como projeto político, tem de expressar a liberdade de realização do ser, que é a capacidade de realização das
expectativas na sociedade em que se insere o sujeito. Ao guardar
relação com suas consequências, vê-se o valor ético da consecução
da democracia. Ao contrário de uma abordagem instrumental, que
apenas considera uma causa eficiente, a democracia como prática
política substancia um projeto de realização do ser humano e, assim, há de ser fomentada em todos os graus e medidas de atuação
estatal e popular. A liberdade de potencialidades é que constrói a
democracia. não há dualidade entre a ideologia do ser e a ética do
ser (o que implica a proliferação de exemplos do tipo “democracia
da porta de casa para fora”).
A análise da democracia inclui, portanto, como pressuposto
básico para seu estudo, a realização do bem comum, isto é, a satisfação de direitos sociais e individuais, o que impõe refletir sobre
a democracia não como modelo teórico baseado em princípio metafísicos, mas como realmente se apresenta (desigual ou mesmo
morta).5 Trata-se de reconhecer a democracia como parte da luta
pelo poder político, não apenas a luta representativa, mas articulada com objetivos sociais, econômicos, culturais e políticos em
sua ampla acepção.
A relação entre o conceito de desenvolvimento e o conceito
de democracia como instrumento de resgate da ação política deixa claro que essas categorias operacionais atuam numa concepção
5 A observação precisa é de Roitman (las razones de la democracia em américa latina, p.
148-149).
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
de sociedade e de política fundada em valores constitutivos do ser
humano. A idéia de desenvolvimento não se resume a um conceito
econômico quantitativo6, mas substancia uma qualidade inerente
da condição humana, pois incorpora os distintos âmbitos de atuação da pessoa em sua vida social. A idéia de “desenvolvimento”,
dessa forma apresenta-se como uma categoria integral. O desenvolvimento e o conjunto de esferas que o constituem – isto é, o
político, o social, o cultural, o étnico e o econômico – são um todo
indivisível. A assunção de uma identidade política, compromissada
com um projeto democrático, tem por premissa fixar a democracia
como fundamento que explica, dá sentido e orienta o desenvolvimento humano. Caso contrário, uma leitura reduzida da idéia de
desenvolvimento inevitavelmente produzirá uma deficitária compreensão teórica que, por sua vez, alijará a concretização desse
desenvolvimento democrático como opção política. para os integrantes das carreiras jurídicas, isso implicaria continuar com a vista
centrada apenas no “seguro” e autorreferente mundo jurídico.
Muito se afirma sobre o risco que corre a democracia quando
o consenso e a fidelidade aos valores que ela encarna são insuficientes, mas se olvida de que, deveras, a democracia também experimenta sério risco quando a sua dinâmica combativa é ignorada
em favor de um excesso de consenso que, normalmente, mascara
uma apatia inquietante. Acreditar que o conteúdo democrático do
exercício das carreiras jurídicas esgota-se por conta do meio de
acesso – concurso público – substancia adesão a essa apatia. Igualmente a democracia experimenta risco quando permite uma crescente marginalização de grupos inteiros, por vezes compreendidos
como subclasses e, justamente por isso, alijados da comunidade
política. É o que pode ocorrer se os ocupantes de cargos públicos
6 Alijado de uma unidade integradora, o conceito de desenvolvimento em geral é utilizado
apenas como critério de interpretação quantitativa em relação a avaliações de economia,
investimento e tecnologia, isto é, dados a respeito de progresso técnico, crescimento econômico, renda per capita, índices de consumo e bem-estar social. Roitmann adverte que essa
perspectiva quantificada, ao relacionar-se com a democracia, acaba por transferir para a área
econômica toda e qualquer potencialidade de eficiência, ao custo da perda da vitalidade política da concepção de desenvolvimento. um panorama dessas construções e suas relações
com a idéia de democracia pode ser encontrado em ROITMAn ROSenMAnn, Marcos. las
razones de la democracia en américa latina, p. 48 et seq.
27
IDHID
de maior relevância nos afastamos demasiadamente daquilo que
ocorre no dia-a-dia, dos anseios, das frustrações das pessoas em
geral, em favor de um isolamento erroneamente confundido com
“altivez” ou mesmo “distinção”.
A democracia, portanto, está longe de ser um acabado; ao
revés, possui natureza frágil, sem qualquer ponto a ser alcançado
que assegure, só por isso, a continuidade de sua existência. na
prática, há, pois, de se buscar uma teoria democrática moderna
que permita a criação de espaços para concepções divergentes da
identidade de cidadão. Caso contrário, é mais que evidente o risco
de uma ruptura das próprias razões que justificaram a construção
de uma teia de garantias jurídicas formalmente construídas no sistema de justiça.
O compromisso de realização desse projeto político deriva, é
claro, de uma eleição racional dirigida a um critério que oriente as
escolhas politicamente assumidas pelos sujeitos dessa necessária
mudança social. O critério a ser eleito, segundo um marco compromissado com mudanças na realidade social e com a realização dos
direitos humanos concretamente considerados – para além do que
sejam apenas as previsões contidas em tratados e convenções internacionais –, é o da riqueza humana, o qual se compromete com
o desenvolvimento das capacidades humanas e com a construção
de condições que permitam a apropriação e o desenvolvimento de
capacidades pelos indivíduos, grupos, culturas e qualquer forma
de vida.7
A esta altura, o leitor, se aqui chegou por pura persistência,
está a imaginar que isso tudo parece abstrato ou mesmo distante
das decisões que tomamos, das mais simples às mais complexas,
no exercício das nossas funções. essa aparente distância, contudo,
só existirá se não compreendermos o que nós temos (parcela de
poder) e o que fazemos com o que temos (a prática desse poder). É
útil nesse particular a lição de pierre bordieu, para quem o espaço
entre o texto e o contexto – campo – seria o universo em que estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reprodu7 HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos, p. 178.
28
O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
zem ou difundem a arte, a literatura, a ciência, o direito, etc. esse
universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a
leis sociais mais ou menos específicas.8
Todo campo é um campo de forças e de lutas para conservá-lo
ou transformá-lo. Como afirma bordieu, “(…) é a estrutura das relações objetivas entre os agentes que determina o que eles podem
e não podem fazer. Ou, mais precisamente, é a posição que eles
ocupam nessa estrutura que determina ou orienta, pelo menos
negativamente, suas tomadas de posição”9. A compreensão, portanto, do que diz ou do que faz um agente engajado num campo
depende das condições de perceber a posição que ocupa nesse
campo, isto é, de perceber e conhecer “de onde ele fala”.
Se os campos são lugares de força, eles não se orientam ao
acaso. Há estruturas objetivas – as chamadas posições – e há lutas em torno dessas estruturas. Os agentes sociais, em lugar de
passivamente assistirem a esses conflitos, titularizam disposições
adquiridas, isto é, maneiras de ser permanentes, duráveis, que podem levar os agentes a resistir, a se opor às forças do campo. O
campo é objeto de luta tanto em sua representação quanto em sua
realidade. por conseguinte, os agentes sociais – os ocupantes desses cargos públicos – estão inseridos na estrutura e em posições
(relações objetivas existentes entre as estruturas) que orientam as
estratégias que se desenvolvem nos limites de suas disposições.
essas estratégias orientam-se seja para a conservação da estrutura
seja para a sua transformação.
quanto mais os agentes ocupam posição favorecida na estrutura, mais tendem a conservar ao mesmo tempo a estrutura e a
8 Cf. bORDIeu, pierre. Os usos sociais da ciência, p. 20-21.
9 Os usos sociais da ciência, p. 23. Afirma bordieu que essa estrutura é determinada no
campo científico, grosso modo, “(…) pela distribuição do capital científico num dado momento. em outras palavras, os agentes (indivíduos ou instituições) caracterizados pelo volume de seu capital determinam a estrutura do campo em proporção ao seu peso, que depende do peso de todos os outros agentes, isto é, de todo o espaço. Mas, contrariamente, cada
agente age sob a pressão da estrutura do espaço que se impõe a ele tanto mais brutalmente
quanto seu peso relativo seja mais frágil. essa pressão estrutural não assume, necessariamente a forma de uma imposição direta que se exerceria na interação (ordem, ‘influência’
etc.)” (Idem, p. 24). Alterado o qualificativo “científico”, a assertiva guarda total pertinência
em relação aos demais campos (jurídico, político, econômico etc.).
29
IDHID
sua posição, nos limites, porém, de suas disposições (isto é, de sua
trajetória social, de sua origem social) que são apropriadas mais
ou menos à sua posição.10 É na relação entre a posição e a disposição que hoje ocupam aqueles que ascenderam a seus cargos por
meio de concurso público que se encontra o grande desafio de
implementação dos direitos humanos.
em outras palavras, após assumirmos uma relevante posição,
será o modo como reagimos diante dessas estruturas objetivas
que concretizará o compromisso por nós racionalmente eleito de
realizar os direitos humanos. É tolo imaginar que estamos neutros
diante dessa tensão: mesmo a inércia é forma de compromisso
com a mantença de um panorama injusto. não existe neutralidade;
se o que pensamos e produzimos decorre de um atuar humano,
falamos de produtos culturais necessariamente. e esses produtos
culturais (formas de governo, decisões políticas, normas jurídicas,
estruturas institucionais, literatura, música, arte etc.) não são neutros tampouco assépticos; ao revés, são impuros, mundanos, contaminados pelo contexto em que se inserem.11
A prática massacrante, o dia-a-dia carregado de tecnicismo,
a burocracia que cega, o volume de trabalho que impulsiona o
estímulo apenas de soluções pragmáticas, quantificáveis e eficientistas são desafios à mantença dos sonhos que impulsionaram a
decisão de ascender a um cargo público. Somos levados a repetir
e a manter as estruturas objetivas que um dia sonhamos integrar.
Mas é preciso realmente revolucioná-las para que, por meio da
mudança delas, possamos mudar o exterior. É certo que em algum
momento mesmo a porção mais apática de nós mesmos foi tocada
pelo desejo de mudar a realidade, de “salvar o mundo” no melhor
estilo cartunesco da expressão. Talvez seja o caso de começar salvando o mundo de nós mesmos e da nossa tendência a ser apenas
mais uma peça nessa máquina gigante que é o estado. Daí, então, a
partir de onde nos encontramos, podemos fomentar as mudanças
que toquem aos que se encontram de fora: alijados de condições
10 bORDIeu, p. Os usos sociais da ciência, p. 29.
11 A referência é à concepção impura de direitos humanos que propõe Herrera flores (la
reinvención de los derechos humanos, p. 42 e passim; el vuelo de anteo, p. 21 et seq.).
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
materiais de uma vida digna de ser vivida, excluídos do acesso à
cultura, sem acesso ao lazer, à margem do acesso aos bens materiais e imateriais que permitem o gozo de uma vida plena.
As respostas à pergunta inicial – o que fazer depois de passar
num concurso público? – não surgirão dos textos, mas deste espaço em que nos encontramos, entre os textos e os contextos em
que nós estamos inseridos, isto é, de nós. porque a tensão entre
aquilo que fazemos e aquilo que somos será definida pela nossa
capacidade de tornar realidade aquilo com que um dia sonhamos.
um desses sonhos – aprovação no concurso público – já virou realidade. Mas há apenas um sonho? não, porque não podemos ser
tão pequenos. Sejamos grandes; afinal, o mesmo fernando pessoa
citado, agora por meio de seu Alberto Caeiro, bem justificou: “(…)
porque eu sou do tamanho do que vejo / e não do tamanho da
minha altura”.
referências bibliOgráficas
bOuRDIeu, pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia
clínica do campo científico. Trad. Denice barbara Catani. São paulo: uneSp, 2004. 88 p.
HeRReRA fLOReS, Joaquín (org.). el vuelo de anteo: Derechos Humanos y crítica de la razón liberal. bilbao: Desclée de brouwer,
2000. 308p.
______. la reinvención de los derechos humanos. Sevilla: Atrapasueños, 2008. 224p.
MOuffe, Chantal. O regresso do político. Trad. Ana Cecília Simões. Lisboa: Gradiva, 1996. 206p.
ROITMAn ROnSenMAnn, Marcos. democracia sin demócratas: y
otras invenciones. Madrid: Sequitur, 2007. 114p.
______. las razones de la democracia en américa latina. México:
Siglo XXI, 2005. 264p.
SCHMITT, Carl. el concepto de lo político. Trad. Rafael de Agapito
Serrano. Madrid: Alianza, 1998. 160p.
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
a impOrtância dO pensamentO críticO nO
desempenhO de uma funçãO pública
daniele corrêa santa catarina
procuradora do Trabalho
A educação é um dos mecanismos mais importantes para a
formação do ser humano. no meio jurídico, a maioria das universidades de Direito dedica-se ao conhecimento dogmático e tradicional, não ensinando, em regra, ao estudante pensar de uma forma
crítica. Trabalha-se com a ordem normativa vigente, sem haver o
aprofundamento em outras questões, como a origem da lei, a sua
fundamentação, o contexto em que foi criada, a sua justificativa.
não se ensina a pensar se a lei é ou não justa, se foi criada para
defender interesses daqueles que estão no poder e que têm acesso a todos os meios e bens necessários para a garantia de seus
direitos ou se realmente foi criada para garantir os direitos de pessoas marginalizadas, oprimidas e discriminadas, que não possuem
o acesso igualitário para aceder a seus direitos.
Diante desta realidade, a aprovação em um concurso público
- e pretendo abordar precipuamente as funções de um membro do
Ministério publico do Trabalho - exigirá do novo agente público
uma visão mais ampla do ordenamento jurídico como um todo. O
conhecimento que a priori se possui é aquele tradicional, necessário para se obter o título de bacharel em direito e para a aprovação
no concurso público. e muitas vezes nos deparamos com situações
em que a normatividade posta traz injustiças e não justiça. Ou, então, com casos em que as normas existentes não são suficientes
para efetivamente garantir os direitos daquele trabalhador ou daquele grupo social. O que fazer? Como de fato realizar justiça com
tantas leis injustas? Como dar efetividade a uma lei justa?
De acordo com WOLKMeR1,
(…) o discurso, a produção e a prática jurídica reinante no brasil, calcados na lógica da racionalidade técnico-formal e nos
1 WOLKMeR, Antônio Carlos. introdução ao pensamento jurídico crítico, p. 88.
33
IDHID
pressupostos de dogmática do cientificismo positivista, não
respondem mais aos reclamos e às aspirações do atual estágio
de desenvolvimento socioeconômico e dos parâmetros de modernização das instituições políticas da sociedade brasileira.
Justifica-se, assim, colocar em discussão, articular e operacionalizar um pensamento crítico no Direito, ainda que se reconheçam as dificuldades de sua elaboração epistemológica.
O mesmo autor também afirma que2:
Os modelos culturais e normativos que justificaram o mundo
da vida, a organização social e os critérios de cientificidade
tornaram-se inadequados e reduzidos, abrindo espaço para
se repensar padrões novos de referência e legitimação. Isso
transposto para o jurídico nos permite consignar que a estrutura normativa do moderno Direito positivo formal é pouco
eficaz e não consegue atender à mundialidade competitiva das
atuais sociedades periféricas que passam por distintas espécies de reprodução do capital, por acentuadas contradições
sociais e por fluxos que refletem tanto crises de legitimidade
quanto crises na efetivação da justiça.
Desta forma, passa a ser necessário repensar e refletir a estrutura jurídica, social, econômica e cultural atual, a fim de estabelecer critérios para a construção de novos instrumentos de luta
pela dignidade humana. Há necessidade de um pensamento plural,
tendo em mente que a ordem jurídica vigente é somente uma das
diversas formas existentes para a garantia dos direitos.
neste sentido, ao exercer a função pública, passa a ser fundamental trabalhar com outros critérios que possam respaldar sua
atuação em busca de maior efetividade dos direitos.
Os membros do Ministério público do Trabalho diuturnamente
investigam, por exemplo, casos de trabalho infantil e de acidentes
de trabalho sofridos por crianças que nem sequer deveriam estar
trabalhando, mas sim tendo a sua infância protegida, por meio da
garantia de sua educação, de seu lazer, de seu desenvolvimento
físico, moral e psicológico, de seu direito de ser criança.
não obstante a legislação constitucional prevista no artigo 7º,
inciso XXIII, da Carta Magna, que proíbe o trabalho noturno, pe2 WOLKMeR, Antônio Carlos. introdução ao pensamento jurídico crítico, p. 183.
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rigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho
a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a
partir de quatorze anos, vivenciam-se cenas como a de crianças
pedindo dinheiro na rua, no sinal de trânsito, vendendo balas,
picolés e chicletes, trabalhando no comércio, no meio rural, em
indústrias em trabalhos insalubres, ou seja, sendo submetidas a
todo tipo de risco à sua integridade física, moral, psicológica ou
de outras ordens.
A Constituição federal, em seu artigo 227, também prevê a
doutrina da proteção integral, estabelecendo que:
(…) é dever da família, da sociedade e do estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
no entanto, nem a família, nem a sociedade, nem o estado asseguram a proteção integral a estas crianças e adolescentes, que,
em contrapartida, garantem a sobrevivência da família, em total
afronta à previsão constitucional. Há uma completa inversão de
valores.
existem, assim, garantias jurídicas que, em tese, protegem os
direitos destas crianças, mas que, na prática, não garantem a sua
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. As Convenções
n.ºs 138 e 182 da Organização Internacional do Trabalho também
prevêem regras contra o trabalho infantil, estabelecendo que todos os estados-membros devem seguir uma política nacional que
assegure a efetiva abolição do trabalho infantil e eleve, progressivamente, a idade mínima de admissão a emprego ou a trabalho
a um nível adequado ao pleno desenvolvimento físico e mental
do jovem e também que o trabalho em ruas e logradouros é uma
das piores formas do trabalho infantil, porque conduz, em regra,
meninas e meninos à prostituição infantil e/ou ao tráfico de entorpecentes. Além disso, diversas pesquisas demonstram que o trabalho infantil gera a evasão escolar. A criança que trabalha perde
a concentração, não tem tempo para estudar, pesquisar e fazer os
35
IDHID
deveres de casa, perdendo assim o interesse, por não conseguir
acompanhar as aulas como os demais amigos e colegas, gerando,
por evidente, o abandono escolar.
Diante da realidade citada, faz-se necessário partir de uma
base diferente da existente, de um conhecimento contra-hegemônico, a fim de efetivar os direitos violados, já que, mesmo havendo
previsão constitucional e internacional acerca da matéria, ainda
são vivenciadas cenas como estas, em que a infância é sacada de
milhares de crianças, e suas integridades físicas, morais e psicológicas são expostas a todo tipo de risco.
De acordo com SAnCHez RubIO3, os direitos fundamentais
foram instrumentos tanto de exclusão como de inclusão, de desigualdades como de igualdades, a teor dos seres humanos que
ficaram dentro ou fora da condição de sua titularidade. pode ocorrer, assim, que os critérios de reconhecimento sejam universais
do ponto de vista constitucional, formal e normativo, mas os contextos e as tramas sociais sobre as quais as normas se assentaram
reproduzam exclusão, marginalização e discriminação, inclusive
reduzindo os âmbitos formais de manifestação popular. Daí a importância que tem a seara democrática como modo de vida e os
direitos humanos como processos de criação contínua de tramas
sociais. Há lutas que não logram ou não podem constituir-se como
conquistas positivadas e nem por isso deixam de ser direitos humanos pontuais, contingentes e precários no caso de serem rechaçados. Os direitos humanos nem existem em abstrato, nem são
algo dado, nem ficam congelados em uma norma. É imprescindível
a sua positivação como direitos fundamentais, mas não é suficiente. Os sistemas de garantias jurídicos para fazê-los efetivos devem
vir acompanhados de mais garantias.
Incumbe, desta forma, aos operadores do Direito repensar a
estrutura jurídica, cultural, social e econômica existente e propor
alternativas. e a teoria crítica dos direitos humanos, fundamentada por HeRReRA fLOReS, cumpre este papel.
Com base numa teoria crítica, os direitos humanos, mais que
3 SÁnCHez RubIO, David. repensar derechos humanos: de la anestesia a la sinestesia, p.
26-31, tradução nossa.
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direitos, são processos, são resultados de lutas que os seres humanos colocam em prática para poder ter acesso aos bens necessários para a vida. Assim, os direitos humanos não devem ser
confundidos com os direitos positivados a um nível nacional ou internacional, já que uma constituição ou um tratado internacional
não criam direitos. Deve-se começar não pelo direito, mas pelos
bens exigíveis para viver com dignidade, uma vez que os direitos
virão depois das lutas pelo acesso aos bens.4
Deve-se conhecer qual o contexto em que se está situado,
para somente assim reconhecer as mudanças e transformações
que tal contexto impõe aos direitos e, partindo daí, propor novas
formas de lutas e de ação social. Os direitos humanos estão penetrados por interesses ideológicos e não podem ser entendidos à
margem do cultural, não podendo jamais ser negado o seu caráter
ideológico, já que, na medida em que é retirado do seu contexto,
universaliza e subtrai a sua capacidade e possibilidade de transformar-se e transformar o mundo a partir de uma posição que não
seja hegemônica.5
Desta forma, de acordo com HeRReRA fLOReS6, para aplicação de uma teoria crítica de direitos humanos, quatro condições e
cinco deveres básicos devem ser observados.
As condições são: 1- assegurar uma visão realista do mundo
em que vivemos e sobre o que desejamos atuar, utilizando os meios
que nos proporcionam os direitos humanos; 2- desempenhar um
forte papel de conscientização que nos ajude a lutar contra o adversário e a reforçar os próprios objetivos e fins, sendo eficaz para
a mobilização; 3- assegurar às coletividades sociais determinadas
uma visão alternativa do mundo e segurança na hora de lutar pela
dignidade, sustentando-se em dois pilares: reforço das garantias
formais reconhecidas juridicamente e fortalecimento dos grupos
mais desfavorecidos na hora de lutar por novas formas, mais igua4 HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos, p. 22-24, tradução
nossa.
5 HeRReRA fLOReS, Joaquín. el vuelo de anteo: derechos humanos y critica de la razón
liberal, p. 23, tradução nossa.
6 HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos, p. 50-58, tradução
nossa.
37
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litárias e gerais, de acesso aos bens protegidos pelo direito; 4- buscar permanentemente a exterioridade, não em relação ao mundo
em que vivemos, mas em relação com o sistema capitalista dominante, saindo, quando possível, do marco hegemônico de idéias e
valores.
Os deveres são: 1- o reconhecimento de que devemos ter a
possibilidade de reagir culturalmente frente ao ambiente de relações em que vivemos; 2- o respeito como forma de conceber o
reconhecimento como condição necessária mas não suficiente na
hora de colocar em prática as lutas pela dignidade; 3- a reciprocidade, como base para saber devolver o que tomamos dos outros
para construir nossos privilégios; 4- a nossa responsabilidade em
relação aos outros e o dever de exigir a responsabilização daqueles que cometeram a destruição das condições de vida dos demais;
5- a redistribuição, ou seja, a fixação de regras jurídicas, fórmulas
institucionais e ações políticas e econômicas concretas que possibilitem a todos não somente satisfazer as necessidades vitais
primárias, mas também a reprodução secundária de vida, ou seja,
a construção da dignidade humana não submetida aos processos
depredadores do sistema capitalista imposto.
Diante de tais condições e deveres, as bases para um pensamento crítico no meio jurídico seriam: 1- reconhecer que nascemos e vivemos necessitando de satisfação de bens materiais e
imateriais e que o primeiro não é o direito e sim os bens; 2- que
temos de satisfazer nossas necessidades imersos em sistemas de
valores e processos que impõem um acesso restrito, desigual e hierarquizado7, materializado ao longo da história através de marcos
hegemônicos de divisão social, sexual, étnica e territorial; 3- que a
história dos grupos marginalizados e oprimidos por esses proces7 por exemplo, qual a efetividade que possui uma norma que garante, após o ajuizamento
de uma ação civil coletiva pelo Ministério público do Trabalho, órgão estruturado e criado
para a defesa dos interesses sociais indisponíveis, em defesa de crianças reduzidas a condição análoga a de escravo, que as próprias crianças, representadas por seus pais, tenham que
pessoalmente buscar a execução desta sentença? O conhecimento cultural, econômico e
social para estar em juízo para buscar a execução de uma sentença ajuizada por outro Órgão
é quase inexistente. porque então não garantir o acesso aos bens destes trabalhadores de
uma forma mais efetiva, por meio do órgão criado constitucionalmente para esta função?
38
O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
sos de divisão do fazer humano é a história de esforço para levar
adiante práticas e dinâmicas sociais de luta; 4- o objetivo principal
destas lutas é poder viver com dignidade, o que significa poder
generalizar processos igualitários e não hierarquizados a priori de
acesso aos bens materiais e imateriais que conformam o valor da
dignidade humana; 5- estabelecer, acaso se tenha os poderes político e legislativo necessários, sistemas de garantias (econômicas,
políticas, sociais e, sobretudo, jurídicas) que comprometam as instituições nacionais e internacionais ao cumprimento do conseguido por essas lutas pela dignidade8.
então, não basta para a garantia dos direitos humanos destas
crianças utilizadas como exemplo apenas a aplicação da legislação já proclamada e garantida, não basta dizer que estas crianças
possuem o direito de ser crianças. É necessário agir, garantir e
conceder a elas o acesso igualitário aos bens materiais e imateriais que possam trazer dignidade. para tanto, necessitamos partir
de uma visão diferente, precisamos construir uma sociedade mais
justa, dar educação de qualidade, quebrar estigmas, construir um
espaço político amplo e justo não somente de mera democracia
formal, com eleição dos governantes, mas um espaço político
onde os grupos sociais, onde as classes discriminadas e oprimidas
tenham voz e sejam ouvidas, onde os direitos não sejam somente
da burguesia.
Como ensina HeRReRA fLOReS9, a recuperação do político é
uma das tarefas mais importantes em uma teoria crítica e complexa dos direitos humanos. Com ele, rompe-se com as posições
naturalistas que concebem os direitos como uma esfera separada
e prévia da ação política democrática. esta separação produz, pelo
menos, duas consequências perversas; primeiro, uma concepção
separada da ação social: de um lado a ação social dirigida aos interesses individuais e privados e de outro voltada à construção
de espaços sociais, econômicos e culturais coletivos, públicos e
8 HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos, p. 27-29, tradução
nossa.
9 HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos, p. 66-68, tradução
nossa.
39
IDHID
democráticos. Segundo, dita condição prévia dos direitos humanos conduz a uma visão estreita, pois, ao não estar afetada pelo
político, pelo polêmico, pelo que muda em função dos contextos
e das relações de poder, é considerada como um mundo de coisas imodificáveis e imutáveis. Os direitos humanos não podem ser
entendidos separados do político, já que, se assim fosse, haveria
uma dicotomia absoluta entre ideais e fatos. Os ideais formariam
parte de um mundo separado das realidades cotidianas, não situados em contextos reais de convivência. enquanto os fatos seriam
vistos como elementos que conformam a objetividade social, ou
seja, o conjunto de obstáculos objetivos que impedem a implementação real desses ideais abstratos.
Além da recuperação do político, a educação é outro fator
principal para a transformação social. É necessário trabalhar, como
ensina bOAVenTuRA10, com a invenção social de um novo conhecimento emancipatório, o qual é uma das condições essenciais para
romper com a autorreprodução do capitalismo. essa invenção é
um longo processo social já em curso e os seus indícios mais evidentes são a crítica epistemológica radical da ciência moderna. Tal
crítica permite-nos ver como a ciência moderna, vista como solução para todos os problemas das sociedades modernas, acabou
por se tornar ela própria um problema. A transformação gradual
da ciência numa força produtiva neutralizou-lhe o potencial emancipatório e submeteu-a ao utopismo automático da tecnologia. A
educação é, sem dúvida, a base de uma sociedade democrática.
Sem educação, não há direitos, não há luta pela dignidade, não
há igualdade. e, para tanto, será necessária uma reformulação de
todo o ensino público e privado, já que é evidente a fragilidade
hoje existente nesta área.
por fim, outra garantia importante a ser trabalhada é a cultural. no que tange ao trabalho infantil, citado como exemplo, há
uma barreira muito grande a ser vencida, que é a cultura que a sociedade tem acerca do trabalho infantil. É preciso vencer os mitos
do trabalho infantil e não mais pensar que é melhor que a criança
10 SAnTOS, boaventura de Souza. a crítica da razão indolente: contra o desperdício da
experiência, p. 117.
40
O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
esteja trabalhando a estar roubando ou cheirando cola. em um
mundo onde mais de um bilhão de pessoas são analfabetas, não
se pode pensar que o filho de uma família pobre deve estar trabalhando e o de uma família rica deve estar estudando. Deve-se
garantir um futuro digno a todas as crianças, o que somente será
obtido através da educação e da mudança de cultura da sociedade. O direito de estudar e de ter uma visão ampla da sociedade e
do mundo não é um direito restrito, mas acessível a toda criança.
Assim, trabalhar com garantias culturais também passa a ser de
fundamental importância para que a visão estigmatizada que a sociedade tem acerca da matéria seja mudada.
portanto, ao ser aprovado em um concurso público, o novo
ator jurídico, em especial um membro do Ministério público do
Trabalho, deverá ter consciência de que a nossa sociedade possui
leis justas e injustas, que muitas das leis justas não são efetivas
e não garantem, de fato, o respeito à dignidade humana, e que é
necessário lutar para garantir os direitos de milhões de pessoas
que acreditam na sua função, na sua capacidade, no seu poder de
transformação. para tanto, terá de ter consciência de que as garantias jurídicas são apenas uma forma para resguardar os direitos,
não podendo esquecer de outras, de cunho social, econômico, cultural e político, que completam o arcabouço de garantias. Assim,
tendo em mente uma teoria crítica, voltada a garantir o acesso
igualitário e não hierarquizado aos bens materiais e imateriais a
todas as pessoas indistintamente, estará fazendo a sua parte. e é
assim que chegaremos a uma sociedade mais justa, que conseguiremos reduzir as desigualdades sociais e que lutaremos por um
mundo melhor.
referências bibliOgráficas
HeRReRA fLOReS, Joaquín. (Org.). el vuelo de anteo: derechos humanos y critica de la razón liberal. bilbao: Desclée de brouwer,
2000.
______. la reinvención de los derechos humanos. Andalucia: Atrapasueños, 2008.
41
IDHID
SÁnCHez RubIO, David. repensar derechos humanos: de la anestesia a la sinestesia. Sevilla: Mad, 2007.
SAnTOS, boaventura de Souza. a crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 6. ed. São paulo: Cortez, 2007.
v. 1.
WOLKMeR, Antônio Carlos. introdução ao pensamento jurídico
crítico. 5. ed. rev. São paulo: Saraiva, 2006.
42
O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
um cOmprOmissO éticO pela riqueza
humana
jefferson aparecido dias
procurador da República
Ainda nos bancos universitários, me perguntava o que teria
que fazer para ser aprovado em um concurso público no âmbito
jurídico, uma vez que a advocacia, apesar de reconhecer a sua importância, não estava em meus planos.
Terminado o curso de direito e passados alguns anos, um dia
fui aprovado no concurso público do Ministério público federal
para procurador da República, e a pergunta de outrora se transformou em outra: o que devo fazer agora que já passei em um
concurso público?
Daquele dia até hoje já se passaram mais de dez anos, o número de concursos aumentou e o de candidatos multiplicou-se
de forma assustadora, mas as dúvidas dos recém-aprovados quase
sempre são as mesmas, o que inspirou a redação deste artigo.
Tal qual ocorreu com a primeira, a resposta para essa nova
pergunta também não é simples e envolve muitas variáveis, já que
uma simples leitura da Constituição brasileira demonstra que o
papel do Ministério público no brasil é bastante amplo e envolve
temas muito distintos: meio ambiente, matéria criminal, criança
e adolescente, improbidade administrativa, patrimônio público e
cultural, etc.
Com um âmbito de atuação tão grande, que não encontra paralelo em nenhum outro lugar do mundo, é normal que existam
dúvidas quanto à melhor forma de atuar. Apesar das dúvidas, um
dos primeiros sentimentos que assolam um recém-aprovado para
procurador da República é o de que se tornou um super-herói,
daqueles que povoam as histórias em quadrinhos e as telas do
cinema.
nesse momento, o recém-aprovado deve se recordar que
“grandes poderes envolvem grandes responsabilidades”, como disse Dr. paulo Vasconcelos Jacobina, procurador-Regional da Repúbli43
IDHID
ca na 1ª Região, durante um curso de iniciação para procuradores
da República recém-aprovados, relembrando frase dita num filme
envolvendo um dos super-heróis mais famosos da atualidade1.
Assim, é importante recordar que os poderes são grandes justamente em razão dessas responsabilidades, uma vez que são poderes instrumentais, ou seja, não são um fim em si mesmo, mas
sim meios para que seja possível atingir os seus fins.
A tendência é que com o tempo o sentimento de “super-herói” desapareça diante do enorme volume de trabalho que diariamente se apresenta para ser realizado. Surge um outro problema:
como o número de processos não cede, existe uma tendência em
todas as instituições, e que acaba contagiando as pessoas, de prestigiar os processos que envolvam maiores valores ou que possuam
maior repercussão na sociedade ou na mídia, os quais seriam os
processos “importantes”, deixando de lado os demais que seriam
“normais”, por envolver pessoas e fatos “normais”.
Ainda, como consequência dessa visão equivocada, pode
ocorrer que nosso ex-candidato e agora servidor público acabe se
tornando um escravo das estatísticas, fazendo somente o necessário para atingir uma produtividade (às vezes mínima) que lhe evite
problemas.
É claro que alguns casos são mais complexos do que outros e,
em razão disso, exigem maior tempo de estudo e de efetiva atuação, o que não significa que sejam mais ou menos importantes.
Afinal, todos os processos envolvem pessoas que esperam
ver reconhecidos os seus direitos. São milhares, e algumas
vezes milhões de pessoas, para as quais o seu processo é o mais
importante.
nesse ponto, nos parece que o grande problema é que o capitalismo, atualmente intensificado por sua vertente neoliberal, tem
provocado uma apropriação econômica de tudo o que envolve a
vida humana. Assim, são importantes os processos nos quais estejam “em jogo” grandes quantidades de recursos econômicos ou
outros bens que possam ser avaliados economicamente.
1 frase dita por “Tio ben” para “peter parker/Homem Aranha”, no filme Homem Aranha.
SpIDeR-MAn. Direção Sam Raimi. 2002. 121 minutos. euA. Ação.
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
um dos maiores defensores dessa análise econômica do direito é Richard posner que, partindo da premissa de que o homem é
um maximizador racional de seu autointeresse, defende que tudo
e todos podem ser reduzidos a um equivalente valor em dinheiro. Assim, todos os bens materiais (móveis e imóveis) e imateriais
(saúde, alegria, etc.), possuem um equivalente econômico e “o valor econômico de algo consiste no que alguém está disposto a
pagar por ele ou, se já o tem, a quantidade de dinheiro que pede
para desfazer-se dele”.2
A soma de todos esses valores econômicos representaria a
riqueza econômica que3:
(…) é o valor em dinheiro ou moeda equivalente de tudo na
sociedade. Se mede pelo que as pessoas estão dispostas a pagar por algo ou, se já o possui, o que exigiria em dinheiro
para separar-se dele. A única preferência que conta em um
sistema de maximização da riqueza é, portanto, aquela que se
vê respaldada pelo dinheiro, em outras palavras, aquela que se
registra no mercado.
A partir dessa definição, posner defende que o poder Judiciário e todos os demais órgãos públicos devem atuar para que os
bens materiais e imateriais alcancem as mãos daquelas pessoas
que mais os valorizam, independentemente de qual a situação em
que sejam remetidas ou mantidas as demais pessoas.
essa teoria, algumas vezes de forma inconsciente e outras não,
tem justificado que se dê maior atenção aos processos que envolvam grandes valores e que, portanto, seriam mais importantes,
mas o maior problema dessa teoria é que pretende nos convencer
de que maximizar a riqueza é algo natural e, portanto, atuar dessa
forma seria a única postura racional que se pode admitir dos seres
humanos.
Desde já gostaríamos de deixar claro que não concordamos
com essa teoria, que nada tem de natural, uma vez que esta moti2 pOSneR, Richard A. el análisis económico del derecho. México: fondo de Cultura económica, 1997, p. 19. Tradução livre.
3 Conceito de Richard posner, citado por ROeMeR, Andrés. introducción al análisis económica del derecho. México: Instituto Tecnológico Autónomo de México, Sociedad Mexicana
de Geografía y estadística e fondo de Cultura económica, 1994, p. 32. Tradução livre.
45
IDHID
vada pelos interesses econômicos dos detentores do poder, para
os quais interessa manter o status quo de exclusão da maior parte
da sociedade mundial.
O que defendemos, baseados na proposta de Joaquín Herrera
flores, é que essa teoria seja substituída por outra que reconheça
o valor imanente de cada vida ou pessoa, independentemente dos
valores econômicos que delas decorrem: substituir a riqueza econômica pela riqueza humana4.
para tanto, precisamos adotar a posição de que toda vida humana, independente dos aspectos econômicos que a envolvam,
tem um valor intrínseco, que deve ser respeitado por todas as pessoas e instituições. precisamos aceitar que o valor está em “uma
vida” e em cada uma delas, e não apenas nos recursos econômicos
que essa vida pode gerar.
Gilles Deleuze nos dá um bom exemplo do que é reconhecer
o valor da vida, usando para tanto a obra “nosso amigo comum”,
de Charles Dickens5:
um canalha, um sujeito vil desprezado por todos está agonizando e os encarregados de curá-lo manifestam uma espécie
de esmero, de respeito, de amor pelo menor sinal de vida do
moribundo. Todos se empenham em salvá-lo, ao ponto de que
no mais profundo de seu coma o vilão sente que algo doce
o penetra. Mas a medida que retorna à vida seus salvadores
se tornam mais frios, e ele recupera toda sua grosseria e sua
maldade. entre sua vida e sua morte, há um momento que não
é mais que o de uma vida que joga com a morte. A vida do indivíduo cedeu lugar a uma vida impessoal, e todavia singular,
da qual se desprende um puro acontecimento liberado dos
acidentes da vida interior e exterior, é dizer, da subjetividade
e da objetividade do que passa ... Se trata de uma “hecceidad”,
que não é uma individualização mas sim uma singularização:
vida de pura imanência, neutra, mais além do bem e do mal,
porque somente o sujeito que a encarnava no meio das coisas
a tornava boa ou má.
4 HeRReRA fLOReS, Joaquín. O nome do riso – breve tratado sobre arte e dignidade. porto
Alegre : Movimento; florianópolis : CeSuSC; florianópolis : bernúncia, 2007, p. 121.
5 DeLeuze, Gilles. La inmanencia: una vida (…) in: GIORGI, Gabriel; RODRIGuez, fermín
(comps). ensayos sobre biopolítica – excesos de vida. buenos Aires : paidós, 2007, p. 38.
Tradução nossa.
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
A adoção da riqueza humana como ponto de partida deve decorrer não de uma origem transcendental, alheia ao ser humano,
ou mesmo natural, como se fosse da própria essência dos seres
humanos, mas sim de um compromisso ético de cada um de nós,
em relação a nós mesmos, aos outros e à natureza6:
Deste modo, toda assunção individual de responsabilidade é
sempre corresponsabilidade com a situação dos outros, já que
o máximo grau de compromisso com nós mesmos, com os outros e com a natureza, é dizer, o máximo grau de responsabilidade a que podemos aspirar – o compromisso com os direitos
humanos – é o de criar as condições e possibilidades sociais,
econômicas, culturais, políticas e jurídicas de ter, exigir e garantir as responsabilidades que assumimos nesse processo de
humanização do humano.
Dessa forma, a vida de cada pessoa, a partir desse compromisso ético, antes de individualizada, deve ser singularizada e reconhecida como única, impossível de ser comparada com a vida
de outra pessoa. Assim, cada vida deve ter reconhecido o mesmo
valor, que não é econômico, mas decorre dela própria, como uma
vida em potencial, que não pode ser reduzida a um valor econômico.
precisamos reconhecer que7:
A vida não pode fixar-se em uma descrição que imobilize o
seu poder de mudança e “devenir”. Ou, em outras palavras,
a vida não se define pelo que é, mas sim pelo que pode ser,
pelo poder de um corpo de afetar e ser afetado, de multiplicar suas conexões, de criar novas relações, de aumentar sua
capacidade de atuar. Definir um corpo a partir do verbo “ser”
supõe separá-lo do que pode e ajustá-lo a uma imagem ou a
uma identidade já determinada (ou teleológica) que domina
ao conjunto em função de certo resultado, que opera uma codificação em relação a uma norma. e o que um corpo é capaz
de fazer não pode definir-se de antemão: depende de seus
encontros e conexões com outras linhas de “devenir” onde o
que se atualiza é somente uma porção de seus poderes. uma
6 HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos. Andalucía : Atrapasueños, 2008, p. 200. Tradução nossa.
7 GIORGI, Gabriel; RODRIGuez, fermín (comps). ensayos sobre biopolítica – excesos de
vida. buenos Aires : paidós, 2007, p. 22. Tradução nossa.
47
IDHID
vida “devene” junto a outras produzindo relações, afirmando
diferencialmente seu poder, seu ritmo, seu estilo singular de
mudar, em um processo aberto e em formação que não tende
a um standard prévio de medida.
A partir dessa premissa de que a vida humana tem um valor
que é imanente e que independe de outros fatores externos, defendemos que todos os nossos atos devem partir do reconhecimento da riqueza humana, abandonando qualquer consenso ao
redor do valor econômico que a vida possa produzir.
A mesma lógica deve ser aplicada nos processos, pois, se todos eles envolvem pessoas dotadas de um mesmo valor imanente,
todos são importantes e não podem ser colocados de lado ou mesmo menosprezados. não podemos, então, dividir os processos em
“importantes” e “normais”, pois todos teriam de ser reconhecidos
como importantes, em razão das vidas que envolvem.
Assim, para aquela pergunta feita no início, a minha resposta
é que, depois de aprovado em um concurso público, reconheça
que toda pessoa tem um valor que lhe é imanente, decorrente de
sua riqueza humana, e, portanto, o processo do qual faz parte traz
consigo esse valor, independentemente dos valores econômicos
envolvidos, razão pela qual todos os processos demandam uma
atuação responsável, comprometida com a dignidade humana,
que seria o fim a ser atingido por meio do exercício dos já mencionados poderes instrumentais.
Dignidade humana que aqui é adotada: “não (como) o simples
acesso aos bens, mas sim que dito acesso seja igualitário e não
esteja hierarquizado a priori por processos de divisão do fazer
que colocam a uns em âmbitos privilegiados na hora de aceder aos
bens e a outros em situações de opressão e subordinação”8.
Se todos os servidores públicos, inclusive os que ocupam cargos no meio jurídico, adotarem esse compromisso ético, temos
certeza de que, muito em breve, poderemos estar vivendo em um
mundo melhor, no qual a dignidade humana de todas as pessoas
seja respeitada e não apenas daquelas que possuam maiores recur8 HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos. Andalucía : Atrapasueños, 2008, p. 26. Tradução nossa.
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
sos econômicos e se encontram envolvidas em processos considerados “importantes”.
esperamos que juntos possamos construir esse futuro melhor.
e se você ainda não foi aprovado num concurso público, talvez a
solução seja comprometer-se com a riqueza humana e lutar pelo
reconhecimento, respeito e garantia da dignidade de todas as
pessoas, pois esse nos parece o melhor caminho não só para ser
aprovado, mas para toda a vida.
referências bibliOgráficas
DeLeuze, Gilles. La inmanencia: una vida… in: GIORGI, Gabriel;
RODRIGuez, fermín (comps). ensayos sobre biopolítica – excesos
de vida. buenos Aires : paidós, 2007.
GIORGI, Gabriel; RODRIGuez, fermín (comps). ensayos sobre biopolítica – excesos de vida. buenos Aires : paidós, 2007.
HeRReRA fLOReS, Joaquín. la reinvención de los derechos humanos. Andalucía: Atrapasueños, 2008.
HeRReRA fLOReS, Joaquín. O nome do riso – breve tratado sobre
arte e dignidade. porto Alegre : Movimento; florianópolis : CeSuSC; florianópolis: bernúncia, 2007.
pOSneR, Richard A. el análisis económico del derecho. México:
fondo de Cultura económica, 1997.
ROeMeR, Andrés. introducción al análisis económica del derecho.
México: Instituto Tecnológico Autónomo de México, Sociedad Mexicana de Geografía y estadística e fondo de Cultura económica,
1994.
SpIDeR-MAn. Direção Sam Raimi. 2002. 121 minutos. euA. Ação.
49
O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
vOcê já fOi aprOvadO em cOncursO públicO?
a missãO agOra é ser aprOvadO cOmO
servidOr públicO, na vida pública, cOm
espíritO públicO, em benefíciO dO públicO
ramiro rockenbach da silva matos teixeira de almeida
procurador da República
Seja um servidor público consciente e crítico. não reclame,
proponha alternativas. não lamente, crie. não se acomode,
renove-se a cada dia.
O momento tão esperado chegou. Após centenas ou milhares de horas de muito estudo e dedicação, aquele incansável estudante está a poucos momentos de sua posse no cargo público
sonhado. um olhar para trás revela uma trajetória de angústias e
incertezas. Dia após dia a pergunta, cedo ou tarde, surgia: será que
vou conseguir ser aprovado num concurso público? O presente,
felizmente, lhe deu um presente. A aprovação é uma realidade. O
cotidiano mudou. O estudante se tornou servidor público. entretanto, a vida é, em certo aspecto, um conjunto de momentos. um
novo momento emerge com todo o vigor. O agora apresenta outra questão: o que fazer depois de passar num concurso público?
uma nova jornada se inicia. O primeiro passo está consolidado (a
aprovação no concurso público), mas a longa caminhada está apenas começando. e é sobre algumas sugestões desse tão relevante
caminhar que passaremos a tratar nas próximas linhas.
O que deve ser concretizado? Como e com quais objetivos
deve atuar todo aquele que foi aprovado num concurso público?
qual o caminho a seguir? quais as diretrizes? por certo é possível fazer muito e não existem fórmulas acabadas. O caminho não
está pronto, justamente porque o caminho se faz ao caminhar. O
poema do espanhol Antonio Machado, sob o título “Caminante no
51
IDHID
hay camino”1, é enriquecedor e serve de incentivo, nesse momento
inicial e através da arte, para que o servidor público esteja sempre
atento aos desafios constantes e às possibilidades infinitas que
surgem à sua frente em razão do cargo público que ocupa:
Todo pasa y todo queda,
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre el mar.
nunca perseguí la gloria,
ni dejar en la memoria
de los hombres mi canción;
yo amo los mundos sutiles,
ingrávidos y gentiles,
como pompas de jabón.
Me gusta verlos pintarse
de sol y grana, volar
bajo el cielo azul, temblar
súbitamente y quebrarse...
nunca perseguí la gloria.
Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
1 Letra disponível em <http://www.poemas-del-alma.com>. Acesso em 28 dez. 2007.
52
O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
sino estelas en la mar...
Hace algún tiempo en ese lugar
donde hoy los bosques se visten de espinos
se oyó la voz de un poeta gritar
“Caminante no hay camino,
se hace camino al andar...”
Golpe a golpe, verso a verso…
Murió el poeta lejos del hogar.
Le cubre el polvo de un país vecino.
Al alejarse le vieron llorar.
“Caminante no hay camino,
se hace camino al andar...”
Golpe a golpe, verso a verso...
Cuando el jilguero no puede cantar.
Cuando el poeta es un peregrino,
cuando de nada nos sirve rezar.
“Caminante no hay camino,
se hace camino al andar...”
Golpe a golpe, verso a verso.
De fato, “não há caminho, o caminho se faz ao caminhar”. É
claro que existem regras, procedimentos, rotinas e todo um histórico próprio do serviço público. Os órgãos públicos existem há
anos. Logo, “fazer caminho ao caminhar” não significa começar do
zero como se nada existisse ou não tivesse valor. Ao contrário, o
serviço público, os órgãos públicos, via de regra, vão-se aprimorando com o tempo. Com os erros e acertos dos outros devemos
sempre aprender, corrigindo e aprimorando. Tudo isso, em verdade, é para afirmar com todas as letras: é preciso ser um servidor
público consciente e crítico.
53
IDHID
exatamente. Ser um servidor público consciente e crítico.
Ou seja, estar atento à realidade para não se tornar refém de um
sistema burocrático e desprovido de efetividade. formas e procedimentos são importantes, claro. entretanto, é necessário ter
sempre presente que são meros instrumentos e nada mais. Têm
extrema relevância em busca de resultados, pois garantem um registro histórico de atos e fatos e permitem a comprovação de que
as tarefas do servidor público foram realizadas em conformidade
com regras e normas. Mas, ainda assim, continuam sendo somente
instrumentos (meios em busca de um fim).
O atuar do servidor público não pode estar limitado ao cumprimento de etapas procedimentais (que, repita-se, são meros
instrumentos!). uma situação hipotética, mas real no dia-a-dia do
serviço público, explica melhor a questão. Imagine um cidadão
que tem um problema relacionado à saúde, ou à educação, ou à
moradia, ou que simplesmente almeja determinada informação do
poder público. Como o serviço público é compartimentado (divisão de tarefas e atribuições), o cidadão estará sujeito a uma série
de atos procedimentais e burocráticos (registro do pedido em um
setor, encaminhamento para outro, decisão noutro, enfim). Ora, o
cidadão deseja uma resposta ao seu problema. e o dever do servidor público é assegurar essa resposta. para tanto, todos os setores
do serviço público devem funcionar e de modo harmônico. Se uma
parte do todo falha, o todo não funciona. e a responsabilidade
pelo funcionamento do todo é de todas as partes.
O que se está querendo dizer é que o serviço público, embora possa parecer óbvio, tem um fim a cumprir. e o papel do
servidor público é atuar para que o fim seja cumprido. não basta
executar suas “tarefas procedimentais”. É essencial agir para que o
todo funcione. quando for sua atribuição atuar diretamente, atue.
quando não for, aponte erros, faça sugestões, debata, proponha
mudanças, demonstre que algo, em algum setor, precisa ser revisto, já que, apesar do seu esforço e dedicação no desempenhar de
suas funções, o resultado desejado não está ocorrendo no mundo
real. formule-se sempre, no mínimo, três questões:
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
1) eu, servidor público, estou exercendo da melhor forma possível as minhas funções?
2) O resultado do serviço público no qual exerço minhas funções é o esperado?
3) Se eu estou exercendo bem minhas funções e o resultado
do serviço público no qual as exerço não é o esperado, o que
estou fazendo para mudar essa realidade?
São questões que pretendem sedimentar o seguinte: uma vez
aprovado em um concurso público, não seja refém do sistema, de
procedimentos, de atos burocráticos e de divisão de atribuições.
seja um servidor público consciente e crítico. não reclame, proponha alternativas. não lamente, crie. não se acomode, renove-se a cada dia. É claro que o grau de interferência do servidor
público varia de acordo com a função que exerce. quanto maior
o nível de responsabilidade, maior a possibilidade de concretizar
mudanças e melhorar o serviço público. no entanto, mesmo as tarefas aparentemente menores podem ser aprimoradas. Todos têm
a colaborar. Seja um servidor público de corpo, alma e coração.
Seja um servidor público impulsionado pelo espírito público!
e o que é o espírito público? É, pensamos, o atuar e o caminhar em busca de dias melhores para todos e todas, por acreditarmos, do início ao fim de cada dia, que, nos termos do lema do
fórum Social Mundial2, sim, “um outro mundo é possível”! Mas,
enfim, o que significa agir pelo bem de todos e todas? É preciso,
claro, delimitar esse “todos” e “todas” para que algo seja realizável
no âmbito do serviço público.
A jornalista brasileira Cláudia Werneck nos apresenta um questionário sugerindo que marquemos com um “x” as minorias, reais
ou virtuais, que fazem parte do nosso “todos” ou do nosso “todas”
social, isto é, quem cada um considera como “todos” e “todas”.
que tal marcar o seu “todos” e “todas”? então, “quem pertence a teu todos”3?
2 Informações complementares disponíveis em <http:// www.forumsocialmundial.org.br>.
Acesso em 30 mar. 2009.
3 WeRneCK, Cláudia. ¿quién pertenece a tu todos? Rio de Janeiro: WVA, 2004, p. 51-52.
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IDHID
( ) Jornalistas
( ) pessoas
com deficiência
intelectual
( ) pessoas com
deficiência física
( ) pessoas com
transtornos mentais
( ) Caudilhos
( ) Antropófagos
( ) Refugiados
( ) Homossexuais
( ) Hermafroditas
( ) Aposentados
( ) Grávidas
( ) negros
( ) filhos de presos/as ( ) Assassinos
( ) Argentinos
( ) Indígenas
( ) Operadores de
Telemarketing
( ) pessoas com
deficiência múltipla
( ) Ciganos
( ) pessoas com
perna-de-pau
( ) Lixeiros
( ) Mendigos
( ) ex-presidentes
( ) palhaços de circo
( ) presos/as
( ) brasileiros
( ) Chineses ou
orientais
( ) políticos
( ) prostitutas
( ) empregadas
domésticas
( ) pessoas com
deficiência sensorial
( ) Imigrantes
( ) bissexuais
( ) brancos
( ) estrelas de
Hollywood
( ) Vendedores de rua
( ) Criadinhas
Vamos analisar o resultado? em verdade, a conclusão de Cláudia Werneck, com a qual comungamos em gênero, número e grau,
é a de que “quem deixou de marcar um item deve revisar o uso que
faz da palavra TODOS urgentemente”.4
De fato, “todos” são “todos”. não podem existir exceções
nem observações, tampouco qualquer preconceito ou justificativa
de exclusão. Trata-se de “todos” e não de “alguns”, ou da “maioria”, ou de um “quase-todos”. e é um aspecto muito relevante. um
serviço público que almeja o bem comum, uma vida digna para
todos, deve transparecer claramente o que entende por “todos”.
Isso significa que as melhores condições de vida buscadas são para
os trabalhadores e para as trabalhadoras, presos e presas, políticos
4 Op. cit., p. 52.
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
e políticas, professores e professoras, desempregados e desempregadas, empresários e empresárias, criminosos e criminosas,
pessoas com deficiência, corruptos e corruptas, enfim.
É importante, sobretudo em se tratando de serviço público,
o completo afastamento de preconceitos. A razão de existir do
servidor público, lembre-se, é a necessidade imperiosa de uma
atuação em busca de dias melhores para todos e todas. um agir
sem discriminar, sem prejulgar. um olhar consciente e crítico. uma
postura ativa sem ser refém do sistema (o sistema que para atingir
seu fim divide tarefas; tarefas que, quando executadas de modo
burocrático, procedimental e isolado, são desprovidas de efetividade; efetividade que muitas vezes não é alcançada pelo fato de o
sistema, funcionando em suas partes e não funcionando no todo,
não funcionar como sistema). O servidor público não deve apenas
funcionar no sistema. Deve, exercendo suas funções, fazer de tudo
para que o sistema funcione!
O caminho, remarque-se, ainda está sendo traçado. não importa o quanto se mostre árduo. O fundamental é que todo servidor público esteja atento e disposto a fazer prevalecer o espírito
público e o desejo incessante e infinito de dias melhores para todos e todas.
As transparentes palavras de frei betto fazem eco:
não é o poder, a vitória, o lapidar cartesiano das ideologias
que movem meus passos. É o escândalo da miséria, a vergonha
da pobreza, o sofrimento de meus semelhantes, a razão dessa
invencível teimosia em juntar cacos, costurar retalhos, começar de novo, refazer o caminho, ainda que a roda do moinho
deixe a impressão de que anda sem sair do lugar, tudo gira em
torno de um mesmo ponto, nessa cíclica labuta sobrecarregada de esperanças abortivas. Venho de um povo peregrino.
Venho da confiança de noé na reinvenção do humano, da persistência dos hebreus na travessia do deserto, do desalento de
elias clamando pela morte, do aparente fracasso do nazareno
dependurado na cruz. e trago em mim a marca indelével do
pecado original. Sei que novos projetos exibirão fraturas, sonhos virarão pesadelos, o militante de hoje será o arrogante
de amanhã. Se os coxos não tropeçam é por prestarem mais
atenção aos acidentes do percurso.
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IDHID
ainda assim, salvam-me do ceticismo a fé no ser humano, os
avanços históricos, a proclamação dos direitos humanos, a
indignação coletiva frente à corrupção e à injustiça, o repúdio à guerra, à escravidão e à tortura, a progressiva conquista
de cidadania e democracia. salva-me a genética bíblica do
grão de mostarda – a menor de todas as sementes engendra
uma árvore frondosa onde os pássaros se aninham.5
Com efeito, um dos fundamentos básicos no serviço público talvez deva ser o de jamais deixar de acreditar que sempre é
possível fazer algo novo, reinventar, começar outra vez se for necessário. não se acomodar. não desistir. não se deixar afetar por
eventuais desilusões e decepções. A vida, rememore-se, é marcada
por momentos. Lembre-se de quando a dificuldade era ser aprovado em um concurso público. Os tempos agora são outros. Imerso no serviço público, os obstáculos surgem a todo instante. e é
a postura do servidor público que faz toda a diferença. É válido
sedimentar: “seja um servidor público consciente e crítico. não
reclame, proponha alternativas. não lamente, crie. não se acomode, renove-se a cada dia”. não faça apenas a sua parte! faça a
diferença do todo!
Os bem lançados comentários de Amilton bueno de Carvalho,
tratando de temas relacionados à lei e ao papel de magistrados e
demais juristas podem, com as devidas adaptações, servir de referência a todo e qualquer cargo ou função pública:
Ora, ante o insuportável volume de trabalho, a forma mais rápida de o Juiz livrar-se dos processos é julgar mecanicamente. Ao
invés de ter atividade criadora, crítica, transformadora, o excesso de trabalho faz com que, de maneira menos desgastante
no plano físico, seja aplicado o saber consagrado ou apenas a
dita vontade do legislador por menos nobre que possa ser. (...)
O excessivo volume de trabalho carrega, pois, vantagem: o
juiz continua conservador e acomodado. aliás, é extremamente perigoso dar condições para uma pessoa pensar. mais
perigoso ainda é deixar pensar criativamente aquele que tem
o poder de julgar. é que se perde o controle sobre ele.6.
5 beTTO, frei. a mosca azul: reflexão sobre o poder. Rio de Janeiro: Rocco, 2006, p. 122123. Destaque nosso.
6 CARVALHO, Amilton bueno de. magistratura e direito alternativo. Rio de Janeiro: Luam,
1997, p. 95. Destaque nosso.
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O que fAzeR DepOIS De pASSAR eM uM COnCuRSO púbLICO
em definitivo, é preciso estar atento ao mundo lá fora para
que o atuar no serviço público não se torne uma fria e infrutífera
repetição sistêmica de atos burocráticos e procedimentais. não
deixe de pensar. não permita que a rotina excessiva de trabalho
prevaleça sobre a necessidade de contribuir para um mundo melhor. O serviço público não pode estar restrito a um funcionar de
modo mecânico, automático, sem pensamento crítico e construtivo. O servidor público, em qualquer órgão, cargo ou função deve
travar uma luta árdua e contínua para não se tornar verdadeiro
refém do sistema que aliena e produz máquinas de trabalhar: trabalho em quantidade, mas questionável. Ganham as estatísticas,
vence a produtividade. Mas o que realmente estamos fazendo para
mudar a dura realidade social?
Você já foi aprovado em concurso público. A missão agora é
ser aprovado como servidor público, na vida pública, com espírito
público, em benefício do público.
A resposta a esses questionamentos finais cada servidor público deve tornar realidade no seu dia-a-dia de trabalho no serviço
público. Do início ao fim do expediente e da posse à aposentadoria. não faça apenas a sua parte! faça a diferença do todo!
referências bibliOgráficas
beTTO, frei. a mosca azul: reflexão sobre o poder. Rio de Janeiro:
Rocco, 2006.
CARVALHO, Amilton bueno de. magistratura e direito alternativo.
Rio de Janeiro: Luam, 1997.
fÓRuM SOCIAL MunDIAL. Disponível em <http://www.forumsocialmundial.org.br>. Acesso em 28 dez. 2007.
MACHADO, Antônio. Caminante no hay camino. Disponível em
<http://www.poemas-del-alma.com>. Acesso em 28 dez. 2007.
WERNECK, Cláudia. ¿Quién pertenece a tu todos? Rio de Janeiro:
WVA, 2004.
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