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Tradição Acerca Do Mito De Medeia

2009, PRINCIPIA

TRADIÇÃO ACERCA DO MITO DE MEDEIA Profª. M. Elisa Costa B. de Carvalho (UERJ) RESUMO: O presente trabalho será dividido em duas partes, a primeira tem por objetivo examinar toda a tradição anterior acerca de Medéia para melhor estudar e compreender a arte de Apolônio Ródio em sua obra épica Argonáuticas. A segunda parte examinará a figura de Medéia no canto III das Argonáuticas. Palavras chaves: Medéia, Período Helenístico, Argonautas Dentro do quadro da poesia helenística ou alexandrina, o Canto III das Argonáuticas de Apolônio de Rodes sempre mereceu destaque entre os críticos e estudiosos. Tal fato é notável sobretudo, porque a literatura helenística é muitas vezes qualificada com a marca de “decadente” pelo mero fato de pertencer cronologicamente à época pós-clássica. Assim, os literatos alexandrinos e, sobretudo, os poetas, seriam meros repetidores de fórmulas já antes empregadas, fabricando uma poesia formalmente afetada, sem vigor e politicamente servil à ordem dominante. Esta apreciação superficial não resiste a uma leitura refletida e sem preconceitos destes mesmos poetas, os quais, muito pelo contrário, revelaramse extremamente corajosos ao procurar novas soluções e propostas estéticas dentro de um mundo helênico radicalmente transformado dos pontos de vista social, político e econômico. Estas novas propostas refletem, no entanto, uma continuidade com o que já havia sido feito antes na literatura, com a herança clássica, continuidade esta que se expressa muito bem no fato bastante conhecido de que quase todos os poetas alexandrinos eram, ao mesmo tempo, eruditos (poetae docti), que estudaram a fundo, de um ponto de vista filológico e mesmo crítico, toda a literatura anterior. Na poesia helenística vemos, portanto, de maneira muito clara, toda uma fascinante relação dialética entre tradição e inovação. De qualquer forma, mesmo os críticos mais empedernidos da poesia helenística sempre fizeram ressalva acerca das qualidades do Canto III das Argonáuticas e, mais especificamente, acerca da pintura da paixão de Medéia por Jasão. Este fato é causado não somente pelas qualidades intrínsecas e pela riqueza do texto, cujas linhas gerais pretendemos explorar aqui, mas também ao fato de que Vergílio inspirou-se posteriormente em Apolônio para, no canto da IV da Eneida, pintar a paixão de Dido por Enéias. Por razões históricas e culturais óbvias, a Eneida é, naturalmente, melhor conhecida que as Argonáuticas. Ainda posterior a Vergílio é a imitação de Valério Flaco, uma epopéia inacabada em oito livros intitulada Argonautica. Esta influência posterior de Apolônio na literatura latina sem dúvida estimulou o estudo das Argonáuticas, ainda mais porque esta epopéia em quatro livros nos veio completa. Ao mesmo tempo, este interesse específico pelo terceiro canto tem como conseqüência a negligência pelo estudo e análise dos cantos I, II 88 89 e IV, o que se nota nitidamente através da bibliografia especializada. Este fato é, sem dúvida, nocivo para uma apreciação adequada do autor e de sua obra. Neste artigo veremos, em linhas gerais, como Apolônio pinta o personagem de Medéia no terceiro canto de sua obra. Evidentemente, já havia todo um tratamento anterior deste personagem na literatura grega, e Apolônio, enquanto erudito, naturalmente não o desconhecia. Examinaremos então toda a tradição anterior acerca de Medéia para melhor estudar a arte de Apolônio Ródio, sem desprezar os dados biográficos acerca deste último, os quais auxiliam uma melhor compreensão. O Mito de Medéia Do ponto de vista etimológico, o nome Médeia muito provavelmente está relacionado com médomai (“meditar”, “maquinar”, “pensar”), significando talvez “astuta”. Nas tábuas em linear B está registrado o nome próprio Me-de-jo, o qual, provavelmente, é um masculino. Note-se que os trocadilhos etimológicos com o nome Medéia estão já registrados em Píndaro (IV Pítica, 27 médesin...hamoîs, “pelos meus planos”, em uma fala de Medéia) e estão presentes também em Apolônio (Argonáuticas III, verso 826 médea koures, “os planos da moça”, referindo-se a Medéia; hòs gàr tóde médeto Here, “pois assim Hera planejava isto”, falando do destino de Medéia). Medeia não é mencionada nos poemas homéricos, embora esteja ali representada uma figura paralela que é Circe, no canto X da Odisséia. Circe é uma astuta feiticeira, bárbara e descendente do Sol, como Medéia, a qual, aliás, é sua sobrinha. Circe é uma imortal, assim como certas tradições apresentavam Medéia também como imortal. Sendo assim, há numerosos traços em comum entre as duas figuras. Apolônio Rósio pinta um encontro entre as duas no canto IV das Argonáuticas, versos 659 a 752. Nos poemas homéricos são feitas alusões também a Jasão (Ilíada VII, 458; XXI, 41; XXIII, 747), aos Argonautas e sua expedição, das quais a mais expressiva está contida nos versos 69 e 70 do canto XII da Odisséia: “a nau que percorre os mares/ Argo conhecida por todos” Tal verso indica que provavelmente já havia então cantos épicos acerca da expedição dos Argonautas. É em Hesíodo, na Teogonia, que encontraremos as primeiras referências a Medéia. Com efeito, nos versos 956 a 962 deste poema Hesíodo descreve a descendência do Sol e de Perseis, filha do Oceano e de Tétis. Deste casal nasceram Circe e Eetes, o qual desposou uma outra filha do Oceano, de nome Hiduîa em Hesíodo. Esta gerou Medéia. Aplolônio menciona também a mãe de Medéia no Canto III das Argonáuticas, verso 243, na forma de Eídyia ou Eidyîa. É evidente que, em qualquer uma destas formas, o nome tem o significado de “aquela que sabe”, o que é bastante significativo em se tratando da mãe de uma feiticeira experimentada em todo tipo de artes mágicas. Segundo tradições mitológicas posteriores, claramente baseadas em analogias e racionalizações do mito, Medéia seria filha de Eetes e Hécate e irmã de Circe. Ainda na Teogonia, nos versos 992 a 1002, faz-se referência à união de Jasão e Medéia e à ida dos dois para Iolcos, onde Medéia deu à luz seu filho Medeio. Conforme demonstra o testemunho de Hesíodo, a figura de Medéia aparece desde cedo na mitologia grega como um elemento dentro do famoso mito dos Argonautas. De fato, Jasão, líder dos heróis que foram à longínqua terra da Cólquida a fim de reconquistar o velocino de ouro, só poderia superar as terríveis provas propostas por Eetes (colocar o jugo em dois imensos touros de cascos de bronze, que sopravam fogo pelas narinas, arar com eles um campo e nele semear os dentes de um dragão e massacrar os temíveis guerreiros nascidos desta semeadura), para conseguir seu intento, com a ajuda de poderes mágicos, os quais lhe foram fornecidos pela jovem filha do rei, que por ele se enamorara. Como recompensa, Jasão une-se a ela e leva-a consigo em sua viagem de volta para Grécia, a fim de retomar o trono legítimo de Iolcos, na Tessália. Eetes enfurece-se quando descobre o comportamento da filha e resolve persegui-la. Duas versões existem acerca desta perseguição. Segundo uma delas, Apsirto, meio-irmão de Medéia, lidera a perseguição e é atraído por Medéia e Jasão para uma armadilha, onde Jasão o mata, conforme narra Apolônio no canto IV das Argonáuticas , versos 395 a 481. Segundo a outra, Apsirto é ainda uma criança, que Medéia captura e esquarteja, jogando os pedaços de seu corpo pelo caminho. Os perseguidores tinham, portanto, de se deter muitas vezes para sepultar cada pedaço do menino, o que possibilitou aos Argonautas a fuga. Uma das mais famosas referências à fuga de Medéia está em Heródoto, no livro I, § 2. Na viagem de volta para a Grécia os Argonautas abordam no país dos Feáceos, onde, sob a exortação de Arete, Medéia e Jasão celebram o seu matrimônio, para que Medéia não fosse devolvida aos emissários que Eetes havia enviado ao rei Alcínoo, conforme era o desejo deste último. Estes fatos são-nos contados por Apolônio no canto IV das Argonáuticas, versos 982 a 1222. Desta união nasceram alguns filhos, sobre os quais as fontes são contraditórias. Em uma versão o casal só teria tido uma filha, de nome Eríopis. Segundo a versão dos trágicos, os filhos eram dois: Feres e Mermeros. Finalmente, na versão transmitida por Diodoro Sículo, os filhos eram três: Téssalo, Alcimenes e Tisandro. Já em Iolcos Medéia consegue rejuvenescer Éson, pai de Jasão, esquartejando-o e cozinhando seus pedaços em ervas mágicas, evento relatado por Ovídio nas Metamorfoses, livro VII, versos 162 ss.. Também ali Medéia consegue convencer as filhas de Pélias, o usurpador do trono que caberia a Jasão, a fazer o mesmo com seu pai. Porém, tendo-lhes dado ervas ineficazes, faz com que elas esquartejam e matem o próprio pai. Tal fato é mencionado em Píndaro na IV Pítica, verso 250, e foi assunto de predileção dos trágicos, tendo sido tratado por Sófocles em uma peça intitulada Rhzotómoi ( “As 90 91 filhas de Pélias”) e por Eurípides em uma tragédia de nome Peliádes (“As filhas de Pélias”). Por este crime horrendo Medéia e Jasão são banidos de Iolcos com seus filhos e vão parar em Corinto, cenário da estupenda peça de Eurípides representada em 431 a. C.. Em Corinto Jasão abandona Medéia para unir-se a Creúsa (também chamada Glauce), filha do rei Creonte. Medéia vinga-se matando Creúsa, causando indiretamente a morte de Creonte e matando os próprios filhos. Note-se que, se fizermos abstração do problema constituído pela Medéia de Neófron, este último detalhe é acrescentado à lenda pela primeira vez por Eurípides em sua tragédia. Depois de mais este crime pavoroso, Medéia refugia-se em Atenas, junto ao rei Egeu, com quem tem um filho Medos. Medéia tenta sem sucesso matar Teseu, filho de Egeu, para assegurar a sucessão de seu filho no trono real. Plutarco faz uma alusão a esta situação na Viagem de Teseu, 12. Foi então banida para Média, dando nome ao lugar e estabelecendo seu filho no trono. Parte desta tradição está em Heródoto, livro III, § 62. Em seguida, Medéia retornou à Cólquida, onde matou o usurpador Perses, irmão de Eetes, e devolveu o trono a seu pai. Do ponto de vista das pinturas em cerâmica, todos os episódios do mito de Medéia estão muito bem representados, e sobretudo o das filhas de Pélias. Note-se ainda, dentro da literatura grega anterior a Apolônio de Ródio, dois tratamentos especiais da figura de Medéia. O primeiro está contido na IV Pítica de Píndaro, dirigida ao rei Arcesilau de Cirene e datada de 462 a. C.. Neste longo poema de 299 versos, a mais longa das odes de Píndaro, o mito central descreve a história dos Argonautas contada de forma resumida. Ali Medéia é apresentada logo como uma profetisa e, provavelmente, como imortal, segundo o verso 11 já citado acima. Nos versos 213-223 é descrito de forma sublime o amor de Medéia por Jasão, sendo que os versos 218-219 merecem ser citados por extenso. De fato, segundo o poema, Afrodite havia ensinado a Jasão os meios “para que ele (ou seja, Jasão), arrebatasse de Medéia o respeito aos pais, e o desejo de ver a Grécia a sacudisse em sua alma ardente, sob o látego da Persuasão.” Vemos aí já descritas o forte amor de Medéia por Jasão e outro tema que também está sempre ligado às descrições literárias do casal: o forte desejo de uma jovem bárbara de ver a Grécia. Medéia também é apresentada em seguida como feiticeira, pois ensina a Jasão os meios mágicos que o farão triunfar nas provas propostas por Eetes. Tudo isto é resumido na expressão contida no verso 233. (“da estrangeira habilidosa no trato de todas as drogas”). Temos aí já os dois traços básicos de Medéia que serão trabalhados na peça de Eurípides: a estrangeira e a feiticeira. Na tragédia do grande dramaturgo ateniense ficaram definitivamente fixados para a posteridade os traços da princesa da Cólquida. O enredo da peça alude a fatos ocorridos em Corinto e já descritos acima e é por demais conhecido para que o narremos aqui. Note-se que, embora o medo da feiticeira enquanto dominadora de poderes irracionais e incompreensíveis para a maioria das pessoas perpasse toda a obra, este traço da personagem não é tão ressaltado por Eurípides quanto dois outros. Um é o tema da estrangeira, a bárbara, que se encontra na Grécia e é uma ameaça ao modo de viver e à ética do país, devendo ser descartada. Mas é no outro que Eurípides vai carregar em todas as suas tintas, seguindo coerentemente o seu ideário dramático de humanização da cena. De fato, na peça Medéia é descrita sobretudo como uma mulher que se orgulha de sua nobre descendência, mas que foi vergonhosamente traída, ultrajada e abandonada pelo homem a quem tanto ama e a quem tanto deu. A descrição da mulher passional que, tendo atingido o paradoxo da ira e da revolta, comete atos de desatino é, sem dúvida alguma, o centro da tragédia de Eurípides. Todos estes traços confluem numa única frase que é dita pela ama logo no prólogo, no verso 44 – aliás em início de verso, posição bastante enfática -, ao tentar justificar seus temores causados por Medéia: (“pois ela é terrível”). Note-se que na literatura latina, posterior, evidentemente, a Apolônio, dois tratamentos do personagem de Medéia se destacam. Um é aquele da Medéia de Sêneca, tragédia inspirada na obra de Eurípides, e a outra está contida no décimo segundo poema das Heroínas de Ovídio, uma comovente alocução de Medéia e Jasão em Corinto. Para encerrar este tratamento preliminar da figura de Medéia, citemos as sábias palavras de Maria Helena da Rocha Pereira: “A história de Medéia é um caso excepcional na mitologia grega por comportar elementos de magia (....). Este tipo de figura tinha uma conotação de exotismo que dificilmente se dissociava delas.” 92 93 Bibliografia BAILLY, Anatole: Dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette, 1963 CHANTRAINE, Pierre: Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris: Klincksieck, 1983-1984. 2 v. GRIMAL, Pierre: Dictionnaire de la mythologie grecque et romaine. Paris: PUF, 1976 HUNTER, R. L. (ed.): Apollonius of Rhodes – Argonautica – Book III. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. HUTCHTNSON, G. O.: Hellenistic Poetry. Oxford: Clarendon Press, 1988. LESKY, Albin: História de la literature griega. Madrid: Gredos, 1969. LÓPEZ FÉREZ, J. A. (ed): História de La Literatura Griega. Madrid: Cátedra. 1988 PEREIRA, Maria Helena da Rocha: Eurípides – Medéia. Coimbra: INIC. 1991 PFEIFFER, Rudolf: História de La filologia clásica. Madrid: Gredos. 1981 LINGUAGEM E ENSINO NA IDADE MÉDIA Prof. Dr.Airto Ceolin Montagner, UERJ / UNIGRANRIO RESUMO: O ensino na Idade Média compreendia um conjunto de disciplinas pertencentes ao Trivium e ao Quadrivium, matérias conhecidas como artes. A estes se opunham as artes mechanicae, de cunho prático. Focalizamos, neste artigo, as questões relativas ao ensino da linguagem verbal, centrando nosso interesse na ars gramatica e na ars retórica. Um texto latino exemplificará as atividades de um famoso mestre da Idade Média.Palavras-chave: Educação, ensino, Idade Média, escolástica, linguagem, retórica. Introdução histórica Foi na Antiga Grécia, no século IV a.C., que a educação se institucionalizou com a fundação das primeiras escolas: Isócrates inaugurou sua escola em 393 a.C. e Platão fundou a Academia em 387 a.C. Os romanos, com a conquista da Grécia, assimilaram aspectos importantes da cultura grega, somando o que lhes era peculiar: o respeito às leis e à disciplina. Suas escolas, sem dúvida influenciadas pelos gregos, haja vista o gymansium, incluíam também o estudo do direito. Com o advento do cristianismo, a partir do II século, o Império começa a viver sua decadência, seja causada pelas crises sucessionais, seja pela situação econômica e social que se deterioravam, seja pelas perenes tentativas de invasão dos bárbaros. Em 476, o Império deixa de existir definitivamente, com a consequente devastação de muitas regiões da Europa. Após um longo processo de adaptação, grande parte desses contingentes de invasores foram cristianizados. Como a Igreja foi a única organização que sobreviveu e forneceu suporte às populações invadidas, tornou-se também a instituição mais importante de toda a Idade Média. É esta Igreja que sustentará a educação e o ensino na época medieval. Todavia falar de ensino e educação neste longo e complexo período da história é preciso que examinemos principalmente a organização escolástica, ponto de partida do conhecimento da cultura da época. Trata-se de uma tradição com relativa estaticidade e unidade substancial, que se assenta na manutenção do esquema das artes liberais, que, na Antiguidade tardia, exauria a educação secundária e se colocava como propedêutica do estudo da filosofia. Às artes liberais contrapunhamse as artes mechanicae: escultura, pintura e todo tipo de atividade artesanal. Somente as artes realmente desinteressadas, ou seja, que não conduziam a algum lucro, eram consideradas liberais. Diante disso, a atividade do poeta, reveste-se de uma dignidade sem par. 94 95