DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102232014188
Entre tablados e arenas:
performances culturais
Between arenas and stages: cultural performances
Sainy Coelho Borges Veloso¹
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Urdimento, v.2, n.23, p 188-205, dezembro 2014
Entre tablados e arenas: performances culturais
Resumo
Abstract
Este artigo traça o percurso histórico de um pensamento transdisciplinar,
construído durante o século XX, que
aproximou as ciências das artes e possibilitou o surgimento dos Estudos das Performances Culturais, nos Estados Unidos,
na década de 1980. Estudos que entrecruzam três matrizes: a sociológica de
Erving Goffman (2011); a antropológica
de Victor Turner (2008); e a teatral, desenvolvida pelo teatrólogo Richard Schechner (2002). Por meio desses estudos
apresento apontamentos iniciais para a
interpretação de performances culturais.
This article deals with the historical course taken by the transdisciplinary
thinking that has been built in the 20 th
century, and has approximated two different fields: science and art. This approximation between the two, paved the way
in the United States for the emergence
of Cultural Performances Studies in the
1980s which has crisscrossed three formats: Erving Goffman’s sociological
(2011) with the anthropological of Victor
Turner (2008) and with theatrical developed by playwright Richard Schechner
(2002). Through these studies presents
initial notes on the interpretation of cultural performances.
Palavras-chave: Performances culturais,
teatralidade, atores sociais.
Keywords: Cultural performances, theatricality, social actors.
ISSN: 1414.5731
E-ISSN: 2358.6958
¹ Profa. Dra. Faculdade de Artes Visuais (FAV), Universidade Federal
de Goiás (UFG), Goiânia, GO, Brasil. Atua no Mestrado interdisciplinar
em Performances Culturais da Escola de Música e Artes Cênicas EMAC/UFG. Atualmente, faz pós-doutorado em Cultura y Sociedad,
na Universidad de San Martín, em Buenos Aires (Argentina), com bolsa CAPES.
[email protected]
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As aproximações entre diferentes áreas do conhecimento, ocorridas durante o
século XX e intensificadas após a segunda metade do século, entrecruzaram modos
de conjecturar conceitos, procedimentos, práticas, e modos de fazer. A arte, até
então considerada pela ciência fruto de uma mentalidade primitiva, acosta-se a ela.
Essa aproximação é claramente visível nas proposições estruturalistas de Claude Lévi-Strauss (1976) em via de mão dupla. Ao conceber a apreensão do “real” como um
sistema organizado, estrutural, o autor percebe no objeto de arte a redução desse
mesmo modelo. Desse modo, compreende que a arte procede à figuração do “real”
por meio de um “sistema organizado de signos” (Lévi-Strauss, 1976, p. 38), de modo
representacional.
Não obstante o conhecimento adjudicado pela arte e uma indicial epistemologia estética do estruturalismo concentrada em seu objeto – face à dimensão “real”
de um modelo mimético – nele se encontra paradoxalmente sua inversão. Se, nas
ciências, o processo de conhecimento analítico procede das partes para o todo, o
“modelo reduzido” do objeto artístico possibilita seu inverso: a apreensão do global
e sinteticamente da estrutura (Lévi-Strauss, 1976, p. 39). Nesse sentido, a mimeses
não procede por imitação, mas por representação, e a redução inverte o processo de
conhecimento, transformando a cognição analítica do conhecimento científico em
cognição sintética peculiar da fruição estética.
Contudo, essa representação de mundo pelo pensamento estruturalista já apontava em si uma possível fissura estrutural ao focar no esqueleto de um sistema social.
Por essa fissura transitou o pensamento filosófico pós-estruturalista, buscando a superação da perspectiva anterior. Nesse intento, o reconhecimento passivo, monista,
de um esqueleto sociocultural determinante da relação inseparável do significante e
significado é, assim, transformado em ativo questionamento no pensamento pós-estruturalista. Se a estrutura social é determinante, em maior ou menor grau, do modo
de sentir, pensar, saber, dizer, conhecer do indivíduo ou de um grupo de indivíduos,
podemos considerar que o transcendental não se encontra na experiência, nem no
sujeito em si mesmo, que fica às margens da operação analítica.
A partir de então, a questão é reconhecer o cimento social que sustenta a sociedade, para, posteriormente, intervir nas realidades desse esqueleto representativo, fidedigno da situação sócio-histórico do mundo. Com o significante separado do significado no pós-estruturalismo, o texto se abre para uma pluralidade de sentidos, e a
realidade é considerada como uma construção social e subjetiva. Esse pensamento
perpassa a produção artística contemporânea, em que é recorrente o questionamento da estrutura social visando não somente à representação, mas a (re)apresentação
do mundo de maneira diferente. Para abarcar tal complexidade, a obra artística se
mescla aos fenômenos sociais, antropológicos, filosóficos, entre outros.
Neste sentido, é grande a contribuição dos estudos de Lévi-Strauss para a antropologia da arte (Geertz, 1989; Gell, 1998; Ingold, 1992, 2000), ao entendê-la não
como instrumento de uma razão primitiva ou explicativa da difusão cultural no mundo, tal como concebia a Antropologia tradicional, mas como um “modelo reduzido”
que se antecipa às partes e com problemas teóricos próprios. Como tal, a arte não
somente procede à figuração do “real” por meio de um “sistema organizado de signos”, como concebeu Lévi-Strauss (1976, p. 38). O objeto de arte pode ser também
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uma junção de fragmentos, cacos, signos aparentemente desorganizados, expostos
à produção de sentidos e construção de realidades.
Serve-nos de exemplo a pesquisa de Stefan Kaegi, nascido em 1972, e participante do grupo Rimini Protokoll (Malzacher; Dreysse, 2008). Em 2001, o artista performou “Torero Portero”, na cidade de Córdoba, Argentina, explorando esteticamente as narrativas das vidas pessoais de performers não profissionais, eleitos por sua
singularidade física, psíquica, ou por suas competências em campo específico (Folha
de São Paulo, 2005). Os performers eram dois brasileiros e dois argentinos – sem
experiência em teatro –, selecionados por meio de anúncios publicitários veiculados
em classificados de jornais. Desse mesmo modo, ainda que com distintas temáticas,
Kaegi realiza seu teatro de realidades, transitando entre a teatralidade nos tablados –
espaço cênico improvisado – representativa do mundo real e a antiteatralidade das
arenas, cenário público oficial das disputas de poder, laboratório social. Kaegi segue
realizando suas performances, nas e pelas quais questiona categorias e conceitos
teatrais: o espaço, o tempo, a figura humana, a ação, as fronteiras do humano e os
limites da representação cênica. De fato, há, em pesquisas como a de Kaegi, uma
transposição de conceitos delimitadores do teatro que amplia sua importância atualmente, ao problematizar a dimensão da vida social em seu próprio campo de poder
– arenas – ao mesmo tempo em que representa sua estrutura.
Em direção a essa questão, circunscrevemos nosso objeto de investigação, o
teatro. Teatro como conhecimento do mundo, indissociável dos diálogos que abarcam a vida social, o desempenho de papéis e posições no jogo social e, consequentemente, cultural. Diálogos anglo-americanos, historicamente iniciados na década de
1970, que configuraram o campo de estudos interdisciplinar chamado Performance
Studies, uma forma epistemológica de abordar o mundo cultural e a arte.
Cenários históricos: as culturas e suas performances
Historicamente, o termo performance remete a um grupo altamente envolvido na cena artística de vanguarda norte-americana em 1960, chamada de “virada
performativa”, marcada pela subjetivação como proposta para a leitura de mundo e
modo de viver. As condições históricas que engendraram essa virada demarcada nos
anos sessenta já se anunciavam em acontecimentos ocorridos na primeira metade da
década. Falamos de mudanças da guinada política de esquerda realizada por vários
países ocidentais, como, por exemplo, a vitória de John F. Kennedy nas eleições presidenciais de 1960, nos Estados Unidos; a coalizão de centro-esquerda na Itália em
1963; e a de 1964, dos trabalhistas no Reino Unido, que reacendeu o idealismo e o
entusiasmo no espírito de luta do povo.
Essas mudanças continuaram na segunda metade do século com os jovens protestando contra promessas governamentais não cumpridas, contra a Guerra do Vietnã (1955-1975), contra o endurecimento dos governos na Guerra Fria (1945-1991),
entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética, hoje Rússia. Fizeram apologia ao
uso de drogas, pregaram a revolução sexual, questionaram os valores da cultura ocidental e fizeram do Festival de Woodstock, realizado de 15 a 18 de agosto de 1969,
um marco desse movimento de contracultura.
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Em Cuba, a Revolução iniciada em 1959 leva Fidel Castro ao poder. A pequena
ilha preocupa o mundo por suas ideias revolucionárias. Abaixo da Linha do Equador,
o argentino Ernesto Guevara, comumente chamado de Che, revolta-se com a miséria dominante na maioria dos trabalhadores da América espanhola e a forte presença
norte-americana na região. Che Guevara incita, então, a formação e instalação de
grupos de guerrilheiros em vários países da America Latina e contribui com a Revolução Cubana.
Na década de 1960, a descolonização da África, da Ásia e do Caribe promove
a gradual independência das antigas colônias. O processo de descolonização dos
continentes africano e asiático insere-se no contexto histórico da Guerra Fria e tem
como uma das principais consequências a II Guerra Mundial, resultando no aceleramento do processo de enfraquecimento dos antigos impérios coloniais europeus,
em especial a Inglaterra e a França, no curto período de 1947 a 1962.
Contudo, esses acontecimentos não são por si só delimitadores da ideia de performance. Mas são questionadores do status quo, da cultura instituída e dos modi
operandi dos líderes políticos, no poder. Geralmente a crítica à cultura se popularizava pelas ruas nas vozes dos jovens e intelectuais como os da Escola de Frankfurt, que
pensavam a teoria como práxis política, pois reconheciam as implicações teóricas de
determinadas condições sociais das quais eles próprios não podiam escapar.
Mas foram os artistas e pensadores europeus refugiados durante a II Grande
Guerra no Black Mountain College, na Carolina do Norte, que, durante a década de
1940 e toda a década de 1950, viabilizaram a explosão artística dos anos que se seguiram. Especialmente os membros da Bauhaus e intelectuais europeus da Escola de
Frankfurt que se refugiaram nos Estados Unidos para escapar da perseguição nazista,
tal como Herbert Marcuse. Por meio desses intelectuais, a teoria crítica da escola
frankfurtiana dominou, sobremaneira, a cena artística desses anos.
Nos anos 1950, o Black Mountain College se transforma em uma verdadeira
comunidade de artistas, um refúgio para a criatividade e a investigação, de maneira disjunta da cultura dominante. A fusão das ideias dos artistas do Black Mountain
(Aronson, 2000) dá início a uma nova forma de fazer arte, absorvida e movente a
partir do famoso College of North Caroline, no centro de Nova York, dentro e fora
dos limites da Broadway. A partir de então, Nova York se transforma em palco para
uma versão americana da Escola de Frankfurt, propagada pela New School for Social
Research.
Nesse borbulhar de acontecimentos, a performance já se anunciava na música
de John Cage do Grupo Fluxus; nos happening (acontecimentos) de Allan Kaprow;
no trabalho político de Vida Theatre de Julian Beck; na contestação social do Teatro
Aberto de Joseph Chaikin; na “arte do corpo” de Carolee Schneemann e a na pop
art de Andy Warhol. Para Richard Schechner (2012), a vinda de artistas e pensadores
europeus e até mesmo ideias “estrangeiras” trazidas pelos soldados americanos que
foram para a Europa e a Ásia a serviço contribuíram para que tivessem continuidade
nos Estados Unidos não somente as vanguardas europeias como também sua transformação.
Na “babel das artes”, assim sintetizada por Renato Coehn (2002, p. 50), para
definir a performance, o que “interessa é apresentar, formalizar o ritual”. Nesse pon-
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to, a arte abarca uma forma de criar e cuidar das relações do ser humano consigo
mesmo, com o mundo, e o cotidiano ganha outros caminhos a serem percebidos e
experienciados. O que significa uma ação renovada direcionada às instituições pela
própria qualidade perceptiva de um olhar que não se contenta com a representação,
a cristalização do mundo. Ao contrário, o olhar se esbarra com o mundo instituído,
questiona as representações fixas, abre a possibilidade de outros modos de perceber
e vislumbra a recriação do mundo por processos de subjetivação, assim como propôs
o grupo Living Theatre, na década de 1960.
O Living Theatre levou o teatro para as ruas e insistiu na ideia de que para ser
político o teatro deveria agir diretamente sobre mundo². E assim o fez. Construiu textos para performance, em vez de pôr em cena textos dramáticos, ainda que também
os usasse; envolveu-se em manifestações antimilitaristas radicais nos Estados Unidos, e pelas quais seus membros foram asilados na Europa. Seus espetáculos estavam
mais próximos dos happenings, politicamente engajados.
Nessa mesma época, Richard Schechner fazia seu “teatro ambiente” à frente
do grupo performance Tulane Drama Review – TPG (1967-1979) – e divergia-se do
Living Theatre, com sua proposta contrária à produção teatral. Não lhe interessava a
encenação de uma peça ou interpretação de um texto. Muito menos conhecer as intenções do autor, ou sequer se existia um autor. Interessavam-lhe a performance e o
que foi por ele chamado de “texto performativo”, o qual contava com a participação
do público. Segundo Schechner (2012), foi em um desses textos, intitulado “Performance activities of men”, que ele usou pela primeira vez o termo performance no
sentido de desempenho, influenciado pelos estudos de Erving Goffman, publicados
pela primeira vez em 1959.
Para Erving Goffman ([1959] 2011)³, o conceito de desempenho é um meio para
se entender a agência humana, para compreender melhor a atuação social dos indivíduos na vida social e como ela é organizada. Na interpretação de Schechner (2003),
o desempenho contempla os cenários culturais não artísticos, mas expressivos do
comportamento social. Comportamento dinâmico, com uma teatralidade⁴ constantemente reencenada, para enfatizar os aspectos simbólicos e codificados da cultura.
Com esse pensamento, na década de 1980, Kenneth Burke (1989) concebeu a realidade construída com base em um sistema simbólico, o que foi posteriormente ampliado na década de 1990, pelos estudos de desempenho de Schechner (2002).
Não obstante o termo performance consolidar-se, a partir da década de 1970,
como uma expressão artística com características próprias e efetivas para a hibridação da arte (Glusberg, 1987), é também nesta década que o conceito se amplia. A partir daí, integra uma variedade de teorias nas ciências humanas e sociais, tais como a
fenomenologia, a teoria crítica da Escola de Frankfurt, semiótica, psicanálise lacania-
² Bertold Brecht já havia anunciado a importância do teatro político nas ruas,
mas ainda o entendia como representação, dramaturgia, encenação de uma
performance.
³ Originalmente publicado no Brasil em 1975, fazia parte da Coleção Antropologia, orientada por Roberto A. da Matta e Luiz Castro Faria. Foi editado em português com tradução de Maria Célia Santos Raposo, pela Editora Vozes, em 2011.
⁴ Uso o termo teatralidade no sentido oposto à operatividade cênica. Uma espécie de antiteatralidade. Se o teatro tradicional observa e reproduz, de maneira
mimética, comportamentos, expressões, ações, dos indivíduos, para dar veracidade às suas representações cênicas – e isto define sua qualidade artística –,
o conceito de teatralidade aqui contribui para o entendimento das relações nas
atuações sociais.
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na, desconstrutivismo e feminismo. À ação corporal se associa a noção de desempenho, rendimento, comportamento, que requer a presença física dos seres humanos
ou dos animais treinados ou especializados para demonstrar certas habilidades ante
um público. Segundo Marvin Carlson (2010), este ponto de vista se acerca do campo
comunicativo do desempenho de jogos de papéis – artísticos e sociais –, nos quais
os observadores são convocados a integrar e participar da atuação.
Aproximaram-se dessas mesmas inquietações pensadores como Judith Butler
(2008), com seu conceito de performatividade, Pierre Bourdieu (1996), com o conceito de habitus, Peter Burke (2008), com o conceito de ocasionalismo, e John L.
Austin (1990), com “atos da fala”. Na literatura, James Loxley (2007) pergunta se nossos enunciados refletem ou descrevem o nosso mundo, ou são eles que intervêm no
mundo. O autor examina as implicações da performatividade – enunciado que não
afirma e nem nega, mas realiza um ato quando é pronunciado em campos tais como
a teoria literária e cultural, a filosofia, os estudos de desempenho, a teoria de gênero
e a sexualidade.
Do palco à rua. Do teatro para além do teatro
Não obstante as divergências entre pensadores, artistas, e suas práticas, eles
comungam – desde as últimas vanguardas – a ideia de que as práticas cotidianas
constroem cenários culturais e são por eles construídas. De fato, intensifica-se, nas
décadas de 1970 e 1980, a mudança conceitual que se manifesta em uma metodologia orientada para a cultura percebida como um fenômeno dinâmico cujo foco recai
em temas antes negligenciados, tal como o destaque dado às tramas da vida cotidiana por Michel de Certeau (1974, 1998), mas já anunciadas anteriormente, nas práticas
artísticas do College of North Caroline, de Nova York.
Esse olhar sobre o mundo como um grande teatro que se configura a partir
de – e ao mesmo tempo cria – diversas outras encenações, segue em direção metateatral da vida cotidiana na qual a prática social se baseia na tradição, no ritual e,
consequentemente, no mito no sentido de crença. Nesse sentido, Peter Brook (1995),
do Centro Internacional de Pesquisa Teatral – Cirt –, aberto em 1970, encabeçou um
grupo de pesquisa voltado para a alteridade, a quebra da linguagem tradicional e o
entendimento da universalidade da condição humana sob a diversidade cultural. Para
ele, a cultura é ambígua, pois há de um lado uma delimitação artificial calcada em
estereótipos cristalizados e, ao mesmo tempo, uma dimensão humana que precisa
ser restaurada (Pavis, 1996, p. 72). Dessa maneira, Brook e seu grupo consideravam
mito e arquétipo como elementos transculturais, e a partir do início dos anos 1970
passaram a exercitar a metalinguagem do teatro. O teatro pelo teatro para ir além do
teatro. Uma proposta inovadora para o teatro contemporâneo, contudo, também já
antecipada no teatro de Antonin Artaud, Gertrude Stein e Bertolt Brecht, no início do
século XX. Esse pensamento e a criação de um metateatro construíram as bases para
o que viria a ser chamado, posteriormente, de antropologia da performance.
A relação tecida entre mito e cultura na pesquisa de Brook e seu grupo, para
compreender o que está por detrás da diversidade cultural, converge em direção
aos escritos antropológicos de Lucien Lévy-Bruhl (2003, 2008) e Claude Lévi-Strauss
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(1978, 2002), sobre significado e mito. Contudo, os pressupostos de Brook (1995)
contrastam com os de Lévi-Strauss, ao abordar de maneira ambivalente a relação
significante e significado dos mitos.
Efetivamente, esses estudos são oficializados academicamente com a criação
do primeiro departamento especializado em Performance Studies, na década de
1980, por Richard Schechner, professor da Universidade de Nova York. Um campo
de estudos no qual a performance engloba a experiência vivida, ou seja, os aspectos
informais da vida cotidiana e do comportamento humano, indo muito além das artes
do espetáculo ou da dicotomia arte e vida, que se mesclam em sua organização e
recepção.
Configurados como estudos acadêmicos transdisciplinares, os Estudos da Performance, na Universidade de Nova York, são desenvolvidos atualmente com base
no entrecruzamento das três matrizes. A matriz sociológica – performance da vida
quotidiana –, cuja matriz se encontra nos primeiros estudos de Goffman, enfatiza a
ligação entre a vida social e o desempenho individual. O autor enuncia os princípios
do modelo dramaturgo da vida social, em que o teatro de performances é realizado
em atos públicos e o desempenho dos papéis sociais tem a ver com o modo como
cada indivíduo concebe sua imagem e pretende mantê-la.
Goffman teve grande influência5 na vertente teatral desenvolvida pelo teatrólogo Richard Schechner quanto à apresentação do eu nas práticas cotidianas, assim
como a obra do antropólogo Victor Turner6. Turner cresceu nas coxias do teatro vendo sua mãe, atriz, encenar, o que lhe deu subsídios para desenvolver seus conceitos
e fundamentos teóricos em trabalho de campo realizado entre os povos Ndembu da
África Central. Nessa investigação percebeu uma espécie de teatralidade inerente ao
ser humano. A partir de então, os “gêneros de performances” ganham força entre as
perspectivas antropológicas, priorizando os eventos rituais e o teatro como suporte
para análise da realidade social. Turner (2008) desenvolve, então, sua abordagem antropológica das performances culturais, com ênfase no drama social; na expressão
cultural como teatro e ritual.
Se, por um lado, o teatro ganha peso como conhecimento para outras áreas,
e até mesmo nelas se dilui, por outro lado mostra uma indefinição na contemporaneidade, de um estatuto epistemológico, tal como em grande parte das áreas de
conhecimento. Nos estudos das performances culturais, as matrizes acima citadas se
entrelaçam na diversidade de temas, interesses, questões, perspectivas e objetos de
estudo voltados para as danças, festas, fazeres e práticas cotidianas, jogos, rituais, artes visuais, música, entre outros, sob a abordagem da antropologia teatral, da antropologia cultural, da sociologia, da psicanálise, da história, da história cultural, da arte.
Nesse campo fluido, são constantes os embaralhamentos dos modos espetaculares e
não espetaculares, da perda de fronteiras não somente entre os diferentes domínios
5 O próprio Schechner reconhece essa influência e a explicita em entrevista a
Ana Bigotte Vieira e Ricardo Seiça Salgado, intitulada “Campo de estudos chamado Performance Studies”. Disponível em: <http://idanca.net/uma-tarde-com-richard-schener/>. Acesso em: 4 out. 2013.
6 Eles se encontram poucas vezes, mas trocaram correspondências.
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artísticos como também nas diversas outras áreas já mencionadas acima.
Poderíamos nos perguntar se essa indefinição e até mesmo a ausência de conceitos tradicionais limitadores do campo artístico não decretam a morte do simbólico
na esfera das artes. Presumo que há um redirecionamento do olhar para a teatralização da vida cotidiana, seus rituais, seus mitos e dramas, que reafirma o pacto simbólico das artes, cujo estatuto potencial é a vida e o traço de suas realidades. Enquanto
o conceito tradicional de teatralidades contempla atuações de artistas que seguem
um script, de um texto dramático ou improvisado, em um palco com uma plateia que
os assiste, o traço aqui delineado percorre o intervalo de uma antiteatralidade, produção de subjetividades que se desdobra entre as proposições “teatro como vida” e
“vida como teatro”.
Contudo, o referencial das performances culturais ainda é o teatro. E independentemente da encenação de atores sociais, em tablados (espaços destinados tradicionalmente às teatralidades cênicas) ou arenas (cenários de lutas cotidianas da
vida ordinária), e seus diferentes tipos de desempenhos, esse campo de estudo se
entrelaça ao campo da História Cultural quando foca os sujeitos históricos dentro da
cotidianidade de seus contextos culturais. Ou, se preferirmos, no entendimento do
“mundo como teatro”, assim como o compreendeu e denominou Peter Burke (1992,
1994).
As performances culturais e o desempenho do eu
As performances culturais são reiteradas por desempenhos coletivos, de papéis
culturais construídos e prescritos por um conjunto de normas sociais cristalizadas, os
quais são reencenados em ato presente, de maneira ritualizada ou não. Entretanto,
desempenhados de acordo com um determinado jogo de interesses e poderes.
De maneira conscientemente ou não, essa encenação visa dar credibilidade à
imagem que se quer sustentar e que se acredita necessária em uma situação, um
contexto. Mas sempre perante os outros. Encenação de convenções veladas, dissimuladas de uma repetição. Uso o termo encenar como traço cênico e referindome às técnicas que sustentam o desempenho de um ator e o destacam, igualmente
como o desempenho de um indivíduo perante seu público.
Papéis e desempenhos construídos historicamente, reencenados de acordo
com uma tradição. Refiro-me, primeiramente, à construção da aparência, do latim
imago, como representação de um objeto ou de algo, de maneira especializada, ou
seja, que exige técnicas, práticas e ferramentas especiais para sua configuração. Assim sucede com o corpo aquele primeiro suporte que carrega em si nossas memórias
individuais e coletivas, culturais. Imagem corporal de como nos apresentamos para
nós, ou seja, como vemos a nós mesmos. Essa imagem é construída no meio em que
vivemos, pois os valores culturais já nos recebem quando chegamos ao mundo.
Ao transpor a superfície da aparência, percebemos que a imago é elaborada a
partir das primeiras relações da criança com os outros seres humanos, reais ou fantasiosas, no meio familiar, parental e social. Sendo assim, a imagem ou fantasia de uma
pessoa é carregada de valor afetivo. Será essa fantasia que caracterizará a persona,
máscara social, a qual será sempre deformada em relação ao real, pois é carregada
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de somatizações e afetos.
A imago permanece no inconsciente durante a fase adulta como construção de
formas de sentimentos, de comportamentos. Modelos, representações conscientes
e inconscientes que orientarão a forma como o indivíduo se identifica e introjeta as
características e qualidades do outro – ideal – com quem convive. Desse modo,
podemos afirmar que a imago é um esquema imaginário adquirido, através do qual o
sujeito percebe o outro e as próprias relações (Lacan, 1987).
Para que assim seja, é necessária a confirmação do outro sobre o papel desempenhado por essa imago no palco social. Enfim, essa confirmação perpassa, primeiramente, por toda a apreensão da dinâmica da relação familiar com seus valores,
comportamentos, expressões, jogos de poder e códigos socialmente também herdados. Ininterruptamente, ampliamos nossas performances corporais e papéis sociais,
os quais são diversificados conforme nossa inserção nos diferentes grupos institucionais como: família, escola, trabalho, religião, instituições marcadamente culturais.
Com semelhante compreensão, Erving Goffman ([1959] 2011) define esse mundo social com um palco onde os indivíduos humanos se destacam como atores que
desempenham papéis preestabelecidos, socialmente orientados de acordo com a
expectativa da plateia – os outros, os indivíduos ou grupos, seus interlocutores –, e
de acordo com seus interesses em jogo. Para o autor, qualquer ação, em qualquer
momento ou local, pode ser entendida como uma apresentação pública do eu. Esse
entendimento como apresentação pública do eu no espaço social permitiu o germinar de um pensamento em torno do desempenho humano enraizado em padrões
culturais, exercitados por meio de sinais, expressões, comportamentos e atos simbólicos, historicamente construídos, e transmitidos por meio das convenções.
Conta-nos Victor Turner (1988) que o antropólogo Milton Singer (1912-1994),
em um estudo publicado em 1955, usou o termo performances culturais para designar modos de comunicação, verbais e não verbais, entendidas como formas mais
convencionais de performance, como as peças de teatro, óperas, circo, carnaval,
desfiles, os serviços religiosos, leituras de poesia, casamentos, funerais, formaturas,
shows, brindes, brincadeiras e contação de histórias.
No entanto, as afirmações de Singer contemplaram grupos específicos da cultura indiana, nos meados do século XX. Os estudos de Goffman, apesar de serem realizados na mesma data, são mais abrangentes porque abarcam a dimensão humana
em sua ansiedade em apreender a dinâmica cultural. Estamos falando de indivíduos
como personagens que representam papéis sociais, em cenários culturais, de acordo
com o que se espera de sua recepção e de acordo com suas próprias ansiedades e
angústias em apreender a prática social. Contudo, dependente das relações coletivas, socioculturais. Nessa dinâmica, os elementos da tradição cênica – o palco, o
ator que se apresenta sob a máscara de um personagem e a plateia – se reduzem aos
papéis dos indivíduos determinados de acordo com os papéis desempenhados pelos
outros presentes, constitutivos dessa mesma plateia (Goffman, [1959] 2011). Por qual
razão e para quem um ator encenaria um ato, uma peça, se não tivesse uma plateia?
A quais expectativas procuramos atender na dinâmica cultural? Há ansiedades de
interpretação e orientação próprias da condição humana em sua dependência das
ordens simbólicas para viver, se inter-relacionar, e consumir?
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Importante lembrarmos que os sistemas simbólicos, de acordo com nossa visão
da formação humana pelo cultural, não são adicionados à existência humana, mas
são por ela e nela construídos. O que leva a indagar se, ante a perspectiva e o fato
da interação social, não haveria uma angústia em não corresponder com as regras
sociais exigidas.
Parece-me que encontramos resposta na afirmativa de Geertz (1989), quando
explica que a elaborada arquitetura cultural, os discursos e práticas conectadas, os
termos pessoais, os calendários, as regras de etiqueta, as posturas corporais, tudo
isso tanto alimenta como suaviza esse conjunto de ansiedades. E tanto representa
como move um modo de ser cultural. Essa arquitetura tem objetivos diversos, como,
por exemplo, incluir-se socialmente, manter as pessoas distantes, aproximá-las, ritualizar eventos, cerimonializar relações sociais, estabelecer regras de convivência,
induzidas, segundo Geertz, por um conjunto de ansiedades sobre a habilidade de
realizá-las plenamente.
Geralmente, o que se receia é que a performance cultural, pública, em seus
moldes de encenação sofra um colapso, e a personalidade do indivíduo dissolva sua
identidade pública padronizada, ou que o papel desempenhado seja descaracterizado publicamente, revelando sua fragilidade. De qualquer modo, a subjetividade tem
certa forma cultural. Tem, também, uma maneira de habitar tal forma, e ainda, segundo Geertz (1989), é reflexiva e ansiosa em relação às possibilidades das próprias
falhas de cada um.
Essas encenações indicam uma variedade de performances, teatralidades e antiteatralidades, culturalmente construídas, cujo valor de representação é concebido
de acordo com o jogo de forças entre as estruturas das instituições e poder. Atualmente, o poder midiático e os fluxos energéticos individuais – subjetivos, gestuais,
vocais, libidinais –, atuantes nas performances, podem gerar processos instáveis. Instáveis quando um mesmo indivíduo ou grupo realizar performances diferentes, em
sentido contrário às habitualmente encenadas e apropriadas, em seus espaços de
atuação.
Recorte epistemológico: apontamentos iniciais para a interpretação das performances culturais
Os estudos de Victor Turner (1982, p. 53-55) realizam uma aproximação entre a
vida, o teatro e vice-versa quando retoma a discussão de John Dewey sobre a forma
estética do teatro e sua inerência à própria vida sociocultural. Esta estética é uma
experiência cotidiana em que o presente é vivido como drama social que se configura como metateatro. O drama é abordado por Victor Turner (1988) como unidades
de um processo inarmônico, fendas que surgem em situações de conflito, de crise,
a saber, na dificuldade liminar7 de (re)significar o mundo. Experiência vivida não em
7 Segundo o autor, os fenômenos liminares tendem a emergir
de uma experiência coletiva, associando-se a ritmos cíclicos,
biológicos e socioestruturais, ou como crises que ocorrem nesses processos.
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uma realidade unidimensional, mas nas temporalidades dos objetos e seus efeitos em
relação com o familiar.
Para chegar a esse entendimento, o autor se apropria do conceito antropológico de liminaridade de Arnold Van Gennep ([1960] 1977) e seu modelo tripartido dos
ritos de passagem: separação, margem e incorporação. Liminaridade, do latim līmen,
é um estado subjetivo, de ordem psicológica, neurológica ou metafísica, consciente
ou inconsciente, de estar no limite entre os estados diferentes de existência. Segundo
Van Gennep e Turner, as características da liminaridade são ambíguas porque esta
condição – ou as pessoas mesmas – está entre as margens e, portanto, escapa a
classificação de uma rede que frequentemente determina a direção dos estados e as
posições no espaço cultural. Para Turner (1974, p. 117), “as entidades liminares não
se encontram aqui nem ali; se encontram no centro e entre as posições assinadas e
ordenadas pela lei, os costumes, as convenções e o cerimonial”.
Se deve a este momento da liminaridade o auge do ritual. É nesse momento que
a estrutura social mantida pelas instituições está em suspenso. Assim, em um ritual,
tempo, espaço e as pessoas nele envolvidas não são os mesmos na vida cotidiana, já
que estão sob a influência de um ambiente simbólico que os ressignifica e, por sua
vez, transforma seus atributos e status. Este é o momento do ritual liminar de Turner,
que, para chegar a este entendimento, também contou com a pesquisa do antropólogo Milton Singer, realizada no sul da Índia, em 1960, onde já via a performance como
pedra angular da sociedade. Singer (1959) argumentou que performances culturais
são compostas de um médium cultural. Um médium singular em que se combinam
a linguagem oral e os meios de comunicação não linguísticos, como música, dança,
atuação, artes gráficas e plásticas para expressar e comunicar o conteúdo da cultura.
Turner, no entanto, concentra-se nas observações de Van Gennep no tempo
liminar do ritual, ou seja, a separação temporal da pessoa a partir de seu cotidiano e
sua reintegração na sociedade posterior. Para ele, este momento revela o potencial
dos indivíduos e/ou grupos envolvidos no ritual, oferecendo possibilidades de transformação religiosa, bem como alterações nas camadas mais profundas da cultura.
Turner (1974) assinala que os indivíduos – privados de status social, diferenciação sexual, hierarquia de classes, obrigações de parentesco, vaidades e posições de
poder – no momento liminar são inclinados a um forte sentimento de grupo e são,
assim, amalgamados pelo ritual, pois há um grande sentimento de pertença a um
grupo de integração e igualdade entre as pessoas. Estes laços são as communitas,
como sugere Turner (1974, p. 119). No entanto, o autor não estabelece uma relação
de dependência entre os estados de liminaridade e communitas, apesar de suas semelhanças. Um não depende do outro para ocorrer. Desenvolvem, às vezes, o que
é chamado pelo autor de antiestrutura social, uma vez que são violadores dos momentos de ordem estabelecida e são caracterizados por seu potencial para alcançar
mudanças significativas na estrutura social.
A contribuição dada pela Turner para a vida social abarca um processo sequencial de dramas sociais cujo resultado é uma contínua tensão entre conflito e consenso. Um drama social pode criar inúmeros outros dramas específicos provocados por
essas tensões estruturais. Segundo o autor, um drama é percebido como uma ruptura
na estrutura social, uma crise que abre fendas, criando momentos liminares reinteSainy Coelho Borges Veloso
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gradores – em movimentos que podem ser da ordem do legal (e nacional), do metafísico (e simbólico) – por meio do ritual. De acordo com Turner (1974), os dramas
começam com uma ruptura social que pode ocorrer com o término de uma regra,
lei, costume ou o rótulo adotado de uma cultura. O autor mostrou que apresentações culturais emergem de dramas sociais como ações de reparo. Nesse sentido, um
exemplo seriam os dramas de movimentos sociais brasileiros feitos por rearranjo de
conflitos indígenas e até mesmo o impeachment do ex-presidente Fernando Collor
de Mello, em 1992, dos quais performances até então inesperados surgiram.
Como as instituições são a base estrutural da sociedade e os indivíduos são ordenados por elas de acordo com os padrões culturais, poder-se-ia afirmar que os
momentos de tensões estruturais gerados pela crise das instituições balançam a estrutura existente e causam perturbações no sistema social?
Parece-me que sim. Em 2013, dois outros acontecimentos abalaram o sistema
social brasileiro e foram motivos de discussões intensas no Brasil: os assassinados
de Eliza Silva Samúdio e Marcos Kitano Matsunaga8. Ambos exigiram demanda do
público em geral, reforçada pelos meios midiáticos, não somente por justiça como
também para a refleção das performances dos atores sociais envolvidos, em tempos
e lugares distintos (infância, adolescência e vida adulta). As imagens midiáticas mostravam, por exemplo, o ex-goleiro do flamengo Bruno Fernandes de Souza desempenhando diferentes papéis: de vítima, de algoz, apático, se divertindo e fazendo pose
para as câmaras fotográficas e televisivas, da imprensa midiática. Do mesmo modo,
os advogados de defesa e acusação atuaram como se estivessem em um show espetacular, trocando os papéis com as performances midiáticas, que variavam em seus
papéis de acusação ou defesa. Para a opinião pública, os assassinos eram ora vítimas
de um sistema social, ora cínicos, psicopatas. Às vezes, também, trocavam de papéis
com as vítimas assassinadas, invertendo-os. Elas eram a real ameça e tiveram o que
mereciam. Nesse sentido, as performances culturais postas em cena sob os holofotes
dos valores expositivos de nossa sociedade espetacular permitem, por meios dos Estudos das Performances Culturais, estudar nossos rituais e criticar nossos desempenhos como atores sociais e a posição que assumimos em determinados cenários, de
aceitação ou submissão (que indica associação), da necessidade de aceitação social
ou aprovação, bem como a banalização e alienação desta sociedade.
Pelo viés da visualidade9, os Estudos das Performances Culturais me permitiram,
em pesquisa na cidade de Buenos Aires, reconhecer a possibilidade do fortalecimento de laços sociais, da performance cultural porteña intitulada “Baldosas de la memoria”10. Baldosas correspondem às lajotas de cimento que cobrem muitas calçadas
brasileiras. Mas em Buenos Aires, algumas delas diferem das baldosas comuns e estão
8 Sobre a questão escrevi um artigo intitulado “O nada, o tudo: metateatro da vida
contemporânea”, publicado na revista Karpa – Teatralidades Disidentes, Artes Visuales y Cultura. Disponível em: http://web.calstatela.edu/misc/karpa/KARPA6.1/
Site%20Folder/sainy1.html. Acesso em: 20 set. 2014.
9 A visualidade é um elemento da representação que se firma no âmbito do
visível e que é relacionada com as relações social, cultural e historicamente
forjadas.
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10 A investigação sobre as baldosas foi sintetizada em artigo intitulado “Performance Cultural Argentina: la obra-en-acción de las ‘baldosas de la memoria’”,
a ser comunicado no 2º. Congreso Nacional sobre Arte Público en Argentina
– Arte Público en Argentina: Experiencias en el Espacio Urbano, entre 29 e 31
de outubro de 2014, Instituto Julio E. Payró/Universidad de Buenos Aires –UBA
–, Buenos Aires/Argentina.
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Entre tablados e arenas: performances culturais
nas calçadas de alguns dos bairros da cidade como Palermo, Almagro y Balvanera.
Elas são feitas com cimento, ferro e areia; são adornadas com vidrilhos coloridos;
têm nome, data de nascimento e morte de pessoas desaparecidas, cujos nomes são
gravados em sua superfície juntamente com as frases: “aqui viveu”, “aqui morreu”,
“aqui desapareceu”, entre outras. Elas mapeiam e são testemunhas dos passos dos
detidos, desaparecidos ou mortos pelo terrorismo de Estado antes ou durante a última ditadura cívico-militar (1975 a 1983)11, em Buenos Aires.
Este mapeamento teve início com a formação coletiva de um grupo de amigos
das pessoas desaparecidas ou mortas e de suas ações reparadoras, em alguns bairros, como, por exemplo, Almagro. O grupo fez uma lista com sessenta nomes e logo
depois chegou a duzentos, graças aos organismos de Direitos Humanos, à Secretaria
de Direitos Humanos da Nação, às mães, filhos e familiares. Atualmente, outros familiares e amigos pedem, por telefone, por meio de contato com terceiros, internet,
a colocação das “baldosas”. Inicialmente, o objetivo era sanar o drama particular vivido por eles e as famílias e, posteriormente, a demanda da população por reparar a
fenda aberta no social pela cruel ditadura argentina. Após alguns encontros criaram
o grupo “Barrios x Memoria y Justicia”, que, conjuntamente com a população local,
realizou rituais performáticos.
O ritual inicia-se mediante contato feito pelo grupo com a família e demais amigos e conhecidos da pessoa morta ou desaparecida. Posteriormente, vêm a ornamentação, a inscrição das “baldosas” e sua colocação, com a participação de um
grande número de pessoas (amigos, parentes, familiares, vizinhos, transeuntes). Nesse ritual, as pessoas relembram a vida da pessoa morta ou desaparecida e a razão de
sua morte, evitando-lhe o papel de vítima.
Nesta problemática visualizei um pacto de crença entre os participantes, pacto
próprio dos momentos de crise que, segundo Turner (1988, p. 35-40), leva a um movimento em direção a um sistema simbólico compartilhado entre os participantes, o
qual é comum entre todos, do ponto de vista cultural. Esse movimento visa deter a
crise e demandar ações reparadoras do sistema social alterado por meio de rituais,
cujas ações variam em função da profundidade da fenda, do significado social do
drama ou dos atores protagonistas. Performances públicas que se constituem como
demonstração de respeito, agregação, reconhecimento de si e do outro.
Nos dois exemplos aqui usados – os assassinados e as “baldosas” –, as performances se adéquam às chaves conceituais de Turner (1988), em sua analogia com
drama para a compreensão da vida social. A transposição efetuada por ele tem como
base o desenvolvimento de ações ou situações dentro de uma trama temporal clara,
correspondendo a quatro fases de ação pública observável: fenda, crise, ação reparadora e reintegração.
11 Acredita-se que foi a pior ditadura da América Latina, considerando os mais de
30.000 desaparecidos e mortos na Argentina.
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(In)conclusão
Impossível traçar este outro olhar discursivo sobre o cultural, embasado no teatro, sem considerarmos o transcurso histórico desse pensamento multidisciplinar e
as “condições de possibilidades”12 que o geraram. Dessa maneira, penso as performances culturais não somente na operatividade do que chamamos de teatro, como
também nas encenações e vivências de tramas construídas e desempenhadas por
atores sociais.
É indispensável refletirmos sobre essas encenações e papéis sob diferentes prismas, os quais, pela sua riqueza de possibilidades, muitas vezes nos ofuscam. Inclusive, nos posicionarmos no arcabouço conceitual e teórico da operatividade do teatro,
em sua forma estética, para nos distanciarmos da vida cotidiana sem, contudo, desconsiderar sua inerência à própria vida sociocultural. Tais posições nos possibilitam
analisar a encenação da vida pública, a qual nos fornece elementos-chaves para a
compreensão e crítica sobre o desempenho de nossos papéis.
Por procedimentos próprios dos rituais, podemos repensar a cultura, trocar de
papéis, modificar performances ou apenas nos deleitar, como o prazer de compartilhar o ritual em si. Podemos refletir sobre a arte, e os espaços que ela cria e ocupa
no mundo, sem que uma a(tu)ação inviabilize a outra. Assim, o campo que se amplia
pelos Estudos das Performances culturais não permite concluir, mas pensar em novas
investigações e descobertas.
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Recebido em: 22/05/2014
Aprovado em: 15/09/2014
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