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Performances Culturais: memória e sensibilidades

2019, Performances Culturais: memória e sensibilidades

É nossa intenção, neste livro, publicar uma obra coletiva com pesquisadores brasileiros e estrangeiros, que atuam na pesquisa das performances culturais e das sensibilidades, e também trazer as recentes elaborações dos alunos do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais da UFG, mestrado e doutorado, que cursaram a disciplina Tópicos Avançados Em Performances Culturais I - Performances Culturais: Memórias e Sensibilidades, no semestre de 2018-1. É com muita satisfação, portanto, que conseguimos este intento e o livro surge com 15 textos: 6 de professores/pesquisadores e 9 de alunos, todos com profícuas discussões teórico-práticas nesta seara. A presente obra insere-se na discussão dos conceitos transdisciplinares de memória (social e cultural) e sensibilidades, que iluminam as performances culturais nas suas inter-relações e interfaces teóricas e práticas. Performances culturais configuram-se em uma área de encontro interdisciplinar que empreende estudos comparativos dos produtos culturais das civilizações em suas múltiplas denominações, visando o estabelecimento dos processos de seus desenvolvimentos e de suas possíveis contaminações. Desta forma, também tem como finalidade o entendimento das culturas através de seus produtos 'culturais' em sua profusa diversidade, ou seja, como o ser humano as elabora, as experimenta, as percebe e se percebe, sua gênese, sua estrutura, suas contradições e seu vir-a-ser. (CAMARGO et al, 2011) As performances culturais, como definiu Milton Singer (1955), são sempre plurais, pois solicitam o estudo comparativo, seja a partir de uma perspectiva macro (os grandes elementos da cultura, as Grandes Tradições) em contraste com as micro-experiências (as variadas formas não oficializadas e diversas a que temos acesso, as Pequenas Tradições), ou vice-versa. Trata-se, portanto, de examinar tanto as formas simbólicas como aquelas concretas que perpassam as distintas manifestações humanas, revelando aquilo não evidenciado pelos números, entrevistas, dados quantitativos, mas atingidas plenamente pela experiência, pela vivência, pela relação humana, pelo simbólico, pelo afeto na obra e da obra, pelas sensibilidades, e, assim, constituindo-se pela cartografia, identificação, registro e análise de determinado fenômeno em suas diversas configurações. Tais fenômenos são interpretados em seu processo contraditório de formação, de constituição e de movimento, em diálogo com estruturas gerais das tradições e pelas transformações estabelecidas a partir de formas culturais contemporâneas. Como descreve Cassirer (1994 [1944]), o homem vive em um universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse universo. São os variados fios que entretecem a rede simbólica, o emaranhado da experiência humana. Todo progresso humano em pensamento e experiência é refinado por essa rede e a fortalece. O homem está, de certo modo, sendo entretecido por esta rede. Envolveu-se de tal modo em formas linguísticas, imagens artísticas, símbolos místicos ou ritos religiosos, que não consegue ver ou conhecer coisa alguma a não ser pela interposição desse meio artificial. A experiência das performances culturais são sua intervenção na cultura. Performances são emoções imaginárias, suas fantasias e sonhos concretizados, o homem é um ser em performance e assim vive na cultura. Assim também são suas memórias, individuais e coletivas, presentes nas práticas e nos fenômenos culturais. Estudar as performances culturais significa entender as formas de sua imersão e atuação neste universo simbólico e, muitas vezes, memorial dos seres humanos.

Performances Culturais Diretores da Série Prof. Dr. Niltonci Batista Chaves Departamento de História, UEPG Profa Dra. Valeria Floriano Machado Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação-UFPR Comitê Editorial Científico Prof. Dr. Cezar Karpinski Departamento de Ciência da Informação/UFSC Prof. Dr. Charles Monteiro Departamento de História, PUC-RS Prof. Dr. Cláudio DeNipoti Departamento de História, UEL Prof. Dr. Cláudio de Sá Machado Júnior Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação, UFPR Profa. Dra. Daniela Casoni Moscato SEED PR Prof. Dr. Erivan Cassiano Karvat Departamento de História, UEPG Prof. Dr. Fabio Nigra Departamento de História, Universidad de Buenos Aires Profa. Dra. Georgiane Garabely Heil Vazquez Departamento de História, UEPG Prof. Dr. José Damião Rodrigues Centro de História, Universidade de Lisboa Profa. Dra. Méri Frotscher Kramer Departamento de História, UNIOESTE Profa. Dra. Patrícia Camera Varella Departamentos de Artes, UEPG. Prof. Dr. Robson Laverdi Departamento de História, UEPG Profa. Dra. Rosângela Wosiack Zulian Departamento de História, UEPG Performances Culturais Memórias e Sensibilidades Volume 1 Organizadores: Nádia Maria Weber Santos Robson Corrêa de Camargo Diagramação: Marcelo A. S. Alves Capa: Carole Kümmecke - https://www.behance.net/CaroleKummecke Informações técnicas das fotografias de capa: Montagem de Cascando de Samuel Beckett pelo grupo Máskara Elenco: Bruno Pina Carlos Campos Deusimar Gonzaga Elisa Abrão Karine Ramaldes Warla Paiva Figurinos: Clécia Sant’Anna Iluminação: Allan Lourenço Cenários: Wagner Gonçalves Coreógrafos dançarinos: Elisa Abrão e Warla Paiva Desenho Gráfico: Hiro Okita Fotos: Victor Hugo Maia Produção: Ronei Vieira Direção: Robson Corrêa de Camargo O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor. ESTA OBRA FOI FINANCIADA COM RECURSOS DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERDISCIPLINAR EM PERFORMANCES CULTURAIS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS. Todos os livros publicados pela Editora Fi estão sob os direitos da Creative Commons 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR http://www.abecbrasil.org.br Série História, Cultura e Identidades – 7 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) SANTOS, Nádia Maria Weber; CAMARGO, Robson Corrêa de (Orgs.) Performances Culturais: Memórias e Sensibilidades - Volume 1 [recurso eletrônico] / Nádia Maria Weber Santos; Robson Corrêa de Camargo (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2019. 267 p. ISBN - 978-85-5696-741-1 Disponível em: http://www.editorafi.org 1. Cultura; 2. Performances; 3. Arte; 4. Estudos; 5. Teatro; I. Título CDD: 306 Índices para catálogo sistemático: 1. Cultura e instituições 306 Sumário Apresentação ..................................................................................................................... 9 Memória, Sensibilidades e Performances Culturais, Interações... Nádia Maria Weber Santos; Robson Corrêa de Camargo Parte I Refletindo sobre o campo das performances culturais e suas interfaces 1 ........................................................................................................................................ 21 Liveness in polish experimental theatre since 1918 Tomasz Wiśniewski 2 ...................................................................................................................................... 34 O museu dos vivos: performances museais e cidades, apontamentos Vânia Dolores Estevam de Oliveira; Robson Corrêa de Camargo 3 ...................................................................................................................................... 60 Memória, sensibilidades e loucura em performances da resistência na obra literária de Rodrigo de Souza Leão Nádia Maria Weber Santos 4 ...................................................................................................................................... 79 Narrativas dançadas: entre tradições populares e a cena contemporânea Renata de Lima Silva; Luciana Hartmann 5 ...................................................................................................................................... 97 Filmes, Bakhtin e as performances culturais no cinema Roberto Abdala Junior Parte II Memórias e sensibilidades no campo das performances culturais: práticas e pesquisas 6 ......................................................................................................................................117 Qual é o lugar das sensibilidades na educação? Karine Ramaldes 7 ..................................................................................................................................... 131 A formação continuada de professores em arte: as sensibilidades e o simbólico à margem Warla Giany de Paiva 8 ..................................................................................................................................... 147 O sensível e o simbólico da encenação em Edward Gordon Craig: memórias e vivências na (des)construção do seu espaço cênico Luis Guilherme Barbosa dos Santos 9 ..................................................................................................................................... 164 Os bailes de dança de salão enquanto performance: as mudanças no mundo contemporâneo e a questão do sensível Andrea Palmerston Muniz 10 .................................................................................................................................... 178 Era uma vez... A história de “Tião carga pesada” e suas possíveis correlações com conceitos sobre memória e sensibilidades Valquíria Duarte da Silva 11 ....................................................................................................................................188 Memória e performance no filme Narradores de Javé Wesley Martins da Silva 12 ................................................................................................................................... 205 Okê Arô! Mito e memórias do caçador no Ilê Fará Imorá Odé João Marcos de Souza 13 ................................................................................................................................... 222 História, memória e sensibilidades: mediações com o corpo e as performances incorporadas Rodrigo Graboski Fratti 14 ................................................................................................................................... 244 Contato improvisação, um estado de concordância Camila Vinhas Itavo Sobre os autores............................................................................................................ 264 Apresentação Memória, Sensibilidades e Performances Culturais, Interações... Nádia Maria Weber Santos 1 Robson Corrêa de Camargo 1 É nossa intenção, neste livro, publicar uma obra coletiva com pesquisadores brasileiros e estrangeiros que atuam na pesquisa das performances culturais e das sensibilidades. Além disso, trazer as recentes elaborações dos alunos do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais da UFG, mestrado e doutorado, que cursaram a disciplina Tópicos Avançados Em Performances Culturais I – Performances Culturais: Memórias e Sensibilidades, no semestre de 2018-1. É com muita satisfação, portanto, que conseguimos este intento. Assim, o livro surge com quinze textos: seis de professores/pesquisadores e nove de alunos, todos com profícuas discussões teórico-práticas nessa seara. A presente obra insere-se na discussão dos conceitos transdisciplinares de memória (social e cultural) e sensibilidades, que iluminam as performances culturais nas suas interrelações e interfaces teóricas e práticas. Performances culturais configuram-se em uma área de encontro interdisciplinar que empreende estudos comparativos dos produtos culturais das civilizações em suas múltiplas denominações, visando o estabelecimento dos processos de seu desenvolvimento e de suas possíveis 1 Professores do PPG Interdisciplinar em Performances Culturais da UFG 10 | Performances Culturais contaminações. Dessa forma, também tem como finalidade o entendimento das culturas por meio de seus produtos “culturais” em sua profusa diversidade; ou seja, como o ser humano as elabora, as experimenta, as percebe e se percebe, sua gênese, sua estrutura, suas contradições e seu vir a ser. (CAMARGO et al., 2011). As performances culturais, como definiu Milton Singer (1955), são sempre plurais, pois solicitam o estudo comparativo, seja a partir de uma perspectiva macro (os grandes elementos da cultura, as Grandes Tradições) em contraste com as microexperiências (as variadas formas não oficializadas e diversas a que temos acesso, as Pequenas Tradições), ou vice-versa. Trata-se, portanto, de examinar as formas simbólicas, materiais ou imateriais, que perpassam as distintas manifestações humanas, revelando aquilo não evidenciado pelos números, entrevistas, dados quantitativos, mas atingidas plenamente pela experiência, pela vivência, pela relação humana, pelo simbólico, pelo afeto na obra e da obra, pelas sensibilidades, e, assim, constituindo-se pela cartografia, identificação, registro e análise de determinado fenômeno em suas diversas configurações. Tais fenômenos são interpretados em seu processo contraditório de formação, de constituição e de movimento, em diálogo com estruturas gerais das tradições e pelas transformações estabelecidas a partir de formas culturais contemporâneas. Como descreve Cassirer ([1944] 1994), o homem vive em um universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse universo. São os variados fios que entretecem a rede simbólica, o emaranhado da experiência humana. Todo progresso humano em pensamento e experiência é refinado por essa rede e a fortalece. O homem está, de certo modo, sendo entretecido por essa rede. Envolveu-se de tal modo em formas linguísticas, imagens artísticas, símbolos místicos ou ritos religiosos, que não consegue ver ou conhecer coisa alguma a não ser pela interposição desse meio artificial. A experiência das performances culturais são sua intervenção na cultura. Performances são emoções imaginárias, fantasias e sonhos concretizados, o homem é um ser em performance e assim vive na Tomasz Wiśniewski | 11 cultura. Assim também são suas memórias, individuais e coletivas, presentes nas práticas e nos fenômenos culturais. Estudar as performances culturais significa entender as formas de sua imersão e atuação neste universo simbólico e, muitas vezes, memorial dos seres humanos. Como também afirma Peter Burke, o homem é um utilizador de símbolos (fazedor e desencaminhador de símbolos), negador de símbolos, deturpador de símbolos, separado de sua condição natural por instrumentos simbólicos que ele mesmo determinou, a linguagem inventa o homem (BURKE, 1966, p. 4, 16). Símbolos, como define Susanne Langer, são diferentes e, como discípula e tradutora de Cassirer, contesta a visão anterior de que qualquer coisa que não fosse expressa em palavras era sentimento, sensibilidade. Para ela, arte, ritual, mitos são partes da vida subjetiva humana, conhecimento, articulação de sentimentos (LANGER, 1996, p. 102), diferentes formas de articulação dos símbolos, não necessariamente comunicam, têm definições, pois há símbolos discursivos e símbolos presentacionais, articulações simbólicas das sensibilidades, articulações primeiras das sensibilidades. A natureza desses símbolos é ambígua, não necessariamente nomeável, não possuem definições precisas, traduções, sinônimos, correspondências, um símbolo que não se consuma e que expressa a morfologia da emoção humana só pode ser entendido em totalidade. (LANGER, 1996, p. 228-9, 240). Nessa imbricação de encontros interdisciplinares, de somatórias na investigação das performances da cultura, há também a importante contribuição do teórico da psique, Carl Gustav Jung, trazendo algo de novo, ainda na primeira metade do século XX, para nossos estudos, qual seja, a noção de simbólico ligada à de memória coletiva inconsciente da humanidade, isto é, as manifestações arquetípicas e seus aspectos mitológicos. Para o autor, o inconsciente coletivo é o psíquico objetivo e O inconsciente coletivo – até onde nos é possível julgar – parece ser constituído de algo semelhante a temas ou imagens de natureza mitológica, e, por esta razão, os mitos dos povos são os verdadeiros expoentes do inconsciente 12 | Performances Culturais coletivo [...] e, assim, toda a mitologia seria uma espécie de projeção do inconsciente coletivo. (JUNG, 1984, p. 84). Jung, ao lançar mão do conceito de arquétipo como “as dominantes inconscientes da psique humana coletiva”, que se atualizam no tempo mediante a consciência criadora e a experiência de todo e qualquer ser humano, coloca a cultura na base do psiquismo e como seu elemento intrínseco. Psique também é cultura. E, assim, põe-se em acordo com Cassirer, quando este postula o ser humano como um animal simbólico, homus symbolicum (CASSIRER, 1974, p. 25-26), pois é esta capacidade de criar símbolos que o diferencia de outros animais. Por símbolo, Jung (1984) entende a expressão de uma essência inatingível; é uma expressão indeterminada, ambígua, que indica alguma coisa dificilmente definível, não reconhecida completamente. Um símbolo é a melhor forma de exprimir um estado de coisas que não pode ser expresso por outra coisa melhor do que por uma analogia. Ele representa sempre uma realidade complexa que ultrapassa nossas categorias de linguagem e que não pode ser expressa de maneira unívoca. O símbolo age como um transformador de energia e como unificador de opostos, sendo o processo simbólico uma experiência em imagens e de imagens. (SANTOS, 2007). Por sua vez, o estudo das sensibilidades implica na percepção e na tradução sensível da experiência humana no mundo, pelas práticas sociais e culturais, discursos, imagens e materialidades, tais como espaços e objetos construídos. Essa perspectiva traz à tona, segundo Pesavento (2005, 2007), também a questão do indivíduo, das subjetividades e das histórias de vida, que se tornam importantes nas narrativas das performances, muitas vezes, reconfigurando temporalidades e identidades e novas formas de linguagem. Nessa perspectiva, os estudos das sensibilidades nas performances tocam o “não racional” de forma direta, estruturam-se de forma presentacional, como uma maneira de ser e de estar no mundo, por meio de processos subjetivos particulares que brotam do íntimo dos indivíduos, e que podem ser, também, compartilhados, uma vez que são sempre sociais quando pertencentes a um dado tempo histórico. Tomasz Wiśniewski | 13 Dessa forma, o que intentamos com a organização deste livro é o entendimento de que, embora tenhamos diversidades nas distintas realidades espaciais e temporais, bem como sejamos perpassados por práticas, tensões e até mesmo conflitos, as performances culturais são produtos que entrecruzam práticas sensíveis, imaginários, memórias, subjetividades, sociabilidades e trajetórias individuais e de grupos que atravessam o tempo em suas distintas formas de aproximação à realidade. A sensibilidade entretecendo sua rede de significados, como emoções imaginárias, fantasias e sonhos que delineiam o Homem como um ser em performance, suas memórias, individuais e coletivas, presentes nas práticas e nos fenômenos culturais. Para isso, intentar estudar as formas de sua imersão e atuação nesse universo simbólico e, muitas vezes, memorial dos seres humanos. O livro é, assim, composto de duas partes: uma com pesquisadores convidados (nacionais e internacionais); e, a outra, com as reflexões dos alunos que cursaram a referida disciplina. O artigo “Liveness in Polish Experimental Theatre since 1918”, de Tomasz Wiśniewski, professor na Universidade de Gdansk, Polônia, abre a primeira parte deste livro. Ele traz um estudo sobre o teatro experimental polonês, desde 1918, na contemporaneidade, tendo por base teórica a História das Sensibilidades. Segundo Wiśniewski, no debate acadêmico atual, têm-se explorado a performance e o potencial da mediatização multimídia. No artigo “O museu dos vivos: performances museais e cidades, apontamentos”, Vânia Dolores Estevam de Oliveira e Robson Corrêa de Camargo relacionam a museologia ao projeto de cidade e a sua patrimonialização, tendo como base o texto relato da Mesa Redonda de Santiago do Chile, em 1972. Para eles, os espaços urbanos são naturalmente performáticos e expositivos, por isso as ações museológicas podem ser vistas como performances culturais. Em “Memória, sensibilidades e loucura em performances da resistência na obra literária de Rodrigo de Souza Leão”, de Nádia Maria Weber Santos, é realizada uma análise de excertos da obra digital de Souza Leão, 14 | Performances Culturais escritor esquizofrênico falecido em 2009. Para a análise, parte da compreensão de que sua obra é produto criativo de uma psique sensível e um fator de resistência, performatizado, ao sofrimento psíquico pessoal. O artigo “Narrativas dançadas: entre tradições populares e a cena contemporânea”, de Luciana Hartmann e Renata de Lima e Silva, é fruto do debate ocorrido no Festival de Narratividades: Encontro e Conto, realizado em Goiânia, em 2018. De caráter interdisciplinar, visto que os debatedores são oriundos da Antropologia, Dramaturgia e da Dança, o tema é a confluência, embora não evidente, entre “Teatro Narrativo e a Narrativa na Dança”. Em “Filmes, Bakhtin e as performances culturais no cinema”, Roberto Abdala Junior propõe, ao tomar a exibição de um filme como objeto de análise, levar em conta além da linguagem as relações socioculturais e históricas. Para tanto, ele argumenta sobre a necessidade de recorrer a ferramentas teóricas de outras áreas como uma alternativa teórico-metodológica. Na segunda parte, em que constam os textos dos pós-graduandos do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais da UFG, o artigo “Qual é o lugar das sensibilidades na educação?”, de Karine Ramaldes, trata sobre a relação entre sensibilidades e memória no processo da aprendizagem a partir da experiência significativa, na perspectiva deweyana. Em “A formação continuada de professores em Arte: sensibilidades e o simbólico à margem”, Warla Giany de Paiva apresenta a análise de duas performances-instalação realizadas no Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte, unidade escolar voltada à formação continuada de professores e ao acompanhamento dos projetos de arte. No artigo “O sensível e o simbólico da encenação em Edward Gordon Craig: memórias e vivências na (des)construção do seu espaço cênico”, Luis Guilherme Barbosa dos Santos apresenta o artista e cenógrafo teatral Edward Gordon Craig. Além disso, faz uma reflexão sobre como Craig lida Tomasz Wiśniewski | 15 com o espaço, ressignificando-o, de modo a inovar a percepção da cena e do espaço dramático. Em “Os bailes de dança de salão enquanto performance: as mudanças no mundo contemporâneo e a questão do sensível”, Andrea Palmerston Muniz propõe, de modo abrangente, uma reflexão sobre a historicidade dos bailes e das danças de salão na perspectiva da História Cultural. De modo mais específico, ela se refere às sensibilidades e às memórias que os bailes proporcionam à história de Goiânia. No artigo “Era uma vez... A História de ‘Tião carga pesada’ e suas possíveis correlações com conceitos sobre memórias e sensibilidades”, Valquíria Duarte da Silva traz uma análise sobre a história literária infantil “Tião Carga Pesada”, de Telma Guimarães Castro Andrade (1995), propondo, por meio dela, explanar sobre alguns conceitos sobre memória e sensibilidades. Em “Memória e performance no filme Narradores de Javé”, Wesley Martins da Silva traz uma análise reflexiva sobre o filme Narradores de Javé sob diferentes aspectos, bem como na construção da memória em conjunto com as performances culturais. No artigo “Okê Arô! Mito e memórias d´O Caçador no Ilê Axé Fará Imorá Odé”, João Marcos de Souza, a partir de sua pesquisa de mestrado, traz um recorte sobre a figura do orixá Oxóssi e seu arquétipo. Mediante a descoberta de utensílios e adornos do terreiro, com a figura do orixá, ele pode investigar o arquétipo do caçador, bem como indícios das memórias e da história do Ilê (terreiro ou comunidade). Em “História, memória e sensibilidades: mediações com o corpo e as performances” incorporadas”, Rodrigo Graboski Fratti tem por objetivo instigar uma reflexão sobre as mediações entre história, memória e sensibilidades e as possíveis interfaces com o corpo como vetor para o entendimento da realidade. Para tanto, ele propõe uma investida interdisciplinar, trazendo como contribuições teórico-metodológicas os estudos da história cultural e da memória social. 16 | Performances Culturais O último artigo, “Contato Improvisação, um estado de concordância”, de Camila Vinhas Itavo, apresenta Steve Paxton, bailarino, ginasta, performer, que cria a Novadança, a qual é originada por contato improvisação, a partir de alguns princípios do Aikido. Essa nova forma de dança, a ampliação da percepção e a atuação do corpo no espaço em relação ao chão criam uma perspectiva englobadora do outro como continuidade dos espaços. Os artigos aqui apresentados trazem como fio condutor a reflexão sobre a memória, as sensibilidades e as performances culturais em diferentes áreas: dramaturgia, história, literatura, o que amplia as possibilidades de análise. Além disso, nos textos, seus autores revelam o que não é quantificado, mas o atingido pela experiência. Referências BURKE, K. Language as Symbolic Action. Berkeley & Los Angeles: University of California Press, 1966. CAMARGO, R.; CAPEL, H.; RENATO, E. Performances Culturais. São Paulo: Ed. Hucitec, 2011. CAMARGO, R. Milton Singer e as Performances Culturais: um conceito interdisciplinar e uma metodologia de análise. Revista Karpa. California State University: 2013: 1-27. https://www.academia.edu/6332594/Revista_Karpa_2013_Milton_Singer_and_ Cultural_Performances_an_interdisciplinary_concept_and_a_methodological_approach._Milton_Singer_e_as_Performances_Culturais_Um_conceito_interdisciplin ar_e_uma_metodologia_de_análise CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem, Introdução a uma Filosofia da Cultura Humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994 [1944]. CASSIRER, Ernst. An Essay on Man: an introductioin to a Philoaophy of Human Culture. New Haven: Yale University Press Martins Fontes, 1974 [1944]. JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Tradução de Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha, OSB. Petrópolis: Vozes, 1984, volume VIII/2 das Obras Completas. Tomasz Wiśniewski | 17 LANGER, S. Philosophy in a New Key. Nova Iorque, Harvard University Press: 1996. PESAVENTO, Sandra. História e História Cultural. BH: Autêntica: 2007. PESAVENTO, Sandra. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Colloques, mis en ligne le 4 février 2005, consulté le 12 mars 2017. http://nuevomundo.revues.org/229 . DOI : 10.4000/nuevomundo.229. SANTOS, Nádia M. W. Arte, loucura e instinto criativo: incursões na psicologia analítica. In: LURDI BLAUTH; RAQUEL WOZIACK. (Org.). Arte e Psicologia: intervenções possíveis. 1. ed. Novo Hamburgo: Editora da Feevale, 2007. SINGER, Milton Borah. The Cultural Pattern of Indian Civilization: a Preliminary Report of a Methodological Field Study Far Eastern Quaterly XV, 15.1 (Nov., 1955): 23-36. Parte I Refletindo sobre o campo das performances culturais e suas interfaces 1 Liveness in polish experimental theatre since 1918 1 Tomasz Wiśniewski 2 1. When discussing Lucien Febvre’s understanding of “the history of sensibilities,” Daniel Wickberg observes that “If the cultural history of representation focuses on the primacy of the objects being represented – for example, the body as a site of cultural meaning, or the study of blackface minstrelsy as racial representation – the history of sensibilities focuses on the primacy of the various modes of perception and feeling, the terms and forms in which objects were conceived, experienced, and represented” (662). When approached in this way, the history of sensibilities turns out particularly appropriate in theatre studies, where “conceiving,” “experiencing” and “representing” “objects” is crucial for any successful semiosis. Unlike in many other modes of communication, performative arts such as theatre rely on “conceiving,” “experiencing” and “representing” meanings within a strictly defined spatio-temporal framework, i.e. a performance. In recent theatre studies, the dialectics of two types of conceiving/ experiencing/ representing meanings – i.e. the exploration of performative liveness on the one hand and on the other the employment of the 1 The original version of this paper was delivered as the keynote address that opened the conference “100 Years of Identity: Theatre and Culture in Europe after 1918” organised by the International Association of Theatre Critics (AICT), on 12th September 2018. The conference was part of The Festival of The Centennial Nations’ Capitals held between 10-17 September 2018 in Bucharest, Romania. 2 University of Gdańsk, Poland 22 | Performances Culturais increasing potential of multimedia mediatisation – has developed into one of the main facets of academic debate (e.g.: Auslander, Pavis, Limon). Interestingly, in theatre practice the dialectics has increased attractiveness of semiotic acts rooted in performative liveness. In this way, an artistic utilisation of the most traditional, at times rudimental archetypal ways in which meanings are “sensed” and “felt” fosters most innovative performative experiments that cultivate what Huizinga defines as “the modes of perception and feelings” (Wickberg 664). Polish experimental theatre since 1918 is treated in this article as a case in point that should enable us to illustrate “the forms in which that content is perceived, given, and expressed”. The argument makes extensive use of the fact that the notion of liveness – just as any other factor in the history of sensibilities – has been determined historically and geographically. What is, nonetheless, rudimental, the theatre companies in question aspire to go “beyond the level of external circumstances that vary from society to society and through time; the internal states and structure of feeling and consciousness […].” In a sense, the companies in question seem to provide a radical counterstatement to the assumption that is explicitly expressed Wickerberg: “What separates people in the past from our contemporaries in the present is not so much the things they were concerned with, but the alien ways in which they sensed and felt those things. Sensation of all things was more immediate” (664). Confrontation of the twentieth century global audiences with the immediate one time experience of performative liveness is at the core of the companies such as Song of the Goat, Gardzienice, Teatr Wierszalin and Teatr ZAR. 2. On 6 August 2014, Teatr Pieśń Kozła, which is internationally known as Song of the Goat Theatre, premiered Return to the Voice at the Edinburgh Fringe Festival. It was a very special moment for the company. The performance culminated nearly a two year research in ancient traditions Tomasz Wiśniewski | 23 of Gaelic and Scottish music and it was commissioned by Eleven and Summerhall performative arts programme after incredible success of the Song of the Goat Theatre previous performance, Shakespeare-inspired Songs of Lear, at Edinburgh Fringe in 2012. Reactions to Songs of Lear were memorable. Whereas Marc Trueman wrote of “a full-body detox; catharsis pure and simple and transcendent”, The Sunday Herald critic called it “A work of profound, soul-shuddering beauty” and Claire Simpson concluded her assessment for the Fringe Review in a rather explicit way: “This is a very special piece of theatre that carried me away emotionally with the beauty of its sound. I can’t really do it justice – just go see it, hear it, feel it.” Simpson lays emphasis on what I perceive the essence of the aesthetics of Song of the Goat Theatre. It is crucial that the aesthetic features in question coincide with those that have characterised Polish experimental theatre for at least one hundred years: first, it has striven for what is beyond the verbal; second, its main ambition has been to create a kind of emotional communication that eludes precise description and, third, it has been rooted in a profound live contact between those involved in performance – actors/singers/performers and an audience. The website created for Return to the Voice confirms that the sense of personal involvement was crucial also in this case: “The Performance tells many stories, not a literal singular one. This is an invitation – we go back in time into many different places, into many different people, and you experience very unusual journey with us. Maybe it will be going to ‘Heart of darkness’ or maybe you will see a ‘Wasteland’. It all depends on your imagination.” I find it symptomatic that on the one hand the topos of a journey and that of an encounter are used to describe the performance and, on the other, the masterpieces of modernistic literature – “Heart of darkness” (1899) and “Wasteland” (1922) – are used as points of intellectual reference. The temporal framework which is established in this way is quite important for the overall argument. Even the title of the piece – 24 | Performances Culturais Return to the Voice – suggests that when discussing contemporary performance, one should take into consideration its enormous diachronic potential of the practices involved in the creative process. 3. In his The Myth of Eternal Return Mircea Eliade claims that “The very ancient conception of the temple as the imago mundi, the idea that the sanctuary reproduces the universe in its essence, passed into the religious architecture of Christian Europe: the basilica of the first centuries of our era, like the medieval cathedral, symbolically reproduces the Celestial Jerusalem.” Echoes of archetypal binaries between the sacred and the profane, between the centre and the peripheries were very clear in the case of Return to the Voice, as they have been, generally, in the history of Polish experimental theatre since 1918. Grzegorz Bral, the director and co-founder of Song of the Goat Theatre, has stressed a number of times that by inviting Polish theatre makers to explore disappearing Gaelic and Scottish folk music traditions, at the time of approaching independence referendum – which was due on 14 September 2014 – was a very generous gesture offered by Scottish producers. I reckon that the decision not only expressed appreciation of unquestionable artistic mastery of the company but was also based on recognising strong affinities in romantic attitudes to notions such as national identity, genuine wilderness, authenticity preserved in the margins of culture, as well as the role of theatre in creating ever evolving sense of belonging. In the case of Return to the Voice, artistic and national connotations were interwoven with the religious symbolism described by Eliade. Not only was the initial run of the performance held at the most important theatre festival in the English speaking world, but it was also placed in an extraordinary venue, the sacred space of the medieval St Giles Cathedral, which is referred to as the High Kirk of Edinburgh, or the Mother Church Tomasz Wiśniewski | 25 of Presbyterianism. In other words, the fourteen Gaelic songs that the Polish company selected during its expeditions to the Isle of Skye, Lewis and Harris as well as in the archives of the School of Scottish Studies at the University of Edinburgh, were transposed trough the specific artistic experience of the company members so as to re-establish the value of a live voice. Though, as Grzegorz Bral admits, they felt at times as “cultural invaders,” Song of the Goat Theatre succeeded in creating a genuinely intercultural performance, as Yuri Lotman would call it “a cultural explosion,” that revalidated previously marginalised spheres of the Scottish culture. It is vital that the explosion was well marked within the symbolism of artistic (Edinburgh Fringe), religious (St Giles Cathedral) and political (the Independence Referendum) provenance. It was John Purser – considered by Bral “a guru of Scottish ethnomusicologists” – who introduced the Polish ensemble to the song traditions cultivated on the Isle of Skye. The ground of his appreciation of the final outcome of the company’s work – the performance devised by twelve singers from various parts of Europe, six white dressed women and six black dressed men – might be perhaps best understood when we examine his understanding of the role of voice in the cultural diachrony. The audio visual documentation from the expedition to the Isle of Skye in September 2013, record John Purser saying that: “One of the great things of music history is that you take alive human breath, the sounds that people heard a long time ago. It’s quite different from looking at a painting. It’s quite different from reading a book. In order to sing it, in order to play it […] you use the whole body in one way or another and that brings back human life. And you know that whoever did that five hundred years ago, a thousand years ago, or three thousand years ago, had to have done the same things, had to have breathed in this way, make their lives work in this way, make their arms or fingers move this way. And you are doing the same. [This is] the essence of Scotland.” So as to summarise the issues I have mentioned so far – first of all, the sense of liveness that is rooted in performative encounter of individual 26 | Performances Culturais human beings and of ancient/contemporary Scottish and Polish cultural traditions, second, contemporary exploration of the romantic myth of authentic wilderness, and finally musical projection of synchrony into diachrony – let me refer you to a short documentary film called simply “Return to the Voice” which is available online.3 4. It is intriguing that even though most of the songs were performed in Gaelic, none of the singers new or understand the language. As Anna Maria Jopek, a famous Polish jazz singer, who was a member of the ensemble in the original cast of Return to the Voice, admitted such a radical subordination of the verbal semantics to the sonic pure aesthetics raised anxiety while singing – after all, Gaelic speaking members of the audience would immediately recognise linguistic incompetence of performers and other shortcomings of this kind. Understandable as such artistic selfawareness is, it brings us back to the discussion that dominated in Polish theatre immediately after gaining independence in 1918. In a frequently quoted letter to modernist writer Władysław Orkan dated 1 October 1919, Juliusz Osterwa – the key figure in Reduta, a leading experimental company in the newly independent Poland – explains that even though his ensemble functions as a regular theatre for the external world, its internal training is modelled on the concept of a studio. Famous for developing high standard of work, Reduta aimed at “implementing a studio principle of confronting life with witnesses rather than acting for an audience”. Osterwa declares that Orkan’s play Pomsta (The Revenge) will “be treated by actors as an event, and not a spectacle”. For anyone familiar with the evolution of performative concepts developed by Jerzy Grotowski from the 1960s onwards, this declaration must seem familiar. True, the ethos of creative work established by Reduta in Warsaw and Vilnius between 1919 and 1939 has been perceived by Grotowski and many 3 https://www.youtube.com/watch?v=64Aw4RKYHlc (access on 27 March 2019). Tomasz Wiśniewski | 27 other experimental theatre-makers in Poland as a model to be pursued. In one of his books on Grotowski, Zbigniew Osiński – a famous theatre scholar – states: “Reduta was supposed to be not only, and not least a theatre, but a home for actors and technicians, a home for their creative work.” (1998: 18) At its time critics frequently treated Reduta as decorative, if unimportant, margins of serious institutional theatre life. But Reduta’s concepts of developing new standards of day-by-day actor training, insistence on establishing new relations between the stage and the audience in the event of their encounter, result in conceptualising at this early stage of Polish independent theatre the notion of “a live event” that is to happen in theatre. Notwithstanding much later assumptions coined by Philip Auslander, Osterwa is writing as early as in 1919 about a live event that is to be witnessed in theatre. At present there is a consensus that Reduta should be treated as a founding myth for what is internationally recognised as “the Polish experimental theatre”. The company was officially established in Warsaw on 19 November 1919 by a Slovak born Juliusz Osterwa and Mieczysław Limanowski (the latter’s background in geological scholarship is something worth mentioning, especially in the context of imagery dominating in performances such as Return to the Voice). Putting aside some other important achievements of Reduta, I would like to stress the following: its social engagement, numerous tours through the cultural frontiers of Poland of the time (the so-called “Kresy,” which are now part of Belarus and Ukraine) and the idea of developing a monumental and holy theatre that would transpose Romantic imagery of Adam Mickiewicz, and Juliusz Słowacki into the essentially Polish vision of – as was then postulated – autonomous artistic discipline where the director and actors should take the decisive role. To paraphrase Leon Schiller – another major theatre figure that collaborated with Reduta – after the monuments of the twelfth and thirteenth century folk-religious drama, after achievements of romanticism that 28 | Performances Culturais were followed by plays of Stanisław Wyspiański “we can begin to build the theatre non-existent in the wide-world, a Polish monumental holy theatre.” We observe here a very prominent declaration. Schiller concisely expresses in this passage from a 1919 essay titled “The Director’s Education” a general aspiration of theatre makers that emerged after the end of the Great War in Poland, which was finally independent Poland. Social and political situation determined their insistence on creating a new kind of theatre, strongly marked by national aspirations. Schiller, Osterwa, Limanowski and others insisted on developing a new language for actors and directors that would be strongly rooted in Polish tradition and simultaneously would lead to an artistic vision equal to recent innovations in the wild world. They were aware of experiments carried out by Edward Gordon Craig, Konstantin Stanislavski, Vsevolod Meyerhold and Max Reinhardt but insisted Polish theatre deserves to assume an independent direction. It was not accidental that within the initial five years of their development, Reduta produced plays originally written in no other language than Polish. I repeat: there was a strong and fully understandable desire to establish a new theatre langue, when Poland gained independence after 123 years of a foreign rule. It is not surprising that when appreciating the role of romantic heritage in constructing Polish identity – and dramas by Mickiewicz and Słowacki played a very prominent social role in this – and being fully aware of recent innovations in European theatre, the young generation of theatre-makers looked forward to prospects offered to them by the future. 1919 and the early 1920s was the time of numerous artistic programs and manifestos that searched to blueprint the meaning of the “new” in theatre so as to establish foundations for – let me repeat the words of Leon Schiller – “the Polish monumental holy theatre, non-existent in the wide world.” It was, I assume, a rather ambitious task. Tomasz Wiśniewski | 29 5. When reading artistic programs and manifestos published in these early years of independence, I was struck by how relevant some of them seem in the context of the twenty first century experimental theatre in Poland. Grounded on international recognition achieved between the 1960s and the 1980s by Jerzy Grotowski, Tadeusz Kantor, and Teatr Ósmego Dnia, it has been cultivated by companies such as Gardzienice, Song of the Goat Theatre, Teatr Zar and Teatr Wierszalin – to mention just some of the names and companies. Before I discuss two such manifestos published in the early 1920s – “The Actor of the Future” by Stanisława Wysocka and “An Introduction to the theory of Pure Form in Theatre” by Witkacy – I would like to mention one more production by Song of the Goat Theatre. In 2016 the company collaborated with a Dutch based modern dance theatre INNE, run by a Spanish born Ivan Perez, when devising a new performance inspired by Shakespeare’s The Tempest, which was finally named Island. Formally minimalistic as it is, Island explores the potential of an intercultural stage event. When interweaving numerous performative codes – be they of sonic, visual or kinetic provenance, the multinational ensemble exercises possibilities of cultivating performative liveness, which would strengthen a sense of profound togetherness of those gathered within the theatre space, singers, dances and the audience. The trailer of Island may give us some sense of visual and sonic intensity of the performance, though, of course the stage/audience remains beyond its scope.4 Most performances that I’ve seen – and I watched Island six times – culminated in prolonged and profound silence, which at times maintained even after deep breathing of physically exhausted dancers ceased to be heard. The audience was taken out of an intriguing state of artistic participation, when the playing area was finally lit by technicians. This repeated reaction seems to prove that the company managed to succeed in a task 4 https://www.youtube.com/watch?v=bPIdidohw2o (access 27 March 2019). 30 | Performances Culturais imposed by Grzegorz Bral during rehearsals, when he wanted them to achieve “meditative quality without getting involved in meditation” or insisted they should not look at one another but “use look for sending [others] energy.” (Wiśniewski, rehearsal notes, 9 February 2017) In 1923, when she published “The Actor of the Future”, Stanisława Wysocka, aged 54, was a widely recognisable actress, director and teacher, with an episode of founding a theatre studio in Kiev. In her short manifesto she depicts a vision that may seem familiar in the context of what I am trying to illustrate with the example of Island: “The theatre of the future will be full of harmony and rhythm, in a similar way as music and dance. […] One of the most important tasks for the theatre of the future is to make a spectator participate in what is happening on stage. The spectator takes the feeling and vision from the eyes of an actor. It is the actor who enchants the spectator with his eyes. These are the eyes that establish a contact between an actor and a spectator. It is related with our nature. The man who lives through imagination, the man who either tells a story of the past or pursues visions of the future – sends his eyes into the world of his soul, as if they were directed internally.” Notwithstanding the temporal distance, the theatre vision proposed by Stanisława Wysocka and that of Grzegorz Bral share fascination with “performative liveness” that enlivens relations between all involved in a theatrical event. Even if their understanding of words such as “vision” and “soul” would substantially differ, their primary concern is with invigorating “internal imagination.” In a similar mode, I think, we may read the question addressed by Witkacy (1885-1939), one of the main figures in Polish art before the second world, who was a major influence for Tadeusz Kantor (1915-1990), living when Zbigniew Ziembiński (1908-1978) was setting his career in Poland. In his main theoretical text “Introduction to the Theory of Pure Form in Theatre” (published in 1922), Witkacy considers whether “it is possible to create, even for a short time, the form of theatre in which the Tomasz Wiśniewski | 31 contemporary man could, notwithstanding extinguished myths and beliefs, experience metaphysical feelings in ways that the man of the past experienced them through these myths and beliefs.” Far from acknowledging orthodox Christian mysticism in Island, I think the production responds to the human desire of “metaphysical” – or perhaps transcendental – by contemporary audience that was suggested by Witkacy already in 1922. Grzegorz Bral stresses that from the very beginning Song of the Goat Theatre explores the consequences of the belief that “traditional cultures are the essence of human experience”. After all, the name of the company epitomises the ancient roots of tragedy. It is also worth stressing that Bral sometimes refers to his ensemble as to the formal theatre, which implicitly alludes to theoretical assumptions of Witkacy. Finally, the prolonged silence that maintains after performance of Island is burdened with particular meaning when we take into consideration another passage from Witkacy’s “Introduction…”: “When leaving the theatre, a man should feel he was awaken from a weird dream, in which even most mundane events had a weird and unfathomable charm, which is typical of dreams that cannot be compared with anything else.” It is worth recalling the previously quoted words of Claire Simpson I reviewing the “Gaelic sound bath” of Return to the Voice: “I can’t really do it justice – just go see it, hear it, feel it.” 6. Obviously, the history of Polish experimental theatre since 1918 has been neither a coherent evolution nor a one-dimensional evolution. I am fully aware, the argument I have been trying to make would have quite different implications were it illustrated with examples of the work of Agata Duda-Gracz, Maja Kleczewska, Krzysztof Warlikowski, Krystian Lupa, Jarosław Fret and others. As Yuri Lotman observes your decision to 32 | Performances Culturais discuss one thing is equivalent with the decision to exclude from your view everything that is beyond your interest at a given point. My discussion of the notion of performative liveness in Polish experimental theatre in the context of the “history of sensibility” would be incomplete, however, without one more comment. The individualistic field of Polish experimental theatre is the domain of enormous personal tensions, unexpected breakups, and more or less explicit hostility. Whereas the notorious misunderstanding between Juliusz Osterwa and Leon Schiller led to the departure of the latter from Reduta in 1924, Tadeusz Kantor’s accusations of stealing his term “the theatre of the poor” by Jerzy Grotowski epitomised anecdotal rivalry between these two unquestionable masters of Polish experimental theatre of the 20th century. Tensions between Grotowski and Włodzimierz Staniewski – as it seemed at the time his successor – culminated in Venice in 1975, which led to their split, and establishing Gardzienice by the latter. Then, in 1992, internal tensions in Gardzinice escalated in Anna Zubrzycki – the leading performer – leaving the company together with Grzegorz Bral. In their turn, Zubrzycki and Bral founded Song of the Goat Theatre in 1994 and their most successful cooperation lasted till 2004, when Zubrzycki left company (she performed in Songs of Lear but was no longer involved in Return to the Voice). Similarly, the history of Teatr Wierszalin is equally strongly divided into the phase of collaboration of Piotr Tomaszuk and Tadeusz Słobodzianek and the time that the latter quitted the company. These tensions are of legendary character and speak volumes about unpredictability of the directions the history of sensibility may take. All these examples prove necessity of bearing in mind extremely individualistic nature of has been labelled “Polish experimental theatre” – and the prominence of all “artistic eruptions” that occurred in the course of time. My argument has been based on the assumption that the paradigm that I have attempted to depict is equally useful – or disturbing – for discussion as the study of particular cases would is. Tomasz Wiśniewski | 33 Let me then finish with the production, which well fits in this discussion. In September 2017 Włodzimierz Staniewski’s Gardzienice celebrated the 40th anniversary of their creative work. Staniewski decided to celebrate this occasion with the production of Stanisław Wyspisanski’s Wesele (The Wedding) which since its original production in 1901 has gained the reputation of the masterpiece of Polish drama. It is noteworthy perhaps that Wyspiański’s plays were a stable point of reference for Juliusz Osterwa and Jerzy Grotowski. What is crucial, Staniewski’s Wesele is endowed with a very interesting diachronic potential on the one hand, and on the other it explores physicality of the Gardzienice ensemble. All this leads to a very interesting eruption of performative liveness that interweaves the visual, the sonic and the verbal tissues on the stage. In the introductory passage, one observes a very particular moment when performers drop masks and confront the world of experimental stage with that of wedding guests, i.e. an audience. This image establishes a very powerful metaphor for “conceiving,” “experiencing,” and “referring” to “things” and “meanings” by the means of performative liveness that has been cultivated by Polish experimental theatre of at least the last hundred years. 2 O museu dos vivos: performances museais e cidades, apontamentos Vânia Dolores Estevam de Oliveira Robson Corrêa de Camargo Museu é um nome importante que não pode parecer indiferente para aqueles que se consideram, como nós, trabalhadores permanentes da cultura. Na antiguidade, entre os gregos, esse recinto foi um templo dos deuses. Naquela época distante, porém, os deuses interferiam nas querelas e negócios dos homens. Essas divergências entre divindades e homens eram bastante domésticas e urbanas. Por conta dessas guerrilhas intermináveis, os deuses abandonaram o jogo e os homens, frágeis como sempre diante do encanto das musas, deixaram que elas fossem as únicas moradoras desses recintos de sabedoria. Felizmente, parece que o nível cultural dessas divindades era bem acima da média. Para elas, o trabalho pelo fortalecimento das ciências, das artes e das letras era uma preocupação fundamental. [...] Ainda não é chegada a hora, no entanto, de expulsar essas divindades de sua antiga casa e não haveria razão para fazê-lo, já que são tão belas e sábias. Nossa preocupação atual, porém, é fazer com que o povo tumultuado conviva com elas. A entidade povo, como conglomerado, sempre foi excluída desses espaços fundamentais para o estudo e a compreensão do passado do homem e do seu ambiente. IBERMUSEUS, mesa redonda, 2012, p. 112 Introdução Estas reflexões nasceram da atuação docente da coautora deste artigo no ensino da Museologia desde 2011, que, acrescidas das experiências no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais Vânia Dolores Estevam de Oliveira; Robson Corrêa de Camargo | 35 na Universidade Federal de Goiás – ministrando a disciplina Performances Urbanas – conduziram a novos e instigantes questionamentos sobre a prática das atividades museológicas em suas relações de aproximação ou distanciamento do meio urbano em que se inserem. Uma apresentação de comunicação no Encontro Nacional da ANPAP em 2013, Ecossistemas Estéticos, no GT, coordenado pelo Prof. Dr. Robson Camargo e pela Profa. Dra. Maria Beatriz de Medeiros, originou a presente parceria, fruto dos questionamentos que são desenvolvidos neste texto, tema de projeto de pesquisa institucional intitulado Museologia e Memória Social em Performances Culturais. Assim, o foco aqui recai sobre a Museologia e os museus no contexto dos projetos de cidade em que estão inseridos. Primeiramente, cabe situar o início das discussões sobre a instituição museal em meio à cidade em que se localiza. Para isso, o texto relato da Mesa Redonda de Santiago do Chile, em 1972, será o ponto de partida. Sobre a história da urbanização no mundo, será utilizada a obra de Lewis Mumford, cuja primeira edição datada de 1961 é ainda a maior referência no assunto. A seguir serão apresentados alguns questionamentos que vêm sendo feitos por estudiosos do fenômeno urbano – como Henri Pierre Jeudy (2005) e Guy Débord (1997) – sobre a atuação do museu nesse espaço e a política cultural nesse ambiente, sobretudo em relação à patrimonialização. Patrimonialização é entendida como um ato provocado, efeito ou ação de tornar um bem com valor de patrimônio cultural mediante estudo, salvaguarda, preservação, conservação e divulgação. Serão discutidas aqui algumas tentativas de inserção urbana bemsucedidas, desde o advento da Nova Museologia, na década de 1980 e, a título de considerações finais, tentar-se-á apontar para novos horizontes e perspectivas a partir de alguns exemplos. Por tratar-se de um fenômeno urbano por excelência, importa também observar e analisar as ações e representações museológicas no espaço urbano enquanto performances culturais. O conceito de performances culturais, segundo Robson Camargo (2013, p. 1) “está inserido numa 36 | Performances Culturais proposta metodológica interdisciplinar e que pretende o estudo comparativo das civilizações em suas múltiplas determinações concretas”, assim como o “entendimento das culturas através de seus produtos ‘culturais’ em sua profusa diversidade”. Nesse sentido, essas reflexões intentam apontar alguns aspectos desse lugar performático dos museus, como produtos “culturais” do/no espaço urbano. Museus e suas atividades como performances culturais vêm sendo aos poucos um tema abordado. Soares (2012, p. 1) lembra que ainda não foi desenvolvida uma teoria da performance aplicada aos museus, e que “o ponto de vista da performance foi, até o momento, pouco explorado, considerando o seu potencial para revelar como os museus operam e como estes produzem significados culturais”. Essa assertiva foi um dos motivadores para a ideação e elaboração deste texto. Os museus nas cidades É sempre bom lembrar que o museu e demais instituições de guarda e preservação da memória, como as bibliotecas e os arquivos, nasceram no seio das urbes (MUMFORD, 2008). Tais instituições guardam, portanto, uma profunda relação de reciprocidade com a cidade. Mumford, em sua análise da “função cultural da cidade mundial”, já apontava o museu como a instituição que oferece as características ideais para tornar as cidades mais humanas e educadoras, mais do que educativas, embora admitisse que “inevitavelmente, o museu assumiu muitas das características negativas da metrópole”, tais como “seu gosto desnorteado pela aquisição, sua tendência à exagerada expansão e à desorganização, seu hábito de medir o êxito pelo número de pessoas que passam pelas suas portas” (MUMFORD, 2008, p. 669). Sobre o papel positivo do museu, escreve ele: Todavia, em sua forma racional, o museu serve não só de equivalente concreto da biblioteca, mas também de método não só de ter acesso, mediante espécimes e amostras selecionadas, a um mundo cuja imensidade e complexidade Vânia Dolores Estevam de Oliveira; Robson Corrêa de Camargo | 37 de outro modo, estaria muito longe do alcance do poder humano. Em sua forma racional, como instrumento de seleção, o museu é uma contribuição indispensável à cultura das cidades; e quando chegarmos a pensar na reconstituição orgânica das cidades, veremos que o museu, não menos que a biblioteca, o hospital, a universidade, terá uma nova função na economia regional (MUMFORD, 2008, p. 669-670). Aqui o autor coloca o museu e a biblioteca no mesmo patamar do hospital e da universidade, numa visão holística e de vanguarda para a época em que foi escrito (1961), uma vez que não se deve compreender a vida cultural dissociada do saber, da educação formal e não formal, e da saúde, tanto física quanto mental. São instâncias complementares e indissociáveis, no nosso entendimento. No campo da Museologia, pode-se situar o início das discussões voltadas para as relações dos museus com as cidades que ocupam, na realização da Mesa-Redonda de Santiago sobre la Importancia y el Desarrollo de los Museos en el Mundo Contemporáneo, realizada no Chile, no período de 20 a 31 de maio de 1972. Esse evento foi organizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura, na sede da UNCTAD (United Nations Trade and Development). Foi o nono no gênero promovido pela UNESCO, realizado durante o último ano do Governo Allende e, ao contrário dos anteriores, inserido em uma cidade efervescente e convulsionada, que trazia uma preocupação interdisciplinar e social, assim reunindo representantes e estudiosos de outras áreas além da Museologia. Isso se explica pelo momento de questionamento por que passava a instituição museal. A postura dos profissionais de museus, até então alheia aos problemas que os rodeavam, começava a incomodar os pensadores do social, em busca de um museu integral e integrado, que procurava estar engajado com seu entorno e preocupado com a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Já no ano anterior, em 1971, durante a Conferência Geral do ICOM (Conselho Internacional de Museus), na França (Grenoble), a intervenção de Mario Vasquez, do México, que questionava “o papel do museu na sociedade, havia feito furor” (MESA REDONDA, 2012, p. 143). Pela primeira 38 | Performances Culturais vez os museus foram confrontados em suas convicções e posturas. Era preciso ouvir e estar aberto às críticas de estudiosos e profissionais das demais áreas envolvidas na discussão. Certamente, por isso, uma das recomendações aos participantes convidados era que a Mesa-Redonda chilena deveria “determinar as soluções que os museus devem dar a determinados problemas da sociedade no processo de transformação e desenvolvimento”, com vistas a manter sua credibilidade e visibilidade (MESA REDONDA, 2013, p. 100). Tendo isso em vista, a questão central que norteou os preparativos e as discussões da Mesa Redonda foi: “o museu, como instituição educacional disseminadora de conhecimento científico e de cultura, é capaz de enfrentar o desafio imposto por determinados aspectos do desenvolvimento econômico e social na América Latina, hoje?” Para responder a tal pergunta, além dos museólogos e demais profissionais de museus, entre os convidados figuraram sociólogos, cientistas, arquitetos e urbanistas, a exemplo de Jorge Enrique Hardoy, que coordenou o debate sobre o “Museu e os problemas sociais”1. Nas palavras de Hugues de Varine foi Hardoy “quem provocou a revolução dos ânimos”, trazendo à baila aspectos problemáticos da urbanização latino-americana, antes impensados pelos experientes profissionais de museus presentes à reunião. Sua fala levou a questionamentos sobre as atividades, especialmente em relação às exposições usuais dos museus, que deveriam abordar e provocar reflexões sobre os problemas da sociedade, dos quais não se deveriam alijar. Como “produtos culturais” atuantes do e no espaço urbano, entendese hoje que não só os museus, em sua totalidade instituída, mas também as diversas atividades inerentes à rotina museológica – sobretudo as exposições – podem e devem ser vistas e interpretadas como formas 1 Na metodologia proposta (inovadora pelo caráter multidisciplinar dos envolvidos), os especialistas convidados de outras áreas foram incumbidos, como coordenadores de debates, de trazer seus questionamentos e comentários sobre seus campos específicos, como expressão das demandas da comunidade, e os profissionais de museus, como participantes, deveriam apontar sugestões e soluções para os problemas elencados, baseados na sua experiência na instituição. Vânia Dolores Estevam de Oliveira; Robson Corrêa de Camargo | 39 atuantes dentro da sociedade e que apresentam seus produtos como atuação na significação e ressignificação da sociedade. Assim o museu performa, constrói memórias, organiza e reinterpreta passados, de modo que possibilita novas formas de estar na e compreender a sociedade. Os museus possibilitam uma forma de autoconhecimento, visto que apresentam um presente e um passado e são elementos de significação. Assim os museus são elementos de cultura e que performam, não sendo apenas depositários, mas produtores de cultura. Os museus presentificam uma realidade, não apenas representam, mas apresentam (Darstellung); suas exposições estabelecem um diálogo permanente e infindável entre o museu e seus visitantes. Observa-se que o museu reúne os elementos essenciais da performance, como são definidos por Richard Bauman (1977) e sistematizadas por Esther Langdon (2007, p. 9). Se entendermos a exposição como texto, texto que produz e carrega uma mensagem e que se utiliza de diversas linguagens em seu discurso expográfico – cumprindo assim a função comunicacional da Museologia2 –, estes elementos podem ser aplicados às atividades museológicas e a outras categorias de performances culturais. Como afirma Bauman: Uma concepção performance-centrada da arte verbal clama por uma abordagem através da performance mesma. Nesta abordagem a manipulação formal de aspectos linguísticos é secundária em relação à natureza da performance, per si, concebida e definida como um modo de comunicação3. (BAUMAN, 1977, p. 292). Se seguirmos o modelo de Bauman, o museu apresenta todos os elementos essenciais da performance: 2 Lembramos aqui aos que nos leem que, a comunicação, ao lado da preservação e da pesquisa, são as funções básicas da Museologia. 3 Original: A performance-centered conception of verbal art calls for an approach through performance itself. In such an approach, the formal manipulation of linguistic features is secondary to the nature of performance, per se, conceived of and defined as a mode of communication. 40 | Performances Culturais “Display”, ou seja, o que está à mostra, em exibição, como o termo em inglês para exposição sugere (exhibition); e aqui temos que perceber o todo, não apenas o que se está amostra – a exposição específica -, mas também sua “moldura”: o local, o prédio, a vizinhança onde se insere. Um museu na Avenida Paulista em São Paulo, ou no Parque Ibirapuera, exibe a exibição, determina comportamentos e expectativas, propõe leituras, significações. 2. “a responsabilidade de competência, assumida pelos atores”; neste caso, os profissionais de museus, que detêm o “poder” de seleção das representações da memória e de musealização dessas representações, bem como o domínio das técnicas de preservação, comunicação e pesquisa determinam pontos de vista, leituras e releituras. 3. “a avaliação por parte dos participantes”, seu público visitante, que está sempre analisando e julgando as exposições e demais atividades dos museus. Nesse sentido, a exposição museal, que também pode ser entendida como obra de arte, sempre nos apresenta uma questão, sempre impõe um diálogo de muitas perguntas e respostas. 4. Há uma “experiência em relevo” em que as qualidades dessa experiência (expressiva, emotiva, sensorial) são o centro das atenções. O museu expõe uma concepção performance-centrada (Bauman), em que “as emoções e os prazeres suscitados pela performance são essenciais para a experiência” (LANGDON, 2007, p. 10). Estes vêm sendo elementos cada vez mais reconhecidos nas exposições e nas ações educativas, tanto por quem as elabora quanto por quem as visita. É importante que se perceba o aspecto presente da performance museológica, que não apenas reelabora um recorte ou um passado, mas apresenta uma experiência que enquadra nossa compreensão de mundo. 1. “Keying ou sinalização como metacomunicação – atos performáticos são momentos de ruptura do fluxo normal de comunicação, são momentos que são sinalizados (ou keyed) […] para chamar atenção dos participantes à performance”, ou aos aspectos dela. Museus recebem sinalização e iluminação específicas, constroem enquadramentos que visam chamar atenção para esse lugar diferenciado. Suas exposições são também sinalizadas, dispostas, de maneira bem distinta dos demais espaços e atividades, ou dos locais de origem, seja pelo uso de salas especiais, mobiliário, cores, disposição e iluminação estudadas, sons e até odores. Pelo exposto acima, é possível perceber o fértil terreno das performances culturais na consideração dos museus como produtores de Vânia Dolores Estevam de Oliveira; Robson Corrêa de Camargo | 41 culturas, memórias e sensibilidades. A Museologia, a memória social e o estudo das cidades e do fenômeno da urbanização, na relação com os museus, abrem inúmeras possibilidades de encaminhamentos e combinações temáticas de pesquisa. Em um desses muitos caminhos a serem percorridos, museus como lócus e instrumento de patrimonialização, alguns estudiosos dos aspectos culturais e urbanos dos museus vêm apontando problemas e mazelas no que se refere ao seu uso cultural das e nas cidades, tais como Lewis Mumford (2008), Henry Pierre Jeudy (2005) e Guy Débord (1997). O filósofo e sociólogo francês Henry Pierre Jeudy (1945) nos alerta para o fato de “existir uma clara intenção de se produzir uma imagem singular de cidade. Entretanto, paradoxalmente, essa imagem, de marca, que seria fruto de uma cultura própria, da dita ‘identidade’ da cidade” tem construído, ao revés, cidades que “se parecem cada vez mais” (JEUDY, 2005, p. 9). Como os projetos urbanos custam caro e precisam captar recursos junto aos grupos e empresas economicamente poderosos, “as cidades precisam seguir um modelo internacional extremamente homogeneizador, imposto pelos financiadores multinacionais dos grandes projetos urbanos” que intentam ostentar suas marcas junto aos empreendimentos que patrocinam (JEUDY, 2005, p. 9). Isso também se reflete nos grandes projetos internacionais de museus, como o Guggenheim, por exemplo, que segue um mesmo padrão arquitetônico e ideológico “homogeneizador” em diferentes países. Os museus criados e mantidos pela Fundação Guggenheim somam hoje nove unidades que ocupam as Américas, a Europa e o Oriente Médio e dedicam-se a “envolver tanto o público local quanto o global”, construindo com isso “uma comunidade internacional de museus arquitetônica e culturalmente distintos”4 (GUGGENHEIM FOUNDATION, 2015, tradução nossa). Distintos dos espaços urbanos que ocupam, chegando a destoar do ambiente, mas guardando identidades arquitetônicas entre si. 4 Texto original: “engaging both local and global audiences, the Solomon R. Guggenheim Foundation has built an international community of architecturally and culturally distinct museums”. 42 | Performances Culturais Figura 1 – Museu Guggenheim, Nova York Fonte: https://www.guggenheim.org. Figura 2 – Museu Guggenheim Bilbao, Espanha Fonte: https://www.guggenheim.org Para Jeudy, “a cidade se tornou o principal alvo dos cuidados patrimoniais” e “sua restauração permanente é o espelho atual do porvir das sociedades contemporâneas” (JEUDY, 2005, p. 10). Segundo ele “a conservação patrimonial, muitas vezes obsessiva, corre o risco de petrificar a própria cidade, que se transforma assim em um museu de si mesma” (JEUDY, 2005, p. 10). No campo da história da urbanização no mundo, como visto, Mumford (2008) também nos traz sua visão – bastante otimista por sinal -, do papel do museu na humanização das cidades. Entretanto cremos não ter sido essa a perspectiva de Mumford (2008) em seus prognósticos. Ressalte-se que a patrimonialização em si não é algo nefasto, mas o seu exercício exagerado, sim. A visão de Mumford (2008), ao exaltar as virtudes seletivas do museu, vai ao encontro da crítica do Vânia Dolores Estevam de Oliveira; Robson Corrêa de Camargo | 43 excesso de patrimonialização tão em voga e que Françoise Choay (2001) chamou de “Síndrome de Noé”5, o acúmulo excessivo e desmesurado de bens, sem que se dê a eles a atenção necessária, ou, no extremo do zelo preservacionista, privando-os do convívio do público. Outra crítica bastante contundente que faz Jeudy (2005) é relativa à museificação generalizada – nesse caso, a transformação de núcleos urbanos, ou parte deles, em museus, o que “gera um processo de ‘congelamento’ da possibilidade de mudança e a negação das atividades particulares do lugar, que são ocultadas pela estandardização internacional que a indústria turística reclama”, como no caso dos centros históricos que passaram necessariamente a abrigar, além de museus, restaurantes e lojas de souvenirs (REYES, 2007)6. Além disso, provoca o fenômeno da gentrificação (gentry – do francês arcaíco genterie, ou a expulsão dos usuários e moradores originais do lugar), como aconteceu no Pelourinho, em Salvador, na década de 1990; e, há menos tempo, no chamado Recife Antigo, onde museus são utilizados como moeda de troca política, muitas vezes às custas do afastamento da população local. Outro exemplo é Veneza, onde a população que lá mora se afasta para alugar suas casas à indústria do turismo. Aqui, abre-se um parêntese para clarificar um pouco os conceitos de musealização e museificação, visto que são conceitos de difícil explicitação. Musealizar pode ser entendido “como processo (ou conjunto de processos) por meio dos quais alguns objetos são privados de sua função original e, uma vez revestidos de novos significados, adquirem a função de documento” (LOUREIRO, M. L.; LOUREIRO, J. M., 2013, p. 1). Observe-se que documento aqui é compreendido em sua noção mais ampliada, para muito além de texto escrito7. Suzanne Briet apresenta uma 5 Variante da Síndrome de Diógenes, que vem a ser o acúmulo excessivo e desmesurado de animais. Em relato da palestra “A museificação dos centros urbanos: debate com Manuel Delgado e Raquel Rolnik” (Vídeos), realizada pelo Fórum Permanente e disponível no site http://www.forumpermanente.org/. 6 7 Para uma compreensão mais apurada do conceito de documento com que trabalhamos, cf. Loureiro, M. L. e Loureiro, J. M., (2013, p. 2-5) e Ortega e De Lara (2009). Trata-se de textos que fazem uma revisão detalhada da ampliação desse conceito. 44 | Performances Culturais definição abrangente, para ela, documento é “todo índice concreto ou simbólico, conservado ou registrado com os fins de representar, reconstituir ou provar um fenômeno físico ou intelectual” (BRIET, 1951, p. 7 apud LOUREIRO, M. L.; LOUREIRO, J. M., 2013, p. 3). Ressalte-se que, ao ver como o museu performa, estamos ampliando esta questão museológica como não apenas uma apresentação de documentos, em seu aspecto histórico, mas de uma apresentação que elabora significados simbólicos. Briet avança nessa questão ao transformar a natureza em documento quando afirma que as pedras e os animais de um zoo são documentos: Uma estrela é um documento? Um seixo levado pela torrente é um documento? Um animal vivo é um documento? Não. Mas são documentos as fotografias e os catálogos de estrelas, as pedras em um museu de mineralogia, os animais catalogados e expostos em um Zôo (BRIET, 1951, p. 7 apud LOUREIRO, M. L.; LOUREIRO, J. M., 2013, p. 3, tradução dos autores). Entretanto, se há um aspecto documental, também há um aspecto presencial. Quando vemos pinguins, quadros, bonecas karajás, não estamos apenas olhando registros do passado, pois não são somente lembranças de um local distante ou passado remoto, mas muitas vezes a primeira apresentação de um determinado fenômeno que ilumina nossas visões, percepções e sentidos. Isso se amplia se acrescentarmos à lista enumerada por Briet um centro histórico de uma cidade tombada ou toda a cidade, como Ouro Preto, por exemplo. Se tal conjunto urbano for tomado como testemunho ou reconstituição de um modo de vida em um determinado recorte temporal, tem-se aí um documento ou conjunto documental, mas ao mesmo tempo é um local de vida e construção do simbólico, de esperanças, de desejos e afetos. Assim os estudos da performance atualizam a performance museal. Deve-se evitar a museificação, termo negativo que, em nome da patrimonialização e de desejável preservação, associados ao caráter documental pretérito, acrescentam-se ainda as intenções de imutabilidade, congelamento no tempo e petrificação daquele monumento e ou conjunto urbano, alijando-o das vidas e dos afazeres específicos daquele lugar e das pessoas Vânia Dolores Estevam de Oliveira; Robson Corrêa de Camargo | 45 que antes lhe davam vida, negando-lhe as possibilidades e necessidades de mudança. O termo – ainda carente de definições mais precisas – nasceu no âmbito das análises arquitetônicas e urbanísticas, em disputa com os fenômenos da patrimonialização e espetacularização de trechos de cidades8. Nada contra este ou qualquer outro museu ou experiência de musealização. Musealizar e patrimonializar é preciso, quando possível, mas não necessariamente deveria significar “petrificar” valores da memória e do patrimônio, alijando-os do ciclo normal da vida e transformando-os em bens de consumo fácil e superficial, afastando e até expulsando aqueles reais detentores e cuidadores da memória. Museus são ícones e, no âmbito da cidade, são “pontos marcantes”, ou seja, “definido de um modo simples: edifício, sinal, loja ou montanha” que servem como referências importantes no espaço urbano, normalmente representados por objetos físicos (LYNCH, 1988, p. 59). Enquanto ícones, os museus carregam em si um capital simbólico em potencial; daí serem referências espaciais importantes no contexto urbano, mesmo que seja pela negação de seu papel. Essa negação ocorre com muita frequência no Brasil, onde edifícios imponentes abrigam museus que são desconhecidos do grande público. Segundo Maurice Halbwachs “não há [...] grupo, nem gênero algum de atividade coletiva, que não tenha qualquer relação com um lugar, isto é, com uma parte do espaço” (1990, p. 143). Essa relação com o espaço é tão condicionante, embora não suficiente para a reconstrução da memória, que a alteração ou destruição desses elementos pode ser bem traumática, manifestando o que Halbwachs (1990, p. 137) chamou de “automatismo coletivo [e] uma rigidez persistente do pensamento [...] Se as pedras se deixam transportar, não é tão fácil modificar as relações que são estabelecidas entre as pedras e os homens” (HALBWACHS, 1990, p. 136). Será por 8 Para aprofundamento, Cf. Ruy, Aline Tessarolo, 1991. Museificação do território: experimentação conceitual em roteiro cultural no Espírito Santo / Aline Tessarolo Ruy. – 2017. 143 f. : il. Alguns relatos e vídeos postados no Fórum Permanente, disponíveis em http://www.forumpermanente.org/, são também esclarecedores do tema. 46 | Performances Culturais isso, talvez, que cause tanto incômodo e saudade a derrubada de uma árvore, da casa da Rua 20 e do Monumento ao Trabalhador, importantes elementos da memória da cidade de Goiânia, dentre outros tantos exemplos de bens culturais não tombados pelos organismos oficiais de constituição de patrimônio e memória. As lembranças que conformam a memória social ou coletiva se apoiam em referências espaciais, tais como: as praças, as casas de nossos amigos e conhecidos, o edifício notável – seja por sua feiura, seja por suas histórias de fantasmas ou tragédias –, as árvores, as pedras do caminho. Nessa perspectiva, até mesmo o museu nunca visitado – por impor receio pela imponência, por acharmos que não há lugar para nós entre suas paredes, ou por nunca nos sentirmos atraídos pelas suas atividades. Museus também são locais do espaço, como igrejas estabelecem relações com o espaço, ao existir, ao pegar fogo. Elas são partes do espaço simbólico, condicionam a construção e reconstrução da memória. Como locus da lembrança e do poder, sua alteração ou destruição modifica as relações que são estabelecidas. Leticia Julião9 (2014) sugere pensar museus como zonas de contato: encontro e trânsito de acervos, local de experiências sensoriais do objeto cidade, espaço de discussões, como ágoras da atualidade, diríamos. Contudo, alguns casos sugerem que os museus não são percebidos assim, pelo menos para a maioria da população. Em uma palestra recente, a antropóloga Regina Abreu citou o curioso e preocupante depoimento de um dos seresteiros da cidade de Conservatória, no Estado do Rio de Janeiro, referindo-se aos espaços museológicos da cidade: – “isto aqui não é museu, é um encontro cultural de seresteiros [...] Museu é pra quem tá morto”10. Ora, o cemitério é que é lugar para os mortos; mesmo também fazendo parte das cidades, seu papel e suas performances são distintas daquelas do 9 A partir de anotações durante palestra proferida na Universidade Federal de Goiás em maio de 2014. Citação a partir de anotações pessoais durante a palestra da Profa. Regina Abreu, intitulada “Antropologia dos Museus – Conservatória e seus museus (algo performático)”, realizada no NEAP – Núcleo de Estudos de Antropologia, Patrimônio, Memória e Expressões Museais. 10 Vânia Dolores Estevam de Oliveira; Robson Corrêa de Camargo | 47 museu ou, ao menos, queremos que sejam. Para isso, há que rever algumas posturas e conceitos, ou seja, há que praticar novas performances museais, nos museus e nos cemitérios. Algumas experiências precursoras Como resultado das sementes conceituais e filosóficas lançadas na Mesa Redonda de Santiago do Chile, do longínquo 1972, no “primeiro seminário internacional destinado a discutir ecomuseus e Nova Museologia” (SANTOS, 2008, p. 78), realizado em Quebec em 1984, chegou-se à conclusão que o museu integrado é aquele que oferta à “comunidade uma visão integral do seu ambiente natural e cultural”, busca mostrar “aos visitantes o seu lugar no mundo, bem como conscientizá-los dos seus problemas enquanto indivíduos e membros de sociedade” (MESA REDONDA, 2012, p. 139-140). A Nova Museologia vem acrescentar às práticas museológicas tradicionais um pensamento centrado na função social do museu e na sua responsabilidade perante a sociedade a que serve, em sua profusa diversidade e em sintonia com seus problemas, na elaboração de seus potenciais simbólicos. Desde então o conceito de museu integrado e o Movimento da Nova Museologia vêm inspirando novas formas de musealização e institucionalização de memórias e patrimônios, ou seja, novas tipologias de museus e novos exercícios da Museologia – sobretudo ecomuseus. Hughes de Varine11 (2012, p. 182), referindo-se a esse termo nos diz que a palavra ecomuseu “tornou-se uma dessas ‘palavras-valises’ em que cada um pode colocar o que quiser”. Contudo, Varine assume que prefere “conservar o termo ‘museu’ e atribuir-lhe um qualificativo que define sua principal característica: museu comunitário, museu de território, museu de sítio (monumental, industrial, arqueológico) ou ainda centro de interpretação” 11 A ele se atribui a invenção do termo. 48 | Performances Culturais (VARINE, 2012, p. 182)12. A essas podem ser acrescentadas outras tipologias de museus inspiradas nos princípios idênticos, a exemplo do MUF – Museu de Favela, no Morro do Cantagalo, na zona Sul do Rio de Janeiro. Vale ressaltar que as novas práticas podem e devem ter lugar em qualquer tipo de museus, até mesmo os mais tradicionais, e há bons exemplos disso sendo postos em prática13. Esses novos tipos de museus e práticas museológicas consideram o contexto social e as pessoas envolvidas, suas vontades de memória, seus patrimônios, seus acervos. No nível internacional, alguns exemplos tornaram-se emblemáticos para a nova prática museológica: a Comunidade Urbana Le Creusot-Montceau (CUCM), na França (DUARTE, 2014; DE VARINE, 2012, 2014; BRULON, 2015); o Parque Cultural do Maestrago, em Aragão, na Espanha (PAU-PRETO, 2005); o Ecomuseu Municipal do Seixal (FILIPE, 2007; MENDES, 2012) em Portugal. No Brasil, destacam-se ainda o Ecomuseu Comunitário de Santa Cruz (PRIOSTI; DE VARINE, 2007), no Rio de Janeiro, e a Quarta Colônia, no Rio Grande do Sul (DE VARINE, 2012). Vejamos uma breve descrição do Ecomuseu Comunitário de Santa Cruz: como um museu nascido das necessidades culturais e da vontade de sua comunidade, o Ecomuseu Comunitário de Santa Cruz, designado oficialmente Ecomuseu do Quarteirão Cultural do Matadouro, escapou à regra geral e foi reconhecido pela própria comunidade como seu museu. Sendo que, como um ecomuseu, fugiu à regra geral e se deixou gerir por membros da comunidade, em que o requisito essencial foi quase sempre o desejo de participar e em que a ausência de uma formação profissional não foi empecilho para a responsabilização pelo patrimônio ou para a participação no processo museológico (PRIOSTI; DE VARINE, 2007, p. 65). 12 Para aprofundamento das diferentes e novas tipologias de museu, ver VARINE, Hugues de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do desenvolvimento local. Trad. Maria de Lourdes Parreiras Horta. Porto Alegre : Medianiz, 2012, p. 182-200. 13 Sobre tais experiências em museus ditos tradicionais, sugerimos as leituras de Oliveira (2018) e Bulhões (2017). Vânia Dolores Estevam de Oliveira; Robson Corrêa de Camargo | 49 Do Sul do Brasil, o exemplo nos vem de uma área rural a 400 km de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. O modelo consegue mobilizar a população de oito municípios diferentes, de uma área conhecida como Quarta Colônia, “isto é, a quarta colônia italiana instalada no final do século passado [XIX] a convite do último Imperador do Brasil, Dom Pedro II” (DE VARINE, 2014, p. 30). Tudo começou há quatro anos, com a sugestão de um jovem funcionário público do município de Silveira Martins, de que se organizasse um grupo de pesquisa para localizar os túmulos dos primeiros colonos. A partir disso, iniciou-se um programa de patrimônio cultural, principalmente por meio de atividades escolares, e mais tarde um plano de desenvolvimento abrangente que incluiu a identificação e a avaliação de todos os recursos disponíveis para a criação de atividades economicamente e socialmente significativas: restauração de edifícios antigos, recuperação do uso do tradicional dialeto “Veneto” herdado dos colonos italianos do século XIX; implementação de vários projetos para atrair turistas; tentativas de exploração da “Mata Atlântica” que circunda a terra cultivada; e, finalmente, um estudo do uso do produto agrícola tradicional, a batata, para produção de “chips”. A cada ano, um evento comunitário sintetiza o trabalho realizado (DE VARINE, 2014, p. 30). Contudo, em sua relação com a cidade, como vimos, nem sempre o museu é participante ativo ou engajado, pois existem museus que permanecem de costas para sua paisagem urbana e para seus habitantes. Eles ocupam edifícios importantes para a história de sua cidade, mas simplesmente ignoram a função primeira desses edifícios; e existem ainda museus especialmente criados para enaltecimento de personalidades de destaque, como é o caso dos museus-casas ou, como os museus de cidade, para a construção idealizada de histórias e memórias urbanas. Como antídoto a esses males, a “receita” da Mesa Redonda de Santiago continua muito atual: “os museus devem ser usados para aumentar a consciência sobre os problemas enfrentados em áreas urbanas” (MESA REDONDA, 2012, p. 138). O texto das recomendações continua sugerindo alguns caminhos para a consecução desse propósito maior: 50 | Performances Culturais a. que os museus da cidade dispensem especial atenção ao desenvolvimento urbano e seus problemas, tanto em suas exposições como em seus trabalhos de pesquisa; b. que os museus organizem exposições especiais que ilustrem os problemas do desenvolvimento urbano contemporâneo; c. que, com a ajuda dos grandes museus, sejam instalados museus ou exposições nos subúrbios ou áreas rurais para informar as populações locais das possibilidades e desvantagens da vida nas cidades grandes (MESA REDONDA, 2012, p. 138). Os museus, as performances e as cidades Os espaços urbanos são naturalmente performáticos e expositivos, por isso as ações museológicas vistas como performances culturais encaixam-se plenamente nas recomendações acima. Como afirma Schechner (2006, p. 47), as performances culturais têm como funções: “entreter, construir algo belo, formar ou modificar uma identidade, construir ou educar uma comunidade, curar, ensinar, persuadir e/ou convencer e lidar com o sagrado e o profano”. Os que atuam na área museológica podem facilmente reconhecer nas funções elencadas, as características fundamentais do conceito de museu mundialmente difundido. O museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, estuda, expõe e transmite o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio, com fins de estudo, educação e deleite. Afinal, não basta estar nas cidades, é preciso que o museu ocupe as cidades, e seja ocupado pelas diversas “tribos” urbanas, interagindo com elas, pois performances culturais só existem no presente e em interação, seja com uma plateia, audiência ou público. É preciso também não ter a pretensão ingênua e o discurso populista de praticar a inclusão total. Essa ocupação inclusiva não é de todos, durante todo o tempo; o que mais importa é que não seja apenas de um único grupo, o tempo todo. Considerações finais: o museu é o mundo, use seu museu Vânia Dolores Estevam de Oliveira; Robson Corrêa de Camargo | 51 Primeiramente, é possível ver a cidade como locus museológico, ou seja, a cidade em si pode ser tratada como acervo operacional14, em ações e abordagens a respeito dos mais diversos temas e problemas que comporta e provoca; por exemplo, suas praças, esculturas e monumentos podem ser objeto de exposições, pesquisas e atividades educativas das mais variadas. Ao se fazer uso da musealidade – potencial ou possibilidade de musealização – como ferramenta é possível musealizar sem museificar a cidade e seus elementos. O museu assim vai às ruas, ao espaço público, sem esperar que o público venha até ele15. Com isso, é possível alcançar aquilo que vimos em um objeto que fora adquirido na Pinacoteca do Estado de São Paulo – uma caderneta para anotações que trazia na capa a expressão “use seu museu”. Segundo o arquiteto e urbanista Paulo von Poser, a “brincadeira com as palavras “use seu museu” representa a ideia de que o museu precisa ser usado para manter-se vivo. E foi neste pensamento que ele se inspirou para participar do projeto16” (POSER apud CARPEGIANI, 2013)17. Figura 3 – Logotipo da exposição “Museus de São Paulo”, Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2005, criado por Paulo von Poser 14 Sobre a noção de acervo operacional Cf. SANTOS, Maria Célia Teixeira Moura. Uma abordagem museológica do contexto urbano. 1996. 15 Reflexões inspiradas em anotações de palestra de Talita V. Silva e Eduardo Rocha (FAU/UFPEL) no 4º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus – Museologia e Patrimônio, realizado no Rio de Janeiro nos dias 29, 30 e 31 de outubro de 2014. 16 Projeto de ilustração da reportagem “10 experiências para conviver com arte para o projeto CRESCER e Johnson’s baby” (CARPEGIANI, 2013). 17 A marca foi cedida pelo artista à Pinacoteca do Estado de São Paulo, que passou a utilizá-la em seu Programa de Amigos (PINACOTECA, 2011). 52 | Performances Culturais Fonte: http://paulovonposer.com.br/. É urgente que isso não seja apenas um jogo de palavras, mas que passe a integrar a missão das instituições museológicas – o usufruto dos habitantes das cidades em que se localizam e o local onde podem ser pensados e discutidos os problemas urbanos e suas soluções e consequências. Alguns exemplos podem ser pinçados e denotam pequenas e repetidas tentativas de mudança. Como a experiência de curadoria compartilhada que resultou na exposição Ocupe o Museu (com) memórias de Goiânia, realizada na Semana de Museus de 2012 pelo Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás. Esta teve seu sucesso garantido pela efetiva participação de moradores da vizinhança daquela instituição ao longo de todo o processo de criação e montagem da mostra (DE OLIVEIRA, 2012; CÂNDIDO; LIMA, 2014). Abre-se aqui um parêntese para registrar que a instituição do Dia Internacional de Museus em 1977 representou uma louvável iniciativa do Conselho Internacional de Museus (ICOM) para estabelecer uma conexão entre suas ações e a realidade social mundial. O objetivo dessa comemoração é aumentar a conscientização de que “os museus são um importante meio de intercâmbio cultural, enriquecimento de culturas e desenvolvimento de compreensão mútua, cooperação e paz entre os povos” (IBERMUSEOS, 2019, s.p). Comemorado no dia 18 de maio, sendo que, em torno desta data, os eventos e atividades planejados para comemorar o Dia Internacional dos Museus podem durar um dia, um fim de semana ou uma Vânia Dolores Estevam de Oliveira; Robson Corrêa de Camargo | 53 semana inteira. Os temas escolhidos a cada edição anual das comemorações acabam por refletir também os problemas e os conflitos das diversas realidades urbanas mundo afora, com o propósito de reafirmar que museus são instituições a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, conforme preconiza a definição difundida pelo mesmo ICOM. Apenas lembrando os mais recentes: em 2011, o tema versou sobre “Museu e Memória”; em 2012, o tema discutiu os “Museus em um mundo em transformação – novos desafios e novas inspirações”; em 2013, o tema foi “Museus (memória + criatividade) = mudança social”; em 2014, apesar da sugestão de conservadorismo, trazia um germe da abertura para além de suas paredes – “Coleções de museus criam conexões”. No ano de 2015, que teve como tema “Museus para uma sociedade sustentável”, discutiu-se a sustentabilidade, tema que tanto preocupa as pessoas, governos, pensadores e religiosos pelo mundo afora. Em 2016, o ICOM conclamou a todos para discutir “Museus e paisagens culturais”; o tema para o Dia Internacional de Museus em 2017 foi “Museus e histórias controversas: dizendo o indizível em museus”, abrindo-se à diversidade do mundo em todas as suas manifestações (gênero, etnia, inclinação religiosa, ideologias). No ano de 2018, discutiu-se os “Museus hiperconectados: novas abordagens, novos públicos”. Com esse tema, os museus foram encorajados a direcionar o olhar para seus acervos por meio da tecnologia, explorando e fortalecendo as conexões que os ligam a suas comunidades, paisagens culturais e ambiente natural. Com o tema “Museus como Núcleos Culturais: o Futuro das Tradições”, é comemorado o Dia Internacional de Museus em 2019. Como afirma Camargo: “performances são eventos provisórios, abertos, subversivos, constituem-se como experiências em relevo, são expressões estéticas e críticas”18. Este, acreditamos, deve ser o caminho dos museus. Como instituições entendidas como performáticas em sua visualidade e em suas atividades (DE OLIVEIRA, 2012), os museus têm um 18 De anotações durante apresentação do Prof. Robson Camargo (2015), coordenador do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais, em reunião de trabalho. 54 | Performances Culturais importante papel a desempenhar na elaboração do simbólico de nossa sociedade, na concretização da inclusão social dos segmentos marginalizados e excluídos da sociedade de suas memórias também marginalizadas, ao lado de bibliotecas, arquivos e demais instituições e equipamentos culturais. Nesse sentido, e em uma perspectiva bastante promissora para as instituições museológicas, Lewis Mumford (2008, p. 672) já apontava o museu como uma das instituições que poderá contribuir para “incentivar o processo de circulação e difusão cultural”, que ele defendeu como “missão ideal da cidade”. Ao museu cabe importante papel nessa missão, em meio ao caos urbano e à desumanização e violência crescentes, na reeducação para a gestão livre e consciente dos recursos ambientais e na construção do equilíbrio social das cidades do mundo contemporâneo. Assim, as cidades tornar-se-iam mais educadoras – no sentido pleno que lhe atribuiu Freire (1993): de fazer pensar e olhar criticamente para a realidade circundante – e menos educativas, controladoras e disciplinares como as demais instituições urbanas, como os hospitais psiquiátricos, as cadeias e as escolas (FOUCAULT, 2003). Instituições que, quando são bemsucedidas, “adestram” adequadamente o indivíduo para a vida social e econômica. Para Moacir Gadotti (2006, p. 134), “uma cidade pode ser considerada como uma cidade que educa quando, além de suas funções tradicionais — econômica, social, política e de prestação de serviços —, exerce uma nova função cujo objetivo é a formação para e pela cidadania”. Ou ainda, como afirmou Paulo Freire (1993, p. 23), “enquanto educadora, a Cidade é também educanda. Muito de sua tarefa educativa implica a nossa posição política e, obviamente, a maneira como exerçamos o poder na Cidade e o sonho ou a utopia de que embebamos a política, a serviço de que e de quem a fazemos”. Antes de tudo, o museu não deve virar as costas nem concorrer com a cidade, mas complementar, dialogar com ela e seus elementos, patrimonializados ou não, pois, afinal, todos compõem o cenário espacial que Vânia Dolores Estevam de Oliveira; Robson Corrêa de Camargo | 55 servirá de pano de fundo para a memória coletiva de seus moradores, visitantes e transeuntes. Ao contrário da Escola, que depende da disciplina, e do controle dos currículos obrigatoriamente cumpridos, o museu, como instância de educação não formal, está livre de ementas, horários, matrículas e compromissos a serem seguidos à risca. O museu pode então ser, não só inter e transdisciplinar, como (in)disciplinar. Em termos ideais, para estar no museu nem sequer é preciso saber ler o idioma dominante. Sem esquecer que – ao mesmo tempo em que reproduzem desigualdades, pois assim é a sociedade – museus são espaços de legitimação e consagração de coleções, obras de arte e experiências visuais e sensoriais. Todos esses aspectos são esperados do fazer museal para a construção de uma instituição “antenada” com os problemas urbanos da atualidade, do presente, para a construção do futuro. Os riscos e os desafios são constantes no fazer museal, onde não há zona de conforto; melhor seria dizer: o museu deveria ser uma estimulante zona de desconforto. O desafio permanente instiga a criatividade. O erro e perigo está em pensar que é estável; o saber-se sempre na corda bamba é mais saudável para o fazer museal. Afinal, quem vive de passado não é museu e museu não é “pra quem tá morto”. Museu é para quem está vivo, e bem vivo! O museu performa e a performatividade é dinâmica! PS: Agradecimento especial à bióloga, museóloga e amiga Josiane Kunzler, pela leitura atenta e pelas contribuições e comentários críticos cheios de propriedade, que muito contribuiu para a conclusão deste texto. Referências BAUMAN, R. Verbal Art as Performance. Rowley, Mass, Newbury House Publishers, 1977. BRULON, Bruno. A Invenção do Ecomuseu: O Caso do Écomusée du Creusot Montceau-lesmines e a prática da Museologia experimental. MANA, 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/mana/v21n2/0104-9313-mana-21-02-00267.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2019. 56 | Performances Culturais BULHÕES, Girlene Chagas (manuscrito). 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Sua morte, em 2009, sob condições não completamente explícitas, dentro de uma clínica psiquiátrica, pôs fim a carreira de um artista que criou uma obra digital vasta – entre escritos e músicas – e uma obra plástica mais reduzida, mas não de menor importância. O acervo digital dos escritos encontra-se na Fundação Casa de Rui Barbosa e as pinturas estão no Museu de Imagens do Inconsciente, Rio de Janeiro. Sua obra tem a curadoria de Ramon Nunes Melo, escritor e jornalista.1 Souza Leão passou por três internações psiquiátricas; na última, ele faleceu. Com diagnóstico de esquizofrenia, fez uso de medicação psicotrópica em alta quantidade por muito tempo. Levava uma vida reclusa devido à sua doença, mas de intenso uso da internet, que se tornou a principal aliada de sua obra, de sua produção artística, mantendo-o em contato com as pessoas. Ao pesquisar o arquivo pessoal de Souza Leão – que se encontra depositado no Arquivo Museu de Literatura Brasileira (AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), no Rio de Janeiro, sob o formato digital – e Uma parte desta pesquisa e uma versão ampliada deste artigo foram publicados na obra Saúde e doenças no Brasil – perspectivas entre a História e a Literatura (Editora Fi, Porto Alegre), livro coordenado por Nádia Maria Weber Santos e Zilda de Menezes Lima, sob o viés do acervo digital do escritor, cujo capítulo se intitula: “A minha religião é a arte” – Arquivo digital, literatura e loucura: fontes de memória e de sensibilidades na escrita de Rodrigo de Souza Leão. 1 Nádia Maria Weber Santos | 61 nos seus demais escritos, em sites, Blogs e entrevistas2 –, percebe-se a grande quantidade de textos e imagens que ele produziu, as quais – poeticamente ou explicitamente – contemplam e denunciam sua condição de “doente mental” medicalizado e sofrido. Em pleno início do século XXI, a Psiquiatria, enquanto especialidade médica que perfaz pouco mais de cem anos, se vê, novamente, confrontada e questionada em uma obra literária, como o foi em Lima Barreto em 19203, e em tantos outros, e que muito revela – seja de denúncia, seja de resistência, seja de sensibilidades... Sendo assim, compreendo sua obra – literária, musical e plástica – não como um sintoma de seus vários diagnósticos mentais, mas sim como produto criativo de uma psique sensível que reatualiza problemáticas históricas sobre a loucura, seus conteúdos, suas representações e práticas sociais. Além disso, vejo sua obra como um fator de resistência, performatizado, ao sofrimento psíquico pessoal. Este texto, em específico, trabalha apenas alguns excertos de sua vasta obra literária.4 2 Toma-se como referência a entrevista concedida por ele ao editor Fernando Ramos, do Jornal Vaia de Porto Alegre em 2009, intitulada “Os inumeráveis estados poéticos”, em que Rodrigo de Souza Leão fala sobre seus surtos, suas internações, suas não pretensões artísticas, sua vida, sua religiosidade etc. Disponível na Seção Entrevistas do site: http://www.rodrigodesouzaleao.com.br/. Acesso em: 19/08/2018. Existem muitos escritos, no âmbito acadêmico, sobre Lima Barreto e seu “Diário de Hospício”, e, dentre eles, ver Santos (2008). 3 Uma minibio está disponível no site http://www.rodrigodesouzaleao.com.br/. “Escritor, jornalista e músico, Rodrigo [Antonio] de Souza Leão nasceu no Rio de Janeiro/RJ, em 04 de novembro de 1965. Publicou dez e-books de poesia: 25 Tábuas, No Litoral do Tempo, Síndrome, Impressões sob Pressão Alta, Na Vesícula do Rock, Miragens Póstumas, Meu Primeiro Livro que é o Segundo, Uma temporada nas Têmporas, O Bem e o Mal Divinos, Suorpicious Mind e Omar. Seus poemas foram publicados nas revistas Coyote, Et Cetera, Poesia Sempre, El Piez Naufrago (México), Oroboro. Premiado com o quarto lugar no Concurso de Contos José Cândido de Carvalho, em 2002. Participou, como músico, do CD Melopéia, de Glauco Mattoso. Consta da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil, organizada por Claudio Daniel e Frederico Barbosa (São Paulo: Editora Landy, 2002). Publicou Há Flores na Pele (João Pessoa: Editora Trema, 2001) e Todos os cachorros são azuis (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2008), com o incentivo do Programa Petrobrás Cultural – Edição 2006/2007. O livro foi um dos 50 finalistas do Prêmio Portugal Telecom, edição 2009. Em 2008, publicou também a plaquete Desequilivro, de poesia visual, em parceria com Paulo de Toledo. Em 2009, foi a vez de CagaRegras (Pará de Minas: Virtual Books). Fundador e coeditor da Zunái — Revista de Poesia & Debates [www.revistazunai.com]. Criou o site Caox [fora do ar] e veiculou o e-zine Balacobaco [http://balacobaco08.vilabol.uol.com.br], com entrevistas com mais de 150 poetas e escritores. Suas entrevistas também foram divulgadas em vários sites e muitas delas estão na Germina — Revista de Literatura e Arte [www.germinaliteratura.com.br], da qual foi um dos primeiros e mais assíduos colaboradores. Editou o blog Lowcura [http://lowcura.blogspot.com], que participou da mostra Blooks — Tribos & Letras na Rede (coordenação de Heloísa Buarque de Holanda e curadoria de Bruna Beber e Osmar Salomão, 2007). Sob o pseudônimo de Romina Conti, foi uma das Escritoras Suicidas [www.escritorassuicidas.com.br]. Escreveu artigos e resenhas para os jornais "O Globo" e "Jornal do Brasil". Morreu no Rio de Janeiro, em 02 de julho de 2009. Deixou, cheios de saudade e orgulho, os pais Antonio Alberto e Maria Sylvia; os irmãos Maria Dulce e Bruno; a sobrinha Marina, a madrinha e tia Rita, muitos amigos, que ele juntou com sua atenção, afeto e generosidade. E vários livros inacabados.” Acesso em: 17/08/2018. 4 62 | Performances Culturais Os atos performáticos também transmitem memória, identidade cultural (TAYLOR, 2013), assim como sensibilidades. Taylor (2013, p. 17) defende a ideia de que “aprendemos e transmitimos o conhecimento por meio da ação incorporada, da agência cultural e das escolhas que se fazem”, afirmando que a performance funciona como uma episteme e não somente como objeto de análise. É nesse sentido – usando a performance como um “modo de conhecer” – que pensamos os atos de resistência por meio da escrita de Rodrigo de Souza Leão, considerado um poeta esquizofrênico, na sociedade carioca, no final do século XX. O acervo digital da obra literária de Rodrigo de Souza Leão (RSL) – Construção de uma memória Ao ler alguns detalhes sobre a organização do acervo digital deste escritor, no texto de Rondinelli e Abreu (2015), organizadores do acervo no AMLB da FCRB, e, posteriormente, na dissertação de mestrado de Abreu (2017), observa-se que a obra de Souza Leão é basicamente realizada sob veículo, ou suporte, digital. “A produção literária de RSL se insere no cerne dos avanços da tecnologia digital na década de 1990. Neste contexto, a internet despontou como o principal veículo de sua obra” (RONDINELLI; ABREU, 2015, p. 242). Resumidamente, Souza Leão foi adepto da publicação em rede, tendo fundado e colaborado com revistas eletrônicas, criado Blogs e site e participado do site denominado Escritoras Suicidas, sob o pseudônimo de Romina Conti (RONDINELLI; ABREU, 2015). Fora da internet, mas ainda no suporte digital, ele produziu poesias, romances e entrevistas, tendo publicado dez ebooks de poesia e disponibilizado alguns romances para download gratuito (como é o caso de Carbono Pautado, escrito em 2003, que marcou a estreia dele na prosa). Em formato físico (papel), foram publicados poucos livros em vida, mas importantes também para sua biografia. Por exemplo, Todos os cachorros são azuis (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2008) foi publicado a partir do incentivo do Programa Petrobrás Cultural – Edição 2006/2007 – Nádia Maria Weber Santos | 63 e foi um dos 50 finalistas do Prêmio Portugal Telecom, edição 2009. Outra obra publicada em 2009 antes de sua morte foi Caga-Regras, em que se pode ler: “Estou sempre esbarrando em alguém para ser livre. Se houvesse liberdade o mundo seria uma loucura. [...] Hospícios são lugares tão bonitos ... lembram os cemitérios.” Além de obra escrita, Souza Leão também deixou obras plásticas, que pintou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, e algumas obras musicais, participando do CD Melopéia, de Glauco Mattoso, e musicando poemas seus para o projeto da banda “Krâneo e seus neurônios”. É na entrevista de 2009, ao Jornal Vaia de Porto Alegre, que complementou o que se observou em arquivo: que Souza Leão relata que queria ser, inicialmente, locutor de rádio e que sua relação com a escrita se deu primeiramente aos 18 anos ao escrever letras de músicas. Seguiu-se a isso a escrita de poesias.5 Após sua morte prematura, aos 43 anos, a família constituiu um curador para sua obra, o poeta e jornalista Ramon Nunes Mello, que faz um trabalho importante em relação à memória do autor e à divulgação de sua obra: capitaneou a publicação de alguns de seus livros em editoras importantes, realizou a curadoria da exposição de suas obras plásticas no MAM do Rio de Janeiro, atuou em uma peça de teatro adaptada do livro Todos os cachorros são azuis, assinou a pesquisa, argumento e roteiro do documentário em longa-metragem Tudo vai ficar da cor que você quiser e realizou a doação do acervo literário de Rodrigo de Souza Leão para o Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa (2013), assim como a doação do seu acervo pictórico ao Museu de Imagens do Inconsciente (2012). 6 5 “Eu sou esquizofrênico. Descobri isso — apesar de já ter sintomas desde os 15 anos — somente aos 23. Consegui me formar com 22, em Jornalismo. Queria ser locutor de rádio. Nunca tinha escrito nada, nem pensava em literatura. Meu negócio era ouvir rádio e ser DJ. Meu irmão comprou uma bateria e começaram os ensaios aqui em casa. Comecei a querer cantar. De locutor, passei a sonhar com o canto. Fiz aulas com o tenor Paulo Barcelos. Comecei a cantar na banda Pátria Armada. Toquei no Circo Voador, na Metrópolis, no Let it Be, no Made in Brazil entre outros: locais onde a Legião, Paralamas e Capital tocavam. Comecei a escrever letras de música. Foi meu primeiro contato com a escrita. Aos 18 anos. Depois passei a escrever poemas.” Entrevista a Fernando Ramos. Disponível na seção Entrevistas do site http://www.rodrigodesouzaleao.com.br/. Acesso em 27/05/2018. 6 Maiores detalhes em: http://www.rodrigodesouzaleao.com.br/files/hor/biografia.htm Acesso em: 27/05/2018. 64 | Performances Culturais O arquivo pessoal digital de Souza Leão (98% do acervo é digital), caracterizado como híbrido, chegou no AMLB em 2013 em quatro tipos de mídias (disquetes, DVD, CD e pendrive) e compreendia, como conteúdo, correspondências (correio eletrônico), poemas, contos, crônicas, fotografias, desenhos, filmes, músicas etc. (RONDINELLI; ABREU, 2015). Quando examinado in loco por mim em 2017, o Fundo Rodrigo de Souza Leão compreendia 12 seções: concursos e prêmios, correspondência, cursos, documentos colecionados, documentos complementares, documentos de imagem em movimento, documentos iconográficos, documentos pessoais, documentos sonoros, produção intelectual, produção intelectual de terceiros, produção intelectual NI (não identificada). Na época, o arquivista informou que não foi o produtor do arquivo que organizou dessa maneira, mas sim foi um trabalho da equipe da AMLB responsável pelo acervo. Respeitando a regra número um da Arquivologia, qual seja, manter a ordem recebida pelo produtor, mas na impossibilidade disto, o arranjo mais orgânico possível foi nortear as tipologias pelas atividades/funções do arquivado.7 A produção literária de Souza Leão está toda neste acervo digital que tem cerca de 2,23 Gigabytes até então. Das 12 seções do arquivo, divididas em dossiês, destacaram-se as seguintes, pelo teor e pelas temáticas destes: seção 2 (Correspondências), seção 7 (Documentos Iconográficos) e seção 10 (Produção Intelectual), sendo esta última de maior interesse para o presente texto. A seção 10 (Produção Intelectual) está subdividida em seis subseções: Música, Poemas, Produção de Publicações Eletrônicas, Produção em Publicações Eletrônicas, Projetos e Prosa. Alguns de seus conteúdos serão examinados a seguir. 7 A fim de adentrar a discussão sobre os detalhes e problemas a serem resolvidos com este tipo de arquivamento digital, com todas as normas arquivísticas respeitadas e discussões teóricas realizadas, remeto os leitores ao excelente texto, já citado acima, sobre a constituição deste acervo digital, dos autores Rondinelli e Abreu, 2015. Também, de forma mais detalhada, a fim de ler sobre a gênese, identidade (questões de autenticidade) e processamento do arquivo pessoal digital, ver a dissertação de mestrado de Abreu (2017) no PPG em Gestão de Documentos e Arquivos da UNIRIO. Nádia Maria Weber Santos | 65 Existe a possibilidade, pelo exame do material e de seus depoimentos diversos, que Souza Leão tenha propositadamente constituído seus textos e seus arquivos digitais pensando em resistência de sua literatura a todo o impacto da Psiquiatria em sua vida, de seus diagnósticos e da vida reclusa que acabava por ter. Rodrigo era ciente de seu diagnóstico mental, sabia dos efeitos adversos dos medicamentos, lia muito a respeito, tinha pai psiquiatra e usava isto nas criações e análises que fazia do mundo ao seu redor. Como exemplo, chamam atenção os títulos e os conteúdos de sua produção, na poesia e na prosa. É o que será exposto e discutido na próxima seção deste artigo. No âmbito das Performances Culturais, é importante prestarmos atenção na dimensão política de um ato de salvaguarda digital de produtos culturais produzidos também espontaneamente e que, em algum momento, foram o “repertório” de Souza Leão, conceito que Taylor (2013) identifica em oposição ao arquivo. Ele atuou em seu corpo, efêmero, performances de sua loucura que, em momentos seguintes, se transformavam em escritos digitais que guardaram sua memória, seja no Blog Lowcura que escrevia, seja em arquivos de seu computador. “As tecnologias digitais nos convidarão, mais e mais, a reformular nossa compreensão de questões como ‘presença’, lugar (agora o site online, não localizável), efêmero e incorporação.” (TAYLOR, 2013, p. 29). Sensibilidades, performance e resistência: a loucura em prosa e verso Na obra de Souza Leão, há uma enorme quantidade de títulos, letras de músicas e poemas que se referem a nomenclaturas psiquiátricas e psicológicas, como alguns nomes de doenças, de sintomas e seus sentimentos em relação ao que se passa com ele – expressos em prosa ou em versos – e até mesmo em músicas. Ao performatizar a loucura vivida por ele, em prosa e verso e com muita sensibilidade, Rodrigo estabelece não somente uma via de expressão individual que o livra da inexpressividade comum a 66 | Performances Culturais certos estados mentais e medicamentosos (SANTOS, 2008), como também localiza culturalmente a resistência contra as práticas da psiquiatria exercidas sobre pacientes, com seus diagnósticos estanques e tratamentos homogeneizantes de coquetéis de remédios psicotrópicos. “As performances incorporadas têm sempre tido um papel central na conservação da memória e na consolidação de identidades em sociedades letradas, semiletradas e digitais.” (TAYLOR, 2013, p. 21). Um exemplo de documento na subseção Música, da seção 10, chamase DJ Krâneo e Surtomania, é o que revela: “Ele é o que restou de si mesmo e de internações psiquiátricas”. No CD “Surtomania” há: “Bem-vindo a este mundo de loucura musical”.8 Algumas letras das músicas são instigantes e essa, em especial, chama atenção: Esquizofrenia “Estou preso Quero sair Grito socorro Para alguém me ouvir Fico angustiado Todo tremendo Falta-me o ar A cabeça doendo Estou mal Passo mal”. (RSL, s. d).9 Na série “Poemas avulsos”, há poesias com conteúdo expressivo de sua situação mental, muito sensíveis e que, de forma direta ou indireta, tocam em diversos motivos que movem sua vida: tristezas, sexo, poesia, loucura, medicação, música, internação psiquiátrica, entre outros. Alguns poemas são muito curtos, outros, longos. Nesses um imenso desfile de 8 Tenho a permissão de Ramon Nunes Mello, curador da obra de Souza Leão, para citar em material acadêmico alguns excertos da obra recolhidos do arquivo digital pessoal. 9 Letra de uma música, consta no Fundo Rodrigo de Souza Leão, seção 10, subseção Música. Sem data. Acesso em abril de 2017. AMLB, FCRB. Nádia Maria Weber Santos | 67 símbolos aparece, cuja maioria, se interpretados agora, mostraria o aspecto criativo de sua personalidade que transformou a doença e a dor psíquica em versos. No poema “Ainda ontem”, ele revela sua angústia frente à loucura que o acomete, sem cura, e se refugia na literatura... Havia um louco No século passado Que via dois sóis E se curou lendo Rousseau Quando fecho os olhos vejo muitos sóis Quantos sóis há em nós Quantos livros para ler Quando a cura virá? (RSL, s. d).10 Os conteúdos de sua loucura, ou desequilíbrio psicológico, aqui são representados pelos sóis, por esta luz solar interior que permite que se olhe para dentro e aí se busque a cura. A dele, parece claro como seus sóis, é na literatura e na escrita. Seja com Rousseau, Rimbaud ou Baudelaire (personagens frequentes e importantes em seus escritos), é a literatura que o faz sair de seus estados conturbados, que ele mesmo descreve em prosa ou em verso, na maioria das vezes usando metáforas que o colocam em paralelo com textos literários de outros escritores que passaram por questões semelhantes, entre internações e crises de loucura. Cura, aqui, não significa, em meu entender, a cura médica, mas a cura da “alma”, instigada pela loucura, mas também pelo espírito criador. Mesmo que sua literatura seja considerada por muitos como uma literatura da urgência, uma “literatura-limite escrita em um estado emergencial”11, ou uma escrita autobiográfica, não é desprezível, O poema “Ainda ontem”, consta no Fundo Rodrigo de Souza Leão, seção 10, subseção Poemas, Série Poemas Avulsos. Sem data. Acesso em maio de 2017. AMLB, FCRB. 10 11 O desenvolvimento do conceito de Literatura de urgência é proposto pela professora Dra. Luciana Hidalgo, “para definir um tipo de escrita realizado sob estado de emergência, consolidado como inscrição capaz de ir além das técnicas de controle corporal no hospital psiquiátrico”, quando ela estuda a obra “Diário de Hospício” de Lima Barreto. “Demonstra-se como esta literatura nasceu conspurcada, contaminada pela loucura e pela rotina no manicômio, sendo simultaneamente uma escrita de si criada para defender o eu acuado ante a instituição e um documento de valor histórico capaz de denunciar, pelo viés do paciente, minúcias do dia-a-dia psiquiátrico, constituindo uma literatura não-oficial do hospício. Esta escrita do extremo, esta narrativa-limite inventada para 68 | Performances Culturais muito antes pelo contrário, a quantidade e a qualidade de sua produção escrita, digital, original e criativa. Ao invés, eu afirmaria mesmo que é uma literatura de resistência a tudo isto a que ele é submetido – resistir às internações, resistir ao diagnóstico imposto, resistir às impressões familiares sobre ele, resistir psiquicamente aos efeitos adversos e nefastos das medicações psicotrópicas. Ao resistir, ele escreve. Ao escrever, ele resiste. E assim constituiu uma vasta obra. Sua prosa também é reveladora de imagens e sensibilidades sobre a loucura. No livro Todos os cachorros são azuis – que consta, também, no acervo, na subseção Prosa, da seção 10, de Produção Intelectual (publicado em vida, em 2008) –, o autor revela um surto psicótico e uma internação psiquiátrica do personagem, misturando ficção e realidade. O romance inicia no capítulo intitulado “Tudo ficou Van Gogh” com a frase “Engoli um chip ontem”, e continua com “Danei-me a falar sobre o sistema que me cerca. Havia um eletrodo em minha testa, não sei se engoli o eletrodo também junto com o chip. Os cavalos estavam galopando. Menos o cavalomarinho que nadava no aquário.” (RSL, 2008, p. 9).12 Segundo ele, na entrevista de 2009 supracitada, embora tenha apresentado sintomas de esquizofrenia desde os 15 anos, foi com 23 que a descobriu, ao pensar que havia engolido um grilo, transformado na metáfora do chip em seu texto ficcional e depois no próprio grilo. Tudo começou quando eu engoli um grilo em São João da Barra. Eu tinha 15 anos de idade. Estava indo ou voltando. Sempre estava indo ou voltando. Só parava para voar. Assim eram meus 15 anos, e foi como tudo começou. Nenhuma mulher saiu de mim. Nunca. Fui eu que sempre entrou em minha mãe. Lá estava ela bela e bonita, transando com papai. E eu vi, e era apenas mil novecentos e setenta. Não foi um trauma. Eu costumava andar com um cachorro azul de pelúcia. Meu cachorro não era gay por ser azul. (RSL, 2008, p. 11). enfrentar uma situação-limite, teve a função de compensar o corpo louco, funcionando como ponte do não-ser, aniquilado pela instituição, com o ser integral, pleno. ” Disponível em: http://www.abralic.org.br/ eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/005/LUCIANA_HIDALGO.pdf Acesso em 27/05/2018. 12 Embora tenha visto o livro no arquivo, aqui dá-se a referência ao livro publicado pela editora 7 Letras em 2008. Referência completa ao final. Nádia Maria Weber Santos | 69 Engolir um chip é uma imagem um tanto comum no imaginário de muitos doentes em surto psicótico. Embora ele tenha dito na entrevista mencionada que não tinha alucinações, em sua ficção ele relata experiências muito fortes e paradigmáticas de surtos psicóticos alucinatórios e de conteúdos persecutórios. Todos consideravelmente simbólicos. O eletrodo pode estar fazendo menção ao eletrochoque que recebeu e que é mencionado em outras partes do livro. Na entrevista de 2009 ao Jornal Vaia – já indicada neste texto, e que ora também utilizamos como fonte fidedigna de sua história de vida –, ele argumenta que esse livro começou a ser escrito em 2001, após sua segunda internação psiquiátrica e onde ele mixou suas duas internações, fazendo uma espécie de catarse: “Ao mixar as duas experiências eu fiz uma catarse muito forte. Algo que busquei foi uma linguagem próxima à da loucura”. (RSL, entrevista, 2009).13 Aqui também dá a entender que ele fez uma resistência ao seu estado de louco, estado este incompreendido no início, mas que com o tempo foi estudado por ele e transformado em prosa e verso. O autor se coloca como fazendo experimentações com a linguagem, criando a partir de suas experiências e das experiências de seu irmão, que também tinha diagnóstico psiquiátrico e sofria de alucinações, os personagens e as situações de hospício. “Também misturei pessoas e criei fatos. Eu não sofro alucinações. Tenho sensações persecutórias. Sou portador de uma esquizofrenia específica, chamada atualmente de distúrbio delirante. Nunca ouvi vozes. Nem tive delírios. Achava e ainda acho que sou perseguido por agentes.” (RSL, entrevista, 2009).14 Algumas imagens são fortes e denotam o sofrimento pelo qual passou nas internações com as técnicas utilizadas pela medicina: “Botaram tubos em mim e começaram a fazer sucção. Fui abduzido por extraterrestres 13 Entrevista a Fernando Ramos. Disponível na seção Entrevistas do site http://www.rodrigodesouzaleao.com.br/. Acesso em: 27/05/2018. 14 Entrevista a Fernando Ramos. Disponível na seção Entrevistas do site http://www.rodrigodesouzaleao.com.br/. Acesso em: 27/05/2018. 70 | Performances Culturais [...]. Tudo ali era Akineton” (RSL, 2008, p. 13), nesse excerto ele faz menção ao medicamento utilizado para cortar o efeito de impregnação por doses elevadas dos antipsicóticos. Vivo sedado e cheio de doses altas de remédio na veia. Tudo para ser invadido por uma música, tudo para manter a boa ordem do estado. Somos a minoria, mas pelo menos falo o que quero [...] O bom do cachorro azul é que ele não crescia e não morria. O negócio era cuidar para que ele não envelhecesse [...] O cachorro azul era minha melhor companhia [...] Se ele pudesse latir e comer, o que comeria um cachorro azul? Alimentos de sua cor? E se adoecesse, tomaria remédio azul? Muitos remédios são azuis, entre eles o Haldol. Eu tomo Haldol para não ter nenhuma ilusão de que morrerei louco, um dia, num lugar sujo e sem comida. É o fim de qualquer louco (RSL, 2008, p. 14). Como revela na entrevista (2009), ele quis se afirmar pela linguagem e não se mostrar um “coitado” por ter sofrido as internações e por ser acometido de loucura. Também não teve a intenção de fazer um elogio à loucura, pois diz que essa o atrapalha, e muito. O cachorro azul, que dá nome ao livro e se refere a um bicho de pelúcia da infância, tem a mesma cor do remédio antipsicótico que ingeria diariamente desde os primeiros surtos. Isso simboliza, na prática e na ficção, a possibilidade de controlar a loucura. Na história do simbolismo comparado, o cachorro é um animal relacionado à cura, pois está associado, na mitologia grega, ao deus Asklépio, ou a Esculápio dos latinos, o deus da Medicina. “Seu conhecimento, do além e do aquém da vida humana faz com que o cachorro seja apresentado como um herói civilizador, quase sempre como conquistador ou senhor do fogo”. (CHEVALIER, 2009, p. 409) Assim, o cachorro azul, embora seja um símbolo relacionado ao bicho de pelúcia de sua infância (CUNHA, s.d), aparece aqui como um psicopompo, que, como o deus grego Hermes, faz a ponte entre os dois mundos, no caso, entre os mundos dos deuses e dos homens, ou seja, metáfora do mundo do inconsciente e da consciência. A performance é mediada por um símbolo. Nádia Maria Weber Santos | 71 Na prosa de Souza Leão15, há elementos que demonstram sua intimidade com as Letras e com os aspectos criativos de sua psique. Ele transpõe para o mundo ficcional não somente o que ele pensa e sente, mas muito de sua visão de mundo – sobre a loucura, sobre a liberdade, sobre o sexo, sobre a criação. Ele demonstra ter ciência de sua dupla condição de louco e de artista ao mesmo tempo. O que poderia ser uma entrega simplesmente passiva a um estado de loucura permanente e sem objetivo, na pasmaceira de uma vida encoberta por medicamentos que embotam a energia psíquica de uma mente, ele transformou em ato criativo mediante sua arte, seja literária (principalmente), seja musical ou até mesmo plástica, de seus últimos anos de vida na EAV do Parque Lage. Ele teve forças para reagir até onde conseguiu. É uma literatura de esforço e resistência, por ler muito e por procurar compreender o que se passava com ele.16 Corrobora essa análise a afirmação feita a Fernando Ramos, quando questionado sobre literatura e liberdade (“Literatura é a procura de liberdade”, diz o entrevistador). Ele responde: “A liberdade só é possível na arte”, e esta sua assertiva está fielmente retratada na metáfora do hospício, na obra Todos os cachorros são azuis, ao se referir à sua primeira internação que, segundo ele, foi a mais traumática por ter sido levado em camisa de força e por ter sido enclausurado em um cubículo, quase uma jaula: A primeira liberdade é sair do cubículo. A segunda liberdade é andar pelo hospício. Liberdade é só fora do hospício. Mas a liberdade mesmo não existe. Estou sempre esbarrando em alguém para ser livre. Se houvesse liberdade o mundo seria uma loucura com todo mundo. Eu podendo sair por aí com Rimbaud e Baudelaire. Viajando pra Angra dos Reis. (RSL, 2008, p. 20). 15 Alguns de seus textos em prosa foram publicados postumamente pelo curador de sua obra e estão sendo por mim estudados. Todos versam sobre loucura, em diferentes aspectos. São eles: Me roubaram uns dias contados [Record, 2010, apresentação de Leonardo Gandolfi], O Esquizoide (Record, 2011, apresentação de Silvana Guimarães); Carbono Pautado (Record, 2012, apresentação de Franklin Alves Dassie); e Todos os cachorros são azuis (2010 – 2ª edição, apresentação de Jorge Viveiros de Castro) este último, publicado em Londres (And Other Stories, 2013, tradução de Stefan Tobler e Zoë Perry) e no México (Sexto Piso, 2013, tradução de Juan Pablo Villalobos). Fonte: Link biografia do site http://www.rodrigodesouzaleao.com.br/ Acesso em: 27/05/2018. 16 Há outras entrevistas no site que foram lidas e, portanto, já se faz aqui uma interpretação do que se leu. Ver a Seção Entrevistas do site http://www.rodrigodesouzaleao.com.br/ 72 | Performances Culturais Ou seja, a liberdade está em suas viagens literárias, que os poetas citados representam e que são os personagens do livro. Em sentido conotativo, ele já tinha afirmado o que sua racionalidade alcança numa entrevista. Porém, ele analisa que a liberdade na escrita é obra de uma inspiração divina, de um xamã; ou seja, não foi ele a escrever, escrevia como se estivesse possuído por um deus diferente: Não de um demônio que me atormentava, mas sim de um novo deus. Um deus pagão, muito maior que eu. Acredito em inspiração. Não fui eu quem escreveu o livro. Acredito que um Xamã me ditou. Alguma força superior me impulsionou a escrever. Foi diferente de escrever livros lineares. (RSL, entrevista, 2009). Mesmo dizendo que ele não possui processo criativo, ele produz num estado perto do onírico, o que lhe confere grande proximidade com o inconsciente criativo. Reproduzo aqui um excerto importante de sua entrevista: Escrevia todo dia uma lauda no Word. Sempre no mesmo horário. Depois que acordava. Os sonhos estavam próximos. Acho que essa "oniricidade" (essa proximidade) ajudou. Não consigo, quando escrevo, ter um controle exato do que escrevo. Simplesmente, não tenho processo criativo. Não monto mapas e nem escaletas e não faço pesquisas. Procuro ser o mais espontâneo possível. Como se pudesse falar tudo o que quero e contar uma história sem ter uma ordem. Não foi algo planejado para ser assim. Surgiu. Pintou. E como pintou, ficou. (RSL, entrevista, 2009). Voltando à sua poesia e para terminar as reflexões neste texto, reproduz-se aqui um poema que faz parte da série “Meia Dúzia” e que aparece no site do escritor, editado por Mariza Lourenço e Silvana Guimarães. Chama-se “Tributo”, verso único, que contempla sentimentos de desconforto para consigo e sua escrita, para com a vida e, mais, para com alguns críticos: não tem uma teoria que explique o que sinto Nádia Maria Weber Santos | 73 não tem ninguém que nunca não mentiu alguém pode vir aqui e escolher entre os poemas errados que escrevi nesses últimos vinte quatro anos: é um número gay power diria que não sou gay, mas não é isso que pensam. pensem o que quiserem os pensadores. o pensamento foi feito para ser livre como este verso. aliás, que versinho sem vergonha. nunca mais escrevi alguma coisa que preste. acho que estou condenado a isso; melhor seria me calar ou manter minha abstinência poética. é que a vida tem tão pouca poesia para tanto poeta que insisto nessa linha de força. como se só restasse isso a fazer. (RSL, s.d, grifos meus).17 Porém, também é neste verso que ele performatiza e explicita sua capacidade de resistir a tudo que é adverso e continuar a escrever: “é que a vida tem tão pouca poesia, para tanto poeta que insisto nessa linha de força. Como se só restasse isso a fazer.” Sua sensibilidade de escritor, louco e lúcido, surge em seus escritos como bálsamo de si mesmo, seu oásis, onde é possível, ao mesmo tempo, se deleitar e fazer resistência, como seus comparsas e “alter-egos” – Rimbaud e Baudelaire – tão citados ao longo de sua vasta obra digital. Considerações finais Citando a historiadora Sandra Pesavento (2007, p. 10) – uma das pioneiras no Brasil na reflexão sobre a importância de se pensar e trabalhar com as sensibilidades na História –, “as sensibilidades são uma forma de apreensão e de conhecimento do mundo para além do conhecimento científico, que não brota do racional ou das construções mentais mais elaboradas.” Ela afirma que a esfera das sensibilidades provém do corpo, numa reação-resposta à realidade, e “como forma de ser e estar no mundo, Poema “Tributo”, da série Meia Dúzia. Disponível em http://www.rodrigodesouzaleao.com.br/. Acesso em 19/08/2018. 17 74 | Performances Culturais a sensibilidade se traduz em sensações e emoções, na reação quase imediata dos sentidos afetados por fenômenos físicos ou psíquicos, uma vez em contato com a realidade.” Pois bem, mesmo se expressando na materialidade de objetos, textos, pensamentos, o indivíduo tem condições de exprimir seu ser sensível e dar forma (performar) a seus anseios mais escondidos, aos seus estados de alma mais inconscientes, aos seus percalços na vida mais inenarráveis (o repertório “sensível”, tomando emprestado o termo de Taylor [2013]). No caso de Souza Leão, por ser um poeta e um escritor que se auto reconhece como tal, tem-se esta sensibilidade, que salta de seu corpo e de sua psique, transformada em processo criativo nos atos performáticos de resistência ao seu sofrimento. Para Jung (2010a), a criatividade humana se comporta como um instinto, ou seja, é compulsivo, mas não é universalmente difundido nem é uma organização fixa e herdada invariavelmente. Ou seja, como instinto surge no ser humano e se instala em determinadas condições favoráveis ao seu desenvolvimento. (SANTOS, 2007). Diz ele: Prefiro designar a força criativa como sendo um fator psíquico de natureza semelhante à do instinto. Na realidade, há íntima e profunda relação com os outros instintos, mas não é idêntico a nenhum deles. Suas relações com a sexualidade é um problema muito discutido, e sem muita coisa em comum com o impulso a agir e com o instinto de reflexão. Mas pode também reprimir todos estes instintos e colocá-los a seu serviço até à autodestruição do indivíduo. A criação é, ao mesmo tempo, destruição e construção. (JUNG, 2010b, p. 55, grifos meus). Esse autor ainda postula a existência de um “complexo criativo” na psique humana e afirma que toda obra humana é fruto da fantasia criativa. É na obra O espírito na arte e na ciência (JUNG, 2010b) que o autor mostra como o “complexo criativo” surge numa obra de arte, independente da psicologia pessoal consciente de seu criador, a qual, de maneira alguma, explica a totalidade da sua obra. Sendo os conteúdos dos delírios de muitos Nádia Maria Weber Santos | 75 pacientes psiquiátricos também simbólicos, não deveriam ser considerados patológicos, mas expressão de algo, dentro deles, que quer tomar forma e vir à tona – muitas vezes, transformando-se em obras criativas, porque simbólicos. Juntam-se aqui sensibilidade, instinto criador e impulso para resistência de tudo o que incomoda, mas também de tudo o que pode surgir como novo, na vida atormentada pela doença e pelas técnicas que, em princípio, serviriam para tratá-la. Tendo experiência em interpretar materiais simbólicos, tanto de sonhos como de escritos, percebo que as imagens que Souza Leão revela, e desvela, possuem uma coerência com seu imaginário e com o imaginário de uma época, mesmo que metamorfoseados em símbolos próprios, como o cachorro azul. Seus símbolos são prenhes de significados e são imagens sensíveis que contêm uma força metafórica para nosso período histórico. Seu instinto criativo foi levado às últimas consequências nas performances de sua alma, se pensarmos em sua vasta obra deixada em seu acervo e em sua morte, caso ela tenha sido o suicídio de que alguns falam: criação e destruição. Em Rodrigo de Souza Leão, há um jogo entre Rodrigo autor e Rodrigo personagem (CUNHA, s.d) que é visível em alguns poemas e nos Blogs que escreveu. São peças, às vezes conscientes e às vezes inconscientes, de seu quebra-cabeça giratório – ou de seu caleidoscópio de imagens interiores que foram tão bem expressas em suas pinturas. Na entrevista citada, ele alega: “Tenho até certa dificuldade de escrever. Pode parecer fácil, mas não é. Eu não faço plano. Sento e vou escrevendo. De modo que essa ambientação onírica é muito mais inconsciente do que consciente.” (RSL, entrevista, 2009). Aqui fica expresso, em poucas palavras, seu processo criativo. Dessa maneira, suas palavras corroboram as assertivas de Jung a respeito da criatividade humana e as de Pesavento sobre as sensibilidades: sua criatividade brota do inconsciente, “sem planos” e de forma sensível; ou seja, naquilo que é “onírico”, sua fantasia criadora, se expressa nos produtos materiais a que tem acesso – sua prosa e sua poesia. 76 | Performances Culturais Os estudos no campo interdisciplinar – eu até diria, melhor, transdisciplinar – das Performances Culturais passam a estabelecer relações entre a criatividade na vida cotidiana, seus aspectos simbólicos e as memórias e sensibilidades/subjetividades que vêm à tona em suas expressões. Para Taylor (2013, p. 44), “a performance traz consigo a possibilidade de desafio, até mesmo de autodesafio”. A autora refere que o termo performance, simultaneamente, conota “um processo, uma práxis, uma episteme, um modo de transmissão, uma realização e um modo de intervir no mundo” (TAYLOR, 2013, p. 44). A estudiosa, considerando performance como um “sistema de aprendizagem, armazenamento e transmissão de conhecimento” (TAYLOR, 2013, p. 45), embasa nossa observação empírica da obra de Rodrigo de Souza Leão, em que aparece claramente a autocompreensão que ele possuía do seu estado de desequilíbrio psíquico em alguns momentos e a consequente expressão simbólica inerente a um autodesafio imposto de não sucumbir à loucura e à sua prática milenar de exclusão social (SANTOS, 2008, 2013). Com isso, ele transmite seu conhecimento, que, ao mesmo tempo, é individual e coletivo, subjetivo e objetivo, sensível e memorial. Portanto, ele intervém no mundo, performatizando seu estado de consciência, como muitos outros, antes dele, o fizeram (SANTOS, 2013). Referências ABREU, Jorge Phelipe Lira de. Existir em bits: gênese e processamento do arquivo nato digital de Rodrigo de Souza Leão e seus desafios à teoria arquivística. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Gestão de Documentos e Arquivos, UNIRIO, Rio de Janeiro, 2017. CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. CUNHA, Graciane. A urgência de ser: uma análise da escrita autobiográfica em Todos os cachorros são azuis e O hospício é deus. Disponível em http://www.rodrigode souzaleao.com.br/files/hor/sobre_ele/sobre_ele43.htm. Acesso em: 27/05/2018. Nádia Maria Weber Santos | 77 DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In: BATTCOCK, Gregory. A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 2002. JUNG, C.G. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 2010a. JUNG, C. G. O Espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 2010b. PESAVENTO, S. J.; LANGUE, F. (Orgs.). Sensibilidades na história: memórias singulares e identidades sociais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. RONDINELLI, R.C.; ABREU, J. P. L. A organização do arquivo digital de Rodrigo de Souza Leão: implicações arquivísticas, diplomáticas e tecnológicas. In: OLIVEIRA, Lucia Velloso, VASCONCELLOS, Eliane. Arquivos Pessoais e Cultura: uma abordagem interdisciplinar. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2015. SANTOS, N. M. W. Arte, loucura e instinto criativo: incursões na psicologia analítica. In: LURDI BLAUTH; RAQUEL WOZIACK. (Org.). Arte e Psicologia: intervenções possíveis. 1. ed. Novo Hamburgo: Editora da Feevale, 2007. SANTOS, Nádia Maria Weber. Histórias de sensibilidades e narrativas da Loucura. Porto Alegre: Ed. da Universidade/ UFRGS, 2008. 320p. SANTOS, Nádia Maria Weber. Histórias de vidas ausentes: a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental. Passo Fundo, Editora da UPF, 2005. 1. ed. 191p. 2. ed revista e ampliada. São Paulo: Edições Verona, 2013. TAYLOR, D. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. BH: Editora da UFMG, 2013. TRAVANCAS, I., ROUCHOU, J. HEYMANN, L. (ORGS). Arquivos Pessoais – reflexões multidisciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro: FGV, 2013. 78 | Performances Culturais Fontes 18 SOUZA LEÃO, Rodrigo de Souza. Site. Disponível em http://www.rodrigodesouzaleao.com.br Acesso em 19/08/2018. SOUZA LEÃO, Rodrigo de Souza. Todos os cachorros são azuis. Rio de Janeiro: 7 letras, 2008. SOUZA LEÃO, Rodrigo de Souza. Os inumeráveis estados poéticos. Entrevista a Fernando Ramos. Jornal Vaia. Porto Alegre. MAIO 2009. Disponível em http://www.rodrigodesouzaleao.com.br. Acesso em 19/08/2018. 18 Além dos sites e blogs fidedignos sobre o autor, tive a oportunidade, no Rio de Janeiro, de conversar com duas pessoas importantes a fim de compreender melhor a vida e a obra de Souza Leão. O curador de sua obra, o escritor e jornalista Ramon Nunes Mello, que me contou um pouco sobre Rodrigo, algumas peculiaridades de sua vida e internações, sobre a ida de seu acervo para o AMLB da FCRB, sobre a sua fase como pintor no Parque Lage. Mello me autorizou a pesquisar o acervo de Souza Leão, coletar material para meus escritos e ir no Museu de Imagens do Inconsciente ver as pinturas e tomar algumas fotografias. A outra pessoa foi o arquivista estagiário do AMLB da FCRB, Jorge Phelipe Lira de Abreu, Mestre em Gestão de Documentos e Arquivos pela UNIRIO, onde defendeu a dissertação intitulada Existir em bits: gênese e processamento do arquivo nato digital de Rodrigo de Souza Leão e seus desafios à teoria arquivística. Abreu me explicou tudo sobre o acervo digital da obra de Souza Leão e é um dos responsáveis pela sistematização do acervo. Agradeço ambos as oportunidades que me deram de me aproximar dessa instigante obra e personalidade ímpar. 4 Narrativas dançadas: entre tradições populares e a cena contemporânea Renata de Lima Silva Luciana Hartmann Introdução Em um interessante evento, intitulado Festival de Narratividades: Encontro e Conto, realizado em Goiânia, de 15 a 28 de agosto de 2018, uma mesa de debate que poderia ser inusitada se torna um potente ponto de encontro entre uma antropóloga, Luciana Hartmann, um dramaturgo, Luís Alberto de Abreu, e uma artista da dança, Renata de Lima Silva. O mote para a conversa foi a confluência entre “Teatro Narrativo e a Narrativa na Dança”. Após o frutífero debate surgido nessa mesa, continuamos – bastante inspiradas por Luís Alberto de Abreu – a aprofundar nosso diálogo, pensando nas relações entre narrativa e dança. Na ocasião, Abreu relatou as dores e as delícias de seus encontros, enquanto dramaturgo, com grupos cujo trabalho cênico tende a buscar confluências não evidentes entre texto e corpo, criando uma dramaturgia própria, na qual o texto não opera necessariamente como protagonista1. Na esteira desse debate sobre corpo, cena, movimento e narrativa, nós nos propomos, neste artigo, a tecer um diálogo entre duas experiências distintas que aqui se complementam: de um lado, a experiência de 1 Este é o caso do espetáculo Cabras, da companhia paulistana Balagan, dirigido por Maria Thais. http://www.ciateatrobalagan.com.br/espetaculos/cabras/ 80 | Performances Culturais Luciana com narrativas e performances e, de outro, a experiência de Renata com a dança, tanto no contexto da cultura afro-brasileira tradicional como das danças contemporâneas. Esse “um lado” e “outro” é tomado aqui não como uma polarização, mas como a possibilidade de gingar – o movimento da capoeira, a ginga, será adotado aqui como um conceito operativo para enriquecer nosso debate, utilizando a experiência empírica como plataforma de reflexão.2 Para introduzir essa ginga, trabalharemos com a noção de que a narrativa é uma forma de expressão da experiência que passa pelo corpo. Keleman contribui com nosso argumento: Contar uma história funciona como um organizador que ajuda a corporificar a sua experiência. Não somente o ajuda a organizar o sentido, mas também faz o significado nascer de dentro, mesmo, do seu self corporal. O ato de contar histórias organiza as respostas numa forma narrativa que você pode usar para dar sentido e direção à sua experiência. (KELEMAN, 2001, p. 98). Ora, se a narrativa não é uma ideia fantasma, isto é, distanciada do corpo, e a dança é o corpo em transfiguração poética, quais seriam os nexos e os sentidos que se depreendem dessa ginga, em que o balanço (transferência de peso) se dá entre a narrativa e a dança e o eixo é o corpo, com tudo que o constitui, como, por exemplo, a questão da memória? A ginga, como a encruzilhada3, é um locus tangencial de africanidades brasileiras, de fluxo, de entrada e saída, mas que se afirma menos em uma lógica territorial, como ocupação de espaço, e mais como ato. A ginga – que na capoeira é o princípio dinâmico de atacar e se defender, de lutar, brincar e dançar, entrar e sair – pode ser entendida como ato ou efeito de gingar, um trejeito de corpo, um meneio que aqui queremos fazer, tendo o corpo como eixo e pendulando entre a discussão sobre narrativa e dança, mas também entre tradições populares e na cena contemporânea. 2 Para maiores informações sobre a capoeira e a ginga no contexto dos estudos da performance, ver Gravina (2012) e Head (2009). Leda Maria Martins (1997) desenvolve uma importante reflexão sobre o papel da “encruzilhada” como operador conceitual na compreensão das manifestações expressivas afro-brasileiras. 3 Renata de Lima Silva; Luciana Hartmann | 81 Antes de adentrar na discussão proposta, no entanto, é importante que se diga que, quando distinguimos os contextos das tradições populares e da cena contemporânea, não pretendemos enfatizar uma dicotomia, frequentemente estéril, mas chamar atenção para tipos distintos de produção cultural, sem ignorar o que as tradições populares têm de contemporâneas, nem o que a dança contemporânea, sobretudo no contexto da dança negra, pode ter de tradição. Importante que se diga que tradição, em ambos os contextos, é entendida aqui como algo praticado, como performance (HYMES, 1975). Compreendemos o contexto das tradições populares, entre outros atributos, como aquele tipo de produção cultural feito por uma comunidade para sua própria comunidade, sem intenção imediata de comercializar ou exibir o feito como produto cultural, sendo que a principal motivação para a realização da performance está ligada menos a questões profissionais e mais a questões relacionadas ao âmbito da fé, da identidade de grupo e/ou de vínculo afetivo com determinado local e contexto cultural. O antropólogo José Jorge de Carvalho ajuda a situar o que estamos defendendo como “popular”: as culturas populares podem ser concebidas, em termos gerais, como um conjunto heteróclito de formas culturais – música, dança, autos dramáticos, poesia, artesanato, ciência sobre a saúde, formas rituais, tradições de espiritualidade – que foram criadas, desenvolvidas e preservadas pelas milhares de comunidades do país em momentos históricos distintos. Elas se presentificam independentes umas das outras, ainda que em simultaneidade, todas com relativa autonomia em relação às instituições oficiais do Estado, embora estabelecendo com elas relações constantes de troca e delas recebendo algum apoio eventual ou intermitente. (CARVALHO, 2010, p. 44).4 Por seu turno, quando nos referimos à cena contemporânea, estamos falando especificamente daquele tipo de produção voltada para artes do O autor vai criticar justamente a “espetacularização” e a “canibalização” que ocorrem com a mercantilização das formas culturais tradicionais pela indústria do entretenimento. 4 82 | Performances Culturais espetáculo. Essa, embora possa ter alguma medida de identificação, devoção ou vínculo com tradição, é pensada e realizada em uma lógica profissional e comercial. Destacar esses dois contextos não é atribuir a eles juízo de valor, nem ignorar os grupos e/ou comunidades que atuam simultaneamente em ambos, ou têm suas produções em um limiar dinâmico entre o ritual e o espetáculo, servem tão somente como categorias de análise para refletir sobre as relações entre narrativa e dança. Essas se apresentam não como um jogo entre duas partes distintas, mas como uma ginga que balança de um lado para outro, desestabilizando seu próprio eixo. A ideia de ginga como operador conceitual, portanto, nos parece adequada para pensar africanidades brasileiras performadas por meio da dança, evocando uma estética e episteme negra. Para não incorrer no risco de generalizações escorregadias, tomaremos como exemplo algumas manifestações de marcada identidade e participação negra para pensar esses distintos contextos de produção: de um lado o Cacuriá e o Jongo e, de outro, as chamadas “Danças Afro”. Abordaremos todas essas como “performances culturais”, compreendidas, de acordo com Singer (1972), como formas de expressão artística e cultural que obedecem a uma programação prévia da comunidade, com uma sequência determinada de atividades, local próprio para sua ocorrência, horário de início e fim (embora esses não sejam necessariamente precisos), e que são expressas por meios comunicativos diversos, como narrativas, canto, dança, artes visuais. Antes, porém, faremos uma breve discussão sobre a linguagem da dança e sua relação, ou não, com a narrativa. A narrativa na dança Renata de Lima Silva; Luciana Hartmann | 83 A dança, como arte do movimento, é transfiguração poética do corpo no tempo e no espaço imediato, capaz de criar seu próprio tempo e instaurar o espaço nas tensões entre o dentro e fora; e nessas camadas de sentidos a dança prescinde de narrativa. Será? Se pensarmos na narrativa como o relato (não literal) de um acontecido ou de uma série de acontecimentos encadeados, capaz de tapear o passado, enganar o pretérito e driblar o ontem, pegando uma carona na memória para irromper no presente, no aqui e agora, não só como fato, mas como memória e como invenção? A narrativa pode emergir, assim, como história encantada, ficcionalizada, como uma máquina do tempo, que tanto pode se projetar para o passado como para o futuro. A narrativa permite passear pelo passado e transformar o que já aconteceu. Da mesma forma, espiar o futuro se torna possível pelo exercício da imaginação. Depois de contada, uma história cria asas, pode viajar, ser recontada aqui ou em qualquer lugar, amanhã ou daqui 5, 10, 15 dias, meses, anos. Nunca se sabe onde uma história vai parar, ela pode morrer, continuar vivendo ou renascer. Será mesmo que a dança não tem nada a ver com isso? Se olharmos para a história “oficial” da dança, para o percurso da Dança Clássica, Moderna e Contemporânea, por exemplo, fica claro que o rompimento da narrativa, é, na verdade, uma conquista, um voo libertário em busca da autonomia do movimento como linguagem própria da dança. O movimento em si e para si. Sobre esse aspecto, Susanne Langer afirma: [...] a dança é o surgimento de uma presença. Rompe daquilo que os bailarinos fazem, mas é qualquer coisa mais. Ao olharmos uma dança, não vemos o que está fisicamente a nossa frente – pessoas que dão voltas a correr ou contorcendo os corpos – Aquilo que vemos é o desdobramento de forças que interagem, e graças as quais a dança parece elevar-se, ser transportada, atraída, concluir-se ou diluir-se [...] Um corpo humano pôs o jogo inteiro dos seus poderes misteriosos diante de nós. Mas esses poderes, essas forças que aparecem em ação na dança, não são as forças físicas dos músculos do bailarino, as quais são de fato a causa de tais movimentos. As forças que julgamos perceber da maneira mais 84 | Performances Culturais direta e convincente são criadas para nossa percepção; e não existe senão para ela. (LANGER apud GIL, 2004, p. 42). Essa ideia de “qualquer coisa a mais” que nos fala Susanne Langer é endossada pelo filósofo português José Gil. Este, ao observar o fenômeno da dança a partir do trabalho de artistas como Merce Cunningham, Steve Paxton, Yvone Rainer, Pina Bausch entre outros, compreende como “plano de imanência” em uma perspectiva deleuziana. Nas palavras dele: [...] porque a dança cria um plano de imanência, o sentido desposa imediatamente o movimento. A Dança não exprime, portanto, o sentido, ela é o sentido (porque o movimento é o sentido). [...] A Dança constrói o plano de movimento onde o “espírito e o corpo são um só’”, porque o movimento do sentido desposa o próprio sentido do movimento: dançar é não ‘significar’, ‘simbolizar’ ou ‘indicar’ significações ou coisas, mas traçar o movimento graças ao qual todos esses sentidos nascem. No movimento dançado, o sentido torna-se ação (GIL, 2004, p. 78-79). O autor desenvolve seu argumento defendendo que, na dança, o movimento é o próprio pensamento do corpo, e que o sentido do movimento é o próprio movimento, não existindo a necessidade de tradução. Nessa perspectiva, pode-se inferir que todo o esforço de traduzir um pensamento, ideia ou sentimento em movimento dançado pode incorrer no risco de uma literalidade ou no esvaziamento semântico da arte da dança. Essa análise sobre a autonomia do movimento na dança se aplica confortavelmente ao contexto da dança contemporânea, que, em suas múltiplas possibilidades de acontecer, não busca, a priori, uma codificação e se consolida justamente na busca pela não representação – fugindo da caricatura. E como essa percepção do movimento na dança se relacionaria com as performances negras? Sim, porque nos parece que cada contexto cultural possui epistemologias próprias que necessitam ser compreendidas devidamente para que, nesse processo, não sofram prejuízo ético e estético. Para endossar nosso argumento, abordaremos inicialmente o Cacuriá, do estado do Maranhão, bastante relacionado com as festividades do Renata de Lima Silva; Luciana Hartmann | 85 Divino Espírito Santo, mas que ganha vida própria, inclusive nos chamados grupos parafolclóricos que, por vezes, atuam no limiar entre o ritual e o espetáculo; e depois o Jongo, também chamado de tambu, tambor ou caxambu, natural da região sudeste do país. Na sequência, trataremos das chamadas Danças Afro, conhecidas como danças afro-brasileiras, danças negras contemporâneas, que ocorrem no cenário das artes contemporâneas. O Cacuriá O Cacuriá é uma dança de origem maranhense que foi criada, de acordo com os descendentes de seus fundadores, por Dona Filoca (Florinda) e Seu Lauro (Alauriano), em 1975, na cidade de Guimarães/MA, e levada posteriormente para a capital do estado, São Luís. Sobre a origem do termo Cacuriá não há um consenso. Delgado, em sua dissertação de mestrado (2005), aponta que pode ter relação com a palavra “curiá”, usada no Maranhão quando se quer observar ou bisbilhotar algo: “Vem cá curiá”. Os interlocutores também contam que o carimbó era tocado em cacos de cuias, logo o Cacuriá seria um cruzamento vocabular formado pelas palavras caco e cuia. Originalmente uma dança maranhense, o Cacuriá agrega vários outros ritmos e festas da região, como o Carimbó de Caixas, o Bumba-meuboi, a Festa do Divino Espírito Santo e as Festividades Juninas. Ritmado pelo ritmo pulsante das caixas (espécie de tambores que são feitos geralmente com couro de boi), o Cacuriá é dançado em coreografias cujos movimentos estão em grande parte pautados nos encontros e relações de maior ou menor contato corporal estabelecidos entre os pares que formam o grupo. São narrativas que dançam o encontro, a relação, a brincadeira, o jogo de sedução. A partir de uma movimentação padrão, baseada no movimento ondulado dos quadris, os dançarinos de Cacuriá vão imprimindo suas marcas pessoais – cada um tem sua personalidade. O repertório musical que 86 | Performances Culturais anima a dança, em geral, é composto de canções (letras e músicas) bastante conhecidas, muitas delas adaptadas de outras tradições locais para o ritmo do Cacuriá, ou compostas pelos próprios membros dos grupos (HARTMANN, 2013). O Cacuriá rapidamente se difundiu, não apenas no Maranhão, mas também em diversos estados brasileiros. Em São Luís, uma das caixeiras do grupo de Lauro e Filoca, Almerice da Silva Santos, mais conhecida como Dona Teté, foi convidada, em 1980, a integrar o Laborarte5, participando de espetáculos de dança. Pouco tempo depois, ela formou grupos de Cacuriá com crianças de escolas públicas do Estado; e, em 1986, cria, com o mesmo grupo – o que é hoje conhecido como o Cacuriá de Dona Teté –, sem dúvida o Cacuriá com maior reconhecimento no país, servindo de referência para o “gênero” na atualidade (DELGADO, 2005, p. 42). O Jongo O Jongo é uma manifestação expressiva que se constituiu basicamente a partir da contribuição cultural dos negros de língua banto, advindos do território congo-angolano e trazidos para o Brasil para trabalhar na condição de escravos, nas fazendas de café e cana-de-açúcar do Vale do Rio Paraíba, região Sudeste (ABREU; MATOS, 2007, 2008). Tratase de uma prática que se encontra no limiar da brincadeira e da relação com o sagrado, por vezes, relacionando-se de forma direta com elementos da Umbanda. Uma grande roda se abre a partir dos tambores, que, a caráter, são: candongueiro e o tambu e mais raramente a puíta. As pessoas mais envolvidas com o ritual do Jongo circulam no sentido anti-horário e fazem uma saudação aos tambores, num gesto de respeito e oração. O Jongo já pode começar. Laborarte – Laboratório de Expressões Artísticas – um grupo artístico independente, com mais de 40 anos de trabalhos culturais, nas áreas de teatro, dança, música, capoeira, artes plásticas, fotografia e literatura, desenvolvidos no Maranhão. 5 Renata de Lima Silva; Luciana Hartmann | 87 Ao som de pergunta e resposta entre puxador e coro, de palmas e da percussão, o primeiro casal ocupa o centro da roda. Eles executam a dança de passo marcado, no caso do Jongo da cidade de Guaratinguetá, ambos começando com a perna direita, (com transferência de peso para o centro) como se fosse encontrar com o quadril do outro (menção da umbigada); depois giro completo pra direita; pisa com a esquerda (com transferência de peso para o centro), cruzando com a do companheiro e começa novamente. O passo completo tem 8 tempos. Outra possibilidade comum de passo do Jongo de Guaratinguetá é: avança com a direita (com transferência do peso para o centro) como se fosse encontrar quadril com quadril (menção da umbigada), giro para direita, pisa com a direita e já retorna para o começo do passo. O passo completo tem 6 tempos. Depois de uma breve evolução do casal, um dos dois é substituído e o jogo é adotado por outro. A rigor, o homem tira o outro homem para poder dançar com a mulher e vice-versa. No entanto, não é raro os homens estarem em minoria e se ver na roda mulheres dançando com mulheres. Inúmeras improvisações podem acontecer a partir dessa base de pé de dança: pequenos saltos, pausas, agachamentos e movimentos com os braços ou não. Como no Cacuriá, cada dançarino desenvolve seu estilo, buscando sempre a complementaridade no movimento do outro. A movimentação do homem representa um cortejo à mulher, estando presente na dança, embora de maneira muito sutil, um jogo de sedução. A movimentação acontece em um espaço circular. Os pés são plantados no chão, e a coluna pode fazer ligeira ou acentuada inclinação para frente. Tradicionalmente, os pontos de Jongo possuem um denso arsenal mito-poético, com pontos de visaria, demanda e de saudação ao tambor. Os pontos de visaria são para louvar os participantes da roda, saudar visitantes e “saravar” os jongueiros velhos; os pontos de demanda ou “gurumenta” são aqueles em que se estabelece o desafio, o encante e os enigmas a serem decifrados, prática de tempos hodiernos hoje praticamente extinta. 88 | Performances Culturais As relações de jogo no Jongo se dão no diálogo entre os tambores, no canto de pergunta e resposta, na interação entre os tambores e as palmas e, também, no jogo coreográfico, essencialmente de complementação. O pé de dança de um brincante se completa no pé de dança do outro, existe esse compromisso com a dança e ainda com o ritmo, que o padrão de movimento da dança deve acompanhar. O Jongo, de origem banto, é tradicional do sudeste brasileiro. Ele cria o seu sentido na dança, no jogo; isto é, na relação com o outro (jogo). Como essa é uma dança que participa do complexo das chamadas sambas de umbigada ou batuques de umbigada, faz menção à umbigada, do quimbundo semba. Na África congo-angolana, está associado aos rituais de lembamento, ou seja, de casamento e de fertilidade. Nesse contexto, o elemento coreográfico umbigada, que no caso do Jongo de Guaratinguetá aparece apenas em termos de menção, é um movimento que de alguma forma “narra” uma relação ancestral com a ideia de ventre e fertilidade. Como se pode perceber nessa breve apresentação, as duas danças tradicionais em questão acionam elementos semelhantes. Acreditamos que esses podem ser analisados a partir do conceito de “motrizes”, desenvolvido por Zéca Ligiéro em diálogo com o filósofo congolês Kia Fu-Kiau, que visa dar conta da complexidade das dinâmicas das performances culturais afro-brasileiras. Estas combinam elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o espaço, a narrativa, entre outros (LIGIÉRO, 2011). Voltaremos a eles adiante. O público também exerce um importante papel em ambas as manifestações. Recorremos então à antropóloga Rita Amaral (1998) que, baseada na obra de Jean Duvignaud, considera a participação do público como um critério classificatório para eventos festivos. Nesse sentido, as festas poderiam ser classificadas de duas maneiras: Festas de Participação e Festas de Representação. Nas primeiras, estão incluídas as cerimônias públicas nas quais a comunidade participa integralmente, consciente dos mitos ali representados e dos símbolos utilizados. As últimas são aquelas Renata de Lima Silva; Luciana Hartmann | 89 que diferenciam “atores” e “espectadores”. Enquanto os atores são em número restrito e participam diretamente, os espectadores são muito mais numerosos e têm uma participação apenas indireta no evento, ao qual atribuem uma dada significação, e pela qual são mais ou menos afetados. Se tomarmos essa forma de classificação para pensarmos o Cacuriá e o Jongo, podemos perceber que há uma alternância entre uma forma e outra, pois embora inicialmente haja uma separação entre “atores” (dançarinos) e “espectadores”, os últimos são frequentemente chamados a participar diretamente, dançando e cantando, em diversas canções. Tradições, identidades e narrativas Tanto no Cacuriá como no Jongo, duas manifestações expressivas de identidade negra, o sentido do movimento esbarra ou transita por outros sentidos, seja na mimese ou no simbolismo da umbigada. Todavia, para além desses sentidos do movimento nessas danças, parece-nos que a discussão levantada por José Gil a respeito do sentido do movimento também não se aplicaria cegamente no contexto das performances negras; pois, a nosso ver, mesmo que não haja intencionalidade representativa na dança, existe inevitavelmente, uma representação ou apresentação identitária, que se manifesta nos corpos dos performers em termos de resistência. Em alguma medida, é enfrentamento político, já que são manifestações originadas em linhas de fuga do projeto colonial que atuou (e ainda atua) de forma intermitente da escravidão às políticas de legitimação do conhecimento. Assim, podemos dizer que na performance negra o corpo anuncia em seus contornos identidades negras em movimento. Aqui, identidade negra é abordada como sinônimo de negritude, conceito que se consolida a partir de um discurso de afirmação étnico-racial que engloba aspectos políticos, ideológicos e culturais e que tem na consciência de uma ancestralidade africana seu ponto de partida (SILVA; FALCÃO, 2015). 90 | Performances Culturais Nesse contexto, podemos entender tanto o Cacuriá como o Jongo como performances da ancestralidade, nas quais tradição e memória são desenhadas no espaço-tempo ritual pela dramaturgia do corpo que tem na relação com o tambor um importante ponto de conexão e jogo Nos batuques, nas congadas, na capoeira, no candomblé e pelo tambor, se ecoa a transgressão da ordem do sistema escravocrata em que a comunidade negra inscreveu uma afirmação étnica. Por esse som a ancestralidade reverberou nos corpos de pessoas que tiveram sua condição humana violentada pela escravidão e se tornou resistência que reverbera hoje (SILVA; ROSA, 2017, p. 254). O conceito de ancestralidade se torna o núcleo da materialização da performance negra em que o corpo se manifesta por meio de uma “memória dramatizada” (MARTINS, 1997). Esta noção, desenvolvida por Lêda Maria Martins, pode ser relacionada à ideia de conhecimento incorporado (incorporated knowledge), utilizado por Hastrup (1994), que trata da “natureza corpórea do conhecimento”. Para ela, modelos culturais são incorporados, tanto no sentido de que são internalizados nas práticas corporais diárias, quanto no sentido de que sãos expressos (externalizados) mais em ações do que em palavras. No contexto das danças tradicionais em questão neste artigo (o Cacuriá e o Jongo), percebe-se que os conhecimentos, as histórias, as memórias ancestrais africanas e da experiência da diáspora são acionadas, produzindo narrativas dançadas. E as Danças Afro com isso? Em um salto do que descrevemos como sendo o contexto das danças tradicionais, em que operam manifestações como o Cacuriá e o Jongo, para a cena contemporânea da “Danças Afro”, arrastamos a noção de ancestralidade africana como criadora de sentidos para o movimento dançado. Embora se busque nessa cena de dança ideias próprias do campo das artes, como, por exemplo, originalidade – que no contexto das danças tradicionais não é algo importante –, trata-se de uma linguagem que não tem a Renata de Lima Silva; Luciana Hartmann | 91 pretensão de um discurso de neutralidade ou de universalidade, assumindo uma identidade afrodescendente como forma de engajamento social e artístico. De acordo com Ferraz, as Danças Afro podem ser entendidas como: [...] toda prática que se instiga, seja na diversidade das danças encontradas no continente africano, seja nas expressões derivadas dos povos da diáspora, dispersos pelo mundo. Ela não é monopólio dos africanos da África. É produto de todos os artistas que criam a partir de suas experiências e vivências como afrodescendentes, mas também se inspiram numa ideia de negritude, seja porque atualizam ancestralidades revivendo sentidos de pertencimento ou recriam simbologias da cultura afro-brasileira construindo com o corpo imagens, movimentos e fragmentos de dinâmica a ela associados. (FERRAZ, 2012, p. 35-36). Podemos pensar, portanto, em consonância com Ferraz, que as imagens, movimentos e fragmentos da cultura afro-brasileira, evocadas pelas Danças Afro, também “contam histórias”. Inúmeros artistas espalhados pelo Brasil, de norte a sul, dedicam-se ao estudo e trabalho com as Danças Afro, a partir de referências africanas, isto é, do estudo direto ou indireto com professores de dança que tiveram suas formações no continente africano, ou em danças elaboradas a partir de referências oriundas do contexto afro-religioso, mais especificamente as danças dos orixás, ou mesmo do reaproveitamento estético de manifestações populares tradicionais, como é o caso dos balés folclóricos. Vale ainda citar as escolas que tiveram como referência os norte-americanos Katherine Dunham (1909 - 2006) e Clyde Morgan (1940 - ), trazendo para as danças afro-brasileiras influências estadunidenses, como é o caso de Mercedes Baptista que – além de ter sido bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro – teve a oportunidade de estudar com Katherine Dunham. Possivelmente uma das principais características do que pode ser chamado de Dança Afro, ou melhor, das Danças Afro, é o fato de serem constituídas na confluência de diversas experiências de dança, isto é, de forma híbrida, o que se pode constatar na trajetória de Mercedes: 92 | Performances Culturais Mercedes, munida de uma vivência eclética, pôde fazer confluir em sua criação agenciamentos múltiplos capazes de produzir uma dança singular, organizada entre redes de contaminação, em meio a parcerias inusitadas. Nelas imbricamse a dança clássica, a dança moderna americana, a produção teatral revisteira, a ideologia nacionalista, a pesquisa de campo no interior das macumbas cariocas, o engajamento político, a indústria cultural cinematográfica e de entretenimento, a corporalidade das danças afro-diaspóricas, sejam elas enquadradas como folclóricas, populares, ou urbanas, todas sobrepostas e articuladas forjando um estilo de dança harmonizado e coerente. (FERRAZ, 2012, p. 120-121). A partir do exemplo de Mercedes Baptista, uma das precursoras da dança nomeada Afro, podemos compreender essa como fruto da fusão de diversos elementos que tanto permitem sua identificação como a colocam em fricção com outras danças. Não faremos no contexto deste artigo uma discussão sobre a pertinência do termo Dança Afro para tais práticas culturais, vale, porém, salientar que nomes alternativos têm sido propostos por artistas em busca de um aprimoramento conceitual de sua arte (MONTEIRO, 2011). Utilizamos aqui o termo Dança Afro por ser esta uma noção utilizada correntemente e que acaba por marcar uma distinção das danças no contexto das culturas e tradições, operação que a noção de Dança Negra não faz. Trazemos para esse artigo manifestações tão distintas como o Cacuriá, o Jongo e as Danças Afro, justamente para pensar a abrangência e a complexidade das danças negras, capazes de atuar simultaneamente no contexto da tradição, da devoção, da brincadeira e do espetáculo. Considerações Finais Neste artigo procuramos defender que conhecimentos incorporados pelas comunidades negras se manifestam na ginga das narrativas dançadas. Para isso, propomos pensar a narrativa na dança como possibilidade de compreensão dos sentidos do movimento na performance negra. Tanto Renata de Lima Silva; Luciana Hartmann | 93 o sentido do verbo sentir, em termos sinestésicos, como o sentido que remete ao significado. Retomando o profícuo debate que tivemos com o dramaturgo Luís Alberto de Abreu no evento mencionado, aproveitamos para buscar uma aproximação final entre o teatro narrativo e a narrativa na dança. Para Abreu, no sistema narrativo: (...) o público é o interlocutor privilegiado, a relação “olho no olho” entre personagens no palco transfere-se para “olho no olho” entre ator/narrador/personagem e público. A ponte obstruída pela “quarta parede” é novamente aberta. O sistema narrativo também lança mão da maior contribuição que público pode trazer ao espetáculo: uma imaginação ativa. Através da narrativa o público é também construtor das imagens do espetáculo e o espetáculo teatral, ao invés de ser um sistema predominantemente sensível, torna-se também um sistema fortemente imaginativo. No entanto, a vantagem maior do sistema narrativo é que ele não exclui o vigor da representação dramática. Ao contrário, a abriga dentro de si, possibilitando inumeráveis combinações entre narração e representação. O limite é, de fato, a imaginação do palco e da platéia. (ABREU, 2018). Dentre os vários elementos mencionados pelo dramaturgo, percebemos fundamentalmente que, não apenas do público do teatro narrativo, mas também do público da dança, tanto tradicional quanto contemporânea, é demandada uma “imaginação ativa”. Também na dança há inumeráveis combinações não apenas entre narração e representação, mas também entre narração e performance, “presentação”. Nessa ginga reflexiva, importa destacar que, a despeito de sua orgânica e vital vinculação com a tradição, as danças tradicionais em questão também foram forjadas pelos processos de criação. Também há que se considerar que as Performances Negras Tradicionais estão vivas e ativas na contemporaneidade; isto é, não são artefatos de um passado esquecido e saudoso. Já as danças Afro, por seu lado, desde sua denominação, também se vinculam às tradições, porém nos fazem perceber uma ambiguidade: ao mesmo tempo em se apresentam como lócus privilegiado para a democratização das linguagens do corpo negro, toda sua estrutura, 94 | Performances Culturais bem como suas próprias técnicas, por vezes são formadas por concepções e epistemologias hegemônicas ocidentais. Mas esse é um debate que merece outro artigo... Finalmente, verificamos que, nesta ginga entre as Performances Negras Tradicionais (Cacuriá e Jongo) e as Danças Afro, alguns elementos se anunciam como constantes, embora em maior ou menor grau: a evocação de uma negritude6; uma vinculação direta ou indireta com a ancestralidade africana e a construção do movimento dançado numa relação íntima com o tambor. Aqui podemos retomar as motrizes propostas por Zéca Ligiéro e Fu Kiau e pensar na tríade “cantar-dançar-batucar”, usada para indicar o denominador comum das performances negras. A esta tríade, recentemente Ligiéro, juntamente com os membros de seu grupo de pesquisa, somaram o elemento “contar” (LIGIÉRO, 2017). Fechamos aqui, portanto, o ciclo de nosso argumento: a importante presença da narrativa, no nosso caso, dançada, nas performances afro-brasileiras, tanto tradicionais quanto contemporâneas que cantam, dançam, batucam e contam histórias, seja para sua própria comunidade, seja para as plateias dos teatros. 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Nas feiras de Vaudeville, onde os primeiros filmes circulavam, entre peças de teatro, atrações de circo e espetáculos de magia ou curiosidades, a nova atração mimetizava atenções e fascínios. O cinema figurava entre ícones do progresso e os avanços técnicos do século, representando o coroamento de uma busca humana que remontava à pré-história: apreender o mundo visível em movimento e mecanicamente. A magia do cinema surpreende e instiga o espírito humano desde então. Mais fácil de ser compreendida do que a escrita, a linguagem cinematográfica fez com que o cinema logo fosse saldado por pensadores, educadores, além de cineastas e políticos como uma invenção revolucionária. Apesar do entusiasmo desde seu nascimento, o século do cinema mantém como desafios as estratégias de construção de narrativas, as significações atribuídas ao mundo da experiência e as relações socioculturais e históricas que o fenômeno cinematográfico apresenta. Os trabalhos realizados, ao longo desse primeiro século, tornam evidente que os filmes vêm, sistematicamente, escapando a um enquadramento teórico-metodológico nos diversos campos de pesquisa que o tomaram como objeto. Gostaríamos de propor, nesse contexto, que tomássemos o cinema como fenômeno cultural. Acreditamos que tomar a exibição de um filme 98 | Performances Culturais como objeto de análise exige que, além da linguagem que caracteriza sua produção, outras relações socioculturais e históricas sejam reconhecidas para que uma abordagem mais precisa possa ser formulada. No texto que ora apresentamos, partimos dessa premissa para sugerirmos uma alternativa teórico-metodológica àquelas que aparecem em muitos estudos. Trata-se de enfrentar uma questão antiga, recorrendo às ferramentas teóricas que têm contornado dificuldades noutros campos de pesquisa, incorporando muitas das reflexões de autores que têm contribuído para avançar nas pesquisas. Ao abordarmos assim os filmes, é necessário esclarecer que consideramos que com o cinema surge uma forma de representação característica das sociedades urbanas e industriais, nas quais as relações sociais vêm se caracterizando, historicamente, por serem cada vez mais mediadas pelos meios de comunicação. Filmes tomados como fenômenos socioculturais, historicamente inseridos nas sociedades contemporâneas nos fazem reconhecer que eles, de um lado, disseminam formas de compreensão das relações que engendram essas sociedades; de outro, representam essas mesmas relações, conforme elas são concebidas pelos agentes sociais e/ou indivíduos que compõem os contextos socioculturais e históricos da produção e da recepção da obra – esta segunda situação deve ser tomada em sua especificidade.1 No que diz respeito à recepção de um filme, como qualquer outro bem cultural, é necessário considerá-la como outra produção que “evidentemente não fabrica nenhum objeto, mas constitui representações que nunca são idênticas às que o produtor, o autor ou o artista, investiram na sua obra” (CHARTIER, 1989, p. 59). 2 Noutros termos, a produção de significados de obras culturais não se circunscreve a um dos polos do 1 A recepção precisa ser categorizada de forma mais precisa, histórica e socioculturalmente, bem como o ambiente no qual a exibição, efetivamente, se realiza. Na análise, os elementos mais significativos são aqueles relativos à cultura e, por isso, muito das convenções que podem atribuir deslocamentos de significados precisam ser reconhecidos em suas dimensões, como as exibições numa sala de cinema, numa escola, numa praça, na televisão. Os locais não alteram tão radicalmente a construção de significados, mas promovem modos distintos de atribuir significados à obra e sua importância. 2 Aqui estamos nos remetendo as reflexões de Chartier, mas, em certa medida, também a Eco (1991) e Certeau (1996). Roberto Abdala Junior | 99 processo comunicativo, como se prescrevia anteriormente, mas resulta das interações sociais ocorridas no momento mesmo da exibição da obra – no caso do cinema.3 Os processos de produção de significado não se restringem, tampouco, às interanimações discursivas escritas. Afinal, o próprio Bakhtin sempre insiste que a composição da enunciação – objeto de investigação – proposto por ele e por nós – é resultado de interações dos elementos verbais, mas também dos não verbais que entram no campo da experiência do público. Assim, é preciso recorrer a um quadro teórico articulado e interdisciplinar que inclua investigações e pesquisadores de Cinema e sua linguagem, mas também de Performances Culturais, Antropologia, Psicologia e História. Afinal, o cinema oferece uma experiência inusitada das práticas “performáticas”, exatamente por incorporar cenários reais e/ou criados, movimentos de câmeras e a montagem aos conhecidos e complexos artifícios e convenções teatrais. Outro elemento fundamental em um trabalho que pretende lidar com a produção cinematográfica nessa chave de interpretação refere-se à cultura. Uma definição de cultura adequada a um objeto como o cinema deve, de um lado, reconhecê-la como “essencialmente semiótica” e, de outro, considerar que se constitui de uma “teia de significados” que fundamentam e caracterizam o que é próprio do homem. Assim, consideraremos que a construção dos significados atribuídos ao mundo da experiência exige o emprego da linguagem ou, para ser mais contemporâneo, das linguagens.4 Um quadro teórico para orientar reflexões que envolvem o cinema lida, obrigatoriamente, com cultura, linguagem e os processos socioculturais e 3 4 Consultar a respeito Bakhtin (1997), Certeau (1996), Canclini (2006), Abdala Jr. (2017). A respeito da definição de cultura, tomada essencialmente de Geertz, é importante salientar que o capítulo 2 da obra de Geertz, A interpretação das culturas (1989), poderia muito bem ser tomada como sendo a introdução de uma obra de Vygotsky. Por outro lado, Chartier recorre a Geertz para definir um conceito de cultura (1989, p. 67) que, na tradução brasileira da obra, foi apresentado da seguinte forma: “O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.” (GEERTZ, 1989, p. 15, grifo nosso). 100 | Performances Culturais históricos segundo os quais uma dada sociedade atribui significados ao mundo da experiência. Nesse contexto, as reflexões que formulamos a seguir assentam-se, forçosamente, em teses de tradições acadêmicas distintas. Nesse sentido, a primeira seção do nosso trabalho voltar-se-á para esclarecer as possibilidades de refletirmos sobre um tema que vem sendo tratado diferentemente pelos diversos campos de conhecimento. O historiador da História Cultural tem buscado apreender significados atribuídos ao mundo por meio de textos que o representam, pesquisado as práticas de escrita e leitura nos contextos históricos nos quais eles foram engendrados. O teórico da Psicologia Sociocultural vem estudando e empregando as teses de dois teóricos “soviéticos” – Vygotsky e Bakhtin – em reflexões e pesquisas voltadas para os processos de construção do conhecimento. A novidade que Wertsch apresenta é, depois de um mergulho nas obras desses autores, como suas teses são complementares e podem ser empregadas de forma articulada para apreender processos de construção de conhecimento. Em uma análise das obras de Roger Chartier e James Wertsch, é possível observar que os autores se debruçam sobre seus respectivos objetos com premissas teóricas que se aproximam. Algumas aproximações se operam, ao considerarem, primeiramente, que os significados dos discursos são modelados pelos contextos socioculturais e históricos nos quais ocorre a enunciação. A seguir, postulam que os significados dos discursos se configuram como resultado de dinâmicas que envolvem disputas e confrontações entre sujeitos e/ou agentes sociais nesses contextos. Finalmente, reconhecem que os processos de atribuição de significados são realizados segundo práticas socioculturais concretas, nas quais estão envolvidos sujeitos e/ou agentes sociais que empregam os discursos. Wertsch defende que as teses de Vygotsky e Bakhtin inovam ao converterem o foco das análises para os contextos nos quais os processos ocorrem de foma concreta, respectivamente, o de aprendizagem e o de atribuição de significados. Seu argumento é que se Vygotsky defende que Roberto Abdala Junior | 101 os processos de aprendizagem (realizados por meio de mediadores semióticos) nascem nas interações sociais, e que para Bakhtin os significados de discursos são modelados pelos contextos socioculturais e históricos nos quais ocorre a enunciação, as teses desses autores podem ser empregadas de forma articulada.5 Assim, o resultado dos estudos de Wertsch vem sugerindo possibilidades de envolvimento dos conceitos desses teóricos em processos cognitivos que têm como foco práticas sociais de produção de significados realizadas em contextos socioculturais e históricos concretos, nos quais a linguagem (mediadores semióticos/ferramentas culturais) é empregada. Os trabalhos de Wertsch, seguindo Vigotski e em diálogo com Geertz, assentam-se na premissa de que a formação da mente humana é resultado de processos sociais nos quais os sujeitos estão inseridos. Ancorado nessa premissa, o autor propõe uma compreensão semiótica e antropológica da cultura na qual nascem os processos de configuração do subjetivismo individual, de aprendizagem, bem como da construção de memórias coletivas que são compartilhadas pelos membros da sociedade em foco. Tomando as reflexões de Vygotsky e Bakhtin como referência, Wertsch (1988, p. 29) argumenta que a inserção de uma nova “ferramenta cultural” nos processos cognitivos humanos o transforma de maneira essencial, como um novo instrumento transforma um processo de trabalho. Tomando então o contexto nos quais os sujeitos estão inseridos como elemento que fundamenta suas reflexões, análises e pesquisas, o autor nos ajuda a apreender processos socioculturais com os quais o homem contemporâneo interage com filmes, seus significados e o uso de sua linguagem, formulando sua identidade, seus processos de aprendizagem, a compreensão de si mesmo e do mundo. A Linguagem do cinema 5 As obras de Wertsch nas quais o autor defende o argumento estão elencadas nas referências. 102 | Performances Culturais No caso do tratamento da linguagem do cinema, recorremos, por um lado, a argumentação de dois teóricos do cinema que consideram a imagem como fundamento do cinema: Jean Mitry (1989) e Jacques Aumont (1995, 2001). Por outro, tomamos como referência abordagens de filmes que recorrem às teses de Bakhtin,6 realizadas por autores como Robert Stam (1992) e Robert Burgoyne (2002). Assim, buscamos sugerir um emprego diferenciado das teses bakhtinianas em dois processos diferentes: a) na leitura/apreensão da diegese fílmica, buscando compreender o discurso fílmico a partir das interações imagéticas que o trabalho da montagem do filme realiza; b) nas possibilidades de interação entre o público e a obra cinematográfica. Nosso argumento, como pode se depreender dessa introdução, é que as teses do pensador Mikhail Bakhtin, de um lado, permitem que se estabeleça uma interface entre os trabalhos que lidam com uma psicologia voltada para a apreensão dos processos de interação socioculturais, tornando-se uma ferramenta importante para analisar as relações entre as obras nascidas em uma determinada época e os contextos socioculturais e históricos da sua produção e recepção. Por outro lado, constituem-se em uma estratégia metodológica para abordagem de filmes, tomando as produções do cinema enfocando sua enunciação/exibição, considerando-a um fenômeno sociocultural historicamente situado. Vejamos, pois, mesmo que de forma sumária, as principais concepções do filósofo da linguagem “soviético”. Discursos e diálogos em contextos definidos: o enunciado As teses de um pensador certamente não podem ser resumidas de maneira tão estreita. No entanto, torna-se essencial corrermos o risco de sumariar alguns dos mais importantes conceitos bakhtinianos para darmos continuidade as nossas reflexões. Como deve ter ficado claro na 6 As teses de Bakhtin representam um referencial teórico-metodológico que apresenta avanços significativos para a apreensão de discursos audiovisuais, como os filmes que, segundo Stam (1992) e Flanagan (2004), transcendem limitações de outros enquadramentos teóricos. Roberto Abdala Junior | 103 nossa argumentação, consideramos que as teses de Bakhtin abrem uma possibilidade de surpreender os sujeitos (e/ou agentes sociais que representam) no momento em que realizam, concretamente, a atribuição de significados ao mundo, permitindo a análise do horizonte conceitual (ideológico) e o sentido histórico que pretenderam conferir aos discursos que o “apreendem e estruturam”, em contextos socioculturais definidos. O pensador russo, em sua obra, caracteriza os discursos como dialógicos. O conceito de dialogismo7 é central nas proposições do autor, porque é ele que converte o foco da análise dos discursos para o enunciado. A partir dessa premissa, Bakhtin reflete sobre a ação de enunciação, pretendendo esclarecer as relações que se estabelecem entre texto e contexto, argumentando: Um sentido definido único, uma significação unitária, é uma propriedade que pertence a cada enunciação como um todo. Conclui-se que o [significado da enunciação] é determinado não só pelas formas lingüísticas que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entonações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação. (BAKHTIN, 1997, p. 128).8 Sob a ótica bakhtiniana, portanto, o contexto de enunciação modela os significados dos discursos. No entanto, salienta Bakhtin, é preciso reconhecer que a composição dos contextos de enunciação não se restringe somente Estamos empregando o conceito de dialogismo como sugere o argumento de Stam: “Bakhtin, caracteristicamente, estende o sentido de interação verbal, que é apenas outra denominação para “diálogo”, no sentido primário do discurso entre duas pessoas a outros domínios até mesmo metafóricos. Essa concepção ampla de dialogismo, considerada como o modo característico de um universo marcado pela heteroglossia, oferece inúmeras implicações para os estudos sobre cultura. A concepção de “intertextualidade” (versão de “dialogismo”, segundo Julia Kristeva) permite-nos ver todo texto artístico, mas também com seu público. Esse conceito multidimensional e interdisciplinar do dialogismo, se aplicado a um fenômeno cultural como um filme, por exemplo, referir-se-ia não apenas ao diálogo dos personagens no interior do filme, mas também ao diálogo do filme com filmes anteriores, assim como ao “diálogo” de gênero ou de vozes de classe no interior do filme, ou o diálogo entre as várias trilhas (entre a música e a imagem, por exemplo). Além disso, poderia se referir também ao diálogo que conforma o processo de produção específico (entre produtor e diretor, diretor e ator), assim como as maneiras como o discurso fílmico é conformado pelo público, cujas reações potenciais são levadas em conta.” (STAM, 1992, p. 33-34). 7 Bakhtin emprega o conceito “tema” para se referir ao significado de uma enunciação historicamente situada, mas como a abordagem historiográfica vem se definindo como um elemento fundamental para analisar obras culturais, não o empregaremos, mantendo o termo enunciação. (BAKHTIN, 1997, p. 128). 8 104 | Performances Culturais aos elementos verbais, mas, igualmente, aos elementos não verbais da situação. Assim, a análise bakhtiniana do significado do discurso retorna ao contexto, pois a ação de enunciação não ocorre em situações ideais, mas, ao contrário, em contextos socioculturais e históricos concretos. Nessa perspectiva, Bakhtin define dois contextos discursivos diferentes nos quais se realizam os “diálogos”: um mais complexo e amplo, da “comunicação cultural” – dos discursos científicos, artísticos, políticos etc. – e outro, mais concreto, com os quais dialoga mais imediatamente – o contexto dos interlocutores do grupo ou meio (BAKHTIN, 1992). O autor, como está explícito na citação, não toma somente o texto para buscar seu significado. Ao buscar apreender os significados, volta-se para o contexto e argumenta que os discursos apresentam duas formas de apreciação: a entonação expressiva e a voz. Mas, a apreciação mais significativa, aquela que é própria de cada discurso é a “voz”. A voz bakhtiniana do discurso expressa o juízo de valor do autor, seu horizonte conceitual (socioideológico). A essa apreciação do mundo e tomada de posição frente aos múltiplos discursos de uma época são o que Bakhtin denomina “voz” (BAKHTIN, 1998, p. 106). Segundo Bakhtin, a voz do discurso se constitui e está articulada ao seu contexto de enunciação, à medida que formula uma “reação responsiva” aos outros discursos, enunciados e/ou supostos, com os quais entra em diálogo nesse contexto. A esse processo de reação responsiva e recíproca entre os discursos, Wertsch (1996) denominou interanimação dialógica das vozes dos discursos ou simplesmente, interanimação dialógica. Um discurso representa, assim, uma escolha, uma tomada de posição do autor frente aos múltiplos discursos que pretendem apreender a realidade de uma época, com os quais está a interanimação dialógica. A enunciação, ação de expressão do discurso, deve ser analisada considerando um contexto sociocultural determinado – saturado de elementos não verbais com os quais também dialoga. Assim, podemos considerar que Roberto Abdala Junior | 105 nos dois contextos dialógicos, verbais e não verbais da situação de enunciação, os discursos pretendem promover uma reação responsiva em seus interlocutores. As reflexões de Bakhtin tiveram a literatura como foco privilegiado. Nesse contexto, torna-se fundamental para uma abordagem do cinema, entender como a linguagem cinematográfica atribui um determinado significado à realidade. Assim, faremos uma investida em teorias que lidam com o cinema e buscam apreender as estratégias que são próprias de sua linguagem para cotejá-las com as considerações bakhtinianas. A linguagem cinematográfica e as teses de Bakhtin No sentido de contornar a diversidade teórica de abordagem do cinema e oferecer reflexões que atendam aos propósitos deste trabalho, recorremos, principalmente, a duas obras: Estética y psicología del cine (MITRY, 1989), por discutir e procurar articular as principais teorias dos primeiros cinquenta anos do cinema, e A estética do filme (AUMONT, 1995), por ser uma obra composta por pensadores mais contemporâneos, especialistas nas diversas abordagens propostas para esclarecer a linguagem cinematográfica. Mas, como o cinema se enquadra no campo das comunicações de massas, seria pertinente iniciarmos com algumas considerações nesse campo. As teorias mais recentes que lidam com a comunicação de massas9 vêm buscando encontrar soluções que apreendam os significados veiculados pela mídia nos contextos socioculturais e históricos em que são enunciados. Nesse sentido, voltamos o foco da análise para as condições e/ou os processos que, “muito concretamente determinam as operações de construção do sentido (na relação de leitura, mas em muitas outras também)” (CHARTIER, 1989, p. 26-27), considerando que: 9 Nossa argumentação se baseia nas obras de Mattelart, Eco e Kellner citadas na bibliografia, além do próprio Bakhtin. 106 | Performances Culturais A problemática do “mundo como representação”, moldado através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real. [presente ou passado] (CHARTIER, 1989, p. 23-24). Ao buscarmos estender a questão apontada por Chartier para a esfera do cinema, acrescentaríamos uma outra que intriga todos aqueles que se voltam para o tema: a facilidade que caracteriza a produção e a leitura dos artefatos culturais que empregam a linguagem cinematográfica. O fenômeno parece estar inscrito nos processos que envolvem a visão. Segundo a argumentação de Jacques Aumont (2001) em trabalho recente, a concepção imagética do mundo que construímos em nossas mentes é resultado de um processo composto: de um lado por reações bioquímicas do olho que apreende elementos visíveis da realidade concreta – cor, luz etc. – e, de outro, da organização intelectual realizada pelo sujeito que olha. Nesse sentido, podemos concordar com Jean Mitry (1989) quando afirma que a linguagem cinematográfica é mais fácil de ser apreendida porque recorre aos códigos culturais de leitura da realidade concreta, pois o objeto ou acontecimento apresentado na tela “tende a recriar em torno dele (mais exatamente, aquele que o vê tende a recriar) o universo social ao qual pertence.” (AUMONT, 1995, p. 90). A intenção de evidenciar muitas questões ligadas à especificidade que caracteriza a linguagem cinematográfica nos autoriza a recorrer às argumentações de pesquisadores do campo do cinema para dar continuidade às nossas reflexões. Vejamos o que Jean Mitry, afirma a respeito da linguagem cinematográfica ao compará-la à escrita: Resulta evidente que um filme é uma coisa muito distinta de um sistema de signos e símbolos. Ao menos, no que se apresenta como somente isso. Um filme é, antes de tudo, imagens e imagens de algo. É um sistema de imagens que tem por objetivo descrever, desenvolver, narrar um acontecimento ou uma sucessão de acontecimentos qualquer. Mas estas imagens, segundo a narração eleita, se organizam como um sistema de signos e símbolos; se convertem em símbolos ou podem se converter neles por acréscimo. Não são Roberto Abdala Junior | 107 unicamente signo, como as palavras e, sim, como todo objeto, uma realidade concreta: um objeto em que se investe (ou ao qual se atribui) uma significação determinada. Assim o cinema é linguagem; converte-se em linguagem na medida em que primeiro é representação e graças a esta representação. (MITRY, 1989, v. I, p. 52, tradução nossa). Jacques Aumont acrescenta um esclarecimento importante à explicação de Mitry. Segundo o autor, apenas o fato de representar, de mostrar um objeto de forma que ele seja reconhecido, é um ato de ostentação que implica que se quer dizer algo a propósito desse objeto. ... deixa transparecer a ostentação e a vontade de fazer com que o objeto signifique algo além de sua simples representação. ... [Assim] qualquer objeto já é um discurso em si. É uma amostra social que, por sua condição, torna-se um iniciador de discurso, de ficção, pois tende a recriar em torno dele (mais exatamente, aquele que o vê tende a recriar) o universo social ao qual pertence. (AUMONT, 1995, p. 90). A linguagem cinematográfica, como fica claro na argumentação desses autores, não deve ser considerada simplesmente um exercício de apreensão ou um exercício de “captação” da realidade concreta. Apesar de empregá-la, o cinema realiza uma apreciação sobre ela, atribui à realidade concreta uma significação diferenciada, vinculada ao universo social no qual ela existe concretamente. Importa observar que essas reflexões nos remetem à ideia de “mundo como representação” proposta pelo historiador Roger Chartier (1989) e às dificuldades relacionadas a todas as formas de construção dos discursos que pretendem apreender e representar esse mundo. Mais ainda no cinema, pois “ao contrário, [da literatura] passa constantemente do concreto ao abstrato. Oferece diretamente seu objeto, quer dizer, a representação concreta do mundo e das coisas. Logo se serve desses dados imediatos como instrumentos de mediação.” (MITRY, 1989, v. I, p. 166, tradução nossa). O discurso cinematográfico – o filme – portanto, não precisa recorrer, obrigatoriamente, aos códigos de signos convencionalizados que traduzem uma língua para se expressar, pois não exige conhecimento prévio de um 108 | Performances Culturais código linguístico para se fazer compreender. Antes, recorre aos códigos de percepção e apreensão do mundo da experiência e, daí, oferece dados imediatos; enfim, apresenta o mundo em imagens. Assim, se a (re)apresentação cinematográfica do mundo já carrega significados e a representação se identifica com a coisa representada (MITRY, 1989, v. I, p. 132, tradução nossa) seria correto considerar que o cinema recorre aos códigos de leitura culturalmente estabelecidos. As imagens cinematográficas podem, portanto, ser consideradas signos de uma realidade que traduzem os significados do real como as palavras. Mas, se os significados só podem ser compreendidos no seu contexto de enunciação, como afirma Bakhtin, qual seria então a estratégia para apreendermos os significados que as imagens constroem no filme? Mitry sugere um caminho para a resposta: Toda imagem fílmica possui necessariamente as estruturas das coisas que reproduz. Mas, como essas coisas se organizam num quadro, a imagem fílmica não pode ser inorgânica, impessoal. Por si mesmo, o quadro (necessariamente eleito pelo cineasta) cria, entre as coisas que apresenta, um conjunto de relações precisas inferidas de sua própria existência. (MITRY, 1989, v. I, p. 167, tradução nossa). O significado que as imagens do mundo da experiência adquirem no cinema, então, resulta das relações estabelecidas entre elas. Ao serem escolhidas para figurarem no filme, recebem um enquadramento estético atribuído pelos realizadores. O enquadramento atribuído às imagens do mundo da experiência pelas escolhas dos realizadores revela, segundo Mitry, apenas um aspecto desse mundo, evidencia algo que pode nos escapar na realidade concreta. As imagens cinematográficas correspondem, portanto, a uma apreciação, a um juízo, ao ponto de vista do outro e à sua compreensão do mundo. Assim, os processos socioculturais e históricos que constroem as relações no mundo, imagens que constroem o mundo no filme constituem-se a partir das escolhas de um outro; ou seja, apresentam uma apreciação particular desse outro sobre o mundo que figura na tela. Roberto Abdala Junior | 109 As imagens do mundo captadas pela câmera carregam significados sociais, mas recebem, por meio do enquadramento estético e das relações dialógicas com outras imagens, uma apreciação própria que foi conferida pelo cineasta na película. No contexto dialógico de imagens, um mesmo objeto, um mesmo fato pode adquirir tanto significados quanto enquadramentos e contextos os quais estejam figurando nos filmes. Em termos bakhtiniano, uma imagem cinematográfica poderia ser considerada a “entonação expressiva” ou a “voz” dos realizadores. As reflexões de Mitry nos remetem frequentemente, como se pode depreender dos argumentos anteriores sobre as imagens cinematográficas, às teses de Bakhtin. A imagem fílmica pode ser considerada (por analogia) a entonação e/ou a voz bakhtiniana dos realizadores. Como entonação expressiva, vai depender do enquadramento que recebeu no filme; como a “voz” dos realizadores, pode ser apreendida a partir da maneira pela qual está sendo empregada no texto fílmico; ou seja, considerando o contexto imagético no qual foi inscrita e os diálogos que formula com outras imagens do filme. O enquadramento é um elemento mais difícil de ser apreendido por meio das teses bakhtinianas. Não obstante o significado estético das produções cinematográficas ser um elemento de fundamental importância, o que mais interessa na análise apresentada é a voz dos realizadores. Ao nos voltarmos para as vozes dos realizadores ou sobre as quais vai ressoar a voz dos realizadores, podemos considerar que ela pode estar sendo expressa e pode ser apreendida por meio dos diálogos estabelecidos entre as imagens. Mas também não é raro que os diálogos se realizem com outros discursos – oral, musical, gestual, performática, enfim. Resta ainda uma questão decisiva para consideramos os filmes como fenômeno cultural: como podemos considerar a recepção dos filmes? E, mais, como seria possível uma apreensão do significado de um texto fílmico, tomando-o em um contexto sociocultural e histórico definido? Uma narrativa imagética e sua recepção 110 | Performances Culturais A construção imagética é, sem dúvida, o recurso cinematográfico mais importante na constituição de um filme. A imagem cinematográfica tem o poder de “materializar” uma realidade para a percepção do público. O elemento imagético em movimento é, sem dúvida, a matéria-prima principal10, a que os realizadores recorrem para construírem suas narrativas e elaborarem seus discursos. Constitui o fundamento da linguagem cinematográfica. Realiza, com mais eficácia, a “impressão de realidade”11 que caracteriza o cinema, sugerindo que a imagem foi capturada diretamente do mundo da experiência. Mas, a leitura do discurso, seja ele qual for, deve ser considerada como uma outra produção, pois as significações não são permanentes, mas sim construídas pelas leituras históricas que sujeitos e agentes sociais realizam. Novamente, as ideias bakhtinianas se tornam essenciais, sugerindo uma solução para o impasse. A aplicação articulada das proposições com as quais lidamos até aqui nos permite afirmar que as concepções, às quais os realizadores recorrem para constituírem seus discursos, dão origem aos discursos realizados em linguagem cinematográfica.12 As imagens escolhidas pelos realizadores se tornam signos ao passarem a figurar no filme, e os significados que elas tomam no discurso devem ser reconhecidos, não as tomando isoladamente, mas no contexto em que foram empregadas. Ao aplicarmos as proposições de Bakhtin, concluímos que a leitura das imagens cinematográficas exige que a apreensão dos significados do discurso formulado pelo filme seja feita no seu contexto de enunciação/exibição. Os contextos de enunciação propostos nas obras de Bakhtin são dois: um mais próximo dos interlocutores imediatos e, outro, mais 10 A esse respeito consultar Andrew (1989). A “impressão de realidade” pode ser “definida por dois de seus aspectos. Por um lado, o espectador passa por uma baixa de seu limiar de vigilância; consciente de estar em uma sala de espetáculo, suspende qualquer ação e renuncia parcialmente a qualquer prova de realidade. Por outro lado, o filme bombardeia-o com impressões visuais e sonoras.” (AUMONT, 1995, p. 150). 11 12 Buscamos construir uma abordagem mais “cinematográfica” do discurso que o filme constitui. Ao procurarmos evitar uma analogia com o texto escrito, não significa que a analogia não seja possível, mas estamos buscando escapar a “aproximações” já realizadas. Roberto Abdala Junior | 111 amplo, o da comunicação cultural. Mas, no caso do cinema, devemos considerar que as teses bakhtinianas sugerem, pelo menos, três possibilidades de análise dos contextos dialógicos de enunciação (exibição) para que os significados sejam apreendidos. Um contexto mais próximo, cinematográfico (a partir do próprio filme) esclarecendo as relações nas quais as imagens estão empregadas na construção do seu discurso, apreendendo os significados atribuídos ao mundo que ele procura representar. Um segundo – mais amplo e historiográfico, o da época histórica da produção, do lugar sociocultural e histórico dos realizadores, esclarecendo como esse discurso dialoga com outros discursos da “comunicação cultural” contemporâneos à realização do filme, definindo possibilidades de sua apropriação histórica, ou seja, analisando o contexto histórico do qual emergiu. Um terceiro contexto, articulado às possibilidades de emprego de um filme com finalidades pedagógicas ainda pode ser objeto de análise: também mais amplo, mas considerando a época em que está sendo exibido o filme, esclarecendo os diálogos que estabelece com os discursos envolvidos no momento da sua exibição. Importa salientar que essas formas de abordagem não são excludentes; mas, ao contrário, podem ser realizadas de forma articulada. Apontamos somente algumas questões que, certamente, podem ser muito ampliadas. Entretanto, fica evidente que analisar filmes sem que se tenha claro como podem ser explorados os recursos da linguagem cinematográfica, na leitura semiótica que se constrói do mundo, dos processos socioculturais e históricos que apresenta e relacioná-los aos contextos nos quais o público está inserido e no qual busca referências para erigirem identidades, não estaríamos avançando significativamente. A nossa argumentação procurou esclarecer que, se não nos é possível apreender o encantamento que o cinema e a sua linguagem exercem no mundo contemporâneo, as interanimações dialógicas dos seus discursos estão no centro desse processo, nascido no contexto da comunicação cultural da atualidade. Assim, impossibilitados de apreender esse 112 | Performances Culturais encantamento, podemos talvez empregá-lo noutros processos que permitam uma apreensão mais polifônica da realidade contemporânea. Roberto Abdala Junior | 113 Referências ABDALA JUNIOR, R. Memórias da ditadura, TV e os 'rebeldes' anos 1980. Curitiba: Editora Prismas, 2017. ANDREW, J. Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989. AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1995. AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 2001. 6ª ed. BAKHTIN, Mikhail ( Volochinov ). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997. BAKHTIN, Mikhail. O discurso no romance. In: Questões de literatura e de estética. São Paulo: Unesp / Hucitec,1998. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasilia: EDNUB, 1996. 3. ed. BAKHTIN, Mikhail. Gêneros do discurso. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BURGOYNE, Robert. A nação do filme. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1996. CHARTIER, Roger (Org.). Práticas da leitura. Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 2001. CHARTIER, Roger. A história cultural: Entre práticas e representações. São Paulo: Difel, 1989. ECO, Umberto. A obra aberta: formação e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 1991. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1998. MATTELART, Armand & Michèle. História das teorias da comunicação. São Paulo: Edições Loyola, 1999. 114 | Performances Culturais MITRY, Jean. Estética y psicología del cine. Madri: Siglo XXI de Espanha Editores, S/A, 1989. Volume I e II. SANTAELLA, Lúcia & NÖTH, Winfried. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras,1999. 2ª ed. SORLIN, Pierre. Sociología del Cine la apertura para la Historia de Mañana. México: Fondo de Cultura Económica, 1985. STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992. WERTSCH, James V. A voz da racionalidade em uma abordagem sociocultural da mente. IN: MOLL, Luís C. 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Pelo caminho do afeto, que envolve as sensibilidades, a experiência transforma-se em memória, que se interrelaciona com experiências passadas, em um caminho contínuo da construção do conhecimento. Sigo a reflexão trazendo a relação entre sensibilidades e racionalidade, em uma perspectiva em que ambas caminham juntas, são indissociáveis, pautada na ideia concreta de que o sujeito inserido no processo de ensino/aprendizagem tem pertencente a ele corpo e mente, que não podem ser ignorados ou dicotomizados. Caminho, assim, para uma perspectiva em que as sensibilidades podem e devem ser trabalhadas em qualquer área do conhecimento. Porém, elas são inerentes ao ensino da Arte, que traz em seus processos de elaboração a relação intrínseca entre sensibilidades e racionalidades. Essa 1 Artigo produzido como trabalho final da disciplina “Tópicos Avançados em Performances Culturais I: Performances Culturais, Memórias e Sensibilidades” (1º semestre/2018), ministrada pela professora Drª. Nádia Maria Weber Santos e pelo professor Dr. Robson Corrêa de Camargo no Programa de Pós-graduação em Performances Culturais – UFG (Doutorado). 118 | Performances Culturais especificidade da Arte permite ao sujeito a organização de ideias sensíveis em produtos simbólicos, ideias que muitas vezes não são possíveis de serem organizadas a partir da linguagem verbal. Desse modo, a Arte na Educação permite uma visão mais ampla dos processos de simbolização do ser humano, contribuindo significativamente para a formação integral do sujeito. A pergunta que intitula este artigo tem me acompanhado desde os meus primeiros anos como professora da Educação Básica, ou seja, há mais de 10 anos: qual o lugar das sensibilidades na Educação? O que me incomoda não é ter esse questionamento há tanto tempo, mas constatar que, cada vez mais, a Educação não tem dado lugar às sensibilidades, priorizando um ensino anestésico, mecânico e deslocado da realidade, de modo que pouco significa para os alunos. Mas, se o ser humano é constituído também por sensibilidades, por que não as considerar na Educação já que esta trabalha com a formação integral do sujeito? A resposta me parece ser: porque dar lugar às sensibilidades é dar lugar à criação, à invenção, ao pensamento sensível, à subjetividade, ao questionamento, à expressão, ao novo olhar. E não é isso que a Educação que se configura na contemporaneidade vem buscando. Basta a ela que os alunos saibam ler, escrever e contar do modo mais automático e mecânico possível, elevando, assim, o número de alfabetizados diante do panorama mundial. Sensibilidades e memória Trabalhar com as sensibilidades na Educação é trabalhar com a experiência significativa, ou seja, a experiência no sentido deweyano, a experiência que afeta, que toca, que marca, que se torna memória. Outra pergunta surge então: educação e memória não caminham juntas? Acredito que educação, experiência e memória caminham juntas, pois a memória na Educação deve ser a que ocorre organicamente, a partir das experiências significativas, e não uma memória mecânica, forçada pelo Karine Ramaldes | 119 processo de “decoreba”. Como afirma Jô Gondar (2016, p. 38), psicanalista e professora pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO): “não existem, contudo, memórias fora de um contexto afetivo”. Desse modo, as memórias que ficam são as que nos afetam, as que envolvem as sensibilidades, as que envolvem o aluno no ato, na experiência do ensino/aprendizagem. Por conseguinte, a memória que a Educação deve priorizar é esta última, originada na experiência significativa. O filósofo e pedagogo pragmatista norte-americano John Dewey (1859-1952)2, em seu livro Educação e Experiência, publicado pela primeira vez em 1938, intitulado originalmente como Experience and Education, defende a ideia central de que a experiência educativa envolve continuidade e interação entre quem aprende e o que é aprendido (experiência em ato). Esses princípios de continuidade e de interação são a base de toda experiência significativa, pois Dewey afirma que a experiência é um produto da interação contínua entre indivíduo e meio vivido, entre fazer (doing) e sentir (receiving). Dewey afirma, ainda, que “o princípio de continuidade de experiência significa que toda e qualquer experiência toma algo das experiências passadas e modifica de algum modo as experiências subsequentes” (DEWEY, 1971 [1938], p. 26). Na Educação, ocorre da mesma forma: para que uma experiência seja significativa, o aluno deve interagir experiência passada (memórias) com experiência presente, modificando ambas, logo, ampliando seu campo de conhecimento a partir dessas múltiplas relações entre suas experiências. Um caminho profícuo de construção do conhecimento está neste continuum das experiências. Todo indivíduo é formado por subjetividades e memórias. Não é possível separar o indivíduo em racional/objetivo para os fins educacionais, deixando o sensível/subjetivo de lado. O indivíduo é esse todo formado por 2 Uma análise mais aprofundada sobre o conceito de experiência de John Dewey é realizada no livro de minha autoria, junto a Robson Corrêa de Camargo, intitulado: Os Jogos Teatrais de Viola Spolin: uma Pedagogia da Experiência. Goiânia: Kelps, 2017. 120 | Performances Culturais objetividade, subjetividade, racionalidade, sensibilidade, memórias afetivas. O processo de construção do conhecimento abrange todo esse material que está sempre interagindo com a experiência presente para formar uma nova experiência. A experiência contínua leva a um desenvolvimento intelectual e sensível. Gondar (2016, p. 1) afirma que: “[...] só podemos articular fatos, fenômenos e atos/ações a partir do movimento relacional da memória”. Ou seja, a articulação do conhecimento, da apropriação, passa por esse movimento relacional da memória que articula experiências passadas com experiência presente, em um processo que inclui a relação entre sensibilidade e racionalidade. A efetivação da educação significativa, baseada na experiência real do aluno, acontece quando o professor percebe as experiências que os alunos trazem (suas subjetividades e sensibilidades), reconhecendo nas situações concretas quais circunstâncias e ambientes conduzem às experiências significativas. Dewey (1971 [1938], p. 33) afirma que a experiência somente será verdadeiramente experiência quando as condições objetivas se encontrarem subordinadas ao que ocorre dentro dos indivíduos (subjetividade) que passam pela experiência. Isto é, quando as questões objetivas estiverem subordinadas às questões subjetivas dos indivíduos, às suas sensibilidades. O aluno precisa ser afetado por aquilo que é ensinado a ele, só assim conseguirá experienciar significativamente o que lhe está sendo apresentado. O aprendizado deve ter relação com as condições reais da vida do aluno para que faça sentido a ele. É perceptível, nos estudos de John Dewey, uma proposta de educação na qual as sensibilidades são essenciais para o processo da aprendizagem significativa. Em uma perspectiva que se aproxima à de Dewey, temos a pesquisadora, professora, historiadora e escritora brasileira Sandra Pesavento (1946-2009), pioneira nos estudos sobre sensibilidade no Brasil, que afirma: Roland Barthes precisa bem a distinção e também o entrelaçamento entre o que chama o studium e o punctum. O studium pertence ao campo do saber e da cultura, reenvia ao conjunto de informações e de referências que constitui Karine Ramaldes | 121 nossa bagagem de conhecimento adquirido sobre o mundo e que nos permite buscar as razões e as intenções das práticas sociais e das representações construídas sobre a realidade. O studium é dedutivo e explicativo da realidade. Já o punctum incide sobre as emoções, sobre aquilo que nos toca na relação sensível do eu com o mundo, refere-se ao que emociona, ao que passa pela experiência, pelas sensações. O punctum opera como uma ferida, é algo que nos atinge profundamente e frente ao qual não ficamos indiferentes. Mas studium e punctum convivem, bem certo, são mesmo indissociáveis, uma vez que tudo o que toca o sensível é por sua vez, remetido e inserido à cultura e à esfera de conhecimento científico que cada um porta em si (PESAVENTO, 2005, p. 2). Pesavento busca, nos conceitos de Studium e Punctum de Roland Barthes, a relação necessária para a experiência significativa apontada por Dewey. Nossa bagagem de conhecimento racional (studium), os saberes da cultura, está relacionada com nossas sensibilidades, subjetividades (punctum) em um movimento harmônico, como afirma Pesavento: “indissociáveis”. É nessa relação que se deve estabelecer o processo de ensino/ aprendizagem dentro das escolas, em uma relação harmônica e indissociável entre saberes da cultura e saberes sensíveis. O ponto de afeto está na zona da experiência (aqui e agora), quando as sensibilidades se tornam memórias. Desse modo, as memórias surgem das experiências significativas; ou seja, das experiências que nos afetam, nos tocam, que estimulam nossas sensibilidades. Memórias de experiências significativas são recriadas a cada nova experiência, nesse transcurso entre criação e recriação das memórias, o conhecimento vai sendo construído, mesclado pelo cognitivo/sensível. É por meio da aprendizagem participativa que o aluno se vê inserido no processo de construção do conhecimento. Sensibilidades e racionalidade No processo educacional, desenvolver as sensibilidades é tão importante quanto desenvolver a racionalidade, pois o ser humano é um sujeito 122 | Performances Culturais uno, e não fragmentado. Ignorar as sensibilidades na Educação pode ser um grande risco, sim, de modo a prejudicar o caminho natural da construção do conhecimento. Pesavento (2005) afirma ainda: Principiemos pelo entendimento da sensibilidade como uma outra forma de apreensão do mundo para além do conhecimento científico. As sensibilidades corresponderiam a este núcleo primário de percepção e tradução da experiência humana que se encontra no âmago da construção de um imaginário social. O conhecimento sensível opera como uma forma de reconhecimento e tradução da realidade que brota não do racional ou das construções mentais mais elaboradas, mas dos sentidos, que vêm do íntimo de cada indivíduo (PESAVENTO, 2005, p. 2). Nas palavras de Pesavento, é possível perceber que as sensibilidades são anteriores à racionalidade, de modo que o sujeito, ao vivenciar uma experiência, primeiramente é afetado por essa experiência, a partir dos sentidos (tato, olfato, paladar, visão, audição). Logo, ao vivenciar uma experiência, o corpo todo fica atento aos estímulos que surgem da relação entre indivíduo e meio. Cada indivíduo tem percepções únicas com essa relação, mesmo que vivenciem a mesma experiência, pois a subjetividade de cada um conduz a múltiplas interpretações. Os vários sentidos do corpo humano inseridos em uma experiência levam o indivíduo a ser provocado por diferentes sensações, das quais algumas são elaboradas em percepções. Muitas das percepções da experiência vivenciada são elaboradas pela racionalização e pela reflexão enquanto a experiência é vivenciada (presente) e no momento após a experiência (passado) a partir das memórias da experiência. Assim, é fato que o desenvolvimento cognitivo está conectado ao desenvolvimento sensível, em que corpo sensível e corpo racional estão se relacionando o tempo todo, não podem ser dissociados. João Francisco Duarte Júnior, filósofo da educação da Universidade Estadual de Campinas, em sua tese de doutorado intitulada O Sentido dos Sentidos: a Educação (do) Sensível (2000), discorre sobre a centralidade do sensível no ato do conhecimento, desde a epígrafe até a última linha da tese, afirmando que nós percebemos o mundo também por meio dos órgãos dos Karine Ramaldes | 123 sentidos, porém, o que tem vigorado no nosso sistema educacional é uma educação instrumental e anestésica. Uma educação puramente racional, que nada ou pouco se relaciona com a subjetividade e com a sensibilidade do sujeito, torna-se mecânica, improdutiva, apática, desinteressante, desconexa, anestésica, dificultando o processo de ensino/aprendizagem e, consequentemente, dificultando a elaboração do pensamento. Duarte Júnior (2000), ainda em sua tese, traz reflexões importantes sobre a relevância das sensibilidades na educação, entre elas, o autor aponta que, desde o século XX, um processo de anestesia vem se configurando na formação educacional. A Educação vem suspendendo toda a sensibilidade do seu processo de formação humana, tornando-se apática, enquanto o caminho deveria ser o inverso, a estesia deveria cada vez mais estar presente na formação humana, estesia compreendida como a capacidade de perceber sensações, ligada à sensibilidade, ao estético. No Brasil, em pleno século XXI, ainda prevalece um sistema educacional com fortes características da Educação Colonial, centrada em ensinar as operações básicas de leitura, de escrita e de contar. Essas características estavam presentes no sistema educacional do período que se estende do século XVI ao XIX. Porém, na contemporaneidade, a maioria das gestões educacionais em âmbito federal, estadual, municipal e privada continua priorizando uma educação que ensine ou treine – de modo automático e anestésico – a ler, escrever e contar, dando atenção tão prioritária a essas três operações que se acaba negligenciando a educação voltada para a formação integral do sujeito. Ler, escrever e contar são operações importantes, muito importantes. No entanto, defendo que elas deveriam ser desenvolvidas em conexão com o mundo estético e sensível, levando o aluno a não só decodificar letras e números, mas também a realizar a leitura crítica do mundo que o rodeia. Nesse contexto, educar o aluno para que reflita e atue no mundo a partir de diferentes pensamentos (filosóficos, artísticos, históricos, geográficos etc) torna-se tão relevante quanto ensinar português e matemática, com o 124 | Performances Culturais ganho de que esse aluno estará apto a interrelacionar esses vários saberes na sua própria elaboração do pensamento. Fica evidente, cada vez mais, a consolidação de uma Educação que não se importa com o processo reflexivo do sujeito, com a leitura de mundo, com a vida e suas múltiplas conexões. Todas as áreas do conhecimento interagem no processo de pensar, pois o mundo, a vida, em sua experiência concreta, estabelece uma dinâmica de interrelação entre as várias áreas do conhecimento. O mundo vivido é a constante relação entre todas essas áreas e as sensibilidades do ser humano. Nessa conexão entre vida e educação, Duarte Júnior (2000, p. 24) afirma: [...] o que nos interessa é a vida, com suas múltiplas sensibilidades e formas de expressão. A vida cotidiana, com todo o saber nela encerrado e que a movimenta por entre as belezas e percalços do dia. A sensibilidade que funda nossa vida consiste num complexo tecido de percepções e jamais deve ser desprezada em nome de um suposto conhecimento “verdadeiro”. A Educação assim, em conexão com a vida experienciada em seu dia a dia, urge pelas sensibilidades inseridas em seu processo pedagógico. É importante que o aluno se aproprie de todas as áreas do conhecimento de modo igualitário e em conexão com a sua própria vida. Bem, se a Educação fosse priorizada de modo qualitativo e equivalente em todas as áreas do conhecimento, teríamos as relações entre elas sendo operadas organicamente por professores e alunos, formando sujeitos capazes de ler, interpretar e atuar no mundo de forma abrangente e crítica. Restringir e priorizar apenas as ações de ler, escrever e contar limita o desenvolvimento do pensamento crítico dos alunos, levando-os a compreenderem as outras áreas do conhecimento como secundárias ou supérfluas, quando sabemos que não são. Na Educação, as sensibilidades devem ter lugar na conexão entre escola e realidade vivida para que os conteúdos ensinados possam estabelecer esse vínculo, conduzindo o aluno a se identificar como sujeito participativo do processo de ensino/aprendizagem. Karine Ramaldes | 125 Sensibilidades e o ensino da arte As sensibilidades estão presentes em todas as áreas do conhecimento da Educação, mas se destacam no campo de conhecimento Arte, pois, como afirma Duarte Júnior (2000, p. 25): Quando está em pauta esse saber sensível encerrado pelo nosso corpo, essa estesia que nos orienta ao longo da existência, inevitavelmente o fenômeno artístico deve vir à baila — não nos esqueçamos que estesia e estética originamse da mesma palavra grega. Ou seja: é através da arte que o ser humano simboliza mais de perto o seu encontro primeiro, sensível, com o mundo. Situando-se a meio caminho entre a vida vivida e a abstração conceitual, as formas artísticas visam a significar esse nosso contato carnal com a realidade, e a sua apreensão opera-se bem mais através de nossa sensibilidade do que via o intelecto. A arte não estabelece verdades gerais, conceituais, nem pretende discorrer sobre classes de eventos e fenômenos. Antes, busca apresentar situações humanas particulares nas quais esta ou aquela forma de estar no mundo surgem simbolizadas e intensificadas perante nós. Como assinala o autor, a Arte é um modo de significar o mundo, bem diferente da linguagem verbal, mas tão importante quanto. A Arte, ainda hoje, é apresentada no sistema educacional como enfeite, adorno ou passatempo, portanto, desnecessária. Mas a Arte é uma das áreas do conhecimento que trabalha de modo mais incisivo a educação das sensibilidades. Para termos uma educação integral do sujeito, é fundamental trabalharmos o conhecimento racional e o conhecimento sensível; e à escola cabe esse papel, como afirma a pesquisadora e pioneira da Arte/Educação no Brasil, Ana Mae Barbosa (2010, p. 5): Não é possível uma educação intelectual, formal ou informal, de elite ou popular, sem arte, porque é impossível o desenvolvimento integral da inteligência sem o desenvolvimento do pensamento divergente, do pensamento visual e do conhecimento presentacional que caracterizam a arte. A Arte possui uma maneira própria de expressar ideias e sensibilidades de modo que a linguagem verbal não consegue fazê-lo. Muitas das 126 | Performances Culturais sensibilidades que não podem ser expressas pela linguagem verbal podem ser organizadas e expressas na forma artística. Assim, a Arte apresenta um modo único de expressão humana necessário ao sujeito, uma expressão simbólica que nasce das sensibilidades do sujeito para se relacionar com diferentes outras sensibilidades dos leitores da obra artística. Nesse sentido, ela é diversa em suas significações, como pontuado por Duarte Júnior (2000, p. 25): “a arte não estabelece verdades gerais [...]”, ao se relacionar com a leitura do espectador, ganha múltiplas significações. Como definido pelo filósofo alemão Ernst Cassirer (1874-1945), que desenvolveu uma filosofia das formas simbólicas, o ser humano é um animal simbólico. Destarte, Cassirer aponta que a capacidade de simbolização do ser humano é o que o diferencia dos outros animais. Definir o homem apenas como animal racional é reduzir a capacidade humana, pois racionalidade e sensibilidade estão interagindo o tempo todo na constituição do mundo humano. Nas palavras desse filósofo: [...] lado a lado com a linguagem conceitual, existe uma linguagem emocional; lado a lado com a linguagem científica ou lógica, existe uma linguagem da imaginação poética. [...] A razão é um termo muito inadequado com o qual compreender as formas da vida cultural do homem em toda a sua riqueza e variedade. Mas todas essas formas são formas simbólicas. Logo, em vez de definir o homem como animal rationale, deveríamos defini-lo como animal symbolicum (CASSIRER, 2005, p. 49). Fica evidente, nessa passagem de Cassirer, que a linguagem conceitual não é a única e muito menos a mais importante forma de expressão humana. A linguagem emocional e a linguagem da imaginação poética mencionadas por Cassirer estão diretamente conectadas às sensibilidades do ser humano e à sua racionalidade. E é nessas linguagens que se localiza o rico material de expressão da Arte. Susanne Langer (1895-1985), especialista em filosofia da Arte, desenvolveu muitos dos seus conceitos a partir das ideias de Cassirer, especialmente em seu livro intitulado Filosofia em Nova Chave (2004, [1942]). Neste ele afirma que a linguagem verbal é presentacional, pois Karine Ramaldes | 127 pode ser organizada a partir de um sistema de signos linguísticos e representar verdades gerais. Já a Arte é apresentacional, pois é fundamentalmente organizada por elementos simbólicos para ser expressa, elementos estes carregados de subjetividade e de sensibilidades, levando o receptor a múltiplas interpretações do conjunto de símbolos expressos na obra de Arte, ou seja, não estabelece verdades gerais. A Arte não tem uma interpretação única como pode ocorrer no sistema dos signos linguísticos. Langer (1962) pontua: Tão logo as formas naturais da experiência subjetiva sejam abstraídas ao ponto da apresentação simbólica, podemos utilizar essas formas para imaginar o sentimento e entender-lhe a natureza. O autoconhecimento, a introvisão de todas as fases da vida e da mente, surge da imaginação artística. Eis aí o valor cognitivo das artes (LANGER, 1962, p. 89). A autora apresenta, portanto, a relevância da Arte para a vida do ser humano, pois, segundo ela, é a imaginação artística que vai ajudar o indivíduo a se conhecer melhor e a conhecer o mundo ao seu redor, porque é uma educação do sensível. Langer (1962, p. 90) chega a afirmar que “[...] um generalizado descaso pela educação artística equivale a descaso pela educação do sentimento”. O processo educativo da Arte é essencial para formação integral do sujeito, pois atua diretamente com as sensibilidades do indivíduo na forma de expressão/comunicação tão cara a essa área do conhecimento: a expressão do sensível. Conclusão Nos primeiros anos de vida, quando o ser humano ainda não tem a apropriação da linguagem verbal, a função simbólica é explorada, experimentada e torna-se a principal forma de o sujeito relacionar-se com o mundo à sua volta. A capacidade simbólica está mais conectada às sensibilidades humanas do que à racionalização. Como afirma Pesavento: “as sensibilidades são uma forma do ser no mundo e de estar no mundo” (PESAVENTO, 2005, p. 2). Eu diria que as sensibilidades são a primeira 128 | Performances Culturais forma de o sujeito ser e estar no mundo, pois a apropriação do mundo pela criança dá-se primeiramente a partir das sensibilidades. Com o desenvolvimento humano, essa capacidade simbólica e sensível vai sendo cada vez menos explorada. O próprio sistema educacional vai deixando de lado a articulação com a função simbólica. Na escola, os alunos são bem estimulados em todas suas capacidades simbólicas e sensíveis até os seis anos. A partir dos sete anos, mudanças drásticas na educação começam a ocorrer, dicotomizando o racional e o sensível. O racional é priorizado, uma vez que passa a ter um tempo cada vez maior; e o sensível, o tempo reduzido. Assim, a educação do sensível, a função simbólica do ser humano vai sendo reprimida, e o sujeito cada vez menos consegue lidar com suas sensibilidades, pois esse processo é interrompido na infância. Ao chegar ao Ensino Médio, na adolescência, a função primordial da educação escolar passa a ser o racional, não reservando espaço de articulação entre racional e sensível, pois o objetivo maior é “treinar” os alunos para serem aprovados no ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio –, no vestibular e pleitearem uma vaga universitária. Tão atual e real é a constatação de que é suficiente fazer a leitura da BNCC – Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio3, cujo texto prioriza essencialmente o Português e a Matemática em detrimento evidente das outras áreas do conhecimento. Com a Educação no formato de extrema priorização do racional em detrimento do sensível, temos consequências graves: sujeitos que se sentem incapazes de atuar no mundo competitivo que os rodeia; seres humanos que, frequentemente, adoecem por não conseguirem organizar e expressar suas sensibilidades; pessoas com formação acrítica, submissa, desimaginativa; pessoas facilmente influenciáveis pela visualidade midiática que os rodeiam. Há a necessidade da educação do sensível no sistema educacional, pois, retomando Cassirer, o homem é um animal simbólico, 3 Homologada no dia 14/12/2018. Disponível para consulta http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/#medio. Acesso em: 23 abr. 2019. no site do MEC: Karine Ramaldes | 129 e a educação precisa urgentemente reconhecer isso, priorizando a educação do sensível tal como prioriza a educação racional. Não nos expressamos apenas pela linguagem verbal, e a Arte, mais do que as outras áreas do conhecimento, trabalha diretamente com a expressão simbólica sensível. A Arte ensina o ser humano a organizar suas sensibilidades em forma de expressão, em algo concreto e simbólico que não seja necessariamente a linguagem verbal. Aprender a perceber as sensibilidades e a compreender que não existe uma única forma de nos expressarmos é fundamental para a formação do sujeito. Tão importante quanto a linguagem verbal são as múltiplas formas de expressão que o ser humano possui, e cabe à Educação explorar essa multiplicidade para, assim, garantir a formação integral do sujeito efetivamente. Referências BARBOSA, Ana Mae. A Imagem no Ensino da Arte. São Paulo: Perspectiva, 2010. CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem. São Paulo: Martins Fontes, 2005. DEWEY, John. Experiência e Educação. 15. edição. Tradução de Anísio Teixeira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, [1938] 1971. DUARTE JR, João Francisco. O Sentido dos Sentidos: A Educação (do) Sensível. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas. São Paulo, p. 234. 2000. Disponível em http://repositorio.unicamp.br/ jspui/handle/REPOSIP/253464 Acesso em: 06 ago. 2018. GONDAR, Jô. Cinco proposições sobre memória social. In: O que é memória social? Páginas 19-40. Morpheus: revista de estudos interdisciplinares em memória social, Rio de Janeiro, Edição Especial ‘Por que Memória Social?’ v. 9, n. 15, 2016. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/painel/pdf/publ_19.pdf Acesso em: 06 ago. 2018. LANGER, Susanne. Filosofia em Nova Chave. 2. edição. Tradução: Janete Meiches e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, [1942], 2004. 130 | Performances Culturais LANGER, Susanne. Ensaios Filosóficos. Tradução: Jamir Martins. São Paulo: Cultrix, 1962. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Colloques, mis en ligne le 04 février 2005. URL: http://journals.openedition.org/nuevomundo/229; DOI: 10.4000/nuevomundo.229. Acesso em: 11 maio 2009. 7 A formação continuada de professores em arte: as sensibilidades e o simbólico à margem Warla Giany de Paiva É o pensamento simbólico que supera a inércia natural do homem, conferindolhe nova capacidade, a de arquitetar constantemente seu universo humano. Ernst Cassirer1 A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras. Walter Benjamin2 A proposta desta reflexão textual é analisar, sob a perspectiva dos estudos relativos à memória e à sensibilidade3, a ação e reverberação de duas performances-instalação realizadas em duas reuniões/encontros no Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte4. Uma destinada aos 1 Frase retirada da apresentação de slides Fundamentos Simbólicos da Experiência Humana: memória, símbolo, arquétipo e mito apresentados pela professora Nádia Weber, no dia 23/06/2018. 2 Frase retirada do texto Fragmento como conceito estético e fato artístico, filosófico e literário (2014) apresentado e debatido pelo professor Robson Correa de Camargo, no dia 08/06/2018. 3 Disciplina proposta pela Professora Nádia Weber e pelo Professor Robson Corrêa de Camargo ao Programa Interdisciplinar em Performances Culturais da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. O termo sensibilidade, aqui debatido, nasce tendo como referência de estudo a perspectiva da História Cultural e do historiador cultural, porém hoje tem ganhado voos no intuito de se transformar em uma área de conhecimento. 4 Unidade Escolar da SEDUC-GO responsável pela formação de professores e acompanhamento de projetos em arte da rede. Atualmente atende à demanda de formação continuada de professores por meio de cursos, seminários, oficinas, apresentações artísticas, orientação curricular e proposição de projetos em arte para professores, tutores, gestores e estudantes da rede estadual de Goiás. 132 | Performances Culturais colaboradores da Proposta Arte-Educativa Ciranda da Arte e Região Leste de Goiânia5, e a outra, a todo o coletivo de colaboradores da instituição. Ambas tiveram a cadeira escolar como mote de criação. Por que a cadeira escolar? Uma cadeira é somente uma cadeira? Que cadeira é essa? Que símbolos, sentidos e significados uma cadeira escolar carrega? Uma cadeira tem identidade? O que são essas identidades senão memórias? Por quantos anos, quantas horas, quanto tempo nós utilizamos uma cadeira escolar? Quais relações estabelecemos? De quais ângulos apreendemos a vida? Isso faz alguma diferença na formação de crianças e jovens? Isso fez alguma diferença na sua formação? Quantas camadas de memória compõem a experiência de escolares em suas cadeiras? O quanto a cadeira escolar forma e dá forma (deforma) a nossa existência? (CAMARGO, 2018). Enfim, a cadeira é símbolo marcante da experiência escolar e carrega em si uma gama de relações com o corpo e o espaço da escola. A cadeira escolar também marca e reafirma o vínculo do Ciranda da Arte com o universo educacional da rede estadual, elucidando que, mesmo atravessado pela perspectiva artística, o Ciranda não se restringe apenas a ela nem a tem como fim. Inclusive, sua lei de criação, Lei nº 15.255/2005, descreve: “o Ciranda da Arte é uma unidade escolar voltado à formação continuada de professores e ao acompanhamento dos projetos de arte”. Desde o seu nascimento, a instituição almejou atuar a partir da indissociabilidade entre três pilares: o artístico, o pedagógico e o científico. Algo bastante desafiador, tendo em vista que, na prática, essas ações desenvolveram-se de forma bastante autônoma uma da outra e, por vezes, bastante distantes. Isso foi gerador do desempoderamento do lugar artístico por parte das pessoas que atuavam na “equipe de formação” e do distanciamento do 5 Denominado atualmente de Conexões Região Leste. O projeto nasceu pela necessidade de articulação do Ciranda com a escola, assim como o desejo de investigação da prática pedagógica em arte, no entrelaçamento entre as quatro áreas artísticas, tendo como referência a proposta curricular de arte do estado. Quanto à escolha da Região Leste, a primeira questão apresentada foi a proximidade da sede do Ciranda, que é no Setor Universitário. A isso se somou um levantamento dos trabalhos artísticos escolares da região, realizado em 2016, que não encontrou grupos artísticos escolares na região, e o agravante maior foi o levantamento de uma pesquisa de acadêmicos do curso de Farmácia da Universidade Federal de Goiás – UFG, que identificou um alto índice de drogadição de escolares na região (ARAÚJO; PIRES; SOUZA, 2010). Warla Giany de Paiva | 133 lugar pedagógico, aos que atuavam somente na produção artística, ficando a potência do trânsito entre esses dois lugares pouco explorada e pouco instigada, e o espaço escolar, na relação com a arte, ora amparado, ora bastante desamparado. Um gerador de grandes carências no âmbito da pesquisa e no âmbito da arte na escola, em cada uma de suas linguagens. Todo esse complexo de questões minimizou a capacidade de cirandeiros e cirandeiras de ousar e criar propostas inusitadas que atravessassem de forma não hierárquica os lugares artístico, pedagógico e investigativo, assim como se deixou a memória de nossas ações e proposições apenas aos registros imagéticos e descritivos, presentes nos relatórios e portfólios, reduzindo a capacidade de expansão e reflexão. Cutucada por essas questões, recém-chegada do mestrado em Performances Culturais e cursando a especialização em Sistema Laban/Bartenieff, percebi a instituição em uma realidade inerte, julgadora, cheia de medos paralisantes, com relações marcadas pela desunião, desconfiança, vitimismos, incertezas e milhares de justificativas para não fazer, não colaborar, não participar. Percebia o estabelecimento de uma gama de jogos desempoderadores da existência e dispersores do foco de trabalho, com grande investimento de energia às “conversas de corredores”. Os diálogos sinceros e diretos eram substituídos pelo “melindre” presente no medo de expor, propor, magoar, “desrespeitar”. Isso tudo demonstrava que as relações de trabalho estavam pautadas no sacrifício a fazer, no dever a cumprir e na obediência hierárquica a seguir. Não se pautava na autonomia, na ética e na responsabilidade social. A imagem e sensação que formava em mim era de estar continuamente do “pisar em ovos”, alimentado por dúvidas como: será que faço? Será que participo? Será que respondo? Ninguém falou nada... Preciso me expor, me colocar, agir? Será que consigo? Sou tímida, não tenho coragem de me expor? Outra atitude corriqueira eram as afirmações de “faço” associadas a atitudes de “não faço”. Discursos corporais e verbais que, mesmo inconscientes, soterravam o prazer pelo trabalho, o desejo de 134 | Performances Culturais aprender, investigar, expressar-se artisticamente para ousar caminhos novos e inusitados. Havia, em meu olhar, recém-saído da academia, talvez um tanto carregado de muita indignação e desejo de mudança, a percepção de que tais atitudes expressavam pouca ou nenhuma autonomia. Então, como o Ciranda da Arte, uma instituição responsável pela formação continuada, tendo a proposta curricular em arte do estado6, um documento muito elogiado, por sua ousadia e pelo fomento à autonomia de estudantes e professores, promoveria suas ações com um coletivo formador tão distante do exercício da autonomia e da liberdade, inclusive da liberdade de criação? Instigada a olhar por essa lente, encontrei-me com um professor muito inquieto com os rumos da educação dizendo: “um professor não ensina aquilo que diz; ele transmite aquilo que ele é. Se o professor não é autônomo, ele não vai transmitir autonomia”. De forma muito direta e ácida, esse professor falou ainda sobre as três regras para que a formação continuada não aconteça: a primeira é o chamado conceito de isomorfismo da educação, que está em todas as teses de doutorado sobre educação. Palavra que tem do latim – “iso”, igual, a mesma, “morfos”, forma, a “mesma forma”. De maneira que todos entendem, [que] o modo como o professor aprende vai ser o modo como o professor ensina. Segunda grande regra: quando se pensa que os professores não sabem, o que se faz? Vai se dar formação aos professores. Considera-se que o professor é objeto de formação, mas não é isso. O professor tem que ser considerado na sua dignidade profissional como sujeito de autoformação; toda formação do século 21 é autoformação. Tem que estar numa equipe, ser considerado sujeito e não objeto. Terceira regra, mais difícil de perceber: quando se forma o professor, debita-se no professor o conjunto de matérias. Não adianta nada. Podem vir o Piaget, o Vigotski. Mas esse professor vai para a sala de aula, o Piaget não está lá e o Vigotski fugiu. O professor está entregue a si próprio, reproduzindo o modelo que lhe colocaram. E precisa pensar um pouco. São os desafios, as dificuldades de ensinagem. Não há dificuldades de 6 Colaboro com a equipe de dança do Ciranda da Arte desde 2006; entre outras ações, compus a equipe de desenvolvimento da proposta curricular da rede desenvolvida entre os anos de 2009-2010. Warla Giany de Paiva | 135 aprendizagem, mas de ensinagem dos professores. É perante o desafio que ele vai procurar na informação, quer venha do livro, da internet, de uma pessoa, uma contribuição teórica. Porque não há prática sem teoria. Vai juntar essa condição teórica com a dificuldade, mas também com os saberes que ele tem, para construir uma práxis (PACHECO, 2017, s.p). Isso me levou a refletir sobre os vários anos, contemplados tanto pela educação familiar como a escolar, em que me deparei com as diversas estratégias de formatação que reafirmam a violência, por tratar o outro como objeto, por impor uma postura castradora e autoritária, baseada na punição, culpa ou recompensa, com vários mecanismos de controle que ensinam a calar, obedecer e a seguir as hierarquias por medo ou vergonha, não por respeito e admiração7. Ou seja, meus colegas e eu apenas ressoávamos essa proposta de educação que nasce nesse país de imensa diversidade marcado, em seu corpo e nos corpos de inúmeras pessoas, pela exploração, colonização, escravidão, entre inúmeras outras consequências das escolhas políticas, econômicas e sociais adotadas. Diante da consciência de todo esse retrato, atento-me também ao desgaste e à desesperança gerados pela implementação de políticas educacionais de desvalorização e controle do professor, de sua formação continuada e de carreira. Esse retrato é permeado pelo discurso racionalista que ressalta o conteúdo e a cognição em detrimento do desenvolvimento dos aspectos socioemocionais, culturais, estéticos, sensíveis e simbólicos geradores da necessidade urgente de valorização de processos pedagógicos e relacionais desalienadores e fortalecedores das capacidades de imaginar, criar, inventar, olhar para além da coisa vista, dita, escolhida. Vislumbrava nitidamente que as coreografias sociais adotadas estavam fortalecendo o desempoderamento. Percebia em evidência que minhas atitudes e escolhas também reafirmavam esse lugar. Incomodada, comecei a imaginar e desejar fazer, nos encontros coletivos, uma proposta 7 Reflexões desenvolvidas a partir do diálogo com os estudos da Comunicação não Violenta (ROSENBERG, 2017) e Comunicação Autêntica (NALON, 2019). 136 | Performances Culturais artística, ativa, sensível e provocadora da ação e reflexão, que dialogasse com outros canais de percepção. Não cabia mais levar a pauta pronta, para ficar falando sozinha, a professorar discursos sobre autonomia, fazer artístico e a prática pedagógica e de pesquisa. Era preciso acionar outros e novos lugares. Era preciso um deslocamento da percepção. No intuito de instigar o meu potencial criativo e o potencial criativo e imaginativo de meus colegas de trabalho, me perguntava: como promover transformações sociais via o universo da arte? Como mover pessoas a se revisitarem, em seus hábitos e padrões, entendendo-os como resposta a contexto social de opressão e esvaziamento dos sentidos da existência humana? Como provocar a reflexão em torno das próprias práticas pedagógicas dos professores e professoras que atuavam na instituição? Como inquietar professores e professoras a se permitirem ficar à beira da incompetência e da incerteza, lugares muito presentes na atuação do artista e do pesquisador/pesquisadora, também do professor e da professora com curiosidade que se permitem estar em contínuo processo de (trans)formação? Aos poucos, identifiquei que buscava impulsionar uma proposta filosófico-poética que permeasse dois pontos de referência: 1) O lugar artístico como provocador do pedagógico e investigativo, e 2) o movimento como elemento de percepção das relações em fluxo dinâmico – centro estruturador de novos modos de existir. Percebia a necessidade de possibilitar novas maneiras de reconhecer e lidar com os conflitos camuflados que se faziam presentes, bem como inquietar o potencial imagético, criativo e sensível. Por fim, tomei coragem e propus a performance-instalação I com apoio e colaboração de outros colegas da instituição. Ela aconteceu no espaço mais amplo da instituição, o auditório, local que deixamos na penumbra, colocando no centro do espaço o desenho de um triângulo feito com fita crepe, no chão, no qual cada vértice representaria um dos processos para o desenvolvimento de uma proposta de trabalho coletiva, apresentada pelo relacionamento, pelas tarefas e processos. No centro Warla Giany de Paiva | 137 desse triângulo, uma montanha de cadeiras escolares, encaixadas umas nas outras, em quantidade correspondente ao número de colaboradores da proposta, identificadas pelo nome das escolas que participavam. Foi instalado um foco de luz de cima para baixo, no topo da montanha, local em que começou a gotejar água, devido a uma chuva torrencial que aconteceu no momento da apreciação. O espaço era preenchido com a missa fúnebre Requiem in D minor de Amadeus Mozart, seguido do barulho de estudantes em sala de aula no intervalo da troca dos professores e, depois, a música Opening, de Philip Glass. Mergulhada nessa atmosfera poética, convidei as professoras e os professores a: 1. observarem de vários ângulos a estrutura-instalação e reconhecerem qual era o lugar de cada um na Proposta Ciranda da Arte e Região Leste de Goiânia. 2. Cada vértice associava-se, respectivamente, a responsabilidades necessárias a um trabalho coletivo, tais como: atenção aos relacionamentos, realização de tarefas e a organização dos processos. Diante dessa orientação, perguntou-se: a partir de qual vértice ou entre vértices do triângulo você contribui com o projeto? 3. Observem-se e observem os colegas e as colegas, a cada passo dado, a cada estratégia adotada, a cada negociação exercitada para a retirada do seu lugar, da sua cadeira, apenas o seu lugar. 4. Após a retirada, organizem-se por equipes. Ao longo da experiência, percebi uma teia de sentidos, significados e sensibilidades acontecerem, à medida que pessoas apressadas empreitavam retirar uma cadeira ou várias cadeiras de outras pessoas para alcançarem a que desejavam. Percebi a montanha de cadeiras quase desmoronar por duas vezes. Pessoas retirando a sua cadeira e a de outras colegas presentes que coordenavam todo o processo a distância. Cadeiras de pessoas ausentes emaranhando a atitude de várias pessoas presentes. Pessoas trabalhando juntas e simultaneamente em prol de um mesmo objetivo. Percebi duas pessoas retirando inúmeras cadeiras, devido à ausência de muitas pessoas de sua equipe. No fim, restou a solidão de uma 138 | Performances Culturais cadeira/uma pessoa no meio do triângulo, e o moço exclamando e interrogando: “essa é da minha equipe. Pego ou não pego?” Logo respondi: “pegue-a, não deixe a sua colega desamparada”. Aproximando essa experiência dos estudos de Pesavento (2005, s.p) em seu artigo “Sensibilidades no tempo e tempo das sensibilidades”, percebi uma definição de sensibilidade com grande potencial de contribuição para refletir. Ela apresenta a sensibilidade como uma outra forma de apreensão do mundo [que vai] para além do conhecimento científico. As sensibilidades corresponderiam a este núcleo primário de percepção e tradução da experiência humana que se encontra no âmago da construção de um imaginário social. O conhecimento sensível opera como uma forma de reconhecimento e tradução da realidade que brota não do racional ou das construções mentais mais elaboradas, mas dos sentidos, que vêm do íntimo de cada indivíduo. Os estudos de Pesavento (2005) apresentam, inicialmente, alguns dos lugares de desejo que impulsionaram a criação das reuniões como performance-instalação. Atuando em um espaço de arte, parece limitante ressaltar apenas os aspectos tradicionais que compõem a forma e o conteúdo das reuniões pedagógicas e administrativas dessa instituição pública. Tecer outras abordagens possibilita a imersão e emersão no núcleo primário de percepção de cada cirandeiro e cirandeira colaborador. Possibilita a passagem de uma participação passiva e descomprometida para uma participação ativa e engajada, fomentadora da confiança que só acontece quando se permite o acesso às sensações e às inquietações de cada pessoa. Tais propostas me levaram a refletir também sobre quais imaginários sociais as performances-instalações fizeram emergir e como provocaram ou não aproximações em torno da escola e da formação de professores. A colaboradora da contação de histórias relata suas percepções diante da proposta: Eu, por exemplo, senti nas cadeiras uma bagunça (estrutura) da escola ou das escolas emaranhadas. E que o processo, relacionamento e tarefa seriam o caminho da construção e estruturação daquele emaranhado. Eu gosto de Warla Giany de Paiva | 139 planejar, ter ideias e me relacionar com as pessoas. [...] Fiquei incomodada com a goteira. (MAR, 07/03/2018). Em outro momento, essa mesma professora relatou: “Digo sempre, e ontem (dia da performance-instalação) no grupo comentamos e fomos unânimes: professor tem domínio de classe, segurança e domínio do conteúdo quando planeja. Planejamento é crucial”. Essa foi a professora que, por dois momentos, quase desmoronou toda a estrutura. Uma ansiedade se fazia presente, porém, não se expunha em palavras. Recentemente, ela relatou, bastante emocionada, o quão desafiante estava sendo o diálogo com os estudantes adolescentes e que, por estar bastante distante do universo escolar do ensino básico, havia perdido a prática e os recursos pedagógicos para lidar com os estudantes, pois atuava apenas como professora de professores na formação continuada. Uma afirmação bastante questionada pela Secretária da Secretaria de Estado da Educação, Fátima Gavioli8, a qual compreende que, para o professor ser formador de outros professores, ele precisa estar muito amparado dos saberes construídos na/pela prática pedagógica com estudantes do ensino básico. Diante de tais afirmações, percebe-se a professora entre o ideário do professor que tem que ser o detentor do saber, responsável por tudo, que não pode pedir a contribuição de outros colegas, e os desafios imensos ocorridos na concretude da “prática ético política das relações humanas” (SODRÉ, 2011, s.p) na escola, que extrapolam essa crença e exigem formas de agir que considerem a incerteza e o acaso como dilatadores dos campos de possibilidades. Refletindo ainda sobre como nós, professores e professoras, percebemos o mundo e a nossa relação com ele, ressalto as reflexões tecidas junto com o professor Robson Correia de Camargo, em outros momentos da disciplina Memória e sensibilidades. Nos encontros de junho, ele apresentou considerações que considerei relevantes para a compreensão do ser 8 Declarações expostas no dia 07 de abril de 2019 em uma reunião voltada para os Superintendentes e Gerentes para tratar da construção do Plano Estratégico de Formação Continuada de Professores da Rede Estadual de Goiás e no dia 25 de abril de 2019, no II Seminário do Programa de Residência Pedagógica do IF Goiano, III Seminário do Programa de Iniciação à Docência (PIBID) e I Seminário Internacional de Formação de Professores, ocorridos de 25 a 26 de abril de 2019. 140 | Performances Culturais professor(a)-artista-pesquisador. A primeira, parte de sua tese de doutoramento intitulada Melodrama: o princípio da incerteza (2005), e a segunda observação, um princípio, foi estudada no artigo, também de sua autoria, Fragmento como conceito estético e fato artístico, filosófico e literário (2014). Esses estudos possibilitaram perceber que o vocabulário encorpado por cada pessoa é construtor de sua prática e de seu modo de ver o mundo. Um exemplo apresentado em sala foi em torno da percepção do acaso e do erro. Para alguns professores, errar pode ser entendido como o oposto de acertar; para outros, errar significa navegar, pois as pessoas que navegam são errantes. Se não nos permitimos errar, como possibilitar que os acertos, as descobertas e o inusitado surjam? Um professor, nessa perspectiva, só poderá perceber o mundo diferente quando se permitir ter uma percepção diferente do mundo (CAMARGO, 2018), algo sugerido pela Performance-Instalação quando possibilitou outras maneiras de perceber a proposta Arte-Educativa: Ciranda da Arte e Região Leste de Goiânia. Com a Performance-Instalação I ressoando, uma enxurrada de novas questões, apontamentos, elogios, incômodos e pedidos foram aparecendo. Impulsionei-me neles e mergulhei no desejo de ir mais a fundo na compreensão das relações entre a arte, o simbólico e a sensibilidade para a formação humana, para tanto, me inscrevi na disciplina Memórias e Sensibilidades do Programa Interdisciplinar em Performances Culturais da UFG. Percebia que precisava continuar a nadar contra a corrente para proporcionar reencontros com o corpo no lugar do sensível, simbólico, imaginativo e criativo, fomentadores de reencontros com a pesquisa, a educação e a arte. Já cursando a disciplina Memória e Sensibilidade e recém-chegada da residência artística Ressonâncias da Dança, ocorrida em Alto Paraíso, propus a Performance-Instalação II, que aconteceu no mesmo espaço da Performance-Instalação I, porém, em uma outra configuração espacial. Esta contou com a transformação do auditório em uma caixa branca, na Warla Giany de Paiva | 141 qual se encontrava uma cadeira escolar flutuante e uma cadeira de professor, assentada no chão, distantes uma da outra. Um ator, todo de branco, com uma maleta, simbolizava o universo da arte. A sala iluminada, pela presença de três lamparinas, uma embaixo da cadeira flutuante, outra próxima à cadeira assentada no chão e outra próxima ao ator. Três cenas aconteceram em sequência. A primeira começou com a frase: “Somente aqueles que veem o invisível são capazes de fazer o impossível” (LOWN, 1985 apud BERN, 2001, p. 439) seguida da construção simbólica da organização da gestão, na qual a diretora Luz Marina de Alcântara e eu, que assumiria o cargo de coordenadora pedagógica, pegamos, cada uma, uma lamparina, símbolo da luz que ilumina os caminhos, e trocamos entre nós, enquanto pronunciávamos: “Eu te ilumino, você me ilumina e juntas iluminamos o Ciranda da Arte e o mundo” (MAKEDA, 2018, s.p). Uma linha poética, sensível e simbólica se seguiu entre os colaboradores. Na segunda cena, o ator começou sua trajetória “de volta ao cais” (PIMENTEL, 2018, s.p), de volta a seu lugar, casa, mãe, arte, finalizando na transmutação simbólica da cadeira assentada no chão, que foi se transformando em aconchego, cama, colo, meio de transporte entre outros sentidos construídos pela imaginação. A terceira cena foi a apresentação da proposta de trabalho da coordenação pedagógica a partir da expressão dos princípios norteadores marcados pelo lugar da arte, do movimento e do convite à ação engajada e consciente de cada colaborador. Esta cena foi amparada por Guimarães Rosa (1962), quando escreve: Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica – ou pelo menos parte – exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? [...] E o julgamento problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: – “Você chegou a existir?”. Aberto o tempo da reflexão, seguiu-se para a exposição das palavrassementes: escuta; julgamento “probrema”; sensibilidade; escolha; percepção; e a frase: você chegou a existir? Das cenas experienciadas, grupos, em 142 | Performances Culturais diferentes organizações, foram convidados a performar a partir da relação entre uma dessas palavras-sementes e as percepções deixadas pelo encontro. Incríveis e sensíveis proposições preencheram-me do sentimento de compaixão, colaboração, união, incômodo, vergonha, acolhimento, alegria entre outros mais difíceis de serem expressos. Pesavento (2005, s.p) contribui quando coloca que Às sensibilidades compete esta espécie de assalto ao mundo cognitivo, pois lidam com as sensações, com o emocional, com a subjetividade, com os valores e os sentimentos, que obedecem a outras lógicas e princípios que não os racionais. As sensibilidades são uma forma do ser no mundo e de estar no mundo, indo da percepção individual à sensibilidade partilhada. Remexida as sensações, percepções, emoções, subjetividades, objetividades, valores e sentimentos, seguiu-se o que ressoou da experiência, o que ficou pulsante. No caso da Performance-Instalação II, o que mais ressaltou foram as inquietações de cunho religioso. Antes, durante e após a instalação-performática, várias atitudes percorreram todo o processo. Não compreendia do que se tratava. O fato foi que o primeiro convite de passagem da lamparina foi recusado de modo bastante enfático, quase desesperador. No meio do processo, uma das pessoas recebeu e partilhou a lamparina com outra pessoa, não partilhando a fala (CEU, 2018). Após a experiência, a professora que teve essa atitude expressou que colaboraria com a gestão, porém não compartilharia de ações que se opusessem às suas crenças religiosas. Soube também que muitas pessoas não participaram da reunião apresentando a mesma justificativa. Entre as que escolheram participar, um comentário que considerei relevante foi referente à aproximação simbólica que uma das professoras fez com a religião hinduísta e a percepção de que eu e os colaboradores da concepção da proposta éramos todas e todos espiritualistas (TERRA, 2018). Percebi que as sensibilidades e as memórias operam singularidades tão próprias que provocam o distanciamento relacional do universo primeiro de nossa atuação, que é a arte. Diante desse desafio emergido, comecei a formular nova problematização no intuito de investigar como Warla Giany de Paiva | 143 lidar com a diversidade de visões/concepções de mundo separadoras e limitadoras do diálogo sincero? Como proporcionar escuta e a cocriação em arte, entre pessoas de religiões diferentes? Como propiciar processos reais de aprendizagem/transformação entre professores formadores de outros professores da área de arte? Quais seriam os elos que conectam professores, artistas e pesquisadores ao intento da formação humana mediada pela formação em arte? Imersa nessas problematizações, acolhi uma das ricas contribuições da professora Nádia Weber, quando ela apresentou que “tudo que move o ser humano é real. O símbolo é unificador de opostos. E nunca se esgota em seus significados. Todo símbolo está calcado no arquétipo que é o que traz o significado coletivo” (WEBER, 2018, s.p). Aproximar-me desse raciocínio criou espaço para a abertura de janelas reflexivo-propositivas e possibilitadoras de práticas concretas que extrapolassem o lugar do julgamento e do pré-conceito que envolvem os valores e princípios que nos ancoram em nossas crenças e hábitos. Essas experiências e o acolhimentos do que ressoa delas colocaram-me diante da necessidade de repensar os processos de criação que envolveram tais projetos no intuito de me questionar sobre como esses processos podem colaborar para viabilizar a construção de uma perspectiva que valorize a diversidade e a diferença. É notável que a proposição de ações tão adversas à realidade já posta, como foi o caso das performances-instalações, mexeram com os lugares de certezas e de defesas dos participantes da proposta, pois, pela sensibilidade, o assalto do mundo cognitivo, apresentado por Pesavento (2005), abriu espaço para a permissão de outros canais de acesso irracionais, menos palpáveis, menos tangível e sutis, afirmadores da presença. As proposições inquietaram e criaram pontos de conexão e desconexão, incômodo e confrontos, por expor, evidenciar, deixar à vista, em alguma medida, as atitudes e ações impressas por movimentos no espaço. Evidenciou-se com as performances-instalações como cada pessoa colocase no mundo e entende a proposta aplicada, bem como seus posicionamentos. Afinal de contas, 144 | Performances Culturais pensar nas sensibilidades é, pois, não apenas mergulhar no estudo do indivíduo e da subjetividade, das trajetórias de vida, enfim. É também lidar com a vida privada e com todas as suas nuances e formas de exteriorizar – ou esconder – os sentimentos (PESAVENTO, 2005, s.p). Esses foram apenas os primeiros frutos reflexivos nascidos dessa incursão nesse projeto tão desafiador de imersão no contexto escolar, em uma perspectiva de construção de diálogos baseados na confiança e encontros entre pessoas singulares de diferentes religiões e áreas artísticas. As performances-instalações continuam a ressoar e a construir possibilidades autorreflexivas e proposições criativas. Elas seguem no sentido de buscar o desvio de atenção do “aluno”, visto como indisciplinado e desatento; da escola, vista como carente e deficitária de recursos e aparatos; e da estrutura educacional, como o lugar que engessa a prática pedagógica para se transmutar em um discurso que é ação e gera ações que evidenciam o invisível e o visível de nossas escolhas. Além disso, ações que abram possibilidades de reinvenção de si e de nossas percepções do mundo para a construção de novas e outras realidades, aquela que nossos estudantes requerem ávida e rapidamente e que a humanidade e o nosso planeta anseiam, aspiram e exigem emergencialmente. Referências ARAÚJO, R. M. B. T; PIRES, L. M.; SOUZA, M. M. Uso de drogas por adolescentes: Diagnóstico Sócio-demográfico de Escolares da Região Leste de Goiânia-Go, Faculdade de Enfermágem da Universidade Federal de Goiás, 2010. BERNI, Luiz Eduardo. O vácuo e o Espaço Transdisciplinar. In: FRIAÇA, Amâncio; ALONSO, Luiza; LACOMBE, Mariana; BARROS, Vitória Mendonça de. Educação e Transdisciplinaridade III. São Paulo, 2001. BOSCO, João. Misteriosamente. Música. Warla Giany de Paiva | 145 CAMARGO, Robson Corrêa de. Melodrama: o princípio da incerteza In: O espetáculo do Melodrama: arquétipos e paradigmas. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, 2005, 322p. CAMARGO, Robson Corrêa de. Teatro e fragmentos: construindo emoções, pensamentos e razões. In: CONGRESSO DA ABRACE, 8., 2014. Anais... UFMG, Belo Horizonte. CAMARGO, Robson Corrêa. Anotações de aula do dia 08/06/2018. Disciplina Memória e Sensibilidade do Programa Interdisciplinar em Performances Culturais. Faculdade de Ciências Sociais – UFG, 2018. CASSIRER, Ernst. Um ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994. INSTITUTO AYRTON SENNA. Diálogos Sócio-Emocionais. www.intitutoayrtonsenna.org.br. Acesso em: 30 ago. 2018. Disponível em: MAKEDA, Solo. Performance Artísticas criada no Ressonâncias da Dança Residência Artística. Alto Paraíso, abril-maio, 2018, s.p. NALON, Carolina. Caminho da comunicação autêntica. Disponível em: https://institutotie. com.br/caminho-da-comunicacao-autentica/. Acesso em: maio 2019. PACHECO, José. Entrevista. Diarinho [online], 5 ago. 2017. Sem página. Disponível em: https://diarinho.com.br/noticias/entrevistao/jose-pacheco. Acesso em: maio 2019. PESAVENTO, Sandra J. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Nuevo Mundo. Sem página. No ar desde 04/02/2005. Disponível em:< http://nuevomundo. revues.org/index229.html >. Acesso em: 11 maio 2009. PIMENTEL, Franco. De volta ao cais. Solo de teatro físico com poema Mãe de Hugo Zorzetti, s.p. ROSA, Guimarães. O espelho. In: Primeiras Histórias. Prêmio do PEN Clube Brasil, 1962. ROSENBERG, Marshall. Curso Comunicação Não Violenta [Português-BR]. Disponível: https://www.youtube.com/user/brunogoulartdeolivei/featured. Último acesso: maio 2019. 146 | Performances Culturais SIGNIFICADOS. O que é ritual. Disponível em: https://www.significados.com.br/ritual/. Acesso em: 30/09/2018. SODRÉ, Muniz. A ignorância da diversidade. Palestra. Canal: Núcleo de Pesquisa em Estudos Culturais – Npec. 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=WfmEABJVeu4&t=331s. Acesso em: 31/09/2018. WEBER, Nádia. Anotações de aula do dia 23/06/2018. Disciplina Memória e Sensibilidade do Programa Interdisciplinar em Performances Culturais. Faculdade de Ciências Sociais – UFG, 2018, s.p. ZORZETTI, Hugo. Poema Mãe. Presente a Franco Pimentel. Ator, Diretor, Pesquisador e Performer. s/a. Fontes CEU (nome fictício). Conversas ocorridas após a realização da Performance-Instalação II, na reunião/encontro do dia 12/06/2018. MAR (nome fictício). Relatos apresentados via whatsapp um dia após a reunião do dia 06/03/2018. Relatos de professores, via whatsapp da Proposta Arte-Educativa: Ciranda da Arte e Região Leste de Goiânia, 2017-2018. GOIÁS, Atas de reunião geral do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte do dia, 2018. TERRA (nome fictício). Conversas ocorridas após a realização da Performance-Instalação II, na reunião/encontro do dia 12/06/2018. 8 O sensível e o simbólico da encenação em Edward Gordon Craig: memórias e vivências na (des)construção do seu espaço cênico Luis Guilherme Barbosa dos Santos Edward Gordon Craig (1872-1966)1 foi um artista ora amado, ora odiado, provocador de novos estímulos e sensações que revolucionaram o pensamento moderno teatral ao propor em seus trabalhos uma nova percepção da cena e do espaço dramático. Houve da sua parte, como encenador, uma procura para compreender as potencialidades do espaço teatral e dramático para além de uma visão mimética na cena cotidiana sobre o palco, proposta e alicerçada naquele tempo pelas correntes realista e naturalista. Dentro das realizações cênicas de Craig, destaco a montagem de Hamlet, pelo Teatro de Moscou, em 1911, em parceria com Stanislavski2. Nessa montagem, utilizou os dispositivos que desenvolveu para a cena, os screens (ou telas/biombos) que indicavam uma “Edward Henry Gordon Craig nasceu em Stevenage, Reino Unido, em janeiro de 1872. Ellen Terry (1847-1928), sua mãe, tornou-se a atriz principal de sua geração. Seu pai era Edward Godwin (1833-1886), um talentoso arquiteto, desenhista de mobiliário e figurino. Edward Gordon Craig foi registrado no nascimento como Edward William Godwin, mas mais tarde ele e sua irmã adotaram o sobrenome Craig, depois que viram uma ilha pedregosa chamada Ailsa Craig, em um passeio durante um feriado na Escócia”. Traduzido de http://www.edwardgordoncraig.co.uk/his-life/. Acesso em 15/08/2018. 1 2 Constantin Stanislavski (1863-1938, Rússia), ator e diretor de teatro. 148 | Performances Culturais construção de ambientes cênicos abstratos [...] substituindo a cenografia imóvel e pesada da cena realista pela leveza dessas telas móveis, e gerando, com isso, além de novas possibilidades representacionais para a arte da cena [...] (CRAIG, 2017, p. 13). Em Craig, percebemos um olhar direcionado à investigação do espaço cênico, que será preenchido pela sua capacidade criativa, embasada nos princípios da corrente estética simbolista. Esses potenciais simbólicos encontrados junto a esta corrente estética da teatralidade moderna, em seus desenhos, gravuras e outras expressões artísticas, são importantes para começarmos a refletir sobre a cenografia enquanto um elemento de comunicação de processos também simbólicos e imagéticos. Tais processos são (re)construtores de memórias e sensibilidades, ou seja, a cenografia pode sim ser um elemento de investigação para compreendermos a importância do espaço na sua construção. Aquele olhar se torna ainda mais importante quando encontramos na biografia de Craig o fato de que ele abandona os palcos como ator para se dedicar aos estudos dos elementos da teatralidade moderna. A partir de então, desenvolve um trabalho de encenação voltado para o lado simbólico da cena, do qual emerge um processo criativo de conteúdo estrutural-imagético, repleto de potenciais simbólicos. Em Craig, o espaço é ressignificado e a cenografia se (des)constrói no limiar de um novo campo do pensamento, de imagens-chave que ultrapassam o consciente, adentrando aos campos do sensorial humano. Sua cenografia demonstra, em si, a necessidade de que se pense uma escrita da cena que construa um lócus significativo em potencialidades simbólicas, imagéticas e poéticas. Construiu uma nova linguagem e despertou o sensorial das plateias a partir de uma escrita cênica carregada de significados. Procuro entender, aqui, também, de que forma a construção cenográfica simbólica em Craig distancia-se da mímese do cotidiano na encenação de seu tempo, no sentido da transposição de significados reais para significados simbólicos. Luis Guilherme Barbosa dos Santos | 149 A história, como também orientadora da análise das performances, permite-nos uma leitura dos significados velados por meio da observação das coisas. A ideia de teatralidade alcança uma extraordinária quantidade de significados, fazendo isso através do ato e da atitude, um estilo para um sistema semiótico, um caminho para a mensagem (DAVIS; POSTLEWAIT, 2003, p. 5). Procuro buscar por alguma luz, nesta análise, o entendimento dos conceitos de memória como “gatilhos” para Craig na escrita da sua cena. Entender o palco como apenas uma máquina de atuar comporta muito mais que expressões técnicas da realidade. A encenação abarca, também, expressões simbólicas, de múltiplos significados. As memórias sociais e individuais, expostas simbolicamente pelas imagens mentais e concretas construídas em Craig, refletem a energia psíquica condensada para sua compreensão. Imagens memoriais como testemunhos e tradição estão, percebo, nas obras de Craig, construídas além das características cênicas do seu tempo. Tais obras necessitam de uma espécie de arqueologia cênica com relação aos sinais ou vestígios memoriais dos acontecimentos na encenação, para que a carga simbólica expressada na sua arte seja entendida e exposta. Desse modo, os instantes que configuram as verdades da vida desse artista da cena e na cena, entendo, puderam ser transportados para as encenações que criou; verdades expostas pelo simbólico impresso na materialidade e nos significados aparentes e ocultos que atribuiu ao conjunto cenográfico e à luz cênica. Uma recuperação de memórias nas obras de Craig pode ser aceitável. É possível pela sua história familiar e trajetória profissional, sendo filho de pai arquiteto, Edward William Godwin (1833-1886), e mãe atriz, Ellen Terry (1847-1928), e pelas vivências que teve em arquitetura e teatro. Destaca-se na sua trajetória de vida, ainda, o contato com Henry Irving3 (1838-1905). 3 Henry Irving foi um ator britânico, em cuja companhia teatral Craig iniciou a sua carreira. 150 | Performances Culturais Craig configura, a partir das constituições metafóricas de realidade na cena, o simbolismo nas suas encenações, nas quais cenários apresentam-se como alegorias do material. Experimentamos, nas suas obras, um distanciamento da morfologia cênica convencional, que nos afasta da realidade das suas composições cenográficas como matéria e que apresentam atmosferas divergentes do que se possa compreender como coisa mimética. Nesse sentido, construção, registro e percepção da memória podem concretizar-se como ato gráfico e cenográfico, por meio de processos criativos individuais que configuram ambientações moldadas no imaginário e a partir de uma carga memorial condensada. As imagens sensíveis e memoriais nas obras de Craig localizam-se em um campo de investigação que abraça particularidades da sua vida e de suas prováveis referências simbólicas, míticas e arquetípicas da sua construção como homem e artista. Para compreender a construção simbólica estrutural e morfológica nos seus conjuntos cenográficos, ainda se necessitaria de um mergulho profundo no seu universo interno, relacionado ao fantástico e ao simbólico, sublinhando seus poderes na sua trajetória artística teatral. Segundo Davis e Postlewait (2003, p. 5), “a teatralidade pode ser definida como um tipo específico de estilo de performance ou inclusive como todos os códigos de semiose da representação teatral”. A semiose da interpretação teatral passaria pela recuperação das memórias, em ação corpo-mente, em verbalização e corporificação daquelas memórias, advindas de atos de experiência e vivências. As alianças objetivas e subjetivas da teatralidade, em sua transposição para a cena, viriam configuradas pelos processos de apreensão, armazenamento e verbalização dessas memórias. É certo que sempre haverá uma máscara por trás da encenação e as subjetividades na teatralidade. Seus signos, símbolos e significados transcenderão a essa máscara construída e constituída por fatores internos e externos, em detrimento da ideia de que fachadas podem ser desconstruídas e reconstruídas na cena teatral e cotidiana. Observando de que forma as mensagens ocultas ou dispostas nas entrelinhas dos gestos, das falas e do desenho da cena teatral são Luis Guilherme Barbosa dos Santos | 151 tornadas visíveis ou expostas pela linguagem simbólica, pode-se possivelmente entender Craig. Realçando a fala de Davis e Postlewait (2003, p. 8), na qual dizem que “de acordo com Platão, a mimese tenta evocar o ‘factual’ ou mundo real mas não pode capturá-lo porque o real não se localiza no visceral e no tangível do mundo material”, compreendemos que a mímese da vida cotidiana no ato da transposição desta para a cena teatral dependerá da ponderação de que uma evocação do real, do concreto, está distante de qualquer coisa palpável. Dependerá da energia e da predisposição para capturar significados do que não é tátil. O visceral é interno, subjetivo e simbólico. Portanto, não é palpável, tangível pelos sentidos corporais. No entanto, sensível no sentido de que temos na origem da formação dos símbolos e arquétipos humanos, referências não sabidas, mas de fato sentidas. Em Craig, os meios de transmissão de memórias perpassam pela demonstração concreta da sua imaginação e memória, transformadas em desenhos, gravuras e cenários. Essas memórias desenhadas na cena podem se confirmar como tal por meio das atmosferas construídas, do desejo em abstrair o real e concretizar o sonho, a ilusão, em uma espécie de refração do visto e assimilado no mundo real. A partir de Sacks (1995, p. 165), entendemos as narrativas cênicas em Craig como relatos de memória, se as percebermos como relatos de experiências e vivências, memória emocional/afetiva, transferidas para o seu processo criativo no desenho, na gravura e, por fim, na materialização dos seus projetos, com a sua identidade representada pelas suas linguagens artísticas na escrita cênica. No dicionário, se lê: “linguagem é qualquer meio sistemático de comunicar (e/ou) expressar ideias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais” (FOGEL, 2017, p. 32). Ou ainda: “linguagem é ‘qualquer sistema de símbolos ou sinais ou objetos instituídos como signos’ e que assim vão ‘comunicar, expressar, exprimir’” (FOGEL, 2017, p. 32). 152 | Performances Culturais Desse modo, entende-se linguagem como uma forma de expressão que não demanda, necessariamente, conteúdos objetivos, materiais, palpáveis. Tal como o entendemos, “o símbolo, por definição, não é a própria coisa, mas evocação, substituição ou representação da coisa ausente” (FOGEL, 2017, p. 53). Quaisquer elementos evocados para expressar algo tornam-se válidos pelo próprio significado tangível. O desvelamento de um símbolo acontece pela projeção antecipada do seu significado. Memória é fator decisivo, pois, a partir dela, acontecem as aproximações ou conexões com os elementos que possam estar atados com a coisa em si para seu entendimento. Analisar Craig e seu universo simbólico nas encenações partiria também da análise da sua personalidade, da sua psique. Há também um ato político-social em Craig, na (re)construção do seu espaço cênico e da encenação, em vista da (des)construção do cotidiano, do sentido da mímese. É um ato de negação ou de ruptura com o Naturalismo e com o Realismo no palco. Para o receptor, o produto mimético postula (e aparentemente pressupõe) uma ligação empírica com o que está representando, mas essa relação é simplesmente um acessório (acompanhamento) retórico ou similar, nunca o mesmo. (KING, 1995 apud DAVIS, POSTLEWAIT, 2003, p. 8). A mímese do cotidiano na representação social ou teatral apresenta ligações com o empírico, construído pelas vivências e pelas incursões nos fragmentos de memórias, despertando, propositalmente ou não, processos criativos. Dentro de um propósito de abstração cenográfica da realidade, Craig busca, pela substituição da mímese na cena, uma ruptura com a tradição cênica, sabendo-se que quaisquer e as mesmas atividades performativas poderão ser entendidas das mais variadas maneiras. Uma necessidade a ser construída. Tradição indica memória e, nesse sentido, a memória está inserida em um campo de lutas e de relações de poder, configurando um contínuo embate entre lembranças e esquecimentos” e a “memória pode ser considerada também do futuro, pois a imaginação articula Luis Guilherme Barbosa dos Santos | 153 esses dois tempos mágicos e simbólicos – passado e futuro – sem diacronia, ordem cronológica ou ordem evolutiva (GONDAR, 2016, p. 11). Tempos mágicos e simbólicos são evidentes nas obras de Craig, em uma linguagem cenográfica indireta. É fundamental a observação das atmosferas criadas por ele nos jogos de luz e sombra, nas superestruturas cenográficas e no uso tridimensional da caixa cênica para que essa linguagem seja minimamente entendida. Relações de poder, em uma análise dedutiva, ponderando-se a respeito das estruturas físicas dos cenários que desenvolveu, estabelecem-se mediante planos horizontais e verticais vistos e, assim, percebidos. A imaginação, articulada na morfologia da cena, pelos fragmentos memoriais e pela carga memorial por ele assimilada é transposta para a cena. A (re)criação de atmosferas para a cena são tornadas materiais em forma de cenografia e luz. A memória na cena craiguiana, formada por traços impressos de memória individual, social e política, é materializada na estrutura cenográfica no sentido de que se percebe, visualmente, uma ruptura com o teatro tradicional, com as encenações diferenciadas do comum em seu tempo. As pessoas tomam consciência, por exemplo, de que aquilo que o espaço cênico nos faz ver é uma imagem. Imagem em três dimensões, organizada, animada. Descobre-se que essa imagem pode ser composta com a mesma arte que um quadro, ou seja, que a preocupação dominante não é mais a fidelidade o [sic] real, mas a organização das formas, a relação recíproca das cores, o jogo de áreas cheias e vazias, das sombras e das luzes etc (ROUBINE, 1998, p. 32). Roubine (1998) fala de imagens em três dimensões no espaço cênico e indica uma não fidelidade com o real, o natural do cotidiano transposto para a cena. Nesse sentido, Craig abraça essas formas de apropriação do espaço cênico para a transmissão de mensagens carregadas de conteúdos simbólicos. Essas mensagens são compostas pelos jogos dramáticos potencializados pela estrutura cenográfica, sua morfologia, sua estética e pelas atmosferas criadas. Dessa forma, “do ponto de vista prático, podemos compreender a memória como um dispositivo, fonte de nossa 154 | Performances Culturais subjetividade” (GONDAR, 2016, p. 11) e, ainda que Craig provavelmente, consciente ou inconscientemente a tenha utilizado, viria solidamente assentado em suas reflexões sobre a manutenção de valores sociais e processos de transformação da sociedade para demonstrar, antagonicamente, uma intenção de construir um futuro na sua cena a partir da ruptura com a cena tradicional. Substituindo a cena imóvel e pesada realista pela cena fluida e dinâmica em sua obra, Craig estabeleceu possibilidades de um adensamento da dramaticidade mediante também da luz e dos cheios e vazios nos cenários. Transformou a cena realista em cena simbólica, como uma caixa cheia de elementos carregados de metáforas e alegorias, que aludem à memória e à vivência. Seu fazer cenográfico mostra, além da abstração da realidade, nas raízes do que lhe era concreto, a criação de um conjunto tridimensional que avançou ao que compreendemos como realidade. Em suas obras, reconstitui e reconstrói a cena a partir da ativação de campos ocultos da sua memória, tornando-a real, palpável e material. A memória pode ser um agente construtor de símbolos, que são despertados pelo ato de transposição na materialidade dos seus fragmentos, “apostando-se num poder maior de perpetuação da lembrança” (GONDAR, 2008, p. 2). O potencial de significação da forma da cena desenhada por Craig, podem ter o caráter de resquícios memoriais, e o ajuntamento destes, mesmo inconscientes, materializados na cena, forma um círculo de significação. Os elementos subjetivos e materiais, juntamente com a luz cênica, criam e transformam sua ambientação cenográfica, resultando em atmosferas construídas e sugeridas. Craig transpôs a sua lógica projetual para o desenho cenográfico. Nesse sentido, “a retenção de mais de um significado nas coisas” (CAMARGO, 2008, p. 1) exigiria também a utilização de processos de significação ou metodologias de expressão artística para dar sentido à sua obra. A cena craiguiana estava materializada pela fixação de imagens simbólicas, haja vista o sentido das coisas na sua cena estar no campo do Luis Guilherme Barbosa dos Santos | 155 simbólico, e não no campo da realidade cotidiana anteriormente representada no palco. É possível que, “juntando agora elementos visuais, cacos de imagens, lembranças, poesias, vivências pessoais significativas ou construídas (imaginadas)” (CAMARGO, 2008, p. 7), tenha-se um potencial fator de expressão da linguagem simbólica e memorial em Craig. Nas performances, o trabalho com o simbólico, com o arquetípico e com o mítico, construído de dentro para fora, alcança força pela expressão também da psique, um conjunto de conteúdos experienciais da vida humana. O imaginário também é construído pelos símbolos e, em Craig, as hierarquias e os jogos de poder, simbolicamente, podem ser observados pela própria visualidade da cena e sua construção prévia. Segundo o próprio Craig, a arte da cena é constituída pelo gesto, que é a alma da representação; pelas palavras, que são o corpo da peça; pelas linhas e pelas cores que são a própria existência de cenário; pelo ritmo, que é a essência da dança (CRAIG, s.d apud BARROS, 2015, p. 85). A linguagem subjetiva nas obras de Craig é clara, até mesmo em seus discursos justificativos. E está aí, na escrita cênica particular de Craig, a atividade criadora de símbolos, cujos resultados são vistos materializados na encenação, na luz cênica e na performance dinâmica e simbólica dos screens. Os biombos eram volumes abstratos que possibilitavam sugerir o universo da tragédia. Stanislavski informa que os biombos “proporcionavam alusões sobre formas arquitetônicas; ângulos, nichos, ruas, vielas, corredores, torres, etc. As alusões se completavam mediante a imaginação do mesmo espectador. (STANISLAVSKI, 1981 apud BARROS, 2015, p. 87). A construção dos screens materializa uma atmosfera cênica que conta com a subjetividade como linguagem, abrindo espaço para o imaginário e os referenciais simbólicos. Os espectadores absorviam essas informações simbólicas, muito provavelmente, pelas referências percebidas em si 156 | Performances Culturais próprios e pelo espelhamento de si mesmos nas representações cênicas e cenográficas do artista, adentrando em um universo alimentado por símbolos e farto em simbolismos. A participação da luz cênica é vital e transformadora, “como se estivessem em um sonho [...] que foi completado, em suas cores, pela imaginação e fantasia” (STANISLAVSKI, 1981 apud BARROS, 2015, p. 88). Tal universo, em imaginação e fantasia, perpassa a todos os conceitos estruturais memoriais do espectador, em que ele se permite à imersão, ao reforço, em campos de memória individuais e coletivas, também se permite referenciar essa fantasia e imaginação em suas próprias experiências de vida. Assim respaldado, o espectador compreende, basicamente que seja, aos propósitos do encenador, do cenógrafo e do iluminador cênico que, com suas linguagens, unidas em um caminho uno, transpõem os limites da materialidade, chegando aos campos da memória, da lembrança e das sensações. O teatro como fenômeno “existe realmente nos espaços, do presente e do imaginário, e nos tempos coletivos, individuais e históricos que se formam a partir desses espaços” (CAMARGO, 2008, p. 2). Para tanto, o fenômeno teatral transcende ao material, alcançando campos ocultos do interno humano. Como fenômeno nos tempos individuais e coletivos, em referência à memória, Craig possivelmente dialoga com a sua própria história. Barros (2015, p. 88) diz que “uma hipótese é que Craig se identificava com a personagem Hamlet, ele associava suas próprias aspirações, seus desapontamentos e sua sensibilidade com os de Hamlet. A personagem era um espelho de suas preocupações” (TAKEDA, 2003 apud BARROS, 2015, p. 88). A identificação provavelmente seja a palavrachave em Craig e suas expressões em cenografia, haja vista isto evidenciar uma fundamentação em si próprio, mediante aquela identificação com a personagem, manifestada materialmente em sua produção. O teatro, como atividade social e “manifesto na memória-imagem” (CAMARGO, 2008, p. 2), permite ao espectador um o olhar sobre si próprio, diferentemente do crítico, que alça suas reflexões a impressões Luis Guilherme Barbosa dos Santos | 157 mais técnicas em relação ao espetáculo que impressões sensíveis, como de fato faz o espectador comum. Este processo de desvelamento de ideias, imagens e conteúdos simbólicos é que desencarcera, assim reflito, o espectador da realidade. Craig propôs essa libertação do real em seus estudos e realizações, levando o seu espectador a um mundo de memórias individuais e coletivas, a um universo de lembranças e, finalmente, ao reconhecimento ou percepção de si próprio na identificação dos arquétipos construídos e expostos nas diversas atmosferas do seu desenho cênico. Tem-se em Craig, possivelmente, um “processo de sobreposição e diálogos em camadas sucessivas, camadas estas que podem dialogar em harmonia ou antagonismo, ou num misto oscilante, numa combinação híbrida entre estes dois” (CAMARGO, 2018, p. 21), perpassando a simples observação das imagens na encenação, tocando a memória e as sensibilidades exatamente por esse hibridismo de linguagens evidenciado. No mundo do teatro, das memórias, das sensibilidades, das lembranças e dos esquecimentos, tais conceitos se manifestarão, em detrimento da natureza do ser humano em querer e poder verbalizar as suas inquietações, velar e desvelar desejos, sair da escuridão em que habita, externando as suas necessidades em expor na materialidade suas reflexões, corporificando-as na cena, tornando-as reais, palpáveis. De onde pode vir “um desenho puramente imaginativo e fantástico” (CRAIG, 2017, p. 158), a não ser da manipulação artística dos seus universos consciente e inconsciente, transformados em encenação? A (des)construção do espaço cênico em Craig avança à demarcação pura e simples, sobre o palco, de qualquer elemento material. Ele se distancia da mímese do que se vê e se percebe no cotidiano vivido. A mobilidade da cena, a logística, a profundidade, a tridimensionalidade e a perspectiva são os elementos que, na caixa cênica, Craig materializa como representação simbólica, reconfigurando-os por meio de atmosferas variadas, com auxílio de esteios técnicos essenciais: luz e sombra, como representação do dia e da noite, da sombra (em contraste com a luz) e a escuridão (o espaço da transformação ou da busca pela transformação, da simbologia no ritual 158 | Performances Culturais teatral). Estes elementos materializados definiram planos de memória e de imaginação sobre o palco, trazendo à superfície da compreensão o palco como lugar, e não somente como local. Assim, Craig anota que, agora, quando tudo o que desejo dizer algo a respeito remete àquelas coisas que nós colocamos no palco de um teatro, para sustentar-se como ‘Lugar’ (...) me vejo apanhado pela ausência da palavra certa para descrever isso, a ponto de que alguém viesse a entender, sobretudo, o que eu não quero dizer (CRAIG, 2017, p. 184). A memória de Craig está exposta e firmada no seu posicionamento e prática em dizer, finalmente, que por enquanto, infelizmente, pode ser verdade que escrevemos e falamos palavras meramente para disfarçar nossos pensamentos – nós ainda as lemos precisamente pela outra razão, que é a de aprender com as coisas que não vimos, de ouvir coisas que não ouvimos daqueles que as ouviram e as viram (CRAIG, 2017, p. 184). É a memória, portanto. É a memória coletiva que Craig abraça e leva à cena, tanto quanto a sua própria. Craig transferiu significados internos de si na cenografia que produziu, em uma representação ativa e passiva das suas memórias. Seus meios de transmissão daquelas memórias foram a criação de espacialidades cênicas por meio do imaginário, carregado de carga simbólica, ou um real simbólico; e seu espaço cênico configurou-se como um instrumento de recuperação daquelas memórias. Esses discursos concretos da memória em Craig não são puramente racionais: são processos de criação e recriação de memórias e lembranças, que alcançam seu auge na configuração morfológica, estética e estrutural do seu espaço cênico, em um reflexo do seu tempo e dos seus desejos e necessidades em expressão técnica, memorial e artística. As escritas cenográficas de Gordon Craig poderão, portanto, deixar transparecer serem relatos de memórias, em um distanciamento real da mimese cênica, cenográfica e cotidiana. Silva, falando sobre a luz em Craig, diz que este “se enveredou por estudo minucioso de reposicionamento Luis Guilherme Barbosa dos Santos | 159 desta perante o espaço cênico [...] gerando novas possibilidades de leitura e significação” (SILVA, 2013, p. 24). Diante dessa consideração, percebo que as experimentações de Craig nas encenações tinham, de fato, um potencial simbólico a ser significado na materialidade e na simbologia comunicada pela cena. Nesse sentido, “ele se envereda por um estudo minucioso sobre a luz e suas capacidades de representar, significar e dialogar com o espaço e o tempo” (SILVA, 2013, p. 25). Um estudo mais aprofundado pode nos permitir descobrir os significados nas obras de Craig nesse diálogo entre espaço, tempo e simbologias e, de certa forma, listar pontos de contato entre seu eu e a sua percepção a respeito das novas teatralidades que propunha. Craig tinha a luz como elemento presente e atuante (CAMARGO; SILVA, 2018) nos seus modos de construção de atmosferas na encenação. Em vista disso, ele levou à cena não só a materialização do que compreendia ser o pensamento dos personagens, mas também como percebia em si mesmo, a partir das suas vivências e memórias. Isto fez com que ele alcançasse e ultrapassasse os limites da materialidade. Perpassou ao imagético e ao memorial. Reafirmou, a partir da expressão de si mesmo e por meio dela, um dos possíveis maiores atos para a transformação das memórias em expressão artística: conhecer-se a si mesmo. Reconfigurou a partir de novas percepções o seu espaço performático, desassociado da mímese, espaço desconstruído pela sua visão singular do cotidiano e reconstruído na cena com as máximas expressões de si próprio. O simbolismo, construído do interno para o externo, materializou-se no real craiguiano das mais diversas formas, a partir das mais diversas maneiras de expressão. Iluminar o caminho da imaginação transcenderá, portanto, a observação racional da realidade e dos fatores internos intrínsecos à humanidade e ao ato de criação. De fato, construir símbolos dependerá exclusivamente das experiências no ato da vida e na transposição deste para o cotidiano. Em um tempo não linear, como é o tempo da imaginação, do pensamento, criamos limiares simbólicos, lugares, entrelugares e tempos duplicados. Não é só ver. É 160 | Performances Culturais também enxergar além da materialidade e entender as imagens simbólicas como uma expressão tão válida quando uma expressão realista. O deslocamento da trama para as imagens simbólicas impressas na cenografia de Craig vem fundamentado tanto nos preceitos construídos na sua memória quanto nas experimentações e práticas decorrentes da sua imersão no universo da cena. A linguagem arquitetônica impressa nas suas obras é evidente, dada a expressão técnica calcada na criação dos seus espaços cenográficos, (re)construídos a partir de uma perspectiva projetual. Craig é agente na vanguarda teatral. No campo da tecnologia e de materiais para a (re)criação de atmosferas na nova cena que propôs, atuou como “um poeta que projetou as maravilhas do teatro novo [...]” (RAMOS apud CRAIG, 2017, p. 11). Nesse novo teatro, Craig desenvolveu os screens móveis. Esses screens eram painéis que se movimentavam horizontal e verticalmente, transformando a cena em uma espécie de quebra-cabeças cênico, no qual as atmosferas teriam, além da expressão do artista, recursos dinâmicos móveis. A luz cênica seria essencial na encenação com os screens, dada a possibilidade de expansão dos objetivos cênicos por meio do tratamento do espaço da cena pela luz, colorida ou não, gerando lugares, entrelugares e espaços que pudessem sugestionar significados simbólicos ao imaginário da plateia. De acordo com Ramos (apud CRAIG, 2017, p. 12), “o projeto se estruturava por meio de screens ou telas/biombos. Ele foi patenteado em 1910 em quatro países (Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos) e continuou sendo desenvolvido por Craig até a década de 1920”. Diante disso, Craig apresenta e defende apaixonadamente as suas screens: dispositivos de telas articuladas em abas que, sustentadas sobre rodas, almejavam dar à arquitetura cênica uma mobilidade e flutuação só habituais à música (RAMOS apud CRAIG, 2017, p. 13). Luis Guilherme Barbosa dos Santos | 161 Tem-se aqui técnica e propósitos cênicos elaborados em conjunto, na materialização de ideias e desejos por meio da construção efetiva do pensamento, concretizando-o. Os screens foram dimensionados, isto é, planejados a partir de preceitos técnico-construtivos. Figura 1 – O projeto de Craig para os screens móveis, ou biombos. Fonte: Revista Scenography International. “Gordon Craig and 'Improvements in Stage Scenery', 1910”. Disponível em: https://www.iar.unicamp.br/lab/luz/ld/C%EAnica/Artigos/Gordon%20Craig.pdf Dessa forma, poderiam ser construídos envolvendo conceitos e práticas relacionadas a projeto. O dispositivo ensejava a construção de ambientes cênicos abstratos, já ambicionados pelos poetas simbolistas, mas também pretendia servir à encenação de dramas convencionais, substituindo a cenografia imóvel e pesada da cena realista pela leveza dessas telas móveis e gerando, com isso, além de novas possibilidades representacionais para a arte da cena, uma enorme economia potencial de materiais e de pessoal” (RAMOS apud CRAIG, 2017, p. 13). O teatro pictórico, no sentido cenográfico, passou por uma transformação a partir do desenvolvimento dos painéis de Craig. Vieram, então, novas perspectivas para as ambientações cênicas e para a criação de novas atmosferas na modernidade teatral. 162 | Performances Culturais Figura 2 – Craig para Hamlet Fonte: https://www.nypl.org/blog/2014/11/14/cranach-press-hamlet A cena craiguiana foi um avanço técnico e teórico na história dos espetáculos teatrais. Uma cena cinética, a partir da sua gênese, dinamizou as encenações também sob o olhar da luz cênica, em qu “[...] ele toca numa das questões mais intrigantes de sua obra teórica que é a da iluminação, mais especificamente do contraste entre a luz artificial e a luz natural, do sol” (RAMOS apud CRAIG, 2017, p. 18). O diálogo entre memória, sensibilidades e cena perpassa o limite do verbal, do elemento material edificado no palco. A estrutura cênica, em sua complexidade e volume de informações, significa mais que uma cena maquinizada. O conjunto indissociável entre o universo material da cena e a luz que atua sobre ela são características notáveis na obra de Craig, que, juntamente com os significados simbólicos apresentados nas suas encenações, ofertou ao teatro uma renovação em todas as suas possíveis linguagens. Referências BARROS, Edlúcia Robélia Oliveira de. Performances em Hamlet: textualidades, teatralidades e liminaridades. Dissertação (Mestrado em Interdisciplinar em Performances Culturais) – Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais, da Escola de Música e Artes Cênicas, EMAC-UFG, 2015. CRAIG, Edward Gordon (1872-1966). Rumo a um novo teatro e Cena. Trad: Luiz Fernando Ramos. – I. Ed. – São Paulo : Perspectiva, 2017. Luis Guilherme Barbosa dos Santos | 163 CAMARGO, Robson Corrêa de. A crítica e a Crítica Genética. Diálogos sobre o entendimento do espetáculo teatral. Texto publicado inicialmente com o nome de A Crítica Genética e o Espetáculo Teatral em Gestos 43 (Abril, 2007), pg. 13-32. Versão revista e ampliada em dezembro de 2008 para publicação virtual em academia.org DAVIS, Tracy C., POSTLEWAIT, Thomas. Theatricality. Theatricality / edited by Tracy C. Davis and Thomas Postlewait. p. cm. – (Theatre and performance theory). Cambridge University Press, 2003. FOGEL, Gilvan. Desaprendendo o símbolo: ou Da experiência da linguagem/Gilvan Fogel.1. ed. – Rio de Janeiro : Mauad X, 2017. GONDAR, Jô. Cinco proposições sobre memória social. Morpheus: revista de estudos interdisciplinares em memória social, Rio de Janeiro, Edição Especial ‘Por que Memória Social?,’ v. 9, n. 15, p. 19-40, 2016. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/painel/pdf/publ_19.pdf. GONDAR, Jô. Memória individual, memória coletiva, memória social. Morpheus - Revista Eletrônica em Ciências Humanas - Ano 08, número 13, 2008 - ISSN 1676-2924 ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Zahar, 1998. SACKS, Oliver. A paisagem dos seus sonhos. In: Um antropólogo em marte. SP: Cia das Letras, 1995. (p. 165-197, com imagens). SANTOS, Nádia Maria Weber e AZEVEDO, Paula. Entrelaçando passado, presente e futuro: uma busca sensível da memória familiar. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, V. 6, Ano VI, n. 1, p. 1-15, jan./Mar. 2009. Disponível em: http://www.revistafenix.pro.br/vol18nadia.php SILVA, Allan Lourenço da. Luz e Sombra em Senhora dos Afogados à luz de Rembrandt. Trabalho de Conclusão de Curso – Universidade Federal de Goiás, 2013. SILVA, Allan Lourenço da; CAMARGO, Robson Corrêa de. Luz presente e atuante: a Arte e Ciência em um encontro tecnológico na Produção Cênica. Produção cênica e Sociedade. 2. versão revista e ampliada. PPGIPC), 2018. p. 1-16. 9 Os bailes de dança de salão enquanto performance: as mudanças no mundo contemporâneo e a questão do sensível Andrea Palmerston Muniz Introdução As danças de salão fazem parte do cotidiano das cidades. Merecerão uma atenção especial neste artigo no que se refere aos espaços por elas ocupados, entre eles os bailes, enquanto espaço de sensibilidades e performances1. Espaços de performances são lugares de executar um bailado, dançar ou mesmo não estar fixo, oscilar. Os bailes do presente e do passado, seus voleios e possibilidades serão analisados aqui como parte da memória e do imaginário social. O artigo vem considerar que a dança de salão tem uma transformação no mundo contemporâneo, e isso perpassa pela questão do sensível, visto que paira na memória e no imaginário social de um povo, com a dança fazendo parte de sua cultura. A dança de salão no baile reflete o conflito entre o permitido socialmente e as sensibilidades compartilhadas do toque. Estando a dança de salão na mão e na contramão, pois ao mesmo tempo que é uma dança do 1 Performance é aqui apropriada “como do entendimento das culturas através de seus produtos ‘culturais’ em sua profusa diversidade, ou seja, como o homem as elabora, as experimenta, as percebes e se percebe, sua gênese, sua estrutura, suas contradições e seu vira-se” (CAMARGO, 2013, p. 2). Andrea Palmerston Muniz | 165 social, que veio para educar os corpos, traz a possibilidade da transgressão em suas regras em que tocar outro corpo é sempre um jogo cada vez mais imbrincado na história. Como muito bem explicitado por Rodrigues (1999, p. 177), a história também é feita por “[...] perfumes, sons, miragens, memórias, carícias, distâncias, ascos, evitações, esquecimentos... Não há outra concretude social: uma sociedade estará nos corpos de seus membros ou não residirá em parte alguma”. Ressalta-se que a dança pode vir em diversas formas, seja como uma manifestação artística, seja como uma simples diversão. Na manifestação artística, a dança expressa-se por movimentos corporais, com ou sem ligação musical, para um determinado público ou como rituais e manifestações religiosas. A dança acompanha a humanidade desde sua origem: o ser humano dançou em agradecimento aos deuses, para fertilizar suas terras, para sua própria diversão, dançou de diversas formas, independentemente da raça, da etnia, da cultura. Mais do que “apenas” dançar, a dança representa formas de manifestação corporal, por meio da qual pode expressar sentimentos, desejos e o simbólico. A dança situa-se entre as performances culturais momentâneas e que podemos observar como formas simbólicas de se expressar, como colocado por Camargo (2013, p. 4), para quem essas performances são “simbólicas e concretas” e perpassam por distintas manifestações, revelando o não quantificável por números ou entrevistas, mas apreensível apenas pela experiência, vivência e pela relação humana. Os bailes são espaços de performances em movimento no tempo e na memória de seus participantes, em que cada um dos grupos envolvidos nos bailes tem sua história entrelaçada com a cultura, em que a “História Cultural” seria decifrar a realidade do passado por meio das suas representações, tentando chegar àquelas formas, “discursivas e imagéticas, pelas quais os homens expressaram a si próprios e o mundo” (PESAVENTO, 2003, p. 42). 166 | Performances Culturais Cultura e memória: a dança como manifestação cultural A cultura é aqui colocada com o olhar do nosso tempo, em que os espaços dos bailes são pensados sob essa perspectiva cultural, ou da História Cultural, no resgate de sentidos conferidos ao mundo, como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos humanos para explicar esse mundo. O olhar sobre os bailes traz um recorte sobre espaços urbanos e sua cultura. Ainda, a cultura é “uma forma de expressão e tradução da realidade que se faz de forma simbólica, ou seja, admite-se que os sentidos conferidos às palavras, às coisas, às ações e aos atores sociais se apresentam de forma cifrada, portando já um significado e uma apreciação valorativa” (PESAVENTO, 2003, p. 15). A intensão de traduzir o mundo a partir da cultura é um movimento da contemporaneidade (PESAVENTO, 2003, p. 17); contudo, é preciso descobrir os fios, tecer a trama geral desse modo de fazer História. Enquanto cultura, a dança e seus espaços são presenciados pelo tempo em contatos entre beleza, equilíbrio, harmonia e revolta, que são valores estéticos que representam nossas emoções, nossos sentimentos, nossa cultura e nossa história. Isso é uma criação humana a que chamamos de arte e “como fenômeno histórico-sócio-cultural, a dança popular deve ser apropriada pela educação” (FIGUEIREDO, 2007, p. 7), pensando nas possibilidades de ser encontrada nos conhecimentos do cotidiano e nas dimensões do desenvolvimento humano como questão essencial na cultura dos povos. As danças de salão como fenômeno social são atravessadas por memórias dos seus atores. A memória é constituída de elementos individuais e coletivos, “temos inicialmente os acontecimentos vividos de forma pessoal, em segundo os vividos por tabela, no sentido de vivenciados pelo grupo ou coletividade, nem sempre vivenciado, mas como que herdado do grupo ao qual pertence” (POLLAK, 1992, p. 201). A memória também é composta por personagens, lugares e construída constantemente. Os espaços urbanos ocupados pelos Bailes de danças de salão trazem em si memórias e relatos de pessoas e grupos que ocuparam e ocupam Andrea Palmerston Muniz | 167 esses lugares de convívio. O exercício de resgate desses relatos exige um “escavar” cuidadoso (BENJAMIN, 1987, p. 239) em que “atos” nada são além de camadas em que apenas a exploração mais cuidadosa entrega aquilo que recompensa a “escavação”. A memória é um fenômeno construído. Quando falo em construção, em nível individual, quero dizer que os modos de construção podem tanto ser conscientes como inconscientes. O que a memória individual grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização (POLLAK, 1992, p. 204, grifos do autor). A memória de um grupo em específico ou mesmo de espaço de convívio é o olhar de dentro com suas similitudes. A memória coletiva “apresenta ao grupo um quadro de si mesmo que, sem dúvida, se desenrola no tempo, já que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele se reconhece sempre dentro dessas imagens sucessivas” (HALBWACHS, 2006, p. 88). Como uma dimensão do sensível, a cidade e suas construções de um ethos (PESAVENTO, 2007) são um fenômeno cultural que implica atribuir valores à dimensão daquilo que se convencionou chamar de urbano, representado pelas práticas cotidianas, pelos rituais e pelos códigos de civilidade. O estudo da História Cultural dos bailes e suas memórias é um resgate do sensível de pessoas que se utilizam desses espaços de convívio; história partilhada no corpo, na escuta, no enlaçar de corpos, em que o sensível transborda com a memória. A dança social já carrega em seu nome e em seus espaços a carga da construção do urbano como manifestação cultural desse espaço, que se torna um lugar de convivência e tudo que o termo lugar de convivência carrega concretamente em relação à dança social: partilhar de um lugar em que se dança, onde os corpos se tocavam e continuam se tocando mesmo com todo os ataques que o corpo recebe da sociedade burguesa. Como colocado por Rodrigues (1999, p. 179): 168 | Performances Culturais Isto significa que – apesar de ter sido desqualificado, de certo modo, desde a ascensão dos burgueses, apesar de ter sido desprezado por todos os meios, apesar de ter sofrido todos os ataques, desde os mais violentos até os mais sutis e refinados – o corpo conservou sempre um lugar central, especialmente na visão de mundo dos segmentos sociais e psicológicos menos atingidos pelos missionários da sociedade capitalista e industrial. Contra tudo o que se lhe opôs, mesmo nos setores em que esses doutrinadores foram mais bem-sucedidos, o corpo continuou a ser um ponto crucial de enraizamento dos seres humanos no mundo físico ou comunitário. O corpo na dança de salão é provocado e provoca em sua ação, ao mesmo tempo em que se coloca como uma dança do social e para o social. A construção da identidade deste corpo é um fenômeno que se produz em referência aos outros, “[...] em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros” (POLLAK, 1992, p. 204). A memória e identidade que podem perfeitamente ser negociadas não são essências de uma pessoa ou grupo. O conceito de identidade está adjunto à existência de “outros” e à identidade pessoal; está basicamente ligado à natureza psicológica, dando a percepção da própria existência do ser humano como pessoa que se relaciona com outros sujeitos, com os quais forma um grupo social. Para Giddens (2004): A identidade está relacionada com os entendimentos que as pessoas têm acerca de quem são e do que é importante para elas. Estes entendimentos formam-se em função de determinados atributos que são prioritários em relação a outras fontes geradoras de sentido. O gênero, a orientação sexual, a classe social, a nacionalidade ou a etnicidade são algumas das principais fontes da identidade (GIDDENS, 2004, p. 29). A identidade é a interação do “eu” com o “outro” influenciando valores, ideias, crenças e ideologias do indivíduo, como um processo dinâmico, em contínua evolução e mudança constante, associado às mudanças em relação ao tempo e espaço social de referência. Andrea Palmerston Muniz | 169 Podemos, portanto, dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992, p. 204). A dança de salão traz nos corpos de suas participantes memórias de rituais e formas corporais que criam identidades para participar dos salões dos bailes. Esses fatores identitários nos bailes passam por diversos fatores culturais. No caso dos bailes em Goiânia, vêm associados ao novo, ao convívio e à política. Como práticas comunitárias, os bailes dão certa identidade ao grupo. De acordo com Figueiredo (2007), o convívio é um elemento de afirmação dos valores sociais e culturais de um povo. O povo em Goiás reunia-se em rodas no final do dia e, neste ritual, podia-se dançar, cantar e estabelecer estratégias políticas. Acompanhadas de viola, sanfona e caixa, cita nosso depoente, as danças de roda, reuniam pessoas em salão simples, em frente à casa principal, para depois do trabalho festejarem o convívio e a possibilidade de se formar ou estreitar novos laços familiares e de amizade, bem como, estabelecer estratégias políticas, que muitas vezes terminavam em intrigas ou brigas fora do salão (FIGUEIREDO, 2007, p. 6). Essas manifestações são antes de mais nada manifestações culturais cujo intuito é de comunicar e expressar suas ideias e sensações com os outros. Assim, ao fazer parte desses grupos de convivência, o goiano participava de forma que a dança não era necessariamente o cenário principal. Com isso, afirmamos que a cultura goiana tem em seu cerne o novo e a tentativa de se tornar um ícone do mundo moderno, para isso, utiliza muitas vezes de manifestações culturais para trazer este símbolo de status. 170 | Performances Culturais Os bailes como espaços de dança no decorrer da história A origem dos bailes remonta à idade média com a arte dos trovadores e menestréis a oferecer seus serviços nos castelos medievais. Os trovadores também ensinavam esses nobres a dançar. A partir do século XII, começa nos castelos a moda da dança aos pares, lenta e solene (basse dance), contrastando com a vivacidade da ronda camponesa (haute danse) (PORTINARI, 1989). Esse fato denota que os bailes em seu nascimento já vêm marcados pela raiz popular e adaptados posteriormente pelos artistas populares à realidade da nobreza com seus pesados trajes e formalidades. Na renascença, surgem os mestres de dança, que exerciam grande influência na vida da corte. A julgar pelos muitos privilégios de que desfrutavam, os mestres de dança chegavam a ter grande influência na vida cortesã. Eram também juízes e regentes da etiqueta e da moda (OSSONA, 1988, p. 64). Os bailes podiam durar vários dias, como os criados por Lourenço de Médicis em Florença, chamados de trionfi (triunfo). Os temas partiam de lendas, mitos e feitos heroicos e exaltavam o patrono da festa ou seus convidados, como descrito por Portinari (1989): Os mais renomados artistas eram convocados para a preparação do trionfi. Leonardo da Vinci emprestou seu gênio para uma destas festas fabulosas em Milão, no Palácio de Ludovico Sforza. Inventou elaborado mecanismo, com movimento de astros e planetas, utilizado como cenário (PORTINARI, 1989, p. 57). Podemos observar que os bailes e os bailados até então eram diversão de príncipes e cortesãos, executados em grandes eventos. Pode-se dizer que os bailes surgem da divisão entre os profissionais que começam a surgir neste período da renascença com mestres judeus, entre eles Guglielmo Hebreo, “que trouxe a cada dança os seus próprios passos, suas figuras, com regras invioláveis escritas em famosos manuais de dança da época” (PORTINARI, 1989, p. 64). As danças de salão e seus espaços surgem no contexto dos mestres profissionais, e o surgimento dos primeiros bailarinos com espetáculos já Andrea Palmerston Muniz | 171 elaborados veio da necessidade dos nobres de manter os bailes para entretenimento. Entre os reinados de Luiz XIV e Luiz XV, surgiram os bailes de máscaras: “[...] estes bailes generalizaram-se com muito Sucesso; eram realizados em todas as épocas do ano, e neles reinavam grande alvoroço e entusiasmo” (OSSONA, 1988, p. 65). Em seguida, os bailes passam a ser no teatro da Ópera e todo o povo parisiense tinha acesso a eles, contanto que tivessem condições de pagar para entrar. Era a “democratização” dos bailes. Contrapondo, na verdade, desde 1713, quando foi criado por Luiz XIV o ballet profissional. Em 1730, o termo “romântico” foi usado pela primeira vez na língua inglesa. Quando, em 1777, Rousseau o empregou de forma inédita em francês, associou-o a “selvagem” para descrever uma paisagem. Seria um primeiro grito contra as regras impostas pelo classicismo e a rígida etiqueta da corte de Luiz XIV: Na sociedade e no palco, a vitória da valsa deve-se a profundas transformações de comportamento. A rígida etiqueta da corte de Luiz XIV impediria que um homem enlaçasse uma mulher pela cintura e saísse rodopiando com ela o salão (PORTINARI, 1989, p. 83). A valsa representa o romantismo na dança, essa espontaneidade que o termo trazia e o século XIX entra com o romantismo, em que a imaginação tomou o lugar da lógica de então: Goethe já mencionara em Werther, obra precursora do romantismo. Altezas e midinettes entregaram-se ao seu ritmo inebriante com rodopios vertiginosos. Inspirou compositores ilustres ou não, tendo em Johann Strauss uma espécie de sumo pontífice. Espelho de uma época, ela conquistou ouvidos e pés sem distinção de classes” (PORTINARI, 1989, p. 83). No Brasil imperial, do período de 1840 a 1860, é que os bailes surgiam, sinônimos de modernidade. Como explica Melo (2014), no Rio de Janeiro, gerou-se uma dinâmica social mais “mundana”, o desenvolvimento de comércios de luxo e entretenimento vinculados inclusive “à 172 | Performances Culturais conformação de uma sociedade civil que desejava (e precisava) expor publicamente seus símbolos de status e distinção” (MELO, 2014, p. 751). Os bailes naquele momento funcionavam como uma educação do corpo no universo social do império. Em 1808, com a chegada da família real portuguesa no novo continente, veio na bagagem a dança de salão como a praticada na Inglaterra e na França. A vinda de Luiz Lacombe, um grande mestre de dança francês, é registrada em um livro de 1942. “Luiz Lacombe não tinha mãos a medir e multiplicavam-se salões e saraus onde suas discípulas exibiam passes e passos de bem aprendidas graças coreográficas” (PINHO, 1942, p. 15). Entre 1840 e 1850, a dança de salão já não era uma novidade, “aquela que é praticada não de forma espontânea nas ruas, mas sim em espaços fechados, seguindo regras e princípios coreográficos variáveis de acordo com diferentes estilos” (MELO, 2014, p. 755). Como se pode perceber, esse breve relato sobre o surgimento dos bailes nos mostra que a performance está presente nesse espaço, como as grandes e pequenas tradições, que são, por sua vez, modos de pensamento construídas pela humanidade. Essas tradições possibilitam distintas experiências pessoais, definem distintos modos de ser e perceber, diferentes usos e costumes e são construídas carregando desejos e tensões, assim como esquecimentos e fricções entre as pessoas (CAMARGO, 2013). Os bailes em Goiânia: transformação através do tempo A cidade de Goiânia traz “em seu gene” o novo desde sua fundação, que vem marcada pela Revolução de 1930, de quando o interventor Pedro Ludovico Teixeira trazia a ideia de liberalismo em contraponto com o coronelismo dos Caiado de então. Como colocado por Schifino (2012, p. 33): A construção de Goiânia foi parte importante do discurso político de inserção do Estado na modernidade, embora o cotidiano vivido pelos seus primeiros habitantes demonstrasse que havia uma distância muito grande entre o discurso e a realidade. Andrea Palmerston Muniz | 173 No período em que estava ocorrendo a construção de Goiânia, por volta de 1937, no cotidiano dos trabalhadores, o lazer relacionava-se ao aspecto associativo em que bailes eram feitos de forma improvisada. Como explica Bernandes (2009, p. 45), “[...] não é difícil imaginar que o lazer também funcionava na base da improvisação. Os depoimentos relatam os arrasta-pés, os bailes, os passeios nas casas dos vizinhos e inclusive do rádio que proporcionava momentos de muita alegria”. Nesse contexto, entre o final de 1930 e início de 1940, a dança nos salões de Goiânia marcava a sua presença também entre as famílias mais abastadas. Como pontuado por Schifino (2012, p. 42), a dança parecia ter sua existência confinada aos bailes e salões de clubes, festas de famílias e comemorações de formaturas. Existia sobre ela uma forte censura exercida principalmente pela religião, que a considerava um fator desviante para os jovens do caminho da boa moral e dos bons costumes vigentes naquele período. Com este panorama da dança e dos bailes no período, o que se pode relatar é que são espaços de cunho social, em que a dança se restringia a espaços censurados pelas instituições religiosas, mas ao mesmo tempo se constituíam como espaços de comemoração e convívio. O que se observa é que existem, de fato, poucos relatos dos bailes mais populares, tidos como profanos, de relacionamentos e encontros que remetem ao rural e à terra, à simplicidade e à poeira. “Não são danças de exposição ou que explorem o diferente, as diferenças são marca do indivíduo, cada um dançava do seu jeito, mas sempre em e para o grupo” (FIGUEIREDO, 2007, p. 2). Tem-se então o olhar para o passado e para o presente em que é a memória dos envolvidos nos bailes que trará quais os ritmos que se tocam hoje e o que se tocava. Os ritmos predominantes variam de acordo com o momento. 174 | Performances Culturais Não se pode esquecer que a cultura do centro-oeste é uma mistura de diversos lugares. Grupos advindos de diversas regiões do País, mas, principalmente a paulista que chega do centro-sul. Ao longo do séc. XVIII, com o advento do bandeirantismo e da catequese jesuítica, se estabelece ampla frente de exploração e penetração que chega ao Estado de Goiás (FIGUEIREDO, 2007, p. 16). A lambada, no final da década de 1980, trouxe o jovem para a dança de salão e tirou do marasmo uma modalidade que estava colocada como uma dança do passado. Desde a década de 1960, com o advento do Rock‘n’roll, nenhum ritmo instigava a juventude ou trazia novidades. Outro fator que deve ser mencionado é que a lambada é um ritmo brasileiro, diferentemente do rock. Esse ritmo traz então jovens participantes para os bailes e, consequentemente, jovens professores e novos espaços que se mantêm até os dias de hoje, a exemplo da casa noturna “Nova Edição”, aberta ao público desde de 1992 para os amantes das danças de salão, como colocado por seu proprietário Cézar Porfirio, que reabriu a casa em 2017 com uma nova roupagem e com novas bandas de seresta. A casa de shows “Eclipse”, que nos anos 2000 esteve no auge com bandas de forró e bandas baile, fechou as portas em 2011 (FOLHAZ, 2018). Para os frequentadores mais jovens da época, foi muito badalado o “Café Cancun”, que funcionou de 1998 a 2004, onde ocorriam festas de ritmos caribenhos e danças de salão. Ainda com vistas aos espaços tradicionais que valorizam as danças de salão, está o “Chão de estrelas” e o “Sanfona de Ouro”, que mantêm as atividades com muito forró dançante, com música ao vivo e uma boa pista de dança até os dias de hoje. Outro espaço que consegue se manter desde 1993 é a casa de shows “Chácara do Japonês”, com músicas de danças de salão, além de muitos outros espaços sem registros em notícias, como os bailes das academias de dança de salão que fazem bailes mensais para a prática de sua atividade. Portanto, o que se pode verificar é que a dança de salão e seus espaços sofrem mudanças ocasionadas pelos processos sociais, políticos e econômicos da nossa cultura, e isto traz consequências a suas memórias. E “para Andrea Palmerston Muniz | 175 se pensar a dança como arte da memória, faz-se necessário colocá-la em outro contexto, em outra noção de memória, uma memória afetiva e corporal, compartilhada e individual e que traga em suas coreografias as histórias das pessoas, das culturas e dos grupos” (FIGUEIREDO, 2007). Considerações finais Existem hoje poucas pesquisas no Brasil sobre os bailes de danças de salão, seus espaços e sensibilidades. Em Goiás, é um tema que se tem como singular, pois não existem pesquisas na área, sendo um campo a ser descoberto para estudos de performances e, principalmente, por sua importância social como espaços populares de encontros e desencontros. Quanto à sua importância no social, a prática da dança de salão pode ser vista sob a ótica do desenvolvimento da comunicação entre os participantes desses grupos, desenvolvendo as relações interpessoais, sendo uma das diversas atividades culturais que aumentam o nível geral do entendimento da realidade física e social (ALMEIDA, 2005). Quanto à pouca produção acadêmica sobre o tema, bem colocaram Gonçalves e Osório (2012, p. 13): Se um campo de estudos relativos à dança, de um lado, pode parecer ‘novo’ por não ter figurado ao longo do século XX como parte do programa dos cursos de Ciências Sociais ou de Antropologia, ou por não estar assiduamente presente nos congressos da área, de outro, a dança é tema recorrente e transversal. Os estudos sobre dança agregam interesses diversos, com caráter transdisciplinar e abertos a recortes e caminhos metodológicos variados. As danças de salão e seus espaços ocuparam e ocupam na cidade de Goiânia o espaço dos “ritos de soleira” em que há passagem do mundo do cotidiano e suas exigências para o mundo social (VAN GENNEP, 1978). Pode-se afirmar que a passagem entre o mundo doméstico e o mundo dos bailes fazem “atravessar a soleira” e ingressar em um mundo novo com rituais próprios e novos valores que merecem ser explorados mais e mais pelos estudos das performances e suas tensões e fricções. 176 | Performances Culturais Referências ALMEIDA, Cleuza Maria et al. Um olhar sobre a prática da dança de salão. Movimento e percepção, v. 5, n. 6, 2005. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II – Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987. CAMARGO, Robson Corrêa de. Milton Singer e as performances culturais: um conceito interdisciplinar e uma metodologia de análise. 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A história de “Tião carga pesada” e suas possíveis correlações com conceitos sobre memória e sensibilidades Valquíria Duarte da Silva A Contação de Histórias originou-se da necessidade humana de se expressar, se comunicar e se divertir. O ato de parar o cotidiano e partilhar conhecimentos, acontecimentos, memória, fantasias, tradições, por meio de histórias contadas, torna a Contação de Histórias uma arte milenar que perpetua de geração em geração. Contar Histórias faz parte do meu cotidiano como artista, pesquisadora e professora. Acredito que por meio dessa arte posso compartilhar experiências e ensinamentos, além do deleite de conhecer várias histórias e vivências significativas. Assim, perante a leitura de diferentes histórias para contar, deparei-me com um livro infantil interessante, cuja história correlacionei com conceitos que abordam a memória, as sensibilidades e os símbolos. A partir de então, surgiram-me algumas indagações: por que contamos histórias? Por que uma história chama mais atenção que outra? Quais são as possíveis conexões existentes entre a Contação de Histórias e os conceitos que versam sobre memória e sensibilidades? Diante dessas indagações, trago para o contexto desse artigo a história literária infantil “Tião Carga Pesada”, de Telma Guimarães Castro Andrade (1995), propondo, por meio dela, explanar sobre alguns conceitos sobre memória e sensibilidades. Valquíria Duarte da Silva | 179 A história de “Tião Carga Pesada” escrita por Telma Guimarães Castro Andrade A história infantil é sobre um caracol chamado Tião, que se queixa por sentir sua casa mais pesada a cada dia que passa. Então, pede ajuda a sua amiga a joaninha, “Jô”, a qual se prontifica a entrar na casa do caracol para descobrir o que de fato está acontecendo. Ao entrar na casa de Tião, Jô se depara com muitas coisas. Tião logo fala: – Coleciono tudo o que encontro de interessante. Embaixo da escada há um baú porta-trecos. Aqui nas paredes da sala, vou colocando botões de roupa para enfeitar um pouco. Você gostou? – Não, achei horrível! – Jô respondeu com franqueza. (ANDRADE, 1995, p. 9). A joaninha continua a andar pela casa de Tião e, a cada passo que dá, depara-se com diferentes objetos espalhados por toda parte da casa e logo comenta: […] – É por isso que sua casa está pesada! Só tem coisa inútil! Uma boa limpeza aqui e ali e você vai se sentir mais leve. A cozinha, nem preciso conhecer… Deve estar cheia de tranqueiras! Jô falava sem parar. Quando tinha que dar palpite, dava mesmo! Tião ficou triste: – Tenho tanta lembrança guardada … Dá dó jogar fora. Espia só…– e ia tirando do armário, das gavetas, de baixo da cama, de tudo quanto é cantinho, as coisas mais estranhas que um caracol podia guardar: papeizinhos picados, mariachiquinha, pazinha de sorvete […] (ANDRADE, 1995, p. 15). A joaninha resolve, então, ajudar seu amigo, joga fora uma grande parte dos objetos que há na casa. Tião, a princípio, não gosta, mas logo se sente mais leve e aliviado. Fica tão feliz que começa a andar pelo jardim e já no início de seu caminhar encontra novos objetos tão interessantes quanto os que tinha em sua antiga coleção: 180 | Performances Culturais – Olhe, a sorte está do meu lado: uma teia de aranha abandonada… Dá uma bela rede pra minha varanda! Jô suspirou, bateu os cílios, plic, plic, plic, e foi saindo da casa de Tião. ‘É esse caracol não tem jeito… Nunca vai deixar de juntar coisas. Enfim, cada um com sua mania […] (ANDRADE, 1995, p. 22). E logo depois dessa fala, Jô depara-se com uma forminha de doce vermelha e revela que também coleciona objetos de grande valia para ela. Fim da história. A história “Tião Carga Pesada” muito me fez pensar no questionamento de Maurice Halbwachs em seu livro A memória coletiva (2003, p. 157): Por que nos apegamos aos objetos? Por que desejamos que eles não mudem e continuem em nossa companhia? Descartemos quaisquer ideias de comodidade e estética. Nosso ambiente material traz ao mesmo tempo a nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos móveis e a maneira como são arrumados, todo o arranjo das peças em que vivemos, nos lembram nossa família e amigos que vemos com frequência nesse contexto. Os objetos aos quais nos apegamos acabam sendo uma espécie de referência a lembranças de pessoas próximas como parentes ou amigos. E a forma como eles são organizados revelam parte de nossa cultura em determinado contexto histórico. O autor, nessa perspectiva, pondera que os objetos com os quais temos constante contato nos são como pontos de apoio, proporcionando uma sensação de “ordem e tranquilidade”, como uma espécie de companhia silenciosa (HALBWACHS, 2003, p. 157). Trazendo para o contexto da história em análise, Tião coleciona objetos que encontra pela frente em seu caminho, como forma de carregar consigo parte do ambiente em que está inserido, o jardim. Desse modo, o caracol tem apego a todos esses objetos considerando-os raros e que lhe trazem sorte, estabelecendo, assim, uma relação de apoio sentimental. Todos os objetos guardados por Tião são, de certa forma, organizados em diferentes lugares de sua casa, servindo-lhe de “companhia silenciosa e imóvel”, sobre a qual nos fala Halbwachs (2003). É por meio de suas Valquíria Duarte da Silva | 181 coleções de objetos que Tião mantém ativas em sua memória as lembranças de lugares por onde passou. Assim, para continuar a análise da história de Tião, preciso esclarecer o conceito de Memória. Para tanto, trago a concepção estabelecida pelo autor Halbwachs, sob a perspectiva da autora Nádia Maria Weber Santos em seu artigo intitulado “Memória como narrativas do sensível: Entre subjetividades e sensibilidades”: Para Halbwachs (2006), [...] Memória se refere ao sentimento de continuidade naquele que se lembra, ou seja, a Memória não faz corte ou ruptura entre passado e presente, retendo do passado somente aquilo que está vivo ou é capaz de viver na consciência de um grupo. (Apud SANTOS, 2013, p. 10). A memória mantém ativas lembranças do passado no presente. Como na história de Tião, sua coleção de objetos espalhada por toda casa é um meio de guardar consigo um pouco dos lugares por onde passou e, desse modo, mantê-los em seu presente fazendo parte do seu cotidiano. O autor Halbwachs (2003) estabelece, ainda, a existência da memória individual e da memória coletiva e afirma que uma se apoia na outra. As lembranças pessoais estão, de certa forma, em conexão com um conjunto de lembranças de determinado grupo de pessoas, inseridas em uma época histórica e pertencentes a uma classe social. Como nos reporta a citação abaixo: Contudo, se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. De bom grado, diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos explicar essa diversidade, sempre voltamos a uma combinação de influências que são de natureza social (HALBWACHS, 2003, p. 69). 182 | Performances Culturais Diante do exposto, reflito que, apesar de o contexto do vivido poder ser o mesmo, cada pessoa tem sua perspectiva da lembrança. É como se cada pessoa contasse uma versão da mesma história, sob o seu ponto de vista. Porém, como afirma Halbwalchs (2003), esse ponto de vista está em constante movimento, podendo sofrer mudanças de acordo com o tempo, a ordem social e as relações pessoais. Na história infantil “Tião Carga Pesada” (1995), Tião coleciona objetos que para ele têm um significado especial, porém do ponto de vista de sua amiga, a joaninha Jô, não passam de “tranqueiras”. A partir da relação que o caracol estabelece com a joaninha que se encontra dentro de sua casa, mexendo em suas lembranças, percebe que é necessário descartar uma boa parte delas para poder seguir em frente. Sofre, então, mudanças de seu ponto de vista, a partir da influência do meio e da relação que tem com o outro e, assim, sente-se mais leve para prosseguir o seu caminho. Porém, sua natureza de colecionar objetos que encontra pelo caminho não muda. Ao fim da história, percebemos que os dois amigos partilham do mesmo hábito. Nessa perspectiva, Halbwachs (2003, p. 158) também comenta: Nossa cultura e nossos gostos aparentes na escolha e na disposição desses objetos em grande medida se explicam pelos laços que sempre nos ligam a um número enorme de sociedades sensíveis e invisíveis. Não se pode dizer que as coisas façam parte da sociedade. Contudo, móveis, enfeites, quadros, utensílios, e bibelôs circulam dentro do grupo e nele são apreciados, comparados a cada instante descortinam horizontes das novas orientações da moda e do gosto, e também nos recordam costumes e antigas distinções sociais. Diante da fala do autor, percebo que existem laços de uma sociedade sensível e invisível que possivelmente explicam a relação que construímos com determinados objetos. Os objetos que, para o caracol, são de grande apreço, para a joaninha não passam de objetos sem utilidades. Contudo, esses pequeninos animais compartilham do mesmo costume, o de colecionar objetos, os quais revelam um pouco do mundo sensível de cada personagem. Valquíria Duarte da Silva | 183 Considero que essa sociedade sensível e invisível à qual Halbwachs (2003) se refere seja pertencente ao universo simbólico de que nos fala Cassirer em seu livro Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana (1994, p. 48): Não estamos mais num universo meramente físico, o homem vive em um universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse universo. São os variados fios que tecem a rede simbólica, o emaranhado da experiência humana. Todo o progresso humano em pensamento e experiência é refinado por essa rede, e a fortalece. O homem não pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente; não pode vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade física parece recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as próprias coisas o homem, está de certo modo, conversando constantemente consigo mesmo. O autor explica que o universo simbólico é intrínseco ao homem. O seu modo de ver e estar no mundo parte da experiência sensível que tem deste. Desse modo, sua realidade é representada por símbolos aos quais atribui diferentes significados. Ademais, Cassirer (1994, p. 58) afirma: Os símbolos – no sentido próprio do termo – não podem ser reproduzidos a meros sinais. Sinais e símbolos pertencem a dois mundos diferentes de discurso: um sinal faz parte do mundo físico do ser; um símbolo é parte do mundo humano do significado. Os sinais são “operadores” e os símbolos são “designadores”. Cassirer, dessa forma, esclarece a diferença existente entre sinais e símbolos, bem como enfatiza a amplitude de significados contidos no símbolo para cada ser humano. Esses significados que o ser humano estabelece mediante um símbolo revela um pouco de sua cultura em determinado tempo histórico, inserido em uma ordem social. No contexto da história em análise, pode-se considerar que a autora Telma Guimarães Castro Andrade (1995) revela, por meio dos personagens caracol e a joaninha, atitudes que remetem aos humanos. Apresenta símbolos do mundo sensível de lembranças pertencentes ao ser humano e 184 | Performances Culturais que desvelam sobre sua cultura e sobre a sociedade na qual está inserido. Tanto Tião como Jô possuem o hábito de colecionar objetos que, para eles, simbolizam algo que está contido no mundo do sensível e em que estabelecem um ponto de apoio para manter suas lembranças vivas em suas memórias. Por meio desses dois animais, a autora fala para o ser humano do próprio humano, como afirma Cassirer (1994, p. 48): “Em vez de lidar com as próprias coisas o homem está, de certo modo, conversando constantemente consigo mesmo”. Desse modo, penso que o universo simbólico humano está contido na literatura enquanto linguagem da imaginação poética sobre a qual Cassirer versa (1994, p. 49): Isso porque, lado a lado com a linguagem conceitual, existe uma linguagem emocional, lado a lado com a linguagem científica ou lógica, existe uma linguagem da imaginação poética. Primeiramente, a linguagem não exprime pensamentos ou ideias, mas sentimentos e afetos. A perspectiva de Cassirer mostra que existem diferentes tipos de linguagens: conceitual, emocional, científica e da imaginação poética. Elas caminham juntas e exprimem, primeiramente, sentimentos e afetos. A linguagem da imaginação poética permeia o universo simbólico contido nas histórias, sejam elas literárias sejam orais, e, por vezes, são guardadas em nossa memória e possivelmente contadas. Nossa memória é acolchoada de diferentes narrativas, como afirma Benjamin (2012, p. 221) na frase “a memória é a faculdade épica por excelência”. Desse modo, guardamos em nossa memória lembranças e histórias, em sua maioria, no formato de narrativas. Ele também ressalta, em seu texto intitulado “Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura”, que a narrativa é “uma forma artesanal de comunicação”. Nessa perspectiva, penso que comunicar, expressar fatos, histórias ou lembranças em forma de narrativas, que são guardadas na memória, exprime o que considero ser a linguagem da imaginação poética, que está Valquíria Duarte da Silva | 185 envolta de sentimentos e afetos. Logo, retomo a pergunta motriz desse artigo: por que contamos histórias? Compreendo o narrar e o contar histórias como palavras sinônimas, essa é também a compreensão de Tierno (2017, p. 20) em seu texto intitulado “Ensaio com a praça pública ou sobre o conto nas cidades complexas”. Ele escreve que: Em todas as línguas que pude pesquisar, a palavra narrador é sinônimo de contador, aquele que conta, um, dois, três, quatro etc. O contador é aquele que ordena. Mas organiza o quê? Coloca ordem acontecimentos, experiências. Nesse sentido, o contador de histórias é aquele que ordena os acontecimentos, experiências vividas, atribuindo um sentido ao vivido, ao experimentado. O contador de histórias, nessa citação, é como aquele que ordena, organiza a experiência no intuito de dar sentido ao que foi vivido. Por isso, considero que contar e narrar histórias são palavras sinônimas que reportam sobre o ato, ou ação de manifestar, comunicar e entender, sob uma forma organizada e sistematizada, os acontecimentos e as experiências que são expressas por meio de uma linguagem, a linguagem da imaginação poética. Cabe aqui, então, expor a fala de Hartmann em seu livro Gesto, palavra e memória: performances narrativas de contadores de causos (2011, p. 229): Uma das principais maneiras que o ser humano teria de manifestar, comunicar e até mesmo compreender a experiência seria colocá-la sob forma de narrativa. Essa “forma”, porém, envolve tanto a colocação de palavras em estruturas inteligíveis de significado quanto a organização de uma série de códigos e dispositivos culturais que permitem que a narrativa seja compreendida. Hartmann reflete sobre a narrativa na perspectiva de manifestar, comunicar e entender a experiência. O que vai ao encontro do que o autor Cassirer (1994, p. 48) afirma: “em vez de lidar com as próprias coisas o homem, está de certo modo, conversando constantemente consigo mesmo”. 186 | Performances Culturais Narrar, contar histórias é, então, uma forma que o ser humano encontra de conversar consigo para entender e expressar a própria experiência. Assim, organiza a experiência vivida não só por meio de palavras, mas também por outros dispositivos culturais que são expressos e simbolizam uma linguagem poética que permite ser partilhada sensivelmente com o outro, por meio da Contação de Histórias. Reflexões finais Contamos histórias para partilhar experiências com os outros. Experiências advindas de vivências significativas para nós, como o caracol Tião, que coleciona objetos especiais que lhe trazem sorte e lembranças de lugares por onde passou. As histórias que contamos representam um mundo simbólico de sensibilidades que reportam sobre nós mesmos e servem como ponto de apoio. Tião coleciona objetos, o ser humano coleciona histórias vividas ou, até mesmo, inventadas que habitam sua memória. Contar histórias é uma forma de entender e rememorar a experiência vivida. Conta para si e conta para o outro. A Contação de História propaga o mundo simbólico de sensibilidades que diz respeito ao humano do próprio humano, compartilhando experiências e emoções cuja cultura, valores e costumes estão intrínsecos no contar. Porém, segundo Benjamim (2012, p. 219): O extraordinário, o miraculoso é narrado com maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que falta à informação. O leitor ou o espectador tem livre arbítrio para interpretar a história como quiser. Desse modo, como o exposto no início desse artigo, cada pessoa que ouve a história contada se identifica, de algum modo, com aquilo que lhe chamou atenção, guardando sua versão da história em sua memória. Valquíria Duarte da Silva | 187 Assim, ao instigar possibilidades de interpretações sobre a Contação de Histórias, para quem conta e para quem ouve, explorando os conceitos de memória e sensibilidades, torna-se inadequado propor respostas absolutas para as indagações expostas nesse artigo. Cabe a cada leitor ou ouvinte fazer suas próprias conclusões. Possível é inferir que a Contação de Histórias encanta crianças, jovens e adultos e, assim, mantém e amplia um repertório de histórias contadas e partilhadas. O sentimento, a socialização, a comunicação, a experiência são inerentes ao ser humano e fazem parte da arte de contar histórias. Referências ANDRADE, Telma Guimarães Castro. Tião Carga Pesada. São Paulo: Scipione LTDA, 1995. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (Obras Escolhidas v.1) 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. CASSIRER, Enerst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2ªed. São Paulo: Centauro, 2003. HARTMANN, Luciana. Gesto, palavra e memória: performances narrativas de contadores de causos. Florianópolis: UFSC, 2011. SANTOS, Nádia Maria Weber. Memória como narrativa do sensível: entre subjetividades e sensibilidades. In: Cleusa Maria Gomes Graebin; Nádia Maria Weber Santos. (Org.) Memória Social: questões teóricas e metodológicas. Canoas: UniLasalle, 2013, v.1, p. 131-156. TIERNO, Giuliano. Ensaio com a praça pública ou sobre o conto nas cidades complexas. In: TIERNO, Giuliano; ERDTMANN, Leticia Liesenfeld (Org.). Narra-te cidade: pensamentos sobre a arte de contar histórias hoje. São Paulo: A Casa Tombada, 2017. 11 Memória e performance no filme Narradores de Javé Wesley Martins da Silva 1 O homem chega e já desfaz a natureza Tira a gente põe represa, diz que tudo vai mudar O São Francisco lá prá cima da Bahia Diz que dia menos dia, vai subir bem devagar E passo a passo vai cumprindo a profecia Do beato que dizia que o sertão ia alagar Sobradinho, Sá e Guarabyra Estrutura e tema do filme A canção que prevê a enchente em uma cidade do sertão traduz o mote do filme Narradores de Javé2, da diretora Eliane Caffé. A obra audiovisual é repleta de conteúdo em seus 100 minutos de duração. Apesar de termos consciência de se tratar de uma história ficcional, é um excelente ponto de partida para a reflexão em várias vertentes, seja geográfica, histórica, biológica, literária ou até mesmo sobre políticas educacionais. Nela também existe um campo fértil para pensarmos na construção da memória em conjunto com as performances culturais. 1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Performances Culturais da Universidade Federal de Goiás (UFG), Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Especialista em Docência no Ensino Superior pela Universidade Católica Dom Bosco, Especialista em Cinema e Educação pelo IFITEG, Bacharel e Licenciado em Artes Cênicas pela UFG. 2 O filme foi produzido em 2003, com data de lançamento em 23 de janeiro de 2004, distribuído pela Rio Filmes. Gênero: Drama. Duração: 100 minutos. Wesley Martins da Silva | 189 O roteiro segue a estrutura do arquidrama que o autor McKee (2013) chama também de Design Clássico. Elementos como causalidade, final fechado, tempo linear (em nosso caso, o tempo geral do acontecido – início, meio e fim), protagonista único (Antônio Biá), realidade consistente e protagonista ativo; características que encontramos em todo o corpo da trama de Javé. Design Clássico é uma estória construída ao redor de um protagonista ativo, que luta contra forças do antagonismo fundamentalmente externas para perseguir seu desejo, em tempo contínuo, dentro de uma realidade ficcional consistente e causalmente conectada, levando-o a um final fechado com mudanças absolutas e irreversíveis (MCKEE, 2013, p. 55). Obviamente seria mais fácil identificar o protagonista e o antagonista em uma obra de um super-herói hollywoodiano: o bem contra o mal. Contudo, é esse ponto no roteiro que contribui para o tornar tão rico. Antônio Biá, ora é o herói, ora chega à beira do antagonismo a ele próprio. Normalmente, a figura do herói faz o público tomar parte e torcer pelo sucesso do seu empreendimento na trama. No caso da história do Vale de Javé, apesar de esperarmos uma reviravolta e o Vale conseguir se salvar, já temos que a figura do pseudo-historiador Biá não conseguirá fazer este estudo científico. É interessante observar que o filme utiliza o que McKee chama de “história pregressa”, que para nós visivelmente é a representação imagética da memória. Produção de cultura: memória e oralidade Lembrar as histórias individuais e contá-las como foi culturalmente estabelecido no vilarejo já não basta para a exigência da cultura externa. Visivelmente, uma cultura que julga o valor de outra pelo registro escrito. A história mostra a cultura centrada no valor da escrita e, por conseguinte, do livro. A escrita como registro da memória. Uma tradução da história oral. Os estudos sobre a questão do que é cultura feito por Roque de Barros 190 | Performances Culturais Laraia apontam que “a comunicação é um processo cultural. Mais explicitamente, a linguagem humana é um produto da cultura, mas não existiria cultura se o homem não tivesse a possiblidade de desenvolver um sistema articulado de comunicação oral” (LARAIA, 2009, p. 52). Essa comunicação oral colocada pelo autor é o pilar da formação da cultura em um espaço comunitário. Os indivíduos e suas histórias, a todo instante marcadas, chamando atenção para sua ligação com seus antepassados, tornam os moradores presentes como pertencentes e representantes dos fundadores do lugar. Há três tempos encenados no filme: presente, passado e o passado do passado. No presente, o personagem Zaqueu3 está em um bar ao lado de um rio e conta sobre o Vale de Javé. Nitidamente os que ali estão não sabem da história. Na narrativa, ele volta a um passado e, nesse passado, há a lenda de um outro passado, ou seja, a origem do vilarejo. Justamente desse personagem sai a ideia da tentativa de tornar Javé um patrimônio. O desafio era escrever a história da fundação da cidade de maneira científica, ou seja, buscando a verdade com provas. Entra em cena o personagem Antônio Biá4, um excluído do centro do vilarejo. Biá era conhecido de todos e antigamente trabalhava na Agência de Correios do Vale de Javé. O sujeito não era querido na cidade, pois, na época que era o responsável pelas correspondências, resolve ele mesmo escrever histórias fictícias tanto de remetentes quanto de destinatários verdadeiros sobre os que ali viviam. Os moradores descobrem e o expulsam da cidade. Ele tem essa atitude na tentativa de salvar seu emprego. Afinal, a cidade tinha um posto dos Correios, mas ninguém sabia escrever ou muito pouco lia. Mesmo assim, Biá é o único que sabe escrever no vilarejo e é chamado a isso. Assistindo à cena já imaginamos o desafio de fazer a história oral se 3 Interpretado pelo ator Nelson Xavier. O nome bíblico está localizado no capítulo 19 do Evangelho de São Lucas, que recebe o significado de ‘puro’, ‘inocente’, ‘que tem pureza’. 4 Esse personagem, interpretado por José Dumont, nos parece bem próximo da história real de Pedro Cordeiro Braga, conforme o livro O Artesão da Memória no Vale da Jequitinhonha, de Vera Lúcia Felício Pereira. Também inventou histórias para aumentar o fluxo de cartas e era trabalhador da agência dos correios da cidade de Vau, povoado de Diamantina, Minas Gerais. Wesley Martins da Silva | 191 transformar em história escrita. Outro ponto é o desafio que apresenta os estudos da memória. Pollak (1992, p. 201) nos coloca que: Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. Justamente essa é a questão. O filme apresenta as memórias sociais e as individuais do povo de Javé. Vemos que as memórias individuais são apresentadas como explicação de uma existência atual; e as sociais, conforme Pollak, “vividas por tabela”, uma explicação do motivo do pertencimento do indivíduo ao lugar, além de sua importância como membro efetivo com raízes na fundação do Vale. Assim, a afirmação da certeza de cada personagem de ter vivido, por meio de seus ancestrais, dos fatos heróicos do vilarejo. Mesmo com toda a bagagem de história oral fica a evidência do valor de torná-la escrita. Sobre isso temos: Se a memória é socialmente construída, é obvio que toda documentação também o é. Para mim não há diferença fundamental entre fonte escrita e fonte oral. A crítica da fonte, tal como todo historiador aprende a fazer, deve, a meu ver, ser aplicada a fontes de tudo quanto é tipo. Desse ponto de vista, a fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita. Nem a fonte escrita pode ser tomada tal e qual ela se apresenta (POLLAK, 1992, p. 207). A crítica da fonte. Esse é o ponto-chave para pesquisa. O personagem Biá visivelmente sabe sobre a questão da crítica, mas não sabe como executá-la. Na falta do método, acaba ilustrando ainda mais a história. Vemos que há em todos os depoimentos a falta de apoio no tempo cronológico. Sobre isso, tanto Pollak (1992) quanto Halbwachs (1990) citam esse deslocamento de datações utilizando outras referências temporais. O tempo da memória não é o tempo do relógio. Ele é mais relativo à percepção. 192 | Performances Culturais O tempo faz geralmente pesar sobre nós um forte constrangimento, seja porque consideramos muito longo, um tempo curto, ainda quando nos impacientamos, ou nos aborrecemos, ou tínhamos pressa de ter acabado uma tarefa ingrata, de ter passado por alguma prova física ou moral; seja porque, ao contrário, nos pareça muito curto um período relativamente longo, quando nos sentimos apressados e pressionados, quer se trate de um trabalho, de um prazer, ou simplesmente da passagem da infância à velhice, do nascimento à morte (HALBWACHS, 1990, p. 90). Diretamente ligado a isso está a história. Um vilarejo que antes se resolvia com as marcações de terra cantadas5. Sua relação comercial com o exterior era por meio de um viajante que trazia diversos itens encomendados. As mercadorias se diversificavam e iam de sabão a dentadura. Ao público do filme, fica a percepção da ausência de um tempo real e exato de existência. Há falta inclusive de data específica para a inundação que tomará conta da cidade. Mesmo com a preocupação da fixação de um tempo cronológico nos acontecimentos quando é preparada a escrita, suprimemse fatos totalmente relevantes, como o ano exato da fundação do vilarejo. No entanto, se há ausência desse marco temporal, por outro lado, há o marco da figura de seu fundador chamado de “Indalécio”, que acaba sendo seu nome o único consenso entre os moradores. A performance do corpo do herói As características dadas ao herói chamado Indalécio muito se parecem com a ação do profeta bíblico Moisés, que leva seu povo a uma nova terra, a terra prometida. Um vale protegido e a espera de seus herdeiros que vão ficar ali um vilarejo. A particularidade está no fato de que as características ou ligações do herói da trama vêm de encontro diretamente com às crenças individuais dos outros personagens. Há sempre uma adaptação da figura do herói com aquele que conta a história. 5 Segundo o personagem Zaqueu, um indivíduo em frente a outros apenas por meio da vocalização traçava as divisas de suas terras, mas somente era permitido ser “cantada” a porção de terra que tal indivíduo conseguiria cultivar. Wesley Martins da Silva | 193 O primeiro entrevistado, antes de começar a narrar a Antônio Biá, abre uma pequena caixa, tira o quadro de São Jorge e faz o sinal da cruz. Tira de dentro da caixa de madeira uma arma que, segundo ele, pertencia a Indalécio. Seria então a arma que matou um boi para servir de alimentação àqueles que o acompanhavam na busca pelo lugar ideal. Há uma convicção na moral e no cumprimento da responsabilidade do herói, justamente no fato de seu ato imoral: matou um animal sem mesmo saber quem era o dono. O acontecido, que em outro contexto seria cabível de punição, na verdade, reforça a figura heroica. Indalécio teve que praticar uma ação que nunca faria se não fosse pelo sacrifício de alimentar seu povo. Além disso, descrições físicas e sobre os feitos do herói lembram em muito a figura de São Jorge, a quem, não por acaso, o entrevistado era devoto. A nobreza e suas buscas em cima do seu cavalo mostravam sua altivez em relação àqueles que o seguiam. Para finalizar, o entrevistado dita seu nome: Vicentino Indalécio da Rocha. O sobrenome Indalécio não foi dito com muita firmeza. A partir desse depoimento, Biá inicia sua pesquisa para saber mais sobre essa figura heroica fundadora do vilarejo. Ele percebe que seu trabalho é importante para o local e que sua escrita vai marcar os nomes que serão lembrados. Tanto o barbeiro6 quanto o dono do bar não cobram pelos serviços ou produtos que Biá usa ou consome. Seguindo suas entrevistas, ele chega à Senhora Deodora. Deodora é a única mulher que tem a entrevista em destaque no filme. Novamente, a história contada é um alter ego. Em sua narrativa, ela elege uma heroína chamada Maria Dina. Segundo ela, trata-se de uma ancestral direta, sendo provada por uma marca em seu seio direito, que existe em toda descendência feminina. Acaba por não excluir a figura de Indalécio, mas cita que ele morreu em seu cavalo e que Dina assumiu a missão de encontrar um lugar para o povo que a seguia. Foi ela quem encontrou o Vale do Javé e cantou sua delimitação. Os presentes, que ouviam o depoimento, acusaramlhe de querer tornar uma mentira em uma verdade escrita. 6 Nome dado neste caso ao profissional que trabalha com corte e raspagem de barba e cabelo. 194 | Performances Culturais No mesmo recinto da última reportagem, o personagem Firmino, com outra história ainda mais incrível, descreve a figura de Maria Dina como uma louca que fazia presságios. Nessa representação, Firmino coloca-se como o próprio Indalécio, que em sua versão morreu de disenteria. Com um discurso cheio de termos irreconhecíveis para os locais, Biá não escreve uma linha do que é dito. Pede até uma votação para eleger qual história seria a verdadeira e faz uma observação que seriam as duas. Sem conclusão, passa para a próxima entrevista. O povo o leva aos titulados Gêmeos. Chegando ao local, encontra dois velhos em que um se intitula Gêmeo e seu irmão mais velho é chamado de “Outro”. Esses focam nas suas origens individuais e na dúvida contraditória de quem são seus pais. A mãe é consenso. O problema é que o pai, Cosme, tinha um irmão gêmeo chamado Damião. Na noite do casamento, a mãe margarida se embebeda e acorda com os dois na cama não sabendo de qual engravidou. Essa é a questão da legitimidade e direito à herança. Herança de uma terra que será inundada, mas que segundo o Gêmeo tem enterrada as ossadas de Indalécio e seu armamento. Segundo a história contada, percebemos que é dada a importância de ter o repouso eterno do herói na sua propriedade, mesmo sem ter ao certo sua localização em meio às terras. Os dois personagens se alteram cada vez mais, e Biá sai do recinto. Em todos esses lugares, há sempre a presença do povo que o acompanha. Uma espécie de testemunha da escrita da história. Aqueles que fazem uma verdadeira procissão acompanhando o que um morador do vilarejo chamou de “Livro da Salvação”. Antônio Biá tenta escapar e entra na casa de Daniel. Aqui há outra apresentação na questão da memória. Ele não quer falar do início da Vila de seu herói e heroína, quer falar sobre o pai. Visivelmente esse é o herói eleito. Ele mostra o quarto do pai, com foto, cama e outros itens conforme foi deixado em sua morte, que ao que parece data de um longo tempo. O pai morreu de desgosto pelo amor de uma personagem, que somente é citada, chamada Santinha. Segundo Daniel, quando criança, viu o pai matar um homem que entrou a cavalo na sua casa. Armado, o pai Wesley Martins da Silva | 195 deu um tiro no sujeito que ficou estirado no chão de sua casa. A criança viu tudo. Nesse momento, os moradores também foram atrás de Biá e tiveram um comportamento um pouco diferente ao ver o personagem Daniel. Halbwachs (1990) traça um estudo sobre memória e espaço em que percebe que o espaço físico tem relativamente poucas mudanças em grande parte do tempo de um grupo. Mas esse mesmo espaço pode ter mudanças de impressão apenas para o círculo mais próximo, ou seja, no seu horizonte imediato. O abalo acontecido com o falecimento do pai de Daniel é limitado a ele. Ao que parece, ele vive em um estado paralelo aos demais, preso aos sentimentos que o lugar (quarto do pai) nutre. quando estamos sob a ação de um abalo desse gênero, quando saímos, quando percorremos as ruas, espantamo-nos pelo fato que a vida, em torno de nós, continua como se nada fosse, que rostos alegres aparecem nas janelas, que são trocados palpites entre transeuntes parados nas esquinas, compradores e negociantes na porta das lojas, enquanto que nós, nossa família, nossos amigos, sentimos passar um vento de catástrofe (HALBWACHS, 1990, p. 135). Um outro personagem que Biá vai procurar está mais afastado. No caminho, seu guia canta músicas africanas e, quando chegam ao lugar, apresenta o ancião. Segundo o Chefe do quilombo, “Indaleo” era um comandante de guerra, parece falar de Indalécio. Novamente, o herói leva uma nova roupagem que condiz com o entrevistado. Nessa história, Indalécio era de origem africana e não levou aquela tribo à África porque não conhecia o caminho. Não havia cavalo, e a terra que o herói encontra para seus pares é parecida com a África, segundo o entrevistado que é traduzido pelo guia Samuel. Temos então cinco representantes do lugar. O primeiro, um homem ligado à devoção religiosa e que discorre o corpo do herói com traços santificados. Uma mulher que defende o gênero feminino como fato mais importante para o lugar. Deixa assim uma equivalência entre o corpo feminino e o corpo masculino. A humanização do herói é reforçada por Firmino, em que seu corpo apresenta doença comum como a disenteria e inclusive morre por ela. Os gêmeos, grandes proprietários de terra, que 196 | Performances Culturais ganha valor principalmente por estar ali supostamente enterrado o corpo de Indalécio. Um jovem, que vê o herói individual na figura do pai que sangra heroicamente e morre no seu leito. Por fim, o chefe de um quilombo que tem no corpo do herói uma representação positiva do homem branco. O corpo é construído conforme as necessidades de cada ocasião ou finalidades míticas. O valor da produção cultural da escrita O vilarejo recebe os “invasores”. Os engenheiros trazem equipamentos que estão distantes da realidade de Javé. Em um lugar que não dispõe de energia elétrica, percebe-se duas cabanas iluminadas, uma camionete da marca koreana (Kia Sportage), notebooks, máquinas fotográficas digitais e filmadoras. Aqui acontece um fato interessante: o registro em vídeo de depoimentos dos moradores. Eles protestam e expõem diversos argumentos que contestam o desaparecimento do vilarejo, mas diferem dos relatos a Antônio Biá. Nesses vídeos, são apresentadas razões ligadas a fatos recentes do cotidiano de Javé, mas que têm uma percepção de que se trata de uma tradição. Em um dos depoimentos aos engenheiros, o morador dá como justificativa que, no lugar, foram enterrados entes próximos e, assim, não poderia inundar a vila. Outro registro em vídeo é o da procissão. Claramente temos que tal acontecimento teria alguma importância como bem cultural do lugar, mas não há a percepção disso para a escrita da história oficial feita por Biá. Alguns moradores, na parte final do filme, já desistem e vão indo embora. Outros são testemunhas do fim do vilarejo. Cirilo, o louco, toca o sino do vilarejo e sacramenta por meio de uma profecia a inundação. A todo momento, vemos a produção e vivência de cultura no vilarejo acontecendo. O passar dos carros de boi, doutrinas e eventos da igreja. Até mesmo na noite marcada para entrega do livro por Antônio Biá temos uma reunião animada no armazém, em que moradores locais tocam músicas Wesley Martins da Silva | 197 com instrumentos rudimentares ou improvisados. A esperança não se esgota, e recebem pelas mãos de uma criança mensageira o livro mandado por Biá. Juntamente com suas páginas em branco, acompanha uma carta com os dizeres: Tenho a declarar que eu, Antônio Biá sou gente, de cara, dente e nariz pra frente e mais, bunda de cacunda e calcanhar pra traz. Me exonero como escrivão. Estou ausente para manter a mente e o corpo são. Quanto às histórias, tais melhor ficar na boca do povo, porque no papel não há mão que lhe dê razão. (NARRADORES DE JAVÉ, 2003, 87 min.) Depois que o povo captura Biá, entre as várias coisas que ele diz, encontramos uma frase marcante: “esse povo que inventa histórias de grandezas para esquecer a vidinha rala, sem futuro nenhum”. Em seguida, é mostrada a igreja sendo inundada como a representação de derrota do vilarejo. O início e o fim do vilarejo são marcados pela simbologia do sino da cidade. O ferro de que é feito o objeto está ligado diretamente à dureza e à persistência da maioria do povo do vilarejo. Seus sons ecoam e reúnem o povo. O objeto é o unificante, edificante e real representante dos habitantes que, mais uma vez, como nas histórias da fundação, não fugiram, apenas bateram em retirada. Antônio Bia aparece ao fim e abre o livro para escrever sobre aquilo que vê. Mesmo sendo escorraçado antes, ele volta a ter importância. O roteiro traz a importância dada ao oficial justamente quando novamente os moradores tentam direcionar o acontecido do final da cidade. O filme em seu final volta a uma narrativa no tempo presente. Zaqueu diz que o livro já está “no mundão afora” e quem quiser que escreva diferente. A performance na tela Sem dúvida, o enredo nos traria várias escrituras diferentes. Os elementos históricos que poderiam tratar de uma escrita científica estavam 198 | Performances Culturais presentes, tanto nas memórias quanto nos registros das cartas de conteúdo imaginário de Antônio Biá. Mas a questão foi a percepção do tempo coletivo. O que distingue esses tempos coletivos, não é o fato de que uns se escoem mais depressa do que os outros. Não podemos mesmo dizer que esse tempo; se escoam, já que cada consciência coletiva pode lembrar-se, e que a substância do tempo parece realmente ser uma condição da memória. Os acontecimentos se sucedem no tempo, mas o tempo em si mesmo é um quadro imóvel. Somente os tempos são mais ou menos amplos, eles permitem à memória retroceder mais ou menos longe, dentro daquilo que convém chamar de passado (HALBWACHS, 1990, p. 127). O que claramente o povo de Javé elegeu como passado foi sua fundação. Acontecimentos diversos se passaram e, mesmo que lentamente, mudanças aconteceram no vilarejo. Até mesmo na questão da leitura, pois é chamada uma criança para ler a carta deixada por Biá. O tempo passado não foi visto como um instante atrás daquele mesmo instante. O enredo, entre todas as metáforas, traz a reflexão sobre a desvalorização da cultura local e essa atitude leva ao desaparecimento do grupo. Fatos como as proezas de Biá fariam parte do folclore de Javé. Suas cartas de maledicências seriam um arquivo que faria parte do patrimônio cultural da cidade, visto que elas alteraram o cotidiano e o modo de pensar no vilarejo. Faltou a valorização e principalmente o pensamento sobre a prática dos acontecimentos reais do vilarejo. Nos cabe aqui remeter aos estudos de Goffman (1985) em que faz referência aos extremos da representação, que vem ao encontro da caracterização desse personagem principal. Vejamos, se temos um extremo em que o indivíduo acredita no próprio número e sua representação passa a ser a sua realidade, no outro extremo: verificamos que o ator pode não estar completamente compenetrado de sua própria prática. Esta possibilidade é compreensível, pois ninguém está em melhor posição para observar o número do que a pessoa que o executa. Aliado a isso, o executante pode ser levado a dirigir a convicção de seu público apenas Wesley Martins da Silva | 199 como um meio para outros fins, não tendo interesse final na ideia que fazem dele ou da situação. Quando o indivíduo não crê em sua própria atuação e não se interessa em última análise pelo que seu público acredita, podemos chamálo de cínico, reservando o termo "sincero" para que os que acreditam na impressão criada por sua representação. Fique entendido que cínico, como todo o seu descompromisso profissional, pode obter prazeres não profissionais da sua pantomima, experimentando uma espécie de jubilosa agressão espiritual pelo fato de poder brincar à vontade com alguma coisa que o público deve levar a sério (GOFFMAN, 1985, p. 25). Antônio Biá executa os dois extremos neste papel. Se veste e anda como um estudioso que porta o poder da escrita. Fala aos presentes tentando demonstrar erudição e conta com o não conhecimento de termos por parte dos indivíduos que ali estão. Executa quase sempre o primeiro extremo. Essa pantomima nos leva a crer que ele acredita em seu personagem, até o momento em que é sondado pelo “barbeiro” do vilarejo. O pseudo-historiador Biá é solicitado pelo barbeiro que escreva, ou melhor, invente uma história que contenha seu nome, em contrapartida, ele oferece seus serviços gratuitamente. Em primeiro momento, o escritor continua atuando em seu primeiro extremo e parece demonstrar uma espécie de ética em seu discurso. No decorrer, percebemos que ele está ciente da importância social e seu discurso é somente para aumentar o valor de sua barganha. No final do filme, ele mostra descompromisso profissional e “brinca” com algo que os moradores levaram a sério. Um outro ponto a ser pensado é na questão da propriedade dentro do vilarejo de Javé. É totalmente comum, pelo modo dito na reunião inicial na igreja, que o cantar do espaço de propriedade fazia parte da cultura do lugar. Esse cantar é representado também na história da Senhora Deodora. Sua heroína, Maria Dina, traça os domínios de Javé com o “cantado”: “No rumo do cruzeiro do céu até onde a vista alcança, há de ser terra nossa. Nesse contrário de rumo até onde o homem pode andar um dia inteiro de marcha, há de ser terra nossa. Nesse rumo onde acaba o vale, isso é Javé”. Nos parece hoje algo inconcebível, mas se pensarmos a questão de escritura de determinado lugar está mais ligado ao estado e à proteção que ele 200 | Performances Culturais potencialmente pode dar devido a esse registro institucionalizado. Vejamos as percepções de Halbwachs (1990, p. 145) sobre isso: Qualquer princípio que invoquemos para fundamentar o direito de propriedade, ele somente adquire algum valor se a memória coletiva intervir para garantir-lhe a aplicação. Como se poderia saber, por exemplo, que fui o primeiro a ocupar certa parcela do solo, ou que arei a terra, ou que determinado bem é produto de meu trabalho, se não nos reportássemos a um estado de coisas antigas, e se não estivesse convencionado que a situação não mudaria e quem poderia opor o fato sobre o qual fundamento meus direitos às pretensões de outros, se o grupo não conservasse a lembrança dele? Porém, a memória que garante a permanência dessa situação apoia-se ela própria, sobre a permanência do espaço ou, pelo menos, sobre a permanência da atitude adotada pelo grupo frente a essa porção do espaço. É preciso considerar aqui, como um conjunto, as coisas, e os signos ou símbolos que a sociedade a ela relacionou, e que, desde que direcione sua atenção para o mundo exterior, estão sempre presentes em seu pensamento. Justamente os signos que tratam sobre a terra “cantada” são símbolos entendidos e em certos casos convencionados pelo grupo. Na fala de Maria Dina, ela coloca em uma das divisas de Javé a distância de um dia de um homem andando em marcha. Há uma aceitação pela convenção de que a marcha é igual a todos e, assim, não haveria variante sobre o espaço descrito. Até a atualidade ainda temos termos utilizados com estas raízes do valor da oralidade. Ditos como “Ele é um homem de palavra” ou “Ela é uma mulher de palavra” ainda encontram seu uso quando sublinhamos algo sobre o cumprimento de uma promessa ou afirmação. Outro símbolo importante que, mesmo quando não falado foi convencionado como imagem, era o sino. Um dos entrevistados citou que era o que eles tinham de mais sagrado. Em estrutura de metal, ele foi colocado no lugar mais alto do vilarejo. À vista de todos, seu tocar fora dos horários destinados à missa era um chamado de reunião a todos os moradores de Javé. A igreja, além de ser a construção mais robusta, era o templo icônico que, ao mesmo tempo, tinha em sua estrutura o sino simbólico da criação, ou seja, do início, mas também um cartão postal aos visitantes sobre a Wesley Martins da Silva | 201 religião vigente no vilarejo. Nisso, podemos observar o próprio nome do vilarejo: Vale de Javé. Um planalto no meio de duas montanhas devotados a Javé, que é um dos nomes atribuídos ao Deus bíblico. A intenção aqui não é salvar o Vale de Javé, mas se pensarmos nos estudos das performances culturais tal questão seria resolvida. Vemos nos estudos de Camargo (2013, p. 2) que: Performances Culturais é um conceito que, primeiramente, está inserido numa proposta metodológica interdisciplinar e que pretende o estudo comparativo das civilizações em suas múltiplas determinações concretas; visa também o estabelecimento do processo de desenvolvimento destas e de suas possíveis contaminações; assim como do entendimento das culturas através de seus produtos “culturais” em sua profusa diversidade, ou seja, como o homem as elabora, as experimenta, as percebe e se percebe, sua gênese, sua estrutura, suas contradições e seu vir-a-ser. Esse estudo comparativo seria o contraponto de afirmação da cultura local. Termos várias histórias, aumentadas ou não, nos serviriam de ponto de apoio para encontrar os traços comuns entre elas e tecer sua história. Essa proposta não quer dizer que esqueçamos aquilo que não é comum entre elas, pelo contrário, é registrar como parte histórica particular de indivíduos que formam o meio social. Ainda sobre a contaminação, percebemos que um sertão brasileiro distante de qualquer centro católico carrega os rituais próprios dessa religião, como o tocar do sino. A todo momento, temos a produção de produtos culturais, seja em sociedades tecnológicas seja parecida com Javé. O ato performático é inerente ao ser humano. Em Ligiéro (2012, p. 49), vemos que: Performances – sejam elas performances artísticas, esportivas ou a vida diária – consistem na ritualização de sons e gestos. Mesmo quando pensamos que estamos sendo espontâneos e originais, a maior parte do que fazemos e falamos já foi feita e dita antes – “até mesmo por nós”. As performances artísticas moldam e marcam suas apresentações, sublinhando o fato de que o comportamento artístico é “não pela primeira vez", mas feito por pessoas treinadas que levam tempo para se preparar e ensaiar. A performance pode ser caracterizada por comportamento altamente estilizado, assim como no Kabuki, 202 | Performances Culturais Kathakali, ballet, ou nas danças dramáticas dos povos nativos australianos. Ou pode ser congruente ao comportamento da vida diária, como no naturalismo. Com esse conceito, temos que o próprio ato de contar a história oral já se torna parte de uma performance. Em certas ocasiões, vemos uma expressividade performática no corpo de que conta expressando por movimentos ou mesmo marcas com o intuito direto de confirmar a veracidade da história contada. Podemos perceber até mesmo uma performance na linguagem. Suas entonações, seus sussurros, imitações vocais e silêncios compõem um aparato pronto a levar a encenação ao teatro imaginário feito por quem vê e escuta a história. Considerações finais O filme “Narradores de Javé” é um manancial de temas para direcionarmos em múltiplas vertentes de estudos, pois ele contempla várias temáticas e relações com a realidade. Um povo que, apesar de simples e visivelmente semianalfabeto, trava uma luta intelectual inglória, pois seus carrascos são quem vão julgar a validade de sua defesa. Uma tribo que tem seus valores ignorados pelos distantes. Um lugar sem energia elétrica que ironicamente irá desaparecer para produzir eletricidade a tribos maiores. Poderíamos até afirmar que eles perderam, mas seria uma visão simplista. A memória, esse artifício que carrega em si a cultura individual e social, permanece no homem. O humano por meio da oralidade descreve memórias e traz espaços, danças, gestos e firma o laço com sua ancestralidade. Um conhecimento empírico, mas que em algum momento se percebe a necessidade de vir a ser um registro cultural. A escrita com base nessa evocação da memória deve ser feita por indivíduos especializados. Uma entrevista, tendo como foco o pensar na história oral, tem suas premissas e modos. A curiosidade e o respeito pelo entrevistado, sem que essa curiosidade coloque em “xeque” a atitude do entrevistado. Por exemplo, perguntas como: “por que você não agiu neste momento?”. Exigir atitudes por meio de indagações trazem desconforto e podem passar de um relato Wesley Martins da Silva | 203 descritivo para ser um momento reflexivo e terapêutico. Para o trabalho com a história oral, é necessário ter paciência, demonstração contínua de interesse e principalmente, no caso de idosos, entender que o tempo em voga no momento pode não ser o tempo do relógio (LOPEZ, 2008). Temos ainda a valorização do sino pelos moradores de Javé. Objeto altamente simbólico. Se levarmos em conta as abordagens teóricas idealistas sobre o que seria a formação da cultura, principalmente com Clifford Geertz e Davis Schneider à frente, teríamos que a cultura é um código de símbolos partilhados pelos membros dessa cultura (LARAIA, 2009). E aqui teríamos também símbolos criados como pilar de junção social. O herói Indalécio foi idealizado na busca pelo Vale de Javé, mas apenas o sino resiste às intempéries da história. Sobre a questão da extinção do espaço real, o Vale de Javé nos lembra de algo próximo que aconteceu recentemente no Brasil Central: divisão do estado de Goiás. A partir de 1988, foi dividido geograficamente o solo goiano dando início ao estado do Tocantins. Na época, na necessidade da criação de um novo estado, claramente vinculada aos interesses políticos, foi propagada apenas suas potencialidades econômicas e seu futuro promissor. Contudo, quando visitamos e conversamos com os nascidos antes da divisão, ainda causa certa confusão. Falta ainda uma clareza (ou seria certeza) de pertencer ao novo estado. A realidade é Tocantins, mas a memória é de Goiás. Referências CAMARGO, Robson C. Performances Culturais: um conceito interdisciplinar e uma metodologia de análise. 2012. Disponível em: https://www.academia.edu/6332594/ Revista_Karpa_2013_Milton_Singer_and_Cultural_Performances_an_interdisciplinary_concept_and_a_methodological_approach._Milton_Singer_e_as_Performance s_Culturais_Um_conceito_interdisciplinar_e_uma_metodologia_de_análise. Acesso em: 02 jul. 2018. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Tradução de Maria Célia Raposo. Petrópolis: Vozes, 1985. 204 | Performances Culturais HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda, 1990. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2009. LIGIÉRO, Zeca. Performance e Antropologia de Richard Schechner. Tradução Augusto Rodrigues da Silva Junior ... et al. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. LOPEZ, Immaculada. Memória social: uma metodologia que conta história de vida e o desenvolvimento local. São Paulo: Museu da Pessoa: Senac São Paulo, 2008. MCKEE, Robert. Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro. Tradução: Chico Marés. Curitiba: Editora Arte & Letra, 2013. NARRADORES de Javé. Direção: Eliane Caffé. Rio de Janeiro: Riofilme, 2003. 100 min. PEREIRA, Vera Lúcia Felício. O artesão da memória no Vale do Jequitinhonha. Belo Horizonte: Editora UFMG/Editora PUC Minas, 1996. POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941/1080. Acesso em: 22 jul. 2018. 12 Okê Arô! Mito e memórias do caçador no Ilê Fará Imorá Odé João Marcos de Souza Primeiros rastros O presente trabalho é fruto de minha pesquisa de mestrado1 em que estudo as memórias do Ilê Fará Imorá Odé e como se relacionam com os mitos de Oxóssi, orixá patrono da casa, por meio do ensino do teatro, a fim de (re)conhecer e empoderar a identidade cultural/religiosa do povo de santo. O Ilê Fará Imorá Odé, localizado em Goiânia-GO, é um terreiro de candomblé do qual faço parte desde 2016, e iniciado para o orixá Logum Edé2 em 2017. A casa existe fisicamente a partir do ano de 2013, mas antes disso já havia atividades religiosas, como boris3, ebós4 e giras de catiços5, 1 Mestrado realizado no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais na Universidade Federal de Goiás (PPGIPC-UFG). O material aqui escrito é resultado dos estudos realizados na disciplina Tópicos Especiais em Performances Culturais I [Performances Culturais: Memórias e Sensibilidades], ministrada durante o primeiro semestre do ano de 2018 pela professora Nádia Maria Weber Santos e pelo professor Robson Corrêa de Camargo. 2 Logum Edé assim como seu pai Oxóssi é um orixá caçador. Filho de Oxum e criado por Iansã, é conhecido como o orixá da beleza, do encanto e da riqueza, dividindo com seus pais os seus domínios nas matas e nas águas, sendo um caçador das águas (muito associado a figura do pescador) e um príncipe das matas. 3 Bori é uma cerimônia realizada para alimentar a cabeça, o Ori, parte do corpo sagrada para o candomblé. Esse ritual é realizado para fortificar e equilibrar o Ori. 4 Ebós são oferendas feitas aos orixás com intenção de limpeza e equilíbrio espiritual, podendo conter tanto oferendas animais quanto vegetais. 5 Giras de catiços é o modo como se referem na casa ao culto aos egunguns, manifestados pelas figuras de Exus e Pombagiras. Não é uma tradição essencialmente do candomblé, mas que muitas das casas aglutinaram em suas práticas religiosas, sendo uma atividade mais conhecida nas casas de umbanda. 206 | Performances Culturais que eram realizadas na casa do próprio babalorixá Marcos ty Odé, onde se criava vínculos afetivos e memórias de uma família, logo que as religiões de matriz-africana se auto-organizam como grandes famílias, tendo um pai (Babalorixá) ou mãe (Yalorixá) no topo dessa hierarquia. De 2013 a 2017, o Ilê se organizou em um terreno alugado no Residencial Center Ville, região Sudoeste da capital, onde construíram um barracão para cultuarem os orixás bem como outras atividades religiosas da casa. No ano de 2018, a comunidade conseguiu comprar o seu próprio terreno próximo ao Residencial Orlando de Morais, região Norte de Goiânia, onde construiu seu lugar físico definitivo. Segundo o professor Marcos Torres, Babalorixá do Ilê Fará Imorá Odé, uma casa de candomblé, ou terreiro como é comumente chamado, espaço legitimador pelo culto aos ancestrais, aqueles que originam a nação afrodescendente, torna-se um espaço de luta contra o racismo, de recusa à imposição de uma identidade negativa, marcada pela dimensão de subalternidade, obediência e silêncio, de encontro com novos padrões estéticos, de uma beleza negada pelo ideário branco e racista. Esse novo espaço simbólico atribui poder, é fonte de empoderamento e passa a ser um centro difusor de africanidade (TORRES, 2015, p. 161). Assim o espaço do Candomblé possibilita o encontro com novas identidades, de empoderamento e autonomia diante de situações opressoras do cotidiano racista em que vivemos. O estudo dentro do espaço de um terreiro para o (re)conhecimento das identidades por meio de uma ação teatro/educativa visa ao reencontro com estéticas, mitos e memórias desconhecidos ou negados pelo ideário branco/cristão. O recorte para a ação teatro/educativa a ser proposta dentro da comunidade se aterá à figura do orixá Oxóssi e seu arquétipo e, para tal, se faz necessário o aprofundamento nos mitos e histórias desse caçador, tanto para a elaboração das aulas de teatro a serem ministradas quanto na compreensão da própria estética do trabalho proposto. Na minha caça pelo arquétipo do Caçador, deparei-me com vestígios da memória da comunidade em questão, que aqui apresentarei por meio João Marcos de Souza | 207 de um mito e das imagens encontradas na casa. Esses paradigmas, mitos e imagens, permitem reconhecer o arquétipo do caçador, bem como são indícios das memórias e da história do Ilê6 que serão retratadas por meio do teatro nesta pesquisa. O caçador de uma flecha só: mito e realidade Em Sinais: raízes de um paradigma indiciário (1989), Carlo Ginzburg anuncia que o caçador tenha sido talvez o primeiro, ou mais antigo, intelectual do gênero humano. Ele era capaz de (re)conhecer e (re)construir mínimas pistas, sinais e rastros deixados por sua caça, embrenhados na lama e na mata. Criava para si métodos de captura de sua presa e ainda narrava para os demais como havia conseguido a sua caça, sendo assim capaz de “remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente” (GINZBURG, 1989, p. 152). O caçador que abordo aqui se trata do orixá Oxóssi, também chamado de Odé, da tradição Ioruba, conhecido como o orixá da caça, das matas, da fartura e da prosperidade, aquele que provê o alimento. Seu principal símbolo é o Ofá, arco e uma única flecha, sua arma sagrada e certeira. O fato de ser um caçador de uma flecha só é um dos aspectos mais ressaltados nas narrativas acerca de Oxóssi. Transcrevo abaixo um dos mitos publicados por Pierre Verger em Lendas Africanas dos Orixás que enfatiza a sua destreza no uso de seu Ofá. Okê! Olofin era um rei africano da terra de Ifé, lugar de origem de todos os iorubas. Cada ano, na época da colheita, Olofin comemorava, em seu reino, a Festa dos Inhames. Ninguém no país podia comer dos novos inhames antes da festa. Chegado o dia, o rei instalava-se no pátio do seu palácio. Suas mulheres sentavamse à sua direita, seus ministros sentavam-se à sua esquerda, seus escravos sentavam-se atrás dele, agitando leques e espanta-moscas, e os tambores soavam para saudá-lo. As pessoas reunidas comiam inhame pilado e bebiam vinho de palma. 6 Em diversos momentos, utilizarei diferentes expressões para me referir ao Ilê Fará Imorá Odé, como o uso da palavra Ilê que quer dizer “casa” como outras palavras como terreiro e comunidade, pois são palavras do cotidiano das pessoas que frenquentam esses lugares. Também é comum a denominação “roça” para as casas de candomblé no Brasil. 208 | Performances Culturais Elas comemoravam e brincavam. De repente, um enorme pássaro voou sobre a festa. O pássaro voava à direita e voava à esquerda... Até que veio pousar sobre o teto do palácio. A estranha ave fora enviada pelas feiticeiras, furiosas porque não foram também convidadas para a festa. O pássaro causava espanto a todos! Era tão grande que o rei pensou ser uma nuvem cobrindo a cidade. Sua asa direita cobria o lado esquerdo do palácio, sua asa esquerda cobria o lado direito do palácio, as penas do seu rabo varriam o quintal e sua cabeça, o portal da entrada. As pessoas assustadas comentavam: “Ah! Que esquisita surpresa?” “Eh! De onde veio este desmancha-prazer?” “Ih! O que veio fazer aqui?” “Oh! Bicho feio de dar dó!” “Uh! Sinistro que nem urubu!” “Como nos livraremos dele?” “Vamos, rápido, chamar os caçadores mais hábeis do reino.” De Idô, trouxeram Oxotogun, O “Caçador das vinte flechas”. O rei lhe ordenou matar o pássaro com suas vinte flechas. Oxotogun afirmou: “Que me cortem a cabeça se eu não o matar!” E lançou suas vinte flechas, mas nenhuma atingiu o enorme pássaro. O rei mandou prendê-lo. De Morê, chegou Oxotogí, o “Caçador das quarenta flechas”. O rei lhe ordenou matar o pássaro com suas quarenta flechas. Oxotogí afirmou: “Que me condenem à morte, se eu não o matar!” E lançou suas quarenta flechas, mas nenhuma atingiu o pássaro. O rei mandou prendê-lo. De Ilarê, apresentou-se Oxotadotá, o “Caçador das cinquenta flechas”. Oxotodotá afirmou: “Que exterminem toda a minha família, se eu não o matar”. Lançou suas cinquenta flechas e nenhuma atingiu o pássaro. O rei mandou prendê-lo. De Iremã, chegou, finalmente, Oxotokanxoxô, o “Caçador de uma flecha só”. O rei lhe ordenou matar o pássaro com sua única flecha. Oxotokanxoxô afirmou: “Que me cortem em pedaços se eu não o matar!”. Ouvindo isto, a mãe de Oxotokanxoxô, que não tinha outros filhos, foi rápido consultar um babalaô, o adivinho, e saber o que fazer para ajudar seu único filho. “Ah!” – disse-lhe o babalaô. “Seu filho está a um passo da morte ou da riqueza. Faça uma oferenda e a morte tomar-se-á riqueza.” E ensinou-lhe como fazer uma oferenda que agradasse às feiticeiras. A mãe sacrificou, então, uma galinha, abrindo-lhe o peito, e foi, rápido, colocar na estrada, gritando três vezes: “Que o peito do pássaro aceite este presente!” Foi no momento exato que Oxotokanxoxô ativara sua única flecha. O feitiço pronunciado pela mãe do caçador chegou ao grande pássaro. Ele quis receber a oferenda e relaxou o encanto que o protegera até então. A flecha de Oxotokanxoxô o atingiu em pleno peito. O pássaro caiu pesadamente, se debateu e morreu. A notícia espalhou-se: “Foi Oxotokanxoxô, o ‘Caçador de uma flecha só’, que matou o pássaro! O Rei lhe fez uma promessa, se ele o conseguisse! Ele ganhará a metade da sua fortuna! Todas as riquezas do reino serão divididas ao meio, e uma metade será dada a Oxotokanxoxô!” Os três caçadores foram soltos da prisão e, como recompensa, Oxotogun, o “Caçador das vinte flechas”, ofereceu a Oxotokanxoxô vinte sacos de búzios; João Marcos de Souza | 209 Oxotogí, o “Caçador das quarenta flechas”, ofereceu-lhe quarenta sacos; Oxotadotá, o “Caçador das cinquenta flechas” ofereu-lhe cinquenta. E todos cantaram para Oxotokanxoxô. O babalaô, também, juntou-se a eles, cantando e batendo em seu agogô: “Oxowusi! Oxowusi!! Oxowusi!!! “O caçador Oxo é popular!” E assim é que Oxotokanxoxô foi chamado de Oxowusi. Oxowusi! Oxowusi!! Oxowusi!!!” (VERGER, 1997, p. 14). A partir da narrativa supracitada percebe-se, além de muitos outros símbolos e significados da cultura Ioruba, o próprio nome do Orixá Oxóssi (Oxowusi) em decorrência de sua habilidade enquanto o caçador de uma única flecha, bem como de seu reconhecimento e popularidade (“O caçador Oxo é popular!”). O mito, conforme ressalta Mircea Eliade (1972, p. 9), “é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares”, o qual o define do seguinte modo: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso no “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser (ELIADE, 1972, p. 9). Ainda, segundo o autor, os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É nessa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural (ELIADE, 1972, p. 9). 210 | Performances Culturais O mito é, assim, um dinamizador das relações humanas com o mundo. Detenho-me às questões referentes à mitologia Ioruba, especificamente a do orixá Oxóssi. Recuperando novamente o mito citado, o que dá a tônica da história é o enfrentamento de Oxóssi com o sobrenatural, sendo este representado pelo grande pássaro enviado pelas feiticeiras, que se referem as Iyami Oxorongá, que dizem respeito ao poder ancestral feminino. Quando o terreiro entra em função, isto é, quando se reúnem em torno de uma atividade no candomblé, especialmente iniciações, é comum se fazer oferendas às feiticeiras, para que a função possa correr tranquilamente e em sinal de respeito ao seu grande poder. A oferenda só pode ser feita por mulheres, preferencialmente que sejam filhas de Yabás, orixás femininos. Entretanto, se uma das pessoas recolhidas para iniciação for de Oxóssi, é comum que não se lhes dê nenhuma satisfação, visto que existe uma quizila7 entre elas e o caçador, explicitado no mito em que Oxóssi lança sua flecha em direção ao pássaro das feiticeiras. Desse modo, o mito se constitui não apenas como narrativa daquilo que foi ou uma tentativa de explicação da realidade, mas também o mito é em si verdadeiro, pois dinamiza as práticas e rituais da comunidade. Por se tratar de uma casa dedicada ao orixá Oxóssi, a relação com as Iyami é ainda mais cuidadosa dentro do Ilê Fará Imorá Odé. Dessa maneira, os mitos estão imbricados com nossos entendimentos acerca do mundo, são “um ingrediente vital da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é ao contrário uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente” (ELIADE, 1972, p. 19). O próprio teatro surge de sua relação intrínseca com os mitos no contexto religioso, seja no Ocidente, conforme as suas origens na Grécia Antiga mediante os cultos a Dionísio, seja ainda nas múltiplas práticas teatrais no Oriente, como o Khatakali. 7 Quizila ou Ewo se referem aos tabus dentro do candomblé, se constituindo como regras que devem ser respeitadas, pois podem provocar uma reação contrária ao Axé. No caso em questão, os filhos de Oxóssi têm uma quizila com as Iyami, pois o caçador foi o responsável pela morte do pássaro das feiticeiras. Outras quizilas de Oxóssi são o mel e a abelha, quizilas também explicadas por outros mitos que narram a relação de Oxóssi com Oxum. João Marcos de Souza | 211 Até mesmo no Brasil as origens do teatro estão ligadas às matrizes religiosas, pois as primeiras formas teatrais realizadas nas terras tupiniquins que temos notícia foram utilizadas para a catequização dos índios pelo padre jesuíta José de Anchieta. Ele buscava ensinar, por meio do teatro, novas maneiras de se comportar, objetivando a colonização pelos portugueses e uma nova fé centrada nos valores cristãos. Desde os tempos da colonização do Brasil está provada a eficácia estético-pedagógica do teatro, que revela ainda a perspectiva colonizadora pela arte que persiste nos dias de hoje: a imposição de valores brancos e cristãos sobre a cultura indígena e, posteriormente, à cultura negra/africana. Por que não realizar um teatro que tenha como base os mitos, memórias e cultura negra? Por que ainda hoje relegar ao povo de santo um aspecto folclórico e não um elemento constituinte da cultura brasileira? Conforme nos adverte Barbosa (1998, p. 80), a palavra folclore por si só se refere à cultura do outro, comumente daquele que foi colonizado: A palavra e o conceito foram criados pelos ingleses para designar as manifestações artísticas e culturais dos povos colonizados que não seguiam o padrão dominante na cultura inglesa. Folclore para os ingleses é a arte do “outro”, inclusive dos vizinhos dominados, como o País de Gales, Irlanda e Escócia. É comum que se coloque as expressões indígenas e/ou negras para se referir, como o professor Zeca Ligiéro propõe, às performances afroameríndias como folclore, como a cultura do outro, perpetuando assim processos colonizadores e preconceituosos. Na caça por um ensino de teatro libertador por meio das narrativas, mitos e memórias do Ilê Fará Imorá Odé, Ligiéro (2011, p. 256) elucida a relação do teatro/educação e as tradições do candomblé, uma qualidade única para uma pedagogia libertadora. As diversas modalidades artísticas (além da rica mitologia e dos simbolismos religiosos) descendentes das tradições afro-ameríndias podem e devem se articular com uma pedagogia da libertação, pois valorizam a autoestima de quem as pratica, trabalhando com sua identidade cultural, sem deixar de discutir, 212 | Performances Culturais em termos efetivos e práticos, questões de identidade do indivíduo e de seu grupo de teatro e/ou comunitário. Cria-se assim paradigmas para uma concepção de ensino de teatro centrada na própria realidade do indivíduo e, portanto, nos seus mitos e símbolos. No caso em questão, essas se dão nas narrativas de Oxóssi e nas memórias do Ilê Fará Imorá Odé que apresento inicialmente por meio de imagens encontradas na comunidade. Imagens do caçador: memórias do Ilê Fará Imorá Odé A memória é, simultaneamente, acúmulo e perda, arquivo e restos, lembrança e esquecimento. Sua única xidez é a reconstrução permanente, o que faz com que as noções capazes de fornecer inteligibilidade a esse campo devam ser plásticas e móveis. GONDAR, 2016, p. 19 Para a criação teatral, tenho me debruçado nas imagens presentes na casa, em especial nas imagens que remetem ao orixá Oxóssi. Nessa mata que me embrenho, fica também evidente o meu próprio percurso enquanto integrante da comunidade, na caça pelas imagens que (re)criam as pistas das memórias pessoais e coletivas do Ilê. A minha primeira visita à casa, em uma festividade do candomblé, foi em uma festa dedicada a Oxóssi no ano de 2016. As cores brancas e o azul turquesa – conhecido como “azul-odé” dentro dos terreiros – nas roupas das pessoas e na decoração do barracão8 deixavam claro o orixá que ali estava sendo louvado. Logo que entrei na casa pude ver gravuras com os desenhos de alguns orixás. Elas estavam colocadas na parede da sala da casa que servia de apoio para as atividades religiosas do terreiro e era possível vê-las assim que se entrava. A seguir reproduzo na Figura 1 a gravura referente à Oxóssi encontrada. 8 O barracão é o nome que se dá ao salão onde os orixás são recebidos para festejarem e dançarem junto com o povo. João Marcos de Souza | 213 214 | Performances Culturais Figura 1 – Gravura de Oxóssi encontrada no Ilê Fara Imorá Odé Fonte: artista não identificado. Disponível em: http://portalroberiodeogum.com.br/?p=4809 Acesso em: 6 jul. 2018. A partir da Figura 1, nota-se duas características já ressaltadas do caçador Oxóssi no candomblé: a presença de seu Ofá (arco e flecha) empunhado e mostrado como sinal de força e orgulho e a presença da cor azul nas penas do pássaro que ele traz sob a cabeça. O seu semblante é de compenetração, de quem visualiza a caça em meio a mata. Na outra mão, na parte inferior do desenho, o Caçador empunha outro de seus objetos sagrados: o Irukerê. Objeto geralmente confeccionado com cabo de madeira ou aço e pelos do rabo ou crina de cavalo, é um apetrecho de dignidade dos reis (Oxóssi foi rei de Ketu, antiga capital dos Iorubas em Benim) de alguns povos do continente africano, ainda hoje utilizado por alguns. Possui tanto a função de espantar moscas quanto o significado mágico de comandar espíritos da floresta, além de afastar os eguns – nome que se dá aos espíritos desencarnados na tradição Ioruba. O desenho da Figura 1 ressalta as principais características de Odé: sua ligação com a caça e com a mata, suas paramentas sagradas (Ofá e Irukerê) e a cor azul. Assim o desenho funciona como uma espécie de “guardião” da memória dos símbolos deste orixá. O candomblé, bem como outras expressões afro-brasileiras, configura-se pela tradição oral, no repasse de ensinamentos e costumes dos João Marcos de Souza | 215 mais velhos para os mais novos9. Essas representações, como a ilustração da Figura 1 e outras que irei abordar mais adiante, são importantes para o povo de axé, pois resguarda a sua memória e identidade. A memória aqui é entendida não só como uma forma de manutenção do passado, mas também de processos de transformação e produção de um futuro (GONDAR, 2016). Ao continuar na minha caça pelas imagens da comunidade, eu me deparei com um quadro que estava perdido em meio a mudança da casa realizada no início do ano de 2018, fato que citei no início deste texto. No fundo de uma caixa de madeira, de baixo de muitas roupas destinadas aos orixás, encontrei o quadro que reproduzo a seguir na Figura 2. Figura 2 – Quadro em mosaico encontrado no Ilê Fará Imorá Odé Fonte: fotografado pelo autor em maio/2018. Autor: Eduardo Pestana. Em conversas com integrantes que estão a mais tempo na casa, fui informado de que o quadro foi doado por um ex-integrante da casa, Eduardo Pestana, que em um mosaico de azulejos coloca em evidência o Ofá do caçador na cor azul, também presentes no desenho anterior. 9 Faz-se importante ressaltar que no Candomblé o mais velho não está ligado a uma questão de idade biológica, mas sim de tempo de iniciação, pois se pode ter, por exemplo, uma pessoa com 20 anos com 10 anos de iniciada ao mesmo tempo que pode haver uma pessoa nos seus 40 anos recém-iniciada. Na hierarquia da religião vale o seu tempo de iniciado, em que se complete a “idade adulta” após 7 anos quando o Iaô (nome que se dá ao iniciado até completar sete anos) se torna um Egbomi (irmão mais velho). 216 | Performances Culturais O mosaico da Figura 2 remonta um estilo diferente ao do desenho da Figura 1 uma mesma representação: Oxóssi em posse de sua arma. Não se sabe precisar ainda quando o quadro chegou na casa e nem o porquê de seu ocultamento ou quase perda no processo de mudança. Até a mudança física da casa, nunca havia tomado conhecimento do objeto em questão, pois ele não tinha sido colocado em nenhum lugar de destaque para ser observado, como, por exemplo, o desenho da Figura 1. Num mesmo tipo de trabalho da Figura 2, encontra-se um outro objeto da memória da casa: uma bandeja utilizada para levar comida para as pessoas que estão recolhidas em processo de iniciação ou estão pagando suas obrigações10. Figura 3 – Bandeja utilizada para levar comida às pessoas recolhidas Fonte: Fotografada pelo autor em maio/2018. Mosaico de Suzete Gomes. A bandeja em questão foi feita e doada também por uma ex-integrante da casa, Suzete Gomes. A presença do Ofá e a predominância das cores azul e branco são mais uma vez as características ressaltadas no objeto que tem uso específico dentro da rotina da comunidade. A bandeja pode ser analisada tanto na sua função cotidiana como um objeto de memória, pois, ao vê-la pela casa após a iniciação, recordo-me 10 No candomblé chama-se de obrigação o conjunto de rituais a serem feitos tanto para a iniciação quanto para as cerimônias que a pessoa deve cumprir após ser iniciada. Até completer a idade adulta dentro do candomblé, o Iaô deve pagar sua obrigação ao completar 1 ano de iniciado (Okaran), 3 anos (Odu Etá) e 7 anos (Odu Ejê). João Marcos de Souza | 217 do tempo em que estive recolhido, das pessoas que cuidaram de mim, levavam-me comida e ensinavam-me as rezas. O objeto guarda uma memória afetiva para os já iniciados e é tratado de forma especial. A bandeja em questão não tem outras finalidades e fica guardada em lugar específico para que não se possa utilizá-la para outros fins. Um simples objeto feito de madeira e esteticamente elaborado com as cores e símbolos de Oxóssi guarda tantas memórias que poderia ser realizado um trabalho somente com base nessa bandeja, acerca das memórias dos iaôs de seu tempo no rundeime, local onde ficam recolhidas as pessoas em processo de iniciação, bem como as memórias das pessoas que estavam dispostas na organização e execução de diferentes funções enquanto estão recolhidas. Um objeto aparentemente simples como uma bandeja pode ter diferentes significados a partir de como ele é mediado e manuseado. Desse modo, a memória tem função importante nessa mediação simbólica e, portanto, afetiva. Uma última imagem que se faz importante ressaltar na casa são as estátuas do caçador que ficam no Axé, no centro do barracão. Talhadas em madeira, com cerca de 2,20 m de altura, as estátuas são símbolo do espaço sagrado que se adentra. Figura 4 – Estátuas de Oxóssi no centro do barracão do Ilê Fará Imorá Odé Fonte: Pedro Vargas, julho 2018. Artista: Luciano Leite. 218 | Performances Culturais Na Figura 4, notamos as duas estátuas de um homem, segurando um arco e flecha, de costas um para o outro. As peças têm a mesma altura e estão sob uma base de madeira no local do Axé, no centro do barracão. Esse lugar não é meramente estético, mas sim de significado ritual. Nas festas e danças circulares características da religião, os iniciados devem saudar o Axé, batendo sua cabeça no chão em sinal de agradecimento e respeito ao local de fé que os acolheu para sua iniciação. Tomando como base as quatro imagens colocadas, pode-se inferir, inicialmente, acerca do arquétipo do Caçador, do orixá Oxóssi, que será aqui utilizado como base para uma experiência lúdico-pedagógica em teatro dentro da comunidade do Ilê Fará Imorá Odé. Me refiro ao arquétipo, conforme postulou Carl G. Jung, como um “elemento vazio e formal em si, nada mais sendo do que uma facultas praeformandi, uma possibilidade dada a priori da forma da sua representação” sendo “determinados apenas quanto à forma e não quanto ao conteúdo, e no primeiro caso, de um modo muito limitado” (JUNG, 2014, p. 87). Os arquétipos são “imagens primordiais” que expressam não só a forma da atividade a ser exercida, mas também, simultaneamente, a situação típica na qual se desencadeia a atividade. Tais imagens são imagens primordiais, uma vez que são peculiares à espécie, e se uma ver foram “criadas”, a sua criação coincide no mínimo com o início da espécie (JUNG, 2014, p. 85). O arquétipo é assim uma ideia, o que antecede a forma da representação. As imagens e o mito aqui mostrados trazem diferentes representações de uma mesma ideia, ou seja, um mesmo arquétipo: o caçador, este representado sempre com sua arma. O arquétipo do caçador em muito se assemelha ao arquétipo do herói. Se tomarmos novamente o mito narrado por Verger exposto anteriormente, nota-se que sua glória e seu reconhecimento estão ligados ao seu ato heroico de matar o pássaro que atrapalhava a festa do rei. João Marcos de Souza | 219 Tanto o mito quanto as imagens dão ênfase na importância de sua arma, o Ofá. Em todas as representações acima este estava presente, pois foi seu arco e única flecha que lhe concedeu o título de exímio caçador e lhe conferiu status de rei de Ketu. Ao buscar hoje por uma imagem de caçador no Google, obtemos as seguintes imagens demonstradas abaixo na Figura 5. Figura 5 – Print-Screen da primeira página do Google Imagens na busca pelo termo “Caçador”. Fonte: Google Imagens. Busca realizada em 20 maio 2018. Das primeiras dezesseis imagens que aparecem na busca, todas as representações do Caçador estão fazendo uso de armas de fogo, diferente de Oxóssi, mas se pode notar que a maioria das imagens traz o caçador nas matas, assim como o orixá. O Ofá do caçador remonta outros tempos, outras histórias e memórias. O Arco e Flecha sempre foram características de comunidades primitivas, considerado antigas e ineficientes em relação às armas mais sofisticadas, como as utilizadas hoje à base de pólvora. Considerações finais Assim, tendo como base as imagens aqui expostas, conclui-se que a figura do Caçador está ligada à presença da arma, em lugares da natureza, 220 | Performances Culturais no meio do desconhecido e do imprevisível, na busca do alimento para si mesmo e para sua comunidade. A arma é um símbolo de poder, da superioridade da simples ação humana sobre algo ou alguém. A arma deve ser capaz de atingir a presa a distância, surpreendê-la a fim de obter sucesso para o alimento. O arquétipo do Caçador, buscado aqui por meio do mito e das representações de Oxóssi encontradas na comunidade, principal busca deste texto, vem se configurando como o ato heroico de desbravar o desconhecido com uma arma, no caso em questão, o arco e flecha. Todas essas questões são importantes para o trabalho em teatro a ser desenvolvido no decorrer da pesquisa, pois a posse das paramentas do orixá modifica sua movimentação, sua relação com o mundo. O ofá e o irukerê criam dinâmicas de movimento e são símbolos sagrados que devem ser retratados na oficina em teatro a ser realizada no Ilê Fará Imorá Odé. O texto aqui exposto cria as primeiras bases para o desenvolvimento da ação teatro-educativa que se pretende e que, mediante os mitos e memórias do caçador, encontra caminhos para um ensino libertador. Referências BARBOSA, Ana Mae. Tópicos e utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GONDAR, Jô. Cinco proposições sobre memória social. Morpheus: revista de estudos interdisciplinares em memória social, Rio de Janeiro, Edição Especial ‘Por que Memória Social?’ v. 9, n. 15, p. 19-40, 2016. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/painel/pdf/publ_19.pdf JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. João Marcos de Souza | 221 LIGIÉRO, Zeca. Corpo a Corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2011. TORRES, Marcos Antônio Cunha. Olhos brancos sobre o sagrado negro: a construção da africanidade nas imagens de Pierre Verger (1902-1996). 2015. 205 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de História, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2015. VERGER, Pierre Fatumbi. Lendas africanas dos Orixás. 4. ed. Salvador: Corrupio, 1997. 13 História, memória e sensibilidades: mediações com o corpo e as performances incorporadas Rodrigo Graboski Fratti Introdução Iniciamos essa escrita compreendendo-a como embrionária frente à complexa rede dos estudos da memória e a fazemos, também, imbricados por um questionamento acerca de como podemos pensar o corpo, ou diríamos, as memórias corporificadas, ou ainda, as performances incorporadas, como universo temático e conceitual. Nesse sentido, as perguntas às quais tentamos responder são as seguintes: o corpo pode se constituir como um vetor para o entendimento da realidade? Suas mediações com a história, memória e sensibilidades perpassam por compreendê-lo à luz de uma perspectiva teórica inter e transdisciplinar no mesmo sentido dado às performances culturais? Por um período muito longo no campo da política e da ciência, ele foi desarticulado de suas dimensões sociais, culturais, orgânicas e psíquicas para ser compreendido, pelas ciências humanas e – muitas vezes em oposição – pelas ciências naturais e biológicas, de forma fragmentada. Todavia, nesse século, assim como várias investidas do século XX, houve iniciativas científicas buscando sua unicidade, as quais foram retomadas e defendidas como possiblidades de abordagem teórica. Seja pela influência Rodrigo Graboski Fratti | 223 dos saberes produzidos no mundo ocidental, seja pelos saberes descolonizados e as influências africanas, ameríndias e/ou orientais, o que se exige hoje são olhares multifocais sobre o corpo, capazes de fortalecerem saberes conjugados e não sobrepostos, ainda que reconheçamos as zonas de conflito e disputa de poder presentes. O corpo é natureza e, ao mesmo tempo, pode não a ser, o corpo é misturado, é multi, inter e transdisciplinar. A partir dessa afirmativa e problematizações, propomos para essa escrita um mergulho bibliográfico nas investidas de alguns autores que se sustentam na história cultural, na memória social, nas performances culturais, nas ciências naturais, na antropologia, bem como na filosofia, para que orientemos nosso olhar sobre o tema da memória e suas mediações com o corpo. A história cultural e suas investidas teórico-metodológicas em Sandra Jatahy Pesavento Perpassa pelas contribuições de Pesavento (2003) o percurso inicial desta escrita. A autora desenvolve uma reflexão acerca do papel do historiador frente às reflexões sobre a história cultural como episteme, em que conceitos, métodos e temáticas anunciam outro olhar sobre a própria história enquanto campo de saberes. Para a autora, cabe ao historiador ou, como diríamos, para os não historiadores que produzem conhecimento histórico, olhar sem os vícios que privilegiam um investigar histórico como cópia do real, mas sim, identificar aquilo que é secundário, detalhe e despercebido. Numa analogia ao cinema, Pesavento (2003, p. 64), fundamentada em Benjamin, diz: Baseando-se na montagem cinematográfica, a partir das fotografias que, combinadas, produzem o movimento, Walter Benjamin imagina para o historiador um caminho semelhante. É preciso recolher os traços e registros do passado, mas realizar com eles um trabalho de construção, verdadeiro quebra cabeças ou puzzle de peças, capazes de produzir sentido. As sim, as peças se articulam em composição ou justaposição, cruzando-se em todas as combinações possíveis, de modo a revelar analogias e relações de significado, ou então se 224 | Performances Culturais combinam por contraste, a expor oposições ou discrepâncias. Nas múltiplas combinações que se estabelecem, argumenta Benjamin, algo será revelado, conexões serão desnudadas, explicações se oferecem para a leitura do passado. Logo de início, a autora se vale da aproximação entre história e antropologia para pensar o estudo historiográfico, em que a partilha com os homens e mulheres do passado exige combinar, compor e cruzar elementos investigativos da descrição densa. Nas palavras da autora: [...] estratégia apropriada da Antropologia e levada a efeito pelas análises de Clifford Geertz A contribuição ou aproximação da Antropologia coma História foi um pouco mais além da utilização de certos conceitos explicativos, relacionados ao domínio do simbólico e à representação. Fornecendo ao historiador os exemplos de um método altamente significativo para realizar uma pesquisa intensa, descrevendo a realidade observada nos seus mínimos detalhes e correlação de significados possível, a descrição densa da Antropologia ensinou como exploraras fontes nas suas possibilidades mais profundas, fazendo-as falar e revelar significados. Não se trata apenas, como o nome pode sugerir, de descrever o objeto minuciosamente, mas sim de aprofundar a análise do mesmo, explorando todas as possibilidades interpretativas que ele oferece, o que só poderá ser dado por meio de um intenso cruzamento com outros elementos, observáveis no contexto ou mesmo fora dele (PESAVENTO, 2003, p. 66). Pesavento nos diz que, no campo da História, o fazer histórico é mediado pelas narrativas que procuram dar ordem e lógica em que sujeitos são mediados pelo social, pelas investidas racionalistas, pelas sensibilidades e pelo universal e singular. A autora afirma, ainda, que a escrita é reforçada pela linguagem, por uma retórica e estética, “o historiador quase que acaba sua narrativa com um enunciado do tipo teorema: como queríamos demonstrar” (PESAVENTO, 2003, p. 67). Sendo assim, ao debruçar-se sobre a escrita do texto, o historiador dialoga com depoimentos e fontes e suas leituras de mundo permitem que sejam evidenciados, a partir de um olhar microscópio sobre os fragmentos, seus valores e temores, modelos e desejos. Rodrigo Graboski Fratti | 225 Tal escolha implica o recurso do uso da metonímia como figura metodológica de ação, o que permite que, a partir do fragmento, se consiga obter um espectro mais amplo de possibilidades de interpretação. O aprofundamento do processo explicativo, pela análise microscópica, leva, por seu turno, a uma pluralidade de respostas possíveis para uma mesma situação dada. [...] Recusando evidências, trabalhando com detalhes e traços secundários, tais historiadores se voltam para a preocupação de atingir, no micro, a dinâmica da vida, construindo versões sobre o passado por meio da pesquisa empírica exaustiva, que tanto combina uma espécie de descrição densa, aquela do viés antropológico, quanto a do método indiciário anunciado por Ginzburg (PESAVENTO, 2003, p. 72). Esse olhar da micro-história remete, segundo a historiadora, a uma aproximação dos significados, símbolos dos indivíduos e dos fragmentos, nos quais as sensibilidades, as práticas e os discursos convergem. Trata-se de uma corrente que se propõe um caráter experimental, como um laboratório de experiências, que ensaia o uso de fontes que, entrecruzadas, remetem ao simbólico, à sensibilidade e à representação. Em suma, a microhistória busca traduzir o empírico em sensibilidades, na tentativa de resgatar a experiência do vivido, indo do tempo curto dos dados de arquivo ao tempo macro de uma época dada do passado. (PESAVENTO, 2003, p. 74-75). Na sequência de seus escritos, a autora discorre sobre a História Cultural do Político e sua centralidade nos estudos sobre imaginário e poder. Em seguida, aponta a interface da História Cultural com a literatura e faz também referência à História Cultural e às imagens (em que as corporeidades podem se fazer presentes em oposição ao predomínio das fontes escritas) como episteme que se constituem no imaginário e se revelam como representações do mundo. Diz a autora: Discursos podem mesmo estar na base de movi mentos sociais e de produzir revoluções, mas as imagens são dotadas de alto poder mobilizador, como verdadeiros ícones prenhes de significado e que impulsionam a ação. A rigor, se reconhece a força de imagem, como comenta Louis Marin, pelos seus efeitos: 226 | Performances Culturais pelo seu poder de ação, de mobilizar autores, de gerar ações, pela visibilidade de seus efeitos sobre corpos e mentes. (PESAVENTO, 2003, p. 87). Mas há ainda outras considerações a serem tomadas, no caso da utilização do texto literário pelo historiador da cultura. Pensemos na estética, no cânone literário, pertinente a tal tipo de escrita na sua avaliação. O valor literário não é um valor absoluto para o historiador, no sentido de que nem só os grandes autores e as grandes obras é que podem ser tomados em consideração. Se o grande escritor detém, como ninguém, a capacidade de estetizar, transpondo em texto as sensibilidades de uma época, ele é, sem dúvida, um leitor privilegiado do social. (PESAVENTO, 2003, p. 84). Uma outra referência temática acerca da História Cultural traduzida por Pesavento, diz respeito a sua relação com a identidade. Para a autora, elas são múltiplas e revelam-se a partir do eu, da personalidade, até o social, mas isso não significa estarem desprovidas do conflito ou sempre numa referência harmônica. Ao explicitar, por exemplo, sobre mitos, memória, ancestralidade e identidades nacionais, revela o seguinte: A elaboração dos mitos de origens vai ao encontro das identidades nacionais, compondo conjuntos de referência para as raízes de um povo. Como desdobramento de tais processos, delineiam-se estereótipos e uma espécie de checkUst identitária, no dizer de Anne-Marie Thiesse, em que se relacionam pais ancestrais, datas memoráveis, fatos históricos, lugares de memória, mitos, ritos e práticas alusivas à nação, à música, à comida e à festa nacional, aos trajes típicos. As identidades são, no caso, ficções criativas que situam o indivíduo no espaço, no tempo, no social, mesmo no mundo. (PESAVENTO, 2003, p. 91). A partir daqui, estabelece as conecções entre História e Memória. Seja por meio de registros escritos, sejam pelas oralidades, quando as narrativas se tornam de cunho memorialísticos, há inúmeras mediações significativas. Uma delas, exposta pela autora, trata das memórias individual, coletiva e seletiva e a questão do esquecimento. E, neste ponto, cabe dizer que a contrapartida da Memória é o esquecimento. Não é possível tudo lembrar, pois a Memória é seletiva, tal como a matéria do Rodrigo Graboski Fratti | 227 esquecimento também é objeto de processos que ultrapassam a escala do inconsciente. Por outro lado, se formos ter em conta esta mescla que se processa entre memória individual e memória coletiva, há que pensar que as pessoas são ensinadas a lembrar e a esquecer, fazendo com que determinados acontecimentos não sejam considerados importantes ou mesmo que não tenham acontecido. (PESAVENTO, 2003, p. 95-96). Para Pesavento (2003), balizada em Ricoeur, a História enquanto forma de representação do passado estaria submetida à memória para sua confirmação, o que muitas vezes não coaduna com o interesse do leitor, visto que este espera do historiador o relato verdadeiro. Todavia, o historiador tem ao seu dispor diferentes fontes não oficiais para o relato histórico, que convergem para um rigor, à medida que são conflitadas, harmonizadas ou mesmo comparadas e sobrepostas. [...] no plano da documentação não-oficial, se situam outras fontes, como as crônicas de jornal, os almanaques e revistas, os livros didáticos, os romances, as poesias, os relatos de viajante, as peças teatrais, a música, os jogos infantis, os guias turísticos, todos os materiais relativos às sociabilidades dos diferentes grupos, em clubes, associações, organizações científicas e culturais. Tal documentação, riquíssima, é complementada por aquelas fontes saídas do âmbito do privado: correspondência, diários, papéis avulsos, livros de receitas. [...] No plano das imagens, cartazes de propaganda, anúncios de publicidade, fotografias, mapas e plantas, caricaturas, charges, desenhos, pinturas, filmes cinematográficos, tudo se oferece ao historiador, que não se limita mais ao domínio das fontes textuais. Das imagens às materialidades do mundo dos objetos, o Historiador da Cultura se dispõe a fazer as coisas falarem. Casas, prédios, monumentos, traçados das ruas, brinquedos apontam no sentido de que as coisas materiais são detentoras de significados e se prestam à leitura. (PESAVENTO, 2003 p. 97-98). Outra reflexão significativa que a autora traz, diz respeito ao caráter pluri e transdisciplinar da História Cultural, compreendido por nós como algo que se aproxima das performances culturais. Isso remete que, a partir da História Cultural, o historiador pode trilhar outros caminhos teóricometodológicos e, na fluência destes, operar com diferentes significados 228 | Performances Culturais para se investigar a História, seja a partir dos aportes da Psicanálise, da Literatura, Antropologia ou das Artes. Com tom desafiante, lemos que: Quando o historiador passa a trabalhar com imagens, como aquelas da pintura, isso implica dizer que deverá ter um plus de conhecimento para fora dos domínios de sua área? Se trabalha a loucura e a subjetividade, deverá habilitar-se a entender da Psicanálise? E quando abordar o texto literário, exige-se ou não desse historiadora postura e o conhecimento de um crítico da Literatura? [...] Também no que toca a temas e objetos, a preocupação com ritos e festas, mitos e crenças, sociabilidades e atitudes mentais, ou mesmo a incorporação da história material pela cultura, ou ainda o ingresso dos historiadores no campo das identidades pode ser considerado como um indício o da aproximação realizada entre a História e a Antropologia. [...] Nessa medida é que se coloca a aproximação com a Arte e, sobretudo, com a alteridade da imagem com relação ao texto. Mais uma vez o enfoque é distinto daquele de uma História da Arte. Não se trata da evolução, no tempo, de tendências ou correntes artísticas que permitam ilustrar, mais uma vez, contexto dado, gratificado agora com a beleza da imagem. (PESAVENTO, 2003, p. 108-112). Entendemos que, a partir desse primeiro mergulho no pensamento de Pesavento sobre a história cultural, perpassam entendimentos a respeito do tema da memória e sensibilidades no fazer histórico. A seguir, debruçamo-nos sobre a memória social, lócus também para a compreensão das interfaces com o corpo. Apontamentos sobre memória social em Jô Gondar Inicialmente, posicionamo-nos em relação a alguns verbetes acerca da memória social e coletiva para pensarmos os pressupostos teóricos que orientam os estudos sobre memória. Em três definições, estão explícitos alguns elementos para reflexão que nos parecem fundamentais. O primeiro, da memória, como fonte histórica e como fenômeno histórico; em seguida, a memória compreendida entre o individual e o coletivo, entre o psíquico e o social; por fim, seu caráter transdisciplinar, conforme pode ser comprovado pela leitura dos excertos abaixo: Rodrigo Graboski Fratti | 229 Peter Burke (2000) refere que o historiador precisa se ocupar com a Memória sob dois pontos de vista: o primeiro, diz respeito à Memória como fonte histórica, tendo o historiador que fazer uma crítica da reminiscência, nos moldes do tratamento das fontes documentais; o segundo é tratar a Memória como fenômeno histórico, fazendo a “história social do lembrar”, ou seja, identificar no percurso do tempo as modificações pelas quais passam os processos seletivos das memórias sociais. “Heródoto imaginou os historiadores como guardiões da memória, a memória de feitos gloriosos. Eu prefiro ver os historiadores como os guardiões de fatos incômodos, os esqueletos no armário da memória social.” (BURKE, 1992, p. 251) Para ele, uma das funções mais importantes do historiador consiste em recordar às pessoas aquilo que elas gostariam de esquecer. Por memória coletiva, entende-se as interações possíveis entre as políticas da memória – a memória histórica e social sendo concebida como uma relação de forças que resulta em definições e redefinições do que é considerado como passado e heranças comuns de um dado grupo ou classe social – e as lembranças de fatos vividos em comum ou individualmente. Nesse sentido, a memória coletiva se situa no encontro entre o individual e o coletivo, entre o psíquico e o social. Conceito ainda em construção, de difícil definição, pois só pode ser abordado a partir de perspectivas transdisciplinares, no cruzamento de várias disciplinas como a sociologia, a antropologia, a filosofia, a história etc. O resgate da memória social constitui-se no alicerce das identidades pessoal e nacional. Segundo Le Goff “o estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em transbordamento. (BERN, 2014). Com base nessas definições e buscando aprofundar os elementos que constituem o pensamento sobre a memória social, vimos nas contribuições de Gondar e suas cinco proposições sobre a memória social, contribuições para seu entendimento aprofundado. Para a autora, a primeira posição que precisamos reconhecer versa sobre o fato da transdisciplinariedade do campo da memória social. Gondar afirma que a memória remete a várias significações e signos, sejam eles simbólicos, icônicos ou indiciais, este último, no qual as marcas corporais se fazem presente. 230 | Performances Culturais A memória social é habitualmente caracterizada como polissêmica. Essa polissemia pode ser entendida sob duas vertentes: de um lado, podemos admitir que a memória comporta diversas significações; de outro, que ela se abre a uma variedade de sistemas de signos. Tanto os signos simbólicos (palavras orais e escritas) quanto os signos icônicos (imagens desenhadas ou esculpidas), e mesmo os signos indiciais (marcas corporais, por exemplo), diremos, então, que o conceito de memória social é, além de polissêmico, transversal ou transdisciplinar. (GONDAR, 2016, p. 20). Para Gondar (2016), as diferenciações entre a interdisciplinariedade e a transdisciplinariedade são fundamentais para o trato com a memória social, enquanto a primeira possibilita um diálogo com as diferentes disciplinas que estudam fenômenos, a segunda potencializa transpor domínios separados. No que diz respeito à segunda proposição de Gondar, ele afirma que os conceitos de memória social são éticos e políticos e que as iniciativas de uma suposta neutralidade ocultam a vontade de quem as omite, permitindo, segundo a autora, julgar sem serem julgados. Para Gondar (2016), perguntar qual a direção assumida pelo pesquisador a respeito das concepções de memória social, bem como, quais os níveis de engajamento que esse pesquisador assume, revelam razões, sentidos e significados. Logo, ela remete a Deleuze e Guattari para pensar essa dimensão do ético e do político: Um conceito, escrevem Deleuze e Guattari, “é o contorno; a configuração, a constelação de um acontecimento por vir” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 46). Porvir que estaria ainda mais radicalmente implicado no caso da memória social. Recordar, nesse caso, não é somente interpretar, no presente, o já vivido; a escolha sobre o que vale ou não ser recordado funciona como um penhor e, como todo penhor, diz respeito ao futuro. (GONDAR, 2016, p. 24). A terceira proposta é de que a memória remete ao esquecimento. Gondar (2016) afirma criticamente que há ainda, no contemporâneo, aqueles pesquisadores que consideram ser possível pensar os estudos da memória sem a contaminação do esquecimento. Ao contrário, diz a autora, Rodrigo Graboski Fratti | 231 a cada vez que escolhemos transformar determinadas ideias, percepções ou acontecimentos em lembranças, relegamos muitos outros ao esquecimento. Isso faz da memória o resultado de uma relação complexa e paradoxal entre processos de lembrar e de esquecer, que deixam de ser vistos como polaridades opostas e passam a integrar um vínculo de coexistência paradoxal (GONDAR, 2016, p. 29). Dessa maneira, há o reconhecimento de que, na produção teórica acerca da memória social, binarismos têm se apresentado como frequentes entre memória e esquecimento. A autora cita, ainda, a polarização entre Nora, quando aborda as questões de lugar e meios, história e memória, bem como, Halbwachs, quando discute o indivíduo e sociedade, em que se pode ver presente o fortalecimento de um binarismo das relações entre lembrança e esquecimento. Todavia, anunciando Ricoeur, afirma que: Um vínculo paradoxal entre a lembrança e o esquecimento tem sido admitido cada vez mais no campo da memória social. É porque ambos podem ser afirmados que Paul Ricœur pergunta se não seria possível se desenvolver uma “arte do esquecimento”, trabalhando em simetria com a “arte da memória”. (GONDAR, 2016, p. 31). A quarta proposição anunciada por Gondar diz respeito à seguinte afirmativa: a memória não se reduz à identidade. Afirma a autora que correlacionar de forma específica a memória à identidade fortalece uma premissa, qual seja, de que a preservação da identidade é o lócus onde se pretende chegar, todavia, para Gondar, a memória pode ficar refém dessa intenção. Se vale da reflexão acerca dos silêncios na história ocasionados seja por uma legitimidade de poder, seja pelas imposições coletivas dos vencedores aos derrotados. Para a autora, há um terceiro silêncio, o qual versa sobre a recusa de uma sociedade lembrar-se do passado submetido por humilhações. Podemos perceber que uma mesma questão atravessa esse inventário de silêncios. Um grupo, uma sociedade, uma nação desejam ocultar tudo aquilo 232 | Performances Culturais que poderia revelar seus paradoxos, suas falhas, enfim, tudo aquilo que poderia comprometer a imagem que pretendem fornecer sobre si mesmos (GONDAR, 2016, p. 33). A autora, ao abordar o crescimento dos estudos acerca das comunidades locais, inclusive seu fortalecimento como produção anunciada e consumida, pergunta em tom provocador, ao tratar da identidade raiz e identidade rizoma: Mas não haveria uma forma de pensar as identidades para além das fronteiras que as preservam? Esta é a proposta de Glissant, ao distinguir o que ele chama de identidade raiz e identidade rizoma. “A raiz única é aquela que mata à sua volta, enquanto o rizoma é a raiz que vai ao encontro de outras raízes. A identidade rizomática seria aquela na qual a errância da relação – e não as fronteiras do território, seja ele grande ou pequeno – se coloca em primeiro plano. (GONDAR, 2016, p. 34). Por fim, a quinta e última proposição de Gondar versa sobre a memória não se reduzir à representação. Essa afirmação, segundo a autora, dá-se em função de que o social está em constante movimento e a representação quase sempre é estática, não captura a realidade por completo, desprezando, portanto, as características processuais de sua produção. Balizado por Proust, Gondar afirma que a memória transcende o conjunto de representações e por vezes está numa dimensão não representável. Nesse sentido, contribui dizendo e se referindo ao corpo, aos afetos e sensações, os quais podem ser compreendidos como lócus da memória. Proust, por exemplo, valoriza o corpo sensível no processo da recordação. Os sentidos do corpo podem agir como disparadores de uma memória involuntária: o gosto da madalena mergulhada no chá, o som de uma colher batendo num prato ou da água correndo nas tubulações, o toque de um guardanapo engomado roçando os lábios. São essas impressões sensíveis – e, particularmente, aquelas provocadas pelos odores e os sabores – que sustentam, para Proust, a memória por inteiro: [...] após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o Rodrigo Graboski Fratti | 233 sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação (Proust, 1999, p. 51). (GONDAR, 2016, p. 36). Gondar (2016) reconhece que as representações estão mais vinculadas ao entendimento intelectual e lembranças voluntárias e, por essa razão, são mais confiáveis de serem correlacionadas às noções de impressão e de vestígio. E, ao se referir a Foucault, diz: ele investe sobre o que se singulariza, se diferencia, o que resiste aos hábitos e às coerções sociais. A memória deixa de se reduzir aos axiomas da representação e da generalidade abstrata para se articular àquilo que nos afeta, que nos surpreende, que nos permite apostar em um outro campo de possíveis. E se tivéssemos que, em uma palavra, resumir o que na memória não se reduz à representação, diríamos: afeto, ou melhor, forças que nos afetam, e também forças pelas quais afetamos. (GONDAR, 2016, p. 37). Por fim, nesse sentido, qual seja o afeto que se apresenta como elemento provocador da memória, Gondar esclarece que “o que nos afeta é o que rompe com a mesmidade em que vivemos; a mesmidade não nos impressiona ou nos marca. O que nos afeta é antes um encontro, uma palavra nova, uma experiência singular.” (GONDAR, 2016, p. 38). As proposições sobre a memória social de Gondar nos estimulam a problematizar, ainda que de forma inicial e embrionária, o pensar sobre o corpo. A seguir, nos debruçamos nessa temática para organizar e dar visibilidade ao nosso pensamento sobre o tema. A memória e suas interfaces com o corpo numa dimensão multifocal Já vimos nos escritos de Sandra Jatahy Pesavento e Jô Gondar indícios em que o corpo é lócus para se pensar o campo da história, memória e sensibilidades. Ainda que os autores não façam dessa prerrogativa a centralidade de suas reflexões, estão presentes nelas olhares sobre o corpo. Para aprofundar essa reflexão, pautamo-nos nas contribuições de Nádia 234 | Performances Culturais Maria Weber Santos, Luís Carlos Rodrigues & Celso Kraemer, Zeca Ligiéro e Diana Taylor, os quais abordam o corpo em distintas referências, sejam biológicas, psicológicas, sociológicas, antropológicas e performáticas que, sintonizadas, permitem desvendar um caminho teórico-metodológico profícuo sobre o tema. Para Santos, a memória não é fruto de um único conceito, mas parte de um processo que passa por simbolizações, imaginário, cultura e sensibilidades. De suas contribuições, optamos por privilegiar as reflexões que a autora faz do corpo biológico e psíquico, coadunando com aquilo que já afirmávamos nas considerações iniciais deste escrito, qual seja, de que o corpo remete a um olhar multifocal, portanto, sua dimensão biológica e psíquica se faz como fundamental para o seu entendimento. Com base nos estudos da neurociência, a autora afirma que a memória está intrinsicamente vinculada aos fenômenos físicos e bioquímicos, e se localiza no córtex cerebral, especificamente, no hipocampo do lobo temporal. Ao mesmo tempo, segundo a autora, a subjetividade e as sensibilidades operam nas dimensões corporais e culturais dos indivíduos, o que remete compreendê-las em suas dimensões biológica e psíquica, articuladas. É consenso entre os neurologistas que toda memória é adquirida num certo estado de emoção – quanto mais forte o conteúdo emocional, mais duradoura a memória – portanto, tem-se aqui o componente ‘subjetivo’ da memória, mesmo que identificada no cérebro, em processos neurológicos. Cada estado emocional é acompanhado por constelações de efeitos hormonais e neuro-hormonais (humores) diferentes. (SANTOS, 2013, p. 5). Santos se vale das contribuições de Bergson para explicitar sobre as trajetórias que a memória e as lembranças tomam, atentando que não é só no biológico que estão os fundamentos de entendimento desse processo, ainda que esse componha o processo. Diz a autora: O filósofo francês Henri Bergson refere que “o cérebro é uma imagem, os estímulos transmitidos pelos nervos sensitivos e propagados no cérebro são Rodrigo Graboski Fratti | 235 imagens também”. Portanto, para ele, nem os nervos e nem os centros nervosos podem condicionar a imagem do universo, que subsistiria na falência destes. E diz, ainda, que o papel do corpo não é armazenar lembranças, mas simplesmente escolher, trazendo-as à consciência, pois há uma reserva memorial que reside no nosso espírito e que o corpo tem o poder apenas de acessá-la de forma fragmentada. Em outras palavras, a constituição da Memória pelo cérebro não explica tudo, pois o mundo está longe de ser puramente material e o ser humano, puramente biologia. A lembrança-pura vem do espírito, afirma Bergson (SANTOS, 2013, p. 6). Diante dessa assertiva, o primeiro elemento que se reconhece da endopsique é a memória em suas lembranças e recordações, a partir de fatos que armazenamos e que foram rejeitados ou que se tornaram subliminares à consciência. Balizada por Jung, a autora revela que a memória é o lócus dos conteúdos do inconsciente pessoal que, em aspectos orgânicos, está em regiões do cérebro e por experiências sensoriais. Jung (1972) postula a “função criadora de símbolos” na psique humana; a partir deste princípio, a memória revela-se em imagens psíquicas e pode ser evocada por todo tipo de experiência: sensorial (um cheiro, uma música, por exemplo), o rememorar voluntário (como na psicoterapia), evocação inconsciente. Nesse sentido aproxima-se de Santo Agostinho (1984, p. 177), quando este diz que “todavia, não são os próprios objetos que entram na memória, mas as suas imagens: imagens das coisas sensíveis, sempre prestes a oferecerse ao pensamento que as recorda” (SANTOS, 2013, p. 7). Ainda no mesmo direcionamento, lembra que a psique é feita por imagens numa estrutura de sentido e objetivação de atividades vitais. Nesse sentido, vale-se novamente de Jung para dizer que “da mesma forma que a matéria corporal, que está pronta para a vida, precisa da psique para se tornar capaz de viver, assim também a psique pressupõe o corpo para que suas imagens possam viver. (Jung, 2000, p. 267)”. (SANTOS, 2013, p. 8). Para Santos, o pesquisador que se propõe investigar a memória e seus processos, tem como perspectiva potencializar o surgir do passado às imagens e emitirá delas narrativas sensíveis que se transformam no tempo 236 | Performances Culturais presente e ressignificações. Para a autora, “aqui, Memória e História se encontram, percebendo a voz daquilo que um dia se calou, ou foi calado [...]. E também é neste momento que Memória individual pode se encontrar com a coletiva, nestas narrativas memoriais sensíveis que uniram pessoas, comunidades, sociedades, povos.” (SANTOS, 2013, p. 12). Vê-se, a partir dessa contextualização, que o afeto, a subjetividade e as sensibilidades estão intimamente ligadas a dimensões corpóreas e são elementos centrais no campo da memória, anunciando-os como provocadores das atividades criativas. Santos (s.d) também se apoia nas contribuições de Pesavento para dissertar sobre as sensibilidades e, sobre essa reflexão, diz o seguinte: “as sensibilidades se apresentam, portanto, como operações imaginárias de sentido e de representação do mundo, que conseguem tornar presente uma ausência e produzir, pela força do pensamento, uma experiência sensível do acontecido.” (Pesavento, 2007, p. 14) Dessa forma, o sentimento é que faz perdurar a sensação e reproduz esta interação com a realidade. A força da imaginação, diz a autora, “em sua capacidade tanto mimética quanto criativa está presente no processo de tradução da experiência humana”. (Pesavento, 2007, p. 12-13) Assim, temos a capacidade mimética e criativa da imaginação fazendo parte do processo de rememoração, permanecendo a memória com um caráter indissociável da atividade criativa. (SANTOS, 2013, p. 15). Vemos, portanto, que nosso aparato psíquico é associado a diferentes objetos, entre eles, a memória. Nossa capacidade biológica é potencialmente propulsora, posto que nela também são consolidados os processos da memória. A seguir, nas reflexões de Rodrigues & Kraemer (2015), podemos visualizar outros elementos da mediação memória e corpo. Os autores afirmam, fundamentados em Bergson e Deleuze, que: O corpo pode ser pensado, segundo Bergson (1988; 1990) e Deleuze (1999), a partir da relação com sua memória psicológica, coletiva e ontológica. Todas indissoluvelmente relacionadas fazem do corpo o que ele é. A linha da relação memória-corpo leva junto de si o corpo e o espírito, abrindo espaço para que se pense o que está acontecendo enquanto o acontecimento se processa, sem Rodrigo Graboski Fratti | 237 que se precise recorrer às representações para se fazer uma delimitação do que acontece. O próprio corpo pode ser pensado sob o ponto de vista da memória. Supera-se o dualismo corpo-mente. (RODRIGUES; KRAEMER, 2015, p. 13918). Os autores afirmam que o corpo é bem mais do que se pode compreender dele e que a memória é bem mais do que aquilo que pode ser narrado ou descrito. Essas amplitudes abrem um caminho de infinitas possibilidades, onde corpo e memória acontecem sempre num solo inseguro. Outra contribuição nesse momento está nos escritos de Ligiéro, ao abordar o corpo na história a partir do vivido, do imaginado e do interpretado. O autor afirma que “a história é o que a gente consegue articular, em discurso, do que viveu, do que imaginou, e o que somos capazes de interpretar com nossas palavras, nosso corpo, nosso repertório de imagens e de associações.” (LIGIÉRO, 2011, p. 89). Orientado pelos estudos das performances culturais, afirma que o corpo da história se retroalimenta ao mesmo tempo em que vive de seu passado, isto é, na medida em que o corpo é transportado por toda sua memória. Nesse sentido, elenca conceitos que não aprofundaremos neste texto, mas que instigam estudos posteriores, como o da “‘recuperação do comportamento’ de Schechner, da ‘performance do dia a dia’ de Goffman ou do paralelismo entre ‘linguagem e corpo’ de Deleuze e da ‘autoperformance’ de Michael Kirby.” (LIGIÉRO, 2011, p. 89-90). Ao discorrer sobre a memória e suas interfaces corporificadas, o autor cita o exemplo do performer na contação de histórias. A memória viaja entre a lembrança viva recuperada e corporificada pela performance em que a fala se completa não apenas no corpo da performer, mas, principalmente, tem seus tentáculos expandidos por nossa memória enquanto espectadores, por meio de nossos sentidos: principalmente o ouvir e o observar a mimesis da contadora. (LIGIÉRO, 2011, p. 104). Uma última contribuição é a perspectiva de Diana Taylor, em sua obra que versa sobre o arquivo e o repertório e a constituição da memória 238 | Performances Culturais cultural nas Américas. Em seus escritos, a autora compreende as performances enquanto performances incorporadas, e, nessa tendência, anuncia uma reflexão acerca das performances ao se fundamentar numa discussão em que o corpo, ainda que seja constantemente suspenso frente à hegemonia da escrita, permita afirmar olhares epistêmicos diferenciados. Quando os frades chegaram ao Novo Mundo nos séculos XV e XVI, eles afirmavam que o passado dos povos indígenas – e as vidas que viveram – havia desaparecido porque eles não tinham escrita. Agora, a beira de uma revolução digital que ao mesmo tempo utiliza a escrita e ameaça deslocá-la, o corpo parece, novamente, estar suspenso, prestes a desaparecer no espaço virtual que foge à incorporação. A expressão incorporada continua e, provavelmente, continuará a participar da transmissão do conhecimento social, da memória e da identidade pré e pós-escrita sem ignorar as pressões para se repensar a escrita e a incorporação do ponto de vista das mudanças epistêmicas. (TAYLOR, 2013, p. 45). Um movimentar-se epistêmico exige alterações teórico-metodológicas nos estudos das performances e da memória cultural que, segundo a autora, anuncia um reinventar dos olhares no sentido das incorporações, prioritariamente. Remete-se ao conceito de performance como práxis incorporada, no qual, a escrita e as narrativas, ainda que abordadas, não sejam privilegiadas hegemonicamente. Ao mudar o foco da cultura escrita para a cultura incorporada, do discursivo para o performático, precisamos mudar nossas metodologias. Em vez de focalizar os padrões de expressão cultural em termos de textos e narrativas, podemos considerá-los como roteiros que não reduzem os gestos e as práticas incorporadas à descrição narrativa. (TAYLOR, 2013, p. 45-46). Todavia, para a autora, não é somente o distanciamento da palavra escrita e a aproximação da palavra incorporada o cerne da questão, mas o imediato desarranjo para uma mudança epistemológica e metodológica está nas diferenciações que são emitidas pelo arquivo e seus materiais (textos, documentos, edificações etc.) e o repertório e sua condição, quase Rodrigo Graboski Fratti | 239 sempre efêmera, de conhecimento incorporado (a dança, os esportes, os rituais). Especificamente sobre o arquivo e a característica de seus materiais que parecem durar, transcendendo àquilo que acontece ao vivo, Taylor diz: A memória arquival trabalha a distância, acima do tempo e do espaço, investigadores podem voltar para reexaminar um manuscrito antigo; cartas encontram seus endereços através do tempo e do lugar; discos de computador as vezes cospem pastas perdidas. [...]. O fato de que a memória arquival consegue separar a fonte de “conhecimento” do conhecedor – no tempo e/ou espaço – leva a comentários, como feito por Certeau, de que ela é expansionista e imunizada contra a alteridade (p. 216) (TAYLOR, 2013, p. 49). Taylor afirma que o que torna o material arquival em objeto de investigação está precisamente no processo pelo qual este é selecionado para a análise, o que impede que resista à mudança, bem como seja incorruptível ou mesmo não manipulado politicamente. Portanto, para a autora, é significativo afirmar que “podem significar algo fora da moldura do próprio ímpeto arquival.” (TAYLOR, 2013, p. 49). Com distinção ao arquivo, sem, contudo, afirmar uma oposição, pois ambos estão imbricados no processo investigativo das performances, a autora anuncia o repertório. “[...] encena a memória incorporada – performances, gestos, oralidade, movimento, dança, canto –, em suma, todos aqueles atos geralmente vistos como conhecimento efêmero, não reproduzível.” (TAYLOR, 2013, p. 49-50). Para autora, a presença no processo de transmissão requer do repertório que as ações não permaneçam as mesmas, o que as diferencia do arquivo, visto que esse requer estabilidade. Ao repertório cabe movimento, sensibilidade e gesto (corporal), como diz: “O repertório ao mesmo tempo guarda e transforma as coreografias do sentido.” (TAYLOR, 2013, p. 50). O repertório exige práticas incorporadas, diz a autora, seja nas expressões verbais, como o recitar de uma poesia, seja nas não verbais, como uma dança ou ritual, portanto, são depositadas no corpo por várias estratégias mnemônicas. Nas performances: 240 | Performances Culturais [...] replicam a si mesmas por meio de suas próprias estruturas e códigos. Isso significa que o repertório, como o arquivo, é mediado. O processo de seleção, memorização ou internalização e, finalmente de transmissão acontece no interior de sistemas específicos de reapresentação (e, por sua vez, auxilia a constitui-los). Formas últimas de atos incorporados estão sempre presentes, embora em estado constante de “agoridade”. Eles se reconstituem – transmitindo memórias, histórias e valores comuns de um grupo/geração para outro. Os atos incorporados e performatizados gravam e transmitem conhecimento. (TAYLOR, 2013, p. 51). Considerações finais O objetivo desse texto foi o de instigar uma reflexão sobre as mediações entre história, memória e sensibilidades e as possíveis interfaces com o corpo como vetor para o entendimento da realidade. Revitalizar o corpo como fenômeno histórico, social, cultural e biológico articulados é enfrentar seu ofuscamento e os olhares fragmentados que, comumente, foram e são anunciados no campo dos saberes científicos. Essa não é uma tarefa fácil, posto que exige distanciamento de tradições científicas que, por tempos, como dissemos, ofuscaram, fragmentaram, afirmaram e legitimaram perspectivas investigativas que não privilegiaram compreender as dimensões corporais correlacionadas aos processos sociais e históricos. Dessa maneira, mergulhamos nas contribuições da história cultural e da memória social, pois estimulam um olhar multifocal sobre o corpo, na medida em que se configuram por uma episteme, referendada teórica e metodologicamente numa investida interdisciplinar, o que, a nosso ver, coaduna com os estudos das performances culturais. Sobre esse aspecto, na perspectiva de compreender as performances culturais como um campo de saberes complexo e dinâmico, mergulhar nessa intencionalidade exige afirmá-la como referência teórico-metodológica capaz de explicitar diferentes conceitos, expressos em categorias de Rodrigo Graboski Fratti | 241 análise, dentre elas, identificamos seu caráter multidimensional, multifocal e sua vocação para uma perspectiva que evoca as sensibilidades e uma forte característica interdisciplinar. Poderíamos também afirmar que as performances culturais exigem um olhar para objetos de investigação que os contextualizem em suas dimensões econômicas e políticas, estruturais e particulares, permitindo assim reescrevê-las naquilo em que é dialético e, por vezes, contraditório, quando o todo determina e é determinado pelas experiências singulares. Uma importante reflexão é compreender os estudos das performances culturais e suas mediações com o corpo, de forma dinâmica, em que os olhares investigativos remetem a um estar em movimento vibrátil constante, tanto naquilo que é contextual, quanto no que é próprio das singularidades corporais. Nesse sentido, as diferentes faces inauguradas pelos estudos das performances culturais explicitam olhá-las à luz do textual e do não textual, em que o corpo se revela como categoria. Nota-se nisso que o corpo pode ser compreendido como um vetor para o entendimento da realidade complexa, e sua apropriação pelas performances exige o que se afirmou anteriormente, qual seja, um olhar interdisciplinar, sob o qual as sensibilidades, as emoções, os desejos, a objetividade e as subjetividades da carne e do corpo expressem as trajetórias culturais de grupos e civilizações. Ademais, é significativo reconhecer as relações teórico-metodológicas entre os estudos sobre performances culturais imbricados e mediados ao universo da cultura corporal, as quais exigirão no mergulho teórico sistemático apropriações de conceitos e categorias capazes de perceber o corpo, as corporeidades e as incorporalidades como dimensões correlacionadas às dinâmicas das performances culturais. Ao concluir, sem esgotar de todo o assunto, pode-se afirmar e anunciar que as performances culturais e seu caráter multidimensional, em que as mediações entre aquilo que é racional e emocional se afirmam, contribuem para fragilizar olhares cartesianos e divisionistas sobre o corpo e 242 | Performances Culturais sobre as próprias performances. Aliás, os estudos das performances culturais também potencializam um esforço de pensar as corporeidades e sua dimensão sensível, exatamente porque o corpo e as performances anunciam um processo de apreensão e aprendizagem, de registros e de marcas culturais, que revelam cores, sabores, cheiros, gestos e texturas. Ao debruçar-se nas leituras sobre as performances culturais, identifica-se, ainda que num percurso embrionário, que é preciso atentar para uma leitura poética das relações culturais para se pensar o corpo, já que nas práticas corporais, de diferentes grupos sociais, percebe-se, também, uma poesia corporificada como dimensão das performances. Privilegiamos os olhares dos autores, muito mais que nosso próprio olhar, respeitando o fato de que este se encontra em construção embrionária sobre os temas aqui abordados e o fazemos na perspectiva da continuidade dos estudos que provocarão uma autonomia teórica decorrente do aprofundamento investigativo no processo de formação que estamos imersos. Além disso, outros temas surgiram dessa primeira reflexão e podem ser anunciados como reflexões futuras, como, por exemplo: o que dizem os estudos acerca da memória coletiva e da memória cultural, a respeito do corpo? E como poderíamos aproximar esse questionamento das reflexões sobre as performances incorporadas? Situamos esse esforço no campo das fissuras e das fronteiras, ainda que, politicamente, os saberes sobrepostos por uma racionalidade instrumental sejam hegemônicos e recorrentes. Referências BERND, Z.; MANGAN, P.K. (orgs.) Dicionário de expressões da Memória Social, Bens Culturais e Cibercultura. Canoas: editora UnilaSalle, 2014. GONDAR, Jô. Cinco proposições sobre memória social. Rio de Janeiro: Hibrida in Por que memória social?/Amir Geiger [et al.]; Vera Dodebei, Francisco R. de Farias, Jô Gondar (Org.), Revista Morpheus, estudos interdisciplinares em Memória Social, edição especial, v. 9, n. 15, p. 19-40, 2016. Rodrigo Graboski Fratti | 243 LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2011. 372p. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, (Coleção História &... Reflexões, 5), 2003. 132p. RODRIGUES, L. C.; KRAEMER, C. Relação memória-corpo e a formação docente em Educação Física. Curitiba: PUC-PR. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 13., 2015, Curitiba. Anais... Grupo de Trabalho – Formação de Professores e Profissionalização Docente, 2015 (p. 13817-30). SANTOS, N. M. W. Memória como narrativas do sensível: entre subjetividades e sensibilidades. In: Cleusa Maria Gomes Graebin; Nádia Maria Weber Santos. (Org.). Memória Social: questões teóricas e metodológicas. 1ed.Canoas: UniLasalle, 2013, v. 1, p. 131156. TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte, Ed. UFMG, tradução de Eliana Lourenço de Lima Reis – 430 p. il – Artes Cênicas, 2013. 14 Contato improvisação, um estado de concordância Camila Vinhas Itavo Introdução A performance do contato improvisação, uma forma do dançar, se apropria do que há de mais cotidiano na vida na Terra, que é a ação da gravidade, toma esse fenômeno como base para a investigação cinética e o pluraliza e amplifica quando a apreende como um componente do seu jogo, pelo qual o corpo se modifica, se transforma e se transporta. Como se estrutura a sensibilidade no contato improvisação? Sua história começa quando Steve Paxton, bailarino, ginasta, performer, depois de décadas experimentando e sistematizando experiências de movimento – da adolescência até os 33 anos (1972) – inicia uma nova pesquisa que veio a chamar de contato improvisação. Seu corpo era o instrumento e o objeto de pesquisa, no curso de extensão universitária que ofereceu no Oberlin College, Oberlin, Ohio, EUA. Seu objetivo era fazer as pessoas se jogarem umas nas outras sem se machucarem. Para isso se valeu de alguns princípios do Aikido, mas inverteu a polaridade de um desses princípios. Vejamos. O Aikido é uma arte marcial iniciada na década de 1920 do século passado, uma simbiose de filosofia, religião e arte marcial. Um dos seus princípios centra-se na harmonização do Ki, energia que compõe todos os seres. O Aikido utiliza a lei do mínimo esforço, usando a força cinética do Camila Vinhas Itavo | 245 “agressor” contra ele próprio, levando-o, em movimentos circulares a sair da estabilidade de seu centro, direcionando-o ao chão e à sua imobilidade. Steve Paxton utiliza este princípio do Aikido, mas inverte as polaridades. Em vez de tirar o outro do seu centro e levá-lo a sua imobilidade, ele segue em direção ao centro do outro, com seu próprio centro, num movimento tão contínuo quanto possível. Além de propor essa experiência para seus alunos a partir daquele curso, ele lhes entrega várias táticas de resistência para nunca se machucarem durante aquelas atividades, como formas de se desenrolar do outro por meio de alguns rolamentos criados por ele, que levam o corpo a experimentar a extensão de todas as partes, uma sensação dialética de autonomia entre o centro e as extremidades na entrega de peso e na habilidade da queda. Assim fez com que cada um se tornasse responsável pela própria queda durante a dança de cair. Para isso, treinou-os em rolamentos de queda do Aikido, o que possibilita ao artista não cair, mas fazer uma passagem pelo chão com seu corpo e se colocar na vertical sem esforço. A “small dance” foi outra novidade oferecida por Steve Paxton. Em português “pequena dança”, ela foi praticada por ele durante todos os dias. As 7h da manhã, em pleno inverno de 1972, quando, depois do treino de se jogarem uns nos outros, ele preparava seus alunos para ficarem quietos, em pé, em silêncio de movimento e de som, escutando os micromovimentos que o corpo realiza, a todo instante, apenas para permanecer em pé. Uma inteligência que o corpo experimenta na atenção a não ação. Em sua investigação, ele valoriza o artista-observador, atenção reflexiva, capacidade específica de focar a mente ao mesmo tempo em si mesma, na auto-observação durante a realização de um movimento, e no corpo realizando este movimento. O artista-observador pode ser desenvolvido como um sentido cinético e sinestésico, por meio de processos estruturados pela Novadança1. Em Grativy, Steve Paxton (2018, p. 31) questiona sobre “o que foi feito com os 26 sentidos noticiados pelas faculdades humanas”. Um treino 1 A Novadança é a dança contemporânea que incorporou os conhecimentos da educação somática e de outras áreas do conhecimento, como física, física quântica, fisiologia e antatomia do movimento, história, filosofia etc. 246 | Performances Culturais do observador. Um jogo entre percepção e ação reflexiva. Além da pequena dança, os bailarinos buscavam os estudos de improvisação de se jogarem uns aos outros sem se machucarem. Esse objetivo foi firmado no princípio da pesquisa, para tal aprendiam por meio dos rolamentos criados por Steve Paxton e os que ele trouxe das artes marciais: como entregar seu peso para o chão e para o outro e a recebê-lo de volta, cineticamente, mediante a lei da reação, e utilizá-la por meio desta atenção específica. O efeito da gravidade sobre nossos tecidos, sobre a própria água em nossas células, sugere a mim que ele pode ser pensado como uma gama complexa de eventos, que combinados produzem uma sensação geral de “eu”, em movimento ou parado. Altere alguns desses eventos, mesmo mentalmente ou emocionalmente, e as qualidades da relação com a gravidade também mudarão. (PAXTON, 2018, p. 33, tradução nossa)2. Na dança do contato improvisação, a ampliação da percepção e atuação do corpo no espaço em relação ao chão cria uma perspectiva englobadora do outro como continuidade dos espaços. O contato improvisação é uma atividade em que ambos ganham. Não há perdedores. Como também não há expectativa, mas sim o desenvolvimento de uma narrativa dialógica, contínua, cinética, em que ambos falam e se escutam a si mesmos e ao corpo planeta com quem também estão dialogando. E assim alcançam um “estado de concordância”. Para Richard Schechner (2011, p. 170), “o objetivo da performance é não ter vencedores e perdedores”. Mas graças aos gregos, segundo Schechner, “a estética euro-americana é uma função da competição” (p. 171). De forma que os mecanismos usados pela vanguarda como participação da audiência, palco ambiental e criatividade coletiva abrem um campo sinestésico em que “tais sensações são sentidas ao invés de vistas, quando o olho é subordinado à uma receptividade total de todos os sentidos” (p. 173). Texto original: “Gravity´s effect on all our tissues, on the very water in our cells, suggests to me that it can be thought of as a complex array of events, which in combination produce a general sense of “me”, moving or still. Alter a few of those events, even mentally or emotionally, and the qualities of the relationship to gravity will change as well.” 2 Camila Vinhas Itavo | 247 Arte, costumes, religião e convenções socais brotam e insidem nestes territórios de projeções bloqueadas. Nos animais, a excitação acumulada é acesa e transborda em outro canal e lá encontra sua descarga. Nas pessoas, a excitação acumulada é frequentemente direcionada para dentro, onde acontece como fantasia. A fantasia não é necessariamente – de fato, raramente – uma tradução literal da projeção bloqueada. A fantasia pega a projeção bloqueada e a elabora com materiais associados. A fantasia é como um sonho, consistindo em combinações aparentemente não relacionadas. Mas de fato o material está todo conectado. Em alguns casos, um material aceitável existe, ou deve ser feito, e a fantasia soma esta associação com material de outro canal, reemergindo como uma projeção. Essa projeção, uma performance, é um caminho público para mostrar coisas privadas. Desta forma, muitas performances têm uma função restaurativa para o artista análoga à função catártica para o público. (SCHECHNER, 1988, p. 264, tradução da autora.) Schechner considera que a função restaurativa das performances, que pode ser catártica, desbloqueia projeções ou a percepção de fenômenos. Poderíamos pensar aqui no fenômeno da gravidade. Essa relação transporta e transforma o performer que, por sua vez, transporta o público – ou estudantes, no caso de uma sala de aula –, dá passagem a descargas energéticas advindas de padrões aprisionados, gera novos padrões e novas formas de realizar movimentos. Assim acontece com a prática do contato improvisação observada sob a perspectiva das performances culturais. Em Teoria da Performance (1988), Richard Schechner avalia que performance é um entroncamento, uma perspectiva multifacetada em diálogo com várias áreas do saber. Performance é a ação do indivíduo no contexto da cultura em que grupos constroem e dão formas culturais simbólicas. A cultura articula as redes de conceitos e de significados, articula um caminho, uma teia que se amplia e veste nossa existência. Performance é a forma dessa teia se organizar e se materializar. Schechner considera que a relação entre todo e parte é a cultura, que se materializa na ação das pessoas, e que a interação entre emocional e racional é performance. Seria o que acontece no espaço entre o qual o jogo, 248 | Performances Culturais por exemplo, só existe no jogar do jogador (SCHECHNER, 1988). O jogo tem uma existência em si. Não é só o jogador que joga, o jogo se joga em cada jogada dos jogadores. A relação entre o todo e a parte é elemento estrutural do jogo e organiza essa teia de significados que se materializa no cotidiano, no ritual, na performance arte e nas performances culturais. Performance como uma realidade não ordinária, mistura de narrativas, momentos de ruptura no ciclo da vida (SCHECHNER, 2011). Memória é presença Observando o registro da primeira performance de contato improvisação, Magnesium, criada e apresentada em 1972, no Oberlin College, em Oberlin, Ohio, EUA, por meio do audiovisual no Youtube3, Steve Paxton comenta de forma detalhada sua criação. Magnesium na verdade aconteceu por causa de uma oportunidade para que ele acontecesse. Eu estava trabalhando em um solo que era um tipo de... Acredito ter surgido a partir de sonhos que tive com Aikido. Eu havia estudado Aikido e eu só queria ser capaz de deixar o planeta e não me preocupar com a reentrada, em outras palavras, subir aos ares em qualquer posição esquisita e de alguma forma ter a habilidade de voltar a terra sem dano. Então eu havia praticado em diversos gramados e tatames e coisas do tipo, na água, e havia chegado a certas conclusões e certas... Enfim, (eu) vi muito claramente que o Aikido havia tratado meu corpo de tal forma que eu poderia reentrar, eu poderia regressar se conseguisse posicionar um de meus braços ou pernas por baixo do corpo, ou encaixar um rolamento, ou de alguma forma transformar a (palma) aterrissagem em uma... quero dizer, onde você não vá perpendicularmente à superfície, ao solo, mas, ao contrário, você toma isso e vai curvando a sua forma de maneira que no momento em que você esteja tocando (o solo) sua forma vai indo e então de repente você está... se resolvendo nessa dimensão. Então eu estava brincando com isto e eis que vem o Oberlin College querendo três semanas de aulas e... Eram vários rapazes nos seus 20 anos e eu pensei que aquela deveria ser uma aula para homens e então pensei..., sim, o solo poderia ser parte desse material. Eu poderia ensiná-los um pouco como se fazer aquilo. 3 Youtube (https://youtu.be/XrUeYbUmhQA/) Camila Vinhas Itavo | 249 Então além do treinamento de dança... John Faichney, que está aqui, que estava naquele grupo, lembrou que realmente trabalhamos certa quantidade de técnicas da dança tradicional, mas aí tomamos outra direção, no sentido de expandir os espaços, e ao expandir este espaço... Eu sinto que o contato improvisação trata o espaço esfericamente, então não existe a horizontal com céu acima e solo abaixo. A realidade..., existe outra realidade na qual, do ponto de vista visual, tudo está se movendo ao redor. Qualquer, qualquer... É isso que eu quero dizer com esférico. Os próprios sentidos experimentam este espaço como uma esfera ao invés de (gesto)... Acho que é mais duo dimensional. Na realidade as dimensões meio que se fundem umas às outras à medida que você vai falando sobre elas, mas... Então contraindo de esfera para a horizontal, ou mesmo para o palco que é plano em seu efeito real, porque vemos de modo plano, começamos a observar a distância ao comparar o tamanho das coisas que estão mais além. A partir de uns 10 ou 12 metros, eu acho, é que vemos em três dimensões. Enfim... então comecei a trabalhar com eles, trabalhar rolamentos, trabalhar a desorientação, trabalhar a colisão, o entregar-se para a colisão, como uma colisão suave, cair juntos, cair e rolar juntos. Então eles se acostumaram a tudo isso e ao observar os seus sentidos, observar seus rostos, observar seus olhos, olhar se... como seus olhos estavam... Se você ficar desorientado e seu corpo necessitar desligar seu cérebro, ele pode fazê-lo num estalar de dedos e então religá-lo do mesmo modo (estalar de dedos), e você nem sequer saberá o que aconteceu. É um pouco como o piscar de olhos, não é? E o piscar de olhos... você não é consciente dele a não ser que..., a não ser que você realmente comece a estudá-lo. Você não percebe que o faz o tempo todo. Então este piscar pode durar um pouco mais se você estiver rolando e estiver desorientado. É... Você se lembra do medo, talvez, que sentiu, mas não se lembra de seu corpo ter desligado seu cérebro para que o corpo pudesse fazer o que ele sabia que lhe ajudaria a sobreviver o rolamento. E coisas assim... Observava os seus sentidos ao passo que eles iam aprendendo, e eu ia expandindo-os pouco a pouco até uma forma cada vez mais esférica, cada vez mais interações, tendo a certeza de que todos pudessem interagir com todos. E então, como veio a acontecer, um jovem cinegrafista chamado... o cinegrafista chamado Steve Christiansen do Antioch College estava lá e filmou o evento. Então o evento envolveu essencialmente muita queda sobre um tatame, seguido de o levantamento de uma cobaia escolhida aleatoriamente (risos)... Um dos rapazes era erguido por todos os demais e arremessado para o alto... ele voltava ao solo e havia um pouco mais de atividade e então eles ficavam em pé por cinco minutos. Então depois... a partir de todo aquele caos veio... Eu não sei se seria chamado de ordem, mas quietude. E isso foi o Magnesium. (Traduzido por Marcelo Batistella, 15/10/2018). 250 | Performances Culturais No segundo depoimento audiovisual, Steve Paxton reflete novamente sobre Magnesium em relação aos dias de hoje no filme De maneira não covarde, Steve Paxton sobre contato improvisação e guerra. Este audiovisual encontra-se disponível no Vimeo4. Um filme de Bojana Cvejic e Lenhart Laberenz, lançado em 2013, pelo Centro Coreográfico Nacional de Rennes, na França. Se tornou Museu da Dança. Estou aqui neste ambiente rural idílico, mas não penso que haja qualquer desengajamento. Eu acho que sigo rebelde assim como eu era nos anos 60. E aqui é onde eu cultivo meu pessimismo. Nós tínhamos nos anos 50 e início dos 60 uma cultura muito convencional e meio que estúpida. Como penso que…, ouvimos dizer que geralmente acontece após períodos devastadores de guerra, onde todos querem apenas estar seguros, ter segurança, sentir-se confortáveis e felizes e construir a vida de uma maneira idealista. Que leva a praticamente lugar nenhum porque ainda contínhamos… eh, digamos, preconceito racial, contínhamos preconceito sexual, contínhamos as divisões de poder que estabeleceram a ordem das coisas há… Então… a contracultura tinha muito nesse jogo do que reclamar e o modo como ela o fazia era, obviamente, demonstrando sua reclamação. E eu… E isso de alguma forma parece tão raso, digamos. De qualquer forma, havia muito sexo, havia muito esporte, havia muita dança, até onde meus olhos alcançavam ver, e eu queria fazer algo que estivesse à parte. Bem, Magnesium veio primeiro, foi no Oberlin College em setenta e… no começo de 72. E… era uma turma de homens no Oberlin, e o Grand Union estava lá, estávamos ensinando várias turmas e tal. Então para esses jovens que não eram dançarinos, na verdade eram atletas, alguns deles, eu pensei que seria interessante explorar esse lado deles, ao contrário de… eh… acho que se tivesse sido uma turma de mulheres, eu jamais teria presumido, digamos, essa forma meio violenta. Era um ginásio, tinha uma pista de corrida, onde o público ficava de pé olhando para aquela depressão abaixo, como… eh… como a plateia romana olhando para os gladiadores ali embaixo. Preparei um treino de 15 minutos, 10 minutos dos quais eram bem fortes… ah… colisões no ar, quedas sobre o tatame, nós tínhamos um tatame grande, tatame de luta greco-romana. Ah... rolamentos, ah... ir de encontro um ao outro bem do tipo… filhotes de lobo brincando ou coisa parecida. E então 5 minutos em pé, apenas se mantendo em pé. 4 Postado no canal online Vimeo em 3 de outubro de 2013. https://vimeo.com/76095626/. Camila Vinhas Itavo | 251 Eu havia treinado muito Aikido e havia chegado à ideia de que você realmente podia saltar para fora do planeta e não se preocupar com a maneira como voltaria, que seus reflexos e seu treinamento, e se você tivesse força, te protegeriam qualquer que fosse forma que você voltasse ao chão. Não é verdade. Mas… digo, estou apenas falando da visão. É muito legal ser capaz de colocar tudo de você na prática de algo que tem como objetivo… ah… entregar-se ao esforço porque penso que é algo que psicologicamente nós não devemos ter medo de fazer. Ao mesmo tempo a preservação de todos preocupava, né… Ah… apenas um varrer muito amplo do pensar ali. Não é como eu vou machucar ou derrotar ou esmagar ou todas as outras palavras que usamos para vitória nos dias de hoje. Digo, é muito violento. Senti-las entrar na… ah… linguagem dos… ah… esportes ou política ou todos os outros lugares onde ganhar ou perder parecem ser objetivos tão primordiais. Mas aquele ganhar deveria ser a preservação de ambos oponentes. Nós estávamos respondendo com harmonia ao violento. Inacreditável… ah… um movimento do tipo salto filosófico, ou em artes marciais ali. Então é isso que eu havia estudado, eu não sabia que eu estava interessado naquele aspecto, mas eu estava interessado no movimento dele. Eu achava que o movimento dele era muito bonito e ah… Era uma mudança profunda do dançar para o movimento do Aikido e, de repente, não ter a arte como a razão para estar se movendo como estávamos, mas estávamos nos movendo daquela maneira por sobrevivência. Eu ainda estou treinando pessoas para fazerem o rolamento do Aikido porque é uma demonstração brilhante da… da… física de uma… queda. Salvou minha vida… eh… muitas vezes ao longo dos anos, ou ao menos meu corpo, me salvou de lesões. Porque se você está indo de encontro à queda, se está se projetando em direção à queda, então você tem aquela fração de controle da queda. E você pode… eh… desviar a… direção do… acidente para uma que seja favorável a seu corpo e é… uma… situação. Mas se você se retira, você vai apenas... (plaf!). Eu nunca havia tido qualquer treinamento em lutas. Eu acho que isso é muito importante. Eu não acho que se possa entender a luta sem estudá-la. Digamos, é muito teórica… ou entretenimento… ou sei lá. Mas para estudá-la realmente e para envolver-se com o movimento dela, e eu não estou falando de esporte aqui, estou falando sobre estudo de movimento, é… muito libertador de um certo tipo de… eh… posição autoimposta relativa à agressão. E se você não tem isso… E é muito… muito mais complexo para as pessoas lhe atacarem porque você não se apresenta como vítima. Eu gostaria que isso pudesse ser adaptado. É utópico, mas há milhões de ataques do Aikido que entendem isso, e eu espero que eles estejam influenciando tudo porque é insano não ter isto como possibilidade, do contrário nos tornamos esmagadores uns dos outros, ficamos reduzidos a isso. 252 | Performances Culturais (Nancy 8’30) “Olha, você não pode estar preso ao chão. Você pode suavizar a sua descida. A Terra é maior que você. Então você pode coordenar com ela.” Eu não queria que isso se transformasse em algo que fosse perigoso. E eu reconheço que o perigo é uma questão do que você pode… eh… se adaptar. O perigo é uma questão de não estar atento, e o perigo é uma questão de… eh… talvez não estar confortável dentro de seu corpo. Ao mesmo tempo algumas possibilidades neste trabalho eram relativamente novas para as pessoas, ao menos como adultos. Acho que como crianças todos passamos pela experiência de… digamos, em que adultos nos levantavam e brincavam conosco. E então… Mas lá não importava, lá não tínhamos responsabilidade. O adulto era o responsável. Mas aqui dois adultos são ambos responsáveis. Quando se está altamente adrenalizado, digamos, algo está acontecendo a você, eles não entendem bem, você acha que pode ser perigoso, todos aqueles sintomas de… eh… um tipo de… apreensão temerosa pelo que está acontecendo. Ou apenas vertigem, digamos, apenas desorientação… Eu queria ser capaz de trabalhar a partir dessa percepção, de alguma forma. Eh… Eu queria que fosse possível que eles fossem capazes de transitar entre estados, de um estado corriqueiro de… apenas tocar um outro corpo, digamos, apoiar-se sobre ele, soltar um pouco do peso para de repente se estar sobre um ombro e ser girado e... digamos, uma parte do corpo completamente diferente servindo de apoio e... digamos, transições plásticas… para não se desesperarem, e para poderem sentir onde estavam, para que não se perdessem na desorientação. Se você, como nós fazíamos naqueles tempos, saltasse para o alto, sobre ou em direção aos braços do seu companheiro, era muito importante que você entregasse a eles seu centro de massa na pélvis para que eles pudessem lidar com aquilo, não algum fragmento do seu corpo e não estar com… digamos, o centro de massa de alguma maneira fora daqui… ah… indisponível para a sustentação deles. A razão de se chamar contato improvisação é porque há uma terceira entidade que emerge neste estado, é o estado... esperançosamente se chega ao estado de concordância entre os dois participantes de que nenhum dos dois está liderando. Não se torna sem liderança. São as duas pessoas que, juntas, estão liderando. Quer dizer, tenho certeza de que este é o ponto de toda colaboração. É um exemplo muito bom de como algo funciona quando é feito muito, muito simples e apenas se examina aquilo potencialmente. Então sim, você não está apenas assumindo a responsabilidade por si próprio, você está assumindo a responsabilidade por duas outras entidades: uma é o seu parceiro, que você espera que também esteja cuidando de você, e então há uma terceira coisa, que é o que vocês são juntos. Soa como casamento, não? Um casamento ideal. Embora eu estivesse treinando os… dançarinos com artes marciais e com… eh… desafios às suas percepções, e à sua orientação e à sua força real e tudo isso, o Camila Vinhas Itavo | 253 ponto disto é que… que eles não sejam guerreiros, o ponto é que qualquer coisa que eles estejam fazendo, porque é uma improvisação, uma improvisação desafiadora e quase... os termos mais gerais de, digamos, sua tonificação e físico... não há uma… bem… uma pessoa descrita no… na… proposta. Não há uma pessoa lá. O que está ausente é a psicologia, eh… emoções, eh… intelecto, eh… e muitas dessas… muitas dessas coisas que sabemos que somos e temos. O contato improvisação é suficiente para ser um antídoto para as tendências agressivas que temos? Eu diria que não. (risos) O cristianismo tampouco é suficiente. O budismo não é suficiente. Nada a impediu de acontecer até aqui. O problema é que… como sempre, com tudo que você organiza e pensa, ‘certo, isso realmente vai funcionar’, os jovens aparecem. Os bebês nascem e eles crescem, e eles não sabem porra nenhuma a respeito do trabalho das outras pessoas, e eles começam a fazer a coisa do seu jeito. E eles passam por suas fases hormonais e… simplesmente bagunçam tudo. As crianças são o problema. Não, eu não posso dizer isso. Mas eu disse, então eu não posso desdizer. Ah… E depois das crianças, eu diria que o problema são os adultos. Ah… ah… porque se não houvesse os adultos ninguém se importaria com o que as crianças fizeram. Metade do país tem sobrepeso. O que isto significa? O que isto significa em termos de nossa produção alimentar, nossa preparação alimentar, nossas… ah… vidas? Quer dizer, é um... Estou deprimido, você vê… Acho que é uma armadilha. Eu não achava que isso poderia acontecer assim tão rápido. Eu achava que levasse séculos para impérios declinarem, não uma geração. Não sabia que você pudesse simplesmente cair do seu trono... né, e agitar-se desamparadamente tentando... ‘Esse costumava ser… Eu costumava sentar-me aí, mas agora, de alguma forma, não consigo me levantar.’ E… eu… Alguma coisa desse tipo parece estar acontecendo. Se vamos cair completamente e não ser capaz de nos levantar, eu não sei. Então eu sou crítico ou sou observador? Ou existe diferença? Eu não sei. Eu observo porque eu critico? Eu critico, portanto, observo? Eu não sei. (Tradução de Marcelo Batistella, 23/11/2018). Ao entrarmos em contato com o filme De maneira não covarde, Steve Paxton sobre contato improvisação e guerra, é possível observar que sua narrativa se fundamenta em marcas de historicidade, num registro de algo que ocorreu um dia, tornando-se uma fonte, organizada e interpretada, mas cujos questionamentos a respeito partem do momento presente. São suas sensibilidades em ação eternizando um momento presente, hoje passado, mas que, uma vez registrado também de forma sensível, traz em si o acesso à essência de uma história mediante suas memórias e oralidade. 254 | Performances Culturais No momento em que é afetado pela experiência da interlocução e exposição cinematográfica de sua personalidade, durante a filmagem, o artista e pesquisador tem consciência de que fará parte da história da dança e que é feita para o Museu da Dança, em Rennes, na França. Steve Paxton se conecta com suas próprias memórias, que têm nuances visuais e sensoriais, que foram videografadas e estão publicadas. São fragmentos capazes de mostrar o todo da ideia, esteticamente manifestados em movimentos irreverentes, inesperados e coesos que causam sensações em quem assiste. E, para ele que é o autor e sujeito desse movimento de dança, esta memória é plena de sinestesias com informações táteis, cinéticas, de peso e velocidade, dinâmicas, cheias de espacialidades e de conceitos estéticos que, de alguma forma, se mostram nos seus gestos durante essa narrativa espontânea de sua experiência. Como definem Sacks, Santos e Gondar: Ou seja, a transformação da lembrança em conteúdos ou motivos coletivos, e, em outras palavras, a atualização da memória no presente, é que a torna cultural e social, aproximando-nos da concepção de arquétipos de Jung, mencionada anteriormente. E a arte tem este poder, pois confere também sentido à memória. “A fantasia e a memória são o que há de mais belo”, dizia Franco, e acrescentou: “a arte é como o sonho”. (Sacks, 1995, p. 195) Novamente e por fim, volta-se a afirmar que não há memória sem criação: “conceber a memória como processo não exclui as representações coletivas, mas inclui a invenção e a produção do novo. Não haveria memória sem criação: seu caráter repetidor seria indissociável de sua atividade criativa”. (Gondar, 2005, p. 26) (SANTOS, 2013, p. 16-17). O filme citado anteriormente, dirigido por Bojana Cvejic e Lenhart Laberenz, faz parte da coleção Danse Guerre, do Centro Coreográfico Nacional (CCN), fundado em 1984 em Rennes, França, renomeado como Museu da Dança, em 2009, por Boris Charmatz. É um museu, bem como um espaço experimental e de transmissão de memórias. Durante o filme, um autoquestionamento permeia o discurso de Steve Paxton que termina perguntando se ele é crítico e/ou observador, Camila Vinhas Itavo | 255 enquanto se coloca ao mesmo tempo como retirado “num ambiente idílico” onde cultiva seu pessimismo, mas também é engajado e observador e, por isso, crítico e vice-versa. De forma a expor uma clareza, e porque não dizer uma beleza em sua espontaneidade. As imagens comentadas por ele, quando vistas lado a lado a seu depoimento, também comentam sobre ele, assim compartilham com o espectador, sob a tutela do seu testemunhar, suas memórias pessoais que também são memórias culturais de uma prática artística. Estas, por sua vez, se tornam memórias sociais que desvelam um movimento de dança como uma forma de política, mas que também compõem a memória coletiva, guarnecida pela história do mundo. A montagem cria uma forma de interlocução também performática entre as imagens, uma forma de comentário visual que, narrativamente, materializa parte da história do artista que traz um conhecimento e um experimento novo para a história da dança, expondo-a audiovisualmente por meio de uma montagem que valoriza a escuta, a banda auditiva, como também toda a oralidade e a própria voz do memorialista. A parte sonora do audiovisual se conecta a aspectos emocionais do universo das sensibilidades e dos sentidos. Enquanto a parte visual desvela os gestos do pensador e os movimentos gerados por sua pesquisa, quatro décadas antes de seu depoimento gestual que, por sua vez, revela algo a mais sobre sua sensibilidade, como define Nadia Maria Weber dos Santos: A memória encontra-se na endopsique, que é a parte “interior” da consciência, a “sombra”, o lado menos conhecido de nós mesmos e que sempre revela algo novo a nosso respeito, atestando que uma parte da nossa personalidade está sempre em formação. (SANTOS, 2013, p. 6). Justamente a relação que Steve Paxton faz com o corpo em “Material para a coluna”, em que ele direciona o trabalho para o fortalecimento dessa chamada sombra que ele chama de “the dark side”5: uma linha entre o 5 Steve Paxton ministrou no Brasil, no Estúdio Nova Dança, em São Paulo, SP, em 2006 e 2007, um curso chamado Material para a coluna [em inglês, Material for the spine]. Foi um curso de 15 dias, manhã e tarde, quase 8 horas por dia, para apenas 20 pessoas. A citação faz parte das minhas anotações durante o curso. 256 | Performances Culturais mindinho das mãos que passa pelas costas, em sentido contra lateral, e vai até os mindinhos do pé oposto, uma linha do corpo que não é naturalmente alcançada pelo próprio olhar, e por isso este nome, “o lado escuro” do corpo mas que uma vez trabalhado desenvolve uma sustentação diferenciada para o corpo (informação verbal). Seria o contato improvisação um jogo da memória com os arquétipos? Vejamos duas reflexões de Jung e Santos: Deve-se aos arquétipos a capacidade da psique de produzir imagens e símbolos, sendo o inconsciente, “enquanto totalidade de todos os arquétipos, o repositório de todas as experiências humanas desde o seus mais remotos inícios: não um repositório morto – por assim dizer um campo de destroços abandonados – mas sistemas vivos de reações e aptidões, que determinam a vida individual por caminhos invisíveis e, por isto mesmo, são tanto mais eficazes”. (Jung, 1984, p. 94) Para o autor, o inconsciente não é somente determinado historicamente, mas também gera o impulso criador – “à semelhança da natureza que é tremendamente conservadora e anula seus próprios condicionamentos históricos com seus atos criadores”. (Jung, 1984, p. 94). É dessa forma que a memória coletiva da humanidade está alocada no inconsciente coletivo e se mostra às consciências individuais ou coletivas (movimentos mnemônicos sociais, por exemplo, como o holocausto, ou familiares em um âmbito mais reduzido) a partir destes impulsos criativos do próprio inconsciente. Essas memórias, ao serem evocadas, mesclam-se com a subjetividade do indivíduo e constelam-se prenhes de sensibilidades nas narrativas memoriais. (SANTOS, 2013, p. 8). Como considera a professora e historiadora Nádia Weber Santos, a noção de memória passa pela experiência que afetou o sujeito, assim, memória é processo e atividade que articula o afeto e a representação, a imagem. Jung (1972) postula a “função criadora de símbolos” na psique humana; a partir deste princípio, a memória revela-se em imagens psíquicas e pode ser evocada por todo tipo de experiência: sensorial (um cheiro, uma música, por exemplo), o rememorar voluntário (como na psicoterapia), evocação inconsciente. Nesse sentido aproxima-se de Santo Agostinho (1984, p. 177), quando este diz que “todavia, não são os próprios objetos que entram na memória, Camila Vinhas Itavo | 257 mas as suas imagens: imagens das coisas sensíveis, sempre prestes a oferecerse ao pensamento que as recorda”. Essa concepção liga a assertiva às noções de arquétipos e inconsciente coletivo, este último sendo o repositório cultural inconsciente da humanidade – que se forma no ser humano como um processo memorial em constante atualização a partir da história. É este inconsciente coletivo que abarca a memória coletiva, que surge no homem (em sua consciência) sob a forma simbólica. Ou seja, o inconsciente coletivo – e, portanto, a memória coletiva da humanidade – é trans-histórico, atravessa a História, não é estanque. (SANTOS, 2013, p. 7). E a arte seria manifestação e desenvolvimento complexo da capacidade simbólica. A capacidade de construir linguagem simbólica, própria do ser humano, que pode ser maior que a linguagem. Nos quadros sociais da memória, Maurice Halbwachs (2006) considera que memórias partilhadas podem ser transmitidas. A transmissão de memórias é a memória social. A memória social pode ser herdada. A memória cultural vem mediante as práticas culturais. A memória social é sempre uma construção social na qual não apenas o passado, mas também o futuro se conflui por meio da imaginação. O conceito de memória social é polissêmico. A memória social é construção, processo, e está relacionada com acontecimentos do mundo. Grandes acontecimentos, conflitos sociais, guerras fazem buscar a memória social que não se reduz às representações. “A memória é parte do sensível onde a representação do afeto se fundamenta. A representação dá sentido e finalidade ao afeto” (SANTOS, 2013, p. 15). O campo das sensibilidades é transdisciplinar, um campo de entrelaçamento de conhecimentos. O movimento, o afeto, a imagem revelam memórias e se tornam disparadores delas. A dança possivelmente possa descortinar aspectos que obstruem uma relação direta entre corpo e mente com o espaço, com os lugares, com os outros. A arte proporciona novas sensações, emoções, compreensões de si mesmo em relação ao espaço e aos outros. As emoções seriam um caminho para despertar a afetividade. 258 | Performances Culturais As sensibilidades poderiam se constituir em vetores memoriais que deixam marcas no mundo, como a arte. Toda a experiência sensível do mundo, partilhada ou não, que exprima uma subjetividade ou uma sensibilidade partilhada, coletiva, deve se oferecer à leitura enquanto fonte, deve se objetivar em um registro que permita a apreensão de seus significados. O historiador precisa, pois, encontrar a tradução das sensibilidades e dos sentimentos, em materialidades, objetividades palpáveis, que operem como manifestação exterior de uma experiência íntima, individual ou coletiva. Tais marcas da historicidade – imagens, palavras, textos, sons, práticas – seriam o que talvez seja possível nomear como evidências do sensível. Mas, para encontrá-las, é preciso uma reeducação do olhar. (PESAVENTO, 2005, p. 6). A dança é fenômeno artístico, cultural, mas também simbólico e imagético. Tanto como arte quanto como narrativa ela não se estabelece sozinha, mas na interação; tanto como ritual quanto como estrutura teatral de apresentação ela precisa de plateia. E como investigação e ensaio, no caso do contato improvisação, por exemplo, pressupõe a presença de pelo menos um outro jogador. Performances são eventos que abrem espaço para a subjetividade ser expressa, assim como as sensibilidades. Assim também acontece com a prática do contato improvisação que pode ser observada sob a perspectiva das performances culturais, mas também como geradora de memória cultural e social, além de reflexão sobre a dança e sobre si mesmo. Presença é escuta Performance pressupõe uma exterioridade, uma comunicabilidade, alguma interlocução, uma forma de teatralidade. Em Theatricality: an introduction (2003), Tracy C. Davis e Thomas Postlewait postulam: A idéia de teatralidade adquiriu uma gama extraordinária de significados, fazendo do ato, uma atitude, de um estilo para um sistema semiótico, do meio, Camila Vinhas Itavo | 259 a mensagem. É um significado para todos os signos. Dependendo da perspectiva, ela pode ser disseminada como um pouco mais do que um auto referencial gestual ou ela pode ser abordada como uma característica definitiva de comunicação humana. Embora obviamente deriva seu significado do mundo do teatro, teatralidade pode ser abstraída do próprio teatro e então ser empregada para todo e qualquer aspecto da vida humana. E mesmo limitada ao teatro, seu potencial de significado é assustador. Então, ela pode ser definida exclusivamente como um específico tipo de estilo de performance ou inclusive como todo código semiótico de representação teatral. (DAVIS; POSTLEWAIT, 2003, p. 5, tradução própria). Assim como teatralidade, a interlocução está entre o meio e a mensagem, o criador e a criação, seria lugar para manifestação das sensibilidades que poderiam formar memórias sociais, culturais e coletivas. “Sabe-se que a subjetividade e as sensibilidades também formatam o indivíduo em todas as suas funções, tanto corporais quanto sociais e culturais”. (SANTOS, 2013, p. 2). Como fundamenta a professora Nádia Weber Santos, o presente é construído em comum. A memória é ativa apenas no presente, e até cria o próprio, uma vez que ela traduz um retorno reflexivo do sujeito sobre o que ele foi para reinventar o que ele é no presente. Ainda na esteira de Pesavento, “as sensibilidades se apresentam, portanto, como operações imaginárias de sentido e de representação do mundo que conseguem tornar presente uma ausência e produzir, pela força do pensamento, uma experiência sensível do acontecido.” (Pesavento, 2007, p. 14) Dessa forma, o sentimento é que faz perdurar a sensação e reproduz esta interação com a realidade. A força da imaginação, diz a autora, “em sua capacidade tanto mimética quanto criativa está presente no processo de tradução da experiência humana”. (Pesavento, 2007, p. 12-13) Assim, temos a capacidade mimética e criativa da imaginação fazendo parte do processo de rememoração, permanecendo a memória com um caráter indissociável da atividade criativa. (SANTOS, 2013, p. 15). Uma experiência sensível do acontecido é uma finalidade muito similar à de Steve Paxton, como ele mesmo revela na entrevista (Anexo). Atingir a percepção dos seus alunos e levá-los ao “estado de concordância”, analisando um aspecto muito simples, a entrega do peso. Ele compreende esta 260 | Performances Culturais que também é a entrega ao movimento, como uma presença de corpo total que nos ensina a responder harmonicamente ao que poderia ser considerado um gesto de violência. Ele conseguiu fazer algo à parte como desejara e isto o levou a um salto além das fronteiras da dança em sua criação. Considerações finais Paxton, na entrevista citada, salienta a percepção da necessidade de preservação de ambos os bailarinos e a compreensão de que é preciso ser responsável por si, mas também pelo outro, nesta que é uma dança governada por ambos. Esta ação reflexiva criou um terceiro estado alcançado, que é o “estado de concordância”. Como ele mesmo diz, “um tipo de salto filosófico, uma maneira de responder harmonicamente à violência”. Uma sensibilidade desenvolvida pela técnica. Ora, sensibilidades se exprimem em atos, em ritos, em palavras e imagens, em objetos da vida material, em materialidades do espaço construído. Falam, por sua vez, do real e do não-real, do sabido e do desconhecido, do intuído, do pressentido ou do inventado. Sensibilidades remetem ao mundo do imaginário, da cultura e seu conjunto de significações construído sobre o mundo. (PESAVENTO, 2005, p. 6). Para Sandra Pesavento, traço de união entre corpo e alma, a sensibilidade é uma presença enquanto valor, que só poderia ser avaliada de acordo com sua capacidade mobilizadora. Desta forma, podemos aproximar as sensibilidades do campo do político, onde podem ser medidas ações e reações, mobilizações e tomadas de iniciativa. Da mesma maneira, o estudo das sensibilidades remete ao campo da estética, não somente pelos pressupostos que, de forma canônica, a associam com o belo, mas na concepção que entende a estética como aquilo que provoca emoção, que perturba, que mexe e altera os padrões estabelecidos e as formas de sentir. (PESAVENTO, 2005, p. 7). Camila Vinhas Itavo | 261 O contato improvisação tem como pressuposto a interlocução, um estado de disponibilidade ao diálogo físico e espacial que proporciona um novo estado de presença, chamado por Steve Paxton, no audiovisual, de “estado de concordância”. Este é desenvolvido por princípios cinéticos específicos para entrar e sair desse estado de presença, tomando a percepção como sua ferramenta essencial nesse processo de mediação da atenção, em relação às ondas da gravidade, o tempo todo passando pelo corpo em movimento. Paxton teria criado um tipo de engajamento cinético-empírico, e/ou político, como ele mesmo menciona, uma chave para um novo tipo de interlocução que os possibilitou responder harmonicamente às situações que poderiam ser experimentadas como violentas ou perigosas. Mas de onde estamos só podemos entrar em contato com seu universo por suas memórias registradas culturalmente, publicadas por um espaço dedicado à memória, e, dessa forma, também tomadas como história, manifestada em narrativa, mas também em imagens, que são comentadas pelo próprio artista. Imagens estas que comentam sobre o artista, reflexivamente, expressando sua história que se mistura com a história da novadança e com a micro-história ou a história vista debaixo. O amálgama dessas imagens e vozes trazem à tona e ao imaginário social memórias de uma história cujos detalhes, imagens e materialidades da experiência não teríamos acesso se não fosse a dedicação destes memorialistas que deram valor a este material. É por meio do dispositivo audiovisual, que por sua vez nos proporciona uma performance, ao mesmo tempo, uma experiência estética e o acesso a esta narrativa como forma de conhecimento. Referências ABDALA JUNIOR, Roberto. Memória, imagem e outras histórias. In: Olhar: Imagem/Memória. 1. ed. São Paulo: Pedro e João Editores, 2008, p. 369-380. BOSI, Ecléa. Memória & sociedade: lembrança de velhos. 12. ed. São Paulo: T.A., 2004. 262 | Performances Culturais CAMARGO, Robson Corrêa de. Poética em Fragmentos: Aristóteles, o espetáculo e seus duplos. ABRACE, SP: Unesp. 2010. CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. SP: Martins Fontes, 1994. DAVIS, C. Tracy; POSTLEWAIT, Thomas. Theatricality. United Kingdom, Cambridge University Press, 2003. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. l. ed., IS. reimpr. Rio de Janeiro: LTC, 2008. GONDAR, Jô. Cinco Proposições sobre Memória Social. 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Atualmente atua como professora no curso de Educação Física na FAC UNICAMPS – Goiânia com as disciplinas em Psicologia e Pedagogia da Educação física e Ritmos, Corporeidade e Danças. Interessa-se por psicologia, danças e performances. E-mail: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/8051303223070233 Camila Vinhas Itavo – fotógrafa e bailarina. Mestranda no Programa Interdisciplinar de PósGraduação em Performances Culturais, Faculdade de Ciências Sociais, UFG. Pós-graduada em História e Narrativas Audiovisuais, Faculdade de História, UFG, 2016. Pós-graduada em Cinema e Processos Audiovisuais, Faculdade de Cinema, UEG, 2017. Graduada em Comunicação Social, Jornalismo pela UNESP, Bauru/SP, em 1995. Dançou Balé clássico de 1977 a 1991 e se formou em Novadança, 1998 a 2002. Desde 2003 é professora de dança. E-mail: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/7474201516994122/ Canal: https://www.youtube.com/c/CamilaVinhasItavo Blog: https://videoedanca.wordpress.com/ João Marcos de Souza – mestrando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais (PPGIPC), na Universidade Federal de Goiás (UFG) e licenciado em Artes Cênicas pela mesma instituição. Professor da educação básica na Secretaria de Educação do Estado de Goiás. E-mail: [email protected] CV : http://lattes.cnpq.br/8505645940462288 Karine Ramaldes Vieira – atriz, professora de teatro, doutoranda do Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Performances Culturais (PPGIPC) da Universidade Federal de Goiás. Apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG). Autora junto a Robson Corrêa de Camargo do livro Os Jogos Teatrais de Viola Spolin: Uma Pedagogia da Experiência (Goiânia: Kelps, 2017). E-mail: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/3920310891809863 Sobre os autores | 265 Luciana Hartmann – Professora do Departamento de Artes Cênicas da UnB. Possui Doutorado em Antropologia Social (2004) pela UFSC. Realizou Pós-doutorado na Université Paris X, Ouest Nanterre La Défense (2014-2015). É co-organizadora das coletâneas O Teatro e suas pedagogias: práticas e reflexões (2016), Donos da Palavra: autoria, performance e experiência em narrativas orais na América do Sul (2007) e autora do livro Gesto, Palavra e Memória performances de contadores de causos (2011) e de artigos que debatem narrativas e performances em diversos contextos. E-mail: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/8454367473690262 Luis Guilherme Barbosa dos Santos – arquiteto e urbanista, mestrando do Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Performances Culturais (PPGIPC) da Universidade Federal de Goiás. Professor da disciplina Espaço Cênico e Cenografia no Curso Superior de Tecnologia em Produção Cênica do Instituto Tecnológico em Artes Basileu França em Goiânia – GO. E-mail: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/7053035428622023 Nádia Maria Weber Santos (organizadora da obra) – médica, psiquiatra junguiana e historiadora. Possui Mestrado e Doutorado em História pela UFRGS e Pós-Doutorado pela Université Laval (Québec/Canadá). É bolsista de produtividade do CNPq nível 2 desde 2016. É membro pesquisadora do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul e curadora do Acervo Sandra Jatahy Pesavento nesta instituição. Integra o comitê editorial da revista Artelogie, vinculada ao CRAL/EFISAL – EHESS de Paris. Atualmente é professora do PPG em Performances Culturais da UFG (Universidade Federal de Goiás). Autora de vários livros e artigos na área da História Cultural, com ênfase em História da Loucura e da Psiquiatria, Memória Social, Sensibilidades, Arquivos pessoais e Performances Culturais. Destacam-se as obras individuais: Histórias de vidas ausentes: a tênue fronteira entre a saúde e a doença mental (2ª edição ampliada e revista, SP: Edições Verona, 2013); Histórias de sensibilidades e narrativas da Loucura (Porto Alegre, Ed. da Universidade/ UFRGS, 2008). E-mail: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/3929583037339642 Renata de Lima e Silva – Professora do curso de Dança, do Programa de Pós-graduação em Performances Culturais e do Programa de Pós-graduação em Artes da Cena da Universidade Federal de Goiás. Realizou Pós-doutorado no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita” (Unesp/2010-2012). É doutora em Artes pela Unicamp (2010), diretora artística do Núcleo Coletivo 22 e capoeirista do Centro de Capoeira Angola Angoleiro Sim Sinhô. É autora do livro Corpo Limiar e Encruzilhada: processo de criação em dança. E-mail: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/9684039080990993 266 | Performances Culturais Roberto Abdala Junior – Professor da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás (UFG), desde 2011, leciona na graduação em História, nos programas de Pós-Graduação em História e em Performances Culturais da UFG. Graduado em História, mestre em Educação e doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desenvolve pesquisas que têm por foco as relações entre história/História e narrativas audiovisuais. E-mail: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/7014946989727038 Robson Corrêa de Camargo – idealizador e fundador do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais da UFG (Doutorado e Mestrado). Encenador e crítico de teatro, coordena a Rede Goiana de Pesquisa em Performances Culturais, financiamentos CNPQ, FAPEG, CAPES, FUNAPE. Livros publicados: Brazilian Theater, 1970–2010 (2015, McFarland, org. with Eva Bueno); O gestual no teatro: melodrama, pantomima e teatro de feira (no prelo); Música na contemporaneidade (2015, PUC/GO org. com Claudia Zanini); O Mundo é um moinho: reflexões sobre o teatro popular no séc. XX; Performances Culturais (Hucitec org. com Eduardo Reinato e Heloisa Capel). Cópias de trabalhos em https://ufg.academia.edu/RobsonCamargo. https://robsoncamargo.academia.edu/research E-mail: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/9964594962008164 Rodrigo Graboski Fratti – Graduado em Licenciatura em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná. Foi Professor da Educação Básica do Estado do Paraná. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Professor Adjunto da Universidade Federal de Catalão. Doutorando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás. Músico e produtor cultural independente. Tem experiência na área de Educação Física e Artes, com ênfase em Ciências Humanas e Sociais, atuando principalmente nos seguintes temas: educação física escolar, corpo e trabalho, performances culturais e arte. E-mail: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/3154295230718134 Tomasz Wiśniewski – professor na Universidade de Gdansk. Vice-diretor de pesquisa no Instituto de Estudos Ingleses e Americanos da Universidade de Gdańsk. Idealizador e fundador do Festival Between. Pomiędzy e do Beckett Research Group em Gdańsk. Publicou Complicite, Theatre and Aesthetics (Palgrave Macmillan, 2016), monografia sobre Samuel Beckett (Universitas, 2006) e editou várias publicações acadêmicas, incluindo uma edição bilíngüe da Historie of Lord's Glorious Resurrection (Teatr Wierszalin, 2017) e uma publicação de entrevistas e artigos que celebram o 40º aniversário do OPT Gardzienice de Włodzimierz Staniewski (Konteksty, 2018). Ele faz parte do conselho editorial da revista literária Tekstualia, é editor regional do The Theatre Times e membro do conselho de administração da Sobre os autores | 267 Associação Polonesa para o Estudo do Inglês (desde 2018) e membro do Conselho do Programa do Teatro Gdańsk Shakespeare (desde 2018). E-mail: [email protected] Valquíria Duarte da Silva – mestranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais (PPGIPC) da Universidade Federal de Goiás (UFG); licenciada em Artes Cênicas pela UFG; professora efetiva de Arte na Rede Municipal de Educação de Goiânia, atuando na Gerência de Projetos Educacionais (GERPRO); atriz, contadora de histórias. E-mail: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/6827952322561381 Vânia Dolores Estevam de Oliveira – museóloga, doutora e mestre em Memória Social pela UNIRIO, com pós-doutorado em Artes pela UERJ. Atua como docente permanente do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais e do bacharelado em Museologia da Universidade Federal de Goiás, onde é vice coordenadora. Também é membro titular das Áreas de Ciências Humanas no Conselho Editorial da Editora UFG e curadora da Reserva Técnica Documental do Museu Antropológico da UFG. E-mail: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/1883361659918132 Warla Giany de Paiva – Artista, performer, professora e pesquisadora do movimento e da dança, mãe, angoleira e investigadora de outros modos de compartilhamento de saberes no âmbito da educação formal. Mestre em Performances Culturais com a pesquisa Maria Duschenes: teia de saberes e encontros, especialista em Pedagogias da Dança e Sistema Laban/Bartenieff (em curso) e licenciada em Educação Física. Trabalha no Centro Especial Elysio Campos como professora de dança e no Centro de Estudo e Pesquisa do Ciranda da Arte, Seduc/Go, contribuindo na coordenação, articulação e inquietação pedagógico-artística de educadores e educadoras da área de arte. Participa do Grupo de Estudos Acessos ao Movimento (UFG) e de trabalhos como “Cascando Beckett”, Grupo Maskara e performances como “Mulheres” e solos como “Contando grãos de areia”, ambos pelo Ciranda da Arte. E-mail: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/6438618322421765 Wesley Martins da Silva – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais. Mestre em História, PUC Goiás (2017). Professor bolsista de Artes Cênicas EAD, pela Universidade Federal de Goiás e técnico de audiovisual na Universidade Federal de Goiás. Afiliado ao Ancine pelo registro nº 26104. Possui graduação em Artes Cênicas, Bacharelado pela Universidade Federal de Goiás (2003), licenciatura em Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás (2008) e especialização em Cinema e Educação pela IFITEG-GO (2010). Especialização em docência no ensino superior pela Universidade Católica Dom Bosco (2016). E-mail: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/7399793424169360 A Editora Fi é especializada na editoração, publicação e divulgação de pesquisa acadêmica/científica das humanidades, sob acesso aberto, produzida em parceria das mais diversas instituições de ensino superior no Brasil. Conheça nosso catálogo e siga as páginas oficiais nas principais redes sociais para acompanhar novos lançamentos e eventos. www.editorafi.org [email protected]