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PAULO FREIRE PARA PEDAGOGIA (39)

PAULO FREIRE NASCEU NO RECIFE em 19 de setembro de 1921. Cresceu dentro de um ambiente de fraternidade, solidariedade e retidão de princípios ensinados pelos pais. Formou-se como gente, cidadão e intelectual engajado, inicialmente, em sua cidade natal, no Colégio Osvaldo Cruz e na Faculdade de Direito. Com o golpe militar de 1964, no Brasil, tornou-se cidadão do mundo, o "peregrino do óbvio", como ele mesmo se designou. Aprendeu e ensinou num processo dialético ininterrupto de sentir, observar, pensar, escrever e praticar, sem nunca ter perdido as suas origens nordestinas, tipicamente recifenses, até o último dia de sua vida. Escreveu algumas dezenas de trabalhos: livros, conferências, ensaios. Recebeu reconhecimento, por sua teoria e sua práxis, de movimentos sociais, de universidades, de Organizações Não Governamentais (ONGS) e de governos de quase todo o mundo. É Doutor Honoris Causa de 39 universidades do Brasil e do exterior. Recebeu também mais outros quatro títulos congêneres, acadêmicos e honoríficos, de instituições educacionais do Brasil e dos Estados Unidos. Recebeu Título de Cidadão de treze cidades e de um estado no Brasil, além de mais duas cidades estrangeiras. Entre outros importantes prêmios recebidos, destacam-se: o "Reza Pahlevi", da Unesco; o "Rei Balduíno", do próprio rei da Bélgica; o "Educador para a Paz", da Unesco; o "Andrés Bello", da Organização dos Estados Americanos (OEA); e o "Moinho Santista", do Brasil. Foi um homem que educou as virtudes fazendo dele mesmo o aprendiz de um mestre que praticava a Paideia com os seus alunos, à maneira de como os filósofos gregos da Antiguidade educavam os seus discípulos. Assim, faziam parte intrínseca de seu modo de ser, de postar-se diante do outro/a e da vida social: o respeito, a generosidade, a coerência e uma capacidade ímpar de amar. Tornou-se, assim, por sua inteligência política e compaixão ética para com os oprimidos/as, o "educador/pedagogo da consciência ético-crítica", como o nomeou o filósofo da libertação Enrique Dussel. Paulo faleceu na cidade de São Paulo, em 2 de maio de 1997, em plena atividade político-educativa, surpreendido por um enfarte agudo do miocárdio.

– PAULO FREIRE E SÉRGIO GUIMARÃES A ÁFRICA ENSINANDO A GENTE ANGOLA, GUINÉ-BISSAU, SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE PAZ E TERRA Copyright © Editora Villa das Letras/ © Sérgio Guimarães Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite. EDITORA PAZ E TERRA LTDA Rua do Triunfo, 177 — Sta Ifigênia — São Paulo Tel: (011) 3337-8399 — Fax: (011) 3223-6290 http://www.pazeterra.com.br Texto revisto pelo novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Freire, Paulo, 1921-1997 A África ensinando a gente : Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe / Paulo Freire, Sérgio Guimarães. -- 2. ed. - São Paulo : Paz e Terra, 2011. Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-85-7753-214-8 (recurso eletrônico) 1. África Portuguesa - Civilização 2. Educação -África Portuguesa 3. Educação - Aspectos políticos África Portuguesa 4. Língua portuguesa - Estudo ensino - África Portuguesa I. Guimarães, Sérgio. II. Título. 11-08606 CDD-371.0096 Índices para catálogo sistemático: Índices para catálogo sistemático: 1. África Portuguesa : Alfabetização : Educação 371.0096 A TODAS AS MENINAS E MULHERES QUE VÊM CARREGANDO A Á FRICA NAS COSTAS, E A TODOS OS TRABALHADORES QUE, DA GRÁFICA À EDITORA, FIZERAM CONOSCO ESTE LIVRO. Sumário SOBRE OS AUTORES Paulo Freire — Muito prazer! Sérgio Guimarães PREFÁCIO: A ÁFRICA ENSINANDO A GENTE: ANGOLA, GUINÉ-BISSAU, SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE INTRODUÇÃO: O PORQUÊ DESTE LIVRO, ENTRE O SALÃO E A MANGA PRIMEIRA PARTE: UM DEBATE DE SALÃO 1 “Este reaprendizado que a África me oferece” 1. Luta, línguas e Amílcar: “Que liberdade é essa?” 2. A escolha do crioulo e o português. E uma experiência que não deu certo 3. Moçambique? “Não fui convidado.” América Latina? “Um ser do mundo” 4. O Mobral e a conscientização: “Renuncio a usar essa palavra” 5. Alfabetização funcional: “Caráter político? O.k.” 6. Da beleza da língua crioula à “excelência” do colonialismo 7. Uma consciência política clara, “fora da qual não há caminho” 8. A língua dos colonizados: um “dialeto feio e pobre” 9. O desenvolvimento do crioulo: “E as outras línguas nacionais?” 10. Qual método, para um país com 62 línguas? 11. Opção: entre a alfabetização na Europa e o “reaprendizado que a África me oferece” 12. Explicando melhor o que significa “falhar” SEGUNDA PARTE: SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE 2 “Praticar para aprender”: caminhos de São Tomé 1. Um livrinho simples, “mas não simplista” 2. A história de Pedro e Antônio: evidência e mistério da parábola 3. Esse livro, outro livro: “algumas brasileiradas” 4. A linguagem das cartas e a cultura de memória oral 5. A técnica epistolar: “nada de religioso” 6. Um outro caderninho: nadando se aprende a nadar 7. Um atraso de cinco minutos e quinhentos anos de resistência 8. A impressão de uma frouxura: o colonizador “muito próximo ainda” 3 O processo? Extraordinário, mas “simplesmente, houve uma ruptura” 1. “As pessoas começaram a libertar-se mentalmente” 2. O ensino e a ideologia do tempo: “Nós não tínhamos história!” 3. Na empresa: “A partir daí, a alfabetização começou a cair” 4. Um mosaico de culturas. Erros? “Houve falta de continuidade” 5. Futuro? “Não é só o Estado que tem que resolver o problema” 4 São-tomense leve-leve? “A mudança tem de ser geral!” 1. Paulo Freire? “É um pedagogo, e tal.” “Ele é que veio organizar as coisas” 2. Água pelas barbas, presidente da República: “Eu concordo com o camarada Sinfrônio!” 3. Empresas, empresinhas, padarias: “E, assim, alfabetizou-se muita gente!” 4. A semente, a planta e o fruto: “Só que, depois daquela crise, não choveu!” 5. A alfabetização caiu: “Falta conscientização” 6. Um defeito e o medo de falar: “As verdades às vezes picam” 7. O crioulo e o problema da língua: “Não responde, não responde!” 8. A menina atrasada e o animador: “Adulto? Não podes zangar adulto” 9. Brasileiro, não ser da terra? “A questão é saber ser” 10. Freire, Freinet, placas e mulas: “Os brasileiros são formidáveis!” 11. Futuro deficiente, exemplo das cegonhas: “O sim para afirmar e o não para negar” 12. Democracia do demo, leve-leve? “A mudança não é só política” TERCEIRA PARTE: ANGOLA 5 “O Ideal perdeu-se. É uma catástrofe!” 1. Os Centros de Instrução Revolucionária e Paulo Freire, “uma espécie de guia” 2. “Um dos maiores desgostos que eu tenho é a educação em Angola, que é um desastre!” 3. Futuro? “Fazer renascer aquele espírito de educação que havia há um bocado” 4. A origem dos Centros de Instrução, “lugares de encontro de jovens para a luta” 5. Experiência de aluno, no tempo colonial: “Havia dois negros no meu colégio. Dois!” 6. Educação, “um problema que o governo tem que resolver. Senão, será condenado” 7. Sonho de uma Angola para amanhã? “Educação, prioridade das prioridades” 6 Apostar na educação, “mais cedo ou mais tarde” 1. Uma certa frustração: alunos sem hábitos de leitura, sem interesse 2. Palmatória, puxar as orelhas. Negros? “Dois ou três, no meio de duzentos!” 3. “Não era só dar aulas, eu era guerrilheiro também” 4. Quatrocentos alunos, uma base do mato: “Estava mesmo na linha de fronteira” 5. “No fundo, nós tentamos acasalar o método Paulo Freire com o cubano” 6. Da guerrilha ao governo, quadros da educação: “Por isso é que eu apareci como vice-ministro” 7. Revolução: “A um momento dado, esse sistema começou a derrapar” 8. Limpeza, reorientação ideológica: “Aí cometeram-se erros crassos” 9. Futuro? “Muito mais difícil, mais lento”: nova reformulação, algum investimento 10. Professor, escritor. Ser ministro? “Eu não ando de cavalo para burro” 7 Angola? Uma visão política completamente diferente 1. Tempo colonial: “uma pedagogia ultramarina implantada na África” 2. Escola tradicional, autoritária? “Não tanto.” Exclusão? “Não era uma questão de raça” 3. A educação após a independência: balanços diferentes, salada pedagógica 4. Investimento na educação? “Ainda não há sensibilidade” 5. Mudança: “A educação não pode, de forma alguma, ser politizada” 6. Paulo Freire? “Será sempre uma referência muito positiva” 7. O sonho: “melhorar o setor”, um copo de leite e um pão QUARTA PARTE: GUINÉ-BISSAU — I 8 “Tivemos que construir a partir da primeira pedra” 1. A história das “Cartas à Guiné-Bissau” e o PAIGC: “vai nos ensinar o português?!” 2. “Falávamos mas não escrevíamos.” E a dedicatória a Amílcar Cabral 3. “Um momento especial. Foi pena que não se tivesse continuado” 4. A herança e a escola colonial: “Pouca gente tinha acesso” 5. “A pancada era a chave para abrir as consciências” 6. Alfabetização em línguas nacionais? “Aí tivemos dificuldades de escrever” 7. Alfabetizar em seis línguas? As minorias, os filhos dos dirigentes e os filhos do povo 8. “Por que é que os nossos filhos vão aprender nessa língua?” 9. “Por que não fazer um poema em cassanga?” 10. Passado? “Progressos assinaláveis.” Presente? “Qualquer coisa de errado” 11. “Um homem que ouvia muito e que observava ainda mais” 12. Mulheres: “um ministério prenhe”, a decisão de Cabral e “a sua bela Elza” ANEXO I ANEXO II: ALFABETIZAÇÃO EM MASSA NO BRASIL: UMA VISÃO COMPARADA DO MÉTODO MOBRAL E DO MÉTODO PAULO FREIRE ANEXO III: CAMARADA PROFESSOR! CARTAS SOBRE O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA EM ANGOLA: Iº BLOCO — “DOS OUVIDOS À BOCA: APRENDER A OUVIR, ENSINAR A FALAR” SOBRE OS AUTORES PAULO FREIRE PAULO FREIRE NASCEU NO RECIFE em 19 de setembro de 1921. Cresceu dentro de um ambiente de fraternidade, solidariedade e retidão de princípios ensinados pelos pais. Formou-se como gente, cidadão e intelectual engajado, inicialmente, em sua cidade natal, no Colégio Osvaldo Cruz e na Faculdade de Direito. Com o golpe militar de 1964, no Brasil, tornou-se cidadão do mundo, o “peregrino do óbvio”, como ele mesmo se designou. Aprendeu e ensinou num processo dialético ininterrupto de sentir, observar, pensar, escrever e praticar, sem nunca ter perdido as suas origens nordestinas, tipicamente recifenses, até o último dia de sua vida. Escreveu algumas dezenas de trabalhos: livros, conferências, ensaios. Recebeu reconhecimento, por sua teoria e sua práxis, de movimentos sociais, de universidades, de Organizações Não Governamentais (ONGS) e de governos de quase todo o mundo. É Doutor Honoris Causa de 39 universidades do Brasil e do exterior. Recebeu também mais outros quatro títulos congêneres, acadêmicos e honoríficos, de instituições educacionais do Brasil e dos Estados Unidos. Recebeu Título de Cidadão de treze cidades e de um estado no Brasil, além de mais duas cidades estrangeiras. Entre outros importantes prêmios recebidos, destacam-se: o “Reza Pahlevi”, da Unesco; o “Rei Balduíno”, do próprio rei da Bélgica; o “Educador para a Paz”, da Unesco; o “Andrés Bello”, da Organização dos Estados Americanos (OEA); e o “Moinho Santista”, do Brasil. Foi um homem que educou as virtudes fazendo dele mesmo o aprendiz de um mestre que praticava a Paideia com os seus alunos, à maneira de como os filósofos gregos da Antiguidade educavam os seus discípulos. Assim, faziam parte intrínseca de seu modo de ser, de postar-se diante do outro/a e da vida social: o respeito, a generosidade, a coerência e uma capacidade ímpar de amar. Tornou-se, assim, por sua inteligência política e compaixão ética para com os oprimidos/as, o “educador/pedagogo da consciência ético-crítica”, como o nomeou o filósofo da libertação Enrique Dussel. Paulo faleceu na cidade de São Paulo, em 2 de maio de 1997, em plena atividade político-educativa, surpreendido por um enfarte agudo do miocárdio. Nita Ana Maria Araújo Freire — MUITO PRAZER! SÉRGIO GUIMARÃES — SOU CAIPIRA DE MÃE ANTONIA e de pai Oswaldo, desde 13 de março de 1951. Naturalmente, com muita honra, de Santo Anastácio, cidadezinha escondida entre os Presidentes Prudente e Venceslau, no interior sorocabano do estado de São Paulo. Irmão mais velho de Paulo Afonso e de João Bosco. Nome? Antonio Sérgio Arantes Braga Guimarães, para ser exato. Primeiros empregos, dos dezesseis aos vinte: office-boy e assistente do departamento de artes da TV Paulista, canal 5; repórter canhoto da revista São Paulo na TV e da Folha de S. Paulo na capital, dos jornais O Imparcial e Correio da Sorocabana e das rádios Difusora e Comercial em Presidente Prudente. Aluno da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (1971-74) e professor primário da rede municipal da capital até fins de 1975, numa escola que era o ponto final do ônibus Rio Pequeno. Preferência: primeira série do primeiro grau. Daí por diante, pé no mundo, de braço dado com a baiana Marinildes, Nega. Professor de Civilização Brasileira, Literatura Brasileira e Língua Portuguesa na universidade francesa de Lyon (II) de 1975-78, onde aproveitei para me “mestrar” em linguística e semiologia. Daí até fins de 1980, perito (não tive culpa, esse era o nome, e, em francês, ainda era pior: expert) em linguística da Unesco no Ministério da Educação da República Popular de Angola, num projeto de formação de professores para o ensino de base. Nos primeiros cinco dos anos 1980, Brasil de novo, já com três pimpolhos (Gustavo, Hélder e Daniel): trabalho na saudosa Fundação Cenafor, do Ministério da Educação em São Paulo, na área da formação profissional, sobretudo com professores das Secretarias Estaduais de Educação de Mato Grosso, Pará, Pernambuco, Roraima e São Paulo. Aí é que começam os livrinhos com Paulo Freire: Sobre educação: diálogos I (1982) e II (1984), Pedagogia: diálogo e conflito (com Paulo e Moacir Gadotti, 1985), Aprendendo com a própria história I (1987) e, muito depois, II (2000)*. De 1985 em diante, de novo pé na estrada, já então com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), como oficial de comunicação social na República Popular de Moçambique (1985-89), na República do Haiti (1989-94), no Reino do Marrocos (1994-96), e na já rebatizada República de Angola daí por diante, primeiro na área da comunicação e, a partir de 1999, como oficial sênior de programas. Em novembro de 2001, chego finalmente de mala e cuia na República da Guiné-Bissau, como representante do Unicef. E tão cedo, como diz o outro, daqui não saio, daqui ninguém me tira. Na bagagem dos inéditos, inacabados: o segundo volume de A África ensinando a gente; um último em parceria com o Paulo, Lições de casa, fechando a série; A pedagogia do chinelo, livrinho ruminado há mais de vinte anos; dois sobre os nossos maiores da prosa (Graciliano) e do verso (Vinicius); um outro também há muito remastigado, Notícia de Angola; um autêntico assalto à poesia; e mais um pequenininho sobre psicodrama pedagógico, com a professora Marisa Greeb. Por enquanto é só. Bissau, 9 de março de 2003 Nota * Para as edições de 2011, optou-se por trabalhar cada livro de forma independente. Assim, Sobre educação: diálogos I tornou-se Partir da infância: diálogos sobre educação; Sobre educação: diálogos II ficou com o título Educar com a mídia: novos diálogos sobre educação; Aprendendo com a pròpria história I se manteve, mas sem a indicação de volume; e Aprendendo com a própria história II tornou-se Dialogando com a própria história. (N.E.) Prefácio A ÁFRICA ENSINANDO A GENTE: ANGOLA, GUINÉ-BISSAU, SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE É COM UMA ALEGRÍA ENORME que mais uma vez, como sucessora legal da obra de Paulo Freire, entrego com Sérgio Guimarães, coautor, este novo livro de meu marido. O livro envolve uma parte da presença de Paulo na África, o seu pensamento sobre ela, de 25 anos atrás, em diálogo com seu parceiro. Entretanto, como é comum nos escritos e falas de Paulo, este texto ainda é atual. E de como a África hoje percebe Paulo, através dos diálogos travados por Sérgio com diversos interlocutores africanos e africanas, tantos anos depois que ele lá atuou com os nacionais. Exatamente nos primeiros anos de 1970, portanto, separados pela vida e pelas injunções político-econômicas por três décadas. A África é o continente que fazia Paulo nutrir a ilusão de que “voltava para casa” — quando, então, partia da fria e inodora Suíça para contribuir na constituição, através da educação, das novas nações africanas — tal a semelhança que sentia entre aquele território e aquela gente e o “seu” país e a sua gente. Sentia saudades e esperanças de voltar para o Brasil em cada uma das visitas que fazia para lá. Em qualquer um dos pedaços de terra africana que pisava, reconfortava-se do exílio forçado escutando as pessoas e conversando. Ou até apenas chupando mangas, saboreando bananas ou almoçando peixe ao leite de coco ou cachupa. Sentia com prazer o olor da terra quente molhando-se com a água da chuva que produzia um cheiro característico que gera vida e morte no ciclo que se consuma não só na exuberância do cheiro exalado pela natureza, mas na renovação da vida. Fenômeno da natureza que só os homens tropicais, como Paulo, conhecem e com ele se alegram e revivem saudades de sua terra natal. Mais ainda, os ajudam a entender as suas relações com o mundo do poder e das proibições. Paulo sentia também as semelhanças de nossa cultura com a africana, no jeito de usar o corpo, no de andar e de movimentar-se, no de rir ou de gargalhar, no de enfrentar as dificuldades com um poder de resistência extraordinário. Nesses traços estão embutidas as manhas que, se não deixam ficar esquecidas as suas raízes, impedem o enfrentamento dos problemas e assim de as pessoas se tornarem sujeitos, donos de sua própria história. De prosseguirem à procura de sua verdadeira identidade histórica e cultural na atualidade planetária. Paulo não cansava de recordar que os povos africanos que se submeteram por mais de cinco séculos à colonização malvada e perversa dos colonizadores portugueses — característica, aliás, intrínseca a este processo “civilizatório” — não perderam muitas das raízes culturais e linguísticas. Os nativos esconderamse nas florestas e preservaram as suas histórias tribais, suas crenças e sua fé, mas contraditoriamente impossibilitaram-se de crescer na dinâmica necessária do aperfeiçoamento cultural. Quando as forças da metrópole abandonaram “suas colônias” ressurgiram as tradições, as práticas cotidianas religiosas com seus ritos e crenças, com suas músicas e danças. Com suas centenas de línguas diferentes. Mas os povos africanos, como todos os povos submetidos à colonização, não puderam perceber o que cabia e o que não cabia de seus costumes e crenças no mundo pós-industrial. Não puderam distinguir o que preservar e o que abandonar para se inserirem no mundo do século XX no qual viviam, como seres para si, diferentes, não necessariamente inferiores, dos europeus, dos americanos ou dos orientais. Essa capacidade de resistência nutrida na esperança de seu resgate histórico teve, portanto, a sua contrapartida negativa. Entre outras, a questão das línguas nacionais de cada uma dessas nações que nasceram para realizar as suas autonomias políticas, econômicas e culturais. A língua foi e continua sendo uma das dificuldades maiores de integração dos povos negros mesmo dentro de uma mesma nação, como podemos constatar no decorrer da leitura deste livro. A língua portuguesa com suas regras, condutas e normas a seguir não foi, inicialmente, inteiramente assimilada pelos originais. Eles e elas, em quase sua totalidade, não a falavam. Contraditoriamente, foi a língua escolhida por seus dirigentes diante de sua praticidade — é conhecida e falada em outros continentes —, pois outras dezenas delas faladas a poucos quilômetros umas das outras não eram entendidas entre si. A língua crioulo, a mais difundida delas, não era hegemônica em nenhuma dessas nações nos anos 1970 e também por não ser uma língua que contasse com código gráfico, ofereceu dificuldades para o trabalho consistente e eficaz de alfabetização que Paulo empreendeu com as elites dirigentes em alguns dos países recém-libertados. Nós somos, na verdade, corpos que falam. Nos integramos com irmãos na comunicação, tanto maior quanto permite quando há o entendimento através de uma língua falada e escrita pelo grupo. Faltou, certamente, nessas nações africanas, esse fator de integração entre as distintas etnias e entre os diferentes povos da mesma etnia. Da África se fala apenas da Sida/Aids generalizada, da extirpação do clitóris das mulheres ainda meninas, da fome endêmica, das guerras, da corrupção, enfim, da “barbárie” dos povos negros. Entretanto, nunca se relaciona algumas dessas “barbáries” com a malvadez da natureza mesma da colonização e das dificuldades que a invasão cultural provocou por mais de cinco séculos, impedindo-os dos avanços necessários na educação e, consequentemente, para o desenvolvimento global das novas nações. Uns poucos dados falam por si sós: a Guiné-Bissau chegou à independência, em 1975, com 93,7% de analfabetos e analfabetas; e, em 490 anos, de “1471 até 1961, apenas se formaram catorze guineenses com curso superior e onze no nível do ensino técnico”.1 As tradições hoje pouco aceitas ou totalmente não aceitas são frutos disso. Podemos constatar, sem dificuldade durante a leitura deste livro que muito nos convida às reflexões, através dos diálogos mantidos por Sérgio Guimarães, que, no afã e na aflição de recuperarem o “tempo perdido”, os quinhentos anos de colonização, os/as dirigentes africanos/as, estão queimando etapas dos processos endógenos de desenvolvimento como nações para entrarem no mundo que os/as explora ainda mais, o da globalização. Assim, há que haver, urgentemente, a superação dentro de cada uma dessas nações, com a ajuda não assistencialista de técnicos competentes e autenticamente políticos, tal como o foi Paulo e outros/as, à procura de resolver, solidariamente com eles e elas, os seus problemas internos. Não nos fazemos nós mesmos sem um alter ego. Alguns e algumas de fora, comprometidos, não estranhos aos sentimentos, desejos e necessidades desses povos podem e devem ajudá-los a encontrar as possibilidades da concretude das ações editandas dos sonhos possíveis nacionais para que eles, como povos, se façam parceiros iguais pelas diferenças de todos os povos e nações do mundo. Este livro, portanto, nos convence da urgência e da importância de prestarmos atenção à África como um continente que tem de se inserir como “sujeito diferente”, diante de suas enormes contradições e fragilidades, no processo de mundialização que o possa libertar como nações livres e independentes. As nações africanas não podem continuar seguindo no caminho já tão conhecido por elas do secular esvaziamento de sua criatividade, de suas inteligências, de sua imensa capacidade de resistência, de suas riquezas naturais, como vêm fazendo hoje, planetariamente, os “donos” da globalização da economia que se nutrem no neoliberalismo. Esse caminho os vem impedindo, mais do que a nós da América Latina, as suas próprias e verdadeiras libertações. A África encarna, pois, as contradições mais perversas do mundo atual marcadas pelas chagas e cicatrizes do colonialismo e pela malvadez pós-moderna da globalização. Entretanto devemos nos perguntar: elas e eles de lá devem aceitar isso como um destino divino ou do demônio? É condição dada contra a qual não se pode lutar e transformar? NÃO!, tenho certeza que diria, enfaticamente o meu marido. De dentro das fragilidades e das contradições é que podem surgir as novas relações que possibilitam estabelecer novas condições de vida, nascidas na e da radicalidade humana: A ESPERANÇA. Intrínseca à nossa natureza de seres sensíveis e pensantes, construindo-nos, ininterruptamente, fizemo-nos, então, seres capazes de projetar o futuro histórico de nossas vidas e o das nossas sociedades. A ESPERANÇA é, enfim, a capacidade possibilitada pela perene e eterna incompletude dos homens e das mulheres, pois a cada conquista surgem (e devem surgir) novos desejos, novos sonhos, nova realidade. Ela é a maior possibilidade do elo vital entre a África explorada e sofrida e a África sonhada da promissão que todos e todas do mundo — e não só os africanos e africanas — queremos, solidariamente. Nita Ana Maria Araújo Freire Doutora em Educação pela PUC/SP Cidade de São Paulo, 25 de janeiro de 2003 Nota 1 Conferir na página 179, e, na nota 11 do capítulo 1. Introdução O PORQUÊ DESTE LIVRO, ENTRE O SALÃO E A MANGA A MORTE DO PAULO ME PEGOU de calça curta. Já falei disso no final do Aprendendo com a própria história II,2 mas não custa repetir: Recebi a notícia pouco depois da meia-noite de 2 de maio de 1997, em Luanda, Angola, através da RPT — Rádio e Televisão Portuguesa. Choque? Só não terá sido certamente maior que o baque sentido por aqueles que amavam o Velho e viviam perto dele. O choque da separação: lembrei-me das inúmeras vezes que tive de lidar com essas situações, dentro e fora das salas de aula. Quem não terá sentido aquele nó na garganta, aquele aperto no peito, quando o ano se acaba e as crianças se vão? Ou quando a professora querida foi ter bebê e deixou uma substituta chata no lugar? Contra a morte não há truques. É sentir a fundo a dor inevitável ao perceber que alguém se vai, para em seguida, mais cedo ou mais tarde, aprender a manha de seguir a vida. Não foi isso que o Velho fez, apesar de quase mortalmente atingido em 1986, quando dona Elza partiu? —É um momento lento e difícil. Eu só saio disso se eu sair. Eu não posso “ser saído”, puxado por alguém. Decidir que eu saio é romper. Ficar com o morto é a tendência. Ficar com o que está vivo, esta é a decisão!3 À primeira vista, pensei que a ida do Velho tivesse derrubado a ideia do nosso próximo livro em pleno decolar. Ideia antiga, sempre adiada, tocada só de raspão no último capítulo do Dialogando com a própria história, “África, o próximo voo”: SÉRGIO: …Na próxima oportunidade que nós tivermos, apesar da distância, todas as experiências de que a gente fala devem desaguar, digamos assim, no continente africano. PAULO: Exato. SÉRGIO: O fato é que, num determinado momento, na Universidade de Lyon, já tinha avançado bastante com a minha experiência docente e com a minha formação acadêmica. […] Foi quando recebi um convite da Unesco, e fiquei sabendo que a Unesco estava interessada em pessoas que tivessem uma certa experiência no ensino da língua portuguesa, que dominassem bem o português, que estivessem trabalhando na área da educação e que estivessem interessadas em trabalhar em projetos que se abriam nas colônias portuguesas, países independentes ainda de tinta fresca. Desde 1975-76 os projetos tinham começado a se abrir. Daí então esse interesse em que eu trabalhasse em Angola. E, em 1978, vou para Luanda, mas me lembro que, nessa época, você já estava metido há bastante tempo no trabalho na Guiné, no trabalho de São Tomé… PAULO: Exato. SÉRGIO: Me lembro dessa época dos escritos de São Tomé, que você me passou, aliás. Eu acho que da próxima vez a gente pode desenvolver um pouco mais isso. Se você me permite eu ainda queria, para terminar, relembrar um pouco das visitas que eu fiz a você no Centro Mundial de Igrejas, em Genebra. Das nossas conversas, das coisas que nós gravamos.4 Ouviu o barulho? Pois foi exatamente aí que me deu o estalo de Vieira. As nossas discussões inéditas, gravadas em cassetes de qualidade chinfrim, seriam o ponto de partida. Havia as manhãs registradas em Genebra. E aquela tarde inteira passada entre alunos e professores de Lyon, em que o gravadorzinho foi lá chegando meio com atraso, mas gravou. Isso para começar. Depois foi até simples: em cada um desses países, procurar algumas das pessoas-chave da educação e… conversar. Fazer o balanço crítico do que ficou: lições aprendidas, lanterninha na mão buscando na memória. E bota um pouco a luz também para a frente, a ver se a gente enxerga algum futuro. Ou seja: ficar com o que está vivo. Em que ordem? Analfabética. Explico: resolvi seguir os passos das nossas conversas. Na época, o Paulo estava entusiasmado mesmo era com São Tomé, mas se iluminava todo ao falar de Angola. Também não disfarçava em nada sua paixão crítica pela Guiné, já então de papel passado.5 Ao fim e ao cabo, como dizem os patrícios, a ordem — nesse caso, pelo menos — pouco importa. Entrase pelo salão acadêmico de Lyon, acompanham-se os primeiros lances de um debate animado sobre o continente ali embaixo. Abandona-se depois a academia, chega-se a São Tomé e Príncipe, pequenino que só ele mesmo. E Angola é logo ali, já não se atira tanto como antes, é só chegar devagarinho. Quanto à Guiné, basta seguir a costa, rumo ao norte, senso inverso ao do colono: chega-se ao golfo da Guiné, mas não se para. Passa a Costa do Marfim, passa ao largo da Libéria, Serra Leoa nem pensar. Guiné Conacri é já vizinha, e bem-vindos à Guiné-Bissau! O que é que falta? Cabo Verde? Moçambique? Já lá vamos, dizem eles, não perdem por esperar. Entrei por uma porta e saí por outra, diria o povo, quem quiser que conte outra. Diálogo aqui, conversa ali, foi tudo feito no capricho, minha senhora, diz o garçom da minha terra. Prefere fruta? Então espero mesmo que este livrinho lhe passe — a você que está de olho aqui — o gosto de uma boa manga. Daquelas que o crioulo da Guiné chama sabidamente de mango di modja barba, e que o Paulo, quando aqui vinha, devorava feito menino dos mocambos do Recife. Bom proveito. Ou, por outra: leiam criticamente e julguem. A África ensinando a gente? Começando pelo que dizia Cabral, não o Pedro Álvares, mas o Amílcar: “Aprendam da vida, do povo, dos livros, aprendam com a experiência dos outros. Mas nunca parem de aprender.” Sérgio Guimarães Bissau, 13 de março de 2003 Notas Paulo Freire e Sérgio Guimarães, Aprendendo com a própria história II. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 148 [3a edição, São Paulo: Paz e Terra, 2011]. 2 Mere Abramovicz, “Amor e perda em tempos de vida — em dois momentos entrelaçados”, in Paulo Freire: uma bibliografia. São Paulo: Cortez, Unesco, Instituto Paulo Freire, 1996. 3 4 Paulo Freire e Sérgio Guimarães, Dialogando com a própria história, p. 149-50. Data de 1977 a primeira do Cartas à Guiné-Bissau: Registros de uma experiência em processo. São Paulo: Paz e Terra [5a edição, São Paulo: Paz e Terra, 2011]. 5 PRIMEIRA PARTE UM DEBATE DE SALÃO 1 “ESTE REAPRENDIZADO QUE A ÁFRICA ME OFERECE” ERA UMA TARDE DE FEVEREIRO, SEI O ANO — 1978 — mas não lembro o dia. A sala estava cheia. Os meus alunos de Civilização Brasilei ra vieram todos, depois de espalharem a notícia pelo campus: já na véspera, boa parte dos alunos da Universidade de Lyon II sabia que Paulo Freire estaria por ali. Conhecendo ou não, muita gente curiosa veio vê-lo. Surpreso com a enchente, preocupado por ter que conduzir o debate e traduzir simultaneamente as falas, só me lembrei de ligar o gravador quando o Paulo já ia solto ali pelo seu décimo parágrafo, cigarro na mão. Se a memória não me falhar de novo, ele havia começado pelo que mais o empapava — um dos verbos preferidos do Velho — naquele momento: a extraordinária experiência dos povos que se libertavam do império português na África, e o seu próprio apoio ao trabalho de alfabetização que acompanhava esse processo: 1. LUTA, LÍNGUAS E AMÍLCAR: “QUE LIBERDADE É ESSA?” PAULO: …Um povo sela a sua libertação na medida em que ele reconquista a sua palavra. PRIMEIRO ESTUDANTE: Podemos fazer perguntas sobre o que se passa na África? Ou isso está reservado para um outro dia? SÉRGIO: Não, vá em frente. Ah, mas há o sr. Yves Leloup, que já estava à espera. LELOUP: É sobre Angola, simplesmente. O que é que acontece por lá? PAULO: A situação de Angola eu acho profundamente complexa. Mais que as outras, na medida mesma em que em Angola não se constituiu um crioulo como língua que pudesse ser nacional, de unidade nacional. Isso coloca um problema à liderança, um problema político. Eu sempre digo: não é possível ver o problema linguístico em si mesmo, que se esgote na análise linguística. E o problema que se coloca em Angola é o de qual poderia ser, entre as diferentes línguas nacionais, aquela que devesse ser escolhida para ser a língua veicular. Isso poderia criar um problema político enorme a mais aos problemas que já há. Então a língua portuguesa está assumindo esse papel, que eu pessoalmente acho que ela não pode cumprir. Nos centros urbanos de Angola, até onde a minha experiência me permite, é possível falar português, mas nas áreas rurais, não. LELOUP: Dentro dos grandes movimentos políticos atualmente em Angola, um dominante e dois mais ou menos estabelecidos no terreno, fala-se de línguas diferentes, nas discussões militantes.6 PAULO: Eu tenho a impressão que dos três — evidentemente que eu considero apenas um,7 — os militantes de qualquer desses movimentos usarão, nesta ou naquela situação, esta ou aquela língua nacional. Quer dizer, falarão uma das línguas nacionais. É um problema difícil. SEGUNDO ESTUDANTE: Isso quer dizer automaticamente que, como disseste mesmo, “um povo é livre no momento em que adquire a consciência da sua palavra”, essa desigualdade linguística que há em Angola — ou mesmo em outros países, como Cabo Verde — dificulta de certa forma o movimento de emancipação política. Não só dificulta, mas ao mesmo tempo cria ambiguidades culturais terríveis, e na realidade não se pode nem mesmo dizer que há uma independência. Em termos estritamente políticos ainda se admite, mas em termos realmente de amplitude, de identificação, de identidade ética e cultural, não. Nesse momento atual, não se pode mesmo dizer que haja definitivamente uma liberdade. PAULO: Isso colocaria o problema de definir que liberdade é essa. Se a liberdade a que tu te referes é uma categoria metafísica ou se, pelo contrário, é algo que se está criando e recriando historicamente. Se é a segunda, eu creio que, em primeiro lugar, nunca tu és totalmente livre, mas estás sempre em processo de libertação. Nesse sentido, eu não tenho dúvida nenhuma de que esses povos estão exatamente no processo de sua libertação. Por exemplo, a luta da reconstrução nacional é a continuidade da luta inicial de libertação, em que se inclui o problema da identidade cultural. Que se busca e que não cai por decreto, nem do céu, assim… Mas tu tens razão, este é um problema sério, realmente. Esta questão toda da identidade cultural foi sempre muito bem discutida por Amílcar Cabral, por exemplo. Não era por acaso que Amílcar dizia: “a luta de libertação é um fato cultural e um fator de cultura”.8 2. A ESCOLHA DO CRIOULO E O PORTUGUÊS. E UMA EXPERIÊNCIA QUE NÃO DEU CERTO TERCEIRO ESTUDANTE: O senhor disse que o crioulo guineense não podia tornar-se por enquanto língua oficial porque lhe faltava a escrita. Se eu compreendi bem, é o que o senhor disse. Será que é necessário que haja uma escritura para que essa língua se torne língua oficial? Ainda mais que existem, por exemplo, na Eu ropa, países que escrevem a mesma escritura, mas que têm línguas oficiais, línguas nacionais diferentes. Qual é o inconveniente que haveria para a Guiné-Bissau de ter uma língua nacional escrita numa escritura romana? PAULO: Em primeiro lugar, quando eu fiz referência à ausência de escrita, respondendo a uma pergunta que foi “o que é que deve estar obstaculizando o governo, no sentido de que crioulo seja já hoje uma língua oficial, quer dizer, uma língua não só nacional, mas uma língua que mediatize a formação das gerações”, disse que possivelmente era a falta da escrita. EMÍLIO GIUSTI:9 Mas o quê será preciso para formalizar essa língua? Depende da ortografia, mas depende também de uma opção política. Vai ser uma escolha que poderá aproximar culturas: culturas do crioulo português em direção ao português ou em direção às línguas africanas atlânticas. De fato, a meu ver, há uma intersecção dos dois, porque, no crioulo português, há todos os fonemas da língua portuguesa, e, além do mais, as pré-nasais, fonemas diferentes que o português não conhece. PAULO: Vamos admitir, por exemplo, que o partido e o governo dissessem hoje: todas as disciplinas agora, da escola primária e secundária, serão veiculadas pelo crioulo. No dia seguinte, não haveria um texto sequer escrito em língua crioula! Tenho a impressão de que, às vezes, eu sou até uma espécie assim de campeão do anticolonialismo. Se eu fosse guineense e pudesse amanhã ter resposta a todos esses problemas, para que as crianças da Guiné e os jovens da Guiné aprendessem geografia, história, matemática, biologia, ciências naturais etc., com seus necessários textos em língua crioula, eu faria isso. Mas acontece que isso toma um pouco de tempo. Isso implica na formação de quadros, implica em ter dinheiro também para a impressão de todos os textos em língua crioula. E isso não se faz da noite para o dia. Agora, o que eu acho importante é a decisão política de fazer isso o mais rapidamente possível. SÉRGIO: Talvez você pudesse falar da experiência que se tentou de alfabetização em língua portuguesa, e que não deu certo. PAULO: Essa experiência eu acho que foi muito boa, na medida em que ela ensinou o óbvio, quer dizer: que não era possível fazer o ensino da língua portuguesa nas zonas rurais do país. Eu estava dizendo, na hora do almoço, que eu assisti, em diferentes oportunidades, camponeses criando palavras a partir da palavra portuguesa. E eles, no fundo, estavam criando palavras em sua língua nacional, com a ortografia portuguesa, o que demonstrou, durante um ano todo, a impossibilidade do aprendizado em língua portuguesa, uma língua que não faz parte da prática social do povo, uma língua estrangeira. EMÍLIO: Eu creio que dizer que a Guiné-Bissau é um país lusófono é um mito: o da lusofonia da Guiné-Bissau. PAULO: Sim, eu creio também. EMÍLIO: Poderíamos dizer o mesmo também em relação a outros países, como o Senegal, onde também a francofonia é menos mítica que na Guiné-Bissau, mas é também mítica… QUARTO ESTUDANTE: …como em outros países francófonos… EMÍLIO: Aí está. E um conceito político, evidentemente. PAULO: Exato, isso é uma questão de interesse político, não é? 3. MOÇAMBIQUE? “NÃO FUI CONVIDADO.” AMÉRICA LATINA? “UM SER DO MUNDO” SÉRGIO: É. Havia alguém aí que queria falar. É você que queria sair da África? QUINTA ESTUDANTE: Gostaria de fazer três perguntas. A primeira, a propósito do que o senhor disse: eu observei que o senhor não falou absolutamente nada sobre Moçambique. PAULO: Ah, sim. QUINTA ESTUDANTE: A segunda: para mim, o senhor estava começando a fazer algo de extraordinário na América do Sul. Então eu gostaria de saber: agora que o senhor não está mais lá, se isso continua, e com quem? Na surdina? A terceira pergunta: o senhor está em Genebra, numa cidade onde há muitos estrangeiros, imigrantes de muitos países. E então, o problema da alfabetização se põe, tanto da língua falada quanto da língua escrita. O senhor se interessa por isso? PAULO: Sim, muito boa! Com relação à primeira pergunta, Moçambique. Eu me sinto tão solidário por Moçambique quanto por Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé. Acontece apenas que não fui a Moçambique. E não fui a Moçambique porque eu acho que não devo tomar um avião, descer em Maputo, e dizer: “Cheguei!”. Não fui convidado. Agora, o fato de dizer “não fui convidado” não significa que eu me sinta discriminado por Moçambique, de maneira nenhuma. Mas como eu não posso ir a Moçambique como turista — a minha chegada é um ato político — eu não devo forçar a barra, como diria em brasileiro, e me introduzir. Com relação à América Latina, eu te diria que uma das coisas que o exílio me ensinou, e não só a mim, mas a muitos brasileiros, foi a necessidade de superarmos o nosso paroquialismo. Por isso, por exemplo, eu me sinto profundamente latino-americano, mas, necessariamente, para ser latinoamericano, tenho primeiro que ser alguma coisa dentro do contexto geral da América Latina. Essa “qualquer coisa” é: brasileiro. Para que eu pudesse me sentir latino-americano; para que, em me sentindo latino-americano, eu pudesse me sentir depois mundial, um ser do mundo, era preciso que eu tivesse sobretudo, em primeiro lugar, um local. Esse local é o Recife, com cuja memória eu ando pelo mundo. Carrego comigo as marcas da minha cidade. Até, num parênteses, eu diria a vocês: se eu não cuidasse muito bem das marcas que o meu local me deu, a minha andarilhagem hoje seria um vagar sem destino. Evidentemente que a minha preocupação com a América Latina continua. Agora, acontece também que, de uns tempos para cá, os espaços da América Latina se estreitaram demasiado para mim, até para visitar. Há trabalhos na América Latina não necessariamente baseados no que eu fiz… SEXTA ESTUDANTE: O senhor deixou uma equipe por lá? PAULO: Várias equipes. EMÍLIO: Essas equipes trabalham ainda com o mesmo objetivo? PAULO: Sim, eu creio. Contudo, eu tenho impressão de que esse é um tema que sobrepassa um salão acadêmico. 4. O MOBRAL E A CONSCIENTIZAÇÃO: “RENUNCIO A USAR ESSA PALAVRA” EMÍLIO: Desculpe-me, mas eu ouvi dizer que o seu método foi, digamos, recuperado pelo Mobral. Isso quer dizer que eles utilizaram o lado formal do seu método, mas com uma outra ideologia. SÉRGIO: Uma nota do tradutor: o Emílio fala do Mobral, Movimento Brasileiro de Alfabetização. É um movimento de alfabetização de massas que foi posto em marcha pelo governo — e que continua em ação — no Brasil, depois do golpe de estado de 1964. PAULO: Eu nunca li nenhum documento oficial do Mobral dizendo isso. Mas até te diria que não apenas o Mobral, mas muitos outros mobrais, nos chamados Primeiro e Terceiro Mundos, tentaram recuperar o método. Eu diria algo mais: recuperar mais que o método, em cuja existência eu não creio muito (ri), mas recuperar a própria visão político-pedagógica. Uma tentativa de recuperação que ultrapassa o domínio puro do método. EMÍLIO: Qual é a filosofia que você põe na palavra “política” aí, é isso que eu queria saber. Se o Mobral recuperou o método, mesmo se ele deu uma outra visão pedagógica ou política, o conteúdo dessa visão é que me interessa. É a mesma de antes de 1964? PAULO: Não, não, de maneira nenhuma. Mas voltando à tentativa de explicação desses esforços recuperadores: por exemplo, no campo das relações educador-educando, com relação ao conceito de diálogo. Qualquer desses dois aspectos não pode ser analisado fora da visão política com a qual eu os encaro. Constantemente tenho visto ensaios críticos do chamado Primeiro Mundo — Europa, Estados Unidos, Canadá —, teses em que eu sou analisado como um educador liberal, que defende a superficialidade do diálogo; em que sou visto como educador antiautoritário apenas, mas em que se escondem, ou se tenta esconder, certos aspectos fundamentais do meu approach. É por essa razão, por exemplo, que há cinco ou seis anos, não uso, nem oralmente nem escrevendo, a palavra conscientização. Deixei de usar. Eu não renuncio ao processo ao qual a palavra dá nome, mas renuncio a usar essa palavra, porque foi de tal maneira recuperada que era preciso parar com o uso dela. Mas, para terminar, a impressão que tenho é de que dificilmente qualquer um de nós pode deixar de sofrer a experiência da recuperação, a não ser que seja silencioso, que não fale, que não aja, que não diga nada, que não faça nada. E aí já está recuperado. A questão que se coloca é saber até onde é que cada um de nós está desperto para a força da recuperação, e se pode resistir, se tem força de resistir a um outro aspecto da recuperação, que é exatamente o da acomodação. Quando ela sobretudo se expressa através de tentações para uma vida gostosa. (risos) 5. ALFABETIZAÇÃO FUNCIONAL: “CARÁTER POLÍTICO? O.K.” SÉTIMO ESTUDANTE: O senhor Paulo é conselheiro da Unesco. O senhor partilha a mesma concepção da alfabetização funcional? PAULO: Em primeiro lugar, esclareço melhor: trabalhei no Chile, durante meses, como consultor da Unesco. À pergunta que faz eu diria sim e não. Se a chamada alfabetização funcional, ao acrescentar à aprendizagem da escrita e da leitura uma certa capacitação técnica ligada à produção; mais: se se junta a essa capacitação para produzir e para ler uma compreensão crítica do próprio processo produtivo; portanto, se se dá à alfabetização funcional um caráter político de classe — e no caso meu aqui seria da classe dominada, ou da classe libertando-se —, o.k., je suis d’accord. Mas, se a funcionalidade opera no sentido de manter a desfuncionalidade de uma sociedade injusta, eu sou contra. SÉTIMO ESTUDANTE: Em função justamente dessa funcionalidade e desfuncionalidade, retornando portanto ao caso da África: a imposição de uma língua como valor veicular de toda orientação cultural, em detrimento das outras línguas que alicerçam realmente as bases da tradição e da cultura das etnias que lá estão, não seria, de certa forma, uma imposição para a desfuncionalidade de toda essa estrutura tradicional, que se identifica com a própria origem linguística de cada etnia na África? PAULO: Bem, a nossa intenção ao trabalhar na África não era a de já chegar levando conosco, em nossas valises de mão, o nosso diagnóstico da realidade. Pelo contrário, o nosso papel era chegar lá e procurar compreender tanto quanto possível a realidade nova, com os nacionais, e com eles estudar a programação do trabalho. Isto implicava em que os nossos encontros, nesses países, não pudessem cingir-se apenas às equipes do Ministério da Educação, mas também encontros com os Ministérios de Saúde, de Planificação, de Agricultura, de Cultura, que nos dessem então uma visão global dos projetos de desenvolvimento do país, para que se pudesse, com os nacionais, tentar a inserção do programa de alfabetização na reconstrução nacional. Os problemas, ainda que sejam os mesmos, variam de um para outro desses países. Um problema fundamental é exatamente o problema linguístico de que falamos agora no almoço, conversando com o Emílio. Em países como, por exemplo, Angola, Guiné, nos quinhentos anos de presença colonial, colonialista, as grandes massas campesinas não foram tocadas sequer pela língua portuguesa! Isso necessariamente coloca a todos esses países a questão de uma política cultural, dentro da qual se situa a política linguística. Esse é um problema que se coloca de um modo geral à África e cuja solução implica numa decisão política. Numa perspectiva, por exemplo, neocolonialista, a liderança nacional necessariamente se filia à língua do antigo colonizador, sem que as massas populares sejam tocadas por essa língua. No fundo, se assiste a uma divisão social da sociedade entre dois grupos: um grupo minoritário de uma pequena burguesia nacional que comanda a língua do colonizador, e as grandes massas que não têm acesso à língua do colonizador e que, portanto, são discriminadas na sua própria formação pedagógica. Esta não é, fora de dúvida, a opção da liderança desses países com os quais eu trabalho. Daí que haja neles todos — em uns mais, em outros, ainda, menos — uma preocupação com uma política cultural, incluindo uma política linguística. 6. DA BELEZA DA LÍNGUA CRIOULA À “EXCELÊNCIA” DO COLONIALISMO PAULO: No caso da Guiné-Bissau, se constituiu através dos tempos a língua crioula — que eu particularmente acho muito bonita —, que corta o país todo e que teve, na guerra de libertação, um fator extraordinário da sua difusão, como língua de comunicação entre os diversos grupos étnicos. Creio que a questão que se coloca no caso da Guiné, no momento, não é tanto mais a de pretender alfabetizar as grandes massas populares em português, mas, pelo contrário, de disciplinar escritamente a língua crioula, ao mesmo tempo que enfatizando, respeitando e desenvolvendo as demais línguas nacionais, para que, num futuro próximo, se ponha a língua portuguesa no seu devido lugar, quer dizer, possivelmente, como língua estrangeira, uma língua que ocupe um bom lugar. Eu gostaria, porém, de fazer um parênteses, para dizer que este é o meu ponto de vista, mas que eu não tenho autoridade nenhuma para falar em nome do governo da Guiné-Bissau. Mas também poderia adiantar que o processo marcha nessa direção. Linguistas do Instituto de Linguística de Dakar, em associação com esta universidade,10 com o senhor Emílio e com a sua equipe, que estão em contato com o Centro de Linguística de Dakar, estão começando um trabalho de que — tudo indica — o governo da Guiné-Bissau se servirá para o desenvolvimento da resposta a este problema cultural e linguístico. No caso de São Tomé e Príncipe, que me parece que é muito semelhante ao caso de Cabo Verde — eu não sou linguista, mas tenho a impressão de que posso dizer isso —, se constata um bilinguismo crioulo-português, o que facilita a aprendizagem da língua portuguesa. O que não significa, porém, no caso de São Tomé e de Cabo Verde, que não se tenha que ter uma grande preocupação com a estrutura semântica — como dizia hoje o Emílio —, que, tendo que ver, sobretudo por causa do bilinguismo, com o português, tem que ver também consigo mesma, quer dizer, com a própria estrutura do crioulo. EMÍLIO: Uma estrutura semântica que é eminentemente africana. PAULO: Tenho a impressão de que bastava mostrar este problema para já chamar a atenção em torno das dificuldades e da seriedade com que se deve enfrentar uma questão como essa. Salientarei apenas um problema a mais, no caso, porque creio que com as perguntas a gente enriquece mais. Um outro grande problema que se coloca a esses países, e que tem que ver com a nossa preocupação no campo da alfabetização, é a questão da superação da herança colonial, no sentido da criação de um novo sistema educacional. Esses países só não partem do zero, em certos casos — o caso da Guiné, por exemplo, ou o caso de São Tomé —, porque partem de suas tradições culturais e históricas. Mas materialmente partem quase do zero. Basta que eu diga a vocês, por exemplo, que, no ano de 1976, o Ministério da Educação da Guiné-Bissau, com um esforço tremendo, capacitou trinta professores de ensino básico, primário, e ao fazer isto superou os colonizadores em quinhentos anos. Esse dado, por si mesmo, fala da excelência do colonialismo! EMÍLIO: Parece-me que, em quinhentos anos de colonialismo, houve onze quadros formados na Guiné-Bissau.11 7. UMA CONSCIÊNCIA POLÍTICA CLARA, “FORA DA QUAL NÃO HÁ CAMINHO” PAULO: Quer dizer: a transformação de um sistema educacional elitista, reacionário, verbalista, para um tipo de educação em que a produção esteja casada com a educação, em que se busque pouco a pouco superar a dicotomia trabalho manual/trabalho intelectual, é uma coisa que a gente pode imaginar quão difícil é! Quanto mais eu me meto no esforço de reconstrução nacional desses países, quanto mais eu me molho nas águas da reconstrução, tanto mais eu descubro o óbvio: quão difícil é realmente reconstruir uma sociedade! Criar uma sociedade nova, que vai gerar um homem novo e uma mulher nova! E aí a gente percebe, na verdade, como isso não tem nada que ver com mecanicismos, que não tem nada que ver com espontaneísmos, nem tampouco com voluntarismo. Mas, pelo contrário, isso demanda uma consciência política clara, que se vai clarificando mais na práxis política, fora da qual não há caminho, eu creio, não há solução. Quer dizer: como desenvolver um sistema educacional que estimule a criatividade, a inventividade, a percepção crítica do momento mesmo em que se vive, o sentido da participação, a superação dos interesses individuais em função dos interesses coletivos? Como desenvolver toda uma nova pedagogia se as próprias estruturas da sociedade não foram total e radicalmente transformadas ainda? Mas exatamente porque isso não é mecânico, mas sim dialético, em certos casos a educação anuncia o mundo a transformar-se, mas é preciso que esse mundo se transforme realmente para que o anúncio que a educação faz não caia no vazio. Isso tudo exige rigor de estudo, capacitação de quadros, o desenvolvimento econômico e social do país, tudo a um só tempo! Não é fácil. Eu tenho impressão de que agora, depois dessa introdução, que é apenas para começar uma conversa… eu repito, não vim aqui fazer uma conferência sobre a experiência de que participo, mas conversar… Eu acho que agora basta, e é possível que haja alguma curiosidade em torno de algum aspecto de que não falei e de que posso falar, respondendo. E que a discussão não seja entre eles e mim, mas entre nós. 8. A LÍNGUA DOS COLONIZADOS: UM “DIALETO FEIO E POBRE” OITAVO ESTUDANTE: Eu gostaria de perguntar ao sr. Freire o que é que freia atualmente o governo da Guiné-Bissau em adotar a língua crioula como língua nacional. SÉRGIO: Como língua oficial, você quer dizer. OITAVO ESTUDANTE: É a mesma coisa, não? SÉRGIO: Não é, não, porque o crioulo já é uma língua nacional. OITAVO ESTUDANTE: Está bem, então: língua oficial. PAULO: Na Guiné-Bissau, se considera o crioulo como língua nacional — o que não significa que as outras também não o sejam — e o português como língua oficial. Evidentemente que isso cria um grande problema também. Na hora do almoço, eu comentava com Emílio, com Sérgio e com a moça historiadora este fato, por exemplo. É que a língua portuguesa, considerada língua oficial, tem, porém, um papel que é de língua nacional. É exatamente o papel que está tendo ainda, e que vai ter ainda a língua portuguesa, de mediadora da formação geral da infância e da juventude. Na medida em que não só se aprende o português, mas por meio dele a geografia, a história, a política, a biologia etc., etc., a língua portuguesa passou a assumir aí então, de fato, o papel de uma língua nacional. SÉRGIO: Chega assim, finalmente, como língua, a penetrar no país. PAULO: Eu não diria no país, mas num certo escalão social do país. E aí é que eu acho que é mais perigoso. A solução se dará no momento em que a língua crioula escrita passe a não apenas ser a língua nacional, mas a língua que vai ser oficial também, ao mediar a formação global, cultural do povo. A pergunta era: o que é que impede o governo e o partido a não estar fazendo isso? Eu tenho a impressão de que possivelmente o fundamental impedimento é a inexistência da língua escrita. Evidentemente que essa tarefa não foi desenvolvida pelo colonizador. Durante a época colonial, linguistas por si mesmos estudaram algo da estrutura do crioulo. Do ponto de vista do colonizador, é óbvio, os colonizados não tinham história antes de sua chegada à terra dos colonizados. Nesse sentido, os colonizados deveriam agradecer aos colonizadores o fato de eles terem posto os colonizados na história. Da mesma forma, os colonizados não tinham cultura, antes da chegada dos colonizadores. A língua dos colonizados sempre foi chamada de dialeto, e dialeto feio e pobre. Só a língua do colonizador é uma língua que tem possibilidades históricas, que tem flexibilidade para expressar a ciência, a técnica e as artes. A arte do colonizado é folclore, a arte do colonizador é cultura. (risos) Tem que ser assim. Isso é ideologia, e não ciência. Então, um dos esforços desses governos, hoje, é superar esse passado, de que eles participam também. Há uma certa ambiguidade. É por isso que o presidente Aristides Pereira, de Cabo Verde, na mesma linha de pensamento de Amílcar Cabral, insiste tanto no que ele chama “a descolonização das mentes”. 9. O DESENVOLVIMENTO DO CRIOULO: “E AS OUTRAS LÍNGUAS NACIONAIS?” MME SIMONE SAILLARD:12 Eu gostaria de fazer uma pergunta que é quase simétrica, ou seja, na Guiné-Bissau, particularmente, a relação entre o crioulo português e os dezoito dialetos. Nós compreendemos muito bem que a colonização implicou um imperialismo linguístico, que é o do português. Minha pergunta é totalmente ingênua e ignorante. O senhor acaba de dizer que o conhecimento do crioulo português chegou às massas pela guerra de libertação nacional. Consequentemente, a partir daí, eu imagino que a escolha política de que o senhor falava é uma escolha política que implica uma escolha de independência cultural, mental etc., e que isso implica a escolha de uma língua que possa ser veicular. No fundo, esse é o problema. Então, parece — de acordo com o que o senhor diz, e eu acredito plenamente, ainda mais que eu desconheço totalmente a situação linguística da Guiné-Bissau — que o crioulo português é efetivamente uma língua ao mesmo tempo suficientemente independente, talvez com uma certa mestiçagem, que corresponderia à ambiguidade da situação mental, intelectual, cultural do país, e que, ao mesmo tempo, seja uma língua legitimada, que seja legitimável, pelo fato de ela ter envolvido uma proporção suficiente da população. A minha pergunta é totalmente ingênua (risos), e eu digo isso porque é evidente que, para mim também, é muito mais simpático que o imperialismo linguístico seja um imperialismo de recuperação nacional, mas, bem, não é que isso seja evidente para todos! Quero dizer: será que isso não implica um desaparecimento das outras línguas nacionais também? O senhor disse há pouco: “desenvolvimento do crioulo no respeito das outras línguas nacionais”. Isso implica o quê? PAULO: Eu vou responder a uma parte apenas e pedir ao professor Emílio, que conhece muito melhor do que eu, que responda à outra. Eu apenas diria o seguinte: até onde eu percebo como se vem desenvolvendo a política cultural do país, há uma forte preocupação… quando digo “no respeito às demais línguas nacionais”, estou querendo dizer “no estímulo ao desenvolvimento das demais línguas nacionais”, apresentando-se, porém, o crioulo como a língua veicular. EMÍLIO: Há dezoito línguas, para além do crioulo, que não se compreendem entre elas; o crioulo faz a ligação entre as diferentes etnias existentes na GuinéBissau. Vejam então o problema linguístico colocado por essas dezoito línguas: seria preciso escolher uma entre as dezoito, mas a questão não se põe nesses termos, porque já há uma língua nacional praticada por todas as etnias, que é o crioulo, que aliás é uma forma africana, estrutural, semanticamente africana, com um léxico galego-português, e não somente português. É por isso que há muitos linguistas que falam de certas influências do espanhol. Não se trata de espanhol, mas do galego. Portanto, o problema do desenvolvimento do crioulo como língua nacional e oficial não excluio desenvolvimento e mesmo a descrição das outras línguas autóctones. LELOUP: Em Angola, não há apenas dezoito dialetos, dezoito línguas… EMÍLIO: É preciso falar de línguas, porque não são dialetos. Lá, trata-se de uma questão política. 10. QUAL MÉTODO, PARA UM PAÍS COM 62 LÍNGUAS? LELOUP: Quero falar sobre a questão do método a empregar num país do Terceiro Mundo que tenha 62 dialetos. Por que eu digo isso? Porque eu sempre desejei que houvesse uma língua nacional. Sabendo que o sr. Freire é um especialista nessa matéria e tendo lido vários dos seus livros, eu gostaria que ele dissesse qual método ele preconiza para um país com 62 dialetos, digo, línguas? PAULO: Lamentavelmente eu não tenho resposta a essa pergunta, nem creio que ninguém a tenha hoje, nesta sala. EMÍLIO: Essa situação nos ultrapassa, porque a divisão política das terras foi feita contra a divisão natural, que era uma divisão de etnias. Cada etnia tinha a sua língua. É esse o problema que os linguistas não poderão resolver. NONO ESTUDANTE: Tendo em vista o fato de que há uma tendência de se ir para a frente, e de se ter consciência dos problemas que temos, será que é sempre útil seguir sempre o colonizador? PAULO: A escolha de uma certa língua como língua veicular, que não respeitasse as demais outras línguas que fazem parte de certos universos culturais e, portanto, de certas identidades culturais, seria uma imposição, de que resultaria um arrebentar com a própria unidade nacional. Aí estaria exatamente o oposto da política que se desenha no caso da Guiné-Bissau, por exemplo. O crioulo não é assim uma categoria abstrata, no universo cultural da GuinéBissau. O Emílio dizia antes, por exemplo, que o crioulo, na verdade, corta, passa por todos os grupos étnicos e funciona como uma língua veicular. Por isso mesmo é que é assumido por cada um desses grupos étnicos como língua também. EMÍLIO: É geralmente a primeira língua. As pessoas primeiro falam o crioulo, para depois falar a língua da etnia à qual elas pertencem. Na maior parte dos casos é assim. Nos casos restantes, elas têm uma primeira língua que é a língua da etnia delas e, como segunda língua, o crioulo português. É a constatação que fiz por meio de pesquisa. DÉCIMO ESTUDANTE: Eu sei, mas como a tradição cultural é transmitida oralmente, no momento em que uma etnia tem o seu próprio padrão de viver, creio que a língua da etnia é a primeira a ser colocada para o grupo, para a educação, mesmo oral. EMÍLIO: É preciso compreender que o crioulo tem uma estrutura africana. Portanto a visão do mundo — ontológica — é africana. Em todas essas etnias, mesmo se têm línguas diferentes, a visão cultural é mais ou menos a mesma. Elas poderiam funcionar como as línguas neolatinas, onde se tem uma visão global comum e homogênea da maior parte dos fenômenos que nos cercam, aqui na Europa, de acordo? Na maior parte das etnias, atualmente, na Guiné-Bissau, desde a infância, o crioulo começa a tornar-se a língua materna. Digo bem: começa a tornar-se. Eu poderia citar três ou quatro etnias que têm já o crioulo como língua materna. Eles falam a sua língua de origem em situações mais ou menos marcadas, durante as cerimônias etc. Mas depende também da situação geográfica. No caso das línguas que estão muito mais ao norte da Guiné-Bissau, a primeira língua é ainda a da etnia. Mas no caso das línguas que estão mais ao sul, a primeira língua já é o crioulo português. 11. OPÇÃO: ENTRE A ALFABETIZAÇÃO NA EUROPA E O “REAPRENDIZADO QUE A ÁFRICA ME OFERECE” SÉRGIO: Antes de pormos mais lenha na fogueira: há uma pergunta a que você não respondeu, Paulo. É a questão sobre o fato de você estar em Genebra e o problema da alfabetização dos estrangeiros. PAULO: Eu não te diria que tenho trabalhado sistematicamente nisso. Mas, nesses anos de vida em Genebra, tenho tido contatos, ora em Genebra, ora em Paris, ora em certas cidades alemãs, com grupos que trabalham com trabalhadores imigrantes em alfabetização. Mas sem nenhuma inserção maior. É que, no fundo, sobretudo quando a gente chega à idade em que eu estou hoje, a questão das opções, a questão de uma entrega maior se coloca. No momento, por exemplo, me é absolutamente importante, fundamental, este reaprendizado que a África me oferece. Eu não tenho muito tempo, o meu limite existencial lamentavelmente começa a dizer: “Olha, Paulo, cuidado!” Então, entre ficar tocando uma coisinha aqui, tocando uma coisinha lá, e passar a me dedicar mais rigorosamente a um certo tipo de estudo, eu tenho que optar pela coisa mais importante. Por exemplo, a minha vinda aqui hoje teve que ser muito medida e pesada, já há muito tempo, quando o Sérgio me fazia as primeiras tentações. Não é porque primeiro eu assumisse uma atitude a priori de desinteresse por vocês, não. Mas é pelo seguinte: ao vir aqui, significa que saí de casa, fui à estação, comprei a passagem, tomei um trem às nove horas, cheguei aqui às onze, e vou voltar de noite. É importante, isso. Mas acontece que, se eu fizesse isso constantemente, se eu começasse a aceitar convites de outros grupos universitários na Europa para fazer isso uma vez por semana, o que seria do meu trabalho, então, na África, do que estou estudando e preparando, em função do trabalho de lá? E se você depois mede o mínimo que pode ficar de um encontro como este com um máximo que pode resultar de um trabalho sistematizado, de uma experiência acompanhada, não há dúvida nenhuma de que resta mais lá. Claro, aqui também, na Universidade de Lyon, havia um ponto. Em primeiro lugar, me interessou muitíssimo o tipo de trabalho que Sérgio faz aqui. Quando fui informado do que ele faz, me interessou, e achei que era ruim eu não vir. Em segundo lugar, por meio dele eu descobri o Emílio, que é um homem que está fazendo um tipo de estudo que interessa imensamente à África. Eu tenho que voltar até aqui outras vezes para conversar com ele. Por isso, gostaria de explicar a vocês, o meu problema não é o do desinteresse por um grupo. Eu não sou um homem show. É por essa razão também, por exemplo, que deixei a Universidade de Genebra, por causa da África. Por causa da África eu rejeitei até hoje uma série de convites que recebi, e que continuo recebendo, de universidades não europeias — europeias, umas duas somente —, mas norte-americanas e canadenses, para ficar lá com eles, em paz. Eu prefiro ficar na minha luta pela África. 12. EXPLICANDO MELHOR O QUE SIGNIFICA “FALHAR” DÉCIMO PRIMEIRO ESTUDANTE: O senhor disse há pouco que realizou uma experiência de alfabetização no meio rural na Guiné-Bissau, e que essa experiência fracassou. Então eu queria saber, nesse contexto, o que é que o senhor prevê para o caso de Angola, e certamente para outros países africanos, onde se põe mais ou menos o mesmo problema. E, em seguida, uma segunda pergunta: o senhor disse também que o governo da Guiné-Bissau atribui uma grande importância à preservação das línguas étnicas. Qual é então a importância que há — perante essa língua nacional nascente, que é o crioulo — de conservar essas línguas, na medida em que, para a maior parte dos dirigentes africanos, há um princípio maior, que é levado em consideração: a unidade nacional. Ora, essa unidade nacional passa, em princípio, por certas considerações como, por exemplo, uma língua nacional. Eu creio mesmo que, quando um país chega à sua independência, na África, se fosse possível, se dependesse do poder dos dirigentes africanos, a primeira coisa que eles fariam, com uma varinha mágica, seria criar uma língua nacional. Eu me pergunto, portanto, se a Guiné-Bissau — que tem a sorte de ter uma língua nacional, uma língua que se forma e que certamente se tornará uma língua oficial — se preocupa em conservar línguas étnicas, qual é o interesse que haverá nisso, enquanto em Angola se põe efetivamente o problema pelo fato de os dirigentes não poderem falar a todas as populações do país numa língua nacional, o que é uma desvantagem maior no plano econômico, político e mesmo social. PAULO: Bem, quanto à primeira pergunta: tenho impressão de que seria necessário explicar um pouco melhor o que significa “falhar”. As experiências feitas nas áreas rurais com a língua portuguesa demonstraram a inviabilidade do ensino da língua portuguesa, o que eu creio que esteja acelerando a tomada de decisão política com relação à língua. Segundo: as experiências revelaram também que nem sempre o fundamental, num trabalho de educação popular, é ensinar a ler e a escrever palavras, mas o fundamental é “ler”, “reler” e “reescrever”, com aspas, a realidade. Isto é, desenvolver uma compreensão crítica do próprio processo histórico, político, cultural, econômico e social em que as massas estão inseridas. Eu diria então que, em qualquer hipótese em que haja um processo de alfabetização, a leitura da realidade se impõe, se a opção política é liberadora. Em certos casos, a leitura da realidade se impõe, e é possível, mas não a leitura da palavra. Pelo menos em um período, não? Eu acho que essa constatação, que poderia ter sido afirmada antes em nível teórico, no caso da Guiné e de outras áreas africanas, pode-se afirmar hoje a partir da própria prática. Mas agora peço mil perdões a vocês: são quinze para as cinco, começo a cansar a cabeça, e a me sentir incapaz até de formular, de pensar. Então, peço desculpa por propor a vocês que paremos aqui e lhes mando um grande abraço de agradecimento pela paciência. Muito obrigado. (aplausos) Notas O professor Leloup refere-se certamente ao MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola), à Unita (União Nacional para a Independência Total de Angola) e à FNLA (Frente Nacional para a Libertação de Angola). 6 7 O MPLA, sem dúvida alguma. Amílcar Cabral discute essa questão em pelo menos um texto, escrito para uma reunião sobre “As noções de raça, de identidade e de dignidade”, promovida pela Unesco em Paris, em julho de 1972. Nesse artigo de 47 parágrafos, intitulado “O papel da cultura na luta pela independência”, ele afirma que “a dinâmica da luta exige a prática da democracia, da crítica e da autocrítica, a crescente participação das populações na gestão de sua própria vida, a alfabetização, a criação de escolas e serviços sanitários, a formação de ‘quadros’ extraídos dos meios camponeses e operários, e outras tantas realizações que implicam em grande aceleração do processo cultural da sociedade. Tudo isso torna claro que a luta pela libertação não é apenas um fato cultural mas também um fator de cultura”. In Amílcar Cabral, Guiné-Bissau: Nação africana forjada na luta. Lisboa: Publicações Nova Aurora, 1974, p. 136-7 8 Linguista brasileiro, professor e pesquisador na Unidade de Pesquisa e Ensino de Letras e Civilizações do Mundo Mediterrâneo da Universidade de Lyon II. 9 10 Paulo se refere à Universidade de Lyon II. Luiza Teotônio Pereira e Luís Motta apresentam dados precisos a respeito: “[…] O PAIGC, tendo em conta as exigências da reconstrução nacional e não obstante as condições de luta armada que obrigava a dedicar muitos jovens à preparação militar, cuidou particularmente da formação de quadros em nível médio e superior. Para isso contou com o apoio de países amigos, de tal maneira que, durante os anos de luta, um número muito maior de guineenses atingiu os cursos superiores, em comparação com o período da ocupação portuguesa. […] Em dez anos, de 1963 a 1973, foram formados os seguintes quadros do PAIGC: 36 com curso superior, 46 com curso técnico médio, 241 com cursos profissionais e de especialização, e 174 quadros políticos e sindicais. Em contrapartida, desde 1471 até 1961, apenas se formaram 14 guineenses com curso superior e 11 ao nível do ensino técnico.” In Guiné-Bissau: Três anos de independência. Lisboa: Edição CIDA-C, coleção “África em Luta”, 1976, p. 106-7. Ver também, mais adiante, no capítulo 8 (p. 179), “A herança e a escola colonial: ‘Pouca gente tinha acesso”’ 11 Professora de várias disciplinas ligadas à língua espanhola e então diretora do Departamento de Línguas e Civilizações do Mundo Mediterrâneo, da Universidade de Lyon II. Nesse departamento trabalhávamos tanto Emílio Giusti quanto eu próprio. 12 SEGUNDA PARTE SÃO TOMÉ E PRÌNCIPE 2 “PRATICAR PARA APRENDER”: CAMINHOS DE SÃO TOMÉ 1. UM LIVRINHO SIMPLES, “MAS NÃO SIMPLISTA” SÉRGIO: ATUALMENTE VOCÊ está trabalhando no quê? PAULO: Vou abrir um pouquinho esta janela para a gente diminuir a fumaça (estávamos os dois fumando na sala de Paulo, no Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, inverno de 1978). Atualmente, como tu sabes, eu estou muito engajado com essa atividade na África, atividade na qual me encontro mesmo quando não estou lá, quando não viajo para um desses países. Aí, eu continuo trabalhando aqui sobre as atividades lá. No momento, por exemplo, o que me preocupa enormemente, junto com as equipes nacionais de São Tomé e Príncipe, é a criação de materiais, de textos, de pequenos livros, com os quais se possa dar suporte ao processo de alfabetização e de pós-alfabetização no país. Então estou muito dedicado à criação desses materiais, ora com eles lá — onde vou quando eu faço as minhas visitas —, ora aqui. Mas evidentemente que, quando eu preparo um texto qualquer aqui a ser usado lá, eu reproduzo, faço várias cópias e mando desde ao presidente da República até à comissão que trabalha comigo. E o presidente é um sujeito formidável. Além de um homem muito culto, no bom sentido dessa palavra, ele é um sujeito muito sério, muito trabalhador. Então ele lê mesmo o texto que eu mando, para dar o seu parecer, como político, como presidente da República, porque eu não poderia imprimir nem uma página aqui sem o sim do governo. Recentemente, no fim do ano passado — quando estive em Lyon, eu até te falei nisso —, escrevi um livrinho que será o primeiro livro de textos para os que dominaram a parte primeira da alfabetização, a primeira fase. Esse é o primeiro livro de texto, que se chama Segundo caderno de cultura popular — textos para ler e discutir como introdução à gramática, em que estudo as categorias gramaticais, apenas, começando pelo verbo. Os textos cobrem assim uma temática bem ampla, escritos numa linguagem tanto quanto penso muito acessível. Simples, mas não simplista. Uma das preocupações ao escrever esse livrinho foi não fazer concessões simplificadoras da linguagem e na linguagem, porque eu estou convencido de que discutir uma temática com a massa popular em termos simplistas é um sinal do elitismo de quem faz isso. Para mim, na medida em que digo: “Não, tem que ser simplificado, ao me comunicar com as massas populares, porque não acredito que elas sejam capazes de me entender, que elas sejam capazes de compreender um tema complexo, seriamente. E se elas não são, é porque eu sou capaz. E eu sou capaz por quê? Porque eu tenho um curso superior, universitário, chamado superior! Então, no fundo, eu sou um elitista, um paternalista que pretende possuir uma verdade e de noite distribuir, num gesto de condescendência, a essas massas, mas em linguagem simplista.”. Eu não faço isso. Então escrevi os textos todos do livro — repito, de forma simples, mas não simplista. Os textos exigem do leitor uma disciplina de trabalho. E não é por coincidência, por exemplo, que o primeiro texto desse livro seja sobre o ato de estudar.13 Eu começo com isso. Eu usei sempre a proposição de temas — ou quase sempre — contando história. 2. A HISTÓRIA DE PEDRO E ANTÔNIO: EVIDÊNCIA E MISTÉRIO DA PARÁBOLA PAULO: Então conto uma pequena história de Pedro e Antônio, que estavam numa caminhonete, transportando cápsulas de cacau, que tinham sido já quebradas, para o secador do cacau, para a área onde eles vão secar o cacau. Foi o que vi lá em São Tomé. E digo que havia chovido muito na noite anterior e que o terreno estava enlameado, muita poça de lama. E que, em certa altura, Pedro e Antônio se defrontaram com um lamaçal de uns dois metros de extensão. Então eles pararam a caminhonete, desceram, olharam silenciosamente o lamaçal e depois os dois atravessaram o lamaçal, protegidos com as suas botas de cano alto — que eu vi também lá —, para se ter uma ideia da espessura da lama. Depois voltaram, discutiram um pouco e resolveram apanhar pedras e galhos secos de árvore, com os quais eles forraram o leito do lamaçal, dando ao lamaçal uma certa consistência, suficiente para que as rodas passassem por cima. E atravessaram. Então conto essa história e digo: Pedro e Antônio estudaram. Não se estuda somente na escola. SÉRGIO: Isso lembra muito a técnica da parábola. PAULO: Exato! SÉRGIO: Em que você acha que essa atitude tua se parece com uma atitude evangélica, num sentido extremamente pedagógico, desvinculado de uma doutrinação proselitista? Em que medida você faz essa associação? PAULO: Exato! Eu te colocaria agora o problema ao revés, ao contrário, e te diria que, no uso das parábolas, tomemos assim, o velho Cristo expressou nele, para mim, uma profunda intuição do sentido, da força cultural e pedagógica das parábolas. Quer dizer: a partir de uma parábola, que expressava uma determinada atmosfera cultural, que tocava a prática social do povo, era possível ir mais além. Nesse sentido, as parábolas são eminentemente problematizantes e criticizadoras. Vai depender aí de como você aproveita, de um lado, a evidência da parábola e, de outro, o mistério dela. Se você fica apenas ao nível da evidência, você pode domesticar. Mas se você faz a dialética entre a evidência, o óbvio da parábola e o mistério dela, você dá o salto. Eu fiz propositadamente: o livro está cheio disso. Mas insisto, no fim de cada texto, na responsabilidade de assumir o texto como um desafio. Nesse sentido, Sérgio, talvez perdendo um pouco a humildade necessária, e não fabricada, eu te diria que talvez seja esse um dos melhores livros meus, e que, por coincidência, vai ser publicado não com o meu nome, mas sim com o nome do Ministério da Educação de lá, como se fosse um nacional que tivesse escrito. Eu achei muito melhor esse caminho do que exigir o meu nome nesse negócio. Para afirmar o quê? O que me interessa é dar uma contribuição a um povo que está lutando para ser, e não pôr nas relações bibliográficas mais um livro. 3. ESSE LIVRO, OUTRO LIVRO: “ALGUMAS BRASILEIRADAS” PAULO: Uma coisa que me agradou enormemente aqui — isso eu te digo também sem vaidade, mas com alegria — a carta que o presidente me escreveu é uma beleza! Falando em nome dele, do governo e do partido, ele me diz que leu o livro todo com u m crescente entusiasmo. E, terminada a leitura, ele tinha que me dizer que não havia uma restrição a fazer, do ponto de vista do conteúdo político do livro, do ponto de vista da análise da realidade nacional; que fiz de Genebra, mas que eu era um nacional também, e que o único ponto que havia — e de que eu seria informado pelo ministro14 da Informação e Cultura — era o de algumas sugestões que eles iam me mandar para substituir algumas brasileiradas. O que é natural, não? Eu escrevi como brasileiro, procurando uma linguagem bem do povo, mas do nosso povo. Lamentavelmente, eu não recebi ainda… Recebi uma carta da ministra, elogiando também o livro e dizendo que me mandava, por correio, separado, o original que eu tinha mandado para ela, com as retificações. Faz um mês e não chegou. Eu já escrevi para ela dizendo que não recebi, porque, enquanto não vier, não posso imprimir. Esse livro eu acho delicioso. Vou te dar depois uma fotocópia dele. Agora, no momento — depois desse encontro em Bissau, de que te falei pela manhã15 — o ministro da Educação de São Tomé me perguntou se eu não gostaria de escrever um outro livro, como este, e pelo qual ele também estava entusiasmadíssimo, sobre a temática que se discutiu no encontro. O que vale dizer: que eu escrevesse uma série de textos. Não seria um livro propriamente para descrever o que foi o encontro. Esse vai poder ter o meu nome. Um livro em que eu desenvolva a mesma temática que foi discutida, não necessariamente nos mesmos termos e no mesmo approach em que alguns dos seus temas foram analisados. Mas, ao mesmo tempo, na introdução, eu daria uma notícia do que foi o encontro. A intenção do ministro ao me pedir isso é a de levar esta temática às bases populares no país dele também. Porque, por exemplo, com relação a esse segundo caderninho de que te falei agora — que o ministro me disse que, depois que eles leram, vários ministros e o presidente, eles chegaram à conclusão de usar o tal livrinho em três níveis distintos para testar. Desse primeiro, nós vamos fazer uma edição primeiro, para provar o livro, porque o livro pode ser modificado. Então não adianta você pegar agora e fazer seis mil cópias, para depois ver que a prática te demonstra que tais coisas não deviam estar no livro, ou pelo menos como estão. Como eu te digo, escrevi o livro para a pós-alfabetização, mas a ideia do ministro me pareceu excelente, quer dizer, é do governo: era testar esse livrinho com uns trezentos jovens do último ano da escola primária, com uns trezentos jovens do primeiro da secundária, e com uns quinhentos adultos que estão entrando na pós-alfabetização. E, com as limitações que eles têm — e que nós temos —, acompanhar os resultados: como a criançada de escola primária reagiu a esses textinhos e à gramática; como os meninos de primeiro ano de ginásio reagem, e como os adultos também vão reagir. Então o ministro disse: “Bem, Paulo, depois de analisar isso então a gente vê o que é que a gente tem que mudar no fim, considerando esses três níveis. E daí em diante a gente faz uma edição grande e passa a usá-lo preponderantemente nesse ou naquele desses três níveis em que a gente vai testar.” Eu achei a ideia excelente. 4. A LINGUAGEM DAS CARTAS E A CULTURA DE MEMÓRIA ORAL PAULO: Há uma outra coisa que eu também vou dar a ti depois, que eu nunca te dei, e que são umas cartas. Em lugar de escrever guias para os educadores de base, escrevo cartas ao animador cultural, em nome da comissão também. Evidentemente que essas cartas estão sendo escritas numa linguagem menos simples do que a linguagem que usei no livro. A idei a que eu tenho é a de diminuir a distância que há entre a linguagem dessas cartas e a capacidade dos animadores, nas minhas idas a São Tomé, fazendo seminários de avaliação com eles, nos quais eu dedico um ou dois dias para uma leitura coletiva das cartas, em que eu vou oralmente interpretando com eles o que eu quis dizer neste ou naquele período etc. Por isso é que não me preocupo muito em fazer as cartas ao nível mais simples. Eu te diria que elas são muito mais simples do que qualquer livro meu, mas não têm a simplicidade que o livro que eu fiz tem. Estou no momento terminando a terceira carta, que trata da pósalfabetização e de como usar o livro de que te falei, de como trabalhar com ele. No momento já estou na metade da terceira carta, exatamente tomando a introdução do caderno como um primeiro exemplo de como trabalhar com isso, e estou discutindo na carta o papel da leitura silenciosa. Mas aí é uma coisa engraçada, Sérgio. Como a África vai ensinando a gente! Como a realidade vai ensinando! Por exemplo, se eu estivesse escrevendo para o Brasil, sobretudo para educadores que estivessem trabalhando com massas populares em centros urbanos, como São Paulo, eu teria sugerido que, ao abrir o livro, na introdução, o animador propusesse aos participantes do círculo que fizessem uma leitura silenciosa do texto e que, em seguida, cada um iria fazer a leitura em voz alta. Mas para a África, não. Inclusive a minha primeira tentação foi essa. Imediatamente o lápis parou no caminho e refiz a trajetória. Na África, meu querido Sérgio, a gente está enfrentando uma cultura cuja memória — por n razões que não interessa aqui agora conversar — é auditiva, é oral, e não escrita. Então, antes da leitura silenciosa, numa cultura de memória oral, tem que fazer a leitura em voz alta, e a tarefa deve ser a do educador! O educador é que, na sua preparação, enquanto africano, deve fazer para ele a leitura em voz alta e, em seguida, também a leitura silenciosa do texto, na sua preparação, antes de ir para o círculo. Mas, chegando ao círculo, ele deve ler em voz alta, para todos, lentamente, enquanto os educandos vão acompanhando, vão olhando o texto. Ele vai lendo em voz alta, pausadamente. Depois é que ele pode sugerir a leitura silenciosa de cada um, mas, em primeiro lugar, ele tem que provocar uma certa convivência entre os educandos e o texto, pela oralidade, e não da escrita do texto. É o som da palavra que o cara deve ouvir, simultaneamente com a visão da palavra. Mas não a visão da palavra e um som que está interno, que é a leitura silenciosa. Eu não sei se você vê sentido nessa minha observação. SÉRGIO: Hum, hum! PAULO: São coisas assim que estou escrevendo para eles. Agora, puxa, mas já estão longas as cartas! (Sérgio ri) Porque a primeira, por exemplo, que eu acho muito boa, necessariamente teria que apanhar toda uma visão teórica também do que é a alfabetização. Então eu mostro, nessa primeira carta, que nem sempre você parte da leitura da palavra, mas, numa opção política revolucionária, você tem que juntar sempre a leitura da realidade com a leitura da palavra. Mas nem sempre a leitura da realidade é simultânea com a leitura da palavra. Ela pode preceder. Então esclareço tudo isso, e essa carta tem 22 páginas! A segunda é pequena, tem umas seis. E essa terceira vai ter umas 25. Já é um ensainho! 5. A TÉCNICA EPISTOLAR: “NADA DE RELIGIOSO” SÉRGIO: Paulo, você não acha que o fato de você estar escrevendo cartas significa, de uma certa maneira, que você está algo distante de alguém, de uma certa realidade? Por que escrever cartas? PAULO: Eu te respondo com facilidade. Veja bem: essas cartas são feitas não assinadas por mim, mas assinadas pela comissão lá. Portanto, se admite objetivamente que essas cartas estão partindo de São Tomé, de uma comissão lá, para os seus camaradas em São Tomé. Elas se chamam cartas porque eu sugeri. Eu discuti com a comissão que eu achava muito melhor que ela se dirigisse em termos de cartas do que de guias. Em lugar de você escrever o que normalmente todo mundo tem — pode-se chamar “Guia do Coordenador”, “Guia do Animador”, como você quiser —, escreve um texto que é o suporte para o educador trabalhar com o material básico. Eu sugeri que fossem cartas para deixar o animador, desde o começo, mais ou menos convencido de que as cartas não são prescrições, mas são antes elementos desafiadores também deles. SÉRGIO: Você está me fazendo fazer uma pergunta. Primeiro nós falamos das parábolas: você estava contando o livro e a técnica das parábolas. Agora você fala das cartas: a técnica epistolar. Isso me lembra muito ainda o procedimento do Novo Testamento. E é aí que eu queria perguntar para você uma coisa: o que, no teu trabalho, existe de religioso? PAULO: Eu diria que não existe nada de religioso, se se toma a religiosidade como uma certa expressão mágica, dentro de um certo quadro cultural. Evidentemente que eu não poderia jamais negar, em todo o meu trabalho, as marcas… — digamos agora, usemos agora a palavra “religiosa” — as marcas da minha formação — eu preferia dizer até cristã do que propriamente religiosa. Marcas de que ora eu tenho consciência total, de que ora eu não tenho. Você inclusive está sendo a primeira pessoa que me chama a atenção para a técnica das parábolas e o estilo epistolar. Eu não tinha tomado consciência disso. É possível que, em nível mais profundo, isso me devolva a minha infância. Mas é possível — e aí é que eu acho que é o fundamental — que esse retorno a um tempo tão longínquo, no sentido de buscar a raiz disso, me leve exatamente à profunda infl uência que Cristo exerceu sobre mim, enquanto, sobretudo, desafiador. E as cartas, as chamadas cartas também, as presenças vivas! É possível que haja isso. Mas se tu me perguntas: através disso, há um conteúdo de caráter transcendental, no sentido agora religioso, nesse trabalho? Não, não há. Não porque eu o negue a mim, mas porque o que me interessa nesse esforço é ficar na história, sem pretender chamar a atenção sobre a meta-história. O que vem depois é um problema que outros terão lá que ver com eles mesmos. Quer dizer: estou discutindo o que se dá dentro da história atual de São Tomé, o quefazer diário. E, sobretudo, preocupado com o desenvolvimento do trabalho na leitura da realidade como na leitura do texto. 6. UM OUTRO CADERNINHO: NADANDO SE APRENDE A NADAR PAULO: Eu estou convencido de que, se se deixa o país em paz, é possível desenvolver um trabalho lentamente, não também por decreto, mas um trabalho no campo da educação de adultos, que tem que ver com a educação geral, em que se vão terminar por oferecer — desde que você não faça uma educação abstrata, que você ligue isso tudo à problemática da produção, da saúde, da política —, oferecer, não doar, instrumentos que constituem uma forma crítica de pensar, de pensar a prática. Por isso é que todos os trabalhinhos, os textinhos que a gente está organizando para São Tomé, insistem tanto nisso. Por exemplo, há dois cadernos básicos para a etapa da alfabetização. O primeiro deles se chama “Primeiro caderno de cultura popular”, que tem as palavras geradoras, mas da primeira até à nona não há nenhum texto feito por nós. Há apenas as palavras geradoras, as codificações, as palavras decompostas, e o espaço para o cara criar as suas palavras. Só entre a nona e a décima aparece o primeiro texto, com palavras que poderiam ser criadas com as nove anteriores. Há, então, um esforço enorme de desafiar a criatividade do povo. Mas nós descobrimos que esse caderno só não bastava, por causa do tal negócio da cultura de memória oral. Era preciso estimular mais ainda. Então, fizemos um outro caderninho, de que eu vou te dar uma cópia também, cujo título é “Praticar para aprender”. Você vê, o nome do caderno já é também um desafio. E esse caderninho — que deve ser usado quando o alfabetizando alcança a décima quarta palavra do primeiro caderno — desafia, desde o começo até o fim, a criatividade do alfabetizando. E é eminentemente político também. Não há uma afirmação que não seja política. Não há uma palavra, um textinho que não tenha conteúdo político. Mas não “sloganizante”. Por exemplo, há duas codificações nesse segundo caderninho, duas fotografias muito boas. Uma é a de um grupo de meninos tentando nadar, nadando numa enseada. E a outra é de um grupo de homens trabalhando com enxadas etc. Então, ao lado da primeira fotografia está escrito “É nadando que se aprende a nadar.” Ao lado da segunda fotografia está escrito: “É trabalhando que se aprende a trabalhar.” E no rodapé da página está escrito: “Praticando aprendemos a praticar melhor.” Na outra página, então, vem: “Se é praticando que se aprende a nadar, se é praticando que se aprende a trabalhar, é praticando também que se aprende a ler e a escrever. Vamos praticar. Vamos ler”, e aí vem uma série de palavras. E aí o caderninho vai crescendo em dificuldades, até que chega um momento em que a gente sugere que o alfabetizando comece a escrever ele também estórias, suas estórias: “Mas antes de escrever um texto, pense primeiro na sua prática, pense primeiro no seu trabalho, pense primeiro nos instrumentos que você usa no seu trabalho, com os seus camaradas. Se você é pescador, pense então nas horas que você leva nas águas longe, nas águas de navegar, longe das terras de cultivar. Pense nas histórias dos pescadores, nas histórias que você ouviu contar do tempo de nossos avós. Depois então escreva a sua primeira história. É praticando que se aprende.” Quer dizer, todos os materiais que a gente está preparando para São Tomé insistem na prática como fonte de conhecimento. No “Segundo caderno”, por exemplo, há um texto sobre a prática como fonte do conhecimento. Há textos sobre, por exemplo, planificação da prática. Há textos sobre avaliação de prática. Há três textos sobre o processo produtivo: o que é o processo produtivo? Há textos sobre a reconstrução nacional: o que é a reconstrução nacional? Há textos sobre a nova sociedade: o que é a nova sociedade? Há texto sobre o trabalho como transformador do mundo, e a cultura como resultado do trabalho, como a criação realmente do ser humano, mas a transformação do mundo significando, então, a transformação do ser humano também. Tudo está se organizando no sentido não de doar, mas de chamar o educando a uma forma crítica de pensar. Por exemplo, há um texto sobre o que significa pensar certo. O que é pensar certo? Há também, no fim desse segundo caderno, uma espécie de vocabulário, em que eu esclareço o sentido de algumas palavras e de conjuntos de palavras. Mas na introduçãozinha do vocabulário eu digo que o vocabulário não trabalha por ele só, que é preciso fazer força também para compreender o próprio vocabulário. O próprio vocabulário não explica tudo. É preciso que eu entenda também, que me esforce também para compreender o vocabulário. 7. UM ATRASO DE CINCO MINUTOS E QUINHENTOS ANOS DE RESISTÊNCIA PAULO: Há um problema, Sérgio. É a real diferença entre o que está posto nos textos, entre os objetivos que você busca alcançar com os textos e a capacidade atual de os educadores realizarem, marcharem no sentido dos objetivos. A gente reconhece esse hiato, em termos realistas. Eu seria inclusive um mentiroso se te dissesse: “Olha, está tudo maravilhoso lá! Você chega lá, você já encontra a nova pedagogia! Os animadores culturais apanham esses materiais todos e fazem um trabalho excelente!” Não, não. Eu te diria, contudo, que fazem um trabalho excelente, na medida em que fazem o que podem fazer. Esse “o que podem fazer” é que precisa ir dilatando-se, na medida em que a sua prática crescer. Então, se você funciona em termos realistas, no sentido de compreender, inclusive, por que os animadores culturais, os educadores populares, fazem coisas que te poderiam parecer erradas, dentro do teu contexto político ideológico, na tua opção, mas que lá não são. Eu vou dar um exemplo agora concreto, que analisei inclusive numa carta que fiz à Guiné-Bissau, porque sempre ponho a equipe da Guiné-Bissau a par de tudo o que se faz em São Tomé e vice-versa. Um dia, por exemplo, fiz um relatório oral de 1h20 para a Guiné-Bissau, e mandei o cassete, sobre a situação em São Tomé. E, às vezes, eu escrevo: fiz uma carta de quinze páginas, no fim do ano passado, sobre o que eu estava vendo em São Tomé. Então dizia na carta, eu me lembro, quando descrevia uma das sessões de um círculo de cultura, que se eu tivesse recém-chegado lá, saindo do aeroporto para assistir àquela sessão, e que tivessem dito: “Venha cá, venha ver uma experiência com uma aplicação do que se chama o seu método”, eu dizia na carta que teria ficado completamente espantado, surpreso, diante do que me pareceria ser o autoritarismo do educador. Na verdade, porém, não havia autoritarismo nenhum. Havia, pelo contrário, uma necessidade indiscutível, posta pelo processo histórico do país, para aquele comportamento que vi. O comportamento era o seguinte: uma menina chegou atrasada, uma mocinha, cinco minutos, à reunião. O animador parou os debates, houve um silêncio, ele olhou para ela e disse: “Camarada, cinco minutos! A camarada possivelmente estava conversando sobre maluqueiras, maluquices, no portão aí do prédio, quando nós aqui começávamos já a trabalhar. Camarada, você precisa saber que a reconstrução nacional não pode ser feita sem disciplina, trabalho e unidade. Eu espero que a camarada tome consciência da sua falta de responsabilidade e não repita o que acaba de fazer”. A menina, de pé, pediu desculpa e sentou-se, muda. Eu não disse coisa nenhuma! Não podia dizer, nem devia, a não ser pensar. Um sujeito excelente o animador, mas duro, muito duro, com uma autoridade que ele, eu quase diria, impunha. Mas não era um mestreescola. Era um político. É interessante essa nuança, sabe! Era um político que falava. Nos debates, ele não perdia uma chance para falar da responsabilidade do povo na reconstrução do país, dando uns exemplos bem populares, bem concretos, com relação à situação política do momento, lá. Na saída, um dos membros da Comissão Nacional me disse: “Camarada Paulo Freire, eu acho que é preciso chamar a atenção desse animador. Ele é muito competente, muito bom, muito esforçado, e faz isso tudo sem ganhar um tostão. Ele dá o exemplo mesmo, ele trabalha toda noite, não ganha nada, o Ministério não tem dinheiro para pagar a ele. Mas nós precisamos chamar a atenção dele, porque ele está muito duro.” O outro, nacional também, possivelmente dizendo isso muito mais para diminuir em mim o que ele parecia que estava vendo, uma decepção. Eu disse: — Amanhã eu queria conversar com vocês da comissão. A gente tem uma reunião às nove horas, então vamos começar por isso que eu vi hoje. Depois vi outros círculos, fui para o hotel e comecei a pensar. No dia seguinte me reuni com eles e disse: — Olha, estou totalmente de acordo com o animador. —Os caras olharam, e eu disse: — Vocês devem ter visto nos meus livros tudo o que eu digo, um negócio diferente daquilo. Mas a gente tem que ler os outros, também fazendo a redução em torno da realidade nossa. O problema que se coloca aí é o seguinte, no meu entender: em São Tomé e Príncipe, toda a história da luta, da recusa do sãotomense à presença colonial é riquíssima, belíssima, merece estudos. São quinhentos anos de resistência cultural ao invasor, que só uma vez ou outra, durante esses quinhentos anos, se expressou em termos de violência física também, contra os portugueses, como organização popular. Mas, obviamente, mais recentemente, não houve chance nunca mais disso. No momento em que a independência vem, depois do 25 de Abril em Portugal, a massa popular emerge com a euforia da independência, mas no nível de uma consciência rebelde, e não de uma consciência revolucionária. E há uma diferença profunda entre a consciência rebelde, nacionalista, e a consciência revolucionária, que, sendo profundamente inquieta, é também profundamente paciente e organizada, com vistas à criação revolucionária, à recriação revolucionária da sociedade. Quer dizer: a consciência revolucionária implica, na medida em que ela se vai constituindo numa prática revolucionária, numa clareza cada vez maior, com relação aos objetivos, aos meios, aos recursos, às táticas, em coerência com a estratégia. A consciência rebelde, não. Ela é profundamente emocional. Ela é visceral, ela é orgânica, quase biológica! Falta à consciência rebelde o sentido mais crítico, mais profundo, da consciência revolucionária. E eu digo: — Ora, no momento em que a consciência rebelde emerge, ela identifica qualquer ordem, qualquer disciplina, com a velha ordem e a velha disciplina, que, no fundo, eram ordem e disciplina de classe dos colonizadores sobre as massas. E a tendência é repudiar, parta de onde parta essa ordem. Ela não aceita o enquadramento necessário, crítico. Ela quer romper com isso. Então, se vocês no momento não tiverem o equilíbrio perfeito, ou a noção exata de como equilibrar uma autoridade que não se deve tornar autoritária, mas que jamais pode permitir que a liberdade se torne licença, vocês se perdem no processo. Vocês vão cair no espontaneísmo, que é querido pela consciência rebelde. A consciência rebelde é espontaneísta. Então é preciso isso. O pessoal da Comissão disse: — É, camarada Paulo, você está completamente certo. Você imagine o seguinte: os grandes problemas que o Ministério da Educação está tendo no momento são problemas de disciplina entre estudante e professor, entre professor e coordenador. O estudante não aceita a ordem do professor e o professor não aceita a sugestão dos chamados responsáveis dos departamentos. Há um choque constante. 8. A IMPRESSÃO DE UMA FROUXURA: O COLONIZADOR “MUITO PRÓXIMO AINDA” PAULO: Depois eu tive um encontro com o Instituto de Educação, em que os responsáveis me disseram o mesmo. Inclusive me pediram para eu escrever um texto em linguagem simples, para ser distribuído para todos os professores, em que eu analisasse o problema da supervisão pedagógica, da avaliação e não da inspeção, e a liberdade, a criatividade. Mas eu não pude ainda escrever. Esse mesmo fenômeno, Sérgio, encontrei em Angola! Eu encontro em São Tomé, em Angola, em Cabo Verde, em todo lugar. É um dos ingredientes da transição, é uma das notas da transição. Por exemplo, você vê: em Angola, o governo criou no Ministério de Educação recentemente um instituto que se chama Instituto de Investigação Pedagógica e Inspeção Escolar. Tive um debate com a equipe diretora, em que analisei a inspeção escolar e em que eu disse: — No meu entender, esse negócio contradiz os objetivos socialistas de vocês, mas eu já sei de antemão o que vocês podem me explicar para terem conservado esse nome de “inspeção escolar”. E estou totalmente de acordo e acho que não deve sair! O correto seria “Instituto de Investigação Pedagógica e Avaliação”, e não inspeção. Mas se vocês fizerem isso hoje, só pelo fato de tirarem o nome “inspeção escolar” podem dar com isso a impressão — a uma grande quantidade de educadores, que estão no nível da rebelião e não da revolução — de uma frouxura, de uma licenciosidade. Então, como o colonizador está muito próximo ainda, do ponto de vista ideológico, é preciso que os caras continuem a ouvir a palavra “inspeção” que o colonizador pôs. Você veja como esse treco é complexo! Você pode correr o risco de virar um idealista e chegar num contexto como esse e estar fazendo propostas que não têm sentido histórico. Essa, Sérgio, é uma das minhas preocupações: até que ponto as propostas que faço estão… Apesar de toda essa vigilância minha, de que estou dando exemplos assim muito concretos; apesar de toda essa preocupação que eu tenho de estar numa rua, em São Tomé ou onde quer que seja, examinando as atitudes… Eu não vou a São Tomé sem que eu não vá ao mercado público, a um campo de futebol, para ver como o povo conversa, como o povo reage, como o povo fala, as atitudes… Apesar de tudo isso, eu às vezes me pergunto até que ponto essa sugestão minha, aqui agora, tem que ver mesmo com o processo lá. Lamentavelmente eu não posso morar lá. Se eu pudesse viver seis meses pelo menos em São Tomé, tenho impressão de que eu compreenderia muito melhor a realidade e escreveria muito melhor também, porque eu incluiria as coisas de lá. Mas nessa conversa, assim um pouco doida, que eu estou tendo contigo (ri), estou te dando pelo menos uma visão, fragmentada mesmo, das preocupações que tenho e dos trabalhos em que estou metido, engajado, que acho que são importantes. Notas 13 São dois os textos sobre o ato de estudar, que abrem o “A luta continua”. Ver “Anexo I”. 14 Paulo usou mesmo o masculino ao se referir à ministra. Sua preocupação com esse pormenor relativo à questão do gênero apareceria mais tarde. Trata-se do Encontro dos Ministros de Educação dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop), a que o ex-ministro da Educação guineense Màrio Cabral se refere mais adiante (ver cap. B, item 3, “Um momento especial…”). 15 3 O PROCESSO? EXTRAORDINÁRIO, MAS “SIMPLESMENTE, HOUVE UMA RUPTURA” 1. “AS PESSOAS COMEÇARAM A LIBERTAR-SE MENTALMENTE” SÉRGIO: GOSTARIA DE COMEÇAR pelo seu nome, dona Alda. O seu nome inteiro qual é?16 ALDA: Alda Neves da Graça do Espírito Santo. Normalmente, Alda Espírito Santo. SÉRGIO: A senhora nasceu onde? ALDA: Nasci em São Tomé, aqui muito perto, na Ponta Mina, na chamada Freguesia da Graça. SÉRGIO: No dia 30 de abril… ALDA: …de 1926. SÉRGIO Vou direto ao assunto porque nós temos muito p ouco tempo: como a senhora conheceu Paulo Freire? ALDA: Internacionalmente Paulo Freire era muito conhecido, mas tive a felicidade de conhecê-lo em São Tomé, porque nessa altura uma são-tomense, Maria Amorim, que foi ministra dos Negócios Estrangeiros, estava em Genebra e era muito amiga do Paulo Freire. E por meio da Maria Amorim é que nós tivemos a dica de ter Paulo Freire no nosso país, no processo de alfabetização. SÉRGIO: Na época, a senhora estava fazendo o quê? ALDA: Quando Paulo Freire veio, eu não sei se ainda estava na Educação, porque eu estive na Educação até 1976. Depois passei para a Informação e Cultura. Quem estava na Educação era Celestino Costa. Nós, no processo de luta pela independência, começamos a fazer um manual arcaico de alfabetização, que era impresso… Até o Costa Alegre, que era um camarada nosso que trabalhava nas Obras Públicas, conseguia, por meios artesanais, imprimir as folhas que nós íamos fazendo. E, então, começávamos pela palavra povo, porque na altura era toda a população que queria a mudança e que queria a independência. As primeiras folhas que nós fizemos, eu as dei a Paulo Freire. Como eu estive na Educação, evidentemente, e me interessava por todo o processo — tinha feito a minha vida como professora —, tinha a oportunidade de conversar muitas vezes com o Paulo Freire, durante o período em que ele aqui esteve. Eu sei que o Paulo Freire, a primeira vez que veio por aqui, veio por Libreville.17 Mas acontece que — não sei o que é que pensavam do Paulo Freire —, durante o tempo em que ele esteve em Libreville, não o deixaram sair do hotel, tanto assim que ele nunca mais veio por Libreville. Passou a vir por Angola. Naquele época, tínhamos dificuldades de transporte, e ele passou a vir por Luanda. Não sei o que é que pensavam de quem era Paulo Freire, que tiveram tantas cautelas em relação a ele! Paulo Freire fez aqui um trabalho extraordinário! Foi criada uma comissão nacional para a alfabetização, em que faziam parte representantes de todos os ministérios. Lembro que a doutora Julieta do Espírito Santo, que é médica, também pertenceu a essa comissão. Havia o Bonfim, que foi ministro da Educação, e que também pertenceu. Havia um professor, que infelizmente já faleceu, Jorge Batista de Sousa, que foi uma pessoa extraordinária, que deu a sua vida para a alfabetização, e que também teve uma participação muito importante, como o Sinfrônio, que trabalhou na prática com o Paulo Freire. Houve um indivíduo — não sou capaz de lembrar o nome dele — que esteve em Monte Mário, um velho professor… ALBERTO:18 O Gaudino? ALDA: Sim, ele esteve muito tempo em Monte Mário. E, então, começava o processo de alfabetização precisamente pelo sul da ilha, na região mais inóspita, região voltada para o mar, num pequeno lugarejo. Estávamos no princípio, houve a nacionalização e tudo mais. E havia um indivíduo que estava nessa pequena povoação, Monte Mário. Era um português, que estava à frente da dependência de Monte Mário e que tratava ainda os seus trabalhadores da velha forma, à antiga. E o mais engraçado é que o processo de alfabetização fez com que a população… como é que se chamava na altura o fato de fazer com que o indivíduo saltasse, saísse da vossa frente? Até havia um termo especial. Enfim, ele foi excluído do trabalho que fazia, devido ao processo de alfabetização. As pessoas começaram a libertar-se mentalmente e a ver que aquele indivíduo os tratava mal. SÉRGIO: Isso foi em que época? ALDA: Paulo Freire veio para cá, não sei, em 1976, 1977. Foi mais ou menos a essa altura, princípio de 1976. 2. O ENSINO E A IDEOLOGIA DO TEMPO: “NÓS NÃO TÍNHAMOS HISTÓRIA!” SÉRGIO: E qual era a situação da educação até o período da independência? Como é que a senhora resumiria essa situação aqui em São Tomé? ALDA: A maior parte, os chamados professores com curso de magistério primário, eram portugueses. Havia alguns são-tomenses. E havia outros professores que se formaram através de uma formação em seus postos escolares. Esteve aqui um professor, por acaso português, bastante interessante, que era o inspetor Henriques Carneiro e que veio fazer um trabalho muito meritório com um grande grupo de professores, que depois foram para outros níveis de ensino e que começaram com o inspetor Carneiro. SÉRGIO: O Alberto Neto, aliás, é um deles. ALBERTO: Essa formação terminou em 1970 e tal. ALDA: Esse professor de fato deu uma movimentação muito interessante à formação de professores de postos escolares, o que depois deu abertura para que eles atingissem outros voos. Há indivíduos que foram ministros e que, ao fim e ao cabo, começaram pela formação com o inspetor Henriques Carneiro. Bem, mas acontece que, quando nós chegamos à independência, os professores portugueses foram-se embora, na sua grande maioria. E, então, havia necessidade de formar professores, adequar professores, para fazer face à saída de todos aqueles que saíram, porque não estavam, evidentemente, de acordo com o processo de independência, o que era natural. E, então, por meio da Unesco, veio para São Tomé um professor chamado Mérigot, que também veio fazer uma formação muito interessante com um grupo de professores e de indivíduos que pretendiam seguir a carreira do ensino. Era uma formação do aspecto social, que ia ao encontro dos problemas culturais e sociais. E, através da televisão, se fez uma formação, uma reciclagem, para que os professores fizessem face aos problemas do ensino. E, então, o ensino primário começou a avançar muito bem com esse grupo. Depois criou-se um Instituto Nacional de Educação, em que os professores formados iam pelas escolas, onde os novos professores que estavam formados eram orientados por esse grupo de professores. Acontece que, quanto a mim, cometeu-se um erro. Como os professores primários que tinham formação estavam a dar boa imagem do seu trabalho, foram agarrados e colocados em outros níveis de ensino, fizeram com que o ensino primário baixasse de nível. SÉRGIO: No tempo colonial, a situação do ensino, da escola em São Tomé e Príncipe, permitia que a maior parte das crianças frequentasse as aulas? ALDA: Sim, permitia que as crianças frequentassem a escola. Simplesmente, aquilo que se transmitia às crianças é que era a ideologia do sistema colonial fascista. Nisso não há dúvida! Por exemplo, eu tinha uma afilhada que uma vez chega a casa e diz: “Madrinha, eu estou muito indignada, porque a professora disse-nos que, em São Tomé, não há frutos!” Frutos são peras, uvas, maçãs. O resto não são frutos. (riem) Quer dizer, a educação era canalizada dentro de um sistema que era necessário manter. Aprendia-se, por exemplo, que os maiores rios que corriam em território nacional eram o Mondego, o Tejo — depois havia o rio Kwanza também, em Angola, e que estava como território nacional. As províncias portuguesas começavam no Minho e terminavam em Timor. Os picos mais altos: serra da Estrela, pico de São Tomé, e por aí afora. Era um ensino em que se dizia que nós não tínhamos história, nunca tivemos história, nossa história começa a partir da chegada dos portugueses. Evidentemente que o ensino refletia a ideologia do tempo. 3. NA EMPRESA: “A PARTIR DAÍ, A ALFABETIZAÇÃO COMEÇOU A CAIR” SÉRGIO: Acredita que o trabalho e o apoio que o Paulo Freire deu a São Tomé contribuíram para uma mudança significativa do ensino? ALDA: Sim, da alfabetização. A alfabetização cresceu duma forma extraordinária! Começamos um processo de alfabetização muito interessante, em que uma grande parte das pessoas que não sabiam ler tinham um grande interesse na escola, com uma movimentação e tudo mais. E então o sistema de alfabetização começou de fato a crescer. Como disse, o fato duma população no sul da ilha, com a mudança de mentalidade, fazer com que… sanear, o termo utilizado era esse… com que a população saneasse um administrador duma dependência, dum reduto agrícola… SÉRGIO: Sanear aí significava o quê? ALDA: Correr com ele, irradiá-lo. O indivíduo foi saneado, foi corrido: “ele já não serve para trabalhar conosco, porque quer utilizar-nos como escravos”. E então, ali no sul da ilha, a população de Angolares… naquela região, o peixe que aparece com mais frequência chama-se bonito. SÉRGIO: Olhando hoje, tanto tempo depois: acha que esse processo teve bons resultados? ALDA: O processo teve, foi interessante. Simplesmente, houve uma ruptura. SÉRGIO: A ruptura foi como? ALDA: O processo de alfabetização começou, evidentemente, com custos para o Estado. E então, a partir de uma certa data, quem estava à frente do Ministério da Educação achou que o processo de alfabetização devia ser feito pelos indivíduos que estavam à frente dos setores de trabalho. Por exemplo, se o indivíduo estava à frente duma empresa industrial, esse processo de alfabetização devia ser conduzido pela empresa que, ao fim e ao cabo, utilizava os serviços desses profissionais. A partir daí, mais ou menos, a alfabetização começou a decair. SÉRGIO: Nós estamos falando de que época? ALBERTO: No meu entender, da década de 1980… ALDA: Talvez a partir de 1983. ALBERTO: Criou-se um Instituto de Alfabetização e, nessa época, em certa medida, o Estado foi financiando. Mas a alfabetização, como sabe, tem os seus cursos, os seus gastos. Portanto, enquanto houve financiamento exterior, pôde-se comprar viaturas, pagar os animadores, os materiais. Quando a economia sãotomense foi… ALDA: …baixando… ALBERTO: …o Estado tinha que se libertar de determinados compromissos para ter um equilíbrio. Esse tempo é que desembocou no processo da democratização do próprio país. Nesse momento, o Estado passou a se retirar de muitos compromissos para, em certa medida, equilibrar a economia do país. Então, a alfabetização foi prejudicada com todo esse processo, que é um processo natural e normal em qualquer parte do mundo. É que houve aquela euforia, não é? “Vamos fazer, vamos fazer, sim, senhor!” E o Paulo Freire aparece, no momento, como alguém que vem, em certa medida… ALDA: …dar continuidade ao processo que já tínhamos começado. ALBERTO: Nós não tínhamos experiência, éramos naives nessa filosofia, nessa ciência. Então, Paulo Freire dá-nos alguma luz, em termos de metodologia. Não quer dizer que a gente não soubesse. Sabíamos, já alfabetizávamos aqui em São Tomé. Havia as tais escolas do mato, onde a gente ensinava a escrever, e tal. Mas no processo de politizar a população, o Paulo Freire entra ali com uma filosofia que realmente ajudou muito a população. 4. UM MOSAICO DE CULTURAS. ERROS? “HOUVE FALTA DE CONTINUIDADE” SÉRGIO: Quando a dona Alda olha para trás e vê o que foi feito em termos de educação, o que é que acha que se pode aprender como lição? Que erros houve nesse processo? Que lições a senhora tira dessa experiência de educação em São Tomé, tendo em vista o fato, por exemplo, de nós ainda não termos, infelizmente, uma população totalmente alfabetizada, apesar do número reduzido de habitantes?19 ALDA: Houve a introdução de um processo de alfabetização, de forma que houve pessoas que foram alfabetizadas e que, depois, pode ser que até tenham regredido. Mas houve muita gente durante esse processo, do início mesmo da alfabetização — que nós começamos anteriormente ao Paulo Freire —, que foi prosseguindo e que depois regrediu por falta de continuidade. Eu sei que, por exemplo, há uma ONG ou outra que têm tentado prosseguir no sistema de alfabetização que, evidentemente, não avançou grandemente. Houve falta de continuidade. Outra coisa: quanto a mim, a alfabetização é um processo integral. O Paulo Freire também tinha essa percepção: alfabetização integral, que entra no cotidiano da vida, acompanha o trabalho de cada um, numa melhoria sob todos os aspectos da educação, da ciência, da higiene, da alimentação, e em todos os setores, como, por exemplo, o da comunicação social. Inclusivamente, havia um programa de alfabetização extraordinário. O Sinfrônio tinha um programa com uma senhora, que até é angolana e que está cá. Essa senhora fazia um programa radiofônico com o Sinfrônio, que era ex-tra-ordi-ná-rio! Esse programa de alfabetização falava na linguagem da população local. Por exemplo, nós que somos um produto da miscigenação de culturas — gente que veio de Angola, de Moçambique e de outros lados de África — somos um mosaico de culturas. E, então, há um linguajar próprio de cada região, e eles utilizavam a maneira de falar de cada população do lugar, para mais facilmente transmitir a mensagem que o programa transmitia. Ela e o Sinfrônio. O encontro com o Sinfrônio será muito interessante. SÉRGIO: Essa alfabetização sempre aconteceu em português? Nunca se tentou o crioulo? ALDA: A alfabetização era uma miscelânea do português e do crioulo. Era um casamento entre o português e o crioulo. SÉRGIO: E a senhora foi ministra da Educação por quanto tempo? ALDA: Sei lá, eu fui ministra da Educação no governo de transição, que foi portanto de dezembro de 1974 até a independência. E depois fui da independência até o início de 1976. Depois passei para a Informação. SÉRGIO: E por que é que a senhora saiu da Educação? Preferiu a Informação? ALDA: Eu não, eu não prefiro, eu ponho-me onde me colocam. E, depois, eu gostei de trabalhar foi quando era Informação e Cultura. Eu lembro que nós fizemos um festival de teatro popular, em que levamos pessoas de todas as regiões do país, grupos de teatro. E fizemos, durante três meses, um festival de teatro que é uma das experiências mais interessantes que eu fiz na minha vida. 5. FUTURO? “NÃO É SÓ O ESTADO QUE TEM QUE RESOLVER O PROBLEMA” SÉRGIO: Para terminar, dona Alda, como é que a senhora vê o futuro da educação de São Tomé? ALDA: Ih! Isso ia ter eu que falar consigo longamente! Há muita coisa a fazer, havia muita volta a dar. Quanto a mim, tem que haver uma solidariedade institucional, em que a escola e a sociedade têm que se dar as mãos. E a comunicação social aí tem um papel extraordinário. A nossa comunicação social infelizmente não nos serve. Fazem o que podem, mas falo de uma comunicação social que sirva ao processo de educação. Há uma apetência extraordinária, toda gente gosta de ler e de avançar, mas hà um trabalho muito interessante que deveria ser feito. E, depois, talvez tenhamos um defeito: quando há mudança de um ministro, tudo cai por terra, e começa sempre de novo. Esse é um dos grandes defeitos, esses círculos viciosos que têm prejudicado muito o sistema de educação no nosso país. SÉRGIO: Há, portanto, fundamentalmente, um problema político com a educação em São Tomé e Príncipe? ALDA: Não sei se será, não é político… ALBERTO: Não é político, sabe por quê? Nós todos somos testemunhas, nós, os são-tomenses, de que o Estado tem consciência e diz sempre que o setor social, educação e saúde… ALDA: …são prioritários. ALBERTO: Se você for ler os documentos, está lá sempre escrito. Agora, a forma de como passar do dizer à prática, isso torna-se um pouco mais difícil. E depois, há outra coisa, no meu entender: é o povo são-tomense assumir a responsabilidade que tem na educação dos seus cidadãos. não é só o Estado que tem que resolver o problema. É inteiramente impossível! ALDA: Tem que ser a sociedade… ALBERTO: Toda a gente tem realmente que dar as mãos e primar pela educação em São Tomé e Príncipe, porque, enquanto as pessoas pensarem que isso é um problema que o Estado tem que resolver, jamais! Portanto, toda a gente tem que assumir a sua contraparte, a começar pela família. A família tem que se responsabilizar pela educação dos seus filhos. E a localidade onde está inserida a família, os meios de comunicação social… Nós nos educamos, a educação é feita, nós recebemos as informações pelo bombardear dos nossos sentidos. A educação entra por aquilo que nós vemos, pelos nossos olhos, pelos órgãos dos sentidos, que têm que estar sempre bombardeados por coisas positivas. Agora, se vamos esperar só por aquelas duas ou três horas de escola, não chegamos lá. Se vamos esperar só por sentar diante da televisão e ver alguns programas, não vamos chegar lá. Nós sabemos que, realmente, quase toda gente tem mais ou menos a consciência do que se deve fazer. Agora, o que há é a necessidade de toda a gente assumir. É uma questão de conduta, de atitude. Notas 16 Diálogo registrado na cidade de São Tomé, em 29 de novembro de 2000. 17 Capital do Gabão, ou melhor, República Gabonesa, país da África equatorial próximo de São Tomé e Príncipe. Alberto Neto, também ele antigo ministro da Educacáo e, então, responsável por essa área no Unicef em Sáo Tomé e Principe. Foi gracas a ele que os encontros com Alda do Espirito Santo e Sinfrônio Mendes (cap. 4) puderam concretizar-se. 18 Cerca de 140 mil (Unicef, Sitvação Mundial da Infância, 2003) ou 170 mil, de acordo com estimativa do Time Almanac, 2003. Boston: Time Inc., 2002. 19 4 SÃO-TOMENSE LEVE-LEVE? “A MUDANÇA TEM DE SER GERAL!” 1. PAULO FREIRE? “É UM PEDAGOGO, E TAL.” “ELE É QUE VEIO ORGANIZAR AS COISAS” SÉRGIO: SINFRÔNIO, O SEU nome inteiro qual é? SINFRÔNIO: Chamo-me Sinfrônio de Jesus de Nazaré Mendes. SÉRGIO: Uma questão que me vem imediatamente à cabeça, quando nós conversamos sobre o Paulo Freire, é evi-dente: como é que você o conheceu? Como e quando? SINFRÔNIO: Conheci-o em 1976, quando o nosso governo resolveu implementar o trabalho de alfabetização. Foi ele o primeiro indivíduo que nos veio fazer um seminário, dar-nos conhecimentos para a alfabetização. Dantes nós já tínhamos uma espécie de alfabetização, mas sem aquela regra normal de educação de adultos. Nós fazíamos ensinamentos iguais aos ensinamentos de criança. Ele é que veio organizar as coisas de forma a fazer como o senhor conhece. SÉRGIO: Nessa época você estava fazendo o quê? Você é professor primário? SINFRÔNIO: Eu era coordenador do ensino primário e professor. Em 1974, eu já trabalhava na educação de adultos da era colonial. Quando deu o 25 de Abril, eu aderi à então associação cívica para o MLSTP.20 E aí eu chamei-me a mim com o trabalho de alfabetização, como coordenador também. E como a senhora dona Alda foi a primeira pessoa que dirigiu o setor da educação depois do 25 de Abril — ela também dava toda a sua vida para isso —, ela formou uma equipe: eu era o único rapaz, e eram três raparigas. Nós fazíamos uma equipe de quatro pessoas. Dois davam aulas no período da manhã e coordenavam de tarde, e dois davam aulas de tarde e coordenavam de manhã. À noite nós, os quatro, íamos à alfabetização, com ela também. Sabe, ela é professora, também gostava disso e ia conosco. Foi assim que nós trabalhamos, até mais tarde, em que se resolveu ampliar esse trabalho. Meteram-se mais coordenadores, e então nós passamos a ter área distribuída, cada grupo com a sua zona. E eu fui para a zona da Trindade. Depois, mais tarde, eu vim ser metodólogo e passei a ser responsável por tudo isso. SÉRGIO: Antes do Paulo Freire vir aqui, você já tinha ouvido falar dele? SINFRÔNIO: Não. Eu ouvi falar quase contíguo à chegada dele. Quando a senhora Alda começou a falar “É um pedagogo, e tal…”, eu ainda não o conhecia. Depois, mais tarde, é que nos foi apresentado. Mas a gente viu a sua qualidade. 2. ÁGUA PELAS BARBAS, PRESIDENTE DA REPÚBLICA: “EU CONCORDO COM O CAMARADA SINFRÔNIO!” SINFRÔNIO: Eu tinha muitas gravações do Paulo, porque eu tinha o defeito de não fazer gravações de músicas, senão de discursos. Mas eu tinha filhos pequeninos e, quando eles cresceram, desgravaram. SÉRGIO: Perdeu tudo? Não sobrou cassete nenhuma? SINFRÔNIO: Olha, desgravaram tudo! SÉRGIO: E o que é que você gravava? SINFRÔNIO: Discursos dele, aulas, reuniões pedagógicas, tudo o que me interessava. Por exemplo, houve uma mesaredonda: a primeira em que eu participei, o Paulo também estava lá. Nós tínhamos um coordenador, um locutor da rádio, e ele é que estava a dirigir a mesaredonda. Era um indivíduo dos mais aptos naquele momento. Ele fazia cada pergunta! Tirava água pelas barbas! E eu ia cair numa dessas. Ele começou a fazer perguntas. Como era pela primeira vez, eu estava ali todo à vontade a observar. À primeira pergunta que ele fez, eu vi o Paulo fazer assim… SÉRGIO: …coçar a barba… SINFRÔNIO: …um outro assim (olhando de lado), e eu estava a retratar tudo isso e disse comigo: “Mas esse gajo é terrível!” E o que é que me acontece? Como eu andei calado, não participei na conversa, a minha pergunta veio diretamente: “Senhor Sinfrônio, o senhor está calado há muito tempo, ainda não disse nada!” E lança-me uma pergunta. Eu fiquei a pairar (ri), não contava com aquela pergunta. Naquele tempo, eu era novo de alfabetização, ainda não tinha assim capacidade de resposta. Consegui equilibrar-me, mas depois eu fiquei assim: “Será?”, porque a emissão era direta, e eu fiquei triste: “Com certeza eu disse uma série de asneiras! As pessoas estavam lá a ouvir e isso diminui a minha personalidade!” Chega a noite, aquilo tinha um ato em que o presidente da República participou. E qual não foi o meu espanto quando eu ouço a dizer: “Eu concordo com o camarada Sinfrônio!” (ri) SÉRGIO: Quem disse isso? SINFRÔNIO: O presidente Pinto da Costa. Ora, senhor, eu fiquei tão contente! (ri) Eu lembro isso. Eu só tenho o magistério primário, mas aprendi muito com o Paulo. A sua maneira de trabalhar, a sua simplicidade, a sua prática pedagógica. Depois de 1990, fui dar aulas na roça Monte Café, e francamente ainda utilizei esse método. Eu já não estava a par dos métodos usados naquele momento, usei esse método, e surtiu efeito. Quer dizer: eu, como professor primário, como tinha muita prática de educação de adultos, que tinha o seu método próprio, fiz uma fusão de tudo isso e tive bons êxitos. 3. EMPRESAS, EMPRESINHAS, PADARIAS: “E, ASSIM, ALFABETIZOU-SE MUITA GENTE!” SÉRGIO: O que é que você se lembra mais dele naquela época? Eu sei que, quando vinha, passava algum tempo aqui. Como é que funcionava a equipe e o trabalho com ele? SINFRÔNIO: Ele logo que chegasse fazia as suas voltas com o governo, encontrava-se com o ministro da Educação, e então reunia conosco, primeiro com a direção. No início não havia direção, porque era eu, uma irmã do senhor Pinto da Costa e um colega. Nós éramos uma equipe de três, uma comissão administrativa, não tínhamos diretor. Mais tarde, o diretor geral da educação passou a ter o seu escritório lá, e essa comissão caiu. Então ele escolheume para ser chefe de departamento. Mas como o outro colega era mais velho, eu disse-lhe: “É bom que você escolha ao senhor Jorge, eu fico aí.” (ri) E passei a ser metodólogo. Fazíamos um seminário, o Paulo dirigia, e ele testava aquilo que foi o plano anterior. Procurava saber até que ponto nós cumprimos o programado. E, então, a partir desse momento, elaborávamos outro plano para x tempo, e quem punha o plano em ação éramos nós. Pedimos à Educação um certo número de professores primários e capacitamo-los, como fomos capacitados pelo Paulo. E eles é que ficaram como coordenadores nas empresas. Tínhamos um coordenador para cada empresa agrícola e um também para empresas aí da cidade, empresinhas, como padarias etc. Com esses coordenadores nós fomos capacitando animadores. Em períodos de férias, em vez dos alunos irem para casa — principalmente alunos do liceu — nós íamos capacitá-los para alfabetizar. Nas empresas, escolhiam-se trabalhadores mais destacados, que tivessem algum conhecimento, e então esses é que eram capacitados para poder alfabetizar. E assim alfabetizou-se muita gente! SÉRGIO: Você ficou satisfeito com o trabalho de alfabetização que foi feito? SINFRÔNIO: Por que não? Se nós tínhamos um elevado nível de analfabetismo, isso fez com que nós debelássemos essa situação. Só que houve uma situação que se adicionou a isso. É que nós tivemos uma crise em 1983. A grande campanha começou em 1980, 1981. Nós vínhamos fazendo essa alfabetização com os alunos. Quando se fez a grande campanha, já deixou de ser só alunos para ser todo mundo que tivesse vontade de ensinar. SÉRGIO: Como assim, “só alunos”? Você fala dos alunos que, durante as férias, eram formados como animadores, como professores? SINFRÔNIO: Não era só. Esses eram um grupo de pessoas que ajudavam. Nós tínhamos trabalhadores também, de boa vontade, pessoas que se interessavam e queriam ensinar, que se ofereciam para serem capacitados, para poderem ajudar. E havia professores, nossos colegas, que não eram coordenadores como nós, mas que, nas suas horas livres, também alfabetizavam. Nós tínhamos alfabetização em todas as escolas primárias, durante a noite, claro. Por isso eu digo que a alfabetização aqui em São Tomé, para nós que iniciamos a alfabetização, isso é coisa extraordinária! 4. A SEMENTE, A PLANTA E O FRUTO: “SÓ QUE, DEPOIS DAQUELA CRISE, NÃO CHOVEU!” SÉRGIO: Olhando para trás, e com base na experiência que depois vocês adquiriram, o que é que você tira como lição, de problemas que podem ter acontecido, de coisas que vocês fizeram e que talvez fosse melhor ter feito de forma diferente? Enfim, que lições você tira dessa experiência, do trabalho que o Paulo ajudou a desenvolver aqui? SINFRÔNIO: Aí há muito que dizer, e eu tenho muito que ver com isso. Em primeiro lugar, ajudou-me a ser mais social, porque, trabalhando na alfabetização, muitas vezes em casa, por qualquer motivo estando mal disposto, eu vou à alfabetização e venho satisfeito. Em conversa com os participantes, as questõe s que eles apresentam, muitas vezes desavenças entre eles — e a gente tem que entrar para poder sensibilizá-los a tomar um rumo melhor —, isso para mim era uma satisfação. Além disso, o desenvolvimento que eles foram revelando também é outro ponto, porque é a mesma coisa que se o senhor tivesse uma certa cultura agrícola: o senhor lança a semente, a semente está a produzir, depois faz transplantação. Daí a pouco, a planta dá fruto. Aí não há ninguém que não se sinta feliz nisso. Só que, depois daquela crise, não choveu. Nós passamos a ter fome, as empresas quase já não tinham de comer, as pessoas fizeram um grande esforço para irem para a escola. Há pessoas que começaram a rejeitar a escola, e todos aqueles que não queriam a escola começaram a ser inimigos da escola, a aconselhar a outros a, em vez de ir para a escola, ir trabalhar, porque esse tempo que ele está a perder na escola e a força que ele está a gastar, quando vai para o trabalho já não consegue trabalhar. (ri) Isso custou-nos um bocado caro, porque o número de alunos começou a reduzir. Quer dizer, esses indivíduos começaram a virar a cabeça aos animadores. Principalmente os responsáveis, porque, sabe?, o senhor é feitor duma empresa; então, sempre prima pela mais-valia, mais trabalho, maior produção, maior produtividade. Ora, os trabalhadores passaram a ter aula dentro do horário de trabalho, e os responsáveis, não contentes com a redução de tempos que os participantes tiveram — e os animadores também — começaram a virar a cabeça a essa gente, aproveitando com a situação da crise. Toda gente começou a afastar-se. Levantava um pó do deserto do Saara, e esse pó chegava até aqui em São Tomé. Enquanto houvesse essa poeira no ar, o ar aquecia-se demais. Isso é partícula de terra, então o raio solar não só aquecia o ar como aquecia a terra. Aquilo fez com que as nuvens se dissipassem. Só sol, não havia chuva. Nós só passamos a ter chuva quando veio uma trovoada mais terrível, que empurrou essa poeira toda! As folhas ficavam todas empoeiradas. Nós temos uma zona em que chovia todo o ano. Deixou de chover, o chão até abriu gretas. Não havia comida, principalmente. As plantas do campo, as mandioqueiras secaram. Batateiras, não se via nem corda. Assim, muitas gentes começaram também a ter certa resistência. Mas depois de ter passado essa crise, alguns ainda continuaram. SÉRGIO: Essa crise durou até que ano? SINFRÔNIO: Durante os anos 1982, 1983, para que 1984 a seguir houvesse chuva todo o ano também. Para superar esse tempo todo, o senhor são Pedro mandou-nos vir a chuva todo o ano! (ri) E assim nós continuamos. Fomos fazendo novos livros, conforme a fase em que íamos, até 1988, em que aquilo começou a cair mesmo. A cair, porque o governo passou a ter dificuldades. Já não havia aquele apoio correto que havia antes. Então, os alunos começaram a diminuir. Nós passamos a não ter meios de transporte, faltavam-nos outros meios. E depois, a crise política também: a própria política começou a mudar. O MLSTP começou a fazer intenção de mudar. Há uns que dizem agora que eles é que mudaram. Não, não. O próprio MLSTP é que viu que as coisas estavam a correr mal e resolveu fazer uma mudança. Criando condições para que houvesse outros partidos, com ideias de várias pessoas, talvez a coisa pudesse mudar. Então foi assim. Só que, depois da mudança, já não houve alfabetização. Há pouco tempo, o penúltimo ministro, Albertino Bragança, tinha dito que tinha um projeto de alfabetização. Até prometeu-me que eu ia dirigir a alfabetização. Mas depois o governo caiu, fez-se nova eleição, e até hoje não se falou mais nada. 5. A ALFABETIZAÇÃO CAIU: “FALTA CONSCIENTIZAÇÃO” SÉRGIO: Quando se olha para as estatísticas com relação à alfabetização de adultos em São Tomé — eu estava consultando num desses dias uma das publicações do próprio Unicef a respeito disso —, vê-se, por exemplo, que em 1991, a taxa de alfabetização girava em torno de 73%. Em 1995, havia subido para cerca de 76%, e em 1997 caiu de novo para 74%. A que é que se deve isso? Se nós considerarmos que a população de São Tomé não é assim tão grande — nas proporções brasileiras, por exemplo, caberia provavelmente a população inteira de São Tomé no estádio do Maracanã… SINFRÔNIO: Num estádio mais pequeno até, talvez. (ri) SÉRGIO: Por que, você acha, é tão difícil assim se conseguir a eliminação do analfabetismo? Aqui aparentemente seria muito fácil, mas não se consegue. Por quê? A que é que você atribui essa dificuldade toda? SINFRÔNIO: Eu digo-lhe algo, isso é meu conceito. Eu já estive em Angola, já andei, eu tenho por defeito andar. As partes de Luanda que eu conheço eu conheci andando. Eu digo aos nacionais de São Tomé que São Tomé não tem lugares longe. Eu saí da cidade de Bissau às sete horas, com o carro a correr na velocidade máxima, e nós só chegamos a Mansoa, salvo erro, às onze horas.21 Faça ideia: de sete às onze a correr, à velocidade. Então, aí é que há lugares distantes. Em São Tomé, não dá para andar todo esse tempo àquela velocidade. E isso é que é preciso que as pessoas tenham incutido dentro de si: que nosso país é uma casca de noz. Desde que a gente pense: um ministro da Educação de Angola… nem vamos a Angola, porque Angola é catorze vezes maior que Portugal… um ministro de Portugal tem muito mais com o que se preocupar do que um ministro da Educação daqui. Eu acho que tudo o que se faz aqui é deficiente. É o meu modo de ver. E deficiente porque, se nos esticarmos um bocado, essas coisas que para nós são dificuldades tornam-se fáceis. Eu às vezes digo aos meus filhos: quando estive na alfabetização, eu fiz muito esforço. Eu dava aula, trabalhava de manhã, de tarde e de noite — ainda não tinha concluído o quinto ano, hoje chama-se nona classe — e ainda conseguia estudar. Houve um momento em que, para fazer os exames, fiz-me autodidata. Eles agora têm uma série de livros que podem consultar, e vêm me dizer que perderam no exame, que tal professor reprovou porque não gosta deles, arranjam argumentos. Ora, quando um aluno me vem dizer isso, eu digo que teorias fúteis eu não aceito. Se todos nós tivéssemos a trabalhar com a ideia de que São Tomé é pequeno, seria realmente pequeno. Só que o que estamos a ver é que parece que os indivíduos ainda não saíram de São Tomé. E, no entanto, muita gente já saiu: eles fizeram curso lá fora, estudaram em países grandes, eles sabem que o que está lá não é o que está cá. Só que consideram aqui grande (ri), e, pronto, o trabalho fica difícil. SÉRGIO: No fundo, o que é que falta? Falta mesmo interesse em acabar com o analfabetismo? SINFRÔNIO: Faltam certos meios, falta conscientização. O senhor, que está fora do Brasil há muito tempo, já ouviu noticiários, já leu e já viveu as dificuldades africanas. Todas as dificuldades que a África tem não são dificuldades. Outras são desleixos. O caso da luta de Angola: é a força, o interesse do poder, porque se a Unita e o MPLA se resolvessem… Olha, no princípio da independência, se Agostinho Neto, Holden Roberto e Savimbi pensassem que eles estavam a lutar para libertar o seu país, país deles, e procurassem uma plataforma de entendimento, o que é que Angola seria hoje? A questão é que eles não pensaram nisso. “Eu tenho que ser presidente!” “Eu é que terei que ser!” Isso é que deu: até hoje está-se a matar tanta gente, a destruir tanta infraestrutura, só, para nada! 6. UM DEFEITO E O MEDO DE FALAR: “AS VERDADES ÀS VEZES PICAM” SINFRÔNIO: Embora, saiba muito bem que os nossos países — o seu também — não deixam de ter pressão sobre nós, porque há os ocidentais que fazem os seus planos e atiçam-nos. Nós também, sei lá como, aceitamos e desestabilizamos os nossos próprios países. Caso não, seria fácil: eu saí da escola sem fazer a quarta classe e não fiz exame. Meti-me na vida afora, andei a deambular por aí. Quando resolvi estudar, fiz até a nona classe. Fui professor de posto e fiz magistério primário. Fui diretor da educação de adultos na era colonial, num momento em que havia exigências, porque aqui agora não tem exigências. Eu consegui, na nossa era, agora depois da independência, ser coordenador da educação primária. E durante o tempo em que coordenei, nenhum professor se zangou comigo. Os meus colegas convidavam-me para assistir às suas aulas, para dar opinião, ensinar-lhes. Eu dizia: “Tenham paciência, aquilo que eu sei é aquilo que vocês também sabem, não?” Não tive dificuldades, graças aos céus, porque eu dava o máximo possível. Por que é que o Paulo considerou-me? Nós, quando estávamos no seminário, era uma data: cada um planificou o seu trabalho e foi apresentar. E o que é que aconteceu? O Paulo dizia: “Sinfrônio, tu és formidável!” (ri) Eu, Jorge e Maria nos destacamos, primeiro porque nós também já tínhamos prática pedagógica. Mas nós fomos os melhores porque tentamos nos esforçar. Não se consegue nada sem esforço. Às vezes eu tenho medo de falar, porque as verdades às vezes picam. Eu não concebo certas coisas. Aqui tem-se o defeito de: aquilo que eu posso tratar consigo, se o senhor for diretor, eu vou tratar com o ministro. O ministro não tinha nada que perder tempo a tratar coisas que o diretor deve tratar. Tem pessoas aptas, fidedignas. Eu sou ministro, há um senhor que é diretor, e eu confio no senhor fulano. Ele é que é responsável por aquilo, tem que dar o máximo para que as coisas corram bem. E há uma mania, aqui, de se atribuir certos males a determinadas fases da vida. Depois, também as pessoas se aproveitam disso, estamos mais por causa disso, e nunca mais se sai daqui. 7. O CRIOULO E O PROBLEMA DA LÍNGUA: “NÃO RESPONDE, NÃO RESPONDE!” SÉRGIO: O problema da língua nunca chegou a se pôr? O fato de que em São Tomé fala-se o crioulo, e nem todos falavam português: como é que vocês resolveram essa questão da língua? SINFRÔNIO: Nós começamos falando em língua nacional, porque onde nós fizemos o primeiro seminário foi lá em Monte Mário, na zona de Porto Alegre. E uma zona chamada Vila Tirumba. Nós fomos fazer lá porque era uma zona à beira-mar, onde as pessoas viviam mal, viviam retraídas. Então nós tentamos sensibilizar essas pessoas a virem à sociedade. E eles conseguiram, até. Imagina: indivíduos à beira-mar que ainda compravam peixe! Nós tentamos levá-los a ver que é ridículo que eles comprem peixe. E preciso que eles busquem peixe para os outros, porque eles são indivíduos à beira-mar, são pescadores, descendentes de pescadores. E eles acabaram por ter até máquina à popa e ser hoje pescadores. Portanto, se eles conseguiram isso, foi com o esforço que nós fizemos. Veja só: quando nós fomos para lá, eu domino a língua forra, e percebo alguma coisa da língua angolar. O outro meu colega não percebia nada do angolar, e ele estava a falar, falar, não sei o quê, e tal. Um angolar baixa a cabeça assim e diz: “Não responde, não responde!” (ri), mas na língua deles. E aquilo foi transmitido e retransmitido: “Não responde, não responde!” O homem falou, transpirou. Nada! Depois eles dizem qualquer coisa que não se entende, entre eles. Eu calei-me, não disse nada ao meu colega. Dia seguinte, eu é que seria o orador. E comecei a falar, mas antes disselhes: “Meus senhores, nós todos somos são-tomenses. E saibam que há são-tomenses com tom de pele branca. São filhos de português ou, sei lá, de qualquer branco que deixou aqui filho. Somos todos são-tomenses. Há quem é de origem não-seiquê, veio da costa africana, e hoje já não há essa gente que veio. Somos todos daqui. Ontem, quando o meu colega estava a falar convosco, vocês disseram assim: ‘Não responde, não responde!’ Eu ouvi. Não disse nada, mas percebi. Eu sou daqui e percebo toda língua que se fala cá. Então, hoje, tenham paciência: eu não saio da minha casa para vir brincar convosco, e vocês também não podem brincar comigo. Nesse momento nós viemos trabalhar, e trabalhar para vocês, não é trabalhar para nós, porque aquilo que nós queremos ensinar-vos nós já sabemos”. Fui diretamente. Acabou. É assim que eu trabalho, e só assim. Se há um senhor a trabalhar comigo, e eu achar que o senhor tem certas dificuldades, no que eu puder eu ajudo. Mas se está a fazer nhem-nhem-nhem, eu digo-lhe diretamente: “Ou trabalhamos ou não trabalhamos!” (ri) É isso. 8. A MENINA ATRASADA E O ANIMADOR: “ADULTO? NÃO PODES ZANGAR ADULTO” SÉRGIO: Eu me lembro que, na época em que eu conversei com o Paulo sobre a experiência dele em São Tomé, ele me falou de um episódio de que eu não sei se você chegou a participar. Eu tenho impressão de que foi aqui mesmo, na cidade capital. Foi a questão de um atraso com um animador. O Paulo conta exatamente o seguinte: O comportamento era o seguinte: uma menina chegou atrasada, uma mocinha, cinco minutos, à reunião. O animador parou os debates, houve um silêncio, ele olhou para ela e disse: “Camarada, cinco minutos! A camarada possivelmente estava conversando sobre maluqueiras, maluquices, no portão aí do prédio, quando nós aqui começávamos já a trabalhar. Camarada, você precisa saber que a reconstrução nacional não pode ser feita sem disciplina, trabalho e unidade. Eu espero que a camarada tome consciência da sua falta de responsabilidade e não repita o que acaba de fazer.” A menina, de pé, pediu desculpa e sentou-se, muda. Eu não disse coisa nenhuma, não podia dizer, nem devia, a não ser pensar. Um sujeito excelente o animador, mas duro, muito duro, com uma autoridade que ele, eu quase diria, impunha. Mas não era um mestre-escola. Era um político. É interessante essa nuança, sabe! Era um político que falava. Nos debates, ele não perdia uma chance para falar da responsabilidade do povo na reconstrução do país, dando uns exemplos bem populares, bem concretos, com relação à situação política do momento, lá. Na saída, um dos membros da Comissão Nacional me disse: “Camarada Paulo Freire, eu acho que é preciso chamar a atenção desse animador. Ele é muito competente, muito bom, muito esforçado, e faz isso tudo sem ganhar um tostão. Ele dá o exemplo mesmo, ele trabalha toda noite, não ganha nada, o Ministério não tem dinheiro para pagar a ele. Mas nós precisamos chamar a atenção dele, porque ele está muito duro.” O outro, nacional também, possivelmente dizendo isso muito mais para diminuir em mim o que ele parecia que estava vendo, uma decepção. Eu disse: — Amanhã eu queria conversar com vocês da Comissão. A gente tem uma reunião às nove horas, então vamos começar por isso que eu vi hoje. Depois vi outros círculos, fui para o hotel e comecei a pensar. No dia seguinte eu me reuni com eles e disse: — Olha, eu estou totalmente de acordo com o animador. Você se lembra desse episódio, Sinfrônio? SINFRÔNIO: Sim, esse animador chamava-se Narciso. Esse Narciso era excelente, só que de vez em quando ele excedia. Ele foi capacitado por mim. Capacitou-se, adquiriu conhecimento pedagógico. Ele era político mesmo. Houve um momento em que tive que chamar-lhe a atenção: “Eu gosto da tua atitude, mas tu não deves exceder, porque adulto?, não podes zangar adulto. Tu falas, sim, com uma certa reprimenda, mas não podes insultar adultos, porque eles não aceitam.” 9. BRASILEIRO, NÃO SER DA TERRA? “A QUESTÃO É SABER SER” SÉRGIO: O Paulo Freire teve alguma dificuldade aqui, pelo fato de ser brasileiro, de não ser da terra? SINFRÔNIO: Não! O Paulo tinha muito jeito, nunca teve dificuldades. O Paulo parece que era são-tomense, adaptava-se a tudo. Já veio cá, à minha casa. Há um chileno chamado… ele estava na Suíça. SÉRGIO: …Antonio Faundez? SINFRÔNIO: Faundez, sim, sim. Ele também veio praqui. Essa gente era simples, e nós fizemos um almoço aqui, comemos. Eram simplíssimos. A Kimiko também. SÉRGIO: E qual foi a última vez que você viu o Paulo? SINFRÔNIO: Ih! Não lhe digo x tempo, porque o Paulo chegou um momento em que não pôde vir. Ele teve que mandar Kimiko e a irmã, já esqueci-me do nome. Eram três indivíduos: duas irmãs e um homem também. Eles vinham sempre, mas quem ficava mais era a Kimiko. Depois ele passou a vir de vez em quando, e chegou um momento em que já não veio. Mas ele escrevia-nos. Quando ele ocupou um lugar, parece, numa universidade, não sei, escreveu. Contava-me o desenvolver do Brasil. Escrevia sempre que pudesse, mandava pelo menos um cartão. Sabe, a pessoa que sabe ser… A questão é saber ser, porque há pessoas que põem dificuldade em tudo. Nós é que devemos ultrapassar as dificuldades. Se pomos a dificuldade na testa, ficamos aí com a sombra da dificuldade, e nunca mais ela acaba. Eu, por exemplo, estou doente, e estou cá, a aguentar e a falar consigo. (ri) 10. FREIRE, FREINET, PLACAS E MULAS: “OS BRASILEIROS SÃO FORMIDÁVEIS!” SÉRGIO: Quais são as coisas que hoje, com essa distância toda, você acha que aprendeu mais, no convívio com o Paulo Freire? SINFRÔNIO: Aprendi muito! Nós, quando fizemos o curso de professor de posto, o nosso professor tinha o método de um francês chamado Freinet.22 Esse método era proibido na zona portuguesa. Os portugueses nem gostavam que falassem de Freinet, que era revolucionário. E, então, ele, para não fazer saber que ele estava ao lado do Freinet, tirava os seus apontamentos e passava-nos os apontamentos, só, e sse inspetor que nos deu aula. Nós trabalhávamos como se fôssemos mulas, conhece mula? Têm uma placa que punham assim nos olhos, porque as mulas mordem. E a gente andava assim, porque se mula vai com cara aberta, e se passa ao lado de alguém, tem mania de morder. Não sei se no Brasil também têm isso. Eu considerava o nosso saber como um labirinto só, em que nós nos fechamos. Fora daqui não sabíamos o que estava lá. Depois, com o Paulo Freire, eu comecei a ter um visual mais amplo. Ele pôs seu método. Kimiko, quando apareceu, usou seu método. Obrigava-nos a ler, contava-nos histórias. Os brasileiros são formidáveis! Para a pedagogia, eu digo-lhe que são muito mais do que os portugueses. Embora viessem de Portugal, são muito mais do que eles. Eu tinha dificuldades em inglês. Uma vez recebi uma cassete de aulas à distância, do Brasil. Aquilo saía semanalmente. O que aprendi sozinho com essa cassete! Os brasileiros utilizam os métodos mais simples para a gente aprender. Eu era mal em química, muito deficiente, e não podia ajudar aos meus filhos. Falei disso à Kimiko, e ela trouxe-me um livro de química. E eu passei a ver isso assim, claro! Portanto, os brasileiros têm muitos métodos, e métodos fáceis. E aí eu fui adquirindo essa capacidade. Trabalhar com adultos não é trabalhar com criança. Criança o senhor pode dar uma reprimenda, o adulto enerva-se. Então o senhor tem que ter modos próprios para adulto e modos próprios para criança. Mas se o senhor trabalhar com criança como trabalha com adulto, como respeita adulto, o senhor terá melhor proveito ainda. SÉRGIO: Você chegava a discutir com o Paulo, ou simplesmente ouvia? SINFRÔNIO: Não! Primeiro, eu nunca fui desse tipo, não gosto de engolir só. Isso é da era colonial, em que se engoliam as coisas. Eu também tinha que pensar. O senhor transmite, eu ouço, eu cozinho e reajo. E o Paulo também não é desses que atira só. Nos seus dizeres só, se a gente for assim, tem que mudar. Ele incentiva o indivíduo a mudar-se. E, outro ponto: eu nunca vi Paulo tomar uma decisão sem consultar-nos. Primeiramente ele consulta a sua mulher, a esposa dele: ideia dele, ideia dela. São coisas que a gente aprende também. SÉRGIO: Ele chegou alguma vez a fazer referência a esses diálogos que nós tínhamos tido? SINFRÔNIO: Consigo? Ele falava sempre no seu nome. Sérgio? Era sempre, principalmente comigo, porque eu enchia-lhe de perguntas. (ri) E ele dizia sempre, fazia um paralelo consigo e comigo. Só que eu não conhecia o tal Sérgio. Ao falar agora é que vim lembrar desse Sérgio. 11. FUTURO DEFICIENTE, EXEMPLO DAS CEGONHAS: “O SIM PARA AFIRMAR E O NÃO PARA NEGAR” SÉRGIO: Quando você olha para o futuro, qual é a sua ideia sobre a educação em São Tomé e Príncipe? SINFRÔNIO: Eu vejo que, bom, o futuro há de vir, mas só que, conforme será, eu acho que o futuro será deficiente, tendo em conta aquilo que nós falamos: da maneira de trabalhar, da maneira de se interessar pelas coisas. Se nós continuarmos com a lentidão, nós não avançaremos. Nós temos que nos desembaraçar, nos interessar. Eu não sei se nota que, nos Estados Unidos, interessa-se por tudo aquilo que nós aqui dizemos que não é nada, não há valor. Eu vou lhe contar um fato. Eu vi um tornado. As pessoas utilizam essa expressão: “um tornado”. Aquilo era um vento! Trouxe da costa africana algumas aves, cegonhas. Nós não tínhamos cegonha aqui. Eu vi sobre um imbondeiro23 seis cegonhas. E se nesse lugar tinha seis, sei lá quantas estavam noutros lugares. Vieram com o vento. SÉRGIO: Quando foi isso? SINFRÔNIO: Isso foi mais ou menos na década de 1980. Eu fiquei tão impressionado! E procurei acompanhar esses bichos, mas não tinha condições de impedir que eles fossem abatidos. Ninguém se preocupou com a existência desses coitados. Foram abatidos pelos caçadores, todos! Hoje, fariam parte da fauna são-tomense. E, até hoje, quantos desses bichos não estariam já em São Tomé? Isso é um exemplo que lhe dou. Se fosse nos Estados Unidos, haveria peritos aí atrás desses bichos, haveria decreto-lei que impedisse que caçassem o bicho. Aqui não se liga a nada! Onde as pessoas acham que tudo está bom, é difícil. Eu não quero ser pessimista, mal dizer do meu país, mas é o que estou a ver. Se eu trabalho para si, e o senhor paga-me, eu tenho que fazer valer aquilo que o senhor me dá. Como é que eu faço? Eu dou-lhe o trabalho que lhe agrada, porque o senhor paga a mim normalmente. Ora, quando o senhor paga e não vê rendimento, qualquer dia o senhor convida-me a sair. É isso, eu sou desse feitio: eu sou o sim para afirmar, o não para negar. Quando é assim-assim, eu não gosto. Veja que ontem eu estava quase a lhe dizer que estava doente. Mas disseme: “não, o homem não precisa saber da minha doença. O que interessa é que veio procurar-me.” (rimos) Só que, por azar, cheguei à noite e piorei. 12. DEMOCRACIA DO DEMO, LEVE-LEVE? “A MUDANÇA NÃO É SÓ POLÍTICA” SÉRGIO: Dias melhores virão. Mas, a propósito da educação em São Tomé e Príncipe, você não acha que o problema principal continua sendo a escola primária? SINFRÔNIO: Não só. E a primária, digo, porque a primária é a base. E eu não diria que se começa dos alunos. Começa dos pais, da sociedade. Estive a falar com um dos políticos e disse: Eu, se fosse quem de direito, a primeira coisa que tentaria fazer é disciplinar a sociedade. Depois disso, se a sociedade estiver disciplinada, os pais vão interessar-se em mandar os alunos à escola, vão se preocupar em ajudá-los em casa. Enfim, vão solicitar do professor aquilo que eles devem fazer para ajudar os alunos. E, então, exigir dos professores. Não há exigência agora. Há que exigir mais dos professores. E não pensar que assunto de educação só professores, metodólogos e pedagogos é que consertam, não. Não esperar o consertar. Fazer obras preventivas, prever o mal e evitar que ele aconteça. Deixar vir o mal para depois vir consertar, eu não vejo nisso uma atitude boa. Mas quem sou eu? (ri) Assim eu vejo, porque a educação é deficiente. Veja só: este ano as aulas praticamente estão iniciando esta semana. Já passou um mês e tal! Se eu fosse ministro da Educação, tinha-se que dar aula completa, o plano tinha que ser cumprido. Se nós perdemos um mês, temos que dar mais um mês. Mas eu sei que aqui não vão fazer isso. A democracia aqui é vista doutra maneira. Essa democracia, como eu vejo aqui, é a do demo. Não há democracia nenhuma no mundo em que não se faça exigência, em que não haja rigorosidade. Mas, aqui, é “deixa passar, para não ofender…” SÉRGIO: Leve-leve! SINFRÔNIO: “Leve-leve”, eu não gosto disso. Eu sou são-tomense, natural, e não tenho descendência de perto — que eu saiba — que seja ou foi angolano ou congolês. Eu sei que muito longe havia, mas avô, bisavô, todos foram sãotomenses. E eu não gosto dessa expressão, “leve-leve”. Já vi cubanos a trabalharem, já vi portugueses a trabalharem, já vi muitas raças a trabalharem; chineses, por exemplo, ou coreanos, depois da Segunda Guerra. Trabalharam muito. O senhor vê em filmes o trabalho extraordinário que faziam: acarretavam terra dum lugar para outro, para poder pôr sobre as pedras e poder cultivar. Em São Tomé não fazem isso. Se a educação primária for deficiente e as outras fases também, vai-se ficando coxo. E quando se chega à universidade, às vezes perde-se o primeiro ano, ou então faz-se muito esforço. Olhe, eu não tive tempo para ajudar bem os meus filhos. Um está na universidade, em Évora, Portugal. E ele escrevia-me: “Pai, não tenho tempo, não se aborreça comigo, porque eu tenho que esforçar-me.” Porque, primeiro, ele chegou lá tarde, já tinham iniciado as aulas. Segundo, aquilo que ele via aqui não era o que ele encontrou lá. A irmã, que estava na França, diz-me: “Pai, o francês que eu falava em São Tomé (ri) era praticamente zero, perto do que vi em França!” Mas, se houvesse uma coerência em São Tomé, rigorosidade, fazer as coisas bem para os alunos continuarem, habituarem com um trabalho de base, seguro, aí seria uma outra maneira de agir. É por isso que eu digo: à minha maneira de ver, aí tem que mudar. A mudança não é só política, tem que ser duma maneira geral. Posso avançar, por exemplo, que chegou-se um momento em que via-se pouca gente na alfab etização. Nós não continuamos as fases todas e temos analfabetos desse grupo agora. Esses analfabetos são analfabetos de retorno, porque não atingiram uma fase em que pudessem ler tudo e não esquecer. Mas nós tivemos também muitos que conseguiram. Por exemplo, eu tenho um colega que hoje é professor e que foi nosso aluno da alfabetização. Ele fez a quarta classe, fez exame com esse livro… SÉRGIO: (lendo) “A luta continua — quinto caderno de cultura popular”. SINFRÔNIO: …e meteu-se num curso de adulto à noite, fez sexta classe, conseguiu fazer a sétima — mas assim um bocado fraco — e quis ser professor. Foi ter comigo, eu disse: “Não, requeres, vão ter um seminário em pouco tempo, e você vai. Se passar…” Quando chegou ao fim, ele disse que não tinha nota suficiente. Eu disse-lhe: “Olha, pá, tu vais pedir um lugar distante.” Ele pediu Porto Alegre. Foi prali, trabalhou dois anos e, no ano seguinte, veio para a capital, e é professor. Hoje já tem magistério primário. Isso são pontos em que nós vemos que fizemos alguma coisa. Por exemplo, há muitos oficiais. Há um que penso que hoje é major e que foi aluno meu na alfabetização. Além dos que vêm do ensino primário; o próprio ministro da Educação foi um dos alunos que passaram pelas nossas mãos. Portanto, para mim, isso é tudo. Só é pena que agora a gente já não pode fazer mais nada. Com essas exigências do Banco Mundial, nós tivemos que vir para casa. SÉRGIO: Por quê? Que exigência? SINFRÔNIO: Que as pessoas com uma certa idade, 58, ses-senta, se retirem. Notas Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe, inicialmente constituído como Comitê de Libertação de São Tomé e Príncipe no interior do país, em setembro de 1960, e rebatizado como MLSTP a partir de 1972. Em janeiro de 1973, é reconhecido pela Organização da Unidade Africana (OUA) como autêntico representante do povo de São Tomé e Príncipe. 20 Talvez ofuscado pela notória pequenez de São Tomé (960km2) mesmo diante da modesta dimensão territorial da Guiné-Bissau (36.125km2, ou seja, pouco maior que o estado de Alagoas e cerca de 232 vezes menor que o Brasil), neste ponto Sinfrônio se equivoca: a distância entre Bissau e Mansoa não chega a sessenta quilômetros. 21 Célestin Freinet (1896-1966). “Professor primário (1920), fundador da Cooperativa do Ensino Leigo. Foi levado a praticar uma pedagogia que, recusando o autoritarismo como o ‘laissez-faire que não resolve problema nenhum’, tentou conciliar a teoria e a prática, promover a formação da personalidade bem como o trabalho em grupo, desenvolvendo os ‘métodos ativos’ (tais como o da imprensa na escola [jornais escolares, correspondência interescolar] e o do texto livre). Tendo-se demitido de seu posto em consequência de dificuldades com a municipalidade de Vence, criou a sua própria escola (que logo tornouse uma escola experimental). Suas posições, expostas em diversas obras (L’Éducation du travail, 1947, Essai de psychologie sensible appliquée à l’ éducation, 1950), inspiraram numerosas reformas do ensino, tanto na França quanto no exterior.” (tradução livre) in Le Petit Robert des Noms Propres. Alain Rey et al (org.). Paris: Dictionnaires Le Robert, 2000, p. 783. 22 23 Sinônimo africano de baobá. O Dicionário Houaiss registra o termo como embondeiro. TERCEIRA PARTE ANGOLA 5 “O IDEAL PERDEU-SE. É UMA CATÁSTROFE!” 1. OS CENTROS DE INSTRUÇÃO REVOLUCIONÁRIA E PAULO FREIRE, “UMA ESPÉCIE DE GUIA” SÉRGIO: CAMARADA LÚCIO LARA,24 eu gostaria, em primeiro lugar, de saber uma coisa: o senhor foi professor, não foi? LÚCIO: Fui. Fui em Portugal, na Guiné Conacry… Depois deixei de ser. SÉRGIO: Quanto tempo o senhor foi professor? LÚCIO: Não me lembro, não, mas na Guiné Conacry foram pelo menos dois anos, no secundário. Na mata, quando conheci o professor Freire, eu era professor nos Centros de Instrução. Ainda hoje tenho filhos desses centros. Vivem comigo. Jovens que viveram comigo nesses centros, e são meus filhos. SÉRGIO: Esses centros eram onde? LÚCIO: Em Angola, era no Cuando, nas margens do rio Cuando. SÉRGIO: Em que ano foi isso? LÚCIO: Foi mais ou menos, mesmo mais ou menos, em 1968, por aí. SÉRGIO: E o senhor dava aulas de quê? LÚCIO: De tudo. SÉRGIO: Tudo? (rindo) Tudo como? LÚCIO: Primário. Veja, era um centro de educação. A gente chamava era um Centro de Instrução Revolucionária (CIR). Então os jovens daquela área vinham para o CIR para aprenderem as letras, as contas. Naquela altura, aquilo era equivalente ao nível da 4a classe. E como não tínhamos outros professores, era eu mesmo que fazia isso. Ensinei muitos jovens, e alguns deles são meus filhos hoje. Um deles vive comigo mesmo, vem cá todos os dias, trabalha aí na Sonangol25 agora. Eu ensinava tudo o que eu podia ensinar aos jovens desses centros de instrução revolucionária. Era uma espécie de instrução primária geral, “embaralhada”, se quiser. SÉRGIO: E fez isso durante muitos anos? LÚCIO: Dois anos, naquele centro perto do Cuando, no maquis.26 SÉRGIO: Alfabetizou também? LÚCIO: Sim, alfabetizei, e aí é que tive muitas conversas com Paulo Freire, porque eu cheguei à conclusão de que era preciso encontrar meios de alfabetizar nas línguas nacionais. Naquela época, eu não sabia as línguas nacionais daquela área. Por exemplo, eu ensinava a ler “panela”, mas a pessoa não entendia, não sabia o que era panela. Lia “panela”, mas não sabia. Isso foi uma das discussões que eu tive com o Paulo Freire, justamente: a necessidade de nós nos reencaminharmos para o ensino das línguas nacionais. Era extremamente difícil não só por não dominarmos todas as línguas — que nós temos muitas línguas em Angola —, mas também não havia nada escrito. Nós só tínhamos coisas escritas em português. SÉRGIO: O senhor chegou a usar essa cartilha “Eu sei ler?” 27 LÚCIO: Isso já foi muito mais tarde. SÉRGIO: No momento em que se fez a cartilha, o material de alfabetização, havia alguma ideia relacionada com o trabalho do Paulo Freire, ou não? LÚCIO: Conhecia-se teoricamente. Conhecia-se de nome o Paulo Freire e suas ideias. Ele era assim uma espécie de encontramo-lo por acaso lá uma vez, na fronteira com a Zâmbia, já na Zâmbia. Mas só reencontrei pessoalmente o Paulo Freire aqui, depois, quando ele veio aqui a Angola, nos tempos já da independência.28 Nessa altura [na Zâmbia], ainda éramos Movimento de Libertação, e aí discutimos muito, e a discussão foi muito interessante, porque eu tinha dificuldades, no Centro de Instrução Revolucionária, pela questão da língua: ensinar português a pessoas que não sabiam português, pá, era muito difícil. Você ensina a ler, a pessoa aprende a palavra, mas não aprende o significado da palavra. Não sabe, não conhece. Lê “panela”, mas depois tenho que explicar a ele o que é uma panela! Então, essa era uma das preocupações da prática, justamente, da experiência que eu tive. E só agora é que estamos aqui mais ou menos a encaminhar-nos para isso, para o ensino das línguas nacionais, a alfabetização em línguas nacionais. Só agora é que andam a fazer isso, porque é preciso muitos meios, que nós, na luta de libertação, não tínhamos. Aliás, esses jovens aprenderam à mesma. Muitos deles mandamos para o exterior. Por exemplo, esse meu filho de que eu falei esteve na Iugoslávia; uma moça teve que ir à Alemanha; outra esteve e casou na Guiné-Bissau. E aprenderam ali no nosso centro: em português, mal, mas aprenderam. Puderam estudar lá fora depois, puderam fazer bons estudos lá fora. SÉRGIO: Qual a impressão que o senhor teve do Paulo Freire, das conversas que teve com ele, como intelectual? Qual a imagem que o senhor retém dele? LÚCIO: Ele era uma espécie de guia para nós, porque as teorias dele davam certo. Estavam de acordo, inteiramente que depois ele fala dessa conversa quando nos encontramos. Era uma espécie de encontro de um teórico que a gente conhecia de nome, e que apreciávamos e inspirava-nos. Ele não conhecia a nossa realidade, mas teoricamente comentava os pontos e ideias que nós tínhamos. Essa foi a impressão daqueles tempos. Aliás, eu nem sabia que ele tinha morrido. SÉRGIO: Tem alguma memória de ideias dele com que o senhor não concordava? LÚCIO: Não. Como lhe disse, eu conhecia teoricamente o Paulo Freire, mas o que eu conhecia dele eram coisas que estavam sempre de acordo com aquilo que eu pensava. E se pensava isso era porque era a minha experiência, e eu queria encontrar soluções para mim mesmo e muitas vezes me inspirava nas teorias do Paulo Freire. Por isso foi uma alegria muito grande para nós podermos ter tido contato. Foi uma alegria mesmo. 2. “UM DOS MAIORES DESGOSTOS QUE EU TENHO É A EDUCAÇÃO EM ANGOLA, QUE É UM DESASTRE!” SÉRGIO: Quando o senhor olha para trás e pensa nos ideais que levaram o MPLA a toda essa luta, não só pela independência, mas pelo progresso, pelo desenvolvimento, por um novo homem… LÚCIO: Um novo homem… SÉRGIO: …uma nova mulher, e o papel da educação nesse processo, qual é o balanço que o senhor faz de todo esse sonho, essa luta, em termos de educação, para um novo homem, uma nova mulher? LÚCIO: Até à independência foi muito positivo. Depois, aqui, estragou-se completamente. Nós deixamos estragar, perdemo-nos! Veio a burocracia toda, os interesses todos urbanos, e perdemo-nos. Hoje a educação é uma miséria em Angola. Para mim, um dos maiores desgostos que eu tenho é a educação em Angola, que é um desastre, é catastrófica! Se a gente pensa no que fizemos, e fizemos muito, realmente! Tínhamos uma equipe muito boa, onde estava o Pepetela,29 por exemplo. Eu poderia depois lhe mostrar assim alguns dos livros que nós fizemos durante a luta da independência. Porque tínhamos uma equipe voltada para isso, e com esses ideais que, no fundo, eram guiados pelas teorias de Paulo Freire. Perfeitamente! E por isso é que houve esse encontro tão simpático e tão atípico naquele momento: porque notamos um homem teórico das nossas preocupações. Um teórico, um gajo que pensava, e tal. A gente conhecia aquilo e estava de acordo com ele. Infelizmente, a independência fez-nos perder isso tudo, e hoje está uma verdadeira catástrofe. É uma catástrofe! Hoje vivemos em Angola, na educação, o que eu chamo uma catástrofe! É um desastre total! Porque houve, se quiser, um capital muito bom, na luta de libertação. E foi usado ainda pelo Antônio Jacinto, que usou inclusivamente alguns dos nossos métodos e livros da luta de libertação, no princípio aqui da independência. Mas depois isso perdeu-se. Hoje é uma miséria. Até os manuais não têm nada que ver com aquilo que nós idealizamos, fizemos durante a luta, e depois perdemos. Por nossa culpa talvez, perdemos. Hoje não temos esse capital de educação que nós formamos, não sei se milhares, mas centenas de estudantes, que saíram desses Centros de Instrução Revolucionária. Portanto saíram do zero, e aprenderam, em português até, e daí eles saíram para todos os países que nos davam apoio na altura, para a União Soviética, a Alemanha, a Checoslováquia, a Iugoslávia. E foram fazer ou cursos médios ou cursos superiores. Até médicos, fizemos médicos e tudo! E todos esses indivíduos formaram-se da luta de libertação, graças ao interesse, dinamismo, ao empenho do MPLA de formar a sua juventude, que se perdeu. Hoje não existe nada disso, é um desastre! Nós hoje vivemos talvez um dos períodos mais graves da educação em Angola. Muito grave, muito grave! Eu acho que é uma catástrofe, o que vivemos hoje na educação em Angola. E não havia razões, porque as bases vieram da luta de libertação. E perderam-se. SÉRGIO: E por que é que se perderam? O que foi? Falta de quê? LÚCIO: Foi esse contato com a cidade, a burocracia, se quiser, os interesses individualistas. Bom, perdeu-se muit o patriotismo natural que havia em todos nós. Ninguém estava na luta por qualquer interesse que não fosse libertar. Hoje, as pessoas até que estão no mesmo movimento, no nosso movimento, estão interessadas por negócios, por interesses outros que não são os ideais. O ideal perdeu-se. O Ideal, com letra grande, perdeu-se. E hoje, eu vou ainda hoje ao meu partido, e quando lá chego encontro funcionários do partido, mas funcionários abúlicos. Funcionários que não têm nada do que nós tínhamos, não têm nada! 3. FUTURO? “FAZER RENASCER AQUELE ESPÍRITO DE EDUCAÇÃO QUE HAVIA HÁ UM BOCADO” SÉRGIO: Agora, camarada Lúcio Lara, e em relação ao futuro? Há uma nova geração, gente nova chegando! LÚCIO: Nós não podemos continuar assim, porque, como digo, a situação é catastrófica, e Angola é um país que não pode viver assim! A única esperança que nós temos é justamente na educação da nossa juventude. Mas isso tem que se refazer, e eu ainda não vi como. Estamos agora a discutir parece lá umas leis, mas ainda não estou a ver. O problema é diferente do nosso tempo. Aliás, ainda hoje eu sou da Comissão de Educação na Assembleia Nacional, e faço muita pressão. Infelizmente é uma Comissão que não funciona, ainda por cima, e eu irrito-me com isso. Estou sempre a criticar o não funcionamento da Comissão que eu considero a mais importante da Assembleia Nacional. Não funciona, e eu estou sempre a criticar isso. Vamos ver se a gente ainda consegue, em final de mandato, fazer renascer aquele espírito da educação que havia há um bocado, não é? SÉRGIO: Depois de todo esse trabalho pela libertação, de toda essa luta por um país independente, o senhor está otimista em relação a essas novas gerações de angolanos? LÚCIO: Sim. Não sou otimista em relação ao que existe atualmente. Em relação às novas gerações tenho que ser otimista, porque os jovens são sempre jovens, e é neles que reside a esperança em relação ao futuro! Agora, têm que ser também ajudados, e não estou a sentir nem do Governo, nem do Partido — nem do meu Partido! — esse engajamento a sério. Não é para discutir uma lei, não. Um engajamento a sério, para que se dê a importância que é necessário dar à educação, na situação em que estamos. Estamos numa situação catastrófica, e não pode ser! Nós somos hoje um dos países mais importantes desta parte da África. Somos, sem dúvida alguma. Eu vou à África do Sul e vejo: enfim, apesar do apartheid, eles têm bases, e têm por onde, têm universidades… Ao passo que nós aqui não temos bases, e isso é um drama. A gente quer dar algum reforço à educação e não vê como, porque não sente que o governo, o Ministério — e eu digo sempre, o meu Partido — não dão a importância que a educação tem que ter! Mas é preciso realmente encontrar o método de chegar lá, porque isso impõe-se, a juventude impõe-se! A juventude tem a sede do saber, a necessidade do saber, e o país necessita da juventude. Então, tem-se que se fazer alguma coisa. 4. A ORIGEM DOS CENTROS DE INSTRUÇÃO, “LUGARES DE ENCONTRO DE JOVENS PARA A LUTA” SÉRGIO: Voltando um pouco, camarada Lúcio Lara, aos Centros de Instrução Revolucionária: como é que apareceram esses centros? O senhor esteve na origem; qual era a ideia do funcionamento desses centros? LÚCIO: A origem era muito simples. Isso começou no Congo Brazzaville. Eram lugares de, sendo escolas, encontro de jovens que vinham do interior de Angola para a luta. Então a gente concentrava-os, e criou uma espécie de colégio. Esse colégio funcionava como Centro de Instrução Revolucionária. Primeiro foi em Brazzaville, e depois fizemos vários no leste. Num deles fui eu o responsável, em Brazzaville foi o Dilolwa.30 E depois, em Brazzaville, também ficou um grupinho, que veio de Alger — onde estava o Pepetela, a antiga mulher do Pepetela,31 e mais dois quadros, com quem eu estava em contato. Eu estava no leste, eles estavam em Brazzaville, mas eles faziam-nos os livros de estudos e chegaram a fazer uma série deles. Esses centros, ao mesmo tempo em que davam assim, digamos, a educação normal, acadêmica, ao mesmo tempo davam uma educação revolucionária. Os jovens iam muitas vezes para o interior levar mantimentos ou munições para os soldados. Muitos estão aí agora, são engenheiros etc. Eles sabiam que o fato de serem alunos do Centro de Instrução Revolucionária, CIR, dava-lhes lá a obrigação moral de tomarem parte em operações de abastecimento dos guerrilheiros que estavam lá dentro. Eles carregavam alimentação, carregavam munições e muitos deles ficavam no interior, para ajudar os guerrilheiros. SÉRGIO: Havia tanto homens quanto mulheres? LÚCIO: Sim, sim. Conhece uma senhora Mingas, que fez um livro aí há uns tempos? É linguista: Amélia Mingas.32 Ela foi professora desse centro também, do CIR em Brazzaville. Pepetela, a mulher do Pepetela, havia vários que eram professores. 5. EXPERIÊNCIA DE ALUNO, NO TEMPO COLONIAL: “HAVIA DOIS NEGROS NO MEU COLÉGIO. DOIS!” SÉRGIO: E qual foi a sua experiência como aluno? O senhor se lembra como é que era a escola na sua época? LÚCIO: Fui aluno no tempo colonial. SÉRGIO: Qual é a memória que o senhor tem dessa escola? Era uma escola boa? Autoritária? Como é que era essa escola? LÚCIO: Para já era autoritária, não é? Eu fui um bocado privilegiado, porque eu vivia no Huambo, e vivi num colégio interno. Meus pais viviam no interior, mas pagavam uma mensalidade ao colégio. E ali era uma disciplina de colégio interno. SÉRGIO: Religioso? LÚCIO: Não, não era religioso. Era um internato, mas civil. Ainda hoje existe esse colégio, o “Alexandre Herculano”. SÉRGIO: Mas era rigoroso porque era internato? Ou porque as escolas, de uma maneira geral, nessa época… LÚCIO: …eram assim. Eram rigorosas: nós éramos obrigados a ir à missa, aos domingos. O colégio ia à missa, íamos todos. SÉRGIO: E nessa época, como aluno, o senhor sentia alguma discriminação entre alunos, de caráter racial? LÚCIO: Você repare que eu não sou negro, mas, nesse tempo, havia dois negros no meu colégio. Dois. Dois! SÉRGIO: Só? LÚCIO: Só. Não havia acesso. SÉRGIO: E qual era a razão principal? Era econômica? Ou havia alguma interdição mesmo? LÚCIO: Era econômica, mas ao mesmo tempo também racial. Aparecia como econômica, porque o pai de um jovem negro, por exemplo, não tinha possibilidade nenhuma, com o que ele ganhava, de pôr o filho num colégio. Não tinha, mas isso era uma mescla de racial e econômico. Eram os dois fatores aí a jogarem muito nesse problema. Depois entrei no liceu do Lubango, que chamava-se, nessa altura, Sá da Bandeira. Estudei lá o último ano do liceu. Também aí encontrei dois negros. Negros, negros, não havia mais! SÉRGIO: Num conjunto de mais ou menos quantas pessoas? LÚCIO: Duzentas e tal. Havia mestiços, eram alguns, e o resto era branco. SÉRGIO: E a palmatória, o senhor conheceu? Ou no seu tempo já não havia? LÚCIO: Havia. Embora não fosse assim uma coisa muito utilizada, mas havia. No colégio havia palmatória, sim. SÉRGIO: O senhor chegou a ver em uso essa palmatória alguma vez? LÚCIO: Claro, claro! SÉRGIO: Nunca na sua mão? (ri) LÚCIO: Também, também! SÉRGIO: O senhor chegou a apanhar também? LÚCIO: Apanhávamos! De vez em quando davam, e apanhávamos à palmatória, sim. 6. EDUCAÇÃO, “UM PROBLEMA QUE O GOVERNO TEM QUE RESOLVER. SENÃO, SERÁ CONDENADO” SÉRGIO: Camarada Lúcio Lara, não sei se o senhor tem mais alguma coisa a dizer sobre a educação, quanto ao futuro. LÚCIO: Você mantém-se no Unicef, não é? SÉRGIO: Sim. LÚCIO: Infelizmente agora tenho muito pouco contato com o Unicef. Eu tinha tido muito contato antes. SÉRGIO: O senhor esteve muito ligado à infância, não? LÚCIO: Estive muito ligado sim, sempre. SÉRGIO: E como é que o senhor vê hoje a infância angolana? Qual é a ideia que o senhor tem hoje, quando vê os problemas que há? LÚCIO: No fundo, cai-se sempre no problema da educação. Desde o préprimário, o Estado ainda não conseguiu investir o que é necessário investir na infância e na juventude. SÉRGIO: O senhor acha que o fator principal é a guerra? LÚCIO: Não só, não só. Também é, claro, fundamentalmente é, porque há dificuldade de ligação com o resto do país, esses aspectos sobretudo de comunicação, de ligação física, e isso dificulta tudo. Mas não é só isso. Veja, por exemplo, quanto a Luanda: as coisas poderiam ser mais tomadas a sério, mais feitas de um ponto de vista engajado, como eu disse. Embora hoje se faça muita propaganda sobre muita coisa das crianças, as coisas fundamentais ficam um bocado no ar. São coisas para ver, para mostrar, não é para fazer. E há ainda, a meu ver, um problema muito grave, que é o problema dos professores. A pouca atenção que se tem dado, que o governo está a dar à formação dos professores. Porque o professor é um quadro excepcional. O professor é o pai, no fundo, de toda a juventude. E eu digo-lhe isso porque eu já senti, e eu sinto isso ainda hoje! Se ontem viesse cá a casa, encontrava aqui pessoas que chamam-me pai. Mas chamam-me porque eu sou pai deles também, eu sou o pai que eles tiveram de há muito tempo. E esse engajamento não se vê hoje do poder, para possibilitar ao professor o tornar-se pai das suas crianças. Eu acho que este é o tal combate que temos que fazer, que está por fazer ainda, e vamos ver se conseguimos, através da Assembleia Nacional, porque é fundamental! No fundo, a nossa criança está abandonada. Há muita coisa na televisão, é blá-blá-blá da televisão. Não há engajamento. Não se vive o problema da criança E eu acho que este é um problema que o governo tem que resolver. Senão, será condenado. SÉRGIO: Acha que falta se dar mais prioridade à criança, à educação? LÚCIO: Sim, falta. Claro, acho que falta essa prioridade, sim, fundamental, à criança e à educação, ao problema da educação, eu diria, em geral, a partir da criança até à universidade. Fala-se muito da criança, mas você vai à universidade e encontra vazios, porque não houve os antecedentes: muitas vezes o jovem chega à universidade e não é universitário. Não tem a vivência, não lhe deram, não o formaram para ser universitário. E, então, a lacuna mantém-se na universidade. Esse é o grande drama que nós temos e que temos que resolver; porque temos, felizmente, uma África do Sul ao lado, que pode servir de inspiração também, de exemplo. Você veja, nós temos muitos jovens fora do país. Muitos! O que não está certo, porque deveriam ser formados aqui, no seu país! Temos muitos pais que mandam os filhos para a África do Sul, para Portugal, para a América até, para os Estados Unidos! Não deveria ser, mas os pais também, no fundo, sentem que é necessário dar educação aos filhos, e mandam-nos, e têm razão! Eu não posso condenar um pai que deseja o bem do seu filho! 7. SONHO DE UMA ANGOLA PARA AMANHÃ? “EDUCAÇÃO, PRIORIDADE DAS PRIORIDADES” SÉRGIO: Como indivíduos, nós temos um ciclo de vida que é muito mais curto do que o ciclo de vida de um povo, não é? Por isso, é possível que as melhores coisas ainda estejam por vir. Qual é o seu sonho de uma Angola para amanhã? Hoje, quando já não se tem mais aquele mesmo entusiasmo, quando sabemos que os ideais socialistas sofreram com a prevalência de interesses individualistas, qual é o seu sonho, camarada Lúcio, com relação ao futuro deste país? LÚCIO: É este: é criarmos as condições para que a nossa juventude possa ter satisfação nos problemas fundamentais da juventude, que são a educação — primeira prioridade das prioridades — e, de resto, toda aquela lista de sonhos que a juventude tem. Mas, fundamentalmente, é a educação. Eu creio que é aí que o Estado, o partido — eu digo sempre, até no meu partido eu digo isso — devemos fazer o impossível para melhorar a educação, porque é um capital que nunca é mal-empregado. Mas perdemo-nos, o governo e o partido no poder perdemo-nos na questão da educação. Ainda sinto muitas, muitas deficiências na educação, muitas! SÉRGIO: E a sua sensação não é a de quem está a falar sozinho, é? LÚCIO: Não, não! SÉRGIO: Acha que há muito mais pessoas que têm essa consciência? LÚCIO: Claro, sim, sim! SÉRGIO: Portanto, não vai ser tão difícil assim reverter a atual situação, certo? LÚCIO: Sim. O problema é o dos homens que estão no poder, que estão no governo. É de encontrar a maneira de os obrigar… Vamos ver, não é? Notas No momento deste diálogo, ocorrido em 20 de outubro de 2000, em Luanda, Lúcio Lara (nome de guerra “Tchiweca”) ainda ocupava o posto de deputado no parlamento unicameral angolano. Nascido em Nova Lisboa (atualmente capital da província do Huambo) em 9 de abril de 1929, de pai português e de mãe angolana mestiça. Depois da escola secundária, Lara vai para Portugal prosseguir seus estudos universitários, no mesmo ano que o futuro presidente Agostinho Neto (1947). De 1954 a 1957, trabalha no colégio Moderno como regedor de estudos e professor substituto de física e química. Em abril de 1960, chega a Conacry, capital da Guiné, onde dá aulas no liceu e passa a integrar o Comitê Diretor do Movimento de Libertação de Angola (MPLA). De acordo com o professor Jean-Michel Mabeko Tali, “Lúcio Lara acabou por simbolizar, em comum com Neto, e sozinho depois da morte deste, tanto aos olhos dos detratores como aos dos simpatizantes, todos os erros e todos os dissabores políticos acumulados ao longo dos anos desde a época da luta de libertação nacional — mas também todo o capital simbólico e todo o prestígio de que o MPLA gozou junto das populações africanas, pelo menos até a morte de Neto, de quem parecia ser o braço direito. Apresentado durante muito tempo como o ideólogo do MPLA, ocupou, desde 1960, na direção política do movimento de libertação e, depois, do Partido-Estado (Comitê Diretor — de 1960 a 1974 —, Comitê Central — desde 1974), ao longo da sua carreira política, sucessivos postos essenciais, como o secretariado da organização e da formação de quadros […]. A sua queda política no interior do MPLA começou em 1983, a seguir a uma das mais profundas crises jamais conhecidas pelo movimento e, depois, Partido-Estado. Seja como for, Lúcio Lara continua atualmente a ser a mais rica memória viva da história do MPLA.” in Jean-Michel Mabeko Tali, Dissidências e poder de Estado: o MPLA perante si próprio (1962-1977). Luanda: Editorial Nzila, 2001, vol. 1, p. 93. 24 25 Empresa angolana de exploração e distribuição de petróleo e derivados. 26 Termo de origem franco-corsa, indicando clandestinidade. Trata-se, na realidade, do Livro de Leitura para o 2º Semestre da Educação de Adultos, edição do Ministério da Educação da República Popular de Angola. Lobito: Gráfica Aguedense, 1979. 27 Em seu livro Pedagogia da esperança, Paulo conta: “Ao descer em Lusaka, onde deveria tomar outro avião, em voo nacional para Kitwe, o alto-falante do aeroporto me transmite o convite para comparecer ao setor de encontros. Lá me esperavam um jovem e uma jovem norte-americanos […]. Eles trabalhavam como voluntários em Zâmbia e tinham muito boas relações com representantes da liderança do MPLA […]. Depois dos abraços regulares me perguntaram se poderia ficar em Lusaka naquele dia, viajando para Kitwe no próximo. A equipe do MPLA em Lusaka desejava conversar comigo sobre problemas de educação e luta, alfabetização nas áreas libertadas etc. […] “Às 13 horas, na casa do jovem casal, almoçava com a liderança do MPLA, chefiada por Lúcio Lara, que seria, poucos anos depois, o segundo homem de Angola […]. Tivemos uma tarde e uma noite de trabalho com alguns filmes documentários que davam carne às conversas. “Inicialmente, Lara fez um relatório realista da situação em que se achava a luta de libertação para, em seguida, debatermos a prática educativa no seio da luta mesma […]. Discutimos também, por largo tempo, permeando a conversa com documentários, a questão da alfabetização e a necessidade imperiosa que a própria luta, como processo, colocava à sua direção, de correr, com seriedade, naturalmente, no sentido da formação técnica dos militantes, com vistas ao andamento da luta […]. Simultaneamente com esse tipo de 28 preparação, a formação política dos militantes que, na compreensão crítica de Amílcar Cabral, deveriam ser sempre militantes armados, jamais militares. “Anos depois tive a oportunidade de continuar algumas dessas conversas com Lúcio Lara, em Luanda, quando ele se achava à frente do Bureau Político do partido e eu, por convite dele e do então ministro da Educação de Angola, o poeta Antônio Jacinto, […] assessorava aquele ministério, através do Conselho Mundial de Igrejas. “Aquele encontro em Lusaka […] me marcou fortemente. Afinal, eu era convidado a dialogar com militantes experimentados na luta, cujo tempo não podia ser gasto com devaneios ou com arrancadas intelectualistas. O que eles queriam era entregar-se comigo à reflexão crítica, teórica, sobre sua prática, sobre sua luta, enquanto um ‘fato cultural e um fator de cultura’ (Cabral, 1976). Sua confiança em mim, como um intelectual progressista, me era realmente importante. Eles não me criticavam porque, citando Marx, citava também um camponês. Nem tampouco me consideravam um educador burguês porque eu defendia a importância do papel da consciência na história.” In Paulo Freire, Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1992 [17a edição, São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 202-5]. Nome de guerra de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, nascido em 29 de outubro de 1941 em Benguela, onde cursou o ensino primário e parte do secundário até 1956. Concluiu o secundário no Lubango, província da Huíla, e frequentou a partir de 1958, em Portugal, o Instituto Superior Técnico. Depois de passar pela França, em 1962, seguiu para a Argélia, onde obteve a licenciatura de sociologia, na Universidade de Argel. Em 1969, aderiu à guerrilha na Frente de Cabinda e, em 1972, transferiu-se para a Frente Leste, onde foi nomeado diretor do Centro Augusto Ngangula. A partir de 1973, exerceu as funções de secretário permanente do Departamento de Educação e Cultura do MPLA e, em novembro de 1974, chegou a Luanda como parte da primeira delegação do MPLA. Diretor do Departamento de Orientação Política a partir de janeiro de 1975, passou a integrar o Estado-Maior da Frente Centro em julho de 1975. Com a independência, foi nomeado vice-ministro da Educação (1975-1982). Professor de sociologia na Universidade Agostinho Neto, em Luanda, é autor de uma extensa produção literária que inclui Muana Puó (1969), Mayombe (1971), As aventuras de Ngunga (1972), A corda (1976), A revolta da casa dos ídolos (1979), Yaka (1983), O cão e os caluandas (1985), Luéji, o nascimento dum império (1989), A geração da utopia (1992), O desejo de Kianda (1995), Parábola do cágado velho (1996), A gloriosa família (1997), A montanha da água lilás (2000) e Jaime Bunda, agente secreto (2001). Em 1997, recebeu o mais importante prêmio literário da língua portuguesa, o prêmio Camões, pelo conjunto da sua obra. 29 30 Inicialmente nome de guerra e, a partir de 1976, parte integrante do nome do professor Carlos Rocha Oliveira, nascido no Sumbe, capital da província do Kwanza Sul, em 2 de dezembro de 1939. Licenciado em economia e finanças, Dilolwa foi diretor do lº CIR, em Dolizie, Congo-Brazzaville. Imediatamente após a independência, foi ministro do Planejamento e da Coordenação Econômica e, a partir de 1976, segundo vice-primeiro-ministro e ministro do Plano. Em novembro de 1978, retirou-se de todas as funções na direção do governo e do partido e, no ano seguinte, passou a ser docente na faculdade de Economia da Universidade Agostinho Neto. Produziu, entre outras, as seguintes obras: Contribuição à história econômica de Angola, Subdesenvolvimento, dependência e nova ordem econômica internacional, Para uma política democrática em Angola, História econômica no século XIX, Sobre a democracia e, premonitoriamente, Corrida para a morte ou corrida contra o tempo? Suicidou-se em 16 de novembro de 1996. Trata-se da professora Maria do Céu Carmo Reis, socióloga e membro do Departamento da Educação e Cultura do MPLA antes da independência. 31 Lúcio Lara refere-se a Interferência do Kimbundu no português falado em Luanda, originalmente escrito por Amélia Mingas como trabalho de tese na Universidade René Descartes — Paris V, e posteriormente 32 publicado pelas Edições Chá de Caxinde, Luanda, março de 2000. 6 APOSTAR NA EDUCAÇÃO, “MAIS CEDO OU MAIS TARDE” 1. UMA CERTA FRUSTRAÇÃO: ALUNOS SEM HÁBITOS DE LEITURA, SEM INTERESSE SÉRGIO: VOCÊ ESTAVA FALANDO agora há pouco que está a leste da e ducação há muito tempo. Você já não dá mais aulas? PEPETELA: Dou, dou, mas digamos que eu estou a leste da problemática geral da educação. Só estou legado mais ao meu curso, e acabou! SÉRGIO: Que curso? PEPETELA: Eu dou sociologia, mas no curso de arquitetura. SÉRGIO: Você continua como professor na Universidade Agostinho Neto? PEPETELA: Na Agostinho Neto, mas no curso de arquitetura. Sociologia para arquitetos. Urbanistas, mais do que arquitetos. Sociologia urbana, portanto, desenvolvimento das cidades: como é que as pessoas se juntam no espaço urbano. SÉRGIO: E como é que você se sente como professor? PEPETELA: Há uma certa frustração, porque realmente há uma muito fraca preparação de base dos alunos. E a frustração é maior por causa disso: nota-se que, de ano para ano, essa formação é pior. Os alunos vêm cada vez menos preparados. Começa a ser raro — estou a falar de segundo e terceiro anos — encontrar um aluno que redija bem em português. Extremamente raro. Claro, não é um curso de português, não é um curso de literatura, tudo bem, mas o problema é que, com a deficiência que há na própria língua, por vezes há dificuldade em o aluno se expressar. Confundem constantemente, por exemplo: a primeira aula que eu dou é para que eles saibam qual é a diferença entre sob e sobre,porque eu digo: se não souberem qual é a diferença entre sob e sobre, vão construir o terraço na cave, não é? (Riem) Estamos a falar de arquitetos. Bom, isso para dizer que realmente há dificuldades a esse nível, e tende a piorar. Portanto, há aí uma certa frustração. Agora, por outro lado, eu gosto de dar aulas e estar em contato com essa juventude. No fundo, é bom para ir tomando o pulso da juventude e, se não do país, pelo menos da cidade, saber o que é que pensam, quais são enfim as aspirações etc. Isso é extremamente importante. Nesse aspecto, eu acho que é bom. SÉRGIO: Esses problemas que você sente, de base, acha que devem ser atribuídos a quê? PEPETELA: É ao mau ensino, que vem desde a base. Desde o princípio há o mau ensino, o fraco nível dos professores, a falta quase que absoluta de meios de ensino. Os alunos, por exemplo, chegam à universidade e não têm hábitos de leitura. Muitas vezes o que leem é um ou outro artigo de jornal, de preferência desportivo. Eu noto isso sobretudo em seminários, em que têm que discutir textos que eu preparo para eles. Eles têm muitas dificuldades em entender os textos. Quer dizer, não estão habituados a ler. Isso tudo é porque todo o ensino anterior é muito fraco. Depois também tem uma coisa que se nota: — isto está ligado sempre, tudo — um fraco interesse até de aprender. Se há uma conferência na faculdade, os alunos têm que ser obrigados a ir, se não não vão. Eles vão às aulas porque têm que ir às aulas, têm que estudar o mínimo porque querem ter um curso, mas acabou!, não têm interesse de aprender mais, ou se interessar por novas tecnologias ou pelo avanço da ciência etc. Não têm essa preocupação. Isso é porque realmente o ensino anterior não lhes despertou esse interesse. 2. PALMATÓRIA, PUXAR AS ORELHAS. NEGROS? “DOIS OU TRÊS, NO MEIO DE DUZENTOS!” SÉRGIO: Você se lembra do seu tempo de aluno? PEPETELA: Lembro-me, lembro-me muito bem. SÉRGIO: E como é que você era como aluno? Qual é a recordação que você tem desse tempo? PEPETELA: Eu era bom aluno. Era normalmente o melhor ou o segundo melhor da turma, sempre. E era sempre o mais novo, mas apesar disso sofria a repressão dos professores. Por exemplo, a célebre palmatória, e coisas assim no gênero. Era quase um hábito. Um aluno que não levasse umas palmatoadas não era considerado aluno, por parte dos professores. Acho que os professores faziam questão, quase todos eles, não eram todos. Eu estou a falar disso com relação ao primário e ao secundário. É claro que, no secundário, esse tipo de castigo era mais para faltas de disciplina, mais do que para falta de estudo ou de desconhecimento de alguma matéria. Mas havia castigos físicos no que era antes o 4º, 5º anos do liceu, hoje seria uma nona classe. Ainda havia castigos físicos, e isso em Benguela,33 em colégio particular, em que se pagava para estudar, claro! SÉRGIO: Que tipo de castigo físico havia? Era só a palmatória? PEPETELA: Era palmatoada, puxar as orelhas, eram esses, fundamentalmente. SÉRGIO: As classes que você frequentava eram muito numerosas? PEPETELA: Não, eram mais ou menos trinta alunos, andava por aí. SÉRGIO: E quem é que frequentava? Era gente de todo tipo, de toda condição econômica? PEPETELA: Por exemplo, na escola primária: era uma escola pública, havia alunos de todo lado, de todas as condições, de todas as classes, de todas as raças. Já no colégio, no ensino secundário, não. Eram fundamentalmente filhos da burguesia, da pequena burguesia colonial. Havia alguns mestiços, mas a grande maioria eram estudantes brancos, portanto, o que queria dizer naquele tempo colonial, gente com mais possibilidades. O colégio onde eu estudei, Colégio Nuno Álvares, só tinha do primeiro ao quinto ano. Faltava o sexto e o sétimo para terminar o ensino secundário, e também tinha uma parte de ensino comercial. Devia haver uns duzentos alunos, por aí. E, realmente, 95% eram brancos, 4% mestiços e 1% negros. Dois ou três, no meio de duzentos! 3. “NÃO ERA SÓ DAR AULAS, EU ERA GUERRILHEIRO TAMBÉM” SÉRGIO: Em conversa com o Lúcio Lara, além de abordar exatamente isso que você está dizendo sobre a escola no tempo colonial, ele faz referência ao seu nome, durante a luta armada. Gostaria de saber um pouco mais sobre os Centros de Instrução Revolucionária, e ele fala de você como tendo participado ativamente desses centros. Como é que foi essa história? Qual era a sua participação, e o que é que você ac hou dessa experiência? PEPETELA: Havia os Centros de Instrução Revolucionária, os CIR, que faziam uma formação geral e também formação política e militar. No tempo em que eu fui, por exemplo, para Cabinda,34 para a chamada Segunda Região PolíticoMilitar, Congo-Cabinda, na fronteira, já não havia o CIR, tinha fechado. Havia pouco pessoal, toda a gente tinha sido transferida para a Frente Leste. Sobretudo havia poucos quadros, não havia CIR, e eu fui um dos que reabriram, no fundo, o ensino. Um ensino, digamos, um pouco mais elevado do que as primeiras classes que existiam. Havia uma escola, um internato chamado “4 de Fevereiro”, onde havia as classes primárias. Eu fui um dos que reabriram aulas um pouco mais avançadas, em nível do que se podia chamar de secundário, e em nível de formação política: cursos para os guerrilheiros, que passavam períodos nessa base, para a formação política. Era um internato, já não tinha o nome de CIR, mas funcionava mais ou menos como o CIR, embora não tivesse a componente de formação militar. Depois, mais tarde, reabriu o CIR, de fato, na Segunda Região, de novo, mas eu já não estava lá. Aí eu ensinei. Aliás, eu fazia muitas coisas, porque não era só dar aulas, eu era guerrilheiro também. Trabalhava também para a informação, para o programa de rádio “Angola Combatente”, que passava na Rádio Brazzaville. Portanto, sempre entrava e saía de Cabinda para o Congo, vida militar e aulas etc. Dava aulas de um lado, dava aulas do outro. Ocupava-me sobretudo mais da formação política, mas também dava aulas de português e de matemática a jovens que iam de doze anos de idade até os quinze, dezesseis, mais ou menos. Era uma espécie de preparação, um certo aprofundamento daquilo que tinham aprendido, para depois continuarem os estudos no estrangeiro, em particular nos países do Leste. Depois de eu sair de Brazzaville, do Congo, Cabinda-Congo, é que reabriu o CIR de novo, como CIR, portanto com todas as funções. Então fui para a Frente Leste, onde também fiquei mais ou menos ligado ao ensino; à vida militar, mas também ao ensino. Primeiro estive numa parte na região sul, Cuando Cubango e sul do Moxico, e era uma espécie de inspetor, uma coisa assim no gênero. Eu andava de zona em zona e ao mesmo tempo que fazia um trabalho político, e militar também — sobretudo levantamento das estruturas militares que havia —, fazia o levantamento das estruturas de educação. E quando encontrava alguma deficiência, ficava mais algum tempo e ajudava os professores, numa coisa ou noutra. Por exemplo, lembro-me da introdução dos livros de matemática. Eram praticamente livros alemães, da Alemanha do Leste, que foram traduzidos para o português. Era uma matemática muito avançada, aliás, extremamente avançada, e os professores claro que não tinham essa capacidade! Então eu andava de base em base, e ia explicando. Explicava uma parte a uma classe, digamos assim, as coisas novas que havia na matemática. Depois, no regresso, explicava uma outra etc. Andava por ali, ao mesmo tempo em que ia fazendo outras coisas. Esse foi um período muito interessante, porque não parava em nenhum lugar, estava sempre a andar, e tinha várias atividades. Não era só a educação, não era só a guerrilha, não era só a política. Era tudo junto. 4. QUATROCENTOS ALUNOS, UMA BASE DO MATO: “ESTAVA MESMO NA LINHA DE FRONTEIRA” SÉRGIO: Nós estamos em que época aí? PEPETELA: 1971, 1972, 1973. Depois, em fins de 1973, é que eu fiquei fixo, no Centro “Augusto Ngangula”, que era a maior escola — não era um CIR — da Frente Leste. Era a grande escola, a partir da qual, no fundo, se coordenava o trabalho de educação de toda a Frente. E foi então que me fixei nessa escola, e sem outras responsabilidades, apenas a de dirigir a educação na Frente Leste. SÉRGIO: Essa escola ficava em que local? PEPETELA: Ficava na fronte ira da Zâmbia com Angola e afastada de qualquer cidade ou localidade. Era mesmo uma base do mato e estava mesmo na linha de fronteira: quando havia alguma coisa, algum problema, bastava recuar quinhentos metros (ri) e, em princípio, já se estava na Zâmbia. SÉRGIO: Vocês chegaram a ter quantos alunos? PEPETELA: Nessa escola chegou-se aos quatrocentos alunos. SÉRGIO: Homens e mulheres? PEPETELA: Havia maior quantidade de homens, mas de qualquer modo havia uma porcentagem bastante razoável de mulheres, de jovens. Nessa escola Augusto Ngangula, havia seis classes escolares, e ela também servia de apoio para cursos políticos para os guerrilheiros e para seminários de toda ordem, discussões etc. Fazia-se ali porque havia melhores condições do que em outros lugares. Havia uma certa tranquilidade — não estava propriamente em território militar, digamos assim — e havia melhores condições, com uma estrada perto. Era mais fácil abastecer, com gerador, com água etc. 5. “NO FUNDO, NÓS TENTAMOS ACASALAR O MÉTODO PAULO FREIRE COM O CUBANO” SÉRGIO: Durante esse período todo, você chegou a ter contato com as ideias do Paulo Freire? PEPETELA: Eu tive contato com as ideias do Paulo Freire em Argel ainda, em 1965, quando fiz o material de alfabetização, que se chamava “A vitória é certa”, creio. Esse manual de alfabetização, que depois foi mais ou menos adaptado, depois da independência, para servir como manual de alfabetização nas primeiras campanhas daqui. Foi aí que tive contato com uns camaradas brasileiros, que eram exilados políticos. Já havia a ditadura militar, tinham ido para Argel. Acho que foi o primeiro grupo, ligado ao sequestro de um embaixador. Falaram e depois arranjaram-me mesmo algum material do Paulo Freire, que, no fundo, acabou por nos servir como mola inspiradora para algumas coisas, particularmente para o manual. Porque — isso é do Paulo Freire — cada lição tinha um desenho, e a primeira discussão era sobre o desenho, o que levava até uma palavra, a palavrachave. Aí era decomposta a palavra, e depois começava enfim a alfabetização: tijolo, a família do ti, ta, te, to, tu etc. E foi assim que nós fizemos o manual de alfabetização. Esse método era uma tentativa de adaptação do método Paulo Freire a um manual escrito, o que é contrário ao método Paulo Freire, em princípio, não é? Mas foi uma tentativa de conciliação, porque nós sabíamos que os alfabetizadores tinham muito pouco conhecimento da língua portuguesa e até pouca escolaridade. Era preciso um livro de apoio ao alfabetizador. Ele tinha que se basear num livro, naquilo que estivesse escrito. Não podia improvisar demasiado, como no método original do Paulo Freire, que exige uma grande capacidade de improvisação do alfabetizador. Então, nós fizemos o manual e o guia para o alfabetizador. No fundo, tentamos acasalar o método Paulo Freire com o método cubano, da batalha da alfabetização de Cuba, que tinha sido realizada com êxito uns anos antes. Esse material nós tínhamos, e então tivemos essa ideia de juntar as duas coisas. Mais tarde conheci Paulo Freire, falei bastante com ele sobre isso, e quase que pedimos desculpas a ele: “Desculpe, nós adulteramos um pouco a sua ideia, mas é assim que ia funcionar.” E ele compreendeu perfeitamente as razões e achou boas. No fundo, o que interessava é que as pessoas não só aprendessem, mas que discutissem sobre os seus problemas e sobre as suas vidas. Isso que, no fundo, é a essência do método Paulo Freire, isso estava no nosso manual. Aliás, começava com “O povo luta”. Era a primeira frase. Ora, isso é Paulo Freire, duma ponta à outra. 6. DA GUERRILHA AO GOVERNO, QUADROS DA EDUCAÇÃO: “POR ISSO É QUE EU APARECI COMO VICE-MINISTRO” SÉRGIO: Eu me lembro que, quando te conheci, você era vice-ministro da Educação, já nos idos de 1978. Como é que você aparece como vice-ministro? Você estava lá na fronteira com a Zâmbia, como diretor da escola Augusto Ngangula. Aliás, parece-me que você fez parte da primeira delegação do MPLA que veio a Luanda, não? PEPETELA: É. SÉRGIO: E depois acaba como vice-ministro da Educação. PEPETELA: Pois, mas quando vim com a primeira delegação, vim na qualidade de diretor do Departamento de Educação e Cultura. Portanto, era o coordenador. De fato, era da Frente, não do todo, mas, enfim, a Frent e Leste tinha a primazia, e quem dirigia a Frente Leste dirigia o todo, teoricamente, oficialmente. Eu fazia parte de um quadro muito ligado à educação, tinha estado sempre muito ligado. Viemos. Depois veio aquele período conturbado até chegar à independência, em que eu fui para a guerra. Fui para Benguela, para o Estado-Maior da Frente, e fiquei afastado de tudo. Houve o primeiro governo que foi formado, logo após a independência, com o Antônio Jacinto como ministro da Educação e Cultura. Então decidiu-se, ao fim de uns meses, quase um ano, separar a educação e a cultura. O Jacinto ficou com a Cultura, e então convidaram-me para viceministro. Quer dizer, o Ambrósio Lukóki e eu, que éramos dois quadros da educação já antigos, os dois ficamos no ministério, um como ministro, outro como vice-ministro. Foi-se buscar quadros ligados à área, porque o Jacinto não era; antes, não estava ligado, e achou-se que se devia — para fazer a reformulação do ensino — buscar quadros que tinham alguma ligação. Por isso é que eu apareço como vice-ministro nessa altura. Aliás, eu já estava tranquilo em Lubango a dar aulas e a escrever, esquecido completamente de tudo. SÉRGIO: Quando? PEPETELA: Quando me foram buscar para o governo. Eu já estava afastado de tudo, estava a dar aulas e a escrever, mais nada. 7. REVOLUÇÃO: “A UM MOMENTO DADO, ESSE SISTEMA COMEÇOU A DERRAPAR” SÉRGIO: Desse período de vice-ministro — afinal, você fica até 1982, não é? — que lições você tira dessa experiência no Ministério da Educação? PEPETELA: A primeira lição é que, num país subdesenvolvido, é muito difícil fazer educação. Digamos, a educação seria exatamente um instrumento para sair da dependência, sair do subdesenvolvimento, mas acaba sempre por ser o parente pobre. Pode até, no nível do discurso, aparecer como uma prioridade nacional, mas, na prática, é o parente pobre, é sempre esquecido. Portanto, é um instrumento frágil e acaba por ser vítima do próprio subdesenvolvimento. E andamos num círculo de subdesenvolvimento e criação de mais subdesenvolvimento, no fundo. Bem, nós tentamos partir um bocado isso, tentar qualquer coisa diferente, criar um sistema novo para o país, porque era um sistema colonial, e tinha que ser dividido esse sistema colonial. Conseguiu-se fazer uma série de materiais, de livros etc., extremamente ideológicos, supercarregados de ideologia. Talvez tenha sido um erro. Enfim, era o espírito da época: era uma revolução, estava-se a fazer uma revolução. Portanto, tinha que haver um sistema de ensino, entre aspas, revolucionário, que nós achamos que seria revolucionário. Agora, o que eu acho é que, a um momento dado, esse sistema começou a derrapar. Desde cedo se começou a sentir isso, porque era um sistema com a ambição, por exemplo, de pôr todas as crianças na escola. O ponto número um da política de educação era esse, e devo dizer que, no princípio dos anos 1980, quase que atingimos esse objetivo: quase todas as crianças estavam na escola de fato. Um outro objetivo era ser uma educação não só de instrução formal, não só ensino, mas também com alguma abertura para o mundo profissional, ligação à prática etc., e com orientação política. Portanto, uma formação mais ou menos integral, que nós dizíamos “a formação do homem novo”, extremamente ambiciosa como formação. Para se conseguir esse objetivo, tinha que haver muito maior investimento na educação. Disso nós nos apercebemos muito rapidamente, acho eu. Pelo menos eu percebi e acho que o Lukóki também. Falávamos nisso, que o sistema poderia entrar em colapso rapidamente, ou pelo menos bloquear, se não houvesse investimentos. E não estava tendo. Lembro-me, por exemplo, que o sistema era muito baseado em escolas ligadas à profissão, escolas profissionais ou institutos médios. São instituições caras, e era necessário um grande número desse tipo de instituições. Abriram-se algumas no princípio, mas depois não se abria mais, porque não havia dinheiro, não havia meios, não havia construção, não havia nada, não havia hipótese de fazer mais que isso. E, portanto, começou-se a entrar um pouco em roda-viva. Quando eu saí ainda não se notava, mas acho que o sistema já estava a patinar. Mais tarde, anos depois, começou-se a notar que realmente era preciso mudar, reestruturar e talvez adaptar o sistema ao pouco investimento que havia, e não conceber um sistema que era para muito investimento. Na medida em que não houvesse investimento, tinha que haver uma adaptação. Penso que essa é uma das razões porque depois tudo começou a cair. Foi caindo, caindo, e hoje está realmente num estado bastante lastimoso, ainda por cima com um sistema que já devia ter mudado há muitos anos. 8. LIMPEZA, REORIENTAÇÃO IDEOLÓGICA: “AÍ COMETERAM-SE ERROS CRASSOS” PEPETELA: Fizeram remendos superficiais. Por exemplo, quiseram fazer uma limpeza ideológica, e aí cometeram-se erros crassos, acho eu. Como, por exemplo, o de diminuir cada vez mais a educação sobre a história, a história do país, a história da luta, da resistência ao colonialismo, porque isso era ideológico. Hoje as crianças do Cunene não sabem quem foi o Mandúmi,35 por exemplo. Foi cortado. O Mandúmi desapareceu dos manuais. Enfim, coisas assim do gênero, de cosmética apenas, porque não se tocou no sistema. Mudaram foi alguns livros, e cada vez menos livros, aliás, porque cada vez menos o Ministério da Educação tem capacidade para mexer as coisas, para mudar alguma coisa. E, portanto, foi piorando tudo. A formação dos professores foi se tornando cada vez pior. Partiu-se de um nível muito baixo de professores, mas a ideia era de depois ir fazendo superações sucessivas, para melhorar a capacitação dos professores. Isso não foi feito, e a nova geração foi formada por maus professores. É uma geração mal formada, que vai formar mal. E é nisso em que nós estamos agora, com a segunda geração, que forma pior ainda que a anterior, claro. SÉRGIO: Então, no fundo, o que aconteceu de fato foi uma espécie de reorientação ideológica… PEPETELA: Foi. SÉRGIO: …porque, na realidade, essa história de você limpar, “tirar” a ideologia, também já tem um componente ideológico. PEPETELA: Claro. E a reorientação ideológica é, por exemplo, dar maior importância ao ensino particular que ao do Estado, o oficial. Hoje em dia só se dá importância ao ensino particular, quer dizer, privado. É ideológico, evidentemente. Houve uma reorientação ideológica: antes era um ensino que pretendia ser socialista, hoje é um ensino que pretende ser capitalista. 9. FUTURO? “MUITO MAIS DIFÍCIL, MAIS LENTO”: NOVA REFORMULAÇÃO, ALGUM INVESTIMENTO SÉRGIO: E em relação ao futuro, você tem alguma bola de cristal aí esc ondida? PEPETELA: Eu não. (riem) Não tenho, não, mas realmente penso que, mais cedo ou mais tarde, as autoridades — quem decide — vão ter de compreender que têm de apostar na educação. Há muita pressão. Já há até instituições, como o Banco Mundial, que já fazem pressão nesse sentido. Portanto, acho que isso vai acabar por acontecer. Agora, vai ser muito difícil, e a progressão vai ser extremamente lenta, porque já não há o entusiasmo que havia depois da independência. Era o entusiasmo que levava as pessoas a irem, partirem para alfabetizar, partirem para ser professores lá no mato. Isso acabou. Hoje em dia, o primeiro ponto da discussão é o salário, e quais são os outros componentes, que aliás são importantes. Antes isso nem era tema de discussão. Portanto, esse entusiasmo acabou, vai ser muito mais difícil. Depois, parte-se de um nível muito baixo e muito desigual. Hoje em dia a maior parte das crianças estão fora da escola. Provavelmente haverá 60% de crianças em idade escolar e fora da escola, é capaz de estar em uns 60%, não sei. SÉRGIO: Sim, o governo dizia que era em torno de 50%, mas, nas últimas pesquisas que fizemos no Unicef, chegamos até a 60% de crianças fora da escola, dependendo da província. PEPETELA: Andará por aí. Portanto, vai-se partir para uma nova reformulação — ou o que se queira chamar — com piores condições. Vai ser muito mais difícil, muito mais lento, mas acho que, mais cedo ou mais tarde, começará a haver algum investimento na educação. Tem de haver, porque os exemplos já são muitos, no mundo, de países que conseguem dar um salto a partir da educação. Toda gente fala do caso da Irlanda, por exemplo. Isso vai acabar por entrar, não digo talvez nos interesses, mas nos discursos e na campanha de algum partido político que queira chegar ao poder. Vai começar a apostar na educação e depois vai ser um bocado obrigado a cumprir aquilo que prometeu. 10. PROFESSOR, ESCRITOR. SER MINISTRO? “EU NÃO ANDO DE CAVALO PARA BURRO” SÉRGIO: E como professor, você pretende continuar dando aulas indefinidamente, apesar desses problemas com o nível dos alunos? Qual é a tua perspectiva como professor? PEPETELA: Estou a chegar na idade da reforma, não é? Por enquanto vou continuando. Também não preciso fazer grandes compromissos para dar essas aulas. Se não exigirem de mim muito mais do que isso, tudo bem, posso ir continuando, depende. Mas, digamos, não tenho a intenção de continuar dez anos, ou vinte, sei lá se vou viver tanto tempo! Vou fazer sessenta anos daqui a pouco tempo, portanto começa a chegar a hora de parar. Agora, enquanto não houver outro, que eu sinta que não houver outro para me substituir, eu vou fazendo. Mas desde o momento que apareça outro, eu abro o campo para ele, porque também não tenho que impedir um outro de trabalhar. SÉRGIO: E o Ministério da Educação? PEPETELA: Que é que tem o Ministério da Educação? SÉRGIO: É passado? PEPETELA: A minha atuação no Ministério da Educação? Absolutamente passado! SÉRGIO: Se amanhã te oferecerem a possibilidade de dirigir a Educação, você aceitaria? PEPETELA: Não. Quando me fazem essa pergunta eu digo: “Eu não ando de cavalo para burro”. Hoje sou escritor, portanto não iria para ministro.(riem) Notas 33 Capital da província de Benguela, ao sul de Angola. Província ao norte de Angola, rica em petróleo e fisicamente separada do território angolano por uma faixa de terra pertencente à atual República Democrática do Congo (antigo Zaire). 34 Famoso rei dos cuanhamas — povo do sul de Angola — que, segundo história contada localmente, preferiu o suicídio a ser capturado pelos portugueses. 35 7 ANGOLA? UMA VISÃO POLÍTICA COMPLETAMENTE DIFERENTE 1. TEMPO COLONIAL: “UMA PEDAGOGIA ULTRAMARINA IMPLANTADA NA ÁFRICA” SÉRGIO: MINISTRO BURITY,36 qual é a sua lembrança da escola angolana no tempo colonial? BURITY: Eu fui professor no tempo colonial e comecei como professor de pos to eventual. Depois fiz um curso de pedagogia, passei para profess or de posto agregado e depois passei para o posto de professor primário, à medida que ia aumentando as habilitações acadêmicas, e assim sucessivamente. Comecei a dar aulas nas escolas rurais, a cerca de trinta quilômetros da cidade de Camacupa,37 e a experiência que eu tive aí foi muitíssimo valiosa, sob todos os aspectos. Em primeiro lugar, o professor era um elemento muito valorizado, reconhecido e respeitado na aldeia. Naquela época, não me recordo de haver desistências, reprovações ao nível que há neste momento. Também, a situação era diferente: vivíamos uma situação de paz, e havia trabalho levado a cabo pelo governo e também, principalmente, pela Igreja Católica, no sentido de as crianças frequentarem as escolas. Outro aspecto muito importante era o interesse que os próprios pais dedicavam aos estudos dos seus filhos. Sem dúvida alguma que essas crianças depois não tinham perspectivas de continuidade de estudo. Portanto, faziam da primeira até à quarta classe, e depois na aldeia não havia possibilidades de continuar. As escolas da quarta classe para cima eram geralmente construídas nas cidades, nos meios urbanos, e só os pais com posses financeiras é que podiam enviar os seus filhos para lá. Isso significa que, mais ou menos em cem alunos, menos de dez alunos davam continuidade aos seus estudos pós-quarta classe. Mas até a quarta classe havia de fato um trabalho profícuo, um interesse muito grande por parte da população. Sem dúvida alguma que os objetivos pedagógicos a atingir também eram diferentes. E aí entramos um pouco no campo político, porque o que se pretendia fazer, e o que se fez mesmo, foi uma pedagogia ultramarina ou colonial implantada na África, onde nós tínhamos que lecionar tudo o que era da Europa e nada que era de África. Portanto, não se respeitavam os valores culturais de cada povo. Era uma política de assimilação, e esse aspecto penso que é muito importante. 2. ESCOLA TRADICIONAL, AUTORITÁRIA? “NÃO TANTO.” EXCLUSÃO? “NÃO ERA UMA QUESTÃO DE RAÇA” SÉRGIO: E pelo que o senhor se lembra, a relação entre professor e alunos, como é que era? A escola tradicional era autoritária? Ou era uma escola aberta? Que recordações o senhor tem? Eu pergunto isso porque, por exemplo, em conversa com o camarada Lúcio Lara, ele dizia que, no tempo da experiência dele, ele ainda se lembrava de que a palmatória era utilizada. Ele acha que a escola era autoritária, que as relações entre professor e alunos eram um bocado distantes, difíceis. O senhor tem essa mesma percepção? BURITY: Não tanto. Isso variava muito de professor para professor. Mas havia a inspeção escolar, e sem dúvida alguma que a inspeção escolar não pactuava com esse tipo de atitudes pedagógicas. E recordo-me perfeitamente: o meu inspetor era o professor Dario de Melo, que até agora está vivo. É escritor também, e era uma pessoa muito severa nesse aspecto de punir professores que, fugindo aos métodos pedagógicos clássicos, enveredavam por esses métodos violentos. Para mim, era mais uma escola aberta, nesse sentido, não no sentido político; aberta pedagogicamente. Mas nem todos os professores tinham uma preparação igual para terem comportamentos iguais. SÉRGIO: Quanto à questão da exclusão: o senhor na época tinha a percepção de que uma grande parte das crianças angolanas ficava fora da escola? Ou havia já um esforço do colono em assegurar que um maior número de crianças fosse à escola, precisamente para poder assimilá-las mais facilmente? BURITY: Bem, no meu tempo, já havia mais abertura. Eu já faço parte de uma geração em que todo o processo colonial já estava não só em decomposição, mas também em mudança, para se adaptar às novas realidades, que vinham sendo impostas pelos movimentos de libertação. SÉRGIO: Nós estamos falando de que anos? A sua experiência em Camacupa, por exemplo, data de quando? BURITY: Eu comecei a dar aulas nos anos 1970. A partir dessa época já havia de fato uma tendência para a mudança, e a exclusão ia diminuindo. O que não significa dizer que não havia discriminação. Havia discriminação, porque a escola não proporcionava aos alunos a perspectiva de continuidade de estudos. Portanto, um filho de família pobre via-se limitado a concluir no máximo a quarta classe. SÉRGIO: Isso tinha mais a ver, então, com a questão econômica? Não era tanto uma questão de raça? BURITY: Não. SÉRGIO: Quer fosse preto, quer fosse branco, se fosse pobre, não conseguia ir adiante? BURITY: Não era uma questão de raça, de forma alguma, porque eu também vivi essa situação como aluno. Ainda me recordo perfeitamente: eu era oriundo de famílias pobres. Cresci com isenção de propinas, portanto não pagava propinas. Eu beneficiava de uma merenda escolar e, bem, nunca reprovei, sempre passei. Era um aluno muito querido pelos professores, porque eu tinha muito jeito para fazer teatro e estava sempre envolvido em todas as atividades extraescolares. Eu e outros elementos de raça negra. Penso que, nesse aspecto, a minha geração não sentiu muito esse problema. Cresci numa região onde o racismo ainda predominava muito, que era o Huambo, o centro de Angola. Portanto, não posso de forma alguma dizer que percebi que havia alguma discriminação pedagógica nesse sentido. No meu tempo, já não havia isso. 3. A EDUCAÇÃO APÓS A INDEPENDÊNCIA: BALANÇOS DIFERENTES, SALADA PEDAGÓGICA SÉRGIO: Na conversa que tive com o camarada Lúcio Lara, perguntei a ele sobre quando ele olhava para trás e pensava nos ideais que levaram o MPLA a toda essa luta, não só pela independência, mas pelo progresso, pelo desenvolvimento, e sobre o papel da educação nesse processo. A pergunta era: “qual é o balanço que o senhor faz de todo esse sonho, essa luta, em termos de educação, para um novo homem, uma nova mulher?” E a resposta que ele deu foi: Até a independência foi muito positivo. Depois, aqui, estragou-se completamente. Nós deixamos estragar, perdemo-nos! Veio a burocracia toda, os interesses todos urbanos, e perdemo-nos. Aí eu pergunto a ele: “E porque é que se perderam? O que foi? Falta de quê?” E ele: Foi esse contato com a cidade, a burocracia, se quiser, os interesses individualistas. Bom, perdeuse muito o patriotismo natural que havia em todos nós. Ninguém estava na luta por qualquer interesse que não fosse libertar. Hoje as pessoas até que estão no mesmo movimento, no nosso movimento, estão interessadas por negócios, por interesses outros que não são os ideais. O ideal perdeu-se. O Ideal, com letra grande, perdeu-se. E hoje, eu vou ainda hoje ao meu partido, e, quando lá chego, encontro funcionários do partido, mas funcionários abúlicos. Funcionários que não têm nada do que nós tínhamos, não têm nada! Ou seja, ele transmite uma impressão muito amarga… BURITY: …um sentimento amargo. SÉRGIO: Qual é a sua impressão a respeito disso, quando se comparam os ideais que o senhor também viveu — e de que eu pude também, num certo momento, partilhar — e a evolução? E qual é o balanço que faz dessa situação? BURITY: Sim, senhor. A pergunta é muito interessante, e talvez eu não vá completamente ao encontro do que diz o camarada Lúcio Lara. Pertencemos a gerações completamente diferentes e, portanto, os ideais, embora possam ser semelhantes, não são de forma nenhuma iguais. Porque o momento de luta também mudou, as perspectivas da minha geração também já eram outras. Eu discordo, não totalmente, mas discordo de algumas passagens que diz o camarada Lúcio Lara, porque tudo aquilo que foi feito pós-independência foi um esforço muito grande. Pese embora o fato de eu não ter participado diretamente — eu era professor na época — mas nós, com muita ousadia, arriscamos a fazer uma renovação completa no sistema de ensino. Teve as suas consequências, positivas e negativas, sem dúvida alguma. Mas nós conseguimos começar a elaborar os nossos próprios manuais, com uma visão política, histórica, cultural e pedagógica completamente diferente. Claro que isso não era fácil, porque não havia grande experiência. Muitas experiências foram transportadas para aqui sem passarem por uma peneira de pessoal angolano altamente qualificado que pudesse aproveitar essas experiências — como, por exemplo, a experiência alemã, a cubana, a soviética e outras, de outros países que passaram todos por aqui. E então fez-se aqui, digamos assim, uma salada pedagógica que, nos primeiros tempos, as pessoas não sabiam muito bem o que era. Hoje nós temos livros que eu lhe posso mostrar, inclusive cadernos diários, elaborados totalmente por angolanos que, durante esses 26 anos de independência, foram aprendendo. Portanto, é muito positivo, porque, olhe, nós chegamos a enviar cerca de 21 mil jovens para o estrangeiro, para estudar em mais de 24 países. A maior parte deles regressou. Com todas as vicissitudes que a guerra impõe a um sistema de ensino, nós formamos quadros no país. Hoje, Angola pode-se orgulhar, mesmo com toda essa situação, de ter quadros angolanos em todas as direções, em todas as frentes da economia, o que muitos países africanos, com muito mais anos de independência que nós, não têm. Eu não quero fazer referência a nenhum país em especial, mas há países africanos que não fizeram essa travessia no deserto que nós estamos a fazer, mas que têm muita dependência exterior, em termos de recursos humanos. Não é por ser angolano, mas também por ser angolano, sinto vaidade nisso. E por ter participado quer na formação desses jovens no exterior do país — de que posso falar com toda autoridade, porque fui um dos mentores dessa situação —, quer na formação interna dos quadros, nós podemos dizer que, com uma melhor atenção orçamental, ou seja, com melhores investimentos no setor, nós podemos, sem dúvida alguma, até o ano 2015, introduzir todas as crianças em idade escolar no sistema de ensino. O que me faz dizer que, aliando a riqueza deste potencial humano ao potencial de recursos que Angola tem, Angola irá, sem dúvida alguma, ser uma das maiores potências da África. 4. INVESTIMENTO NA EDUCAÇÃO? “AINDA NÃO HÁ SENSIBILIDADE” SÉRGIO: Neste momento, a situação continua crítica, na medida em que, por exemplo, há uma exclusão ainda muito grande de crianças. BURITY: Sim. SÉRGIO: Eu sei que as estatísticas nem sempre são pacíficas, mas a quanto estamos? Estamos numa exclusão de cerca de 50% de crianças ou mais? BURITY: De 47%, mais ou menos, de crianças fora da escola. SÉRGIO: E o que é que o senhor acha que, nesse caso, vai ser preciso fazer para alterar essa situação, na medida em que, evidentemente, todas as crianças têm direito pelo menos à educação básica? Uma das críticas que eu ouço, às vezes, é que o Ministério da Educação é um ministério que não tem recebido a prioridade que deveria ter, do ponto de vista de investimentos, de recursos, prioridade política. O ministro concorda com isso? E se concorda, acha que há a possibilidade de inverter a situação, de se conseguir uma prioridade maior para a educação? Ou acha que não, que, enquanto a questão da guerra continuar, nós vamos ter que continuar gerindo o status quo. BURITY: Penso que ainda não há verdadeira sensibilidade por parte das nossas equipes econômicas — não é da atual; de todas as que eu conheci — para um verdadeiro investimento no setor da educação. Não há essa sensibilidade e, por isso, a educação encontra-se nesse estágio de desenvolvimento. Poderíamos estar muito melhor, mesmo com a situação de guerra. É verdade que a guerra destruiu cerca de 5 mil salas de aula, e vai levar algum tempo a repor tudo isso. Mas isso passa essencialmente por uma decisão política muito objetiva e muito clara, porque nós não temos outro caminho a seguir. Angola não tem outro caminho a seguir. É um país potencialmente rico, como lhe disse há pouco, mas também poderá ser um país potencialmente pobre, se não formar os seus quadros. Vai girar na órbita e na dependência dos outros países, mesmo da região, mais ricos. Nós temos uma estratégia elaborada até o ano 2015. Ela não está quantificada sob o ponto de vista financeiro, mas esse trabalho está a ser feito. Tem-se que investir muito em infraestruturas, alargar a rede escolar a todo o país. E, acima de tudo, nós temos que ter prioridades. Primeiro, ensino de adultos para formar mulheres; inverter a atual percentagem de mulheres dentro do sistema de ensino, em relação a rapazes. Isso porque sabe-se muito bem que educar uma mulher é preparar uma família. Por outro lado, nós temos que investir muito na formação dos professores. E, posteriormente, ou simultaneamente, no alargamento da rede escolar. Para mim, os fatores principais são: formação dos professores e a inversão do percentual existente entre rapazes e moças dentro do sistema de ensino. Isso é muito importante, porque são as mães que se preocupam em mandar os filhos para a escola. E nós aqui vivemos essa situação porque, no tempo da plantação e da colheita, as moças são muito utilizadas para esses trabalhos de campo e então deixam de ir à escola. Portanto, se a mãe estiver instruída, preparada, ela não vai fazer isso, vai mandar a filha para a escola. E se seguirmos essa política, num universo de quinze até vinte anos podemos inverter completamente a situação. SÉRGIO: Neste momento, ministro, quais são as suas maiores fontes de dor de cabeça? BURITY: Falta de escolas, salário dos professores e condições de trabalho. Como vê, tudo isso está ligado às finanças. SÉRGIO: E o senhor acha que há uma perspectiva, a curto prazo, de se sensibilizar a equipe econômica? Ou acha que ainda vai demorar muito mais tempo? BURITY: Penso que não há outra saída. Nesse momento, os nossos dirigentes preocupam-se muito em reconstruir fisicamente o país, mas o país precisa de uma reconstrução moral. E essa reconstrução moral passa pela escola. Nós estamos em guerra agora, mas vamos ter paz.38 E se não nos prepararmos agora para esse período de paz, nós vamos ter muitos problemas sociais, tão graves quanto a guerra, problemas psicológicos, de deficiências, enfim, muitos problemas graves. 5. MUDANÇA: “A EDUCAÇÃO NÃO PODE, DE FORMA ALGUMA, SER POLITIZADA” SÉRGIO: No passado, era relativamente simples, quando se analisava o sistema de educação, ver quais eram os objetivos, do ponto de vista ideológico, não é? BURITY: Hum, hum. SÉRGIO: A partir, digamos, do princípio dos anos 1990, há uma… BURITY: …mudança… SÉRGIO: …no regime, em vários aspectos. Hoje, como é que o ministro analisaria o sistema de ensino do ponto de vista político, ideológico? Quais são os objetivos, quais são os ideais, por que é que nós estamos trabalhando, e para que queremos a formação da nossa infância e da nossa juventude em Angola? BURITY: Olhe, nós temos que despir ou retirar a cor das camisetas dos pedagogos, porque penso que a educação não pode, de forma alguma, ser politizada. Nós na educação devemo-nos preocupar com a formação patriótica, com a formação cultural, histórica, enfim, em respeitar a bandeira, o hino nacional, em formar um bom patriota, que conheça a sua pátria, que ame a sua pátria, independentemente do partido em que estiver. Portanto, neste momento, já estamos a trabalhar neste sentido. Pode consultar qualquer um dos nossos livros: toda essa carga ideológica monopartidária foi retirada. Aquilo que diz o camarada Lúcio Lara foi tudo retirado, porque a nossa perspectiva tem que ser outra. Nós temos que formar o homem preparado para o futuro, e o homem preparado para o futuro não é o homem preparado ideologicamente agora. No seu crescimento, e no seu devido momento, ele vai escolher o partido que entender. Para nós, o mais importante é formar a pessoa com as características que atrás mencionei, e o técnico que consiga absorver bem as novas ou renovadas tecnologias. Isso para mim, como ministro, penso que é muito mais importante. SÉRGIO: Quando o ministro fala que a educação não deveser politizada, é no sentido de que ela não deve estar a serviço de um partido específico, é isso? BURITY: Específico. Portanto, nós temos que partir, no meu entender, do conceito “nação”. A partir do conceito “nação”, formar o homem, e não ensinálo o que é esse partido, o que é aquele partido ou aqueloutro. É a nação, e a nação tem história. Nessa história podem entrar, ou se fazer referência à história dos vários partidos que existiram, porque não podemos negar, de forma alguma, a existência deles. Nós devemos a mudança política que se verificou neste país à luta armada desses próprios partidos. Portanto, esses partidos vão fazer parte da história, mas isso não significa, de forma alguma, politizar os alunos para este ou para aquele partido, mas sim educá-los no sentido de que existe uma história, e que todos nós devemos conhecê-la. 6. PAULO FREIRE? “SERÁ SEMPRE UMA REFERÊNCIA MUITO POSITIVA” SÉRGIO: Uma curiosidade minha com relação ao Paulo Freire: existe alguma coisa e m particular que lhe tenha chamado a atenção nos livros, nas ideias, na influência possível que o Paulo Freire possa ter tido? Qual é a sua percepção em relação ao trabalho dele? Já que estamos, neste diálogo, em um livro em que se discutem esses aspectos também ligados à presença de Paulo Freire na África, o que é que o ministro registra ainda a respeito dele? BURITY: Paulo Freire será sempre uma referência muito positiva, no desenvolvimento do processo educativo. Muito positiva porque, para mim, Paulo Freire foi um dos pedagogos clássicos, digamos assim, ou da era mais moderna, que revolucionou — ou pretendeu revolucionar, penso que era essa a sua luta, revolucionar — a pedagogia, a favor das camadas mais desfavorecidas. E nós adotamos cartilhas de alfabetização elaboradas pelo Paulo Freire.39 Trouxemos essa experiência para Angola, que foi muito positiva. Portanto, Paulo Freire é uma referência na África, é uma referência no Terceiro Mundo principalmente, porque ele lutava para que a pedagogia chegasse aos países mais pobres, à população mais pobre. 7. O SONHO: “MELHORAR O SETOR”, UM COPO DE LEITE E UM PÃO SÉRGIO: Para finalizar, o senhor vê que não foi tão difícil, (o ministro ri) o ministro estava um pouco preocupado no início (riem): qual é o seu sonho em relação à educação das crianças de Angola? BURITY: Bem, sem dúvida alguma que o sonho de qualquer ministro é melhorar o setor, e penso que devemos criar condições suficientes para uma aprendizagem correta. Isto passa por aquilo que vimos há pouco: pelos meios didáticos, pela qualificação dos professores, pelas condições de trabalho e também pelos programas que nós adotarmos de estudo. Se nós fizermos tudo isso, acompanhado de outros mecanismos incentivadores para as nossas crianças, como, por exemplo, a merenda escolar… É um fator de incentivo muito grande para evitar o insucesso escolar, as reprovações, as desistências. É sem dúvida um mecanismo extremamente importante. Estamos a ver agora, com a experiência que estamos a fazer em algumas províncias: há uma diferença abismal, entre as escolas que estão a adotar esse sistema — onde nós estamos a experimentar esse sistema de merenda escolar — e as que não têm. Não só para as crianças, mas até para os professores, porque os professores também se beneficiam de um copo de leite e um pão, que muitas vezes não têm quando saem de casa. Vimos agora, no período de greve: essas escolas não aderiram à greve, porque o próprio professor pensou: “Bem, eu vou aderir à greve, vou perder o copo de leite e o pão que tenho na escola.” Quer dizer, a situação é tão difícil, tão dramática, que leva nossa população ao extremo de pensar. Mas essa é a nossa realidade. Portanto, o governo, sem dúvida alguma, terá que aumentar o orçamento do setor, do ministério, penso que, no mínimo, para 17%. SÉRGIO: Neste momento, de quanto é? BURITY: Em questões práticas, estamos em 4,7%, por aí. Embora no orçamento apareça 7,8%, na prática, o que é executado não ultrapassa os 5%. Necessitamos de, no mínimo, 17% a ser aplicado na íntegra para investimentos físicos — portanto, em infraestruturas —, materiais didáticos, professores, enfim, tudo isso. Notas Diálogo com o ministro da Educação António Burity da Silva Neto, registrado em 17 de outubro de 2001, em Luanda. 36 37 Província do Bié, no centro de Angola. Com a morte do líder da Unita, Jonas Savimbi, em fevereiro de 2002, e a assinatura do acordo de paz entre esse partido e o governo em abril, abriram-se efetivamente novas perspectivas em Angola. 38 O mais exato seria dizer “inspiradas”, ao invés de “elaboradas”, como afirmou Pepetela anteriormente (Ver capítulo 6, item 5, p. 146. “No fundo, nós tentamos acasalar o método Paulo Freire com o cubano”). 39 QUARTA PARTE GUINÉ-BISSAU — I 8 “TIVEMOS QUE CONSTRUIR A PARTIR DA PRIMEIRA PEDRA” 1. A HISTÓRIA DAS “CARTAS À GUINÉ-BISSAU” E O PAIGC: “VAI NOS ENSINAR O PORTUGUÊS?!” SÉRGIO: HOJE É UMA SEXTA-FEIRA, 8 de março de 2002. Dia Internacional da Mulher, aliás, e nós estamos em Bi ssau. Mário, como eu estava te d izendo antes, a minha ideia era a de que nós buscássemos um pouco n a memória uma forma de situar a questão da educação na Guiné-Bissau, começando talvez por um livro do Paulo Freire que se tornou muito conhecido: o Cartas à Guiné-Bissau.40 Dessas cartas — que são, aliás, dezessete — pelo menos onze, são dirigidas a Mário Cabral e seis à equipe. Afinal, você chegou a receber mesmo essas cartas ou era mais um recurso literário que o Paulo utilizou? Qual é a história dessas cartas? MÁRIO: Eu realmente tenho muito prazer em responder a essas questões, embora possa dizer que a memória nem sempre retém com tanta lucidez todo o percurso, não é? O que posso dizer é que, com a libertação do país todo, com aquela escola que foi a luta de libertação — em que Amílcar dizia que quem sabe deve ensinar àquele que não sabe —então, chegada a independência, nós quisemos fazer uma grande campanha de alfabetização. O ideal seria alfabetizar toda a gente, porque chegamos à independência com 93,7% de analfabetos, o que significava que o país, para se desenvolver, não poderia fazê-lo sem fazer um recurso enorme à alfabetização. Enquanto ministro da Educação, tentei ir para a parte de mobilização, de sensibilização, de envolvimento dos jovens em campanhas de alfabetização por todo o país. E tivemos muitos sucessos, mas também tivemos muitas dificuldades. Por quê? Porque, apesar do entusiasmo, não havia os conhecimentos, a experiência pedagógica de como se iria desenvolver o trabalho. Tínhamos uma pequena equipe que foi trabalhando, mas os primeiros embates começaram por ser pela língua. Por que nós, a alfabetização, estávamos a fazê-la em português. Além de ser uma língua desconhecida pela grande maioria da população, as pessoas não entendiam muito bem a razão. Lembro-me de que, uma vez, me disseram: “Mas, afinal, os colonialistas estiveram cá quinhentos anos e não nos fizeram aprender a língua deles. Como é que agora o PAIGC, que lutou contra o colonialismo, vai-nos ensinar o português?!” Eu disse: “Olha, é tão simples como isso: eu sou agrônomo. Estamos a tentar melhorar a nossa agricultura. Nós temos que recorrer a instrumentos, sementes melhoradas, adubos etc., mas também vamos recorrer a tratores. Não fomos nós que inventamos o trator. Nós vamos utilizá-lo para abrir os caminhos do desenvolvimento. Ora, a alfabetização é isso mesmo. As nossas línguas são muitas, uma trintena, e não temos a capacidade de fazer a alfabetização em todas as línguas. Vamos utilizar o português. Se calhar, vamos utilizar o crioulo, que é uma língua falada por mais ou menos 80% da população.” Com o tempo, então, nós, conhecendo a grande experiência que tinha Paulo Freire, quisemos pedir o apoio dele. E então Paulo Freire vem dar-nos esse apoio intelectual, esse apoio de conhecimentos vividos em diferentes situações mais ou menos próximas daquelas que estávamos a viver. E o processo continuou, mas Paulo Freire, que era um grande intelectual, um homem realmente de uma capacidade, de uma oralidade extraordinária na explicação e no envolvimento, foi nosso professor, de nós todos. Passávamos horas discutindo todas as questões. Devo dizer que, depois da independência, com todo o entusiasmo que apareceu por todo o país, inclusive na chamada diáspora, as pessoas estavam muito disponíveis para vir. Lembro-me de uma primeira missão que eu, enquanto ministro da Educação, e o ministro da Saúde fizemos a Portugal, para ir procurar quadros, porque não havia professores. A maior parte dos professores eram ou militares ou esposas dos militares, das poucas escolas primárias que havia. Foram todos para Portugal! Então nós fomos à procura de cooperação com professores portugueses, por meio de um quadro estabelecido entre os dois países. Mas também encontramos muitos dos nossos compatriotas que estavam a estudar. Muitos deles abandonaram os seus estudos para vir trabalhar para o desenvolvimento do país. E participaram nisso. 2. “FALÁVAMOS MAS NÃO ESCREVÍAMOS.” E A DEDICATÓRIA A AMÍLCAR CABRAL MÁRIO: E, então, havia muitas discussões, porque era gente com uma formação intelectual já bastante boa, e tinham também alguma coisa a dizer quanto a como fazer essa alfabetização. Com a experiência do Paulo Freire e da sua equipe, fizemos todo um processo, e as Cartas à Guiné-Bissau aparecem como o resultado do intercâmbio que fomos estabelecendo, dos diálogos que se produziram. E aí foi muito bom, porque Paulo Freire teve capacidade de sintetizar essa experiência, que era mais oral — aliás, essa é a tradição africana, não é? —, mas não escrevíamos. Ele foi capaz de pôr no papel muitas das ideias que intercambiávamos e as sínteses, para poder continuar na sessão seguinte. Portanto, essas cartas efetivamente foram cartas, ou escritas diretamente ou resultado das conversas que tivemos, mas que ele procurava, de certa maneira, sintetizar, para facilitar o progresso nos trabalhos subsequentes. SÉRGIO: Você recebeu alguma dessas cartas pelo correio? Ou não era carta, carta mesmo? MÁRIO: Algumas sim. Eu não as tenho agora, porque a minha vida tem mudado muito, mas a minha esposa certamente tem muitas cartas que nós recebemos de Paulo Freire. E outras foram também eventualmente trabalhadas em função das nossas conversas. Mas ele sempre procurava mandar cartas. Aliás, antes de qualquer outra missão, havia sempre uma proposta de como continuar no diálogo, nos trabalhos que nós estávamos a fazer. Falei de minha esposa, que trabalhou na educação, como posso falar da Dulce Borges, que agora trabalha na Unesco, no Brasil, e que era a diretora geral do ensino, ede vários outros: do Manecas Rambeau Barcelos e outros que participaram nos primeiros momentos do lançamento dessa grande epopeia que foi a educação na Guiné-Bissau. SÉRGIO: O livro Cartas à Guiné-Bissau é dedicado a Amílcar Cabral.41 Como é que você define o papel que o Amílcar Cabral representou? E, a partir do relacionamento que você teve com ele — você certamente conviveu com ele, não? MÁRIO: Naturalmente. SÉRGIO: …qual a sua visão do Amílcar hoje? Como é que você resumiria as ideias que o Amílcar tinha em relação à educação, a todo o processo de independência e da construção do país, aliás, onde a educação tinha um papel fundamental? Qual o balanço que você faria da participação do Amílcar, como pessoa e como um dos fundadores da nação guineense? MÁRIO: Penso que o Paulo Freire compreendeu muito bem que Amílcar Cabral foi um grande pedagogo, apesar de não o ter conhecido pessoalmente. Eu conheci o Amílcar pessoalmente, e o primeiro contato que tive com ele foi ainda criança, estudante em Gabu.42 Meu pai era chefe dos Correios. Amílcar Cabral, naquele inquérito agrícola que fez à Guiné, foi ao Gabu. E ele, que era um homem simples, contatou muita gente, e foi contatar um senhor que tinha um apelido igual ao dele, Abel Cabral, que era o meu pai. E então, quando ele chegou à minha casa, eu e meus irmãos estávamos a tomar banho lá no quintal, assim à vontade. E eu vi aquele homem negro, de sandálias plásticas nos pés, e de quem o meu pai disseme: “É engenheiro agrônomo.” Aquilo causou-me um impacto enorme, e não é por acaso que eu sou também agrônomo. Terá sido o nosso primeiro encontro. Mais tarde, já como adulto, como estudante, primeiro em Bissau, mas depois na universidade, não foi com dificuldade que eu me teria mobilizado para integrar as fileiras clandestinas do PAIGC. Amílcar foi um homem muito simples, com uma argúcia muito grande, de uma grande capacidade de diálogo, razão pela qual conseguiu realmente colar as partes e construir pouco a pouco a nação guineense. Isso é um processo pedagógico! Aliás, se tiver a ocasião de ler livros de Basil Davidson,43 há de ver a grandeza desse homem, desse intelectual africano, e das perspectivas que ele tinha para o futuro. Ontem ainda fui convidado pelos antigos alunos da escola piloto, e pediram-me para dizer duas coisas. E uma das coisas, foi: “Este encontro vai exatamente na linha de recordar os ensinamentos de Amílcar Cabral, que foi o nosso grande professor, o nosso grande líder, e que nos faltou no momento mais precioso do desenvolvimento histórico nacional.” 3. “UM MOMENTO ESPECIAL. FOI PENA QUE NÃO SE TIVESSE CONTINUADO” MÁRIO: Penso que Paulo Freire, eventualmente tendo lido livros que Amílcar teria escrito ou teria inspirado, compreendeu que ele realmente era o elo, como nós dizemos, o fundador da nacionalidade guineense e cabo-verdiana. Porque tivemos essa particularidade de ter sido um único partido para lutar para a libertação de dois povos. Essa ligação entre Guiné e Cabo Verde remonta dos tempos históricos, que Amílcar soube realmente utilizar para promover essa luta pela libertação nacional. Por isso eu digo que a influência de Amílcar não é só de ontem, de hoje, mas será de amanhã ainda, porque temos muito o que aprender com os seus ensinamentos. Paulo Freire utiliza muito bem essas imagens e todo o processo de reconstrução nacional, de que, digamos, a educação não é senão um aspecto, mas um aspecto muito importante. Esse processo inspirou — e ainda bem — toda a edificação do sistema educativo. Porque, quando chegamos à independência, como eu disse, tínhamos 97,3% de analfabetismo; tínhamos catorze professores primários formados, tínhamos uma única professora do ensino secundário — que é a tal Dulce Borges. Está a ver o que era construir o Ministério da Educação? A educação era apenas um serviço ligado a Portugal. A maior parte da administração era dirigida por militares, e o funcionário mais elevado que encontramos era uma pessoa que tinha o nível de secretária, praticamente, e que foi promovido, à última hora, como segundo oficial. Quer dizer, nós tivemos que construir a partir da primeira pedra, praticamente, o Ministério da Educação, razão porque a experiência que tivemos com Paulo Freire e com a sua equipe ajudou não só a alfabetização, mas todo o processo da instauração do sistema educativo no país. Aliás quando, em 1978 fizemos o primeiro encontro dos ministros de Educação e alfabetizadores dos países lusófonos, dos Palop,44 a influência de Paulo Freire foi perfeitamente evidente. E aí envolvemos os outros países, nossos irmãos Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, e foi realmente um momento especial. Foi pena que não se tivesse continuado. Logo a seguir, entretanto, eu também mudei para outra responsabilidade, para ministro da Agricultura. Mas aquele foi um momento alto, em que todos os países recémlibertados estavam à procura de uma afirmação, à procura de um sistema educativo que fosse uma resposta à própria situação cultural que cada país vivia; quais os caminhos deveriam ser trilhados para aí chegar? Não tenho estado muito ligado a essas questões agora, mas eu sei, inclusive pelos dois últimos ministros da Educação. Um deles foi um jovem de quem eu gostava muito, e trazia-o sempre para os debates. Ele ainda falava dessa experiência e dizia: “E pena que não tenhamos a capacidade de reproduzir esse ambiente do dar e do receber que havia!” Porque nesse processo todos nós aprendemos, do ministro aos simples alunos, com as conversas que tivemos, longas horas de debates e de troca de ideias. E há, felizmente, muita coisa que foi publicada. O problema agora seria fazer uma síntese atualizada daquilo de que foi produzido na época, daquilo que foi escrito, daquilo de que a nossa memória ainda se lembra, para poder continuar a inspirar o processo da edificação do nosso sistema educativo, como parte integrante do desenvolvimento. Penso que algumas falhas que nós tivemos e estamos tendo no desenvolvimento é porque a educação não foi considerada um problema de toda a sociedade, como nós dizíamos. 4. A HERANÇA E A ESCOLA COLONIAL: “POUCA GENTE TINHA ACESSO” SÉRGIO: Uma observação que eu queria fazer, ainda antes de entrarmos mais diretamente na própria experiência da alfabetização com a orientação que o Paulo deu, é a seguinte, quanto à situação que vocês herdam do período colonial. No próprio Cartas à Guiné-Bissau há, num determinado momento, uma referência a um texto de Luiza Teotônio Pereira e Luís Motta, onde eles dizem: Em dez anos, de 1963 a 1973, foram formados os seguintes quadros do paigc: 36 com o curso superior, 46 com o curso técnico médio, 241 com cursos profissionais e de especialização e 174 quadros políticos e sindicais. Em contrapartida, desde 1471 até 1961, apenas se formaram catorze guineenses com curso superior e onze no nível técnico.45 Qual era a situação que vocês herdaram, basicamente? Como é que era o dia a dia da educação na Guiné ainda no tempo colonial? Você, por exemplo, foi aluno da escola primária aqui. Como é que era essa escola? Como é que você, negro guineense, teve acesso a ela e, a partir do seu caso particular, como é que você descreveria a situação da educação no período de antes da independência? MÁRIO: Digamos que a escola, no período colonial, era uma escola extremamente seletiva.46 Pouca gente tinha acesso à escola. Tive acesso porque, sendo meu pai funcionário público, era natural que eu fosse à escola. E, como eu, outros filhos de gente com uma certa posição social, foram. Mas a grande maioria dos meus contemporâneos, das crianças com quem brincávamos, ou não tinham acesso à escola ou tinham-no em circunstâncias extremamente difíceis.47 Por isso, era uma escola que começava já por ser seletiva, porque uma grande parte da população não tinha acesso. Depois, quando entrassem para a escola, poucos chegariam ao fim. Portanto, o sistema piramidal formava-se de início. Eu fui dos poucos, eventualmente, que chegou ao antigo sétimo ano do liceu, para poder ter esperanças de candidatar-me a uma bolsa de estudos, o que me conduziu a Portugal. Eram muito poucos os que chegavam a essa situação. A escola era muito seletiva, efetivamente: quando chegávamos ao liceu, grande parte dos estudantes eram os filhos dos funcionários coloniais europeus que estavam aqui. Podemos dizer também que havia muitos cabo-verdianos, filhos dos originários de Cabo Verde que estavam também na administração. E os poucos guineenses que aí chegavam tinham passado por um sistema de filtragem muito rigoroso, razão pela qual essa comparação que Luiza Teotônio e Luís Motta estavam a fazer é um tanto baseada nas estatísticas que nós tentamos demonstrar: que os colonialistas, nestes cinco séculos que aqui estiveram, não tinham formado praticamente nada! Essa foi a herança que nós recebemos. 5. “A PANCADA ERA A CHAVE PARA ABRIR AS CONSCIÊNCIAS” SÉRGIO: No dia a dia da tua escola, você como aluno: como é que era essa escola, você se lembra? Da pedagogia que se utilizava, do relacionamento entre professor e aluno, você ainda se recorda? Apanhava-se nessa escola? Você chegou a apanhar alguma vez? Quais eram os métodos utilizados? MÁRIO: O método era o “magister dixit”. Aí não havia diálogo. O professor era o homem que sabia tudo e que ensinava tudo, os alunos só tinham que aprender. E tinham que aprender, porque, se não aprendessem, apanhavam de palmatória. Eu ainda fui do tempo da palmatória, da vara. Felizmente não apanhei, talvez porque… não digo que fosse um estudante brilhante, mas, das turmas por onde passei, muitas vezes eu era como que um auxiliar do professor, para fazer perguntas, fazer as lições dos meus colegas. E lembro-me, uma vez, da dor que senti ao ter que dar palmatoadas em minha irmã mais velha, porque ela não tinha respondido às questões. Éramos nós que batíamos, em substituição ao professor. Bom, esse era o sistema que o nosso professor tinha instaurado, numa escola missionária. Aliás, depois, quando fui ministro da Educação, mudei o nome das escolas, e uma das escolas chama-se precisamente “Antônio José de Souza”, porque o nosso professor chamava-se assim, e era um bom professor. Mas, pronto, ele utilizava os velhos métodos, em que a pancada era a chave para abrir as consciências, talvez para as pessoas aprenderem melhor. Era uma escola, portanto, neste estilo, a que nós tivemos. O relacionamento entre os professores e os alunos era muito hierarquizado. Esse professor, Antônio José de Souza, que me marcou muito, era considerado um bom professor, e efetivamente era. Ele tinha uma maneira de dialogar com os seus estudantes, sempre com aquele respeito do professor, mas com um intercâmbio, o que não acontecia em muitas outras escolas, em que o professor era o senhor que chegava, dava a sua aula e ia-se embora, não tinha mais nada a ver com os alunos. Mas, como eu disse, na minha quarta classe frequentei uma escola missionária. E aí havia um outro espírito, um espírito missionário, de tentar evangelizar. Enfim, essa escola era uma escola pouco democrática, para não dizer nada democrática. E o espírito de dar e receber era muito pouco constatado. Os métodos eram muito rígidos. Os professores obrigavam a memorizar, como dizia o Paulo Freire, a comer, a mastigar esse conhecimento, que tinha pouco de inspirador, pouco de participativo. 6. ALFABETIZAÇÃO EM LÍNGUAS NACIONAIS? “AÍ TIVEMOS DIFICULDADES DE ESCREVER” SÉRGIO: Entrando já no âmago da experiência da educação pós-independência e do trabalho na área da alfabetização: uma das questões que voltam com mais frequência é a questão da escolha da língua. Aliás, na parte final já do livro Cartas à Guiné-Bissau, o Paulo diz especificamente o seguinte: Um dos pontos a que terei de voltar, de maneira mais ampla, possivelmente no primeiro destes futuros relatórios, é o da língua. Na verdade, quanto mais me inspiro na experiência guineense, tanto mais a importância desse problema se evidencia, demandando respostas adequadas em situações diferentes. De fato, o problema da língua não pode deixar de ser uma das preocupações centrais de uma sociedade que, libertando-se do colonialismo e recusando o neocolonialismo, se dá ao esforço de sua recriação. E neste esforço de recriação da sociedade a reconquista pelo Povo de sua Palavra é um dado fundamental.48 Esse problema da língua volta sempre, quando se procura fazer o balanço da experiência, e há críticas, inclusive, justamente à escolha da língua portuguesa, não porque ela fosse a língua do colono; o problema não é tanto ideológico, mas prático, que vem do fato de que a língua portuguesa não corresponde à realidade cotidiana do aluno. Como é que se pode querer então que ele aprenda, se não é a sua própria língua? É claro que hoje nós vemos isso de uma forma crítica porque temos um outro contexto, já aprendemos etc., mas, na época como é que você situava essa questão da língua? Além do que você já disse, no início, que reflexões você faria sobre esse ponto, e como você pensa que se deve encarar o problema da alfabetização e da educação na Guiné-Bissau, tendo em vista a questão da língua a ser utilizada no ensino? MÁRIO: é uma questão recorrente, não? Cada vez que você enfrenta, e sobretudo analisa, o fenômeno educativo, tem que esbarrar no problema da língua que, aliás, não é um problema guineense, é um problema universal. Não é por acaso que a Unesco acaba por discutir as questões da língua e considera que, de fato, a alfabetização e o ensino devem ser feitos nas línguas nacionais. Esses dados, nós descobrimos na prática do dia a dia. Como eu disse, as pessoas ficaram de certa maneira escan dalizadas quando o paigc ensina a língua do colono que ele expulsou! Aí já se põe o problema, o porquê da língua portuguesa. Mas, como eu disse, nós tentamos explicar sempre: como um instrumento, como uma abertura a um ambiente maior, porque as nossas línguas não eram escritas. Fizemos um esforço de ver como resolver o problema, porque um país de pouco mais de um milhão de habitantes, com trinta línguas!49 Certamente não são os meios do país que vão permitir alfabetizar, produzir livros, produzir todo o material didático e pedagógico necessário para o efeito, não é? Então nós escolhemos, na altura, seis línguas: era o português e, entre as línguas nacionais, era o crioulo, o balanta, o fula, o manjaco e o mandinga. Com a escolha dessas línguas, fazia-se uma cobertura de cerca de 80% da população. Mas mesmo aí tivemos dificuldades de escrever. E mesmo em relação à escrita do crioulo, é uma questão que ainda hoje se discute. Estava a ver aí nesse livro,50 em que se escreve “Kacu-Martel”. Em crioulo, nós tínhamos adotado o “c” como “tch”, porque é um som que não existe no português: “katchu”. O “c” praticamente não é utilizado no crioulo, há outros fonemas que podem dar o som. Então nós utilizamos o “c” como “tch”. Portanto, daí se vê toda a complexidade do problema. Mas é verdade que, para que uma pessoa possa dominar os instrumentos do desenvolvimento, precisa de o fazer numa língua que domina absolutamente. Aliás, costuma-se dizer que o africano tem tendência a aprender outras línguas. Por quê? Porque normalmente aprende uma, que é a materna, e depois aprende outra, que é a língua oficial, desde a mais tenra idade. Fica, portanto, preparado para absorver outras línguas, porque já teve base e começa a parecer, logo de início, um poliglota. O problema de língua, portanto, é um problema atual, não? 7. ALFABETIZAR EM SEIS LÍNGUAS? AS MINORIAS, OS FILHOS DOS DIRIGENTES E OS FILHOS DO POVO SÉRGIO: Para estimulá-lo mais dentro desse debate, gostaria de observar o seguinte. Aliás, é um comentário que eu já havia feito bastante tempo atrás, com relação ao problema que Angola enfrentava também, no caso da alfabet ização. Com o agravante, no caso angolano, de que eles não têm, ao contrário de vocês aqui, uma língua crioula, que servisse — sendo língua nacional, portanto língua africana — como instrumento de comunicação entre as diferentes etnias. Por isso, no caso de Angola, a situação é mais difícil ainda. O que eu argumentava em Angola era: quando se vai para uma escolha das línguas nacionais — que, como você disse, a Unesco privilegia — e tendo em vista as condições econômicas, sociais, o processo de desenvolvimento de cada país e o quadro linguístico de que o país dispõe, eu me pergunto até que ponto, ainda que justificada pedagogicamente ou ideologicamente, essa escolha das línguas é viável na prática. Vejamos: um país que tem dificuldades para formar professores já numa determinada língua, imagine agora esse país tendo que formar professores em x línguas. No caso da Guiné-Bissau, seria o quê? Seis línguas nacionais? Em vez de você formar professores numa língua, você teria que formá-los então em seis línguas diferentes. Além disso, você teria que pressupor que os alunos seriam agrupados, fisicamente, de acordo com as suas próprias etnias. Bastaria que houvesse, numa escola, duas ou três crianças de cada uma das diferentes línguas, para que se justificasse a presença de professores em todas essas línguas, certo? Ora, se o critério é escolher a alfabetização na língua materna, ou seja, reconhecer a cada criança o direito de alfabetizar-se na sua própria língua, o que fazer então com as crianças pertencentes às minorias linguísticas? A própria escolha de algumas das línguas nacionais e a não escolha de outras, provavelmente com base em estatísticas, criaria um problema sério do ponto de vista do direito da criança, na medida em que o princípio da não discriminação estaria em causa. Isso para não falarmos dessa organização do ensino poder vir a fomentar tendências tribalistas, num contexto onde os fatores de unidade nacional ainda são frágeis, não é? Mas não é só isso. Seria preciso produzir materiais de ensino, de leitura, de estudo, nas tais seis línguas, porque, do ponto de vista ideológico, nós teríamos então que encarar de uma maneira equitativa as diferentes línguas, e assim não se justificaria que se tivesse material para uma e não para outra. Ora, num país que já tem dificuldades de produzir material e de formar professores numa língua, imagine o que não seria em seis línguas diferentes! Para complicar ainda mais as dificuldades, são línguas que, na maior parte dos casos, não têm tradição escrita ainda. Claro que elas podem começar a ter. Aliás, este não deveria nem ser um argumento capital na não escolha de uma língua: não é pelo fato de que ela não seja ainda língua escrita que não se poderia utilizá-la, na medida em que se pode criar então a história da escrita e aí essa história se acumularia. Portanto, não é esse o maior problema. O problema, ainda prático, é o de como organizar a educação para que todas as crianças pudessem ter o direito assegurado de serem alfabetizadas na sua própria língua. Além disso, se você, como dirigente, tem uma prática do português e fala em casa com os seus filhos a língua portuguesa, os seus filhos já terão um acesso mais espontâneo, mais natural a essa língua. Isso já ocorre em muitas situações, por exemplo, em Angola, onde já há um número significativo de crianças que falam o português praticamente como língua materna. Então, nada mais justo que o português também possa ser uma língua de ensino… MÁRIO: Exato. SÉRGIO: …para as crianças, guineenses ou angolanas, que já nascem numa situação que as leva a falarem o português como língua materna. Então nós teríamos aí, para intensificar um pouco mais essa complexidade, alunos que teriam o direito de serem alfabetizados em língua portuguesa e fazerem o ensino primário nessa língua, certo? Então pergunto: daqui a alguns anos, quando os alunos forem avançando, terminam a escola primária, começam a segunda fase do ensino de base, o ensino secundário, o que é que vai acontecer? A menos que nós adotemos — esta é que é a minha posição — uma política de bilinguismo efetiva, para que as crianças aprendam realmente uma segunda língua, que seja uma língua veicular e que dê maior acesso aos canais de comunicação com o mundo; a menos que a gente faça isso, o que vai acontecer é que os alunos filhos dos dirigentes, ou daqueles que tiveram mais acesso à língua portuguesa, vão ter muito mais vantagens no desenvolvimento do seu processo na educação secundária, e mesmo na superior, do que aqueles, os filhos do povo, de diferentes etnias, que acabaram tendo a educação primária na língua nacional. 8. “POR QUE É QUE OS NOSSOS FILHOS VÃO APRENDER NESSA LÍNGUA?” SÉRGIO: Essa é a complexidade que eu vejo, e gostaria de ouvi-lo a respeito. Mas há uma última observação que eu faria e que, aliás, eu já tinha discutido também com o Paulo. É a seguinte: o que a gente observa — e a Unesco já constatou isso em muitas partes do mundo — é que a recaída no analfabetismo é um problema tremendo. Quando há interesse, da parte dos governos, há muitas vezes também uma pressa enorme em promover campanhas de alfabetização, em demonstrar, através de número s, que há um avanço nessa área, talvez porque seja essa uma das áreas escolhidas entre os indicadores de desenvolvimento mais evidentes. No entanto, a gente vê que, depois, como os alfabetizados não têm a oportunidade de praticar, de conviver no dia a dia com o domínio do instrumento que aprenderam, eles acabam praticamente voltando para a estaca zero. Ora, o que eu discutia com o Paulo era: em vez de nos precipitarmos para uma alfabetização entendida já como processo de aquisição do domínio da leitura e da escrita, por que não nos assegurarmos primeiro de que — no caso, por exemplo, de uma segunda língua, como é a língua portuguesa na Guiné — os alunos a dominem primeiro oralmente? Evidentemente, essa língua irá entrando à medida que o processo de modernização tecnológica e de desenvolvimento for acontecendo. Como língua que permite maior abertura para o mundo, ela permitirá que quem a domine ultrapasse as fronteiras do nacional, por um lado, e do cultural, entendido como âmbito de uma etnia apenas, por outro. Por que a pressa? Por que não trabalharmos primeiro no sentido de garantir um domínio efetivo da oralidade, para depois então passarmos para essa fase do domínio da leitura e da escrita? Enfim, já falei um bocado e queria te ouvir um pouco em relação a isso tudo que eu havia comentado antes: a escolha das línguas, essa complexidade toda. Como é que você reage em relação a isso? MÁRIO: A questão da língua é muito complexa porque é um problema político, um problema econômico, um problema com muitas vertentes. Porque se trata de uma opção: quando você tem trinta línguas, por que selecionar seis, por exemplo, no caso da Guiné-Bissau, em vez de serem todas? Cada língua tem o seu direito, não é? Mas a capacidade do Estado não se compadece com a instauração de uma alfabetização de cada língua de cada cidadão. E, para mais, também há o problema do nacional: a Guiné-Bissau não pode ser um mosaico de identidades próprias, que aprendem na sua língua e fazem tudo na sua língua. Aí o crioulo desempenhou, na luta de libertação, e continua a desempenhar um papel de unificador, de língua veicular, e acho que isso deve ser privilegiado. Acredito que, como nós fizemos a opção na ocasião, era a de utilizar o português como uma língua de acesso ao universal, às outras culturas, uma língua escrita, já com material de aprendizagem, de intercâmbios etc.; o crioulo, como língua de unificação e, sobretudo para a alfabetização, identificar algumas línguas que pudessem facilitar os conhecimentos. E discutimos essa questão da introdução do crioulo como língua de ensino nos primeiros dois, três anos, precisamente para permitir um maior acolhimento dos novos conhecimentos que os alunos iam tendo, um maior intercâmbio, uma maior penetração. Mas para depois continuar em português, porque não teríamos capacidade de fazer todo o ensino, digamos, como se faz em relação ao suaíli, porque o suaíli é uma língua regional: não é um país, são vários países. Bom, mas aí está o problema de que nem sempre nós recebemos, sobretudo da parte da pequena burguesia, muita receptividade, porque diziam: “Mas, por quê?” Uma vez, o Manuel Rambeau Barcelos, o Manecas, já como ministro da Educação, pediu-me para ir lá, com a minha autoridade política e experiência de antigo ministro, para dizer às pessoas o bem que era ensinar em crioulo. Mas depois houve uma senhora que me disse: “Mas olha lá, Mário Cabral! Você aprendeu em português desde a escola primária e fala muito bem o português, e nós temos muito orgulho nisto. Você agora quer ensinar aos nossos filhos o crioulo, por quê? Você não aprendeu em português tudo o que tinha que aprender?” E eu disse: “Repare que a experiência é diferente. Eu, filho de funcionário, um dos privilegiados dessa sociedade, tinha com o meu pai, com a minha mãe, possibilidade mesmo em casa, já, de falar em português.” Bom, com a minha mãe falava sobretudo em crioulo, com o meu pai sobretudo em português. O indivíduo tem, desde o início, essa experiência bicultural, bilinguística, mas não são todas as crianças que têm essa mesma situação. 9. “POR QUE NÃO FAZER UM POEMA EM CASSANGA?” MÁRIO: Por vezes, as pessoas pensavam que a língua nacional era uma despromoção, era uma língua de segunda. “Por que é que os nossos filhos vão aprender nessa língua?” Portanto, penso que, quanto ao problema da oralidade, sobretudo em relação à alfabetização, nós utilizamos muito isso. A questão, por exemplo, dos cassangas: queriam aprender na sua língua. Nós não podíamos ensinar na língua cassanga, porque não tínhamos instrumentos. Então iniciamos por um processo de mobilização comunitária, de fazer uma atividade em comum, a produção de um campo agrícola, produção de bananas, de hortaliças etc. Fizemos muita atividade cultural, teatro, manifestações, e foi a partir daí que essa população, que pretendíamos al fabetizar, sentiu n ecessidade de registrar o número de cachos de bananas, preparar o futuro, e aí foram para a alfabetização no crioulo. Disseram: “Nós temos necessidade.” Essa pressa de que falou é um pouco a resposta que o próprio país, o Estado, o governo têm que dar às preocupações de desenvolvimento. Creio que, para que não se recaia no analfabetismo, é preciso integrar a educação como um elemento do desenvolvimento. Quer dizer, tem que haver uma sequência, porque senão, por que é que eu vou precisar de escrever e de ler? Não é só para aquecer, porque aqui já o clima é quente, não é? (ri) E tivemos consciência disso logo no início, razão pela qual começamos a fazer todo um trabalho de produção de material pós-alfabetização. Porque seria necessário que houvesse jornais, publicações, que as pessoas tivessem uma necessidade de continuar a utilizar a sua língua, para poderem manter os conhecimentos adquiridos. Nós optamos inclusive por fazer a escrita do crioulo no alfabeto africano, para facilitar que, uma vez conhecida uma língua nacional, se pudessem escrever outras também. Enfim, esse problema é extremamente complexo e, realmente, não é tão evidente como isso, porque — disse muito bem — tem-se que formar todos os professores nas línguas nacionais, nas línguas locais em que se queira fazer aprender. E por que, numa escola, ter um batalhão de professores para ensinar a poucos alunos? Razão pela qual esse problema tem que ser contextualizado, analisado profundamente. Aí, mais uma razão de se escolher, do meu ponto de vista, para o ensino geral, duas línguas: a língua veicular, língua integradora, que é o crioulo, e a língua oficial, que é o português. As outras seriam sobretudo utilizadas no processo de alfabetização, em que as pessoas precisam da língua para o dia a dia, para a sua ocupação, como instrumento para lhe permitir fazer os registros, as reflexões etc., e também como língua de cultura. Por que não fazer um poema em cassanga? Certamente que teria muito mais força de conteúdo do que escrever o traduzido, não é? O problema da língua condiciona, muitas vezes, o próprio raciocínio, razão por que, quando a pessoa se exprime na sua própria língua, na sua língua materna, está mais habilitada a dar todo o conteúdo cultural, semântico, do que quando tem que traduzir para outra língua. Mas isso põe realmente o problema da capacidade financeira e, por vezes, de não só codificar a língua, mas ter capacidade de a utilizar, e em permanência, para não haver as tais recaídas no analfabetismo. 10. PASSADO? “PROGRESSOS ASSINALÁVEIS”. PRESENTE? “QUALQUER COISA DE ERRADO” SÉRGIO: Sei que o nosso tempo é curto, Mário, mas, antes de acabar a nossa conversa, eu queria te fazer duas perguntas, basicamente. A primeira é: com relação ao trabalho que foi desenvolvido com o apoio do Paulo Freire, que lições você tirou desse processo? Ao olhar de novo para trás, que conclusões você extrai dele? A segunda questão está mais relacionada com a situação na Guiné-Bissau hoje. Apesar de todo o trabalho que foi feito, no qual você teve uma responsabilidade de liderança durante um bom período, você chega a uma situação, hoje, em que o analfabetismo é muito alto, não é? Por exemplo, apenas no que diz respeito às mulheres, que estão entre os grupos mais desfavorecidos, temos mais de duzentas mil analfabetas. Estamos ainda com o problema da exclusão de uma maioria de crianças que não vão à escola, e aí a gente encontra a fonte de onde brota o analfabetismo adulto, certo? Como é que você encara esse problema? Há, portanto, de um lado, um balanço, que eu gostaria que você fizesse, da época em que Paulo Freire teve uma participação maior. De outro, a situação atual. Como é que você vê esses dois momentos do processo da educação na Guiné-Bissau? MÁRIO: Eu diria que a participação de Paulo Freire marcou muito a educação nos primeiros anos. Eu falei desse encontro dos ministros da Educação, que foi um momento alto no intercâmbio e na procura das vias para o desenvolvimento do sistema educativo, como parte integrante do desenvolvimento geral do país. E acredito que fizemos, na ocasião, progressos assinaláveis, e conseguimos dar à sociedade, ao governo, em geral, a ideia da necessidade, da prioridade que a educação merecia. Nós tivemos na ocasião a ideia de colocar uma escola em cada cinco quilômetros, para facilitar que as crianças fossem à escola etc. Hoje estamos a falar da educação para todos, e tive muito gosto em participar, enquanto funcionário da Unesco, na preparação do Fórum Mundial da Educação para Todos.51 Foi um momento de ver muita frustração, porque investiu-se muito dinheiro, e os resultados não são visíveis. Quer dizer, a África está, no geral, a 50% da alfabetização das crianças em idade escolar, o que é extremamente mau. A Guiné-Bissau faz parte desse complexo, quando poderíamos ter tido — precisamente devido à forma como se encarou a educação, a importância para o desenvolvimento que a educação representa — maior consciência e uma utilização mais racional dos fundos, para esse setor tão importante para o desenvolvimento do nosso país. SÉRGIO: Onde é que se falhou? O que é que não andou bem e que explica essa recaída? MÁRIO: Penso que, sobretudo nos últimos tempos, o que explica o atraso é que chegamos ao ponto de ter um ministro da Educação por ano! Estive quatro anos na Educação. Fui, voltei por mais três anos. Teve o Fidelis,52 que acaba de falecer, que ficou cinco anos. Mas, depois disso, quando se entra no momento da dinâmica do multipartidarismo etc., e por causa das influências, eventualmente, das contestações que havia na sociedade, quem apanha normalmente é o ministro da Educação, não é? E então os ministros da Educação foram mudando, e, antes que um dominasse o aparelho, já estava a vir um novo. Creio que isso contribuiu bastante. Mas também, devido aos problemas sociais, econômicos e outros que a sociedade começou a viver, passou-se a colocar as verbas noutros setores. A educação nunca foi muito privilegiada do ponto de vista orçamental, mas pelo menos havia um grande apoio por parte dos doadores. Mas, quando os doadores veem toda a instabilidade que há no sistema educativo, a quem pedir responsabilidades? Portanto, muitas vezes as instituições recuaram também, em função da própria instabilidade, e penso que essas, entre outras, serão as razões pelas quais, em vez de se avançar, quase que se regrediu. Eu ouvi com satisfação o antigo ministro da Educação Huco Monteiro — João José da Silva Monteiro — dizer que nós deveremos retomar, relembrar, fazer uma releitura e eventualmente ir novamente para campanhas de alfabetização, para o envolvimento de uma participação maior dos professores etc. E acho que o atual ministro também, Geraldo Martins,53 na sua perspectiva da política educativa, tem esse elemento, de tentar melhorar a qualidade e alargar o acesso ao ensino. Esses são elementos que são indispensáveis, mas infelizmente nem sempre o governo coloca expressamente na sua distribuição orçamental esse aspecto. Acaba-se por dar mais dinheiro à Segurança ou às Forças Armadas do que se dá à educação. Bom, quando realmente a situação política é de instabilidade, a ponto de ter que se reforçar o controle do cidadão para evitar o pior, aí há qualquer coisa de errado! Ora, o desenvolvimento, a paz social existem quando há um mínimo de capacidade de gestão. As pessoas têm que ter, na sua perspectiva, uma esperança! Ontem eu falava com um amigo, e ele me dizia: “Ouve, vocês, como combatentes da liberdade da pátria, falam muito do passado!” Eu disse: “Sim, as pessoas falam muito do passado porque o presente é difícil e não há perspectivas de futuro”. Quando você não tem, numa perspectiva de futuro, coisas que o estimulem, a tendência é recorrer a um passado glorioso que você teve. E acho que este país está muito a sonhar com o passado, não está efetivamente a afrontar o presente e, sobretudo, fazendo uma perspectiva para o futuro. Essa é uma necessidade nacional. Se não formos capazes de fazer isso, este país, que já está em tremendas dificuldades, ainda conhecerá maiores dificuldades. Mas tenho esperanças, porque me parece que há uma consciência política geral crescente, de que governar não pode ser mais um aspecto puramente político, em que os partidos concorrem para os postos de responsabilidade mais no sentido de se autossatisfazer do que de ser um delegado escolhido pelo povo, a serviço do povo. Há um mínimo de profissionalismo que é preciso instaurar na classe política para que, realmente, as pessoas trabalhem para construir, mas envolvendo a todos, nessa perspectiva democrática d e acesso ao desenvolvimento. 11. “UM HOMEM QUE OUVIA MUITO E QUE OBSERVAVA AINDA MAIS” SÉRGIO: Quando você se lembra hoje de Paulo, se tivesse que resumir em poucas palavras o que é que você mais aprendeu com ele, o que você reteria como essencial, na palavra e na contribuição dele para a educação na Guiné-Bissau? MÁRIO: Um aspecto muito importante é a sua pedagogia da liberdade, de uma abertura para não se ficar enquadrado numa metodologia muito rígida. Quer dizer, o intercâmbio em todo processo foi uma das questões que o Paulo Freire sempre acentuou. E esse processo, aquilo que se passa na escola, se fosse transportado para a sociedade, creio que seria muito bom para o desenvolvimento do país. E nisso Paulo nos ajudou muito, nessa abordagem aberta do aspecto social. Ele era, de fato, um homem político, com uma capacidade de síntese e uma capacidade de diálogo muito grandes. Era um homem que ouvia muito e, sobretudo, que observava ainda mais. Com essas observações, ele ajudou muito a jovem classe revolucionária — que queria queimar etapas — a guardar um bocadinho mais o fósforo, para com essa queima não queimar o essencial. (ri) 12. MULHERES: “UM MINISTÉRIO PRENHE”, A DECISÃO DE CABRAL E “A SUA BELA ELZA” SÉRGIO: Já que nós estamos no Dia Internacional da Mulher: você me havia feito um comentário sobre a relação do Paulo com a dona Elza. Qual era a ideia que o Paulo te passava em relação a essa questão da mulher? Q uando a gente vê ainda hoje a luta que a mulher tem, não só na África mas nos outros continentes, para sobreviver e para se impor, qual era o sentido dos comentários dele? MÁRIO: Eu disse que o Paulo Freire era um observador. E ele então observava a sociedade e descrevia a mulher como um elemento de participação. Por acaso não desenvolvi esse aspecto há pouco: a necessidade da tal questão do gênero, de fazer que a mulher progrida para uma igualdade na participação, nos direitos políticos etc. O Paulo acautelava muito esse aspecto, mas ele também dizia: “Tu tens aí um ministério prenhe de mulheres!”, porque nossos colaboradores eram colaboradoras. Dos sete elementos principais, só dois é que éramos homens; era eu e um padre, o padre Macedo. E o Paulo Freire gostava muito daquela decisão que o Amílcar Cabral tomou, de que, em cada comitê constituído de cinco pessoas, dois elementos tinham que ser mulheres. E aí, Cabral era intransigente: podiam ser cinco mulheres, mas não podiam ser cinco homens, tinham que ser pelo menos duas mulheres.54 Infelizmente essa aprendizagem não se desenvolveu muito, mas Paulo Freire insistia muito na necessidade de continuar com essa ideia, como uma forma de trazer a mulher de fato a uma atitude participativa, acabar com os complexos históricos da inferioridade da mulher. Às vezes, nos discursos, falava da mulher com toda a poesia de que Paulo Freire era capaz. Lembro-me então de uma vez em que falou tão bem da Elza, que era a sua companheira, sua amiga, sua musa, enfim, que as nossas mulheres ficaram invejosas. (ri) Às vezes passávamos maus bocados para explicar por que não tínhamos esse discurso, como tinha Paulo Freire da sua bela Elza! (Num próximo livro, pretendo trazer novos diálogos sobre a Guiné-Bissau, Cabo Verde e Moçambique.) Notas Paulo Freire, Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. São Paulo: Paz e Terra, 1984, 4a ed. [5a edição, São Paulo: Paz e Terra, 2011]. 40 “A Amílcar Cabral, educador-educando de seu povo.” É essa a frase com que Paulo começa o seu livro sobre a experiência guineense. A página seguinte, por sua vez, é inteiramente dedicada à seguinte citação de Amílcar: “Posso ter minha opinião sobre muitos temas, sobre a maneira de organizar a luta; de organizar um partido; uma opinião que se formou em mim, por exemplo, na Europa, na Ásia, ou ainda em outros países da África, a partir de livros, de documentos, de encontros que me influenciaram. Não posso porém pretender organizar um partido, organizar a luta, a partir de minhas ideias. Devo fazê-lo a partir da realidade concreta do país.” (Ib., p. 7.) 41 42 Capital de região a leste da Guiné-Bissau. Um deles é inteiramente voltado à luta pela independência da Guiné-Bissau. O original é inglês, mas a versão que conheço é a francesa, com prefácio do próprio Amílcar Cabral, Révolution en Afrique: La libération de la Guinée Portugaise. Paris: Éditions du Seuil, 1969. 43 44 Sigla que designa o grupo dos cinco Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. 45 Ver nota número 11 do capítulo 1. Curiosamente, no capítulo da “Instrução Pública”, o Anudrio da Guiné Portuguesa 1946 fazia as seguintes observações: “A Superintendência do ensino primário pertence ao governador. O ensino primário acha-se dividido em elementar e rudimentar. “O primeiro visa fornecer à criança os instrumentos fundamentais de todo o saber e as bases de uma cultura geral, preparando-se para a vida social. O ensino primário para não indígenas faz-se nas escolas do ensino primário elementar e compreende as matérias do programa do ensino primário adotado na metrópole e mandado observar pelo Ministério das Colônias. É ministrado em quatro classes anuais, correspondendo as três primeiras ao 1º grau — ensino elementar — e a quarta ao 2º grau — ensino complementar — atuais. “O ensino para indígenas faz-se em escolas de ensino primário rudimentar e compreende as matérias dos programas adotados pelo Conselho de Instrução Pública da Colônia. Nestas escolas, o ensino tem feição intuitiva e prática, tendendo à valorização moral e econômica do indígena, pela aprendizagem e aperfeiçoamento da técnica de produção e integração no espírito da civilização portuguesa. […] “O ano letivo nas escolas de ensino primário elementar tem início em 7 de outubro e termina em 15 de julho, realizando-se os exames na segunda quinzena deste mês. […] Nas escolas de ensino primário rudimentar, o ano letivo é fixado pelo Conselho de Instrução Pública, tendo em atenção a quadra mais adequada para o ensino das granjas de ensino prático agrícola.” (Lisboa: Sociedade Industrial de Tipografia, p. 164-5.) 46 De acordo com Amílcar Cabral, “na Guiné, 99% da população não podiam ir à escola. A escola era só para os assimilados, ou filhos dos assimilados, vocês conhecem a história toda, não vou contá-la outra vez. Mas é uma desgraça que o tuga causou na nossa terra, não deixar os nossos filhos avançarem, aprender, entender a realidade da nossa vida, da nossa terra, da nossa sociedade, entender a realidade da África, do 47 mundo de hoje. Isso é um obstáculo grande, uma dificuldade enorme para o desenvolvimento da nossa luta”. In Amílcar Cabral, Nacionalismo e cultura.Santiago de Compostela: Edisóns Laiovento, 1999, p. 43. 48 Paulo Freire, Cartas à Guiné-Bissau, p. 173. Pelo visto, o número de línguas faladas na Guiné-Bissau é controverso. No primeiro capítulo, item 9, o professor e linguista Emílio Giusti falava em dezoito, “além do crioulo”. Pelo que pude saber junto aos próprios guineenses, uma lista não exaustiva das línguas e grupos etnolinguísticos ainda presentes no país nos aproxima efetivamente do número avençado por Mário Cabral, ou seja: o crioulo; o fula (futa-fula, fulaforro, boinca, gabunca); o balanta (balanta-mané, mansuanca, balanta-cuntoe); o brame (manjaco, papel, mancanhe); o mandinca (mandinga, biafada, oinca, sussu, saraculê, djacanca, padjadinca); o felupe (djola); o baiote; o cassanga; o banhune; o bijagó; o nalu; o tanda; o cobiana e o cocoli. E o português, língua oficial. 49 50 Mário Cabral faz alusão a um exemplar que estava sobre a mesa, O crioulo da Guiné-Bissau: filosofia e sabedoria, do professor Benjamim Pinto Bull. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (Icalp, Portugal) e Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (Inep, Guiné-Bissau), 1989. 51 Realizado em Dakar, em abril de 2000. 52 Fidelis Cabral D’Almada. 53 Já substituído por Filomena Lopes, na remodelação ministerial ocorrida em novembro de 2002. Em seu já citado livro sobre a libertação da Guiné, publicado após sua visita às áreas então sob o controle do PAIGC, em outubro de 1967, Basil Davidson reproduz as palavras do então comissário político guineense Chico Mendes: “Em cada aldeia, na região liberada, fizemos a eleição do comitê da ‘tabanca’ (aldeia crioula). Em geral, ele é composto por três homens e duas mulheres. O comitê da aldeia é eleito pela assembleia da aldeia, isto é, por todos os aldeões” (Op. cit., p. 93). Por outro lado, as citações que vêm a seguir mostram claramente a preocupação constante de Amílcar Cabral com a questão da mulher. Ao analisar a estrutura social da Guiné “portuguesa”, por exemplo, durante um seminário organizado pelo Centro Franz Fanon de Milão, em 1964, Amílcar comentava: “A situação da mulher é um elemento de comparação muito importante. Entre os fulas, a mulher não goza de nenhum direito social: participa na produção mas não colhe os seus frutos. Por outro lado, a poligamia é uma instituição muito respeitada, sendo a mulher considerada, de certa forma, como propriedade do marido. […] Os balantas, apesar de revelarem fortes tendências para a poligamia, são, na sua maioria, monógamos. A mulher participa na produção, mas é proprietária do que produz, o que lhe confere uma situação privilegiada, pois a sua liberdade é efetiva, exceto no que se refere ao filho, que o chefe de família pode sempre reclamar; é necessário detectar aqui uma razão econômica, ou seja, que a força de uma família é sobretudo representada pelo número de braços capazes de trabalhar”. In Amílcar Cabral, A arma da teoria: unidade e luta. Lisboa: Seara Nova, 1978, p. 101-2. Outro exemplo: “Tem havido resistência surda, calada, por vezes, contra a presença de mulheres entre aqueles que mandam. Alguns camaradas fazem o máximo para evitar que as mulheres mandem, embora por vezes haja mulheres que têm mais categoria para mandar do que eles. Infelizmente, algumas das nossas camaradas mulheres não têm sabido manter respeito e aquela dignidade necessária para defender a sua posição como pessoas que estão a mandar. Não têm sabido fugir a certas tentações, ou pelo menos tomar certas responsabilidades sobre os seus ombros, sem complexos. Há camaradas homens, alguns, que não querem entender que a liberdade para o nosso povo quer dizer liberdade também para as mulheres, a soberania para o nosso povo quer dizer que as mulheres também devem participar nisso, e que a força do nosso partido vale mais na medida em que as nossas mulheres peguem neles teso para mandarem também, 54 com os homens. Muita gente diz que Cabral está com as suas manias de pôr as mulheres a mandar também — ‘Deixa pôr, mas nós vamos sabotar por trás. Podem sabotar hoje, sabotar amanhã, mas qualquer dia ficam mal’.” (Ib., p. 152.) Ou ainda: “A tendência de alguns camaradas é a seguinte: um comissário político, por exemplo, vê um rapazinho bom militante: em vez de se ocupar dele para o ajudar, para o entender mais, para avançar, em vez de o animar, não, faz dele o menino de recados, porque é esperto, sabe bem, vai rapidamente; se lhe der uma coisa para guardar, guarda bem; e, então, dá-lhe o seu saco de roupas, para ele guardar, em vez de fazer dele um valor para a nossa terra. Ou então: aparece uma rapariga, esperta, mais ou menos bonita; em vez de a ajudar, dar-lhe a mão para avançar, para ser enfermeira, ser professora, para ir estudar, para ser uma boa miliciana, ou qualquer outra coisa, não, faz dela sua amante, porque é muito bonita e ele é que tem o direito de tomar conta dela. Temos de acabar com isso.” (Ib., p. 152-3.) Ou, finalmente: “As mulheres têm dois colonialismos por vencer: o dos portugueses e o dos homens.” (Ib.) Anexo I O ATO DE ESTUDAR — A Tinha chovido muito toda a noite. Havia enormes poças de água nas partes mais baixas do terreno. Em certos lugares, a terra, de tão molhada, tinha virado lama. Às vezes, mais do que escorregar, os pés se atolavam na lama até acima dos tornozelos. Era difícil andar. Pedro e António estavam a transportar numa camioneta cestos cheios de cacau para o sítio onde deveriam secar. Em certa altura, perceberam que a camioneta não atravessaria o atoleiro que tinham pela frente. Pararam. Desceram da camioneta. Olharam o atoleiro, que era um problema para eles. Atravessaram a pé os dois metros de lama, defendidos pelas suas botas de cano longo. Sentiram a espessura do lamaçal. Pensaram. Discutiram como resolver o problema. Depois, com a ajuda de algumas pedras e de galhos secos de árvores, deram ao terreno a consistência mínima para que as rodas da camioneta passassem sem atolar. Pedro e António estudaram. Procuraram compreender o problema que tinham de resolver e, em seguida, encontraram uma resposta precisa. Não se estuda apenas nas escolas. Pedro e António estudaram enquanto trabalhavam. Estudar é assumir uma atitude séria e curiosa diante de um problema. O ATO DE ESTUDAR — B Esta atitude séria e curiosa na procura de compreender as coisas e os fatos caracteriza o ato de estudar. Não importa que o estudo seja feito no momento e no lugar do nosso trabalho, como no caso de Pedro e António, que acabamos de ver. Não importa que o estudo seja feito noutro local e noutro momento, como o estudo que fazemos no Círculo de Cultura. Em qualquer caso, o estudo exige sempre esta atitude séria e curiosa na procura de compreender as coisas e os fatos que analisamos. Um texto para ser lido é um texto para ser estudado. Um texto para ser estudado é um texto para ser interpretado. Não podemos interpretar um texto se o lemos sem atenção, sem curiosidade; se desistirmos da leitura quando encontramos a primeira dificuldade. Que seria da produção de cacau naquela roça, se Pedro e António tivessem desistido de prosseguir o trabalho por causa do lamaçal?! Se um texto às vezes é difícil, insiste em compreendê-lo. Trabalha nele, como António e Pedro trabalharam em relação ao problema do lamaçal. Estudar exige disciplina. Estudar não é fácil porque estudar é criar e recriar e não repetir apenas o que os outros dizem. Estudar é um dever revolucionário. Vamos estudar!55 Nota In “A luta continua — Segundo Caderno de Cultura Popular — Nosso Povo, Nossa Terra — Textos para ler e discutir (Iniciação à Gramática)”. República Democrática de São Tomé e Príncipe, Ministério da Educação Nacional e Desportos, Comissão Nacional Coordenadora dos Círculos de Cultura Popular. São Tomé, 1978, p. 7-8. Impresso com a ajuda da Unesco. Ver ainda: Paulo Freire, A importância do ato de ler em três artigos que se completam, 32a ed. São Paulo: Cortez, 1996, p. 57-9. 55 Anexo II ALFABETIZAÇÃO EM MASSA NO BRASIL: UMA VISÃO COMPARADA DO MÉTODO MOBRAL E DO MÉTODO PAULO FREIRE56 1. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES Problema socioeconômico contemporâneo de primeira ordem, a alfabetização em massa é apontada, especialmente nos países subdesenvolvidos, como uma das coordenadas básicas de aceleração do processo de desenvolvimento. Se a constatação desse fato é comum a todos os países possuidores desse problema, as soluções procuradas, entretanto, nem sempre obedecem a diretrizes concordantes, quer por se partir de pressuposições teóricas diversas, quer por se contar com um contexto de realidade variável de país para país. Interessa-nos, como análise, a experiência brasileira de alfabetização, seus fundamentos teóricos, seus níveis de atuação, seus recursos metodológicos e demais componentes desse empreendimento de âmbito nacional. Um estudo desses elementos se faz necessário ao se encarar a alfabetização em massa como propósito de solução da problemática socioeconômica brasileira, processo recentemente incrementado por meio de uma estratégia posta em execução, simultaneamente, em todos os estados da federação. Salientem-se, porém, as limitações próprias de uma primeira abordagem, onde o tratamento exaustivo do problema é preterido em função de uma inevitável superficialidade, a ser suplantada em eventuais investigações posteriores. 2. DADOS INTRODUTÓRIOS Considerada como problema diretamente ligado às condições que determinam o desenvolvimento global de uma nação, a educação tem sido alvo de preocupações gerais no curso da História. Tida ora como proposição humanista de aprimoramento cultural, ora como investimento seguro para melhor aproveitamento da capacidade produtiva do homem, é atualmente um dos mais importantes parâmetros para a evolução da sociedade moderna, principalmente no que toca às transformaçõ es da estrutura econômica. É a partir dessa constatação que os países subdesenvolvidos têm-se lançado à implantação de programas educacionais em vários níveis, visando principalmente à geração de mão de obra que garanta a aceleração do desenvolvimento econômico e social. Preocupações desse teor levaram à criação do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), instituído a 15 de dezembro de 1967 pelo governo Costa e Silva e implantado por meio de trabalhos de alfabetização em massa a partir de 8 de setembro de 1970. Com essa iniciativa, pretendia-se erradicar do território nacional um problema que de há muito se apresentava de difícil equacionamento. De acordo com dados oficiais, havia no Brasil, em 1940, aproximadamente 13 milhões de analfabetos, que representavam 56% da população de mais de quinze anos de idade. Em 1960, o número de analfabetos era de 16 milhões, representando 39% da população da mesma faixa etária, isto é: não obstante se registrasse um decréscimo do percentual de analfabetos, houve aumento progressivo em números absolutos. Interpretações oficiais57 dão a esse respeito, como determinante do problema, em grande parte, a incapacidade do sistema de educação regular em absorver todas as crianças em idade escolar. E como quase 50% dos matriculados na 1a série escolar não chegam à 2a, por repetência ou evasão, os “evadidos” contribuem para o aumento da massa de analfabetos e semialfabetizados. Movimentos anteriores, por outro lado, não lograram alcançar êxito por incorrerem, ainda segundo fontes oficiais do Mobral58 em falhas básicas: atuação feita por ações isoladas, apenas subvencionadas pelo governo, sem qualquer outra orientação; não acompanhamento e falta de avaliação de métodos e da rentabilidade das subvenções; e preocupação de ensinar somente a ler e a escrever, marginalizando o semianalfabeto. A esses fatores de insucesso, apontados oficialmente, inclui-se, como se verá, a atribuição de implicações políticas a atuações de alfabetização popular consideradas perniciosas à ordem políticosocial, em determinado período da realidade brasileira. Implantado em âmbito nacional, o Mobral, que até 1970 contava somente com recursos previstos em orçamento da União, passou a absorver 30% da renda da loteria esportiva e de 1% a 2% sobre o imposto de renda, o que, adicionado às verbas de procedência estadual e municipal, movimenta a estrutura administrativa de alfabetização implantada em todos os estados do país. Essa canalização financeira, por sua vez, justifica-se pelas pretensões registradas nas estimativas feitas para o período 1971-1974, nos Cursos de Alfabetização e Educação Integrada: Quadro I — Alfabetização 1971 2.000.000 alunos 1972 2.000.000 1973 2.000.000 1974 2.000.000 Total: 8.000.000 Quadro II — Educação integrada 1971-1972 1.335.000 alunos 1972-1973 1.000.000 1973-1974 1.000.000 Total: 3.335.000 o que totaliza a aspiração de 11.335.000 alunos a serem formados.59 A análise de um empreendimento dessa extensão impõe-nos, evidentemente, uma averiguação tanto dos princípios teóricos que norteiam seu desencadeamento quanto da procedência do instrumental metodológico de que se vale, como recurso de mobilização social. São estes os aspectos considerados aqui como objeto de estudo. 3. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO MOBRAL Documentos do Movimento Brasileiro de Alfabetização estabelecem três aspectos fundamentais que constituem sua base teórica: a apreciação ao valor humano e econômico do analfabeto; a avaliação sociológica dos contextos em que se inserem; e a observação crítica da realidade do sistema educacional brasileiro. A premência de mão de obra qualificada, ao menos para assumir a racionalidade no trabalho agropecuário e industrial, justifica prioritariamente a execução de um investimento em alfabetização de adultos, até mesmo, se necessário, “em lugar da canalização maciça de verbas para a educação sistemática da infância”, opinam as fontes competentes.60 Evidencia-se, portanto, a preocupação imediata em transformar os marginalizados do mundo tecnológico em agentes produtivos, ainda que essa iniciativa viesse a comprometer outro programa de investimento a longo prazo, como a educação da população infantil brasileira. Há que, gerando mão de obra, permitir-se dispor de homens com poder aquisitivo, consumidor, e é “isto que é essencial ao desenvolvimento deste país”.61 Pretende o Mobral não se ater simplesmente ao fornecimento do instrumental de leitura e aprendizado com vistas à qualificação profissional do alfabetizado, mas importa saber que serão as condições do mercado de trabalho as determinantes da desmarginalização e integração do analfabeto. Além disso, o Mobral aponta o tradicionalismo humanístico e acadêmico, que presidiu a formação do sistema educacional brasileiro, como fator de bloqueio, a ser substituído por uma educação voltada para a tecnologia, a valorização do trabalho, a qualificação profissional, a ser garantida, em graduação crescente, desde os primeiros níveis de escolaridade. Diga-se de passagem: o teor profissionalizante da Lei nº 5.692, que estabelece as diretrizes de uma educação nacional, vem confirmar, junto ao sistema educacional regular, as proposições mantidas pelo Mobral. Como imperativo teórico, salienta-se que o domínio da leitura e da escrita permite a descoberta progressiva, segundo necessidades e possibilidades do educando, das respostas às suas indagações e dificuldades no processo de construção do seu mundo, ao mesmo tempo que elimina a necessidade da presença permanente de um orientador. Perceba-se, entretanto, que o processo educativo ocorre evidentemente com base em diretrizes desejáveis, isto é, direções previamente determinadas, a que deverão submeter-se as tais necessidades e possibilidades do educando. Em dois planos o Mobral define as suas diretrizes: pela alfabetização, e pela consequente semiqualificação, propõe-se a introduzir o educando não apenas no domínio da leitura, da escrita e da contagem para a obtenção de conhecimentos, mas ainda criar condições para o desenvolvimento de habilidades que influam na subsistência da família, com vistas à melhoria do seu nível econômico e à sua introdução num mecanismo de consumo mais intensivo. Salienta o Mobral, ainda, que sua filosofia operacional decorre dos seguintes princípios: a) ao governo não cabe a responsabilidade total dos problemas nacionais; b) as comunidades devem assumir sua parcela de responsabilidade na solução dos problemas locais; daí atribuir-se ao município a função de célula básica de ação, sob a coordenação dos estados; e c) à iniciativa privada, em qualquer dos seus ramos operacionais, como parte da comunidade, compete também participar na solução desses problemas. 4. NÍVEIS DE ATUAÇÃO DO MOBRAL Com o intuito proclamado de eliminar o analfabetismo, integrar o alfabetizado no mercado de trabalho, possibilit ar-lhe educação continuada, oferecer oportunidades para a promoção humana, possibilitar treinamento para preparação de mão de obra necessária e incentivar o desenvolvimento comunitário, o Mobral escalona sua atuação em três fases sucessivas: Alfabetização Funcional, Programa de Desenvolvimento Comunitário e Curso de Educação Integrada. Num primeiro passo, afirmam os documentos oficiais, os contatos com os alfabetizandos se destinam à introdução de normas de leitura, escrita e contagem, que devem contribuir para que esses alfabetizandos conheçam e interpretem criticamente sua realidade, adquiram capacitação necessária para atuarem sobre ela por meio do trabalho e se integrem consciente e criativamente à vida da comunidade. É a fase da Alfabetização Funcional, que se prolonga por aproximadamente cinco meses, e que merecerá análise detalhada no item 6. Já alfabetizados, os egressos do Curso de Alfabetização Funcional passam para o Programa de Desenvolvimento Comunitário, quando se fixarão as noções de leitura e escrita já adquiridas, promovendo-se ainda o dsenvolvimento da sociabilidade dos alunos a partir de atividades comunitárias, em que se procurará reforçar a linguagem oral e escrita, aproveitar as horas de lazer com excursões, grupos de canto coral, danças folclóricas, festas, jogos, palestras e demais programas de integração dos alfabetizandos à comunidade. Prevê-se que estes venham a conhecer a área geográfica de seu núcleo comunitário, seus habitantes, suas necessidades, seus problemas, suas especialidades e que estabeleçam relações de dependência entre a própria atuação e o desenvolvimento de sua comunidade. Para isso, procede-se à organização de grupos “que atuarão diretamente em sua realidade, partindo-se das necessidades e interesses do próprio grupo”.62 Suplantadas as suas primeiras etapas, chega-se à fase de Educação Integrada, nos moldes de um curso supletivo, em que se pressupõe o aprofundamento de noções, atitudes e habilidades já assimiladas anteriormente, isto é, o aprimoramento das técnicas de ler, escrever e contar, interiorização dos valores referentes à brasilidade, desenvolvimento do raciocínio reflexivo e lógico, informação e abertura no campo de capacitação para o trabalho, e formação e aperfeiçoamento da mão de obra. Os cursos de Educação Integrada têm uma duração variável entre oito e doze meses, durante os quais “o professor deverá desenvolver nos alunos: – a consciência de si próprio como um ser em desenvolvimento, capaz de pensar reflexivamente e de comunicar suas ideias e sentimentos às outras pessoas; capaz de interagir, de várias formas, com seus semelhantes; e capaz, sobretudo, de ser responsável pelo seu próprio desenvolvimento; – a consciência de si próprio como membro da sociedade humana, sociedade essa que varia no tempo e no espaço, e que está em constante processo de mudança sociocultural; – a consciência de si próprio como membro de determinados agrupamentos sociais, com direitos e deveres, o mais importante dos quais é ser um elemento atuante naqueles agrupamentos; – condições para formar uma escala de valores onde conhecimento científico e trabalho sejam valorizados adequadamente; – a compreensão dinâmica e funcional dos fatos biológicos, físicos, socioeconômicos e culturais de seu meio imediato e mediato; – a vontade de utilizar os recursos de seu meio ambiente para favorecer o processo de seu desenvolvimento profissional, recreativo e cultural, e as condições de satisfazer a essa vontade.”63 Inclua-se ainda na estratégia do Mobral a perspectiva prevista de mais um passo, em que se pretende proceder a um treinamento profissional dos alfabetizados nos setores em que estiverem integrados. No entanto, apesar da ênfase e das pretensões com que se traçam os objetivos da fase de Educação Integrada, é na fase da alfabetização que se contam as maiores preocupações numéricas do Movimento (Quadros 1 e 2), numa proporção de — até 1974 — mais que o dobro do contingente a favor dos cursos de alfabetização (3.335.000 e 8.000.000, respectivamente). É pertinente, portanto, que uma análise do Movimento se fixe preferencialmente nessa primeira fase, quer por revestir-se de maior expressividade estatística, quer por não ser possível, num primeiro ensaio como este, alcançar limites mais abrangentes. 5. A FASE DE ALFABETIZAÇÃO NO MOBRAL E SUA PROCEDÊNCIA COMO MÉTODO Antes de se iniciar o processo de alfabetização propriamente dito, a orientação dada aos professores do Mobral insiste na necessidade de que procedam a um estudo das características de seus futuros alunos adultos, onde trabalham, quais as suas diversões, seus interesses e aspirações, seus problemas de saúde, como vivem as suas famílias etc., por meio de contatos individuais e em grupo. Para facilitar aos professores a elaboração desse quadro de referências, o Mobral apresenta antecipadamente as características mais prováveis, ressaltando: a timidez do adulto analfabeto, seu fatalismo (“Deus quer assim, não adianta mudar” etc.), seu senso de inferioridade e pessimismo, seu imediatismo e suas preocupações restritas ao seu pequeno mundo, sua noção de “falta de cultura”, por julgar cultos apenas os retentores de conhecimentos de alto nível etc. Aconselha-se, nesse sentido, que os professores lhes façam conceituar cultura em perspectiva mais ampla, como algo que diferencia os homens dos animais, pela criação e transformação de tudo o que lhes é recurso de subsistência, isto é, que cheguem à conceituação antropológica do fenômeno cultural. Superada a fase de familiarização professor-alunos, e considerados os objetivos explicitados na busca de um ensino funcional e útil para os adultos, introduz-se o instrumental metodológico de aprendizagem. De posse de cartilhas elaboradas em âmbito nacional pelo Movimento, contendo palavras de pressuposto conhecimento pelos alunos, estes passarão a discutir o significado dessas palavras (tijolo, comida, remédio, sapato, barriga, cachaça, futebol, circo, máquina, dinheiro, viagem, professora, enxada, hospital, limpeza, foguete, plástico, união, trabalho, escola, saúde, diversão etc.). Usando-se como exemplo a primeira palavra-chave (ou palavra geradora), tem-se a seguinte sequência: – começa-se a aula com a apresentação de um quadro que contém a ilustração e a palavra-chave tijolo; – passa-se ao debate sugerido pela figura, onde se abordará, por exemplo, a importância do trabalho realizado pelo homem na transformação do seu ambiente, as condições necessárias a uma casa, o trabalho de quem a constrói e demais contribuições extraídas da vida comum dos alfabetizandos (é indispensável que os alunos associem a imagem à palavra dada); – feita a associação, os alunos “lerão” a palavra, já escrita no quadro, em voz alta, várias vezes, até que sejam capazes de identificá-la, se novamente apresentada; – chamar-se-á então a atenção dos alunos para o número de vezes em que se abre a boca, na pronúncia da palavra-chave, levando-os à ideia de “pedaços” (sílabas); – escritos os “pedaços”, os alunos lerão até memorizarem sucessivamente os três “pedaços” e guardarem bem o “nome” de cada um; saberão em seguida que cada um desses pedaços possui sua família, atentando, por exemplo, no quadro negro, para a do ti: ta te ti tu, to exercitando-os até que saibam discernir todos os pedaços dessa família; – com a apresentação do grupo familiar de jo e lo, estará construído o quadro da descoberta: ta te ti to tu ja je ji jo ju la le li lo lu, onde os alunos, juntando sílabas, descobrirão que se podem montar novas palavras; – fazendo-os atentarem para os pedaços menores (letras) no quadro da descoberta, perceberão o som das vogais e sua utilização em todos os pedaços; – assim que os alfabetizandos tiverem montado novas palavras e demonstrarem domínio do quadro da descoberta, é momento de se passar à escrita da palavra-chave, dos pedaços, das famílias, do quadro da descoberta e das palavras que formarem. Após exercícios de montagem de novas palavras e de fixação, em classe e em casa, introduzir-se-ão sucessivamente novas palavras-chave, obedecendo-se à mesma sequência. A documentação do Mobral ressalta, nos vários passos do processo de alfabetização, a participação ativa do alfabetizando como agente da sua própria aprendizagem, o que constitui eficiente recurso de motivação, na medida em que ele se considera o autor do seu próprio progresso; motivação, aliás, que se verá enriquecida se os orientadores persistirem na adequação das atividades didáticas às necessidades, interesses e aspirações dos educandos, levando-os a estabelecerem a ligação prática de suas aquisições na escola com as atividades diárias profissionais, familiares etc. Pela análise do roteiro utilizado pelo Mobral no processo de Alfabetização Funcional, evidencia-se, à primeira vista, sensível inspiração de passos buscados, com ligeiras modificações, em outra fonte metodológica de alfabetização. Tratase da marcante influência exercida pelo chamado “método Paulo Freire” na composição do quadro metodológico do Mobral, pelo menos no tocante à primeira fase do Movimento. Dessa evidente inspiração saíram as principais coordenadas para a concepção de um programa oficial de alfabetização em massa, o que se constata a partir de uma apreciação, ainda que superficial, das proposições feitas pelo método-fonte de referência. Senão, vejamos. 6. CONTRIBUIÇÕES DO MÉTODO PAULO FREIRE A UM PROGRAMA DE ALFABETIZAÇÃO 6.1 Circunstâncias históricas Um rápido relato das implicações históricas do método Paulo Freire faz-se necessário, antes que se proceda ao estudo de sua estrutura interna. A primeira aplicação dos propósitos do professor Paulo Freire e sua equipe do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife data de 1962, na região Nordeste, área de maior problemática no contexto nacional. Partindo de estudos sociológicos e de suges tões fornecidas pela teoria da comunicação, Paulo Freire desenvolveu inicialmente uma experiência na cidade de Angicos, Rio Grande do Norte, com resultados positivos surpreendentes: em aproximadamente 45 dias, trezentos trabalhadores foram alfabetizados. Aprovado pelo governo federal, o sistema estendeu-se a outras áreas do território nacional, envolvendo antes os setores urbanos, após o que se estenderia aos setores rurais. Cursos de preparação de orientadores foram ministrados, entre junho de 1963 e março de 1964, “em quase todas as capitais dos estados (somente no estado da Guanabara inscreveram-se quase 6 mil pessoas); houve também curso nos estados do Rio Grande do Norte, São Paulo, Bahia, Sergipe e Rio Grande do Sul, atingindo a vários milhares de pessoas”,64 conta Francisco Weffort, prefaciador de Paulo Freire em Educação como prática da liberdade. Para 1964, previa-se a alfabetização de cerca de 2 milhões de pessoas, por meio da instalação de 20 mil círculos de cultura, com trinta alfabetizandos por círculo, em cursos de três meses de duração. É ainda Weff ort a comentar a interrupção que, em seguida, o plano sofreria: “Nestes últimos anos, o fantasma do comunismo, que as classes dominantes agitam contra qualquer governo democrático da América Latina, teria alcançado feições reais aos olhos dos reacionários na presença política das classes populares. O movimento de educação popular, solidário à ascensão democrática das massas, não poderia deixar de ser atingido […]. Os reacionários não podiam compreender que um educador católico se fizesse expressão dos oprimidos e menos ainda podiam compreender que a cultura levada ao povo pudesse conduzir à dúvida sobre a legitimidade de seus privilégios.”65 6.2 Fundamentos teóricos Desprezadas as conotações políticas passíveis de serem consideradas nocivas, entretanto, o método Paulo Freire estruturou-se através de experiências do seu autor durante vários anos em educação de adultos em áreas proletárias e subproletárias, urbanas e rurais. Dessa vivência surgiu uma nova estratégia pedagógica em que a escola, por exemplo, cujo conceito foi julgado demasiadamente passivo, foi substituída pelo círculo de cultura. Nele, em vez de professor, se encontra um coordenador de debates que, por meio de discussões, de debates, e não mais de aulas, se relaciona com os participantes do grupo (os alfabetizandos). As discussões de grupo obedecem a uma programação temática proposta pelos próprios participantes. Pretendia Paulo Freire, com isso, dotar os educandos de uma consciência crítica (representação das coisas e dos fatos como se dão na existência empírica, nas suas correlações causais e circunstanciais), em contraposição à consciência mágica que até então os teria caracterizado. Consciência mágica que, no entender de Paulo Freire, “não chega a acreditar-se ‘superior aos fatos’, dominando-os de fora, nem ‘se julga livre para entendê-los como melhor lhe agradar’. Simplesmente os capta, emprestando-lhes um poder superior, que a domina de fora, e a que tem, por isso mesmo, de submeter-se com docilidade. É próprio desta consciência o fatalismo, que leva ao cruzamento dos braços, à impossibilidade de fazer algo diante do poder dos fatos, sob os quais fica vencido o homem”.66 A preocupação primordial com a busca da conscientização, paralelamente ao trabalho de alfabetização do educando, caracteriza assim, fundamentalmente, o método Paulo Freire. Atribui-se ao debate função criticizadora e motivadora, pela qual o analfabeto incorpora criticamente a necessidade de alfabetizar-se. E o consegue — garante o educador — “na medida em que a alfabetização é mais do que o simples domínio psicológico e mecânico de técnicas de ler e escrever. É o domínio dessas técnicas, em termos conscientes. É entender o que se lê e escrever o que se entende. É comunicar-se graficamente. É uma incorporação”. Incorporação de que se apropria não a partir de imposições, de iniciativas de fora para dentro do analfabeto, mas em sentido contrário; apenas com a colaboração do coordenador. Daí não se adotar, no método, o uso de cartilhas que, por menos que o queiram, acabam entregando ao alfabetizando palavras que deveriam surgir por sugestão própria, isso quando não se mostram alheias à realidade vivencial do educando. As bases da alfabetização, por isso, assentam-se nas chamadas palavras geradoras, denominação que Paulo Freire dá às palavras que, decompostas em seus elementos silábicos, possibilitam a formação de outras, pela combinação desses elementos. Delas, “quinze ou dezoito nos pareciam suficientes, para o processo de alfabetização pela conscientização” — observa. 6.3 Elaboração e execução do Método Sedimentadas as bases teóricas de sua pedagogia de alfabetizaçãoconscientização, Paulo Freire procedia às fases de elaboração e execução prática do Método de acordo com o seguinte roteiro: a. levantamento, por meio de contatos informais, do universo vocabular (vocábulos conotados de sentido existencial e emocional, falares típicos, expressões particulares etc.) dos moradores do núcleo a ser trabalhado; b. seleção, dentro do universo vocabular pesquisado, das palavras que maior riqueza fonêmica revelarem, obedecendo-se ainda a uma sequência de dificuldades fonéticas gradativamente crescentes, e à frequência de uso na vida prática; c. criação de situações existenciais específicas ao grupo que se alfabetizará, nas quais se alojarão as palavras geradoras; d. elaboração de fichas-roteiro, sem prescrições rígidas, que orientem os coordenadores nos debates; e. elaboração de fichas em que constem, decompostas, as palavras geradoras e suas famílias fonêmicas. Terminados os trabalhos de preparação do material, confeccionado em slides ou mesmo em cartazes, a execução prática consistia nos seguintes passos: – introdução da situação por meio do cartaz ou slide, com a primeira palavra geradora, representada gráfica e iconicamente, e debate em torno de suas implicações (exemplo de palavra geradora apresentada por Paulo Freire: tijolo); – – – – – caracterização da palavra no contexto da situação e, em seguida, introdução da palavra, isoladamente; visualização dos “pedaços” (ti — jo — lo), de onde se parte para o reconhecimento das famílias fonêmicas; demonstração de que é o movimento da boca que determina o “pedaço” (sílaba); projeção da família fonêmica (no exemplo, ta — te — ti — to — tu), em que os alfabetizandos deverão reconhecer o ti; comparando-se com os outros pedaços, levá-los a perceber que o final das sílabas é diferente, pelo que não podem ser chamados de ti; descoberta das vogais a, e, i, o, u; igual iniciativa quanto às famílias fonêmicas de jo e lo, com exercícios de fixação das novas sílabas (ja — je — ji — jo — ju e la — le — li — lo — lu); apresentação simultânea das três famílias fonêmicas, isto é, revelação da ficha da descoberta. ta–te–ti–to–tu ja–je–ji–jo–ju la–le–li–lo–lu } Ficha da descoberta fundamento de todo o processo de alfabetização; – exercícios de leitura da ficha nos vários sentidos, e formação, pelos alfabetizandos, de novas palavras; – após o reconhecimento de todas as sílabas, passa-se ao processamento da escrita, obedecendo-se à mesma articulação da fase oral. Seguem-se exercícios, em classe e em casa, de formação de novas palavras. “Não importa” — diz Paulo Freire — “que [o educando] traga vocábulos que não sejam termos. O que importa, no dia em que põe o pé nesse terreno novo, é a descoberta do mecanismo das combinações fonêmicas.” Idêntico roteiro se aplica às demais palavras geradoras, cuidando-se dos exercícios de fixação e verificação necessários a um andamento sem problemas do processo, e ressaltando-se sempre a atuação dinâmica do grupo como determinante de ritmos a serem cumpridos e da gênese dos temas a serem propostos, com vistas à alfabetização, por meio da conscientização motivadora. 7. CONSIDERAÇÕES COMPLEMENTARES Simultaneamente abordados — ainda que n ão se proceda a um estudo exaustivo de suas implicações —, torna-se claro que os dois processos de alfabetização aqui analisados se relacionam em termos de afinidade quanto à metodologia escolhida para introdução do analfabeto no universo da cultura letrada. É sensível a influência exercida pelo método Paulo Freire sobre o Mobral em sua fase de Alfabetização Funcional, não obstante os documentos emanados do Movimento se silenciarem quanto às fontes de origem do método adotado.67 Relações de similaridade se encontram, efetivamente, já na discussão dos recursos de motivação fundados nos debates iniciais sobre a cultura em seu contexto antropológico. A exemplo de Paulo Freire (“A distinção entre os dois mundos: o da natureza e o da cultura. O papel ativo do homem em sua e com sua realidade” etc.), o Mobral se vale da interpretação antropológica do conceito de cultura como base de atuação (“O conceito de cultura é muito mais amplo. Cultura é o que diferencia os homens dos animais etc.”), dominante em todos os debates propostos no decurso da fase de alfabetização. A construção linguística a partir de desarticulações silábicas como instrumental de novas combinações fonêmicas é igualmente mantida e, com exceção da substituição sinonímica de termos (“palavra-chave” em vez de “palavra geradora”, “quadro da descoberta” no lugar de “ficha da descoberta”), o tratamento pedagógico é praticamente idêntico nos dois métodos. Há que, entretanto, apontar-se diferenciação significativa: a utilização de cartilha única, elaborada pelo Mobral para aplicação em âmbito nacional, contrapõe-se à ideia negativa de Paulo Freire sobre sua adoção: “as cartilhas, por mais que procurem evitar, terminam por doar ao analfabeto palavras e sentenças que, realmente, devem resultar de seu esforço criador. […] Daí a nossa descrença inicial nas cartilhas que pretendem a montagem da sinalização gráfica como uma doação e reduzem o analfabeto mais à condição de objeto que de sujeito de sua alfabetização” — argumenta ele. O Mobral, ao contrário, decidiu-se pela seleção de palavras consideradas de domínio nacional, desprezando possíveis peculiaridades linguísticas de caráter local ou regional. Se considerarmos influente como estimulação motivadora a participação do alfabetizando na elaboração do seu próprio material de alfabetização, é possível efetivamente que a adoção prévia de uma cartilha motive em menor escala. A assintonia mais expressiva entre os dois métodos de alfabetização, porém, prende-se à insistência quanto aos objetivos proclamados: enquanto os do Mobral se atêm preferencialmente a propósitos de aproveitamento de mão de obra, inclusão do homem nos processos de produção e consumo e sua integração na comunidade, Paulo Freire enfatiza a todo momento uma pedagogia da conscientização como instrumento de libertação: “Todo aprendizado deve encontrar-se intimamente associado à tomada de consciência da situação real vivida pelo educando.”68 “Pensávamos a alfabetização do homem brasileiro, em posição de tomada de consciência, na emersão que fizera no processo da nossa realidade. Num trabalho com que tentássemos a promoção da ingenuidade em criticidade, ao mesmo tempo que alfabetizássemos.”69 Quanto à viabilidade de execução do método Paulo Freire, acrescente-se, não se deveu certamente a determinantes de ordem especificamente pedagógica, mas à sua inoportunidade política, já que “esta conscientização muitas vezes significa o começo da busca de uma posição de luta”,70 virtualmente atentatória à manutenção do status quo e incômoda, portanto, às classes dominantes. Em que pesem os argumentos em contrário (“Se uma pedagogia da liberdade traz o germe da revolta, nem por isso seria correto afirmar que esta se encontra, como tal, entre os objetivos do educador. Se ocorre é apenas e exclusivamente porque a conscientização divisa uma situação real em que os dados mais frequentes são a luta e a violência.”71), a ameaça de uma convulsão social terá impelido à condenação o método Paulo Freire. O que não impediu, todavia, que fossem mantidas e reaproveitadas as contribuições instrumentais do método, uma vez extirpadas, é claro, as suas diretrizes ideológicas originais. Sérgio Guimarães Notas Ensaio de estudante, apresentado à cadeira de Problemas Sociais e Econômicos Contemporâneos, durante o 3º semestre do curso de Comunicação Social da Escola de Comunicações e Artes (ECA), Universidade de São Paulo, verão de 1972. 56 Mobral — Movimento Brasileiro de Alfabetização. Brazilian Literacy Movement. Mouvement Brésilien pour l’Alphabétisation. Movimento Brasilero de Alfabetización. — Alfabetização: um projeto brasileiro. Ministério da Educação e Cultura (MEC). São Paulo: Abril (Material de divulgação do Mobral no Exterior). 57 58 MEC, Mobral, Fundação Mobral, Coordenação Estadual de São Paulo (Mimeogr.). 59 Idem à nota 57. “A nova concepção da educação de adultos”. Movimento Brasileiro de Alfabetização. Cursos de Educação Integrada, maio de 1971 (Mimeogr.). 60 61 Idem. 62 Idem à nota 58. Curso de Educação Integrada — Guia do Professor. Ministério da Educação e Cultura, Fundação Movimento Brasileiro de Alfabetização Mobral. São Paulo: Abril. 446 p. 63 64 F.C. Weffort, “Educação e Política”, in Paulo Freire, Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1971 [14a edição, São Paulo: Paz e Terra, 2011]. 65 Ib. 66 Ib., p. 138 e 139. Uma única referência bibliográfica aponta a utilização de elementos teóricos de Paulo Freire, extraídos de seu livro Educação como prática de liberdade. É encontrada em Textos para treinamento de professores — Programa de Educação Integrada Mobral. Não se trata, porém, de alusões aos passos da alfabetização, mas a conceituações gerais desse autor sobre o processo educativo, com base no diálogo. 67 68 Idem à nota 57. 69 Paulo Freire, Educação como prática da liberdade, p. 104 [14a edição, p. 136]. 70 Idem à nota 64. 71 Idem à nota 64. Anexo III CAMARADA PROFESSOR! CARTAS SOBRE O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA EM ANGOLA 1º BLOCO “DOS OUVIDOS À BOCA: APRENDER A OUVIR, ENSINAR A FALAR” EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA RECENTEMENTE APRESENTADO como material do 1º Ciclo de Estudos, organizado pela Seção Técnica do Departamento Nacional de Sup eração com vistas à formação dos seus próprios integrantes, este conjunto de cartas não passa de uma sugestão.72 A partir daí, poder-se-ia produzir algo parecido, como parte dos materiais destinados à formação pedagógica dos professores do Ensino de Base, em especial os do 1º nível. Dado o nível coloquial em que estão propositadamente redigidas, essas cartas acham-se pontilhadas de expressões características da variante linguística brasileira. Desnecessário dizer que, se se optar por um aproveitamento deste material, será imprescindível ajustá-lo ao nível coloquial do falar angolano. Apesar de já terem sido discutidas com os componentes da Comissão de Língua Portuguesa do Departamento Nacional de Superação, é provável que estas cartas mereçam alterações (parciais ou mesmo totais). Os seus destinatários só terão a ganhar com isso. Algumas modificações, aliás, já foram sugeridas durante o 1º Ciclo de Estudos. Ainda não figuram nesta versão por razões puramente técnicas. Por outro lado, este trabalho constitui apenas um primeiro bloco, consagrado inteiramente à aprendizagem da língua portuguesa em seu nível oral. Se a ideia global vier a ser aprovada, caberia, para o futuro, a realização de um segundo bloco, já voltado para a problemática da aprendizagem da língua quanto à escrita.73 Quanto à distribuição de cartas desse gênero, resta definir a sua inclusão num programa de formação pedagógica dos professores, bem como a sua forma de entrega aos destinatários. Se este material for utilizado, é possível distribuí-lo quer carta por carta, quer em grupos de dois, três, quatro ou mesmo mais cartas de uma vez, de acordo com as possibilidades encontradas no terreno. O importante é que não se altere a ordem em que vêm apresentadas. No caso de alguns professores enviarem dúvidas ou questões (tal como é sugerido na carta nº 0), parece-nos que a sugestão mais adequada seria a de se agrupar as questões em função de temas e respondê-las em bloco. Nessas cartas de respostas poderiam figurar uma ou mais questões consideradas mais representativas entre as que abordassem determinados temas. De qualquer forma, parece-nos importante que essas cartas de resposta possam ser remetidas a todos, e não apenas àqueles que escreveram. Acrescente-se, por fim, que a responsabilidade científico-pedagógica dos conteúdos presentes neste material recai integralmente sobre este especialista, que se coloca à inteira disposição para, a qualquer tempo, esclarecer, rever e/ou aprofundar aspectos que suscitem dúvidas ou que pareçam pouco desenvolvidos. Antonio Sérgio A. B. Guimarães, especialista da Unesco em língua portuguesa Luanda, dezembro de 1980 Nota 72 Como a ideia deste anexo é a de apresentar apenas um exemplo de material elaborado especificamente para professores angolanos, e não de expor toda a metodologia sugerida para o ensino da língua portuguesa como segunda língua, resolvi reproduzir apenas três das dezoito cartas por mim escritas. Este material deveria ter por nome “Dos olhos à mão: aprender a ler, ensinar e escrever”. Acontece que, no mês em que terminei a redação desse primeiro bloco dedicado à oralidade, isto é, em dezembro de 1980, decidi não renovar o contrato com a Unesco e voltei para o Brasil. Que eu saiba, esse segundo bloco de cartas acabou por não ser redigido. 72 CARTA Nº O — CONTATO INICIAL APRESENTAÇÃO DAS CARTAS LUANDA, ABRIL DE 1981 CAMARADA PROFESSOR DO 1º NÍVEL, Pode dar-nos um pouco da sua atenção a partir de agora? Queremos conversar algum tempo consigo. Este é o primeiro grande esforço que faremos para entrar em contacto com o camarada. Esperamos que este contacto seja bom para todos — para si e para nós. Primeiro, queremos apresentar-nos: somos os professores da Comissão de Língua Portuguesa e trabalhamos na Direcção Nacional de Formação de Quadros do Ensino, dentro do Ministério da Educação. Mas, por falar em trabalho, como vai o seu trabalho, camarada professor? O nosso, apesar de todos os problemas, vai bem. Temos muitas dificuldades (quem não as tem?), mas estamos a fazer o possível para executar as nossas tarefas correctamente. E os seus estudos, como estão? Conseguiu frequentar a 1a etapa da Superação? E o seu tempo? Tem tido tempo suficiente para estudar nas horas vagas? Pois bem, camarada professor: escrevemos-lhe esta primeira carta com o desejo de que o camarada tome conhecimento do que lhe queremos dizer. Sabemos que você, camarada professor, é uma pessoa adulta; não teve muitas oportunidades de estudo, mas… é um indivíduo que, ao ensinar, procura dividir com as crianças aquilo que aprendeu; é um adulto que não quer parar de estudar; quer saber mais, para poder continuar a dividir aquilo que sabe com os nossos miúdos. Por isso, pela maneira como nós o vemos, camarada professor, é que decidimos dedicar este trabalho, enviando-lhe esta série de cartas. Nelas, queremos conversar consigo, convidando-o a pensar naquilo que dizemos para, em seguida, tentar pôr em prática aquilo que lhe sugerimos. Nós, como já o dissemos no início, somos professores de Língua Portuguesa. Somos, portanto, professores, como o camarada. Apenas nós tivemos a oportunidade de estudar um pouco melhor os problemas dos nossos professores, no ensino. Por isso, reunimos alguns pensamentos sobre o assunto e, hoje, tentamos colaborar consigo no esforço que o camarada faz para superar-se, como estudante e como professor. Vamos discutir consigo algumas ideias sobre uma questão importante e difícil no nosso país: o problema da língua portuguesa e o problema do ensino dessa língua às nossas crianças. Uma coisa é certa: não pretendemos de modo algum dizer que já temos a solução do problema. De modo algum. Essa questão é muito complicada e não pode ser resolvida assim de um momento para o outro. Talvez ainda passem vários anos, até que a comunicação verbal no nosso país possa ser feita sem maiores dificuldades. Mas o importante para nós, hoje, não é isso. Queremos apenas apresentar-lhe algumas ideias e dar-lhe algumas sugestões concretas de como agir em sala de aula, de como enfrentar a questão da língua na sua escola, frente aos seus alunos. Eles estão a aprender a língua portuguesa, e nós temos de ser bons professores para eles. Bons professores de língua portuguesa e bons professores em língua portuguesa. Evidentemente essas ideias, essas sugestões não vão apagar todas as suas dúvidas. Nada disso. As nossas sugestões talvez sirvam apenas para o ajudar um pouco na sua tarefa de ensinar. Se o camarada conseguir, com isso, melhorar um pouco o seu trabalho, já estará a prestar um bom serviço ao nosso país, que espera tanto das nossas crianças de hoje, futuros quadros de amanhã. Se as nossas cartas conseguirem isso, ou seja, uma pequena melhoria no seu trabalho, já ficaremos contentes. Por quê? Porque, nesse caso, já teremos alcançado os nossos objectivos. Procure ler esta série de cartas com atenção. Verá que temos coisas interessantes para discutir consigo: sobre a língua e sobre os problemas que se tem quando se está a aprendê-la (e, no seu caso, a ensiná-la) como segunda língua. Pedimos-lhe apenas um pouco de confiança no que lhe dissermos. Se, depois de ter lido as cartas, quiser entrar em contacto conosco, escrevanos. A nossa direcção é: Comissão de Língua Portuguesa Departamento Nacional de Superação Direcção Nacional de Formação de Quadros do Ensino Ministério da Educação LUANDA A nossa intenção é mesmo esta: precisamos conhecer-nos melhor, você, que trabalha aí directamente com as crianças do nosso país, da Iniciação à 4a classe; e nós, que fomos trazidos ao Ministério da Educação para trabalharmos na preparação de materiais e cursos destinados à sua superação. Estamos, portanto, à sua inteira disposição. Quando puder, quando quiser, ou quando sentir necessidade de uma palavra nossa de apoio como colegas de profissão, escreva-nos. E conte conosco. Muito bem, mas agora vamos deixá-lo em paz, para que o camarada possa afinal ler essas cartas que acabam de chegar-lhe às mãos. Boa leitura, bom trabalho, e até breve. Cordialmente, Os professores da Comissão de Língua Portuguesa do Departamento Nacional de Superação DNFQE — Ministério da Educação Luanda CARTA Nº 1 — A LÍNGUA PORTUGUESA EM ANGOLA. A QUESTÃO DAS LÍNGUAS MATERNAS. A NECESSIDADE DE UMA LÍNGUA VEICULAR LUANDA, ABRIL DE 1981 CAMARADA PROFESSOR: Comecemos pelo princípio. Ao trabalhar com os seus alunos, o camarada está certamente a utilizar a língua portuguesa. Os seus alunos estão a aprendê-la. Correcto? Mas veja bem: dissemos Língua Portuguesa, porque esse é o nome da matéria. Mas por que Língua Portuguesa como nome, e não Língua Veicular? O camarada sabe que, no nosso país, não se fala apenas uma língua. Em todo o território angolano falam-se várias línguas, mais ou menos diferentes umas das outras. As que são de origem africana nós chamamos de línguas nacionais. Essas línguas, em geral, são faladas como línguas maternas, porque foram aprendidas por primeiro, ainda em casa, quando ainda éramos miúdos. Isso, aliás, não é novidade para os professores que frequentaram a 1a Etapa da Superação. Se for este o seu caso, lembre-se das duas primeiras Unidades de Língua Portuguesa. Elas falavam exactamente nessas coisas. A esse respeito, se quiser, faça o seguinte exercício: tente lembrar-se do nome de umas oito línguas africanas faladas em Angola, sem consultar ninguém. Anote isso em algum lugar e confira depois com a lista de línguas que aparecem na Unidade nº 1 de Língua Portuguesa (se você ainda tiver a Unidade, é claro!). Observe ainda entre as pessoas que vivem consigo: todas elas falam a mesma língua materna? E com relação aos seus alunos, qual é a situação? Todos eles falam a mesma língua? Ou há mais que uma língua materna na sua sala de aula? Observe. E tente responder: se as pessoas falam línguas maternas diferentes, como é que conseguirão comunicar-se entre si? Será necessário que aprendam a falar todas as línguas? Ora, sabemos que essa hipótese seria praticamente impossível. Por outro lado, sabemos que esse problema não ocorre só na República Popular de Angola, mas em muitos outros países. E a solução é quase sempre a mesma: nesse caso, recorre-se a uma língua comum, com a qual todos possam comunicar o que pensam. É a essa língua que chamamos de língua veicular. Ora, em Angola todos sabemos que essa língua veicular é a língua portuguesa. É a língua de comunicação, de união, entre todos os angolanos que falam línguas diferentes. Mas veja bem: aqui em Angola, a língua veicular é a língua portuguesa, mas, em outros países, a língua veicular pode ser outra. O russo, por exemplo, é a língua veicular da União Soviética. No Zaire, é o francês. E assim por diante… Língua veicular não é, portanto, o nome de uma língua. Língua veicular é a função que uma língua pode ter, ou seja, o papel, a utilização que se faz de uma língua. Por isso é que os professores que fizeram a 1a Etapa da Superação receberam fascículos que se chamavam Unidades de Língua Portuguesa, e não Unidades de Língua Veicular. Naquelas unidades, estudamos a língua portuguesa especificamente, e não qualquer outra língua veicular. Isso pode parecer um detalhe sem importância, mas é antes de mais nada uma questão de lógica: precisamos acostumar-nos a chamar as coisas pelos seus próprios nomes. Por hoje é só. Na próxima carta voltaremos a falar dessa questão de língua portuguesa. Verá que, para isso, teremos de falar um pouco de História. Até a próxima carta… A equipe de professores de Língua Portuguesa CARTA Nº 2 — A LÍNGUA PORTUGUESA E A HISTÓRIA DO COLONIALISMO LUANDA, ABRIL DE 1981 PREZADO CAMARADA: Que tal se continuássemos a nossa conversa sobre a língua? Na primeira carta, esclarecemos que o nome adequado é Língua Portuguesa. Portuguesa? Sim, portuguesa, isto é, a língua inicialmente falada apenas em Portugal, pelo povo português. Mas aí alguém pode estranhar: “Que história é essa? Estamos em plena África e estudamos uma língua que não é africana? Como é que é isso?” Observe bem essas perguntas feitas acima. Verá que uma das palavras mais importantes nelas, palavra-chave, é a palavra história, também conhecida, no nosso caso, com o nome de colonialismo. Se recuarmos alguns séculos, veremos que os portugueses não ficaram apenas em Portugal. Aliás, todos nós já conhecemos essa história, não? Os portugueses resolveram sair pelo mundo, atravessar os mares à procura de riquezas, à conquista de novas terras. Chegaram à África, atingiram as Índias, descobriram o Brasil. Por onde passavam, iam-se instalando. Logo tornaram-se os donos dessas terras todas e formaram — com esses territórios conquistados — um grande Império. Pois bem: nesses territórios novos, os portugueses procuraram introduzir os seus costumes, a sua religião católica, a sua maneira de viver, o seu jeito de falar e de escrever, isto é, a sua língua. Sabemos todos que essas conquistas não foram fáceis. Houve lutas, houve resistências: os habitantes dessas terras não queriam ser dominados em suas próprias casas, e revoltavam-se como podiam. Essa luta entre os dominadores e os dominados durou séculos, e, em cada lugar, foi diferente. No Brasil, por exemplo, os portugueses tiveram de reconhecer a independência do povo brasileiro já no começo do século passado, em 1822. Mas, na África, a luta pela libertação demorou mais tempo para triunfar. E, no caso de Angola, só terminou há cinco anos, como todos nós sabemos. O camarada talvez pergunte: “Mas, afinal, estamos a falar de língua ou de política?” A sua pergunta terá razão de ser, mas a resposta seria: quando falamos de língua, temos de falar também de história, de política. Isso tudo está muito ligado, uma coisa depende da outra. A língua portuguesa espalhou-se pelo mundo porque os portugueses procuraram conquistar novas terras. Na procura dessas terras, porém, não estavam sozinhos. Havia outros que também queriam conquistá-las: os ingleses, os franceses, os holandeses, para falarmos apenas de alguns. Aliás, se os portugueses tivessem conquistado o mundo todo, é provável que a língua portuguesa fosse hoje a língua veicular de todos os povos. Mas isto não aconteceu e, portanto, não compliquemos a história. Tomemos agora um outro exemplo: o da língua inglesa. Essa língua é considerada hoje uma das mais importantes línguas nos contatos internacionais. Será por acaso? Claro que não. Basta lembrar que os ingleses foram grandes colonialistas, e que a sua mais importante ex-colônia — os Estados Unidos, cujo povo fala inglês — continuou a seguir pelo mesmo caminho. É por isso que hoje, se o camarada souber falar inglês, encontrará sem dúvida grande facilidade de comunicação em qualquer parte do mundo. Mas voltemos à língua portuguesa e sejamos claros: hoje ela é falada por vários povos que não são portugueses. (Lembra-se ainda em que países o português é falado? Aqueles que fizeram a 1a Etapa da Superação devem recordar-se de que já falamos nisso na Unidade nº 1 de Língua Portuguesa.) Também isso acontece, aliás, com outras línguas, com outros povos. Quer exemplos? Olhe o caso da América Latina: mexicanos, cubanos, argentinos, bolivianos, uruguaios, paraguaios, peruanos, nicaraguenses e colombianos, para citarmos apenas alguns dos povos que lá vivem… Todos eles falam hoje a língua… espanhola. E, no entanto, nenhum desses povos é espanhol, nem se sente espanhol. Simplesmente esses povos estão a utilizar a língua de seus antigos colonos, os espanhóis, para estarem unidos. Eles resolveram tirar bom proveito daquilo que aprenderam. Perceberam que poderiam aproveitar aquilo que aprenderam com os colonos espanhóis, em benefício próprio. Vejamos agora o nosso caso, em Angola. Durante o período colonial, muita coisa foi feita: foram construídos prédios, foram abertas estradas, fundaram-se cidades, máquinas foram importadas etc. Enfim, à custa do esforço do povo angolano, muitos trabalhos foram realizados enquanto os portugueses estavam aqui como patrões. Ao perderem o poder, com a independência angolana, os colonialistas retiraram-se, levando consigo o que podiam. Evidentemente não puderam levar tudo, e muita coisa ficou: prédios, máquinas, cidades, certos costumes, a língua portuguesa… tudo isso ficou, como sinal da passagem dos colonos portugueses. E agora? O que fazer com o patrimônio, isto é, com esse conjunto de coisas que ficaram? Destruir tudo? Deitar tudo fora? Claro que não. O melhor é procurar fazer bom uso do que ficou, não acha? Pois é isso o que está a acontecer com a língua portuguesa em Angola. Unindo-se todos numa só nação, os angolanos tinham necessidade de uma língua, através da qual todos pudessem comunicar entre si. Que língua utilizar? A língua portuguesa? Ou uma língua africana? Nesse caso, qual delas? E por que razão esta, e não aquela outra língua africana? Como o camarada pode imaginar, a escolha de uma língua africana, pelo menos actualmente, despertaria muitos problemas. Isso só iria tornar mais difícil a união de todos nós. Foi por isso que o MPLA escolheu a língua portuguesa como língua veicular: ela é, por enquanto, a única língua que pode servir de meio de comunicação entre todos nós. Paremos um pouco por aqui. Tente agora responder, mentalmente, às seguintes perguntas sobre o que já vimos nestas primeiras duas cartas: 1. Qual o nome mais adequado para a língua de comunicação que estamos a 2. 3. 4. 5. ensinar? Por que motivo? (Veja bem, é o nome da língua, e não a sua função…) Qual é a situação de Angola no que diz respeito à questão de línguas? O que é língua veicular? Dê dois exemplos de línguas veiculares no mundo. Você acha que há alguma relação entre a língua portuguesa e a História? Se acha que sim, qual é? Na sua opinião, que atitude se deve tomar diante do patrimônio deixado pelo período colonial? Respondeu? Então, até à próxima carta. Nela falaremos um pouco sobre os problemas que aparecem quando se quer aprender uma língua que não é a materna. A equipe CARTA Nº 17 — ÚLTIMA CARTA LUANDA, JULHO DE 1981 CAMARADA PROFESSOR: Gostaríamos de terminar esta série de cartas falando-lhe um pouco sobre a fabricação de redes. Isso mesmo, de redes. Redes de pesca, por exemplo. O camarada certamente já viu pescadores a fabricar as suas redes, não? Pois bem. Para isso, eles usam fios, que podem ser de algodão ou de plástico (náilon), de acordo com os seus costumes e as suas possibilidades de arranjar material. Esses fios vão sendo trançados e pouco a pouco acabam por formar uma rede. Mas, mesmo que nunca tenha visto um pescador a trançar a sua rede, de certeza conhece outros trabalhos parecidos a esse. Por exemplo, as redes feitas com fios de arame, que depois serão usadas para se fazer cercados, galinheiros etc. E mesmo os povos que não fazem redes fazem coisas semelhantes: fabricam cestos, esteiras, tapetes, trançados com capim ou com junco, sisal, corda, palha, etc. Logicamente, cada povo tem a sua maneira própria de trançar, de fazer os laços, de dar os pontos. E, mesmo quando um povo aprende isso de algum outro, acaba sempre por modificar um pouco a maneira de fazer os trançados. Aliás, mesmo dentro de um povo, há diferenças, às vezes, conforme a região. Há até mesmo indivíduos que trançam de uma maneira muito pessoal, com um estilo próprio. Muito bem. Estamos a falar-lhe sobre isso por uma razão muito simples: pense agora na língua portuguesa como se ela fosse uma grande rede. Essa rede começou a ser trançada há muitos séculos atrás, em Portugal, isso já sabemos. Mas, depois disso, nunca mais parou de ser trançada. Milhões e milhões de portugueses participaram desse trabalho, ajudando na evolução dessa rede. Vieram as viagens, fundaram-se as colônias portuguesas em outros continentes, e a rede da língua continuou a ser fabricada. Nesses outros países, evidentemente, a maneira de se trançar essa rede (isto é, o modo de falar, por exemplo) foi-se modificando. Se você ouvir hoje um brasileiro a falar, verá que há bastante diferença entre a maneira como ele fala e a maneira de um lisboeta, não? Da mesma forma, todo estrangeiro que passa por Angola percebe que o angolano fala a língua portuguesa de uma forma diferente da dos portugueses. A entoação, por exemplo, não é sempre a mesma. Há no nosso país muitas palavras que não existem no português de Portugal. Mesmo na construção de frases, o angolano às vezes as constrói de uma forma diferente. Tudo isso é muito “natural” e muito positivo. E sinal de que a língua portuguesa continua a evoluir, que ela não para. Os povos que outrora eram colonizados pelos portugueses não falam exactamente como os portugueses, e isso é óptimo! No caso do nosso país, estamos aos poucos começando a adaptar a língua portuguesa à realidade local, à maneira do povo angolano. Para isso ajudam também as línguas nacionais, que oferecem palavras aos poucos aceites em língua portuguesa. Agora observe uma coisa: já reparou que essas diferenças são maiores na fala do que na escrita? Pois bem, também isso é “natural”. A parte oral de uma língua evolui mais depressa do que a parte escrita. Mas uma coisa é certa: mesmo sendo mais lenta no nível escrito, essa evolução não para, porque faz parte da vida. De nada adiantaria nós defendermos a língua portuguesa de uma forma ingênua, afirmando que ela deve ser falada como falam os portugueses. É inútil. A língua continua a ser a mesma, mas a maneira de falar muda de acordo com a época e a realidade de cada país. Há aqueles que dizem que os povos outrora colonizados pelos portugueses estão a corromper a língua portuguesa. Pois bem, não estamos a corromper coisa nenhuma. Estamos a mudá-la, a adaptá-la melhor à nossa realidade e às nossas necessidades de comunicação. Aliás, a propósito dessa história de se corromper a língua portuguesa, houve um escritor brasileiro que tinha uma boa resposta para aqueles que acusam os povos de corromperem a língua portuguesa. Ele dizia, em tom de brincadeira, mais ou menos o seguinte: “Pois é isso mesmo. Corrompamos o português, da mesma forma que os portugueses corromperam o latim.” Muito bem. A língua portuguesa é uma espécie de rede enorme, com uma história muito comprida. Cada pessoa que fala essa língua contribui, mesmo sem o saber, na fabricação de mais um bocadinho dessa rede. Cada um de nós tem o seu papel (mesmo que não seja um grande papel!) na história de uma língua. Através de cada um de nós é que a língua continua a existir. No nosso país — já o dissemos várias vezes e achamos que ninguém põe isso em dúvida —, a língua portuguesa é necessária. É a língua de comunicação entre todos os angolanos que falam línguas maternas diferentes, não é isso? Por isso mesmo, é necessário que as pessoas falem-na, que todos saibam exprimir-se nela. Os que já a falam devem praticá-la sempre, para poderem evoluir ainda mais no conhecimento dessa língua e poderem comunicar ainda melhor as próprias ideias. Quanto aos que ainda não a falam, é necessário e urgente que comecem a aprender a língua portuguesa. Foi a partir dessas ideias que resolvemos escrever-lhe esta série de cartas. Achamos que elas poderiam ajudá-lo no seu trabalho de ensinar às crianças essa língua, que é nova para a maioria delas. Queremos que as crianças de Angola sejam bilíngues: que falem bem a sua língua materna e que aprendam o mais cedo e o melhor possível a língua portuguesa como segunda língua. Dessa forma, também os seus alunos contribuirão para que a rede da língua portuguesa continue a ser trançada. Mas achamos também, por outro lado, que a língua portuguesa no nosso país não é exactamente a mesma que é falada em Portugal. Não é e nem deve ser. Aliás, a tendência será cada vez mais a de uma língua portuguesa à maneira angolana, temos certeza disso. Mas deixemos isso para o futuro: ele dirá se temos ou não temos razão. A equipe COORDENAÇÃO EDITORIAL Izabel Aleixo PRODUÇÃO EDITORIAL Mariana Elia REVISÃO Eni Valentim Torres Priscila Gurgel Thereso PROJETO GRÁFICO Priscila Cardoso DIAGRAMAÇÃO DA VERSÃO IMPRESSA Trio Studio PAZ & TERRA Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S.A.