– PAULO FREIRE
E SÉRGIO GUIMARÃES
A ÁFRICA
ENSINANDO A GENTE
ANGOLA, GUINÉ-BISSAU, SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
PAZ E TERRA
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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Freire, Paulo, 1921-1997
A África ensinando a gente : Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe / Paulo Freire, Sérgio
Guimarães. -- 2. ed. - São Paulo : Paz e Terra, 2011.
Formato: ePub
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Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7753-214-8 (recurso eletrônico)
1. África Portuguesa - Civilização 2. Educação -África Portuguesa 3. Educação - Aspectos políticos
África Portuguesa 4. Língua portuguesa - Estudo ensino - África Portuguesa I. Guimarães, Sérgio. II.
Título.
11-08606
CDD-371.0096
Índices para catálogo sistemático:
Índices para catálogo sistemático:
1. África Portuguesa : Alfabetização : Educação 371.0096
A TODAS AS MENINAS E MULHERES QUE VÊM CARREGANDO A Á FRICA NAS COSTAS, E A
TODOS OS TRABALHADORES QUE, DA GRÁFICA À EDITORA, FIZERAM CONOSCO ESTE LIVRO.
Sumário
SOBRE OS AUTORES
Paulo Freire
— Muito prazer! Sérgio Guimarães
PREFÁCIO: A ÁFRICA ENSINANDO A GENTE: ANGOLA, GUINÉ-BISSAU, SÃO
TOMÉ E PRÍNCIPE
INTRODUÇÃO: O PORQUÊ DESTE LIVRO, ENTRE O SALÃO E A MANGA
PRIMEIRA PARTE: UM DEBATE DE SALÃO
1 “Este reaprendizado que a África me oferece”
1. Luta, línguas e Amílcar: “Que liberdade é essa?”
2. A escolha do crioulo e o português. E uma experiência que não deu certo
3. Moçambique? “Não fui convidado.” América Latina? “Um ser do
mundo”
4. O Mobral e a conscientização: “Renuncio a usar essa palavra”
5. Alfabetização funcional: “Caráter político? O.k.”
6. Da beleza da língua crioula à “excelência” do colonialismo
7. Uma consciência política clara, “fora da qual não há caminho”
8. A língua dos colonizados: um “dialeto feio e pobre”
9. O desenvolvimento do crioulo: “E as outras línguas nacionais?”
10. Qual método, para um país com 62 línguas?
11. Opção: entre a alfabetização na Europa e o “reaprendizado que a África
me oferece”
12. Explicando melhor o que significa “falhar”
SEGUNDA PARTE: SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
2 “Praticar para aprender”: caminhos de São Tomé
1. Um livrinho simples, “mas não simplista”
2. A história de Pedro e Antônio: evidência e mistério da parábola
3. Esse livro, outro livro: “algumas brasileiradas”
4. A linguagem das cartas e a cultura de memória oral
5. A técnica epistolar: “nada de religioso”
6. Um outro caderninho: nadando se aprende a nadar
7. Um atraso de cinco minutos e quinhentos anos de resistência
8. A impressão de uma frouxura: o colonizador “muito próximo ainda”
3 O processo? Extraordinário, mas “simplesmente,
houve uma ruptura”
1. “As pessoas começaram a libertar-se mentalmente”
2. O ensino e a ideologia do tempo: “Nós não tínhamos história!”
3. Na empresa: “A partir daí, a alfabetização começou a cair”
4. Um mosaico de culturas. Erros? “Houve falta de continuidade”
5. Futuro? “Não é só o Estado que tem que resolver o problema”
4 São-tomense leve-leve? “A mudança tem de ser
geral!”
1. Paulo Freire? “É um pedagogo, e tal.” “Ele é que veio organizar as coisas”
2. Água pelas barbas, presidente da República: “Eu concordo com o
camarada Sinfrônio!”
3. Empresas, empresinhas, padarias: “E, assim, alfabetizou-se muita gente!”
4. A semente, a planta e o fruto: “Só que, depois daquela crise, não choveu!”
5. A alfabetização caiu: “Falta conscientização”
6. Um defeito e o medo de falar: “As verdades às vezes picam”
7. O crioulo e o problema da língua: “Não responde, não responde!”
8. A menina atrasada e o animador: “Adulto? Não podes zangar adulto”
9. Brasileiro, não ser da terra? “A questão é saber ser”
10. Freire, Freinet, placas e mulas: “Os brasileiros são formidáveis!”
11. Futuro deficiente, exemplo das cegonhas: “O sim para afirmar e o não
para negar”
12. Democracia do demo, leve-leve? “A mudança não é só política”
TERCEIRA PARTE: ANGOLA
5 “O Ideal perdeu-se. É uma catástrofe!”
1. Os Centros de Instrução Revolucionária e Paulo Freire, “uma espécie de
guia”
2. “Um dos maiores desgostos que eu tenho é a educação em Angola, que é
um desastre!”
3. Futuro? “Fazer renascer aquele espírito de educação que havia há um
bocado”
4. A origem dos Centros de Instrução, “lugares de encontro de jovens para a
luta”
5. Experiência de aluno, no tempo colonial: “Havia dois negros no meu
colégio. Dois!”
6. Educação, “um problema que o governo tem que resolver. Senão, será
condenado”
7. Sonho de uma Angola para amanhã? “Educação, prioridade das
prioridades”
6 Apostar na educação, “mais cedo ou mais tarde”
1. Uma certa frustração: alunos sem hábitos de leitura, sem interesse
2. Palmatória, puxar as orelhas. Negros? “Dois ou três, no meio de
duzentos!”
3. “Não era só dar aulas, eu era guerrilheiro também”
4. Quatrocentos alunos, uma base do mato: “Estava mesmo na linha de
fronteira”
5. “No fundo, nós tentamos acasalar o método Paulo Freire com o cubano”
6. Da guerrilha ao governo, quadros da educação: “Por isso é que eu apareci
como vice-ministro”
7. Revolução: “A um momento dado, esse sistema começou a derrapar”
8. Limpeza, reorientação ideológica: “Aí cometeram-se erros crassos”
9. Futuro? “Muito mais difícil, mais lento”: nova reformulação, algum
investimento
10. Professor, escritor. Ser ministro? “Eu não ando de cavalo para burro”
7 Angola? Uma visão política completamente diferente
1. Tempo colonial: “uma pedagogia ultramarina implantada na África”
2. Escola tradicional, autoritária? “Não tanto.” Exclusão? “Não era uma
questão de raça”
3. A educação após a independência: balanços diferentes, salada pedagógica
4. Investimento na educação? “Ainda não há sensibilidade”
5. Mudança: “A educação não pode, de forma alguma, ser politizada”
6. Paulo Freire? “Será sempre uma referência muito positiva”
7. O sonho: “melhorar o setor”, um copo de leite e um pão
QUARTA PARTE: GUINÉ-BISSAU — I
8 “Tivemos que construir a partir da primeira pedra”
1. A história das “Cartas à Guiné-Bissau” e o PAIGC: “vai nos ensinar o
português?!”
2. “Falávamos mas não escrevíamos.” E a dedicatória a Amílcar Cabral
3. “Um momento especial. Foi pena que não se tivesse continuado”
4. A herança e a escola colonial: “Pouca gente tinha acesso”
5. “A pancada era a chave para abrir as consciências”
6. Alfabetização em línguas nacionais? “Aí tivemos dificuldades de escrever”
7. Alfabetizar em seis línguas? As minorias, os filhos dos dirigentes e os
filhos do povo
8. “Por que é que os nossos filhos vão aprender nessa língua?”
9. “Por que não fazer um poema em cassanga?”
10. Passado? “Progressos assinaláveis.” Presente? “Qualquer coisa de errado”
11. “Um homem que ouvia muito e que observava ainda mais”
12. Mulheres: “um ministério prenhe”, a decisão de Cabral e “a sua bela Elza”
ANEXO I
ANEXO II: ALFABETIZAÇÃO EM MASSA NO BRASIL: UMA VISÃO COMPARADA DO
MÉTODO MOBRAL E DO MÉTODO PAULO FREIRE
ANEXO III: CAMARADA PROFESSOR! CARTAS SOBRE O ENSINO DA LÍNGUA
PORTUGUESA EM ANGOLA: Iº BLOCO — “DOS OUVIDOS À BOCA: APRENDER A
OUVIR, ENSINAR A FALAR”
SOBRE OS AUTORES
PAULO FREIRE
PAULO FREIRE NASCEU NO RECIFE em 19 de setembro de 1921. Cresceu dentro de
um ambiente de fraternidade, solidariedade e retidão de princípios ensinados
pelos pais. Formou-se como gente, cidadão e intelectual engajado, inicialmente,
em sua cidade natal, no Colégio Osvaldo Cruz e na Faculdade de Direito. Com o
golpe militar de 1964, no Brasil, tornou-se cidadão do mundo, o “peregrino do
óbvio”, como ele mesmo se designou. Aprendeu e ensinou num processo
dialético ininterrupto de sentir, observar, pensar, escrever e praticar, sem nunca
ter perdido as suas origens nordestinas, tipicamente recifenses, até o último dia
de sua vida.
Escreveu algumas dezenas de trabalhos: livros, conferências, ensaios. Recebeu
reconhecimento, por sua teoria e sua práxis, de movimentos sociais, de
universidades, de Organizações Não Governamentais (ONGS) e de governos de
quase todo o mundo.
É Doutor Honoris Causa de 39 universidades do Brasil e do exterior. Recebeu
também mais outros quatro títulos congêneres, acadêmicos e honoríficos, de
instituições educacionais do Brasil e dos Estados Unidos. Recebeu Título de
Cidadão de treze cidades e de um estado no Brasil, além de mais duas cidades
estrangeiras. Entre outros importantes prêmios recebidos, destacam-se: o “Reza
Pahlevi”, da Unesco; o “Rei Balduíno”, do próprio rei da Bélgica; o “Educador
para a Paz”, da Unesco; o “Andrés Bello”, da Organização dos Estados
Americanos (OEA); e o “Moinho Santista”, do Brasil.
Foi um homem que educou as virtudes fazendo dele mesmo o aprendiz de
um mestre que praticava a Paideia com os seus alunos, à maneira de como os
filósofos gregos da Antiguidade educavam os seus discípulos. Assim, faziam
parte intrínseca de seu modo de ser, de postar-se diante do outro/a e da vida
social: o respeito, a generosidade, a coerência e uma capacidade ímpar de amar.
Tornou-se, assim, por sua inteligência política e compaixão ética para com os
oprimidos/as, o “educador/pedagogo da consciência ético-crítica”, como o
nomeou o filósofo da libertação Enrique Dussel.
Paulo faleceu na cidade de São Paulo, em 2 de maio de 1997, em plena
atividade político-educativa, surpreendido por um enfarte agudo do miocárdio.
Nita
Ana Maria Araújo Freire
— MUITO PRAZER!
SÉRGIO GUIMARÃES
— SOU CAIPIRA DE MÃE ANTONIA e de pai Oswaldo, desde 13 de março de 1951.
Naturalmente, com muita honra, de Santo Anastácio, cidadezinha escondida
entre os Presidentes Prudente e Venceslau, no interior sorocabano do estado de
São Paulo. Irmão mais velho de Paulo Afonso e de João Bosco. Nome? Antonio
Sérgio Arantes Braga Guimarães, para ser exato.
Primeiros empregos, dos dezesseis aos vinte: office-boy e assistente do
departamento de artes da TV Paulista, canal 5; repórter canhoto da revista São
Paulo na TV e da Folha de S. Paulo na capital, dos jornais O Imparcial e Correio
da Sorocabana e das rádios Difusora e Comercial em Presidente Prudente.
Aluno da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
(1971-74) e professor primário da rede municipal da capital até fins de 1975,
numa escola que era o ponto final do ônibus Rio Pequeno. Preferência: primeira
série do primeiro grau.
Daí por diante, pé no mundo, de braço dado com a baiana Marinildes, Nega.
Professor de Civilização Brasileira, Literatura Brasileira e Língua Portuguesa na
universidade francesa de Lyon (II) de 1975-78, onde aproveitei para me
“mestrar” em linguística e semiologia. Daí até fins de 1980, perito (não tive culpa,
esse era o nome, e, em francês, ainda era pior: expert) em linguística da Unesco
no Ministério da Educação da República Popular de Angola, num projeto de
formação de professores para o ensino de base.
Nos primeiros cinco dos anos 1980, Brasil de novo, já com três pimpolhos
(Gustavo, Hélder e Daniel): trabalho na saudosa Fundação Cenafor, do
Ministério da Educação em São Paulo, na área da formação profissional,
sobretudo com professores das Secretarias Estaduais de Educação de Mato
Grosso, Pará, Pernambuco, Roraima e São Paulo.
Aí é que começam os livrinhos com Paulo Freire: Sobre educação: diálogos I
(1982) e II (1984), Pedagogia: diálogo e conflito (com Paulo e Moacir Gadotti,
1985), Aprendendo com a própria história I (1987) e, muito depois, II (2000)*.
De 1985 em diante, de novo pé na estrada, já então com o Fundo das Nações
Unidas para a Infância (Unicef), como oficial de comunicação social na
República Popular de Moçambique (1985-89), na República do Haiti (1989-94),
no Reino do Marrocos (1994-96), e na já rebatizada República de Angola daí por
diante, primeiro na área da comunicação e, a partir de 1999, como oficial sênior
de programas.
Em novembro de 2001, chego finalmente de mala e cuia na República da
Guiné-Bissau, como representante do Unicef. E tão cedo, como diz o outro,
daqui não saio, daqui ninguém me tira.
Na bagagem dos inéditos, inacabados: o segundo volume de A África
ensinando a gente; um último em parceria com o Paulo, Lições de casa, fechando
a série; A pedagogia do chinelo, livrinho ruminado há mais de vinte anos; dois
sobre os nossos maiores da prosa (Graciliano) e do verso (Vinicius); um outro
também há muito remastigado, Notícia de Angola; um autêntico assalto à poesia;
e mais um pequenininho sobre psicodrama pedagógico, com a professora Marisa
Greeb. Por enquanto é só.
Bissau, 9 de março de 2003
Nota
* Para as edições de 2011, optou-se por trabalhar cada livro de forma independente. Assim, Sobre educação:
diálogos I tornou-se Partir da infância: diálogos sobre educação; Sobre educação: diálogos II ficou com o
título Educar com a mídia: novos diálogos sobre educação; Aprendendo com a pròpria história I se manteve,
mas sem a indicação de volume; e Aprendendo com a própria história II tornou-se Dialogando com a própria
história. (N.E.)
Prefácio
A ÁFRICA ENSINANDO A GENTE: ANGOLA,
GUINÉ-BISSAU, SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
É COM UMA ALEGRÍA ENORME que mais uma vez, como sucessora legal da obra de
Paulo Freire, entrego com Sérgio Guimarães, coautor, este novo livro de meu
marido.
O livro envolve uma parte da presença de Paulo na África, o seu pensamento
sobre ela, de 25 anos atrás, em diálogo com seu parceiro. Entretanto, como é
comum nos escritos e falas de Paulo, este texto ainda é atual. E de como a África
hoje percebe Paulo, através dos diálogos travados por Sérgio com diversos
interlocutores africanos e africanas, tantos anos depois que ele lá atuou com os
nacionais. Exatamente nos primeiros anos de 1970, portanto, separados pela vida
e pelas injunções político-econômicas por três décadas.
A África é o continente que fazia Paulo nutrir a ilusão de que “voltava para
casa” — quando, então, partia da fria e inodora Suíça para contribuir na
constituição, através da educação, das novas nações africanas — tal a semelhança
que sentia entre aquele território e aquela gente e o “seu” país e a sua gente.
Sentia saudades e esperanças de voltar para o Brasil em cada uma das visitas que
fazia para lá. Em qualquer um dos pedaços de terra africana que pisava,
reconfortava-se do exílio forçado escutando as pessoas e conversando. Ou até
apenas chupando mangas, saboreando bananas ou almoçando peixe ao leite de
coco ou cachupa. Sentia com prazer o olor da terra quente molhando-se com a
água da chuva que produzia um cheiro característico que gera vida e morte no
ciclo que se consuma não só na exuberância do cheiro exalado pela natureza, mas
na renovação da vida. Fenômeno da natureza que só os homens tropicais, como
Paulo, conhecem e com ele se alegram e revivem saudades de sua terra natal.
Mais ainda, os ajudam a entender as suas relações com o mundo do poder e das
proibições.
Paulo sentia também as semelhanças de nossa cultura com a africana, no jeito
de usar o corpo, no de andar e de movimentar-se, no de rir ou de gargalhar, no
de enfrentar as dificuldades com um poder de resistência extraordinário. Nesses
traços estão embutidas as manhas que, se não deixam ficar esquecidas as suas
raízes, impedem o enfrentamento dos problemas e assim de as pessoas se
tornarem sujeitos, donos de sua própria história. De prosseguirem à procura de
sua verdadeira identidade histórica e cultural na atualidade planetária.
Paulo não cansava de recordar que os povos africanos que se submeteram por
mais de cinco séculos à colonização malvada e perversa dos colonizadores
portugueses — característica, aliás, intrínseca a este processo “civilizatório” —
não perderam muitas das raízes culturais e linguísticas. Os nativos esconderamse nas florestas e preservaram as suas histórias tribais, suas crenças e sua fé, mas
contraditoriamente impossibilitaram-se de crescer na dinâmica necessária do
aperfeiçoamento cultural. Quando as forças da metrópole abandonaram “suas
colônias” ressurgiram as tradições, as práticas cotidianas religiosas com seus ritos
e crenças, com suas músicas e danças. Com suas centenas de línguas diferentes.
Mas os povos africanos, como todos os povos submetidos à colonização, não
puderam perceber o que cabia e o que não cabia de seus costumes e crenças no
mundo pós-industrial. Não puderam distinguir o que preservar e o que
abandonar para se inserirem no mundo do século XX no qual viviam, como seres
para si, diferentes, não necessariamente inferiores, dos europeus, dos americanos
ou dos orientais.
Essa capacidade de resistência nutrida na esperança de seu resgate histórico
teve, portanto, a sua contrapartida negativa. Entre outras, a questão das línguas
nacionais de cada uma dessas nações que nasceram para realizar as suas
autonomias políticas, econômicas e culturais. A língua foi e continua sendo uma
das dificuldades maiores de integração dos povos negros mesmo dentro de uma
mesma nação, como podemos constatar no decorrer da leitura deste livro.
A língua portuguesa com suas regras, condutas e normas a seguir não foi,
inicialmente, inteiramente assimilada pelos originais. Eles e elas, em quase sua
totalidade, não a falavam. Contraditoriamente, foi a língua escolhida por seus
dirigentes diante de sua praticidade — é conhecida e falada em outros
continentes —, pois outras dezenas delas faladas a poucos quilômetros umas das
outras não eram entendidas entre si. A língua crioulo, a mais difundida delas,
não era hegemônica em nenhuma dessas nações nos anos 1970 e também por
não ser uma língua que contasse com código gráfico, ofereceu dificuldades para o
trabalho consistente e eficaz de alfabetização que Paulo empreendeu com as elites
dirigentes em alguns dos países recém-libertados. Nós somos, na verdade, corpos
que falam. Nos integramos com irmãos na comunicação, tanto maior quanto
permite quando há o entendimento através de uma língua falada e escrita pelo
grupo. Faltou, certamente, nessas nações africanas, esse fator de integração entre
as distintas etnias e entre os diferentes povos da mesma etnia.
Da África se fala apenas da Sida/Aids generalizada, da extirpação do clitóris
das mulheres ainda meninas, da fome endêmica, das guerras, da corrupção,
enfim, da “barbárie” dos povos negros. Entretanto, nunca se relaciona algumas
dessas “barbáries” com a malvadez da natureza mesma da colonização e das
dificuldades que a invasão cultural provocou por mais de cinco séculos,
impedindo-os dos avanços necessários na educação e, consequentemente, para o
desenvolvimento global das novas nações. Uns poucos dados falam por si sós: a
Guiné-Bissau chegou à independência, em 1975, com 93,7% de analfabetos e
analfabetas; e, em 490 anos, de “1471 até 1961, apenas se formaram catorze
guineenses com curso superior e onze no nível do ensino técnico”.1 As tradições
hoje pouco aceitas ou totalmente não aceitas são frutos disso.
Podemos constatar, sem dificuldade durante a leitura deste livro que muito
nos convida às reflexões, através dos diálogos mantidos por Sérgio Guimarães,
que, no afã e na aflição de recuperarem o “tempo perdido”, os quinhentos anos
de colonização, os/as dirigentes africanos/as, estão queimando etapas dos
processos endógenos de desenvolvimento como nações para entrarem no mundo
que os/as explora ainda mais, o da globalização.
Assim, há que haver, urgentemente, a superação dentro de cada uma dessas
nações, com a ajuda não assistencialista de técnicos competentes e
autenticamente políticos, tal como o foi Paulo e outros/as, à procura de resolver,
solidariamente com eles e elas, os seus problemas internos. Não nos fazemos nós
mesmos sem um alter ego. Alguns e algumas de fora, comprometidos, não
estranhos aos sentimentos, desejos e necessidades desses povos podem e devem
ajudá-los a encontrar as possibilidades da concretude das ações editandas dos
sonhos possíveis nacionais para que eles, como povos, se façam parceiros iguais
pelas diferenças de todos os povos e nações do mundo.
Este livro, portanto, nos convence da urgência e da importância de
prestarmos atenção à África como um continente que tem de se inserir como
“sujeito diferente”, diante de suas enormes contradições e fragilidades, no
processo de mundialização que o possa libertar como nações livres e
independentes. As nações africanas não podem continuar seguindo no caminho
já tão conhecido por elas do secular esvaziamento de sua criatividade, de suas
inteligências, de sua imensa capacidade de resistência, de suas riquezas naturais,
como vêm fazendo hoje, planetariamente, os “donos” da globalização da
economia que se nutrem no neoliberalismo. Esse caminho os vem impedindo,
mais do que a nós da América Latina, as suas próprias e verdadeiras libertações.
A África encarna, pois, as contradições mais perversas do mundo atual
marcadas pelas chagas e cicatrizes do colonialismo e pela malvadez pós-moderna
da globalização. Entretanto devemos nos perguntar: elas e eles de lá devem
aceitar isso como um destino divino ou do demônio? É condição dada contra a
qual não se pode lutar e transformar? NÃO!, tenho certeza que diria,
enfaticamente o meu marido.
De dentro das fragilidades e das contradições é que podem surgir as novas
relações que possibilitam estabelecer novas condições de vida, nascidas na e da
radicalidade humana: A ESPERANÇA. Intrínseca à nossa natureza de seres
sensíveis e pensantes, construindo-nos, ininterruptamente, fizemo-nos, então,
seres capazes de projetar o futuro histórico de nossas vidas e o das nossas
sociedades. A ESPERANÇA é, enfim, a capacidade possibilitada pela perene e
eterna incompletude dos homens e das mulheres, pois a cada conquista surgem
(e devem surgir) novos desejos, novos sonhos, nova realidade. Ela é a maior
possibilidade do elo vital entre a África explorada e sofrida e a África sonhada da
promissão que todos e todas do mundo — e não só os africanos e africanas —
queremos, solidariamente.
Nita
Ana Maria Araújo Freire
Doutora em Educação pela PUC/SP
Cidade de São Paulo, 25 de janeiro de 2003
Nota
1
Conferir na página 179, e, na nota 11 do capítulo 1.
Introdução
O PORQUÊ DESTE LIVRO, ENTRE O SALÃO E A
MANGA
A MORTE DO PAULO ME PEGOU de calça curta. Já falei disso no final do Aprendendo
com a própria história II,2 mas não custa repetir:
Recebi a notícia pouco depois da meia-noite de 2 de maio de 1997, em Luanda, Angola, através da
RPT — Rádio e Televisão Portuguesa. Choque? Só não terá sido certamente maior que o baque
sentido por aqueles que amavam o Velho e viviam perto dele.
O choque da separação: lembrei-me das inúmeras vezes que tive de lidar com essas situações,
dentro e fora das salas de aula. Quem não terá sentido aquele nó na garganta, aquele aperto no
peito, quando o ano se acaba e as crianças se vão? Ou quando a professora querida foi ter bebê e
deixou uma substituta chata no lugar?
Contra a morte não há truques. É sentir a fundo a dor inevitável ao perceber que alguém se vai,
para em seguida, mais cedo ou mais tarde, aprender a manha de seguir a vida. Não foi isso que o
Velho fez, apesar de quase mortalmente atingido em 1986, quando dona Elza partiu?
—É um momento lento e difícil. Eu só saio disso se eu sair. Eu não posso “ser saído”, puxado por
alguém. Decidir que eu saio é romper. Ficar com o morto é a tendência. Ficar com o que está vivo,
esta é a decisão!3
À primeira vista, pensei que a ida do Velho tivesse derrubado a ideia do nosso
próximo livro em pleno decolar. Ideia antiga, sempre adiada, tocada só de raspão
no último capítulo do Dialogando com a própria história, “África, o próximo
voo”:
SÉRGIO: …Na próxima oportunidade que nós tivermos, apesar da distância, todas as experiências
de que a gente fala devem desaguar, digamos assim, no continente africano.
PAULO: Exato.
SÉRGIO: O fato é que, num determinado momento, na Universidade de Lyon, já tinha
avançado bastante com a minha experiência docente e com a minha formação acadêmica. […] Foi
quando recebi um convite da Unesco, e fiquei sabendo que a Unesco estava interessada em
pessoas que tivessem uma certa experiência no ensino da língua portuguesa, que dominassem bem
o português, que estivessem trabalhando na área da educação e que estivessem interessadas em
trabalhar em projetos que se abriam nas colônias portuguesas, países independentes ainda de tinta
fresca. Desde 1975-76 os projetos tinham começado a se abrir. Daí então esse interesse em que eu
trabalhasse em Angola. E, em 1978, vou para Luanda, mas me lembro que, nessa época, você já
estava metido há bastante tempo no trabalho na Guiné, no trabalho de São Tomé…
PAULO: Exato.
SÉRGIO: Me lembro dessa época dos escritos de São Tomé, que você me passou, aliás. Eu acho
que da próxima vez a gente pode desenvolver um pouco mais isso. Se você me permite eu ainda
queria, para terminar, relembrar um pouco das visitas que eu fiz a você no Centro Mundial de
Igrejas, em Genebra. Das nossas conversas, das coisas que nós gravamos.4
Ouviu o barulho? Pois foi exatamente aí que me deu o estalo de Vieira. As
nossas discussões inéditas, gravadas em cassetes de qualidade chinfrim, seriam o
ponto de partida. Havia as manhãs registradas em Genebra. E aquela tarde
inteira passada entre alunos e professores de Lyon, em que o gravadorzinho foi lá
chegando meio com atraso, mas gravou. Isso para começar. Depois foi até
simples: em cada um desses países, procurar algumas das pessoas-chave da
educação e… conversar. Fazer o balanço crítico do que ficou: lições aprendidas,
lanterninha na mão buscando na memória. E bota um pouco a luz também para
a frente, a ver se a gente enxerga algum futuro. Ou seja: ficar com o que está vivo.
Em que ordem? Analfabética. Explico: resolvi seguir os passos das nossas
conversas. Na época, o Paulo estava entusiasmado mesmo era com São Tomé,
mas se iluminava todo ao falar de Angola. Também não disfarçava em nada sua
paixão crítica pela Guiné, já então de papel passado.5 Ao fim e ao cabo, como
dizem os patrícios, a ordem — nesse caso, pelo menos — pouco importa. Entrase pelo salão acadêmico de Lyon, acompanham-se os primeiros lances de um
debate animado sobre o continente ali embaixo. Abandona-se depois a academia,
chega-se a São Tomé e Príncipe, pequenino que só ele mesmo. E Angola é logo
ali, já não se atira tanto como antes, é só chegar devagarinho.
Quanto à Guiné, basta seguir a costa, rumo ao norte, senso inverso ao do
colono: chega-se ao golfo da Guiné, mas não se para. Passa a Costa do Marfim,
passa ao largo da Libéria, Serra Leoa nem pensar. Guiné Conacri é já vizinha, e
bem-vindos à Guiné-Bissau! O que é que falta? Cabo Verde? Moçambique? Já lá
vamos, dizem eles, não perdem por esperar.
Entrei por uma porta e saí por outra, diria o povo, quem quiser que conte
outra. Diálogo aqui, conversa ali, foi tudo feito no capricho, minha senhora, diz o
garçom da minha terra. Prefere fruta? Então espero mesmo que este livrinho lhe
passe — a você que está de olho aqui — o gosto de uma boa manga. Daquelas
que o crioulo da Guiné chama sabidamente de mango di modja barba, e que o
Paulo, quando aqui vinha, devorava feito menino dos mocambos do Recife.
Bom proveito. Ou, por outra: leiam criticamente e julguem. A África
ensinando a gente? Começando pelo que dizia Cabral, não o Pedro Álvares, mas
o Amílcar: “Aprendam da vida, do povo, dos livros, aprendam com a experiência
dos outros. Mas nunca parem de aprender.”
Sérgio Guimarães
Bissau, 13 de março de 2003
Notas
Paulo Freire e Sérgio Guimarães, Aprendendo com a própria história II. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p.
148 [3a edição, São Paulo: Paz e Terra, 2011].
2
Mere Abramovicz, “Amor e perda em tempos de vida — em dois momentos entrelaçados”, in Paulo
Freire: uma bibliografia. São Paulo: Cortez, Unesco, Instituto Paulo Freire, 1996.
3
4
Paulo Freire e Sérgio Guimarães, Dialogando com a própria história, p. 149-50.
Data de 1977 a primeira do Cartas à Guiné-Bissau: Registros de uma experiência em processo. São Paulo:
Paz e Terra [5a edição, São Paulo: Paz e Terra, 2011].
5
PRIMEIRA PARTE
UM DEBATE DE SALÃO
1
“ESTE REAPRENDIZADO QUE A ÁFRICA ME
OFERECE”
ERA UMA TARDE DE FEVEREIRO, SEI O ANO — 1978 — mas não lembro o dia. A sala
estava cheia. Os meus alunos de Civilização Brasilei ra vieram todos, depois de
espalharem a notícia pelo campus: já na véspera, boa parte dos alunos da
Universidade de Lyon II sabia que Paulo Freire estaria por ali. Conhecendo ou
não, muita gente curiosa veio vê-lo.
Surpreso com a enchente, preocupado por ter que conduzir o debate e traduzir
simultaneamente as falas, só me lembrei de ligar o gravador quando o Paulo já ia
solto ali pelo seu décimo parágrafo, cigarro na mão. Se a memória não me falhar
de novo, ele havia começado pelo que mais o empapava — um dos verbos
preferidos do Velho — naquele momento: a extraordinária experiência dos povos
que se libertavam do império português na África, e o seu próprio apoio ao
trabalho de alfabetização que acompanhava esse processo:
1. LUTA, LÍNGUAS E AMÍLCAR: “QUE LIBERDADE É ESSA?”
PAULO: …Um povo sela a sua libertação na medida em que ele reconquista a sua
palavra.
PRIMEIRO ESTUDANTE: Podemos fazer perguntas sobre o que se passa na
África? Ou isso está reservado para um outro dia?
SÉRGIO: Não, vá em frente. Ah, mas há o sr. Yves Leloup, que já estava à
espera.
LELOUP: É sobre Angola, simplesmente. O que é que acontece por lá?
PAULO: A situação de Angola eu acho profundamente complexa. Mais que as
outras, na medida mesma em que em Angola não se constituiu um crioulo como
língua que pudesse ser nacional, de unidade nacional. Isso coloca um problema à
liderança, um problema político. Eu sempre digo: não é possível ver o problema
linguístico em si mesmo, que se esgote na análise linguística. E o problema que se
coloca em Angola é o de qual poderia ser, entre as diferentes línguas nacionais,
aquela que devesse ser escolhida para ser a língua veicular. Isso poderia criar um
problema político enorme a mais aos problemas que já há.
Então a língua portuguesa está assumindo esse papel, que eu pessoalmente
acho que ela não pode cumprir. Nos centros urbanos de Angola, até onde a
minha experiência me permite, é possível falar português, mas nas áreas rurais,
não.
LELOUP: Dentro dos grandes movimentos políticos atualmente em Angola,
um dominante e dois mais ou menos estabelecidos no terreno, fala-se de línguas
diferentes, nas discussões militantes.6
PAULO: Eu tenho a impressão que dos três — evidentemente que eu considero
apenas um,7 — os militantes de qualquer desses movimentos usarão, nesta ou
naquela situação, esta ou aquela língua nacional. Quer dizer, falarão uma das
línguas nacionais. É um problema difícil.
SEGUNDO ESTUDANTE: Isso quer dizer automaticamente que, como disseste
mesmo, “um povo é livre no momento em que adquire a consciência da sua
palavra”, essa desigualdade linguística que há em Angola — ou mesmo em
outros países, como Cabo Verde — dificulta de certa forma o movimento de
emancipação política. Não só dificulta, mas ao mesmo tempo cria ambiguidades
culturais terríveis, e na realidade não se pode nem mesmo dizer que há uma
independência. Em termos estritamente políticos ainda se admite, mas em
termos realmente de amplitude, de identificação, de identidade ética e cultural,
não. Nesse momento atual, não se pode mesmo dizer que haja definitivamente
uma liberdade.
PAULO: Isso colocaria o problema de definir que liberdade é essa. Se a
liberdade a que tu te referes é uma categoria metafísica ou se, pelo contrário, é
algo que se está criando e recriando historicamente. Se é a segunda, eu creio que,
em primeiro lugar, nunca tu és totalmente livre, mas estás sempre em processo
de libertação. Nesse sentido, eu não tenho dúvida nenhuma de que esses povos
estão exatamente no processo de sua libertação. Por exemplo, a luta da
reconstrução nacional é a continuidade da luta inicial de libertação, em que se
inclui o problema da identidade cultural. Que se busca e que não cai por decreto,
nem do céu, assim… Mas tu tens razão, este é um problema sério, realmente.
Esta questão toda da identidade cultural foi sempre muito bem discutida por
Amílcar Cabral, por exemplo. Não era por acaso que Amílcar dizia: “a luta de
libertação é um fato cultural e um fator de cultura”.8
2. A ESCOLHA DO CRIOULO E O PORTUGUÊS. E UMA EXPERIÊNCIA QUE NÃO DEU
CERTO
TERCEIRO ESTUDANTE: O senhor disse que o crioulo guineense não podia tornar-se
por enquanto língua oficial porque lhe faltava a escrita. Se eu compreendi bem, é
o que o senhor disse. Será que é necessário que haja uma escritura para que essa
língua se torne língua oficial? Ainda mais que existem, por exemplo, na Eu ropa,
países que escrevem a mesma escritura, mas que têm línguas oficiais, línguas
nacionais diferentes. Qual é o inconveniente que haveria para a Guiné-Bissau de
ter uma língua nacional escrita numa escritura romana?
PAULO: Em primeiro lugar, quando eu fiz referência à ausência de escrita,
respondendo a uma pergunta que foi “o que é que deve estar obstaculizando o
governo, no sentido de que crioulo seja já hoje uma língua oficial, quer dizer,
uma língua não só nacional, mas uma língua que mediatize a formação das
gerações”, disse que possivelmente era a falta da escrita.
EMÍLIO GIUSTI:9 Mas o quê será preciso para formalizar essa língua? Depende
da ortografia, mas depende também de uma opção política. Vai ser uma escolha
que poderá aproximar culturas: culturas do crioulo português em direção ao
português ou em direção às línguas africanas atlânticas. De fato, a meu ver, há
uma intersecção dos dois, porque, no crioulo português, há todos os fonemas da
língua portuguesa, e, além do mais, as pré-nasais, fonemas diferentes que o
português não conhece.
PAULO: Vamos admitir, por exemplo, que o partido e o governo dissessem
hoje: todas as disciplinas agora, da escola primária e secundária, serão veiculadas
pelo crioulo. No dia seguinte, não haveria um texto sequer escrito em língua
crioula!
Tenho a impressão de que, às vezes, eu sou até uma espécie assim de campeão
do anticolonialismo. Se eu fosse guineense e pudesse amanhã ter resposta a todos
esses problemas, para que as crianças da Guiné e os jovens da Guiné
aprendessem geografia, história, matemática, biologia, ciências naturais etc., com
seus necessários textos em língua crioula, eu faria isso. Mas acontece que isso
toma um pouco de tempo. Isso implica na formação de quadros, implica em ter
dinheiro também para a impressão de todos os textos em língua crioula. E isso
não se faz da noite para o dia. Agora, o que eu acho importante é a decisão
política de fazer isso o mais rapidamente possível.
SÉRGIO: Talvez você pudesse falar da experiência que se tentou de
alfabetização em língua portuguesa, e que não deu certo.
PAULO: Essa experiência eu acho que foi muito boa, na medida em que ela
ensinou o óbvio, quer dizer: que não era possível fazer o ensino da língua
portuguesa nas zonas rurais do país. Eu estava dizendo, na hora do almoço, que
eu assisti, em diferentes oportunidades, camponeses criando palavras a partir da
palavra portuguesa. E eles, no fundo, estavam criando palavras em sua língua
nacional, com a ortografia portuguesa, o que demonstrou, durante um ano todo,
a impossibilidade do aprendizado em língua portuguesa, uma língua que não faz
parte da prática social do povo, uma língua estrangeira.
EMÍLIO: Eu creio que dizer que a Guiné-Bissau é um país lusófono é um mito:
o da lusofonia da Guiné-Bissau.
PAULO: Sim, eu creio também.
EMÍLIO: Poderíamos dizer o mesmo também em relação a outros países, como
o Senegal, onde também a francofonia é menos mítica que na Guiné-Bissau, mas
é também mítica…
QUARTO ESTUDANTE: …como em outros países francófonos…
EMÍLIO: Aí está. E um conceito político, evidentemente.
PAULO: Exato, isso é uma questão de interesse político, não é?
3. MOÇAMBIQUE? “NÃO FUI CONVIDADO.” AMÉRICA LATINA? “UM SER DO
MUNDO”
SÉRGIO: É. Havia alguém aí que queria falar. É você que queria sair da África?
QUINTA ESTUDANTE: Gostaria de fazer três perguntas. A primeira, a propósito
do que o senhor disse: eu observei que o senhor não falou absolutamente nada
sobre Moçambique.
PAULO: Ah, sim.
QUINTA ESTUDANTE: A segunda: para mim, o senhor estava começando a fazer
algo de extraordinário na América do Sul. Então eu gostaria de saber: agora que
o senhor não está mais lá, se isso continua, e com quem? Na surdina?
A terceira pergunta: o senhor está em Genebra, numa cidade onde há muitos
estrangeiros, imigrantes de muitos países. E então, o problema da alfabetização se
põe, tanto da língua falada quanto da língua escrita. O senhor se interessa por
isso?
PAULO: Sim, muito boa! Com relação à primeira pergunta, Moçambique. Eu
me sinto tão solidário por Moçambique quanto por Angola, Guiné-Bissau, Cabo
Verde e São Tomé. Acontece apenas que não fui a Moçambique. E não fui a
Moçambique porque eu acho que não devo tomar um avião, descer em Maputo,
e dizer: “Cheguei!”. Não fui convidado. Agora, o fato de dizer “não fui
convidado” não significa que eu me sinta discriminado por Moçambique, de
maneira nenhuma. Mas como eu não posso ir a Moçambique como turista — a
minha chegada é um ato político — eu não devo forçar a barra, como diria em
brasileiro, e me introduzir.
Com relação à América Latina, eu te diria que uma das coisas que o exílio me
ensinou, e não só a mim, mas a muitos brasileiros, foi a necessidade de
superarmos o nosso paroquialismo. Por isso, por exemplo, eu me sinto
profundamente latino-americano, mas, necessariamente, para ser latinoamericano, tenho primeiro que ser alguma coisa dentro do contexto geral da
América Latina. Essa “qualquer coisa” é: brasileiro. Para que eu pudesse me
sentir latino-americano; para que, em me sentindo latino-americano, eu pudesse
me sentir depois mundial, um ser do mundo, era preciso que eu tivesse
sobretudo, em primeiro lugar, um local. Esse local é o Recife, com cuja memória
eu ando pelo mundo. Carrego comigo as marcas da minha cidade. Até, num
parênteses, eu diria a vocês: se eu não cuidasse muito bem das marcas que o meu
local me deu, a minha andarilhagem hoje seria um vagar sem destino.
Evidentemente que a minha preocupação com a América Latina continua.
Agora, acontece também que, de uns tempos para cá, os espaços da América
Latina se estreitaram demasiado para mim, até para visitar. Há trabalhos na
América Latina não necessariamente baseados no que eu fiz…
SEXTA ESTUDANTE: O senhor deixou uma equipe por lá?
PAULO: Várias equipes.
EMÍLIO: Essas equipes trabalham ainda com o mesmo objetivo?
PAULO: Sim, eu creio. Contudo, eu tenho impressão de que esse é um tema
que sobrepassa um salão acadêmico.
4. O MOBRAL E A CONSCIENTIZAÇÃO: “RENUNCIO A USAR ESSA PALAVRA”
EMÍLIO: Desculpe-me, mas eu ouvi dizer que o seu método foi, digamos,
recuperado pelo Mobral. Isso quer dizer que eles utilizaram o lado formal do seu
método, mas com uma outra ideologia.
SÉRGIO: Uma nota do tradutor: o Emílio fala do Mobral, Movimento
Brasileiro de Alfabetização. É um movimento de alfabetização de massas que foi
posto em marcha pelo governo — e que continua em ação — no Brasil, depois do
golpe de estado de 1964.
PAULO: Eu nunca li nenhum documento oficial do Mobral dizendo isso. Mas
até te diria que não apenas o Mobral, mas muitos outros mobrais, nos chamados
Primeiro e Terceiro Mundos, tentaram recuperar o método. Eu diria algo mais:
recuperar mais que o método, em cuja existência eu não creio muito (ri), mas
recuperar a própria visão político-pedagógica. Uma tentativa de recuperação que
ultrapassa o domínio puro do método.
EMÍLIO: Qual é a filosofia que você põe na palavra “política” aí, é isso que eu
queria saber. Se o Mobral recuperou o método, mesmo se ele deu uma outra
visão pedagógica ou política, o conteúdo dessa visão é que me interessa. É a
mesma de antes de 1964?
PAULO: Não, não, de maneira nenhuma. Mas voltando à tentativa de
explicação desses esforços recuperadores: por exemplo, no campo das relações
educador-educando, com relação ao conceito de diálogo. Qualquer desses dois
aspectos não pode ser analisado fora da visão política com a qual eu os encaro.
Constantemente tenho visto ensaios críticos do chamado Primeiro Mundo —
Europa, Estados Unidos, Canadá —, teses em que eu sou analisado como um
educador liberal, que defende a superficialidade do diálogo; em que sou visto
como educador antiautoritário apenas, mas em que se escondem, ou se tenta
esconder, certos aspectos fundamentais do meu approach. É por essa razão, por
exemplo, que há cinco ou seis anos, não uso, nem oralmente nem escrevendo, a
palavra conscientização. Deixei de usar. Eu não renuncio ao processo ao qual a
palavra dá nome, mas renuncio a usar essa palavra, porque foi de tal maneira
recuperada que era preciso parar com o uso dela.
Mas, para terminar, a impressão que tenho é de que dificilmente qualquer um
de nós pode deixar de sofrer a experiência da recuperação, a não ser que seja
silencioso, que não fale, que não aja, que não diga nada, que não faça nada. E aí já
está recuperado. A questão que se coloca é saber até onde é que cada um de nós
está desperto para a força da recuperação, e se pode resistir, se tem força de
resistir a um outro aspecto da recuperação, que é exatamente o da acomodação.
Quando ela sobretudo se expressa através de tentações para uma vida gostosa.
(risos)
5. ALFABETIZAÇÃO FUNCIONAL: “CARÁTER POLÍTICO? O.K.”
SÉTIMO ESTUDANTE: O senhor Paulo é conselheiro da Unesco. O senhor partilha a
mesma concepção da alfabetização funcional?
PAULO: Em primeiro lugar, esclareço melhor: trabalhei no Chile, durante
meses, como consultor da Unesco. À pergunta que faz eu diria sim e não. Se a
chamada alfabetização funcional, ao acrescentar à aprendizagem da escrita e da
leitura uma certa capacitação técnica ligada à produção; mais: se se junta a essa
capacitação para produzir e para ler uma compreensão crítica do próprio
processo produtivo; portanto, se se dá à alfabetização funcional um caráter
político de classe — e no caso meu aqui seria da classe dominada, ou da classe
libertando-se —, o.k., je suis d’accord. Mas, se a funcionalidade opera no sentido
de manter a desfuncionalidade de uma sociedade injusta, eu sou contra.
SÉTIMO ESTUDANTE: Em função justamente dessa funcionalidade e
desfuncionalidade, retornando portanto ao caso da África: a imposição de uma
língua como valor veicular de toda orientação cultural, em detrimento das outras
línguas que alicerçam realmente as bases da tradição e da cultura das etnias que
lá estão, não seria, de certa forma, uma imposição para a desfuncionalidade de
toda essa estrutura tradicional, que se identifica com a própria origem linguística
de cada etnia na África?
PAULO: Bem, a nossa intenção ao trabalhar na África não era a de já chegar
levando conosco, em nossas valises de mão, o nosso diagnóstico da realidade.
Pelo contrário, o nosso papel era chegar lá e procurar compreender tanto quanto
possível a realidade nova, com os nacionais, e com eles estudar a programação do
trabalho. Isto implicava em que os nossos encontros, nesses países, não
pudessem cingir-se apenas às equipes do Ministério da Educação, mas também
encontros com os Ministérios de Saúde, de Planificação, de Agricultura, de
Cultura, que nos dessem então uma visão global dos projetos de
desenvolvimento do país, para que se pudesse, com os nacionais, tentar a
inserção do programa de alfabetização na reconstrução nacional.
Os problemas, ainda que sejam os mesmos, variam de um para outro desses
países. Um problema fundamental é exatamente o problema linguístico de que
falamos agora no almoço, conversando com o Emílio.
Em países como, por exemplo, Angola, Guiné, nos quinhentos anos de
presença colonial, colonialista, as grandes massas campesinas não foram tocadas
sequer pela língua portuguesa! Isso necessariamente coloca a todos esses países a
questão de uma política cultural, dentro da qual se situa a política linguística.
Esse é um problema que se coloca de um modo geral à África e cuja solução
implica numa decisão política.
Numa perspectiva, por exemplo, neocolonialista, a liderança nacional
necessariamente se filia à língua do antigo colonizador, sem que as massas
populares sejam tocadas por essa língua. No fundo, se assiste a uma divisão social
da sociedade entre dois grupos: um grupo minoritário de uma pequena
burguesia nacional que comanda a língua do colonizador, e as grandes massas
que não têm acesso à língua do colonizador e que, portanto, são discriminadas
na sua própria formação pedagógica. Esta não é, fora de dúvida, a opção da
liderança desses países com os quais eu trabalho. Daí que haja neles todos — em
uns mais, em outros, ainda, menos — uma preocupação com uma política
cultural, incluindo uma política linguística.
6. DA BELEZA DA LÍNGUA CRIOULA À “EXCELÊNCIA” DO COLONIALISMO
PAULO: No caso da Guiné-Bissau, se constituiu através dos tempos a língua
crioula — que eu particularmente acho muito bonita —, que corta o país todo e
que teve, na guerra de libertação, um fator extraordinário da sua difusão, como
língua de comunicação entre os diversos grupos étnicos. Creio que a questão que
se coloca no caso da Guiné, no momento, não é tanto mais a de pretender
alfabetizar as grandes massas populares em português, mas, pelo contrário, de
disciplinar escritamente a língua crioula, ao mesmo tempo que enfatizando,
respeitando e desenvolvendo as demais línguas nacionais, para que, num futuro
próximo, se ponha a língua portuguesa no seu devido lugar, quer dizer,
possivelmente, como língua estrangeira, uma língua que ocupe um bom lugar.
Eu gostaria, porém, de fazer um parênteses, para dizer que este é o meu ponto
de vista, mas que eu não tenho autoridade nenhuma para falar em nome do
governo da Guiné-Bissau. Mas também poderia adiantar que o processo marcha
nessa direção. Linguistas do Instituto de Linguística de Dakar, em associação
com esta universidade,10 com o senhor Emílio e com a sua equipe, que estão em
contato com o Centro de Linguística de Dakar, estão começando um trabalho de
que — tudo indica — o governo da Guiné-Bissau se servirá para o
desenvolvimento da resposta a este problema cultural e linguístico.
No caso de São Tomé e Príncipe, que me parece que é muito semelhante ao
caso de Cabo Verde — eu não sou linguista, mas tenho a impressão de que posso
dizer isso —, se constata um bilinguismo crioulo-português, o que facilita a
aprendizagem da língua portuguesa. O que não significa, porém, no caso de São
Tomé e de Cabo Verde, que não se tenha que ter uma grande preocupação com a
estrutura semântica — como dizia hoje o Emílio —, que, tendo que ver,
sobretudo por causa do bilinguismo, com o português, tem que ver também
consigo mesma, quer dizer, com a própria estrutura do crioulo.
EMÍLIO: Uma estrutura semântica que é eminentemente africana.
PAULO: Tenho a impressão de que bastava mostrar este problema para já
chamar a atenção em torno das dificuldades e da seriedade com que se deve
enfrentar uma questão como essa. Salientarei apenas um problema a mais, no
caso, porque creio que com as perguntas a gente enriquece mais. Um outro
grande problema que se coloca a esses países, e que tem que ver com a nossa
preocupação no campo da alfabetização, é a questão da superação da herança
colonial, no sentido da criação de um novo sistema educacional. Esses países só
não partem do zero, em certos casos — o caso da Guiné, por exemplo, ou o caso
de São Tomé —, porque partem de suas tradições culturais e históricas. Mas
materialmente partem quase do zero. Basta que eu diga a vocês, por exemplo,
que, no ano de 1976, o Ministério da Educação da Guiné-Bissau, com um esforço
tremendo, capacitou trinta professores de ensino básico, primário, e ao fazer isto
superou os colonizadores em quinhentos anos. Esse dado, por si mesmo, fala da
excelência do colonialismo!
EMÍLIO: Parece-me que, em quinhentos anos de colonialismo, houve onze
quadros formados na Guiné-Bissau.11
7. UMA CONSCIÊNCIA POLÍTICA CLARA, “FORA DA QUAL NÃO HÁ CAMINHO”
PAULO: Quer dizer: a transformação de um sistema educacional elitista,
reacionário, verbalista, para um tipo de educação em que a produção esteja
casada com a educação, em que se busque pouco a pouco superar a dicotomia
trabalho manual/trabalho intelectual, é uma coisa que a gente pode imaginar
quão difícil é!
Quanto mais eu me meto no esforço de reconstrução nacional desses países,
quanto mais eu me molho nas águas da reconstrução, tanto mais eu descubro o
óbvio: quão difícil é realmente reconstruir uma sociedade! Criar uma sociedade
nova, que vai gerar um homem novo e uma mulher nova! E aí a gente percebe,
na verdade, como isso não tem nada que ver com mecanicismos, que não tem
nada que ver com espontaneísmos, nem tampouco com voluntarismo. Mas, pelo
contrário, isso demanda uma consciência política clara, que se vai clarificando
mais na práxis política, fora da qual não há caminho, eu creio, não há solução.
Quer dizer: como desenvolver um sistema educacional que estimule a
criatividade, a inventividade, a percepção crítica do momento mesmo em que se
vive, o sentido da participação, a superação dos interesses individuais em função
dos interesses coletivos? Como desenvolver toda uma nova pedagogia se as
próprias estruturas da sociedade não foram total e radicalmente transformadas
ainda?
Mas exatamente porque isso não é mecânico, mas sim dialético, em certos
casos a educação anuncia o mundo a transformar-se, mas é preciso que esse
mundo se transforme realmente para que o anúncio que a educação faz não caia
no vazio. Isso tudo exige rigor de estudo, capacitação de quadros, o
desenvolvimento econômico e social do país, tudo a um só tempo! Não é fácil.
Eu tenho impressão de que agora, depois dessa introdução, que é apenas para
começar uma conversa… eu repito, não vim aqui fazer uma conferência sobre a
experiência de que participo, mas conversar… Eu acho que agora basta, e é
possível que haja alguma curiosidade em torno de algum aspecto de que não falei
e de que posso falar, respondendo. E que a discussão não seja entre eles e mim,
mas entre nós.
8. A LÍNGUA DOS COLONIZADOS: UM “DIALETO FEIO E POBRE”
OITAVO ESTUDANTE: Eu gostaria de perguntar ao sr. Freire o que é que freia
atualmente o governo da Guiné-Bissau em adotar a língua crioula como língua
nacional.
SÉRGIO: Como língua oficial, você quer dizer.
OITAVO ESTUDANTE: É a mesma coisa, não?
SÉRGIO: Não é, não, porque o crioulo já é uma língua nacional.
OITAVO ESTUDANTE: Está bem, então: língua oficial.
PAULO: Na Guiné-Bissau, se considera o crioulo como língua nacional — o
que não significa que as outras também não o sejam — e o português como
língua oficial. Evidentemente que isso cria um grande problema também. Na
hora do almoço, eu comentava com Emílio, com Sérgio e com a moça
historiadora este fato, por exemplo. É que a língua portuguesa, considerada
língua oficial, tem, porém, um papel que é de língua nacional. É exatamente o
papel que está tendo ainda, e que vai ter ainda a língua portuguesa, de mediadora
da formação geral da infância e da juventude. Na medida em que não só se
aprende o português, mas por meio dele a geografia, a história, a política, a
biologia etc., etc., a língua portuguesa passou a assumir aí então, de fato, o papel
de uma língua nacional.
SÉRGIO: Chega assim, finalmente, como língua, a penetrar no país.
PAULO: Eu não diria no país, mas num certo escalão social do país. E aí é que
eu acho que é mais perigoso. A solução se dará no momento em que a língua
crioula escrita passe a não apenas ser a língua nacional, mas a língua que vai ser
oficial também, ao mediar a formação global, cultural do povo.
A pergunta era: o que é que impede o governo e o partido a não estar fazendo
isso? Eu tenho a impressão de que possivelmente o fundamental impedimento é
a inexistência da língua escrita. Evidentemente que essa tarefa não foi
desenvolvida pelo colonizador. Durante a época colonial, linguistas por si
mesmos estudaram algo da estrutura do crioulo. Do ponto de vista do
colonizador, é óbvio, os colonizados não tinham história antes de sua chegada à
terra dos colonizados. Nesse sentido, os colonizados deveriam agradecer aos
colonizadores o fato de eles terem posto os colonizados na história. Da mesma
forma, os colonizados não tinham cultura, antes da chegada dos colonizadores. A
língua dos colonizados sempre foi chamada de dialeto, e dialeto feio e pobre. Só a
língua do colonizador é uma língua que tem possibilidades históricas, que tem
flexibilidade para expressar a ciência, a técnica e as artes. A arte do colonizado é
folclore, a arte do colonizador é cultura. (risos) Tem que ser assim. Isso é
ideologia, e não ciência.
Então, um dos esforços desses governos, hoje, é superar esse passado, de que
eles participam também. Há uma certa ambiguidade. É por isso que o presidente
Aristides Pereira, de Cabo Verde, na mesma linha de pensamento de Amílcar
Cabral, insiste tanto no que ele chama “a descolonização das mentes”.
9. O DESENVOLVIMENTO DO CRIOULO: “E AS OUTRAS LÍNGUAS NACIONAIS?”
MME SIMONE SAILLARD:12 Eu gostaria de fazer uma pergunta que é quase
simétrica, ou seja, na Guiné-Bissau, particularmente, a relação entre o crioulo
português e os dezoito dialetos. Nós compreendemos muito bem que a
colonização implicou um imperialismo linguístico, que é o do português. Minha
pergunta é totalmente ingênua e ignorante. O senhor acaba de dizer que o
conhecimento do crioulo português chegou às massas pela guerra de libertação
nacional. Consequentemente, a partir daí, eu imagino que a escolha política de
que o senhor falava é uma escolha política que implica uma escolha de
independência cultural, mental etc., e que isso implica a escolha de uma língua
que possa ser veicular. No fundo, esse é o problema.
Então, parece — de acordo com o que o senhor diz, e eu acredito plenamente,
ainda mais que eu desconheço totalmente a situação linguística da Guiné-Bissau
— que o crioulo português é efetivamente uma língua ao mesmo tempo
suficientemente independente, talvez com uma certa mestiçagem, que
corresponderia à ambiguidade da situação mental, intelectual, cultural do país, e
que, ao mesmo tempo, seja uma língua legitimada, que seja legitimável, pelo fato
de ela ter envolvido uma proporção suficiente da população.
A minha pergunta é totalmente ingênua (risos), e eu digo isso porque é
evidente que, para mim também, é muito mais simpático que o imperialismo
linguístico seja um imperialismo de recuperação nacional, mas, bem, não é que
isso seja evidente para todos! Quero dizer: será que isso não implica um
desaparecimento das outras línguas nacionais também? O senhor disse há pouco:
“desenvolvimento do crioulo no respeito das outras línguas nacionais”. Isso
implica o quê?
PAULO: Eu vou responder a uma parte apenas e pedir ao professor Emílio, que
conhece muito melhor do que eu, que responda à outra. Eu apenas diria o
seguinte: até onde eu percebo como se vem desenvolvendo a política cultural do
país, há uma forte preocupação… quando digo “no respeito às demais línguas
nacionais”, estou querendo dizer “no estímulo ao desenvolvimento das demais
línguas nacionais”, apresentando-se, porém, o crioulo como a língua veicular.
EMÍLIO: Há dezoito línguas, para além do crioulo, que não se compreendem
entre elas; o crioulo faz a ligação entre as diferentes etnias existentes na GuinéBissau. Vejam então o problema linguístico colocado por essas dezoito línguas:
seria preciso escolher uma entre as dezoito, mas a questão não se põe nesses
termos, porque já há uma língua nacional praticada por todas as etnias, que é o
crioulo, que aliás é uma forma africana, estrutural, semanticamente africana,
com um léxico galego-português, e não somente português. É por isso que há
muitos linguistas que falam de certas influências do espanhol. Não se trata de
espanhol, mas do galego. Portanto, o problema do desenvolvimento do crioulo
como língua nacional e oficial não excluio desenvolvimento e mesmo a descrição
das outras línguas autóctones.
LELOUP: Em Angola, não há apenas dezoito dialetos, dezoito línguas…
EMÍLIO: É preciso falar de línguas, porque não são dialetos. Lá, trata-se de uma
questão política.
10. QUAL MÉTODO, PARA UM PAÍS COM 62 LÍNGUAS?
LELOUP: Quero falar sobre a questão do método a empregar num país do Terceiro
Mundo que tenha 62 dialetos. Por que eu digo isso? Porque eu sempre desejei
que houvesse uma língua nacional. Sabendo que o sr. Freire é um especialista
nessa matéria e tendo lido vários dos seus livros, eu gostaria que ele dissesse qual
método ele preconiza para um país com 62 dialetos, digo, línguas?
PAULO: Lamentavelmente eu não tenho resposta a essa pergunta, nem creio
que ninguém a tenha hoje, nesta sala.
EMÍLIO: Essa situação nos ultrapassa, porque a divisão política das terras foi
feita contra a divisão natural, que era uma divisão de etnias. Cada etnia tinha a
sua língua. É esse o problema que os linguistas não poderão resolver.
NONO ESTUDANTE: Tendo em vista o fato de que há uma tendência de se ir
para a frente, e de se ter consciência dos problemas que temos, será que é sempre
útil seguir sempre o colonizador?
PAULO: A escolha de uma certa língua como língua veicular, que não
respeitasse as demais outras línguas que fazem parte de certos universos culturais
e, portanto, de certas identidades culturais, seria uma imposição, de que
resultaria um arrebentar com a própria unidade nacional. Aí estaria exatamente
o oposto da política que se desenha no caso da Guiné-Bissau, por exemplo. O
crioulo não é assim uma categoria abstrata, no universo cultural da GuinéBissau. O Emílio dizia antes, por exemplo, que o crioulo, na verdade, corta, passa
por todos os grupos étnicos e funciona como uma língua veicular. Por isso
mesmo é que é assumido por cada um desses grupos étnicos como língua
também.
EMÍLIO: É geralmente a primeira língua. As pessoas primeiro falam o crioulo,
para depois falar a língua da etnia à qual elas pertencem. Na maior parte dos
casos é assim. Nos casos restantes, elas têm uma primeira língua que é a língua
da etnia delas e, como segunda língua, o crioulo português. É a constatação que
fiz por meio de pesquisa.
DÉCIMO ESTUDANTE: Eu sei, mas como a tradição cultural é transmitida
oralmente, no momento em que uma etnia tem o seu próprio padrão de viver,
creio que a língua da etnia é a primeira a ser colocada para o grupo, para a
educação, mesmo oral.
EMÍLIO: É preciso compreender que o crioulo tem uma estrutura africana.
Portanto a visão do mundo — ontológica — é africana. Em todas essas etnias,
mesmo se têm línguas diferentes, a visão cultural é mais ou menos a mesma. Elas
poderiam funcionar como as línguas neolatinas, onde se tem uma visão global
comum e homogênea da maior parte dos fenômenos que nos cercam, aqui na
Europa, de acordo?
Na maior parte das etnias, atualmente, na Guiné-Bissau, desde a infância, o
crioulo começa a tornar-se a língua materna. Digo bem: começa a tornar-se. Eu
poderia citar três ou quatro etnias que têm já o crioulo como língua materna.
Eles falam a sua língua de origem em situações mais ou menos marcadas,
durante as cerimônias etc. Mas depende também da situação geográfica. No caso
das línguas que estão muito mais ao norte da Guiné-Bissau, a primeira língua é
ainda a da etnia. Mas no caso das línguas que estão mais ao sul, a primeira língua
já é o crioulo português.
11. OPÇÃO: ENTRE A ALFABETIZAÇÃO NA EUROPA E O “REAPRENDIZADO QUE A
ÁFRICA ME OFERECE”
SÉRGIO: Antes de pormos mais lenha na fogueira: há uma pergunta a que você
não respondeu, Paulo. É a questão sobre o fato de você estar em Genebra e o
problema da alfabetização dos estrangeiros.
PAULO: Eu não te diria que tenho trabalhado sistematicamente nisso. Mas,
nesses anos de vida em Genebra, tenho tido contatos, ora em Genebra, ora em
Paris, ora em certas cidades alemãs, com grupos que trabalham com
trabalhadores imigrantes em alfabetização. Mas sem nenhuma inserção maior. É
que, no fundo, sobretudo quando a gente chega à idade em que eu estou hoje, a
questão das opções, a questão de uma entrega maior se coloca.
No momento, por exemplo, me é absolutamente importante, fundamental,
este reaprendizado que a África me oferece. Eu não tenho muito tempo, o meu
limite existencial lamentavelmente começa a dizer: “Olha, Paulo, cuidado!”
Então, entre ficar tocando uma coisinha aqui, tocando uma coisinha lá, e passar a
me dedicar mais rigorosamente a um certo tipo de estudo, eu tenho que optar
pela coisa mais importante.
Por exemplo, a minha vinda aqui hoje teve que ser muito medida e pesada, já
há muito tempo, quando o Sérgio me fazia as primeiras tentações. Não é porque
primeiro eu assumisse uma atitude a priori de desinteresse por vocês, não. Mas é
pelo seguinte: ao vir aqui, significa que saí de casa, fui à estação, comprei a
passagem, tomei um trem às nove horas, cheguei aqui às onze, e vou voltar de
noite. É importante, isso. Mas acontece que, se eu fizesse isso constantemente, se
eu começasse a aceitar convites de outros grupos universitários na Europa para
fazer isso uma vez por semana, o que seria do meu trabalho, então, na África, do
que estou estudando e preparando, em função do trabalho de lá?
E se você depois mede o mínimo que pode ficar de um encontro como este
com um máximo que pode resultar de um trabalho sistematizado, de uma
experiência acompanhada, não há dúvida nenhuma de que resta mais lá.
Claro, aqui também, na Universidade de Lyon, havia um ponto. Em primeiro
lugar, me interessou muitíssimo o tipo de trabalho que Sérgio faz aqui. Quando
fui informado do que ele faz, me interessou, e achei que era ruim eu não vir. Em
segundo lugar, por meio dele eu descobri o Emílio, que é um homem que está
fazendo um tipo de estudo que interessa imensamente à África. Eu tenho que
voltar até aqui outras vezes para conversar com ele.
Por isso, gostaria de explicar a vocês, o meu problema não é o do desinteresse
por um grupo. Eu não sou um homem show. É por essa razão também, por
exemplo, que deixei a Universidade de Genebra, por causa da África. Por causa
da África eu rejeitei até hoje uma série de convites que recebi, e que continuo
recebendo, de universidades não europeias — europeias, umas duas somente —,
mas norte-americanas e canadenses, para ficar lá com eles, em paz. Eu prefiro
ficar na minha luta pela África.
12. EXPLICANDO MELHOR O QUE SIGNIFICA “FALHAR”
DÉCIMO PRIMEIRO ESTUDANTE: O senhor disse há pouco que realizou uma
experiência de alfabetização no meio rural na Guiné-Bissau, e que essa
experiência fracassou. Então eu queria saber, nesse contexto, o que é que o
senhor prevê para o caso de Angola, e certamente para outros países africanos,
onde se põe mais ou menos o mesmo problema.
E, em seguida, uma segunda pergunta: o senhor disse também que o governo
da Guiné-Bissau atribui uma grande importância à preservação das línguas
étnicas. Qual é então a importância que há — perante essa língua nacional
nascente, que é o crioulo — de conservar essas línguas, na medida em que, para a
maior parte dos dirigentes africanos, há um princípio maior, que é levado em
consideração: a unidade nacional. Ora, essa unidade nacional passa, em
princípio, por certas considerações como, por exemplo, uma língua nacional. Eu
creio mesmo que, quando um país chega à sua independência, na África, se fosse
possível, se dependesse do poder dos dirigentes africanos, a primeira coisa que
eles fariam, com uma varinha mágica, seria criar uma língua nacional.
Eu me pergunto, portanto, se a Guiné-Bissau — que tem a sorte de ter uma
língua nacional, uma língua que se forma e que certamente se tornará uma
língua oficial — se preocupa em conservar línguas étnicas, qual é o interesse que
haverá nisso, enquanto em Angola se põe efetivamente o problema pelo fato de
os dirigentes não poderem falar a todas as populações do país numa língua
nacional, o que é uma desvantagem maior no plano econômico, político e
mesmo social.
PAULO: Bem, quanto à primeira pergunta: tenho impressão de que seria
necessário explicar um pouco melhor o que significa “falhar”. As experiências
feitas nas áreas rurais com a língua portuguesa demonstraram a inviabilidade do
ensino da língua portuguesa, o que eu creio que esteja acelerando a tomada de
decisão política com relação à língua.
Segundo: as experiências revelaram também que nem sempre o fundamental,
num trabalho de educação popular, é ensinar a ler e a escrever palavras, mas o
fundamental é “ler”, “reler” e “reescrever”, com aspas, a realidade. Isto é,
desenvolver uma compreensão crítica do próprio processo histórico, político,
cultural, econômico e social em que as massas estão inseridas.
Eu diria então que, em qualquer hipótese em que haja um processo de
alfabetização, a leitura da realidade se impõe, se a opção política é liberadora. Em
certos casos, a leitura da realidade se impõe, e é possível, mas não a leitura da
palavra. Pelo menos em um período, não? Eu acho que essa constatação, que
poderia ter sido afirmada antes em nível teórico, no caso da Guiné e de outras
áreas africanas, pode-se afirmar hoje a partir da própria prática.
Mas agora peço mil perdões a vocês: são quinze para as cinco, começo a
cansar a cabeça, e a me sentir incapaz até de formular, de pensar. Então, peço
desculpa por propor a vocês que paremos aqui e lhes mando um grande abraço
de agradecimento pela paciência.
Muito obrigado. (aplausos)
Notas
O professor Leloup refere-se certamente ao MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola), à
Unita (União Nacional para a Independência Total de Angola) e à FNLA (Frente Nacional para a Libertação
de Angola).
6
7
O MPLA, sem dúvida alguma.
Amílcar Cabral discute essa questão em pelo menos um texto, escrito para uma reunião sobre “As noções
de raça, de identidade e de dignidade”, promovida pela Unesco em Paris, em julho de 1972. Nesse artigo de
47 parágrafos, intitulado “O papel da cultura na luta pela independência”, ele afirma que “a dinâmica da luta
exige a prática da democracia, da crítica e da autocrítica, a crescente participação das populações na gestão
de sua própria vida, a alfabetização, a criação de escolas e serviços sanitários, a formação de ‘quadros’
extraídos dos meios camponeses e operários, e outras tantas realizações que implicam em grande aceleração
do processo cultural da sociedade. Tudo isso torna claro que a luta pela libertação não é apenas um fato
cultural mas também um fator de cultura”. In Amílcar Cabral, Guiné-Bissau: Nação africana forjada na luta.
Lisboa: Publicações Nova Aurora, 1974, p. 136-7
8
Linguista brasileiro, professor e pesquisador na Unidade de Pesquisa e Ensino de Letras e Civilizações do
Mundo Mediterrâneo da Universidade de Lyon II.
9
10
Paulo se refere à Universidade de Lyon II.
Luiza Teotônio Pereira e Luís Motta apresentam dados precisos a respeito: “[…] O PAIGC, tendo em
conta as exigências da reconstrução nacional e não obstante as condições de luta armada que obrigava a
dedicar muitos jovens à preparação militar, cuidou particularmente da formação de quadros em nível médio
e superior. Para isso contou com o apoio de países amigos, de tal maneira que, durante os anos de luta, um
número muito maior de guineenses atingiu os cursos superiores, em comparação com o período da
ocupação portuguesa. […] Em dez anos, de 1963 a 1973, foram formados os seguintes quadros do PAIGC:
36 com curso superior, 46 com curso técnico médio, 241 com cursos profissionais e de especialização, e 174
quadros políticos e sindicais. Em contrapartida, desde 1471 até 1961, apenas se formaram 14 guineenses
com curso superior e 11 ao nível do ensino técnico.” In Guiné-Bissau: Três anos de independência. Lisboa:
Edição CIDA-C, coleção “África em Luta”, 1976, p. 106-7. Ver também, mais adiante, no capítulo 8 (p. 179),
“A herança e a escola colonial: ‘Pouca gente tinha acesso”’
11
Professora de várias disciplinas ligadas à língua espanhola e então diretora do Departamento de Línguas e
Civilizações do Mundo Mediterrâneo, da Universidade de Lyon II. Nesse departamento trabalhávamos
tanto Emílio Giusti quanto eu próprio.
12
SEGUNDA PARTE
SÃO TOMÉ E PRÌNCIPE
2
“PRATICAR PARA APRENDER”: CAMINHOS DE
SÃO TOMÉ
1. UM LIVRINHO SIMPLES, “MAS NÃO SIMPLISTA”
SÉRGIO: ATUALMENTE VOCÊ está trabalhando no quê?
PAULO: Vou abrir um pouquinho esta janela para a gente diminuir a fumaça
(estávamos os dois fumando na sala de Paulo, no Conselho Mundial das Igrejas,
em Genebra, inverno de 1978). Atualmente, como tu sabes, eu estou muito
engajado com essa atividade na África, atividade na qual me encontro mesmo
quando não estou lá, quando não viajo para um desses países. Aí, eu continuo
trabalhando aqui sobre as atividades lá.
No momento, por exemplo, o que me preocupa enormemente, junto com as
equipes nacionais de São Tomé e Príncipe, é a criação de materiais, de textos, de
pequenos livros, com os quais se possa dar suporte ao processo de alfabetização e
de pós-alfabetização no país. Então estou muito dedicado à criação desses
materiais, ora com eles lá — onde vou quando eu faço as minhas visitas —, ora
aqui. Mas evidentemente que, quando eu preparo um texto qualquer aqui a ser
usado lá, eu reproduzo, faço várias cópias e mando desde ao presidente da
República até à comissão que trabalha comigo. E o presidente é um sujeito
formidável. Além de um homem muito culto, no bom sentido dessa palavra, ele é
um sujeito muito sério, muito trabalhador. Então ele lê mesmo o texto que eu
mando, para dar o seu parecer, como político, como presidente da República,
porque eu não poderia imprimir nem uma página aqui sem o sim do governo.
Recentemente, no fim do ano passado — quando estive em Lyon, eu até te
falei nisso —, escrevi um livrinho que será o primeiro livro de textos para os que
dominaram a parte primeira da alfabetização, a primeira fase. Esse é o primeiro
livro de texto, que se chama Segundo caderno de cultura popular — textos para
ler e discutir como introdução à gramática, em que estudo as categorias
gramaticais, apenas, começando pelo verbo.
Os textos cobrem assim uma temática bem ampla, escritos numa linguagem
tanto quanto penso muito acessível. Simples, mas não simplista. Uma das
preocupações ao escrever esse livrinho foi não fazer concessões simplificadoras
da linguagem e na linguagem, porque eu estou convencido de que discutir uma
temática com a massa popular em termos simplistas é um sinal do elitismo de
quem faz isso.
Para mim, na medida em que digo: “Não, tem que ser simplificado, ao me
comunicar com as massas populares, porque não acredito que elas sejam capazes
de me entender, que elas sejam capazes de compreender um tema complexo,
seriamente. E se elas não são, é porque eu sou capaz. E eu sou capaz por quê?
Porque eu tenho um curso superior, universitário, chamado superior! Então, no
fundo, eu sou um elitista, um paternalista que pretende possuir uma verdade e de
noite distribuir, num gesto de condescendência, a essas massas, mas em
linguagem simplista.”.
Eu não faço isso. Então escrevi os textos todos do livro — repito, de forma
simples, mas não simplista. Os textos exigem do leitor uma disciplina de
trabalho. E não é por coincidência, por exemplo, que o primeiro texto desse livro
seja sobre o ato de estudar.13 Eu começo com isso. Eu usei sempre a proposição
de temas — ou quase sempre — contando história.
2. A HISTÓRIA DE PEDRO E ANTÔNIO: EVIDÊNCIA E MISTÉRIO DA PARÁBOLA
PAULO: Então conto uma pequena história de Pedro e Antônio, que estavam
numa caminhonete, transportando cápsulas de cacau, que tinham sido já
quebradas, para o secador do cacau, para a área onde eles vão secar o cacau. Foi o
que vi lá em São Tomé. E digo que havia chovido muito na noite anterior e que o
terreno estava enlameado, muita poça de lama. E que, em certa altura, Pedro e
Antônio se defrontaram com um lamaçal de uns dois metros de extensão. Então
eles pararam a caminhonete, desceram, olharam silenciosamente o lamaçal e
depois os dois atravessaram o lamaçal, protegidos com as suas botas de cano alto
— que eu vi também lá —, para se ter uma ideia da espessura da lama. Depois
voltaram, discutiram um pouco e resolveram apanhar pedras e galhos secos de
árvore, com os quais eles forraram o leito do lamaçal, dando ao lamaçal uma
certa consistência, suficiente para que as rodas passassem por cima. E
atravessaram. Então conto essa história e digo: Pedro e Antônio estudaram. Não
se estuda somente na escola.
SÉRGIO: Isso lembra muito a técnica da parábola.
PAULO: Exato!
SÉRGIO: Em que você acha que essa atitude tua se parece com uma atitude
evangélica, num sentido extremamente pedagógico, desvinculado de uma
doutrinação proselitista? Em que medida você faz essa associação?
PAULO: Exato! Eu te colocaria agora o problema ao revés, ao contrário, e te
diria que, no uso das parábolas, tomemos assim, o velho Cristo expressou nele,
para mim, uma profunda intuição do sentido, da força cultural e pedagógica das
parábolas. Quer dizer: a partir de uma parábola, que expressava uma
determinada atmosfera cultural, que tocava a prática social do povo, era possível
ir mais além. Nesse sentido, as parábolas são eminentemente problematizantes e
criticizadoras. Vai depender aí de como você aproveita, de um lado, a evidência
da parábola e, de outro, o mistério dela.
Se você fica apenas ao nível da evidência, você pode domesticar. Mas se você
faz a dialética entre a evidência, o óbvio da parábola e o mistério dela, você dá o
salto. Eu fiz propositadamente: o livro está cheio disso. Mas insisto, no fim de
cada texto, na responsabilidade de assumir o texto como um desafio.
Nesse sentido, Sérgio, talvez perdendo um pouco a humildade necessária, e
não fabricada, eu te diria que talvez seja esse um dos melhores livros meus, e que,
por coincidência, vai ser publicado não com o meu nome, mas sim com o nome
do Ministério da Educação de lá, como se fosse um nacional que tivesse escrito.
Eu achei muito melhor esse caminho do que exigir o meu nome nesse negócio.
Para afirmar o quê? O que me interessa é dar uma contribuição a um povo que
está lutando para ser, e não pôr nas relações bibliográficas mais um livro.
3. ESSE LIVRO, OUTRO LIVRO: “ALGUMAS BRASILEIRADAS”
PAULO: Uma coisa que me agradou enormemente aqui — isso eu te digo também
sem vaidade, mas com alegria — a carta que o presidente me escreveu é uma
beleza! Falando em nome dele, do governo e do partido, ele me diz que leu o
livro todo com u m crescente entusiasmo. E, terminada a leitura, ele tinha que
me dizer que não havia uma restrição a fazer, do ponto de vista do conteúdo
político do livro, do ponto de vista da análise da realidade nacional; que fiz de
Genebra, mas que eu era um nacional também, e que o único ponto que havia —
e de que eu seria informado pelo ministro14 da Informação e Cultura — era o de
algumas sugestões que eles iam me mandar para substituir algumas brasileiradas.
O que é natural, não? Eu escrevi como brasileiro, procurando uma linguagem
bem do povo, mas do nosso povo. Lamentavelmente, eu não recebi ainda…
Recebi uma carta da ministra, elogiando também o livro e dizendo que me
mandava, por correio, separado, o original que eu tinha mandado para ela, com
as retificações. Faz um mês e não chegou. Eu já escrevi para ela dizendo que não
recebi, porque, enquanto não vier, não posso imprimir.
Esse livro eu acho delicioso. Vou te dar depois uma fotocópia dele. Agora, no
momento — depois desse encontro em Bissau, de que te falei pela manhã15 — o
ministro da Educação de São Tomé me perguntou se eu não gostaria de escrever
um outro livro, como este, e pelo qual ele também estava entusiasmadíssimo,
sobre a temática que se discutiu no encontro. O que vale dizer: que eu escrevesse
uma série de textos. Não seria um livro propriamente para descrever o que foi o
encontro. Esse vai poder ter o meu nome. Um livro em que eu desenvolva a
mesma temática que foi discutida, não necessariamente nos mesmos termos e no
mesmo approach em que alguns dos seus temas foram analisados. Mas, ao
mesmo tempo, na introdução, eu daria uma notícia do que foi o encontro.
A intenção do ministro ao me pedir isso é a de levar esta temática às bases
populares no país dele também. Porque, por exemplo, com relação a esse
segundo caderninho de que te falei agora — que o ministro me disse que, depois
que eles leram, vários ministros e o presidente, eles chegaram à conclusão de usar
o tal livrinho em três níveis distintos para testar. Desse primeiro, nós vamos fazer
uma edição primeiro, para provar o livro, porque o livro pode ser modificado.
Então não adianta você pegar agora e fazer seis mil cópias, para depois ver que a
prática te demonstra que tais coisas não deviam estar no livro, ou pelo menos
como estão.
Como eu te digo, escrevi o livro para a pós-alfabetização, mas a ideia do
ministro me pareceu excelente, quer dizer, é do governo: era testar esse livrinho
com uns trezentos jovens do último ano da escola primária, com uns trezentos
jovens do primeiro da secundária, e com uns quinhentos adultos que estão
entrando na pós-alfabetização. E, com as limitações que eles têm — e que nós
temos —, acompanhar os resultados: como a criançada de escola primária reagiu
a esses textinhos e à gramática; como os meninos de primeiro ano de ginásio
reagem, e como os adultos também vão reagir. Então o ministro disse: “Bem,
Paulo, depois de analisar isso então a gente vê o que é que a gente tem que mudar
no fim, considerando esses três níveis. E daí em diante a gente faz uma edição
grande e passa a usá-lo preponderantemente nesse ou naquele desses três níveis
em que a gente vai testar.” Eu achei a ideia excelente.
4. A LINGUAGEM DAS CARTAS E A CULTURA DE MEMÓRIA ORAL
PAULO: Há uma outra coisa que eu também vou dar a ti depois, que eu nunca te
dei, e que são umas cartas. Em lugar de escrever guias para os educadores de
base, escrevo cartas ao animador cultural, em nome da comissão também.
Evidentemente que essas cartas estão sendo escritas numa linguagem menos
simples do que a linguagem que usei no livro. A idei a que eu tenho é a de
diminuir a distância que há entre a linguagem dessas cartas e a capacidade dos
animadores, nas minhas idas a São Tomé, fazendo seminários de avaliação com
eles, nos quais eu dedico um ou dois dias para uma leitura coletiva das cartas, em
que eu vou oralmente interpretando com eles o que eu quis dizer neste ou
naquele período etc. Por isso é que não me preocupo muito em fazer as cartas ao
nível mais simples. Eu te diria que elas são muito mais simples do que qualquer
livro meu, mas não têm a simplicidade que o livro que eu fiz tem.
Estou no momento terminando a terceira carta, que trata da pósalfabetização e de como usar o livro de que te falei, de como trabalhar com ele.
No momento já estou na metade da terceira carta, exatamente tomando a
introdução do caderno como um primeiro exemplo de como trabalhar com isso,
e estou discutindo na carta o papel da leitura silenciosa.
Mas aí é uma coisa engraçada, Sérgio. Como a África vai ensinando a gente!
Como a realidade vai ensinando! Por exemplo, se eu estivesse escrevendo para o
Brasil, sobretudo para educadores que estivessem trabalhando com massas
populares em centros urbanos, como São Paulo, eu teria sugerido que, ao abrir o
livro, na introdução, o animador propusesse aos participantes do círculo que
fizessem uma leitura silenciosa do texto e que, em seguida, cada um iria fazer a
leitura em voz alta. Mas para a África, não. Inclusive a minha primeira tentação
foi essa. Imediatamente o lápis parou no caminho e refiz a trajetória.
Na África, meu querido Sérgio, a gente está enfrentando uma cultura cuja
memória — por n razões que não interessa aqui agora conversar — é auditiva, é
oral, e não escrita. Então, antes da leitura silenciosa, numa cultura de memória
oral, tem que fazer a leitura em voz alta, e a tarefa deve ser a do educador! O
educador é que, na sua preparação, enquanto africano, deve fazer para ele a
leitura em voz alta e, em seguida, também a leitura silenciosa do texto, na sua
preparação, antes de ir para o círculo. Mas, chegando ao círculo, ele deve ler em
voz alta, para todos, lentamente, enquanto os educandos vão acompanhando,
vão olhando o texto. Ele vai lendo em voz alta, pausadamente. Depois é que ele
pode sugerir a leitura silenciosa de cada um, mas, em primeiro lugar, ele tem que
provocar uma certa convivência entre os educandos e o texto, pela oralidade, e
não da escrita do texto. É o som da palavra que o cara deve ouvir,
simultaneamente com a visão da palavra. Mas não a visão da palavra e um som
que está interno, que é a leitura silenciosa. Eu não sei se você vê sentido nessa
minha observação.
SÉRGIO: Hum, hum!
PAULO: São coisas assim que estou escrevendo para eles. Agora, puxa, mas já
estão longas as cartas! (Sérgio ri) Porque a primeira, por exemplo, que eu acho
muito boa, necessariamente teria que apanhar toda uma visão teórica também do
que é a alfabetização. Então eu mostro, nessa primeira carta, que nem sempre
você parte da leitura da palavra, mas, numa opção política revolucionária, você
tem que juntar sempre a leitura da realidade com a leitura da palavra. Mas nem
sempre a leitura da realidade é simultânea com a leitura da palavra. Ela pode
preceder. Então esclareço tudo isso, e essa carta tem 22 páginas! A segunda é
pequena, tem umas seis. E essa terceira vai ter umas 25. Já é um ensainho!
5. A TÉCNICA EPISTOLAR: “NADA DE RELIGIOSO”
SÉRGIO: Paulo, você não acha que o fato de você estar escrevendo cartas significa,
de uma certa maneira, que você está algo distante de alguém, de uma certa
realidade? Por que escrever cartas?
PAULO: Eu te respondo com facilidade. Veja bem: essas cartas são feitas não
assinadas por mim, mas assinadas pela comissão lá. Portanto, se admite
objetivamente que essas cartas estão partindo de São Tomé, de uma comissão lá,
para os seus camaradas em São Tomé.
Elas se chamam cartas porque eu sugeri. Eu discuti com a comissão que eu
achava muito melhor que ela se dirigisse em termos de cartas do que de guias.
Em lugar de você escrever o que normalmente todo mundo tem — pode-se
chamar “Guia do Coordenador”, “Guia do Animador”, como você quiser —,
escreve um texto que é o suporte para o educador trabalhar com o material
básico.
Eu sugeri que fossem cartas para deixar o animador, desde o começo, mais ou
menos convencido de que as cartas não são prescrições, mas são antes elementos
desafiadores também deles.
SÉRGIO: Você está me fazendo fazer uma pergunta. Primeiro nós falamos das
parábolas: você estava contando o livro e a técnica das parábolas. Agora você fala
das cartas: a técnica epistolar. Isso me lembra muito ainda o procedimento do
Novo Testamento. E é aí que eu queria perguntar para você uma coisa: o que, no
teu trabalho, existe de religioso?
PAULO: Eu diria que não existe nada de religioso, se se toma a religiosidade
como uma certa expressão mágica, dentro de um certo quadro cultural.
Evidentemente que eu não poderia jamais negar, em todo o meu trabalho, as
marcas… — digamos agora, usemos agora a palavra “religiosa” — as marcas da
minha formação — eu preferia dizer até cristã do que propriamente religiosa.
Marcas de que ora eu tenho consciência total, de que ora eu não tenho.
Você inclusive está sendo a primeira pessoa que me chama a atenção para a
técnica das parábolas e o estilo epistolar. Eu não tinha tomado consciência disso.
É possível que, em nível mais profundo, isso me devolva a minha infância.
Mas é possível — e aí é que eu acho que é o fundamental — que esse retorno
a um tempo tão longínquo, no sentido de buscar a raiz disso, me leve exatamente
à profunda infl uência que Cristo exerceu sobre mim, enquanto, sobretudo,
desafiador. E as cartas, as chamadas cartas também, as presenças vivas! É possível
que haja isso.
Mas se tu me perguntas: através disso, há um conteúdo de caráter
transcendental, no sentido agora religioso, nesse trabalho? Não, não há. Não
porque eu o negue a mim, mas porque o que me interessa nesse esforço é ficar na
história, sem pretender chamar a atenção sobre a meta-história. O que vem
depois é um problema que outros terão lá que ver com eles mesmos. Quer dizer:
estou discutindo o que se dá dentro da história atual de São Tomé, o quefazer
diário. E, sobretudo, preocupado com o desenvolvimento do trabalho na leitura
da realidade como na leitura do texto.
6. UM OUTRO CADERNINHO: NADANDO SE APRENDE A NADAR
PAULO: Eu estou convencido de que, se se deixa o país em paz, é possível
desenvolver um trabalho lentamente, não também por decreto, mas um trabalho
no campo da educação de adultos, que tem que ver com a educação geral, em que
se vão terminar por oferecer — desde que você não faça uma educação abstrata,
que você ligue isso tudo à problemática da produção, da saúde, da política —,
oferecer, não doar, instrumentos que constituem uma forma crítica de pensar, de
pensar a prática.
Por isso é que todos os trabalhinhos, os textinhos que a gente está
organizando para São Tomé, insistem tanto nisso. Por exemplo, há dois cadernos
básicos para a etapa da alfabetização. O primeiro deles se chama “Primeiro
caderno de cultura popular”, que tem as palavras geradoras, mas da primeira até
à nona não há nenhum texto feito por nós. Há apenas as palavras geradoras, as
codificações, as palavras decompostas, e o espaço para o cara criar as suas
palavras. Só entre a nona e a décima aparece o primeiro texto, com palavras que
poderiam ser criadas com as nove anteriores.
Há, então, um esforço enorme de desafiar a criatividade do povo. Mas nós
descobrimos que esse caderno só não bastava, por causa do tal negócio da cultura
de memória oral. Era preciso estimular mais ainda. Então, fizemos um outro
caderninho, de que eu vou te dar uma cópia também, cujo título é “Praticar para
aprender”. Você vê, o nome do caderno já é também um desafio. E esse
caderninho — que deve ser usado quando o alfabetizando alcança a décima
quarta palavra do primeiro caderno — desafia, desde o começo até o fim, a
criatividade do alfabetizando. E é eminentemente político também. Não há uma
afirmação que não seja política. Não há uma palavra, um textinho que não tenha
conteúdo político. Mas não “sloganizante”. Por exemplo, há duas codificações
nesse segundo caderninho, duas fotografias muito boas. Uma é a de um grupo de
meninos tentando nadar, nadando numa enseada. E a outra é de um grupo de
homens trabalhando com enxadas etc. Então, ao lado da primeira fotografia está
escrito “É nadando que se aprende a nadar.” Ao lado da segunda fotografia está
escrito: “É trabalhando que se aprende a trabalhar.” E no rodapé da página está
escrito: “Praticando aprendemos a praticar melhor.” Na outra página, então,
vem: “Se é praticando que se aprende a nadar, se é praticando que se aprende a
trabalhar, é praticando também que se aprende a ler e a escrever. Vamos praticar.
Vamos ler”, e aí vem uma série de palavras.
E aí o caderninho vai crescendo em dificuldades, até que chega um momento
em que a gente sugere que o alfabetizando comece a escrever ele também
estórias, suas estórias: “Mas antes de escrever um texto, pense primeiro na sua
prática, pense primeiro no seu trabalho, pense primeiro nos instrumentos que
você usa no seu trabalho, com os seus camaradas. Se você é pescador, pense
então nas horas que você leva nas águas longe, nas águas de navegar, longe das
terras de cultivar. Pense nas histórias dos pescadores, nas histórias que você
ouviu contar do tempo de nossos avós. Depois então escreva a sua primeira
história. É praticando que se aprende.”
Quer dizer, todos os materiais que a gente está preparando para São Tomé
insistem na prática como fonte de conhecimento. No “Segundo caderno”, por
exemplo, há um texto sobre a prática como fonte do conhecimento. Há textos
sobre, por exemplo, planificação da prática. Há textos sobre avaliação de prática.
Há três textos sobre o processo produtivo: o que é o processo produtivo? Há
textos sobre a reconstrução nacional: o que é a reconstrução nacional? Há textos
sobre a nova sociedade: o que é a nova sociedade? Há texto sobre o trabalho
como transformador do mundo, e a cultura como resultado do trabalho, como a
criação realmente do ser humano, mas a transformação do mundo significando,
então, a transformação do ser humano também.
Tudo está se organizando no sentido não de doar, mas de chamar o educando
a uma forma crítica de pensar. Por exemplo, há um texto sobre o que significa
pensar certo. O que é pensar certo? Há também, no fim desse segundo caderno,
uma espécie de vocabulário, em que eu esclareço o sentido de algumas palavras e
de conjuntos de palavras. Mas na introduçãozinha do vocabulário eu digo que o
vocabulário não trabalha por ele só, que é preciso fazer força também para
compreender o próprio vocabulário. O próprio vocabulário não explica tudo. É
preciso que eu entenda também, que me esforce também para compreender o
vocabulário.
7. UM ATRASO DE CINCO MINUTOS E QUINHENTOS ANOS DE RESISTÊNCIA
PAULO: Há um problema, Sérgio. É a real diferença entre o que está posto nos
textos, entre os objetivos que você busca alcançar com os textos e a capacidade
atual de os educadores realizarem, marcharem no sentido dos objetivos. A gente
reconhece esse hiato, em termos realistas. Eu seria inclusive um mentiroso se te
dissesse: “Olha, está tudo maravilhoso lá! Você chega lá, você já encontra a nova
pedagogia! Os animadores culturais apanham esses materiais todos e fazem um
trabalho excelente!” Não, não. Eu te diria, contudo, que fazem um trabalho
excelente, na medida em que fazem o que podem fazer. Esse “o que podem fazer”
é que precisa ir dilatando-se, na medida em que a sua prática crescer.
Então, se você funciona em termos realistas, no sentido de compreender,
inclusive, por que os animadores culturais, os educadores populares, fazem
coisas que te poderiam parecer erradas, dentro do teu contexto político
ideológico, na tua opção, mas que lá não são. Eu vou dar um exemplo agora
concreto, que analisei inclusive numa carta que fiz à Guiné-Bissau, porque
sempre ponho a equipe da Guiné-Bissau a par de tudo o que se faz em São Tomé
e vice-versa.
Um dia, por exemplo, fiz um relatório oral de 1h20 para a Guiné-Bissau, e
mandei o cassete, sobre a situação em São Tomé. E, às vezes, eu escrevo: fiz uma
carta de quinze páginas, no fim do ano passado, sobre o que eu estava vendo em
São Tomé. Então dizia na carta, eu me lembro, quando descrevia uma das sessões
de um círculo de cultura, que se eu tivesse recém-chegado lá, saindo do
aeroporto para assistir àquela sessão, e que tivessem dito: “Venha cá, venha ver
uma experiência com uma aplicação do que se chama o seu método”, eu dizia na
carta que teria ficado completamente espantado, surpreso, diante do que me
pareceria ser o autoritarismo do educador.
Na verdade, porém, não havia autoritarismo nenhum. Havia, pelo contrário,
uma necessidade indiscutível, posta pelo processo histórico do país, para aquele
comportamento que vi. O comportamento era o seguinte: uma menina chegou
atrasada, uma mocinha, cinco minutos, à reunião. O animador parou os debates,
houve um silêncio, ele olhou para ela e disse: “Camarada, cinco minutos! A
camarada possivelmente estava conversando sobre maluqueiras, maluquices, no
portão aí do prédio, quando nós aqui começávamos já a trabalhar. Camarada,
você precisa saber que a reconstrução nacional não pode ser feita sem disciplina,
trabalho e unidade. Eu espero que a camarada tome consciência da sua falta de
responsabilidade e não repita o que acaba de fazer”. A menina, de pé, pediu
desculpa e sentou-se, muda. Eu não disse coisa nenhuma! Não podia dizer, nem
devia, a não ser pensar. Um sujeito excelente o animador, mas duro, muito duro,
com uma autoridade que ele, eu quase diria, impunha. Mas não era um mestreescola. Era um político. É interessante essa nuança, sabe! Era um político que
falava. Nos debates, ele não perdia uma chance para falar da responsabilidade do
povo na reconstrução do país, dando uns exemplos bem populares, bem
concretos, com relação à situação política do momento, lá.
Na saída, um dos membros da Comissão Nacional me disse: “Camarada
Paulo Freire, eu acho que é preciso chamar a atenção desse animador. Ele é
muito competente, muito bom, muito esforçado, e faz isso tudo sem ganhar um
tostão. Ele dá o exemplo mesmo, ele trabalha toda noite, não ganha nada, o
Ministério não tem dinheiro para pagar a ele. Mas nós precisamos chamar a
atenção dele, porque ele está muito duro.” O outro, nacional também,
possivelmente dizendo isso muito mais para diminuir em mim o que ele parecia
que estava vendo, uma decepção. Eu disse:
— Amanhã eu queria conversar com vocês da comissão. A gente tem uma
reunião às nove horas, então vamos começar por isso que eu vi hoje.
Depois vi outros círculos, fui para o hotel e comecei a pensar. No dia seguinte
me reuni com eles e disse:
— Olha, estou totalmente de acordo com o animador. —Os caras olharam, e
eu disse:
— Vocês devem ter visto nos meus livros tudo o que eu digo, um negócio
diferente daquilo. Mas a gente tem que ler os outros, também fazendo a redução
em torno da realidade nossa. O problema que se coloca aí é o seguinte, no meu
entender: em São Tomé e Príncipe, toda a história da luta, da recusa do sãotomense à presença colonial é riquíssima, belíssima, merece estudos. São
quinhentos anos de resistência cultural ao invasor, que só uma vez ou outra,
durante esses quinhentos anos, se expressou em termos de violência física
também, contra os portugueses, como organização popular.
Mas, obviamente, mais recentemente, não houve chance nunca mais disso.
No momento em que a independência vem, depois do 25 de Abril em Portugal, a
massa popular emerge com a euforia da independência, mas no nível de uma
consciência rebelde, e não de uma consciência revolucionária. E há uma
diferença profunda entre a consciência rebelde, nacionalista, e a consciência
revolucionária, que, sendo profundamente inquieta, é também profundamente
paciente e organizada, com vistas à criação revolucionária, à recriação
revolucionária da sociedade. Quer dizer: a consciência revolucionária implica, na
medida em que ela se vai constituindo numa prática revolucionária, numa
clareza cada vez maior, com relação aos objetivos, aos meios, aos recursos, às
táticas, em coerência com a estratégia. A consciência rebelde, não. Ela é
profundamente emocional. Ela é visceral, ela é orgânica, quase biológica! Falta à
consciência rebelde o sentido mais crítico, mais profundo, da consciência
revolucionária. E eu digo:
— Ora, no momento em que a consciência rebelde emerge, ela identifica
qualquer ordem, qualquer disciplina, com a velha ordem e a velha disciplina,
que, no fundo, eram ordem e disciplina de classe dos colonizadores sobre as
massas. E a tendência é repudiar, parta de onde parta essa ordem. Ela não aceita
o enquadramento necessário, crítico. Ela quer romper com isso. Então, se vocês
no momento não tiverem o equilíbrio perfeito, ou a noção exata de como
equilibrar uma autoridade que não se deve tornar autoritária, mas que jamais
pode permitir que a liberdade se torne licença, vocês se perdem no processo.
Vocês vão cair no espontaneísmo, que é querido pela consciência rebelde. A
consciência rebelde é espontaneísta. Então é preciso isso.
O pessoal da Comissão disse:
— É, camarada Paulo, você está completamente certo. Você imagine o
seguinte: os grandes problemas que o Ministério da Educação está tendo no
momento são problemas de disciplina entre estudante e professor, entre
professor e coordenador. O estudante não aceita a ordem do professor e o
professor não aceita a sugestão dos chamados responsáveis dos departamentos.
Há um choque constante.
8. A IMPRESSÃO DE UMA FROUXURA: O COLONIZADOR “MUITO PRÓXIMO AINDA”
PAULO: Depois eu tive um encontro com o Instituto de Educação, em que os
responsáveis me disseram o mesmo. Inclusive me pediram para eu escrever um
texto em linguagem simples, para ser distribuído para todos os professores, em
que eu analisasse o problema da supervisão pedagógica, da avaliação e não da
inspeção, e a liberdade, a criatividade. Mas eu não pude ainda escrever.
Esse mesmo fenômeno, Sérgio, encontrei em Angola! Eu encontro em São
Tomé, em Angola, em Cabo Verde, em todo lugar. É um dos ingredientes da
transição, é uma das notas da transição. Por exemplo, você vê: em Angola, o
governo criou no Ministério de Educação recentemente um instituto que se
chama Instituto de Investigação Pedagógica e Inspeção Escolar. Tive um debate
com a equipe diretora, em que analisei a inspeção escolar e em que eu disse:
— No meu entender, esse negócio contradiz os objetivos socialistas de vocês,
mas eu já sei de antemão o que vocês podem me explicar para terem conservado
esse nome de “inspeção escolar”. E estou totalmente de acordo e acho que não
deve sair! O correto seria “Instituto de Investigação Pedagógica e Avaliação”, e
não inspeção. Mas se vocês fizerem isso hoje, só pelo fato de tirarem o nome
“inspeção escolar” podem dar com isso a impressão — a uma grande quantidade
de educadores, que estão no nível da rebelião e não da revolução — de uma
frouxura, de uma licenciosidade. Então, como o colonizador está muito próximo
ainda, do ponto de vista ideológico, é preciso que os caras continuem a ouvir a
palavra “inspeção” que o colonizador pôs.
Você veja como esse treco é complexo! Você pode correr o risco de virar um
idealista e chegar num contexto como esse e estar fazendo propostas que não têm
sentido histórico. Essa, Sérgio, é uma das minhas preocupações: até que ponto as
propostas que faço estão… Apesar de toda essa vigilância minha, de que estou
dando exemplos assim muito concretos; apesar de toda essa preocupação que eu
tenho de estar numa rua, em São Tomé ou onde quer que seja, examinando as
atitudes… Eu não vou a São Tomé sem que eu não vá ao mercado público, a um
campo de futebol, para ver como o povo conversa, como o povo reage, como o
povo fala, as atitudes… Apesar de tudo isso, eu às vezes me pergunto até que
ponto essa sugestão minha, aqui agora, tem que ver mesmo com o processo lá.
Lamentavelmente eu não posso morar lá. Se eu pudesse viver seis meses pelo
menos em São Tomé, tenho impressão de que eu compreenderia muito melhor a
realidade e escreveria muito melhor também, porque eu incluiria as coisas de lá.
Mas nessa conversa, assim um pouco doida, que eu estou tendo contigo (ri),
estou te dando pelo menos uma visão, fragmentada mesmo, das preocupações
que tenho e dos trabalhos em que estou metido, engajado, que acho que são
importantes.
Notas
13
São dois os textos sobre o ato de estudar, que abrem o “A luta continua”. Ver “Anexo I”.
14 Paulo usou mesmo o masculino ao se referir à ministra. Sua preocupação com esse pormenor relativo à
questão do gênero apareceria mais tarde.
Trata-se do Encontro dos Ministros de Educação dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
(Palop), a que o ex-ministro da Educação guineense Màrio Cabral se refere mais adiante (ver cap. B, item 3,
“Um momento especial…”).
15
3
O PROCESSO? EXTRAORDINÁRIO, MAS
“SIMPLESMENTE, HOUVE UMA RUPTURA”
1. “AS PESSOAS COMEÇARAM A LIBERTAR-SE MENTALMENTE”
SÉRGIO: GOSTARIA DE COMEÇAR pelo seu nome, dona Alda. O seu nome inteiro
qual é?16
ALDA: Alda Neves da Graça do Espírito Santo. Normalmente, Alda Espírito
Santo.
SÉRGIO: A senhora nasceu onde?
ALDA: Nasci em São Tomé, aqui muito perto, na Ponta Mina, na chamada
Freguesia da Graça.
SÉRGIO: No dia 30 de abril…
ALDA: …de 1926.
SÉRGIO Vou direto ao assunto porque nós temos muito p ouco tempo: como a
senhora conheceu Paulo Freire?
ALDA: Internacionalmente Paulo Freire era muito conhecido, mas tive a
felicidade de conhecê-lo em São Tomé, porque nessa altura uma são-tomense,
Maria Amorim, que foi ministra dos Negócios Estrangeiros, estava em Genebra e
era muito amiga do Paulo Freire. E por meio da Maria Amorim é que nós
tivemos a dica de ter Paulo Freire no nosso país, no processo de alfabetização.
SÉRGIO: Na época, a senhora estava fazendo o quê?
ALDA: Quando Paulo Freire veio, eu não sei se ainda estava na Educação,
porque eu estive na Educação até 1976. Depois passei para a Informação e
Cultura. Quem estava na Educação era Celestino Costa.
Nós, no processo de luta pela independência, começamos a fazer um manual
arcaico de alfabetização, que era impresso… Até o Costa Alegre, que era um
camarada nosso que trabalhava nas Obras Públicas, conseguia, por meios
artesanais, imprimir as folhas que nós íamos fazendo. E, então, começávamos
pela palavra povo, porque na altura era toda a população que queria a mudança e
que queria a independência.
As primeiras folhas que nós fizemos, eu as dei a Paulo Freire. Como eu estive
na Educação, evidentemente, e me interessava por todo o processo — tinha feito
a minha vida como professora —, tinha a oportunidade de conversar muitas
vezes com o Paulo Freire, durante o período em que ele aqui esteve. Eu sei que o
Paulo Freire, a primeira vez que veio por aqui, veio por Libreville.17 Mas
acontece que — não sei o que é que pensavam do Paulo Freire —, durante o
tempo em que ele esteve em Libreville, não o deixaram sair do hotel, tanto assim
que ele nunca mais veio por Libreville. Passou a vir por Angola. Naquele época,
tínhamos dificuldades de transporte, e ele passou a vir por Luanda. Não sei o que
é que pensavam de quem era Paulo Freire, que tiveram tantas cautelas em relação
a ele!
Paulo Freire fez aqui um trabalho extraordinário! Foi criada uma comissão
nacional para a alfabetização, em que faziam parte representantes de todos os
ministérios. Lembro que a doutora Julieta do Espírito Santo, que é médica,
também pertenceu a essa comissão. Havia o Bonfim, que foi ministro da
Educação, e que também pertenceu. Havia um professor, que infelizmente já
faleceu, Jorge Batista de Sousa, que foi uma pessoa extraordinária, que deu a sua
vida para a alfabetização, e que também teve uma participação muito importante,
como o Sinfrônio, que trabalhou na prática com o Paulo Freire. Houve um
indivíduo — não sou capaz de lembrar o nome dele — que esteve em Monte
Mário, um velho professor…
ALBERTO:18 O Gaudino?
ALDA: Sim, ele esteve muito tempo em Monte Mário. E, então, começava o
processo de alfabetização precisamente pelo sul da ilha, na região mais inóspita,
região voltada para o mar, num pequeno lugarejo. Estávamos no princípio,
houve a nacionalização e tudo mais. E havia um indivíduo que estava nessa
pequena povoação, Monte Mário. Era um português, que estava à frente da
dependência de Monte Mário e que tratava ainda os seus trabalhadores da velha
forma, à antiga. E o mais engraçado é que o processo de alfabetização fez com
que a população… como é que se chamava na altura o fato de fazer com que o
indivíduo saltasse, saísse da vossa frente? Até havia um termo especial. Enfim, ele
foi excluído do trabalho que fazia, devido ao processo de alfabetização. As
pessoas começaram a libertar-se mentalmente e a ver que aquele indivíduo os
tratava mal.
SÉRGIO: Isso foi em que época?
ALDA: Paulo Freire veio para cá, não sei, em 1976, 1977. Foi mais ou menos a
essa altura, princípio de 1976.
2. O ENSINO E A IDEOLOGIA DO TEMPO: “NÓS NÃO TÍNHAMOS HISTÓRIA!”
SÉRGIO: E qual era a situação da educação até o período da independência? Como
é que a senhora resumiria essa situação aqui em São Tomé?
ALDA: A maior parte, os chamados professores com curso de magistério
primário, eram portugueses. Havia alguns são-tomenses. E havia outros
professores que se formaram através de uma formação em seus postos escolares.
Esteve aqui um professor, por acaso português, bastante interessante, que era o
inspetor Henriques Carneiro e que veio fazer um trabalho muito meritório com
um grande grupo de professores, que depois foram para outros níveis de ensino e
que começaram com o inspetor Carneiro.
SÉRGIO: O Alberto Neto, aliás, é um deles.
ALBERTO: Essa formação terminou em 1970 e tal.
ALDA: Esse professor de fato deu uma movimentação muito interessante à
formação de professores de postos escolares, o que depois deu abertura para que
eles atingissem outros voos. Há indivíduos que foram ministros e que, ao fim e
ao cabo, começaram pela formação com o inspetor Henriques Carneiro.
Bem, mas acontece que, quando nós chegamos à independência, os
professores portugueses foram-se embora, na sua grande maioria. E, então, havia
necessidade de formar professores, adequar professores, para fazer face à saída de
todos aqueles que saíram, porque não estavam, evidentemente, de acordo com o
processo de independência, o que era natural. E, então, por meio da Unesco, veio
para São Tomé um professor chamado Mérigot, que também veio fazer uma
formação muito interessante com um grupo de professores e de indivíduos que
pretendiam seguir a carreira do ensino. Era uma formação do aspecto social, que
ia ao encontro dos problemas culturais e sociais. E, através da televisão, se fez
uma formação, uma reciclagem, para que os professores fizessem face aos
problemas do ensino.
E, então, o ensino primário começou a avançar muito bem com esse grupo.
Depois criou-se um Instituto Nacional de Educação, em que os professores
formados iam pelas escolas, onde os novos professores que estavam formados
eram orientados por esse grupo de professores.
Acontece que, quanto a mim, cometeu-se um erro. Como os professores
primários que tinham formação estavam a dar boa imagem do seu trabalho,
foram agarrados e colocados em outros níveis de ensino, fizeram com que o
ensino primário baixasse de nível.
SÉRGIO: No tempo colonial, a situação do ensino, da escola em São Tomé e
Príncipe, permitia que a maior parte das crianças frequentasse as aulas?
ALDA: Sim, permitia que as crianças frequentassem a escola. Simplesmente,
aquilo que se transmitia às crianças é que era a ideologia do sistema colonial
fascista. Nisso não há dúvida! Por exemplo, eu tinha uma afilhada que uma vez
chega a casa e diz: “Madrinha, eu estou muito indignada, porque a professora
disse-nos que, em São Tomé, não há frutos!” Frutos são peras, uvas, maçãs. O
resto não são frutos. (riem)
Quer dizer, a educação era canalizada dentro de um sistema que era
necessário manter. Aprendia-se, por exemplo, que os maiores rios que corriam
em território nacional eram o Mondego, o Tejo — depois havia o rio Kwanza
também, em Angola, e que estava como território nacional. As províncias
portuguesas começavam no Minho e terminavam em Timor. Os picos mais altos:
serra da Estrela, pico de São Tomé, e por aí afora. Era um ensino em que se dizia
que nós não tínhamos história, nunca tivemos história, nossa história começa a
partir da chegada dos portugueses. Evidentemente que o ensino refletia a
ideologia do tempo.
3. NA EMPRESA: “A PARTIR DAÍ, A ALFABETIZAÇÃO COMEÇOU A CAIR”
SÉRGIO: Acredita que o trabalho e o apoio que o Paulo Freire deu a São Tomé
contribuíram para uma mudança significativa do ensino?
ALDA: Sim, da alfabetização. A alfabetização cresceu duma forma
extraordinária! Começamos um processo de alfabetização muito interessante, em
que uma grande parte das pessoas que não sabiam ler tinham um grande
interesse na escola, com uma movimentação e tudo mais. E então o sistema de
alfabetização começou de fato a crescer.
Como disse, o fato duma população no sul da ilha, com a mudança de
mentalidade, fazer com que… sanear, o termo utilizado era esse… com que a
população saneasse um administrador duma dependência, dum reduto
agrícola…
SÉRGIO: Sanear aí significava o quê?
ALDA: Correr com ele, irradiá-lo. O indivíduo foi saneado, foi corrido: “ele já
não serve para trabalhar conosco, porque quer utilizar-nos como escravos”. E
então, ali no sul da ilha, a população de Angolares… naquela região, o peixe que
aparece com mais frequência chama-se bonito.
SÉRGIO: Olhando hoje, tanto tempo depois: acha que esse processo teve bons
resultados?
ALDA: O processo teve, foi interessante. Simplesmente, houve uma ruptura.
SÉRGIO: A ruptura foi como?
ALDA: O processo de alfabetização começou, evidentemente, com custos para
o Estado. E então, a partir de uma certa data, quem estava à frente do Ministério
da Educação achou que o processo de alfabetização devia ser feito pelos
indivíduos que estavam à frente dos setores de trabalho. Por exemplo, se o
indivíduo estava à frente duma empresa industrial, esse processo de alfabetização
devia ser conduzido pela empresa que, ao fim e ao cabo, utilizava os serviços
desses profissionais. A partir daí, mais ou menos, a alfabetização começou a
decair.
SÉRGIO: Nós estamos falando de que época?
ALBERTO: No meu entender, da década de 1980…
ALDA: Talvez a partir de 1983.
ALBERTO: Criou-se um Instituto de Alfabetização e, nessa época, em certa
medida, o Estado foi financiando. Mas a alfabetização, como sabe, tem os seus
cursos, os seus gastos. Portanto, enquanto houve financiamento exterior, pôde-se
comprar viaturas, pagar os animadores, os materiais. Quando a economia sãotomense foi…
ALDA: …baixando…
ALBERTO: …o Estado tinha que se libertar de determinados compromissos
para ter um equilíbrio. Esse tempo é que desembocou no processo da
democratização do próprio país. Nesse momento, o Estado passou a se retirar de
muitos compromissos para, em certa medida, equilibrar a economia do país.
Então, a alfabetização foi prejudicada com todo esse processo, que é um processo
natural e normal em qualquer parte do mundo.
É que houve aquela euforia, não é? “Vamos fazer, vamos fazer, sim, senhor!”
E o Paulo Freire aparece, no momento, como alguém que vem, em certa
medida…
ALDA: …dar continuidade ao processo que já tínhamos começado.
ALBERTO: Nós não tínhamos experiência, éramos naives nessa filosofia, nessa
ciência. Então, Paulo Freire dá-nos alguma luz, em termos de metodologia. Não
quer dizer que a gente não soubesse. Sabíamos, já alfabetizávamos aqui em São
Tomé. Havia as tais escolas do mato, onde a gente ensinava a escrever, e tal. Mas
no processo de politizar a população, o Paulo Freire entra ali com uma filosofia
que realmente ajudou muito a população.
4. UM MOSAICO DE CULTURAS. ERROS? “HOUVE FALTA DE CONTINUIDADE”
SÉRGIO: Quando a dona Alda olha para trás e vê o que foi feito em termos de
educação, o que é que acha que se pode aprender como lição? Que erros houve
nesse processo? Que lições a senhora tira dessa experiência de educação em São
Tomé, tendo em vista o fato, por exemplo, de nós ainda não termos,
infelizmente, uma população totalmente alfabetizada, apesar do número
reduzido de habitantes?19
ALDA: Houve a introdução de um processo de alfabetização, de forma que
houve pessoas que foram alfabetizadas e que, depois, pode ser que até tenham
regredido. Mas houve muita gente durante esse processo, do início mesmo da
alfabetização — que nós começamos anteriormente ao Paulo Freire —, que foi
prosseguindo e que depois regrediu por falta de continuidade. Eu sei que, por
exemplo, há uma ONG ou outra que têm tentado prosseguir no sistema de
alfabetização que, evidentemente, não avançou grandemente. Houve falta de
continuidade.
Outra coisa: quanto a mim, a alfabetização é um processo integral. O Paulo
Freire também tinha essa percepção: alfabetização integral, que entra no
cotidiano da vida, acompanha o trabalho de cada um, numa melhoria sob todos
os aspectos da educação, da ciência, da higiene, da alimentação, e em todos os
setores, como, por exemplo, o da comunicação social.
Inclusivamente, havia um programa de alfabetização extraordinário. O
Sinfrônio tinha um programa com uma senhora, que até é angolana e que está cá.
Essa senhora fazia um programa radiofônico com o Sinfrônio, que era ex-tra-ordi-ná-rio! Esse programa de alfabetização falava na linguagem da população
local. Por exemplo, nós que somos um produto da miscigenação de culturas —
gente que veio de Angola, de Moçambique e de outros lados de África — somos
um mosaico de culturas. E, então, há um linguajar próprio de cada região, e eles
utilizavam a maneira de falar de cada população do lugar, para mais facilmente
transmitir a mensagem que o programa transmitia. Ela e o Sinfrônio. O encontro
com o Sinfrônio será muito interessante.
SÉRGIO: Essa alfabetização sempre aconteceu em português? Nunca se tentou
o crioulo?
ALDA: A alfabetização era uma miscelânea do português e do crioulo. Era um
casamento entre o português e o crioulo.
SÉRGIO: E a senhora foi ministra da Educação por quanto tempo?
ALDA: Sei lá, eu fui ministra da Educação no governo de transição, que foi
portanto de dezembro de 1974 até a independência. E depois fui da
independência até o início de 1976. Depois passei para a Informação.
SÉRGIO: E por que é que a senhora saiu da Educação? Preferiu a Informação?
ALDA: Eu não, eu não prefiro, eu ponho-me onde me colocam. E, depois, eu
gostei de trabalhar foi quando era Informação e Cultura. Eu lembro que nós
fizemos um festival de teatro popular, em que levamos pessoas de todas as
regiões do país, grupos de teatro. E fizemos, durante três meses, um festival de
teatro que é uma das experiências mais interessantes que eu fiz na minha vida.
5. FUTURO? “NÃO É SÓ O ESTADO QUE TEM QUE RESOLVER O PROBLEMA”
SÉRGIO: Para terminar, dona Alda, como é que a senhora vê o futuro da educação
de São Tomé?
ALDA: Ih! Isso ia ter eu que falar consigo longamente! Há muita coisa a fazer,
havia muita volta a dar. Quanto a mim, tem que haver uma solidariedade
institucional, em que a escola e a sociedade têm que se dar as mãos. E a
comunicação social aí tem um papel extraordinário. A nossa comunicação social
infelizmente não nos serve. Fazem o que podem, mas falo de uma comunicação
social que sirva ao processo de educação. Há uma apetência extraordinária, toda
gente gosta de ler e de avançar, mas hà um trabalho muito interessante que
deveria ser feito.
E, depois, talvez tenhamos um defeito: quando há mudança de um ministro,
tudo cai por terra, e começa sempre de novo. Esse é um dos grandes defeitos,
esses círculos viciosos que têm prejudicado muito o sistema de educação no
nosso país.
SÉRGIO: Há, portanto, fundamentalmente, um problema político com a
educação em São Tomé e Príncipe?
ALDA: Não sei se será, não é político…
ALBERTO: Não é político, sabe por quê? Nós todos somos testemunhas, nós, os
são-tomenses, de que o Estado tem consciência e diz sempre que o setor social,
educação e saúde…
ALDA: …são prioritários.
ALBERTO: Se você for ler os documentos, está lá sempre escrito. Agora, a
forma de como passar do dizer à prática, isso torna-se um pouco mais difícil. E
depois, há outra coisa, no meu entender: é o povo são-tomense assumir a
responsabilidade que tem na educação dos seus cidadãos. não é só o Estado que
tem que resolver o problema. É inteiramente impossível!
ALDA: Tem que ser a sociedade…
ALBERTO: Toda a gente tem realmente que dar as mãos e primar pela
educação em São Tomé e Príncipe, porque, enquanto as pessoas pensarem que
isso é um problema que o Estado tem que resolver, jamais! Portanto, toda a gente
tem que assumir a sua contraparte, a começar pela família. A família tem que se
responsabilizar pela educação dos seus filhos. E a localidade onde está inserida a
família, os meios de comunicação social…
Nós nos educamos, a educação é feita, nós recebemos as informações pelo
bombardear dos nossos sentidos. A educação entra por aquilo que nós vemos,
pelos nossos olhos, pelos órgãos dos sentidos, que têm que estar sempre
bombardeados por coisas positivas. Agora, se vamos esperar só por aquelas duas
ou três horas de escola, não chegamos lá. Se vamos esperar só por sentar diante
da televisão e ver alguns programas, não vamos chegar lá.
Nós sabemos que, realmente, quase toda gente tem mais ou menos a
consciência do que se deve fazer. Agora, o que há é a necessidade de toda a gente
assumir. É uma questão de conduta, de atitude.
Notas
16
Diálogo registrado na cidade de São Tomé, em 29 de novembro de 2000.
17 Capital do Gabão, ou melhor, República Gabonesa, país da África equatorial próximo de São Tomé e
Príncipe.
Alberto Neto, também ele antigo ministro da Educacáo e, então, responsável por essa área no Unicef em
Sáo Tomé e Principe. Foi gracas a ele que os encontros com Alda do Espirito Santo e Sinfrônio Mendes (cap.
4) puderam concretizar-se.
18
Cerca de 140 mil (Unicef, Sitvação Mundial da Infância, 2003) ou 170 mil, de acordo com estimativa do
Time Almanac, 2003. Boston: Time Inc., 2002.
19
4
SÃO-TOMENSE LEVE-LEVE? “A MUDANÇA TEM
DE SER GERAL!”
1. PAULO FREIRE? “É UM PEDAGOGO, E TAL.” “ELE É QUE VEIO ORGANIZAR AS
COISAS”
SÉRGIO: SINFRÔNIO, O SEU nome inteiro qual é?
SINFRÔNIO: Chamo-me Sinfrônio de Jesus de Nazaré Mendes.
SÉRGIO: Uma questão que me vem imediatamente à cabeça, quando nós
conversamos sobre o Paulo Freire, é evi-dente: como é que você o conheceu?
Como e quando?
SINFRÔNIO: Conheci-o em 1976, quando o nosso governo resolveu
implementar o trabalho de alfabetização. Foi ele o primeiro indivíduo que nos
veio fazer um seminário, dar-nos conhecimentos para a alfabetização. Dantes
nós já tínhamos uma espécie de alfabetização, mas sem aquela regra normal de
educação de adultos. Nós fazíamos ensinamentos iguais aos ensinamentos de
criança. Ele é que veio organizar as coisas de forma a fazer como o senhor
conhece.
SÉRGIO: Nessa época você estava fazendo o quê? Você é professor primário?
SINFRÔNIO: Eu era coordenador do ensino primário e professor. Em 1974, eu
já trabalhava na educação de adultos da era colonial. Quando deu o 25 de Abril,
eu aderi à então associação cívica para o MLSTP.20 E aí eu chamei-me a mim
com o trabalho de alfabetização, como coordenador também. E como a senhora
dona Alda foi a primeira pessoa que dirigiu o setor da educação depois do 25 de
Abril — ela também dava toda a sua vida para isso —, ela formou uma equipe: eu
era o único rapaz, e eram três raparigas.
Nós fazíamos uma equipe de quatro pessoas. Dois davam aulas no período da
manhã e coordenavam de tarde, e dois davam aulas de tarde e coordenavam de
manhã. À noite nós, os quatro, íamos à alfabetização, com ela também. Sabe, ela
é professora, também gostava disso e ia conosco. Foi assim que nós trabalhamos,
até mais tarde, em que se resolveu ampliar esse trabalho. Meteram-se mais
coordenadores, e então nós passamos a ter área distribuída, cada grupo com a
sua zona. E eu fui para a zona da Trindade. Depois, mais tarde, eu vim ser
metodólogo e passei a ser responsável por tudo isso.
SÉRGIO: Antes do Paulo Freire vir aqui, você já tinha ouvido falar dele?
SINFRÔNIO: Não. Eu ouvi falar quase contíguo à chegada dele. Quando a
senhora Alda começou a falar “É um pedagogo, e tal…”, eu ainda não o
conhecia. Depois, mais tarde, é que nos foi apresentado. Mas a gente viu a sua
qualidade.
2. ÁGUA PELAS BARBAS, PRESIDENTE DA REPÚBLICA: “EU CONCORDO COM O
CAMARADA SINFRÔNIO!”
SINFRÔNIO: Eu tinha muitas gravações do Paulo, porque eu tinha o defeito de não
fazer gravações de músicas, senão de discursos. Mas eu tinha filhos pequeninos e,
quando eles cresceram, desgravaram.
SÉRGIO: Perdeu tudo? Não sobrou cassete nenhuma?
SINFRÔNIO: Olha, desgravaram tudo!
SÉRGIO: E o que é que você gravava?
SINFRÔNIO: Discursos dele, aulas, reuniões pedagógicas, tudo o que me
interessava. Por exemplo, houve uma mesaredonda: a primeira em que eu
participei, o Paulo também estava lá. Nós tínhamos um coordenador, um locutor
da rádio, e ele é que estava a dirigir a mesaredonda. Era um indivíduo dos mais
aptos naquele momento. Ele fazia cada pergunta! Tirava água pelas barbas! E eu
ia cair numa dessas. Ele começou a fazer perguntas. Como era pela primeira vez,
eu estava ali todo à vontade a observar. À primeira pergunta que ele fez, eu vi o
Paulo fazer assim…
SÉRGIO: …coçar a barba…
SINFRÔNIO: …um outro assim (olhando de lado), e eu estava a retratar tudo
isso e disse comigo: “Mas esse gajo é terrível!” E o que é que me acontece? Como
eu andei calado, não participei na conversa, a minha pergunta veio diretamente:
“Senhor Sinfrônio, o senhor está calado há muito tempo, ainda não disse nada!”
E lança-me uma pergunta. Eu fiquei a pairar (ri), não contava com aquela
pergunta. Naquele tempo, eu era novo de alfabetização, ainda não tinha assim
capacidade de resposta. Consegui equilibrar-me, mas depois eu fiquei assim:
“Será?”, porque a emissão era direta, e eu fiquei triste: “Com certeza eu disse uma
série de asneiras! As pessoas estavam lá a ouvir e isso diminui a minha
personalidade!”
Chega a noite, aquilo tinha um ato em que o presidente da República
participou. E qual não foi o meu espanto quando eu ouço a dizer: “Eu concordo
com o camarada Sinfrônio!” (ri)
SÉRGIO: Quem disse isso?
SINFRÔNIO: O presidente Pinto da Costa. Ora, senhor, eu fiquei tão contente!
(ri) Eu lembro isso. Eu só tenho o magistério primário, mas aprendi muito com o
Paulo. A sua maneira de trabalhar, a sua simplicidade, a sua prática pedagógica.
Depois de 1990, fui dar aulas na roça Monte Café, e francamente ainda utilizei
esse método. Eu já não estava a par dos métodos usados naquele momento, usei
esse método, e surtiu efeito. Quer dizer: eu, como professor primário, como tinha
muita prática de educação de adultos, que tinha o seu método próprio, fiz uma
fusão de tudo isso e tive bons êxitos.
3. EMPRESAS, EMPRESINHAS, PADARIAS: “E, ASSIM, ALFABETIZOU-SE MUITA
GENTE!”
SÉRGIO: O que é que você se lembra mais dele naquela época? Eu sei que, quando
vinha, passava algum tempo aqui. Como é que funcionava a equipe e o trabalho
com ele?
SINFRÔNIO: Ele logo que chegasse fazia as suas voltas com o governo,
encontrava-se com o ministro da Educação, e então reunia conosco, primeiro
com a direção. No início não havia direção, porque era eu, uma irmã do senhor
Pinto da Costa e um colega. Nós éramos uma equipe de três, uma comissão
administrativa, não tínhamos diretor. Mais tarde, o diretor geral da educação
passou a ter o seu escritório lá, e essa comissão caiu. Então ele escolheume para
ser chefe de departamento. Mas como o outro colega era mais velho, eu disse-lhe:
“É bom que você escolha ao senhor Jorge, eu fico aí.” (ri) E passei a ser
metodólogo.
Fazíamos um seminário, o Paulo dirigia, e ele testava aquilo que foi o plano
anterior. Procurava saber até que ponto nós cumprimos o programado. E, então,
a partir desse momento, elaborávamos outro plano para x tempo, e quem punha
o plano em ação éramos nós. Pedimos à Educação um certo número de
professores primários e capacitamo-los, como fomos capacitados pelo Paulo. E
eles é que ficaram como coordenadores nas empresas. Tínhamos um
coordenador para cada empresa agrícola e um também para empresas aí da
cidade, empresinhas, como padarias etc.
Com esses coordenadores nós fomos capacitando animadores. Em períodos
de férias, em vez dos alunos irem para casa — principalmente alunos do liceu —
nós íamos capacitá-los para alfabetizar. Nas empresas, escolhiam-se
trabalhadores mais destacados, que tivessem algum conhecimento, e então esses
é que eram capacitados para poder alfabetizar. E assim alfabetizou-se muita
gente!
SÉRGIO: Você ficou satisfeito com o trabalho de alfabetização que foi feito?
SINFRÔNIO: Por que não? Se nós tínhamos um elevado nível de analfabetismo,
isso fez com que nós debelássemos essa situação. Só que houve uma situação que
se adicionou a isso. É que nós tivemos uma crise em 1983. A grande campanha
começou em 1980, 1981. Nós vínhamos fazendo essa alfabetização com os
alunos. Quando se fez a grande campanha, já deixou de ser só alunos para ser
todo mundo que tivesse vontade de ensinar.
SÉRGIO: Como assim, “só alunos”? Você fala dos alunos que, durante as férias,
eram formados como animadores, como professores?
SINFRÔNIO: Não era só. Esses eram um grupo de pessoas que ajudavam. Nós
tínhamos trabalhadores também, de boa vontade, pessoas que se interessavam e
queriam ensinar, que se ofereciam para serem capacitados, para poderem ajudar.
E havia professores, nossos colegas, que não eram coordenadores como nós, mas
que, nas suas horas livres, também alfabetizavam. Nós tínhamos alfabetização em
todas as escolas primárias, durante a noite, claro. Por isso eu digo que a
alfabetização aqui em São Tomé, para nós que iniciamos a alfabetização, isso é
coisa extraordinária!
4. A SEMENTE, A PLANTA E O FRUTO: “SÓ QUE, DEPOIS DAQUELA CRISE, NÃO
CHOVEU!”
SÉRGIO: Olhando para trás, e com base na experiência que depois vocês
adquiriram, o que é que você tira como lição, de problemas que podem ter
acontecido, de coisas que vocês fizeram e que talvez fosse melhor ter feito de
forma diferente? Enfim, que lições você tira dessa experiência, do trabalho que o
Paulo ajudou a desenvolver aqui?
SINFRÔNIO: Aí há muito que dizer, e eu tenho muito que ver com isso. Em
primeiro lugar, ajudou-me a ser mais social, porque, trabalhando na
alfabetização, muitas vezes em casa, por qualquer motivo estando mal disposto,
eu vou à alfabetização e venho satisfeito. Em conversa com os participantes, as
questõe s que eles apresentam, muitas vezes desavenças entre eles — e a gente
tem que entrar para poder sensibilizá-los a tomar um rumo melhor —, isso para
mim era uma satisfação.
Além disso, o desenvolvimento que eles foram revelando também é outro
ponto, porque é a mesma coisa que se o senhor tivesse uma certa cultura
agrícola: o senhor lança a semente, a semente está a produzir, depois faz
transplantação. Daí a pouco, a planta dá fruto. Aí não há ninguém que não se
sinta feliz nisso.
Só que, depois daquela crise, não choveu. Nós passamos a ter fome, as
empresas quase já não tinham de comer, as pessoas fizeram um grande esforço
para irem para a escola. Há pessoas que começaram a rejeitar a escola, e todos
aqueles que não queriam a escola começaram a ser inimigos da escola, a
aconselhar a outros a, em vez de ir para a escola, ir trabalhar, porque esse tempo
que ele está a perder na escola e a força que ele está a gastar, quando vai para o
trabalho já não consegue trabalhar. (ri)
Isso custou-nos um bocado caro, porque o número de alunos começou a
reduzir. Quer dizer, esses indivíduos começaram a virar a cabeça aos
animadores. Principalmente os responsáveis, porque, sabe?, o senhor é feitor
duma empresa; então, sempre prima pela mais-valia, mais trabalho, maior
produção, maior produtividade. Ora, os trabalhadores passaram a ter aula dentro
do horário de trabalho, e os responsáveis, não contentes com a redução de
tempos que os participantes tiveram — e os animadores também — começaram
a virar a cabeça a essa gente, aproveitando com a situação da crise. Toda gente
começou a afastar-se.
Levantava um pó do deserto do Saara, e esse pó chegava até aqui em São
Tomé. Enquanto houvesse essa poeira no ar, o ar aquecia-se demais. Isso é
partícula de terra, então o raio solar não só aquecia o ar como aquecia a terra.
Aquilo fez com que as nuvens se dissipassem. Só sol, não havia chuva. Nós só
passamos a ter chuva quando veio uma trovoada mais terrível, que empurrou
essa poeira toda! As folhas ficavam todas empoeiradas. Nós temos uma zona em
que chovia todo o ano. Deixou de chover, o chão até abriu gretas. Não havia
comida, principalmente. As plantas do campo, as mandioqueiras secaram.
Batateiras, não se via nem corda. Assim, muitas gentes começaram também a ter
certa resistência. Mas depois de ter passado essa crise, alguns ainda continuaram.
SÉRGIO: Essa crise durou até que ano?
SINFRÔNIO: Durante os anos 1982, 1983, para que 1984 a seguir houvesse
chuva todo o ano também. Para superar esse tempo todo, o senhor são Pedro
mandou-nos vir a chuva todo o ano! (ri) E assim nós continuamos. Fomos
fazendo novos livros, conforme a fase em que íamos, até 1988, em que aquilo
começou a cair mesmo. A cair, porque o governo passou a ter dificuldades. Já
não havia aquele apoio correto que havia antes. Então, os alunos começaram a
diminuir. Nós passamos a não ter meios de transporte, faltavam-nos outros
meios.
E depois, a crise política também: a própria política começou a mudar. O
MLSTP começou a fazer intenção de mudar. Há uns que dizem agora que eles é
que mudaram. Não, não. O próprio MLSTP é que viu que as coisas estavam a
correr mal e resolveu fazer uma mudança. Criando condições para que houvesse
outros partidos, com ideias de várias pessoas, talvez a coisa pudesse mudar.
Então foi assim. Só que, depois da mudança, já não houve alfabetização.
Há pouco tempo, o penúltimo ministro, Albertino Bragança, tinha dito que
tinha um projeto de alfabetização. Até prometeu-me que eu ia dirigir a
alfabetização. Mas depois o governo caiu, fez-se nova eleição, e até hoje não se
falou mais nada.
5. A ALFABETIZAÇÃO CAIU: “FALTA CONSCIENTIZAÇÃO”
SÉRGIO: Quando se olha para as estatísticas com relação à alfabetização de adultos
em São Tomé — eu estava consultando num desses dias uma das publicações do
próprio Unicef a respeito disso —, vê-se, por exemplo, que em 1991, a taxa de
alfabetização girava em torno de 73%. Em 1995, havia subido para cerca de 76%,
e em 1997 caiu de novo para 74%. A que é que se deve isso? Se nós
considerarmos que a população de São Tomé não é assim tão grande — nas
proporções brasileiras, por exemplo, caberia provavelmente a população inteira
de São Tomé no estádio do Maracanã…
SINFRÔNIO: Num estádio mais pequeno até, talvez. (ri)
SÉRGIO: Por que, você acha, é tão difícil assim se conseguir a eliminação do
analfabetismo? Aqui aparentemente seria muito fácil, mas não se consegue. Por
quê? A que é que você atribui essa dificuldade toda?
SINFRÔNIO: Eu digo-lhe algo, isso é meu conceito. Eu já estive em Angola, já
andei, eu tenho por defeito andar. As partes de Luanda que eu conheço eu
conheci andando. Eu digo aos nacionais de São Tomé que São Tomé não tem
lugares longe. Eu saí da cidade de Bissau às sete horas, com o carro a correr na
velocidade máxima, e nós só chegamos a Mansoa, salvo erro, às onze horas.21
Faça ideia: de sete às onze a correr, à velocidade. Então, aí é que há lugares
distantes. Em São Tomé, não dá para andar todo esse tempo àquela velocidade. E
isso é que é preciso que as pessoas tenham incutido dentro de si: que nosso país é
uma casca de noz. Desde que a gente pense: um ministro da Educação de
Angola… nem vamos a Angola, porque Angola é catorze vezes maior que
Portugal… um ministro de Portugal tem muito mais com o que se preocupar do
que um ministro da Educação daqui.
Eu acho que tudo o que se faz aqui é deficiente. É o meu modo de ver. E
deficiente porque, se nos esticarmos um bocado, essas coisas que para nós são
dificuldades tornam-se fáceis. Eu às vezes digo aos meus filhos: quando estive na
alfabetização, eu fiz muito esforço. Eu dava aula, trabalhava de manhã, de tarde e
de noite — ainda não tinha concluído o quinto ano, hoje chama-se nona classe
— e ainda conseguia estudar. Houve um momento em que, para fazer os exames,
fiz-me autodidata. Eles agora têm uma série de livros que podem consultar, e
vêm me dizer que perderam no exame, que tal professor reprovou porque não
gosta deles, arranjam argumentos. Ora, quando um aluno me vem dizer isso, eu
digo que teorias fúteis eu não aceito.
Se todos nós tivéssemos a trabalhar com a ideia de que São Tomé é pequeno,
seria realmente pequeno. Só que o que estamos a ver é que parece que os
indivíduos ainda não saíram de São Tomé. E, no entanto, muita gente já saiu:
eles fizeram curso lá fora, estudaram em países grandes, eles sabem que o que
está lá não é o que está cá. Só que consideram aqui grande (ri), e, pronto, o
trabalho fica difícil.
SÉRGIO: No fundo, o que é que falta? Falta mesmo interesse em acabar com o
analfabetismo?
SINFRÔNIO: Faltam certos meios, falta conscientização. O senhor, que está fora
do Brasil há muito tempo, já ouviu noticiários, já leu e já viveu as dificuldades
africanas. Todas as dificuldades que a África tem não são dificuldades. Outras
são desleixos. O caso da luta de Angola: é a força, o interesse do poder, porque se
a Unita e o MPLA se resolvessem… Olha, no princípio da independência, se
Agostinho Neto, Holden Roberto e Savimbi pensassem que eles estavam a lutar
para libertar o seu país, país deles, e procurassem uma plataforma de
entendimento, o que é que Angola seria hoje? A questão é que eles não pensaram
nisso. “Eu tenho que ser presidente!” “Eu é que terei que ser!” Isso é que deu: até
hoje está-se a matar tanta gente, a destruir tanta infraestrutura, só, para nada!
6. UM DEFEITO E O MEDO DE FALAR: “AS VERDADES ÀS VEZES PICAM”
SINFRÔNIO: Embora, saiba muito bem que os nossos países — o seu também —
não deixam de ter pressão sobre nós, porque há os ocidentais que fazem os seus
planos e atiçam-nos. Nós também, sei lá como, aceitamos e desestabilizamos os
nossos próprios países. Caso não, seria fácil: eu saí da escola sem fazer a quarta
classe e não fiz exame. Meti-me na vida afora, andei a deambular por aí. Quando
resolvi estudar, fiz até a nona classe. Fui professor de posto e fiz magistério
primário. Fui diretor da educação de adultos na era colonial, num momento em
que havia exigências, porque aqui agora não tem exigências. Eu consegui, na
nossa era, agora depois da independência, ser coordenador da educação
primária. E durante o tempo em que coordenei, nenhum professor se zangou
comigo. Os meus colegas convidavam-me para assistir às suas aulas, para dar
opinião, ensinar-lhes. Eu dizia: “Tenham paciência, aquilo que eu sei é aquilo
que vocês também sabem, não?” Não tive dificuldades, graças aos céus, porque
eu dava o máximo possível.
Por que é que o Paulo considerou-me? Nós, quando estávamos no seminário,
era uma data: cada um planificou o seu trabalho e foi apresentar. E o que é que
aconteceu? O Paulo dizia: “Sinfrônio, tu és formidável!” (ri) Eu, Jorge e Maria
nos destacamos, primeiro porque nós também já tínhamos prática pedagógica.
Mas nós fomos os melhores porque tentamos nos esforçar. Não se consegue nada
sem esforço.
Às vezes eu tenho medo de falar, porque as verdades às vezes picam. Eu não
concebo certas coisas. Aqui tem-se o defeito de: aquilo que eu posso tratar
consigo, se o senhor for diretor, eu vou tratar com o ministro. O ministro não
tinha nada que perder tempo a tratar coisas que o diretor deve tratar. Tem
pessoas aptas, fidedignas. Eu sou ministro, há um senhor que é diretor, e eu
confio no senhor fulano. Ele é que é responsável por aquilo, tem que dar o
máximo para que as coisas corram bem.
E há uma mania, aqui, de se atribuir certos males a determinadas fases da
vida. Depois, também as pessoas se aproveitam disso, estamos mais por causa
disso, e nunca mais se sai daqui.
7. O CRIOULO E O PROBLEMA DA LÍNGUA: “NÃO RESPONDE, NÃO RESPONDE!”
SÉRGIO: O problema da língua nunca chegou a se pôr? O fato de que em São
Tomé fala-se o crioulo, e nem todos falavam português: como é que vocês
resolveram essa questão da língua?
SINFRÔNIO: Nós começamos falando em língua nacional, porque onde nós
fizemos o primeiro seminário foi lá em Monte Mário, na zona de Porto Alegre. E
uma zona chamada Vila Tirumba. Nós fomos fazer lá porque era uma zona à
beira-mar, onde as pessoas viviam mal, viviam retraídas. Então nós tentamos
sensibilizar essas pessoas a virem à sociedade. E eles conseguiram, até. Imagina:
indivíduos à beira-mar que ainda compravam peixe! Nós tentamos levá-los a ver
que é ridículo que eles comprem peixe. E preciso que eles busquem peixe para os
outros, porque eles são indivíduos à beira-mar, são pescadores, descendentes de
pescadores. E eles acabaram por ter até máquina à popa e ser hoje pescadores.
Portanto, se eles conseguiram isso, foi com o esforço que nós fizemos.
Veja só: quando nós fomos para lá, eu domino a língua forra, e percebo
alguma coisa da língua angolar. O outro meu colega não percebia nada do
angolar, e ele estava a falar, falar, não sei o quê, e tal. Um angolar baixa a cabeça
assim e diz: “Não responde, não responde!” (ri), mas na língua deles. E aquilo foi
transmitido e retransmitido: “Não responde, não responde!” O homem falou,
transpirou. Nada! Depois eles dizem qualquer coisa que não se entende, entre
eles. Eu calei-me, não disse nada ao meu colega.
Dia seguinte, eu é que seria o orador. E comecei a falar, mas antes disselhes:
“Meus senhores, nós todos somos são-tomenses. E saibam que há são-tomenses
com tom de pele branca. São filhos de português ou, sei lá, de qualquer branco
que deixou aqui filho. Somos todos são-tomenses. Há quem é de origem não-seiquê, veio da costa africana, e hoje já não há essa gente que veio. Somos todos
daqui. Ontem, quando o meu colega estava a falar convosco, vocês disseram
assim: ‘Não responde, não responde!’ Eu ouvi. Não disse nada, mas percebi. Eu
sou daqui e percebo toda língua que se fala cá. Então, hoje, tenham paciência: eu
não saio da minha casa para vir brincar convosco, e vocês também não podem
brincar comigo. Nesse momento nós viemos trabalhar, e trabalhar para vocês,
não é trabalhar para nós, porque aquilo que nós queremos ensinar-vos nós já
sabemos”.
Fui diretamente. Acabou. É assim que eu trabalho, e só assim. Se há um
senhor a trabalhar comigo, e eu achar que o senhor tem certas dificuldades, no
que eu puder eu ajudo. Mas se está a fazer nhem-nhem-nhem, eu digo-lhe
diretamente: “Ou trabalhamos ou não trabalhamos!” (ri) É isso.
8. A MENINA ATRASADA E O ANIMADOR: “ADULTO? NÃO PODES ZANGAR
ADULTO”
SÉRGIO: Eu me lembro que, na época em que eu conversei com o Paulo sobre a
experiência dele em São Tomé, ele me falou de um episódio de que eu não sei se
você chegou a participar. Eu tenho impressão de que foi aqui mesmo, na cidade
capital. Foi a questão de um atraso com um animador. O Paulo conta exatamente
o seguinte:
O comportamento era o seguinte: uma menina chegou atrasada, uma mocinha, cinco minutos, à
reunião. O animador parou os debates, houve um silêncio, ele olhou para ela e disse: “Camarada,
cinco minutos! A camarada possivelmente estava conversando sobre maluqueiras, maluquices, no
portão aí do prédio, quando nós aqui começávamos já a trabalhar. Camarada, você precisa saber
que a reconstrução nacional não pode ser feita sem disciplina, trabalho e unidade. Eu espero que a
camarada tome consciência da sua falta de responsabilidade e não repita o que acaba de fazer.” A
menina, de pé, pediu desculpa e sentou-se, muda. Eu não disse coisa nenhuma, não podia dizer,
nem devia, a não ser pensar. Um sujeito excelente o animador, mas duro, muito duro, com uma
autoridade que ele, eu quase diria, impunha. Mas não era um mestre-escola. Era um político. É
interessante essa nuança, sabe! Era um político que falava. Nos debates, ele não perdia uma chance
para falar da responsabilidade do povo na reconstrução do país, dando uns exemplos bem
populares, bem concretos, com relação à situação política do momento, lá.
Na saída, um dos membros da Comissão Nacional me disse: “Camarada Paulo Freire, eu acho
que é preciso chamar a atenção desse animador. Ele é muito competente, muito bom, muito
esforçado, e faz isso tudo sem ganhar um tostão. Ele dá o exemplo mesmo, ele trabalha toda noite,
não ganha nada, o Ministério não tem dinheiro para pagar a ele. Mas nós precisamos chamar a
atenção dele, porque ele está muito duro.” O outro, nacional também, possivelmente dizendo isso
muito mais para diminuir em mim o que ele parecia que estava vendo, uma decepção. Eu disse:
— Amanhã eu queria conversar com vocês da Comissão. A gente tem uma reunião às nove
horas, então vamos começar por isso que eu vi hoje.
Depois vi outros círculos, fui para o hotel e comecei a pensar.
No dia seguinte eu me reuni com eles e disse:
— Olha, eu estou totalmente de acordo com o animador.
Você se lembra desse episódio, Sinfrônio?
SINFRÔNIO: Sim, esse animador chamava-se Narciso. Esse Narciso era
excelente, só que de vez em quando ele excedia. Ele foi capacitado por mim.
Capacitou-se, adquiriu conhecimento pedagógico. Ele era político mesmo.
Houve um momento em que tive que chamar-lhe a atenção: “Eu gosto da tua
atitude, mas tu não deves exceder, porque adulto?, não podes zangar adulto. Tu
falas, sim, com uma certa reprimenda, mas não podes insultar adultos, porque
eles não aceitam.”
9. BRASILEIRO, NÃO SER DA TERRA? “A QUESTÃO É SABER SER”
SÉRGIO: O Paulo Freire teve alguma dificuldade aqui, pelo fato de ser brasileiro,
de não ser da terra?
SINFRÔNIO: Não! O Paulo tinha muito jeito, nunca teve dificuldades. O Paulo
parece que era são-tomense, adaptava-se a tudo. Já veio cá, à minha casa. Há um
chileno chamado… ele estava na Suíça.
SÉRGIO: …Antonio Faundez?
SINFRÔNIO: Faundez, sim, sim. Ele também veio praqui. Essa gente era
simples, e nós fizemos um almoço aqui, comemos. Eram simplíssimos. A Kimiko
também.
SÉRGIO: E qual foi a última vez que você viu o Paulo?
SINFRÔNIO: Ih! Não lhe digo x tempo, porque o Paulo chegou um momento
em que não pôde vir. Ele teve que mandar Kimiko e a irmã, já esqueci-me do
nome. Eram três indivíduos: duas irmãs e um homem também. Eles vinham
sempre, mas quem ficava mais era a Kimiko. Depois ele passou a vir de vez em
quando, e chegou um momento em que já não veio.
Mas ele escrevia-nos. Quando ele ocupou um lugar, parece, numa
universidade, não sei, escreveu. Contava-me o desenvolver do Brasil. Escrevia
sempre que pudesse, mandava pelo menos um cartão. Sabe, a pessoa que sabe
ser… A questão é saber ser, porque há pessoas que põem dificuldade em tudo.
Nós é que devemos ultrapassar as dificuldades. Se pomos a dificuldade na testa,
ficamos aí com a sombra da dificuldade, e nunca mais ela acaba. Eu, por
exemplo, estou doente, e estou cá, a aguentar e a falar consigo. (ri)
10. FREIRE, FREINET, PLACAS E MULAS: “OS BRASILEIROS SÃO FORMIDÁVEIS!”
SÉRGIO: Quais são as coisas que hoje, com essa distância toda, você acha que
aprendeu mais, no convívio com o Paulo Freire?
SINFRÔNIO: Aprendi muito! Nós, quando fizemos o curso de professor de
posto, o nosso professor tinha o método de um francês chamado Freinet.22 Esse
método era proibido na zona portuguesa. Os portugueses nem gostavam que
falassem de Freinet, que era revolucionário. E, então, ele, para não fazer saber
que ele estava ao lado do Freinet, tirava os seus apontamentos e passava-nos os
apontamentos, só, e sse inspetor que nos deu aula. Nós trabalhávamos como se
fôssemos mulas, conhece mula? Têm uma placa que punham assim nos olhos,
porque as mulas mordem. E a gente andava assim, porque se mula vai com cara
aberta, e se passa ao lado de alguém, tem mania de morder. Não sei se no Brasil
também têm isso.
Eu considerava o nosso saber como um labirinto só, em que nós nos
fechamos. Fora daqui não sabíamos o que estava lá. Depois, com o Paulo Freire,
eu comecei a ter um visual mais amplo. Ele pôs seu método. Kimiko, quando
apareceu, usou seu método. Obrigava-nos a ler, contava-nos histórias. Os
brasileiros são formidáveis! Para a pedagogia, eu digo-lhe que são muito mais do
que os portugueses. Embora viessem de Portugal, são muito mais do que eles.
Eu tinha dificuldades em inglês. Uma vez recebi uma cassete de aulas à
distância, do Brasil. Aquilo saía semanalmente. O que aprendi sozinho com essa
cassete! Os brasileiros utilizam os métodos mais simples para a gente aprender.
Eu era mal em química, muito deficiente, e não podia ajudar aos meus filhos.
Falei disso à Kimiko, e ela trouxe-me um livro de química. E eu passei a ver isso
assim, claro! Portanto, os brasileiros têm muitos métodos, e métodos fáceis. E aí
eu fui adquirindo essa capacidade.
Trabalhar com adultos não é trabalhar com criança. Criança o senhor pode
dar uma reprimenda, o adulto enerva-se. Então o senhor tem que ter modos
próprios para adulto e modos próprios para criança. Mas se o senhor trabalhar
com criança como trabalha com adulto, como respeita adulto, o senhor terá
melhor proveito ainda.
SÉRGIO: Você chegava a discutir com o Paulo, ou simplesmente ouvia?
SINFRÔNIO: Não! Primeiro, eu nunca fui desse tipo, não gosto de engolir só.
Isso é da era colonial, em que se engoliam as coisas. Eu também tinha que
pensar. O senhor transmite, eu ouço, eu cozinho e reajo. E o Paulo também não é
desses que atira só. Nos seus dizeres só, se a gente for assim, tem que mudar. Ele
incentiva o indivíduo a mudar-se. E, outro ponto: eu nunca vi Paulo tomar uma
decisão sem consultar-nos. Primeiramente ele consulta a sua mulher, a esposa
dele: ideia dele, ideia dela. São coisas que a gente aprende também.
SÉRGIO: Ele chegou alguma vez a fazer referência a esses diálogos que nós
tínhamos tido?
SINFRÔNIO: Consigo? Ele falava sempre no seu nome. Sérgio? Era sempre,
principalmente comigo, porque eu enchia-lhe de perguntas. (ri) E ele dizia
sempre, fazia um paralelo consigo e comigo. Só que eu não conhecia o tal Sérgio.
Ao falar agora é que vim lembrar desse Sérgio.
11. FUTURO DEFICIENTE, EXEMPLO DAS CEGONHAS: “O SIM PARA AFIRMAR E O
NÃO PARA NEGAR”
SÉRGIO: Quando você olha para o futuro, qual é a sua ideia sobre a educação em
São Tomé e Príncipe?
SINFRÔNIO: Eu vejo que, bom, o futuro há de vir, mas só que, conforme será,
eu acho que o futuro será deficiente, tendo em conta aquilo que nós falamos: da
maneira de trabalhar, da maneira de se interessar pelas coisas. Se nós
continuarmos com a lentidão, nós não avançaremos. Nós temos que nos
desembaraçar, nos interessar.
Eu não sei se nota que, nos Estados Unidos, interessa-se por tudo aquilo que
nós aqui dizemos que não é nada, não há valor. Eu vou lhe contar um fato. Eu vi
um tornado. As pessoas utilizam essa expressão: “um tornado”. Aquilo era um
vento! Trouxe da costa africana algumas aves, cegonhas. Nós não tínhamos
cegonha aqui. Eu vi sobre um imbondeiro23 seis cegonhas. E se nesse lugar tinha
seis, sei lá quantas estavam noutros lugares. Vieram com o vento.
SÉRGIO: Quando foi isso?
SINFRÔNIO: Isso foi mais ou menos na década de 1980. Eu fiquei tão
impressionado! E procurei acompanhar esses bichos, mas não tinha condições de
impedir que eles fossem abatidos. Ninguém se preocupou com a existência
desses coitados. Foram abatidos pelos caçadores, todos! Hoje, fariam parte da
fauna são-tomense. E, até hoje, quantos desses bichos não estariam já em São
Tomé? Isso é um exemplo que lhe dou.
Se fosse nos Estados Unidos, haveria peritos aí atrás desses bichos, haveria
decreto-lei que impedisse que caçassem o bicho. Aqui não se liga a nada! Onde as
pessoas acham que tudo está bom, é difícil. Eu não quero ser pessimista, mal
dizer do meu país, mas é o que estou a ver.
Se eu trabalho para si, e o senhor paga-me, eu tenho que fazer valer aquilo
que o senhor me dá. Como é que eu faço? Eu dou-lhe o trabalho que lhe agrada,
porque o senhor paga a mim normalmente. Ora, quando o senhor paga e não vê
rendimento, qualquer dia o senhor convida-me a sair. É isso, eu sou desse feitio:
eu sou o sim para afirmar, o não para negar. Quando é assim-assim, eu não
gosto. Veja que ontem eu estava quase a lhe dizer que estava doente. Mas
disseme: “não, o homem não precisa saber da minha doença. O que interessa é
que veio procurar-me.” (rimos) Só que, por azar, cheguei à noite e piorei.
12. DEMOCRACIA DO DEMO, LEVE-LEVE? “A MUDANÇA NÃO É SÓ POLÍTICA”
SÉRGIO: Dias melhores virão. Mas, a propósito da educação em São Tomé e
Príncipe, você não acha que o problema principal continua sendo a escola
primária?
SINFRÔNIO: Não só. E a primária, digo, porque a primária é a base. E eu não
diria que se começa dos alunos. Começa dos pais, da sociedade. Estive a falar
com um dos políticos e disse: Eu, se fosse quem de direito, a primeira coisa que
tentaria fazer é disciplinar a sociedade. Depois disso, se a sociedade estiver
disciplinada, os pais vão interessar-se em mandar os alunos à escola, vão se
preocupar em ajudá-los em casa. Enfim, vão solicitar do professor aquilo que eles
devem fazer para ajudar os alunos.
E, então, exigir dos professores. Não há exigência agora. Há que exigir mais
dos professores. E não pensar que assunto de educação só professores,
metodólogos e pedagogos é que consertam, não. Não esperar o consertar. Fazer
obras preventivas, prever o mal e evitar que ele aconteça. Deixar vir o mal para
depois vir consertar, eu não vejo nisso uma atitude boa. Mas quem sou eu? (ri)
Assim eu vejo, porque a educação é deficiente. Veja só: este ano as aulas
praticamente estão iniciando esta semana. Já passou um mês e tal! Se eu fosse
ministro da Educação, tinha-se que dar aula completa, o plano tinha que ser
cumprido. Se nós perdemos um mês, temos que dar mais um mês. Mas eu sei
que aqui não vão fazer isso. A democracia aqui é vista doutra maneira. Essa
democracia, como eu vejo aqui, é a do demo. Não há democracia nenhuma no
mundo em que não se faça exigência, em que não haja rigorosidade. Mas, aqui, é
“deixa passar, para não ofender…”
SÉRGIO: Leve-leve!
SINFRÔNIO: “Leve-leve”, eu não gosto disso. Eu sou são-tomense, natural, e
não tenho descendência de perto — que eu saiba — que seja ou foi angolano ou
congolês. Eu sei que muito longe havia, mas avô, bisavô, todos foram sãotomenses. E eu não gosto dessa expressão, “leve-leve”. Já vi cubanos a
trabalharem, já vi portugueses a trabalharem, já vi muitas raças a trabalharem;
chineses, por exemplo, ou coreanos, depois da Segunda Guerra. Trabalharam
muito. O senhor vê em filmes o trabalho extraordinário que faziam: acarretavam
terra dum lugar para outro, para poder pôr sobre as pedras e poder cultivar. Em
São Tomé não fazem isso.
Se a educação primária for deficiente e as outras fases também, vai-se ficando
coxo. E quando se chega à universidade, às vezes perde-se o primeiro ano, ou
então faz-se muito esforço. Olhe, eu não tive tempo para ajudar bem os meus
filhos. Um está na universidade, em Évora, Portugal. E ele escrevia-me: “Pai, não
tenho tempo, não se aborreça comigo, porque eu tenho que esforçar-me.”
Porque, primeiro, ele chegou lá tarde, já tinham iniciado as aulas. Segundo,
aquilo que ele via aqui não era o que ele encontrou lá. A irmã, que estava na
França, diz-me: “Pai, o francês que eu falava em São Tomé (ri) era praticamente
zero, perto do que vi em França!” Mas, se houvesse uma coerência em São Tomé,
rigorosidade, fazer as coisas bem para os alunos continuarem, habituarem com
um trabalho de base, seguro, aí seria uma outra maneira de agir.
É por isso que eu digo: à minha maneira de ver, aí tem que mudar. A
mudança não é só política, tem que ser duma maneira geral. Posso avançar, por
exemplo, que chegou-se um momento em que via-se pouca gente na alfab
etização. Nós não continuamos as fases todas e temos analfabetos desse grupo
agora. Esses analfabetos são analfabetos de retorno, porque não atingiram uma
fase em que pudessem ler tudo e não esquecer.
Mas nós tivemos também muitos que conseguiram. Por exemplo, eu tenho
um colega que hoje é professor e que foi nosso aluno da alfabetização. Ele fez a
quarta classe, fez exame com esse livro…
SÉRGIO: (lendo) “A luta continua — quinto caderno de cultura popular”.
SINFRÔNIO: …e meteu-se num curso de adulto à noite, fez sexta classe,
conseguiu fazer a sétima — mas assim um bocado fraco — e quis ser professor.
Foi ter comigo, eu disse: “Não, requeres, vão ter um seminário em pouco tempo,
e você vai. Se passar…” Quando chegou ao fim, ele disse que não tinha nota
suficiente. Eu disse-lhe: “Olha, pá, tu vais pedir um lugar distante.” Ele pediu
Porto Alegre. Foi prali, trabalhou dois anos e, no ano seguinte, veio para a
capital, e é professor. Hoje já tem magistério primário.
Isso são pontos em que nós vemos que fizemos alguma coisa. Por exemplo,
há muitos oficiais. Há um que penso que hoje é major e que foi aluno meu na
alfabetização. Além dos que vêm do ensino primário; o próprio ministro da
Educação foi um dos alunos que passaram pelas nossas mãos. Portanto, para
mim, isso é tudo. Só é pena que agora a gente já não pode fazer mais nada. Com
essas exigências do Banco Mundial, nós tivemos que vir para casa.
SÉRGIO: Por quê? Que exigência?
SINFRÔNIO: Que as pessoas com uma certa idade, 58, ses-senta, se retirem.
Notas
Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe, inicialmente constituído como Comitê de Libertação
de São Tomé e Príncipe no interior do país, em setembro de 1960, e rebatizado como MLSTP a partir de
1972. Em janeiro de 1973, é reconhecido pela Organização da Unidade Africana (OUA) como autêntico
representante do povo de São Tomé e Príncipe.
20
Talvez ofuscado pela notória pequenez de São Tomé (960km2) mesmo diante da modesta dimensão
territorial da Guiné-Bissau (36.125km2, ou seja, pouco maior que o estado de Alagoas e cerca de 232 vezes
menor que o Brasil), neste ponto Sinfrônio se equivoca: a distância entre Bissau e Mansoa não chega a
sessenta quilômetros.
21
Célestin Freinet (1896-1966). “Professor primário (1920), fundador da Cooperativa do Ensino Leigo. Foi
levado a praticar uma pedagogia que, recusando o autoritarismo como o ‘laissez-faire que não resolve
problema nenhum’, tentou conciliar a teoria e a prática, promover a formação da personalidade bem como
o trabalho em grupo, desenvolvendo os ‘métodos ativos’ (tais como o da imprensa na escola [jornais
escolares, correspondência interescolar] e o do texto livre). Tendo-se demitido de seu posto em
consequência de dificuldades com a municipalidade de Vence, criou a sua própria escola (que logo tornouse uma escola experimental). Suas posições, expostas em diversas obras (L’Éducation du travail, 1947, Essai
de psychologie sensible appliquée à l’ éducation, 1950), inspiraram numerosas reformas do ensino, tanto na
França quanto no exterior.” (tradução livre) in Le Petit Robert des Noms Propres. Alain Rey et al (org.). Paris:
Dictionnaires Le Robert, 2000, p. 783.
22
23
Sinônimo africano de baobá. O Dicionário Houaiss registra o termo como embondeiro.
TERCEIRA PARTE
ANGOLA
5
“O IDEAL PERDEU-SE. É UMA CATÁSTROFE!”
1. OS CENTROS DE INSTRUÇÃO REVOLUCIONÁRIA E PAULO FREIRE, “UMA ESPÉCIE
DE GUIA”
SÉRGIO: CAMARADA LÚCIO LARA,24 eu gostaria, em primeiro lugar, de saber uma
coisa: o senhor foi professor, não foi?
LÚCIO: Fui. Fui em Portugal, na Guiné Conacry… Depois deixei de ser.
SÉRGIO: Quanto tempo o senhor foi professor?
LÚCIO: Não me lembro, não, mas na Guiné Conacry foram pelo menos dois
anos, no secundário. Na mata, quando conheci o professor Freire, eu era
professor nos Centros de Instrução. Ainda hoje tenho filhos desses centros.
Vivem comigo. Jovens que viveram comigo nesses centros, e são meus filhos.
SÉRGIO: Esses centros eram onde?
LÚCIO: Em Angola, era no Cuando, nas margens do rio Cuando.
SÉRGIO: Em que ano foi isso?
LÚCIO: Foi mais ou menos, mesmo mais ou menos, em 1968, por aí.
SÉRGIO: E o senhor dava aulas de quê?
LÚCIO: De tudo.
SÉRGIO: Tudo? (rindo) Tudo como?
LÚCIO: Primário. Veja, era um centro de educação. A gente chamava era um
Centro de Instrução Revolucionária (CIR). Então os jovens daquela área vinham
para o CIR para aprenderem as letras, as contas. Naquela altura, aquilo era
equivalente ao nível da 4a classe. E como não tínhamos outros professores, era eu
mesmo que fazia isso. Ensinei muitos jovens, e alguns deles são meus filhos hoje.
Um deles vive comigo mesmo, vem cá todos os dias, trabalha aí na Sonangol25
agora. Eu ensinava tudo o que eu podia ensinar aos jovens desses centros de
instrução revolucionária. Era uma espécie de instrução primária geral,
“embaralhada”, se quiser.
SÉRGIO: E fez isso durante muitos anos?
LÚCIO: Dois anos, naquele centro perto do Cuando, no maquis.26
SÉRGIO: Alfabetizou também?
LÚCIO: Sim, alfabetizei, e aí é que tive muitas conversas com Paulo Freire,
porque eu cheguei à conclusão de que era preciso encontrar meios de alfabetizar
nas línguas nacionais. Naquela época, eu não sabia as línguas nacionais daquela
área. Por exemplo, eu ensinava a ler “panela”, mas a pessoa não entendia, não
sabia o que era panela. Lia “panela”, mas não sabia. Isso foi uma das discussões
que eu tive com o Paulo Freire, justamente: a necessidade de nós nos
reencaminharmos para o ensino das línguas nacionais. Era extremamente difícil
não só por não dominarmos todas as línguas — que nós temos muitas línguas
em Angola —, mas também não havia nada escrito. Nós só tínhamos coisas
escritas em português.
SÉRGIO: O senhor chegou a usar essa cartilha “Eu sei ler?” 27
LÚCIO: Isso já foi muito mais tarde.
SÉRGIO: No momento em que se fez a cartilha, o material de alfabetização,
havia alguma ideia relacionada com o trabalho do Paulo Freire, ou não?
LÚCIO: Conhecia-se teoricamente. Conhecia-se de nome o Paulo Freire e suas
ideias. Ele era assim uma espécie de encontramo-lo por acaso lá uma vez, na
fronteira com a Zâmbia, já na Zâmbia. Mas só reencontrei pessoalmente o Paulo
Freire aqui, depois, quando ele veio aqui a Angola, nos tempos já da
independência.28
Nessa altura [na Zâmbia], ainda éramos Movimento de Libertação, e aí
discutimos muito, e a discussão foi muito interessante, porque eu tinha
dificuldades, no Centro de Instrução Revolucionária, pela questão da língua:
ensinar português a pessoas que não sabiam português, pá, era muito difícil.
Você ensina a ler, a pessoa aprende a palavra, mas não aprende o significado da
palavra. Não sabe, não conhece. Lê “panela”, mas depois tenho que explicar a ele
o que é uma panela! Então, essa era uma das preocupações da prática,
justamente, da experiência que eu tive. E só agora é que estamos aqui mais ou
menos a encaminhar-nos para isso, para o ensino das línguas nacionais, a
alfabetização em línguas nacionais. Só agora é que andam a fazer isso, porque é
preciso muitos meios, que nós, na luta de libertação, não tínhamos.
Aliás, esses jovens aprenderam à mesma. Muitos deles mandamos para o
exterior. Por exemplo, esse meu filho de que eu falei esteve na Iugoslávia; uma
moça teve que ir à Alemanha; outra esteve e casou na Guiné-Bissau. E
aprenderam ali no nosso centro: em português, mal, mas aprenderam. Puderam
estudar lá fora depois, puderam fazer bons estudos lá fora.
SÉRGIO: Qual a impressão que o senhor teve do Paulo Freire, das conversas
que teve com ele, como intelectual? Qual a imagem que o senhor retém dele?
LÚCIO: Ele era uma espécie de guia para nós, porque as teorias dele davam
certo. Estavam de acordo, inteiramente que depois ele fala dessa conversa
quando nos encontramos. Era uma espécie de encontro de um teórico que a
gente conhecia de nome, e que apreciávamos e inspirava-nos. Ele não conhecia a
nossa realidade, mas teoricamente comentava os pontos e ideias que nós
tínhamos. Essa foi a impressão daqueles tempos. Aliás, eu nem sabia que ele
tinha morrido.
SÉRGIO: Tem alguma memória de ideias dele com que o senhor não
concordava?
LÚCIO: Não. Como lhe disse, eu conhecia teoricamente o Paulo Freire, mas o
que eu conhecia dele eram coisas que estavam sempre de acordo com aquilo que
eu pensava. E se pensava isso era porque era a minha experiência, e eu queria
encontrar soluções para mim mesmo e muitas vezes me inspirava nas teorias do
Paulo Freire. Por isso foi uma alegria muito grande para nós podermos ter tido
contato. Foi uma alegria mesmo.
2. “UM DOS MAIORES DESGOSTOS QUE EU TENHO É A EDUCAÇÃO EM ANGOLA, QUE
É UM DESASTRE!”
SÉRGIO: Quando o senhor olha para trás e pensa nos ideais que levaram o MPLA
a toda essa luta, não só pela independência, mas pelo progresso, pelo
desenvolvimento, por um novo homem…
LÚCIO: Um novo homem…
SÉRGIO: …uma nova mulher, e o papel da educação nesse processo, qual é o
balanço que o senhor faz de todo esse sonho, essa luta, em termos de educação,
para um novo homem, uma nova mulher?
LÚCIO: Até à independência foi muito positivo. Depois, aqui, estragou-se
completamente. Nós deixamos estragar, perdemo-nos! Veio a burocracia toda, os
interesses todos urbanos, e perdemo-nos. Hoje a educação é uma miséria em
Angola. Para mim, um dos maiores desgostos que eu tenho é a educação em
Angola, que é um desastre, é catastrófica! Se a gente pensa no que fizemos, e
fizemos muito, realmente! Tínhamos uma equipe muito boa, onde estava o
Pepetela,29 por exemplo. Eu poderia depois lhe mostrar assim alguns dos livros
que nós fizemos durante a luta da independência. Porque tínhamos uma equipe
voltada para isso, e com esses ideais que, no fundo, eram guiados pelas teorias de
Paulo Freire. Perfeitamente! E por isso é que houve esse encontro tão simpático e
tão atípico naquele momento: porque notamos um homem teórico das nossas
preocupações. Um teórico, um gajo que pensava, e tal. A gente conhecia aquilo e
estava de acordo com ele.
Infelizmente, a independência fez-nos perder isso tudo, e hoje está uma
verdadeira catástrofe. É uma catástrofe! Hoje vivemos em Angola, na educação, o
que eu chamo uma catástrofe! É um desastre total! Porque houve, se quiser, um
capital muito bom, na luta de libertação. E foi usado ainda pelo Antônio Jacinto,
que usou inclusivamente alguns dos nossos métodos e livros da luta de
libertação, no princípio aqui da independência. Mas depois isso perdeu-se. Hoje
é uma miséria. Até os manuais não têm nada que ver com aquilo que nós
idealizamos, fizemos durante a luta, e depois perdemos. Por nossa culpa talvez,
perdemos.
Hoje não temos esse capital de educação que nós formamos, não sei se
milhares, mas centenas de estudantes, que saíram desses Centros de Instrução
Revolucionária. Portanto saíram do zero, e aprenderam, em português até, e daí
eles saíram para todos os países que nos davam apoio na altura, para a União
Soviética, a Alemanha, a Checoslováquia, a Iugoslávia. E foram fazer ou cursos
médios ou cursos superiores. Até médicos, fizemos médicos e tudo!
E todos esses indivíduos formaram-se da luta de libertação, graças ao
interesse, dinamismo, ao empenho do MPLA de formar a sua juventude, que se
perdeu. Hoje não existe nada disso, é um desastre! Nós hoje vivemos talvez um
dos períodos mais graves da educação em Angola. Muito grave, muito grave! Eu
acho que é uma catástrofe, o que vivemos hoje na educação em Angola. E não
havia razões, porque as bases vieram da luta de libertação. E perderam-se.
SÉRGIO: E por que é que se perderam? O que foi? Falta de quê?
LÚCIO: Foi esse contato com a cidade, a burocracia, se quiser, os interesses
individualistas. Bom, perdeu-se muit o patriotismo natural que havia em todos
nós. Ninguém estava na luta por qualquer interesse que não fosse libertar. Hoje,
as pessoas até que estão no mesmo movimento, no nosso movimento, estão
interessadas por negócios, por interesses outros que não são os ideais. O ideal
perdeu-se. O Ideal, com letra grande, perdeu-se. E hoje, eu vou ainda hoje ao
meu partido, e quando lá chego encontro funcionários do partido, mas
funcionários abúlicos. Funcionários que não têm nada do que nós tínhamos, não
têm nada!
3. FUTURO? “FAZER RENASCER AQUELE ESPÍRITO DE EDUCAÇÃO QUE HAVIA HÁ UM
BOCADO”
SÉRGIO: Agora, camarada Lúcio Lara, e em relação ao futuro? Há uma nova
geração, gente nova chegando!
LÚCIO: Nós não podemos continuar assim, porque, como digo, a situação é
catastrófica, e Angola é um país que não pode viver assim! A única esperança que
nós temos é justamente na educação da nossa juventude. Mas isso tem que se
refazer, e eu ainda não vi como. Estamos agora a discutir parece lá umas leis, mas
ainda não estou a ver. O problema é diferente do nosso tempo. Aliás, ainda hoje
eu sou da Comissão de Educação na Assembleia Nacional, e faço muita pressão.
Infelizmente é uma Comissão que não funciona, ainda por cima, e eu irrito-me
com isso. Estou sempre a criticar o não funcionamento da Comissão que eu
considero a mais importante da Assembleia Nacional. Não funciona, e eu estou
sempre a criticar isso. Vamos ver se a gente ainda consegue, em final de
mandato, fazer renascer aquele espírito da educação que havia há um bocado,
não é?
SÉRGIO: Depois de todo esse trabalho pela libertação, de toda essa luta por um
país independente, o senhor está otimista em relação a essas novas gerações de
angolanos?
LÚCIO: Sim. Não sou otimista em relação ao que existe atualmente. Em
relação às novas gerações tenho que ser otimista, porque os jovens são sempre
jovens, e é neles que reside a esperança em relação ao futuro! Agora, têm que ser
também ajudados, e não estou a sentir nem do Governo, nem do Partido — nem
do meu Partido! — esse engajamento a sério. Não é para discutir uma lei, não.
Um engajamento a sério, para que se dê a importância que é necessário dar à
educação, na situação em que estamos. Estamos numa situação catastrófica, e
não pode ser!
Nós somos hoje um dos países mais importantes desta parte da África.
Somos, sem dúvida alguma. Eu vou à África do Sul e vejo: enfim, apesar do
apartheid, eles têm bases, e têm por onde, têm universidades… Ao passo que nós
aqui não temos bases, e isso é um drama. A gente quer dar algum reforço à
educação e não vê como, porque não sente que o governo, o Ministério — e eu
digo sempre, o meu Partido — não dão a importância que a educação tem que
ter! Mas é preciso realmente encontrar o método de chegar lá, porque isso
impõe-se, a juventude impõe-se! A juventude tem a sede do saber, a necessidade
do saber, e o país necessita da juventude. Então, tem-se que se fazer alguma
coisa.
4. A ORIGEM DOS CENTROS DE INSTRUÇÃO, “LUGARES DE ENCONTRO DE JOVENS
PARA A LUTA”
SÉRGIO: Voltando um pouco, camarada Lúcio Lara, aos Centros de Instrução
Revolucionária: como é que apareceram esses centros? O senhor esteve na
origem; qual era a ideia do funcionamento desses centros?
LÚCIO: A origem era muito simples. Isso começou no Congo Brazzaville.
Eram lugares de, sendo escolas, encontro de jovens que vinham do interior de
Angola para a luta. Então a gente concentrava-os, e criou uma espécie de colégio.
Esse colégio funcionava como Centro de Instrução Revolucionária. Primeiro foi
em Brazzaville, e depois fizemos vários no leste. Num deles fui eu o responsável,
em Brazzaville foi o Dilolwa.30 E depois, em Brazzaville, também ficou um
grupinho, que veio de Alger — onde estava o Pepetela, a antiga mulher do
Pepetela,31 e mais dois quadros, com quem eu estava em contato. Eu estava no
leste, eles estavam em Brazzaville, mas eles faziam-nos os livros de estudos e
chegaram a fazer uma série deles.
Esses centros, ao mesmo tempo em que davam assim, digamos, a educação
normal, acadêmica, ao mesmo tempo davam uma educação revolucionária. Os
jovens iam muitas vezes para o interior levar mantimentos ou munições para os
soldados. Muitos estão aí agora, são engenheiros etc. Eles sabiam que o fato de
serem alunos do Centro de Instrução Revolucionária, CIR, dava-lhes lá a
obrigação moral de tomarem parte em operações de abastecimento dos
guerrilheiros que estavam lá dentro. Eles carregavam alimentação, carregavam
munições e muitos deles ficavam no interior, para ajudar os guerrilheiros.
SÉRGIO: Havia tanto homens quanto mulheres?
LÚCIO: Sim, sim. Conhece uma senhora Mingas, que fez um livro aí há uns
tempos? É linguista: Amélia Mingas.32 Ela foi professora desse centro também,
do CIR em Brazzaville. Pepetela, a mulher do Pepetela, havia vários que eram
professores.
5. EXPERIÊNCIA DE ALUNO, NO TEMPO COLONIAL: “HAVIA DOIS NEGROS NO MEU
COLÉGIO. DOIS!”
SÉRGIO: E qual foi a sua experiência como aluno? O senhor se lembra como é que
era a escola na sua época?
LÚCIO: Fui aluno no tempo colonial.
SÉRGIO: Qual é a memória que o senhor tem dessa escola? Era uma escola
boa? Autoritária? Como é que era essa escola?
LÚCIO: Para já era autoritária, não é? Eu fui um bocado privilegiado, porque
eu vivia no Huambo, e vivi num colégio interno. Meus pais viviam no interior,
mas pagavam uma mensalidade ao colégio. E ali era uma disciplina de colégio
interno.
SÉRGIO: Religioso?
LÚCIO: Não, não era religioso. Era um internato, mas civil. Ainda hoje existe
esse colégio, o “Alexandre Herculano”.
SÉRGIO: Mas era rigoroso porque era internato? Ou porque as escolas, de uma
maneira geral, nessa época…
LÚCIO: …eram assim. Eram rigorosas: nós éramos obrigados a ir à missa, aos
domingos. O colégio ia à missa, íamos todos.
SÉRGIO: E nessa época, como aluno, o senhor sentia alguma discriminação
entre alunos, de caráter racial?
LÚCIO: Você repare que eu não sou negro, mas, nesse tempo, havia dois
negros no meu colégio. Dois. Dois!
SÉRGIO: Só?
LÚCIO: Só. Não havia acesso.
SÉRGIO: E qual era a razão principal? Era econômica? Ou havia alguma
interdição mesmo?
LÚCIO: Era econômica, mas ao mesmo tempo também racial. Aparecia como
econômica, porque o pai de um jovem negro, por exemplo, não tinha
possibilidade nenhuma, com o que ele ganhava, de pôr o filho num colégio. Não
tinha, mas isso era uma mescla de racial e econômico. Eram os dois fatores aí a
jogarem muito nesse problema.
Depois entrei no liceu do Lubango, que chamava-se, nessa altura, Sá da
Bandeira. Estudei lá o último ano do liceu. Também aí encontrei dois negros.
Negros, negros, não havia mais!
SÉRGIO: Num conjunto de mais ou menos quantas pessoas?
LÚCIO: Duzentas e tal. Havia mestiços, eram alguns, e o resto era branco.
SÉRGIO: E a palmatória, o senhor conheceu? Ou no seu tempo já não havia?
LÚCIO: Havia. Embora não fosse assim uma coisa muito utilizada, mas havia.
No colégio havia palmatória, sim.
SÉRGIO: O senhor chegou a ver em uso essa palmatória alguma vez?
LÚCIO: Claro, claro!
SÉRGIO: Nunca na sua mão? (ri)
LÚCIO: Também, também!
SÉRGIO: O senhor chegou a apanhar também?
LÚCIO: Apanhávamos! De vez em quando davam, e apanhávamos à
palmatória, sim.
6. EDUCAÇÃO, “UM PROBLEMA QUE O GOVERNO TEM QUE RESOLVER. SENÃO, SERÁ
CONDENADO”
SÉRGIO: Camarada Lúcio Lara, não sei se o senhor tem mais alguma coisa a
dizer sobre a educação, quanto ao futuro.
LÚCIO: Você mantém-se no Unicef, não é?
SÉRGIO: Sim.
LÚCIO: Infelizmente agora tenho muito pouco contato com o Unicef. Eu tinha
tido muito contato antes.
SÉRGIO: O senhor esteve muito ligado à infância, não?
LÚCIO: Estive muito ligado sim, sempre.
SÉRGIO: E como é que o senhor vê hoje a infância angolana? Qual é a ideia que
o senhor tem hoje, quando vê os problemas que há?
LÚCIO: No fundo, cai-se sempre no problema da educação. Desde o préprimário, o Estado ainda não conseguiu investir o que é necessário investir na
infância e na juventude.
SÉRGIO: O senhor acha que o fator principal é a guerra?
LÚCIO: Não só, não só. Também é, claro, fundamentalmente é, porque há
dificuldade de ligação com o resto do país, esses aspectos sobretudo de
comunicação, de ligação física, e isso dificulta tudo. Mas não é só isso. Veja, por
exemplo, quanto a Luanda: as coisas poderiam ser mais tomadas a sério, mais
feitas de um ponto de vista engajado, como eu disse. Embora hoje se faça muita
propaganda sobre muita coisa das crianças, as coisas fundamentais ficam um
bocado no ar. São coisas para ver, para mostrar, não é para fazer.
E há ainda, a meu ver, um problema muito grave, que é o problema dos
professores. A pouca atenção que se tem dado, que o governo está a dar à
formação dos professores. Porque o professor é um quadro excepcional. O
professor é o pai, no fundo, de toda a juventude. E eu digo-lhe isso porque eu já
senti, e eu sinto isso ainda hoje! Se ontem viesse cá a casa, encontrava aqui
pessoas que chamam-me pai. Mas chamam-me porque eu sou pai deles também,
eu sou o pai que eles tiveram de há muito tempo. E esse engajamento não se vê
hoje do poder, para possibilitar ao professor o tornar-se pai das suas crianças.
Eu acho que este é o tal combate que temos que fazer, que está por fazer
ainda, e vamos ver se conseguimos, através da Assembleia Nacional, porque é
fundamental! No fundo, a nossa criança está abandonada. Há muita coisa na
televisão, é blá-blá-blá da televisão. Não há engajamento. Não se vive o problema
da criança E eu acho que este é um problema que o governo tem que resolver.
Senão, será condenado.
SÉRGIO: Acha que falta se dar mais prioridade à criança, à educação?
LÚCIO: Sim, falta. Claro, acho que falta essa prioridade, sim, fundamental, à
criança e à educação, ao problema da educação, eu diria, em geral, a partir da
criança até à universidade. Fala-se muito da criança, mas você vai à universidade
e encontra vazios, porque não houve os antecedentes: muitas vezes o jovem
chega à universidade e não é universitário. Não tem a vivência, não lhe deram,
não o formaram para ser universitário. E, então, a lacuna mantém-se na
universidade. Esse é o grande drama que nós temos e que temos que resolver;
porque temos, felizmente, uma África do Sul ao lado, que pode servir de
inspiração também, de exemplo.
Você veja, nós temos muitos jovens fora do país. Muitos! O que não está
certo, porque deveriam ser formados aqui, no seu país! Temos muitos pais que
mandam os filhos para a África do Sul, para Portugal, para a América até, para os
Estados Unidos! Não deveria ser, mas os pais também, no fundo, sentem que é
necessário dar educação aos filhos, e mandam-nos, e têm razão! Eu não posso
condenar um pai que deseja o bem do seu filho!
7. SONHO DE UMA ANGOLA PARA AMANHÃ? “EDUCAÇÃO, PRIORIDADE DAS
PRIORIDADES”
SÉRGIO: Como indivíduos, nós temos um ciclo de vida que é muito mais curto do
que o ciclo de vida de um povo, não é? Por isso, é possível que as melhores coisas
ainda estejam por vir. Qual é o seu sonho de uma Angola para amanhã? Hoje,
quando já não se tem mais aquele mesmo entusiasmo, quando sabemos que os
ideais socialistas sofreram com a prevalência de interesses individualistas, qual é
o seu sonho, camarada Lúcio, com relação ao futuro deste país?
LÚCIO: É este: é criarmos as condições para que a nossa juventude possa ter
satisfação nos problemas fundamentais da juventude, que são a educação —
primeira prioridade das prioridades — e, de resto, toda aquela lista de sonhos
que a juventude tem. Mas, fundamentalmente, é a educação.
Eu creio que é aí que o Estado, o partido — eu digo sempre, até no meu
partido eu digo isso — devemos fazer o impossível para melhorar a educação,
porque é um capital que nunca é mal-empregado. Mas perdemo-nos, o governo
e o partido no poder perdemo-nos na questão da educação. Ainda sinto muitas,
muitas deficiências na educação, muitas!
SÉRGIO: E a sua sensação não é a de quem está a falar sozinho, é?
LÚCIO: Não, não!
SÉRGIO: Acha que há muito mais pessoas que têm essa consciência?
LÚCIO: Claro, sim, sim!
SÉRGIO: Portanto, não vai ser tão difícil assim reverter a atual situação, certo?
LÚCIO: Sim. O problema é o dos homens que estão no poder, que estão no
governo. É de encontrar a maneira de os obrigar… Vamos ver, não é?
Notas
No momento deste diálogo, ocorrido em 20 de outubro de 2000, em Luanda, Lúcio Lara (nome de guerra
“Tchiweca”) ainda ocupava o posto de deputado no parlamento unicameral angolano. Nascido em Nova
Lisboa (atualmente capital da província do Huambo) em 9 de abril de 1929, de pai português e de mãe
angolana mestiça. Depois da escola secundária, Lara vai para Portugal prosseguir seus estudos
universitários, no mesmo ano que o futuro presidente Agostinho Neto (1947). De 1954 a 1957, trabalha no
colégio Moderno como regedor de estudos e professor substituto de física e química. Em abril de 1960,
chega a Conacry, capital da Guiné, onde dá aulas no liceu e passa a integrar o Comitê Diretor do
Movimento de Libertação de Angola (MPLA). De acordo com o professor Jean-Michel Mabeko Tali, “Lúcio
Lara acabou por simbolizar, em comum com Neto, e sozinho depois da morte deste, tanto aos olhos dos
detratores como aos dos simpatizantes, todos os erros e todos os dissabores políticos acumulados ao longo
dos anos desde a época da luta de libertação nacional — mas também todo o capital simbólico e todo o
prestígio de que o MPLA gozou junto das populações africanas, pelo menos até a morte de Neto, de quem
parecia ser o braço direito. Apresentado durante muito tempo como o ideólogo do MPLA, ocupou, desde
1960, na direção política do movimento de libertação e, depois, do Partido-Estado (Comitê Diretor — de
1960 a 1974 —, Comitê Central — desde 1974), ao longo da sua carreira política, sucessivos postos
essenciais, como o secretariado da organização e da formação de quadros […]. A sua queda política no
interior do MPLA começou em 1983, a seguir a uma das mais profundas crises jamais conhecidas pelo
movimento e, depois, Partido-Estado. Seja como for, Lúcio Lara continua atualmente a ser a mais rica
memória viva da história do MPLA.” in Jean-Michel Mabeko Tali, Dissidências e poder de Estado: o MPLA
perante si próprio (1962-1977). Luanda: Editorial Nzila, 2001, vol. 1, p. 93.
24
25
Empresa angolana de exploração e distribuição de petróleo e derivados.
26
Termo de origem franco-corsa, indicando clandestinidade.
Trata-se, na realidade, do Livro de Leitura para o 2º Semestre da Educação de Adultos, edição do
Ministério da Educação da República Popular de Angola. Lobito: Gráfica Aguedense, 1979.
27
Em seu livro Pedagogia da esperança, Paulo conta: “Ao descer em Lusaka, onde deveria tomar outro
avião, em voo nacional para Kitwe, o alto-falante do aeroporto me transmite o convite para comparecer ao
setor de encontros. Lá me esperavam um jovem e uma jovem norte-americanos […]. Eles trabalhavam como
voluntários em Zâmbia e tinham muito boas relações com representantes da liderança do MPLA […].
Depois dos abraços regulares me perguntaram se poderia ficar em Lusaka naquele dia, viajando para Kitwe
no próximo. A equipe do MPLA em Lusaka desejava conversar comigo sobre problemas de educação e luta,
alfabetização nas áreas libertadas etc. […]
“Às 13 horas, na casa do jovem casal, almoçava com a liderança do MPLA, chefiada por Lúcio Lara, que
seria, poucos anos depois, o segundo homem de Angola […]. Tivemos uma tarde e uma noite de trabalho
com alguns filmes documentários que davam carne às conversas.
“Inicialmente, Lara fez um relatório realista da situação em que se achava a luta de libertação para, em
seguida, debatermos a prática educativa no seio da luta mesma […]. Discutimos também, por largo tempo,
permeando a conversa com documentários, a questão da alfabetização e a necessidade imperiosa que a
própria luta, como processo, colocava à sua direção, de correr, com seriedade, naturalmente, no sentido da
formação técnica dos militantes, com vistas ao andamento da luta […]. Simultaneamente com esse tipo de
28
preparação, a formação política dos militantes que, na compreensão crítica de Amílcar Cabral, deveriam ser
sempre militantes armados, jamais militares.
“Anos depois tive a oportunidade de continuar algumas dessas conversas com Lúcio Lara, em Luanda,
quando ele se achava à frente do Bureau Político do partido e eu, por convite dele e do então ministro da
Educação de Angola, o poeta Antônio Jacinto, […] assessorava aquele ministério, através do Conselho
Mundial de Igrejas. “Aquele encontro em Lusaka […] me marcou fortemente. Afinal, eu era convidado a
dialogar com militantes experimentados na luta, cujo tempo não podia ser gasto com devaneios ou com
arrancadas intelectualistas. O que eles queriam era entregar-se comigo à reflexão crítica, teórica, sobre sua
prática, sobre sua luta, enquanto um ‘fato cultural e um fator de cultura’ (Cabral, 1976). Sua confiança em
mim, como um intelectual progressista, me era realmente importante. Eles não me criticavam porque,
citando Marx, citava também um camponês. Nem tampouco me consideravam um educador burguês
porque eu defendia a importância do papel da consciência na história.” In Paulo Freire, Pedagogia da
esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1992 [17a edição, São Paulo:
Paz e Terra, 2011, p. 202-5].
Nome de guerra de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, nascido em 29 de outubro de 1941 em
Benguela, onde cursou o ensino primário e parte do secundário até 1956. Concluiu o secundário no
Lubango, província da Huíla, e frequentou a partir de 1958, em Portugal, o Instituto Superior Técnico.
Depois de passar pela França, em 1962, seguiu para a Argélia, onde obteve a licenciatura de sociologia, na
Universidade de Argel. Em 1969, aderiu à guerrilha na Frente de Cabinda e, em 1972, transferiu-se para a
Frente Leste, onde foi nomeado diretor do Centro Augusto Ngangula. A partir de 1973, exerceu as funções
de secretário permanente do Departamento de Educação e Cultura do MPLA e, em novembro de 1974,
chegou a Luanda como parte da primeira delegação do MPLA. Diretor do Departamento de Orientação
Política a partir de janeiro de 1975, passou a integrar o Estado-Maior da Frente Centro em julho de 1975.
Com a independência, foi nomeado vice-ministro da Educação (1975-1982). Professor de sociologia na
Universidade Agostinho Neto, em Luanda, é autor de uma extensa produção literária que inclui Muana Puó
(1969), Mayombe (1971), As aventuras de Ngunga (1972), A corda (1976), A revolta da casa dos ídolos
(1979), Yaka (1983), O cão e os caluandas (1985), Luéji, o nascimento dum império (1989), A geração da
utopia (1992), O desejo de Kianda (1995), Parábola do cágado velho (1996), A gloriosa família (1997), A
montanha da água lilás (2000) e Jaime Bunda, agente secreto (2001). Em 1997, recebeu o mais importante
prêmio literário da língua portuguesa, o prêmio Camões, pelo conjunto da sua obra.
29
30 Inicialmente nome de guerra e, a partir de 1976, parte integrante do nome do professor Carlos Rocha
Oliveira, nascido no Sumbe, capital da província do Kwanza Sul, em 2 de dezembro de 1939. Licenciado em
economia e finanças, Dilolwa foi diretor do lº CIR, em Dolizie, Congo-Brazzaville. Imediatamente após a
independência, foi ministro do Planejamento e da Coordenação Econômica e, a partir de 1976, segundo
vice-primeiro-ministro e ministro do Plano. Em novembro de 1978, retirou-se de todas as funções na
direção do governo e do partido e, no ano seguinte, passou a ser docente na faculdade de Economia da
Universidade Agostinho Neto. Produziu, entre outras, as seguintes obras: Contribuição à história econômica
de Angola, Subdesenvolvimento, dependência e nova ordem econômica internacional, Para uma política
democrática em Angola, História econômica no século XIX, Sobre a democracia e, premonitoriamente,
Corrida para a morte ou corrida contra o tempo? Suicidou-se em 16 de novembro de 1996.
Trata-se da professora Maria do Céu Carmo Reis, socióloga e membro do Departamento da Educação e
Cultura do MPLA antes da independência.
31
Lúcio Lara refere-se a Interferência do Kimbundu no português falado em Luanda, originalmente escrito
por Amélia Mingas como trabalho de tese na Universidade René Descartes — Paris V, e posteriormente
32
publicado pelas Edições Chá de Caxinde, Luanda, março de 2000.
6
APOSTAR NA EDUCAÇÃO, “MAIS CEDO OU MAIS
TARDE”
1. UMA CERTA FRUSTRAÇÃO: ALUNOS SEM HÁBITOS DE LEITURA, SEM INTERESSE
SÉRGIO: VOCÊ ESTAVA FALANDO agora há pouco que está a leste da e ducação há
muito tempo. Você já não dá mais aulas?
PEPETELA: Dou, dou, mas digamos que eu estou a leste da problemática geral
da educação. Só estou legado mais ao meu curso, e acabou!
SÉRGIO: Que curso?
PEPETELA: Eu dou sociologia, mas no curso de arquitetura.
SÉRGIO: Você continua como professor na Universidade Agostinho Neto?
PEPETELA: Na Agostinho Neto, mas no curso de arquitetura. Sociologia para
arquitetos. Urbanistas, mais do que arquitetos. Sociologia urbana, portanto,
desenvolvimento das cidades: como é que as pessoas se juntam no espaço
urbano.
SÉRGIO: E como é que você se sente como professor?
PEPETELA: Há uma certa frustração, porque realmente há uma muito fraca
preparação de base dos alunos. E a frustração é maior por causa disso: nota-se
que, de ano para ano, essa formação é pior. Os alunos vêm cada vez menos
preparados. Começa a ser raro — estou a falar de segundo e terceiro anos —
encontrar um aluno que redija bem em português. Extremamente raro. Claro,
não é um curso de português, não é um curso de literatura, tudo bem, mas o
problema é que, com a deficiência que há na própria língua, por vezes há
dificuldade em o aluno se expressar. Confundem constantemente, por exemplo:
a primeira aula que eu dou é para que eles saibam qual é a diferença entre sob e
sobre,porque eu digo: se não souberem qual é a diferença entre sob e sobre, vão
construir o terraço na cave, não é? (Riem) Estamos a falar de arquitetos. Bom,
isso para dizer que realmente há dificuldades a esse nível, e tende a piorar.
Portanto, há aí uma certa frustração.
Agora, por outro lado, eu gosto de dar aulas e estar em contato com essa
juventude. No fundo, é bom para ir tomando o pulso da juventude e, se não do
país, pelo menos da cidade, saber o que é que pensam, quais são enfim as
aspirações etc. Isso é extremamente importante. Nesse aspecto, eu acho que é
bom.
SÉRGIO: Esses problemas que você sente, de base, acha que devem ser
atribuídos a quê?
PEPETELA: É ao mau ensino, que vem desde a base. Desde o princípio há o
mau ensino, o fraco nível dos professores, a falta quase que absoluta de meios de
ensino. Os alunos, por exemplo, chegam à universidade e não têm hábitos de
leitura. Muitas vezes o que leem é um ou outro artigo de jornal, de preferência
desportivo. Eu noto isso sobretudo em seminários, em que têm que discutir
textos que eu preparo para eles. Eles têm muitas dificuldades em entender os
textos. Quer dizer, não estão habituados a ler. Isso tudo é porque todo o ensino
anterior é muito fraco.
Depois também tem uma coisa que se nota: — isto está ligado sempre, tudo
— um fraco interesse até de aprender. Se há uma conferência na faculdade, os
alunos têm que ser obrigados a ir, se não não vão. Eles vão às aulas porque têm
que ir às aulas, têm que estudar o mínimo porque querem ter um curso, mas
acabou!, não têm interesse de aprender mais, ou se interessar por novas
tecnologias ou pelo avanço da ciência etc. Não têm essa preocupação. Isso é
porque realmente o ensino anterior não lhes despertou esse interesse.
2. PALMATÓRIA, PUXAR AS ORELHAS. NEGROS? “DOIS OU TRÊS, NO MEIO DE
DUZENTOS!”
SÉRGIO: Você se lembra do seu tempo de aluno?
PEPETELA: Lembro-me, lembro-me muito bem.
SÉRGIO: E como é que você era como aluno? Qual é a recordação que você
tem desse tempo?
PEPETELA: Eu era bom aluno. Era normalmente o melhor ou o segundo
melhor da turma, sempre. E era sempre o mais novo, mas apesar disso sofria a
repressão dos professores. Por exemplo, a célebre palmatória, e coisas assim no
gênero. Era quase um hábito. Um aluno que não levasse umas palmatoadas não
era considerado aluno, por parte dos professores. Acho que os professores faziam
questão, quase todos eles, não eram todos. Eu estou a falar disso com relação ao
primário e ao secundário. É claro que, no secundário, esse tipo de castigo era
mais para faltas de disciplina, mais do que para falta de estudo ou de
desconhecimento de alguma matéria. Mas havia castigos físicos no que era antes
o 4º, 5º anos do liceu, hoje seria uma nona classe. Ainda havia castigos físicos, e
isso em Benguela,33 em colégio particular, em que se pagava para estudar, claro!
SÉRGIO: Que tipo de castigo físico havia? Era só a palmatória?
PEPETELA: Era palmatoada, puxar as orelhas, eram esses, fundamentalmente.
SÉRGIO: As classes que você frequentava eram muito numerosas?
PEPETELA: Não, eram mais ou menos trinta alunos, andava por aí.
SÉRGIO: E quem é que frequentava? Era gente de todo tipo, de toda condição
econômica?
PEPETELA: Por exemplo, na escola primária: era uma escola pública, havia
alunos de todo lado, de todas as condições, de todas as classes, de todas as raças.
Já no colégio, no ensino secundário, não. Eram fundamentalmente filhos da
burguesia, da pequena burguesia colonial. Havia alguns mestiços, mas a grande
maioria eram estudantes brancos, portanto, o que queria dizer naquele tempo
colonial, gente com mais possibilidades.
O colégio onde eu estudei, Colégio Nuno Álvares, só tinha do primeiro ao
quinto ano. Faltava o sexto e o sétimo para terminar o ensino secundário, e
também tinha uma parte de ensino comercial. Devia haver uns duzentos alunos,
por aí. E, realmente, 95% eram brancos, 4% mestiços e 1% negros. Dois ou três,
no meio de duzentos!
3. “NÃO ERA SÓ DAR AULAS, EU ERA GUERRILHEIRO TAMBÉM”
SÉRGIO: Em conversa com o Lúcio Lara, além de abordar exatamente isso que
você está dizendo sobre a escola no tempo colonial, ele faz referência ao seu
nome, durante a luta armada. Gostaria de saber um pouco mais sobre os Centros
de Instrução Revolucionária, e ele fala de você como tendo participado
ativamente desses centros. Como é que foi essa história? Qual era a sua
participação, e o que é que você ac hou dessa experiência?
PEPETELA: Havia os Centros de Instrução Revolucionária, os CIR, que faziam
uma formação geral e também formação política e militar. No tempo em que eu
fui, por exemplo, para Cabinda,34 para a chamada Segunda Região PolíticoMilitar, Congo-Cabinda, na fronteira, já não havia o CIR, tinha fechado. Havia
pouco pessoal, toda a gente tinha sido transferida para a Frente Leste. Sobretudo
havia poucos quadros, não havia CIR, e eu fui um dos que reabriram, no fundo, o
ensino. Um ensino, digamos, um pouco mais elevado do que as primeiras classes
que existiam.
Havia uma escola, um internato chamado “4 de Fevereiro”, onde havia as
classes primárias. Eu fui um dos que reabriram aulas um pouco mais avançadas,
em nível do que se podia chamar de secundário, e em nível de formação política:
cursos para os guerrilheiros, que passavam períodos nessa base, para a formação
política. Era um internato, já não tinha o nome de CIR, mas funcionava mais ou
menos como o CIR, embora não tivesse a componente de formação militar.
Depois, mais tarde, reabriu o CIR, de fato, na Segunda Região, de novo, mas eu já
não estava lá.
Aí eu ensinei. Aliás, eu fazia muitas coisas, porque não era só dar aulas, eu era
guerrilheiro também. Trabalhava também para a informação, para o programa
de rádio “Angola Combatente”, que passava na Rádio Brazzaville. Portanto,
sempre entrava e saía de Cabinda para o Congo, vida militar e aulas etc. Dava
aulas de um lado, dava aulas do outro. Ocupava-me sobretudo mais da formação
política, mas também dava aulas de português e de matemática a jovens que iam
de doze anos de idade até os quinze, dezesseis, mais ou menos. Era uma espécie
de preparação, um certo aprofundamento daquilo que tinham aprendido, para
depois continuarem os estudos no estrangeiro, em particular nos países do Leste.
Depois de eu sair de Brazzaville, do Congo, Cabinda-Congo, é que reabriu o
CIR de novo, como CIR, portanto com todas as funções. Então fui para a Frente
Leste, onde também fiquei mais ou menos ligado ao ensino; à vida militar, mas
também ao ensino. Primeiro estive numa parte na região sul, Cuando Cubango e
sul do Moxico, e era uma espécie de inspetor, uma coisa assim no gênero. Eu
andava de zona em zona e ao mesmo tempo que fazia um trabalho político, e
militar também — sobretudo levantamento das estruturas militares que havia —,
fazia o levantamento das estruturas de educação. E quando encontrava alguma
deficiência, ficava mais algum tempo e ajudava os professores, numa coisa ou
noutra.
Por exemplo, lembro-me da introdução dos livros de matemática. Eram
praticamente livros alemães, da Alemanha do Leste, que foram traduzidos para o
português. Era uma matemática muito avançada, aliás, extremamente avançada,
e os professores claro que não tinham essa capacidade! Então eu andava de base
em base, e ia explicando. Explicava uma parte a uma classe, digamos assim, as
coisas novas que havia na matemática. Depois, no regresso, explicava uma outra
etc. Andava por ali, ao mesmo tempo em que ia fazendo outras coisas. Esse foi
um período muito interessante, porque não parava em nenhum lugar, estava
sempre a andar, e tinha várias atividades. Não era só a educação, não era só a
guerrilha, não era só a política. Era tudo junto.
4. QUATROCENTOS ALUNOS, UMA BASE DO MATO: “ESTAVA MESMO NA LINHA DE
FRONTEIRA”
SÉRGIO: Nós estamos em que época aí?
PEPETELA: 1971, 1972, 1973. Depois, em fins de 1973, é que eu fiquei fixo, no
Centro “Augusto Ngangula”, que era a maior escola — não era um CIR — da
Frente Leste. Era a grande escola, a partir da qual, no fundo, se coordenava o
trabalho de educação de toda a Frente. E foi então que me fixei nessa escola, e
sem outras responsabilidades, apenas a de dirigir a educação na Frente Leste.
SÉRGIO: Essa escola ficava em que local?
PEPETELA: Ficava na fronte ira da Zâmbia com Angola e afastada de qualquer
cidade ou localidade. Era mesmo uma base do mato e estava mesmo na linha de
fronteira: quando havia alguma coisa, algum problema, bastava recuar
quinhentos metros (ri) e, em princípio, já se estava na Zâmbia.
SÉRGIO: Vocês chegaram a ter quantos alunos?
PEPETELA: Nessa escola chegou-se aos quatrocentos alunos.
SÉRGIO: Homens e mulheres?
PEPETELA: Havia maior quantidade de homens, mas de qualquer modo havia
uma porcentagem bastante razoável de mulheres, de jovens. Nessa escola
Augusto Ngangula, havia seis classes escolares, e ela também servia de apoio para
cursos políticos para os guerrilheiros e para seminários de toda ordem,
discussões etc. Fazia-se ali porque havia melhores condições do que em outros
lugares. Havia uma certa tranquilidade — não estava propriamente em território
militar, digamos assim — e havia melhores condições, com uma estrada perto.
Era mais fácil abastecer, com gerador, com água etc.
5. “NO FUNDO, NÓS TENTAMOS ACASALAR O MÉTODO PAULO FREIRE COM O
CUBANO”
SÉRGIO: Durante esse período todo, você chegou a ter contato com as ideias do
Paulo Freire?
PEPETELA: Eu tive contato com as ideias do Paulo Freire em Argel ainda, em
1965, quando fiz o material de alfabetização, que se chamava “A vitória é certa”,
creio. Esse manual de alfabetização, que depois foi mais ou menos adaptado,
depois da independência, para servir como manual de alfabetização nas
primeiras campanhas daqui.
Foi aí que tive contato com uns camaradas brasileiros, que eram exilados
políticos. Já havia a ditadura militar, tinham ido para Argel. Acho que foi o
primeiro grupo, ligado ao sequestro de um embaixador. Falaram e depois
arranjaram-me mesmo algum material do Paulo Freire, que, no fundo, acabou
por nos servir como mola inspiradora para algumas coisas, particularmente para
o manual. Porque — isso é do Paulo Freire — cada lição tinha um desenho, e a
primeira discussão era sobre o desenho, o que levava até uma palavra, a palavrachave. Aí era decomposta a palavra, e depois começava enfim a alfabetização:
tijolo, a família do ti, ta, te, to, tu etc. E foi assim que nós fizemos o manual de
alfabetização. Esse método era uma tentativa de adaptação do método Paulo
Freire a um manual escrito, o que é contrário ao método Paulo Freire, em
princípio, não é? Mas foi uma tentativa de conciliação, porque nós sabíamos que
os alfabetizadores tinham muito pouco conhecimento da língua portuguesa e até
pouca escolaridade.
Era preciso um livro de apoio ao alfabetizador. Ele tinha que se basear num
livro, naquilo que estivesse escrito. Não podia improvisar demasiado, como no
método original do Paulo Freire, que exige uma grande capacidade de
improvisação do alfabetizador. Então, nós fizemos o manual e o guia para o
alfabetizador. No fundo, tentamos acasalar o método Paulo Freire com o método
cubano, da batalha da alfabetização de Cuba, que tinha sido realizada com êxito
uns anos antes. Esse material nós tínhamos, e então tivemos essa ideia de juntar
as duas coisas.
Mais tarde conheci Paulo Freire, falei bastante com ele sobre isso, e quase que
pedimos desculpas a ele: “Desculpe, nós adulteramos um pouco a sua ideia, mas
é assim que ia funcionar.” E ele compreendeu perfeitamente as razões e achou
boas. No fundo, o que interessava é que as pessoas não só aprendessem, mas que
discutissem sobre os seus problemas e sobre as suas vidas. Isso que, no fundo, é a
essência do método Paulo Freire, isso estava no nosso manual. Aliás, começava
com “O povo luta”. Era a primeira frase. Ora, isso é Paulo Freire, duma ponta à
outra.
6. DA GUERRILHA AO GOVERNO, QUADROS DA EDUCAÇÃO: “POR ISSO É QUE EU
APARECI COMO VICE-MINISTRO”
SÉRGIO: Eu me lembro que, quando te conheci, você era vice-ministro da
Educação, já nos idos de 1978. Como é que você aparece como vice-ministro?
Você estava lá na fronteira com a Zâmbia, como diretor da escola Augusto
Ngangula. Aliás, parece-me que você fez parte da primeira delegação do MPLA
que veio a Luanda, não?
PEPETELA: É.
SÉRGIO: E depois acaba como vice-ministro da Educação.
PEPETELA: Pois, mas quando vim com a primeira delegação, vim na qualidade
de diretor do Departamento de Educação e Cultura. Portanto, era o
coordenador. De fato, era da Frente, não do todo, mas, enfim, a Frent e Leste
tinha a primazia, e quem dirigia a Frente Leste dirigia o todo, teoricamente,
oficialmente. Eu fazia parte de um quadro muito ligado à educação, tinha estado
sempre muito ligado.
Viemos. Depois veio aquele período conturbado até chegar à independência,
em que eu fui para a guerra. Fui para Benguela, para o Estado-Maior da Frente, e
fiquei afastado de tudo. Houve o primeiro governo que foi formado, logo após a
independência, com o Antônio Jacinto como ministro da Educação e Cultura.
Então decidiu-se, ao fim de uns meses, quase um ano, separar a educação e a
cultura. O Jacinto ficou com a Cultura, e então convidaram-me para viceministro. Quer dizer, o Ambrósio Lukóki e eu, que éramos dois quadros da
educação já antigos, os dois ficamos no ministério, um como ministro, outro
como vice-ministro. Foi-se buscar quadros ligados à área, porque o Jacinto não
era; antes, não estava ligado, e achou-se que se devia — para fazer a reformulação
do ensino — buscar quadros que tinham alguma ligação. Por isso é que eu
apareço como vice-ministro nessa altura. Aliás, eu já estava tranquilo em
Lubango a dar aulas e a escrever, esquecido completamente de tudo.
SÉRGIO: Quando?
PEPETELA: Quando me foram buscar para o governo. Eu já estava afastado de
tudo, estava a dar aulas e a escrever, mais nada.
7. REVOLUÇÃO: “A UM MOMENTO DADO, ESSE SISTEMA COMEÇOU A DERRAPAR”
SÉRGIO: Desse período de vice-ministro — afinal, você fica até 1982, não é? —
que lições você tira dessa experiência no Ministério da Educação?
PEPETELA: A primeira lição é que, num país subdesenvolvido, é muito difícil
fazer educação. Digamos, a educação seria exatamente um instrumento para sair
da dependência, sair do subdesenvolvimento, mas acaba sempre por ser o
parente pobre. Pode até, no nível do discurso, aparecer como uma prioridade
nacional, mas, na prática, é o parente pobre, é sempre esquecido. Portanto, é um
instrumento frágil e acaba por ser vítima do próprio subdesenvolvimento. E
andamos num círculo de subdesenvolvimento e criação de mais
subdesenvolvimento, no fundo.
Bem, nós tentamos partir um bocado isso, tentar qualquer coisa diferente,
criar um sistema novo para o país, porque era um sistema colonial, e tinha que
ser dividido esse sistema colonial. Conseguiu-se fazer uma série de materiais, de
livros etc., extremamente ideológicos, supercarregados de ideologia. Talvez tenha
sido um erro. Enfim, era o espírito da época: era uma revolução, estava-se a fazer
uma revolução. Portanto, tinha que haver um sistema de ensino, entre aspas,
revolucionário, que nós achamos que seria revolucionário.
Agora, o que eu acho é que, a um momento dado, esse sistema começou a
derrapar. Desde cedo se começou a sentir isso, porque era um sistema com a
ambição, por exemplo, de pôr todas as crianças na escola. O ponto número um
da política de educação era esse, e devo dizer que, no princípio dos anos 1980,
quase que atingimos esse objetivo: quase todas as crianças estavam na escola de
fato.
Um outro objetivo era ser uma educação não só de instrução formal, não só
ensino, mas também com alguma abertura para o mundo profissional, ligação à
prática etc., e com orientação política. Portanto, uma formação mais ou menos
integral, que nós dizíamos “a formação do homem novo”, extremamente
ambiciosa como formação. Para se conseguir esse objetivo, tinha que haver
muito maior investimento na educação. Disso nós nos apercebemos muito
rapidamente, acho eu. Pelo menos eu percebi e acho que o Lukóki também.
Falávamos nisso, que o sistema poderia entrar em colapso rapidamente, ou pelo
menos bloquear, se não houvesse investimentos. E não estava tendo.
Lembro-me, por exemplo, que o sistema era muito baseado em escolas
ligadas à profissão, escolas profissionais ou institutos médios. São instituições
caras, e era necessário um grande número desse tipo de instituições. Abriram-se
algumas no princípio, mas depois não se abria mais, porque não havia dinheiro,
não havia meios, não havia construção, não havia nada, não havia hipótese de
fazer mais que isso. E, portanto, começou-se a entrar um pouco em roda-viva.
Quando eu saí ainda não se notava, mas acho que o sistema já estava a
patinar. Mais tarde, anos depois, começou-se a notar que realmente era preciso
mudar, reestruturar e talvez adaptar o sistema ao pouco investimento que havia,
e não conceber um sistema que era para muito investimento. Na medida em que
não houvesse investimento, tinha que haver uma adaptação. Penso que essa é
uma das razões porque depois tudo começou a cair. Foi caindo, caindo, e hoje
está realmente num estado bastante lastimoso, ainda por cima com um sistema
que já devia ter mudado há muitos anos.
8. LIMPEZA, REORIENTAÇÃO IDEOLÓGICA: “AÍ COMETERAM-SE ERROS CRASSOS”
PEPETELA: Fizeram remendos superficiais. Por exemplo, quiseram fazer uma
limpeza ideológica, e aí cometeram-se erros crassos, acho eu. Como, por
exemplo, o de diminuir cada vez mais a educação sobre a história, a história do
país, a história da luta, da resistência ao colonialismo, porque isso era ideológico.
Hoje as crianças do Cunene não sabem quem foi o Mandúmi,35 por exemplo. Foi
cortado. O Mandúmi desapareceu dos manuais. Enfim, coisas assim do gênero,
de cosmética apenas, porque não se tocou no sistema. Mudaram foi alguns livros,
e cada vez menos livros, aliás, porque cada vez menos o Ministério da Educação
tem capacidade para mexer as coisas, para mudar alguma coisa.
E, portanto, foi piorando tudo. A formação dos professores foi se tornando
cada vez pior. Partiu-se de um nível muito baixo de professores, mas a ideia era
de depois ir fazendo superações sucessivas, para melhorar a capacitação dos
professores. Isso não foi feito, e a nova geração foi formada por maus
professores. É uma geração mal formada, que vai formar mal. E é nisso em que
nós estamos agora, com a segunda geração, que forma pior ainda que a anterior,
claro.
SÉRGIO: Então, no fundo, o que aconteceu de fato foi uma espécie de
reorientação ideológica…
PEPETELA: Foi.
SÉRGIO: …porque, na realidade, essa história de você limpar, “tirar” a
ideologia, também já tem um componente ideológico.
PEPETELA: Claro. E a reorientação ideológica é, por exemplo, dar maior
importância ao ensino particular que ao do Estado, o oficial. Hoje em dia só se dá
importância ao ensino particular, quer dizer, privado. É ideológico,
evidentemente. Houve uma reorientação ideológica: antes era um ensino que
pretendia ser socialista, hoje é um ensino que pretende ser capitalista.
9. FUTURO? “MUITO MAIS DIFÍCIL, MAIS LENTO”: NOVA REFORMULAÇÃO, ALGUM
INVESTIMENTO
SÉRGIO: E em relação ao futuro, você tem alguma bola de cristal aí esc ondida?
PEPETELA: Eu não. (riem) Não tenho, não, mas realmente penso que, mais
cedo ou mais tarde, as autoridades — quem decide — vão ter de compreender
que têm de apostar na educação. Há muita pressão. Já há até instituições, como o
Banco Mundial, que já fazem pressão nesse sentido. Portanto, acho que isso vai
acabar por acontecer.
Agora, vai ser muito difícil, e a progressão vai ser extremamente lenta, porque
já não há o entusiasmo que havia depois da independência. Era o entusiasmo que
levava as pessoas a irem, partirem para alfabetizar, partirem para ser professores
lá no mato. Isso acabou. Hoje em dia, o primeiro ponto da discussão é o salário, e
quais são os outros componentes, que aliás são importantes. Antes isso nem era
tema de discussão. Portanto, esse entusiasmo acabou, vai ser muito mais difícil.
Depois, parte-se de um nível muito baixo e muito desigual. Hoje em dia a maior
parte das crianças estão fora da escola. Provavelmente haverá 60% de crianças em
idade escolar e fora da escola, é capaz de estar em uns 60%, não sei.
SÉRGIO: Sim, o governo dizia que era em torno de 50%, mas, nas últimas
pesquisas que fizemos no Unicef, chegamos até a 60% de crianças fora da escola,
dependendo da província.
PEPETELA: Andará por aí. Portanto, vai-se partir para uma nova reformulação
— ou o que se queira chamar — com piores condições. Vai ser muito mais difícil,
muito mais lento, mas acho que, mais cedo ou mais tarde, começará a haver
algum investimento na educação. Tem de haver, porque os exemplos já são
muitos, no mundo, de países que conseguem dar um salto a partir da educação.
Toda gente fala do caso da Irlanda, por exemplo.
Isso vai acabar por entrar, não digo talvez nos interesses, mas nos discursos e
na campanha de algum partido político que queira chegar ao poder. Vai começar
a apostar na educação e depois vai ser um bocado obrigado a cumprir aquilo que
prometeu.
10. PROFESSOR, ESCRITOR. SER MINISTRO? “EU NÃO ANDO DE CAVALO PARA
BURRO”
SÉRGIO: E como professor, você pretende continuar dando aulas
indefinidamente, apesar desses problemas com o nível dos alunos? Qual é a tua
perspectiva como professor?
PEPETELA: Estou a chegar na idade da reforma, não é? Por enquanto vou
continuando. Também não preciso fazer grandes compromissos para dar essas
aulas. Se não exigirem de mim muito mais do que isso, tudo bem, posso ir
continuando, depende. Mas, digamos, não tenho a intenção de continuar dez
anos, ou vinte, sei lá se vou viver tanto tempo! Vou fazer sessenta anos daqui a
pouco tempo, portanto começa a chegar a hora de parar.
Agora, enquanto não houver outro, que eu sinta que não houver outro para
me substituir, eu vou fazendo. Mas desde o momento que apareça outro, eu abro
o campo para ele, porque também não tenho que impedir um outro de trabalhar.
SÉRGIO: E o Ministério da Educação?
PEPETELA: Que é que tem o Ministério da Educação?
SÉRGIO: É passado?
PEPETELA: A minha atuação no Ministério da Educação? Absolutamente
passado!
SÉRGIO: Se amanhã te oferecerem a possibilidade de dirigir a Educação, você
aceitaria?
PEPETELA: Não. Quando me fazem essa pergunta eu digo: “Eu não ando de
cavalo para burro”. Hoje sou escritor, portanto não iria para ministro.(riem)
Notas 33 Capital da província de Benguela, ao sul de Angola.
Província ao norte de Angola, rica em petróleo e fisicamente separada do território angolano por uma
faixa de terra pertencente à atual República Democrática do Congo (antigo Zaire).
34
Famoso rei dos cuanhamas — povo do sul de Angola — que, segundo história contada localmente,
preferiu o suicídio a ser capturado pelos portugueses.
35
7
ANGOLA? UMA VISÃO POLÍTICA
COMPLETAMENTE DIFERENTE
1. TEMPO COLONIAL: “UMA PEDAGOGIA ULTRAMARINA IMPLANTADA NA
ÁFRICA”
SÉRGIO: MINISTRO BURITY,36 qual é a sua lembrança da escola angolana no tempo
colonial?
BURITY: Eu fui professor no tempo colonial e comecei como professor de pos
to eventual. Depois fiz um curso de pedagogia, passei para profess or de posto
agregado e depois passei para o posto de professor primário, à medida que ia
aumentando as habilitações acadêmicas, e assim sucessivamente.
Comecei a dar aulas nas escolas rurais, a cerca de trinta quilômetros da
cidade de Camacupa,37 e a experiência que eu tive aí foi muitíssimo valiosa, sob
todos os aspectos. Em primeiro lugar, o professor era um elemento muito
valorizado, reconhecido e respeitado na aldeia. Naquela época, não me recordo
de haver desistências, reprovações ao nível que há neste momento. Também, a
situação era diferente: vivíamos uma situação de paz, e havia trabalho levado a
cabo pelo governo e também, principalmente, pela Igreja Católica, no sentido de
as crianças frequentarem as escolas.
Outro aspecto muito importante era o interesse que os próprios pais
dedicavam aos estudos dos seus filhos. Sem dúvida alguma que essas crianças
depois não tinham perspectivas de continuidade de estudo. Portanto, faziam da
primeira até à quarta classe, e depois na aldeia não havia possibilidades de
continuar. As escolas da quarta classe para cima eram geralmente construídas
nas cidades, nos meios urbanos, e só os pais com posses financeiras é que podiam
enviar os seus filhos para lá. Isso significa que, mais ou menos em cem alunos,
menos de dez alunos davam continuidade aos seus estudos pós-quarta classe.
Mas até a quarta classe havia de fato um trabalho profícuo, um interesse muito
grande por parte da população.
Sem dúvida alguma que os objetivos pedagógicos a atingir também eram
diferentes. E aí entramos um pouco no campo político, porque o que se
pretendia fazer, e o que se fez mesmo, foi uma pedagogia ultramarina ou colonial
implantada na África, onde nós tínhamos que lecionar tudo o que era da Europa
e nada que era de África. Portanto, não se respeitavam os valores culturais de
cada povo. Era uma política de assimilação, e esse aspecto penso que é muito
importante.
2. ESCOLA TRADICIONAL, AUTORITÁRIA? “NÃO TANTO.” EXCLUSÃO? “NÃO
ERA UMA QUESTÃO DE RAÇA”
SÉRGIO: E pelo que o senhor se lembra, a relação entre professor e alunos, como é
que era? A escola tradicional era autoritária? Ou era uma escola aberta? Que
recordações o senhor tem? Eu pergunto isso porque, por exemplo, em conversa
com o camarada Lúcio Lara, ele dizia que, no tempo da experiência dele, ele
ainda se lembrava de que a palmatória era utilizada. Ele acha que a escola era
autoritária, que as relações entre professor e alunos eram um bocado distantes,
difíceis. O senhor tem essa mesma percepção?
BURITY: Não tanto. Isso variava muito de professor para professor. Mas havia
a inspeção escolar, e sem dúvida alguma que a inspeção escolar não pactuava
com esse tipo de atitudes pedagógicas. E recordo-me perfeitamente: o meu
inspetor era o professor Dario de Melo, que até agora está vivo. É escritor
também, e era uma pessoa muito severa nesse aspecto de punir professores que,
fugindo aos métodos pedagógicos clássicos, enveredavam por esses métodos
violentos. Para mim, era mais uma escola aberta, nesse sentido, não no sentido
político; aberta pedagogicamente. Mas nem todos os professores tinham uma
preparação igual para terem comportamentos iguais.
SÉRGIO: Quanto à questão da exclusão: o senhor na época tinha a percepção
de que uma grande parte das crianças angolanas ficava fora da escola? Ou havia
já um esforço do colono em assegurar que um maior número de crianças fosse à
escola, precisamente para poder assimilá-las mais facilmente?
BURITY: Bem, no meu tempo, já havia mais abertura. Eu já faço parte de uma
geração em que todo o processo colonial já estava não só em decomposição, mas
também em mudança, para se adaptar às novas realidades, que vinham sendo
impostas pelos movimentos de libertação.
SÉRGIO: Nós estamos falando de que anos? A sua experiência em Camacupa,
por exemplo, data de quando?
BURITY: Eu comecei a dar aulas nos anos 1970. A partir dessa época já havia
de fato uma tendência para a mudança, e a exclusão ia diminuindo. O que não
significa dizer que não havia discriminação. Havia discriminação, porque a
escola não proporcionava aos alunos a perspectiva de continuidade de estudos.
Portanto, um filho de família pobre via-se limitado a concluir no máximo a
quarta classe.
SÉRGIO: Isso tinha mais a ver, então, com a questão econômica? Não era tanto
uma questão de raça?
BURITY: Não.
SÉRGIO: Quer fosse preto, quer fosse branco, se fosse pobre, não conseguia ir
adiante?
BURITY: Não era uma questão de raça, de forma alguma, porque eu também
vivi essa situação como aluno. Ainda me recordo perfeitamente: eu era oriundo
de famílias pobres. Cresci com isenção de propinas, portanto não pagava
propinas. Eu beneficiava de uma merenda escolar e, bem, nunca reprovei,
sempre passei. Era um aluno muito querido pelos professores, porque eu tinha
muito jeito para fazer teatro e estava sempre envolvido em todas as atividades
extraescolares. Eu e outros elementos de raça negra. Penso que, nesse aspecto, a
minha geração não sentiu muito esse problema.
Cresci numa região onde o racismo ainda predominava muito, que era o
Huambo, o centro de Angola. Portanto, não posso de forma alguma dizer que
percebi que havia alguma discriminação pedagógica nesse sentido. No meu
tempo, já não havia isso.
3. A EDUCAÇÃO APÓS A INDEPENDÊNCIA: BALANÇOS DIFERENTES, SALADA
PEDAGÓGICA
SÉRGIO: Na conversa que tive com o camarada Lúcio Lara, perguntei a ele sobre
quando ele olhava para trás e pensava nos ideais que levaram o MPLA a toda essa
luta, não só pela independência, mas pelo progresso, pelo desenvolvimento, e
sobre o papel da educação nesse processo. A pergunta era: “qual é o balanço que
o senhor faz de todo esse sonho, essa luta, em termos de educação, para um novo
homem, uma nova mulher?” E a resposta que ele deu foi:
Até a independência foi muito positivo. Depois, aqui, estragou-se completamente. Nós deixamos
estragar, perdemo-nos! Veio a burocracia toda, os interesses todos urbanos, e perdemo-nos.
Aí eu pergunto a ele: “E porque é que se perderam? O que foi? Falta de quê?” E ele:
Foi esse contato com a cidade, a burocracia, se quiser, os interesses individualistas. Bom, perdeuse muito o patriotismo natural que havia em todos nós. Ninguém estava na luta por qualquer
interesse que não fosse libertar. Hoje as pessoas até que estão no mesmo movimento, no nosso
movimento, estão interessadas por negócios, por interesses outros que não são os ideais. O ideal
perdeu-se. O Ideal, com letra grande, perdeu-se. E hoje, eu vou ainda hoje ao meu partido, e,
quando lá chego, encontro funcionários do partido, mas funcionários abúlicos. Funcionários que
não têm nada do que nós tínhamos, não têm nada!
Ou seja, ele transmite uma impressão muito amarga…
BURITY: …um sentimento amargo.
SÉRGIO: Qual é a sua impressão a respeito disso, quando se comparam os
ideais que o senhor também viveu — e de que eu pude também, num certo
momento, partilhar — e a evolução? E qual é o balanço que faz dessa situação?
BURITY: Sim, senhor. A pergunta é muito interessante, e talvez eu não vá
completamente ao encontro do que diz o camarada Lúcio Lara. Pertencemos a
gerações completamente diferentes e, portanto, os ideais, embora possam ser
semelhantes, não são de forma nenhuma iguais. Porque o momento de luta
também mudou, as perspectivas da minha geração também já eram outras. Eu
discordo, não totalmente, mas discordo de algumas passagens que diz o
camarada Lúcio Lara, porque tudo aquilo que foi feito pós-independência foi um
esforço muito grande. Pese embora o fato de eu não ter participado diretamente
— eu era professor na época — mas nós, com muita ousadia, arriscamos a fazer
uma renovação completa no sistema de ensino. Teve as suas consequências,
positivas e negativas, sem dúvida alguma. Mas nós conseguimos começar a
elaborar os nossos próprios manuais, com uma visão política, histórica, cultural e
pedagógica completamente diferente.
Claro que isso não era fácil, porque não havia grande experiência. Muitas
experiências foram transportadas para aqui sem passarem por uma peneira de
pessoal angolano altamente qualificado que pudesse aproveitar essas experiências
— como, por exemplo, a experiência alemã, a cubana, a soviética e outras, de
outros países que passaram todos por aqui. E então fez-se aqui, digamos assim,
uma salada pedagógica que, nos primeiros tempos, as pessoas não sabiam muito
bem o que era.
Hoje nós temos livros que eu lhe posso mostrar, inclusive cadernos diários,
elaborados totalmente por angolanos que, durante esses 26 anos de
independência, foram aprendendo. Portanto, é muito positivo, porque, olhe, nós
chegamos a enviar cerca de 21 mil jovens para o estrangeiro, para estudar em
mais de 24 países. A maior parte deles regressou.
Com todas as vicissitudes que a guerra impõe a um sistema de ensino, nós
formamos quadros no país. Hoje, Angola pode-se orgulhar, mesmo com toda
essa situação, de ter quadros angolanos em todas as direções, em todas as frentes
da economia, o que muitos países africanos, com muito mais anos de
independência que nós, não têm. Eu não quero fazer referência a nenhum país
em especial, mas há países africanos que não fizeram essa travessia no deserto
que nós estamos a fazer, mas que têm muita dependência exterior, em termos de
recursos humanos.
Não é por ser angolano, mas também por ser angolano, sinto vaidade nisso. E
por ter participado quer na formação desses jovens no exterior do país — de que
posso falar com toda autoridade, porque fui um dos mentores dessa situação —,
quer na formação interna dos quadros, nós podemos dizer que, com uma melhor
atenção orçamental, ou seja, com melhores investimentos no setor, nós podemos,
sem dúvida alguma, até o ano 2015, introduzir todas as crianças em idade escolar
no sistema de ensino. O que me faz dizer que, aliando a riqueza deste potencial
humano ao potencial de recursos que Angola tem, Angola irá, sem dúvida
alguma, ser uma das maiores potências da África.
4. INVESTIMENTO NA EDUCAÇÃO? “AINDA NÃO HÁ SENSIBILIDADE”
SÉRGIO: Neste momento, a situação continua crítica, na medida em que, por
exemplo, há uma exclusão ainda muito grande de crianças.
BURITY: Sim.
SÉRGIO: Eu sei que as estatísticas nem sempre são pacíficas, mas a quanto
estamos? Estamos numa exclusão de cerca de 50% de crianças ou mais?
BURITY: De 47%, mais ou menos, de crianças fora da escola.
SÉRGIO: E o que é que o senhor acha que, nesse caso, vai ser preciso fazer para
alterar essa situação, na medida em que, evidentemente, todas as crianças têm
direito pelo menos à educação básica? Uma das críticas que eu ouço, às vezes, é
que o Ministério da Educação é um ministério que não tem recebido a
prioridade que deveria ter, do ponto de vista de investimentos, de recursos,
prioridade política. O ministro concorda com isso? E se concorda, acha que há a
possibilidade de inverter a situação, de se conseguir uma prioridade maior para a
educação? Ou acha que não, que, enquanto a questão da guerra continuar, nós
vamos ter que continuar gerindo o status quo.
BURITY: Penso que ainda não há verdadeira sensibilidade por parte das nossas
equipes econômicas — não é da atual; de todas as que eu conheci — para um
verdadeiro investimento no setor da educação. Não há essa sensibilidade e, por
isso, a educação encontra-se nesse estágio de desenvolvimento. Poderíamos estar
muito melhor, mesmo com a situação de guerra.
É verdade que a guerra destruiu cerca de 5 mil salas de aula, e vai levar algum
tempo a repor tudo isso. Mas isso passa essencialmente por uma decisão política
muito objetiva e muito clara, porque nós não temos outro caminho a seguir.
Angola não tem outro caminho a seguir. É um país potencialmente rico, como
lhe disse há pouco, mas também poderá ser um país potencialmente pobre, se
não formar os seus quadros. Vai girar na órbita e na dependência dos outros
países, mesmo da região, mais ricos.
Nós temos uma estratégia elaborada até o ano 2015. Ela não está quantificada
sob o ponto de vista financeiro, mas esse trabalho está a ser feito. Tem-se que
investir muito em infraestruturas, alargar a rede escolar a todo o país. E, acima
de tudo, nós temos que ter prioridades. Primeiro, ensino de adultos para formar
mulheres; inverter a atual percentagem de mulheres dentro do sistema de ensino,
em relação a rapazes. Isso porque sabe-se muito bem que educar uma mulher é
preparar uma família.
Por outro lado, nós temos que investir muito na formação dos professores. E,
posteriormente, ou simultaneamente, no alargamento da rede escolar. Para mim,
os fatores principais são: formação dos professores e a inversão do percentual
existente entre rapazes e moças dentro do sistema de ensino. Isso é muito
importante, porque são as mães que se preocupam em mandar os filhos para a
escola. E nós aqui vivemos essa situação porque, no tempo da plantação e da
colheita, as moças são muito utilizadas para esses trabalhos de campo e então
deixam de ir à escola. Portanto, se a mãe estiver instruída, preparada, ela não vai
fazer isso, vai mandar a filha para a escola. E se seguirmos essa política, num
universo de quinze até vinte anos podemos inverter completamente a situação.
SÉRGIO: Neste momento, ministro, quais são as suas maiores fontes de dor de
cabeça?
BURITY: Falta de escolas, salário dos professores e condições de trabalho.
Como vê, tudo isso está ligado às finanças.
SÉRGIO: E o senhor acha que há uma perspectiva, a curto prazo, de se
sensibilizar a equipe econômica? Ou acha que ainda vai demorar muito mais
tempo?
BURITY: Penso que não há outra saída. Nesse momento, os nossos dirigentes
preocupam-se muito em reconstruir fisicamente o país, mas o país precisa de
uma reconstrução moral. E essa reconstrução moral passa pela escola. Nós
estamos em guerra agora, mas vamos ter paz.38 E se não nos prepararmos agora
para esse período de paz, nós vamos ter muitos problemas sociais, tão graves
quanto a guerra, problemas psicológicos, de deficiências, enfim, muitos
problemas graves.
5. MUDANÇA: “A EDUCAÇÃO NÃO PODE, DE FORMA ALGUMA, SER POLITIZADA”
SÉRGIO: No passado, era relativamente simples, quando se analisava o sistema de
educação, ver quais eram os objetivos, do ponto de vista ideológico, não é?
BURITY: Hum, hum.
SÉRGIO: A partir, digamos, do princípio dos anos 1990, há uma…
BURITY: …mudança…
SÉRGIO: …no regime, em vários aspectos. Hoje, como é que o ministro
analisaria o sistema de ensino do ponto de vista político, ideológico? Quais são os
objetivos, quais são os ideais, por que é que nós estamos trabalhando, e para que
queremos a formação da nossa infância e da nossa juventude em Angola?
BURITY: Olhe, nós temos que despir ou retirar a cor das camisetas dos
pedagogos, porque penso que a educação não pode, de forma alguma, ser
politizada. Nós na educação devemo-nos preocupar com a formação patriótica,
com a formação cultural, histórica, enfim, em respeitar a bandeira, o hino
nacional, em formar um bom patriota, que conheça a sua pátria, que ame a sua
pátria, independentemente do partido em que estiver. Portanto, neste momento,
já estamos a trabalhar neste sentido. Pode consultar qualquer um dos nossos
livros: toda essa carga ideológica monopartidária foi retirada. Aquilo que diz o
camarada Lúcio Lara foi tudo retirado, porque a nossa perspectiva tem que ser
outra. Nós temos que formar o homem preparado para o futuro, e o homem
preparado para o futuro não é o homem preparado ideologicamente agora. No
seu crescimento, e no seu devido momento, ele vai escolher o partido que
entender. Para nós, o mais importante é formar a pessoa com as características
que atrás mencionei, e o técnico que consiga absorver bem as novas ou
renovadas tecnologias. Isso para mim, como ministro, penso que é muito mais
importante.
SÉRGIO: Quando o ministro fala que a educação não deveser politizada, é no
sentido de que ela não deve estar a serviço de um partido específico, é isso?
BURITY: Específico. Portanto, nós temos que partir, no meu entender, do
conceito “nação”. A partir do conceito “nação”, formar o homem, e não ensinálo o que é esse partido, o que é aquele partido ou aqueloutro. É a nação, e a nação
tem história. Nessa história podem entrar, ou se fazer referência à história dos
vários partidos que existiram, porque não podemos negar, de forma alguma, a
existência deles. Nós devemos a mudança política que se verificou neste país à
luta armada desses próprios partidos. Portanto, esses partidos vão fazer parte da
história, mas isso não significa, de forma alguma, politizar os alunos para este ou
para aquele partido, mas sim educá-los no sentido de que existe uma história, e
que todos nós devemos conhecê-la.
6. PAULO FREIRE? “SERÁ SEMPRE UMA REFERÊNCIA MUITO POSITIVA”
SÉRGIO: Uma curiosidade minha com relação ao Paulo Freire: existe alguma coisa
e m particular que lhe tenha chamado a atenção nos livros, nas ideias, na
influência possível que o Paulo Freire possa ter tido? Qual é a sua percepção em
relação ao trabalho dele? Já que estamos, neste diálogo, em um livro em que se
discutem esses aspectos também ligados à presença de Paulo Freire na África, o
que é que o ministro registra ainda a respeito dele?
BURITY: Paulo Freire será sempre uma referência muito positiva, no
desenvolvimento do processo educativo. Muito positiva porque, para mim, Paulo
Freire foi um dos pedagogos clássicos, digamos assim, ou da era mais moderna,
que revolucionou — ou pretendeu revolucionar, penso que era essa a sua luta,
revolucionar — a pedagogia, a favor das camadas mais desfavorecidas.
E nós adotamos cartilhas de alfabetização elaboradas pelo Paulo Freire.39
Trouxemos essa experiência para Angola, que foi muito positiva. Portanto, Paulo
Freire é uma referência na África, é uma referência no Terceiro Mundo
principalmente, porque ele lutava para que a pedagogia chegasse aos países mais
pobres, à população mais pobre.
7. O SONHO: “MELHORAR O SETOR”, UM COPO DE LEITE E UM PÃO
SÉRGIO: Para finalizar, o senhor vê que não foi tão difícil, (o ministro ri) o
ministro estava um pouco preocupado no início (riem): qual é o seu sonho em
relação à educação das crianças de Angola?
BURITY: Bem, sem dúvida alguma que o sonho de qualquer ministro é
melhorar o setor, e penso que devemos criar condições suficientes para uma
aprendizagem correta. Isto passa por aquilo que vimos há pouco: pelos meios
didáticos, pela qualificação dos professores, pelas condições de trabalho e
também pelos programas que nós adotarmos de estudo.
Se nós fizermos tudo isso, acompanhado de outros mecanismos
incentivadores para as nossas crianças, como, por exemplo, a merenda escolar…
É um fator de incentivo muito grande para evitar o insucesso escolar, as
reprovações, as desistências. É sem dúvida um mecanismo extremamente
importante. Estamos a ver agora, com a experiência que estamos a fazer em
algumas províncias: há uma diferença abismal, entre as escolas que estão a adotar
esse sistema — onde nós estamos a experimentar esse sistema de merenda
escolar — e as que não têm. Não só para as crianças, mas até para os professores,
porque os professores também se beneficiam de um copo de leite e um pão, que
muitas vezes não têm quando saem de casa.
Vimos agora, no período de greve: essas escolas não aderiram à greve, porque
o próprio professor pensou: “Bem, eu vou aderir à greve, vou perder o copo de
leite e o pão que tenho na escola.” Quer dizer, a situação é tão difícil, tão
dramática, que leva nossa população ao extremo de pensar. Mas essa é a nossa
realidade. Portanto, o governo, sem dúvida alguma, terá que aumentar o
orçamento do setor, do ministério, penso que, no mínimo, para 17%.
SÉRGIO: Neste momento, de quanto é?
BURITY: Em questões práticas, estamos em 4,7%, por aí. Embora no
orçamento apareça 7,8%, na prática, o que é executado não ultrapassa os 5%.
Necessitamos de, no mínimo, 17% a ser aplicado na íntegra para investimentos
físicos — portanto, em infraestruturas —, materiais didáticos, professores, enfim,
tudo isso.
Notas
Diálogo com o ministro da Educação António Burity da Silva Neto, registrado em 17 de outubro de 2001,
em Luanda.
36
37
Província do Bié, no centro de Angola.
Com a morte do líder da Unita, Jonas Savimbi, em fevereiro de 2002, e a assinatura do acordo de paz
entre esse partido e o governo em abril, abriram-se efetivamente novas perspectivas em Angola.
38
O mais exato seria dizer “inspiradas”, ao invés de “elaboradas”, como afirmou Pepetela anteriormente
(Ver capítulo 6, item 5, p. 146. “No fundo, nós tentamos acasalar o método Paulo Freire com o cubano”).
39
QUARTA PARTE
GUINÉ-BISSAU — I
8
“TIVEMOS QUE CONSTRUIR A PARTIR DA
PRIMEIRA PEDRA”
1. A HISTÓRIA DAS “CARTAS À GUINÉ-BISSAU” E O PAIGC: “VAI NOS
ENSINAR O PORTUGUÊS?!”
SÉRGIO: HOJE É UMA SEXTA-FEIRA, 8 de março de 2002. Dia Internacional da
Mulher, aliás, e nós estamos em Bi ssau. Mário, como eu estava te d izendo antes,
a minha ideia era a de que nós buscássemos um pouco n a memória uma forma
de situar a questão da educação na Guiné-Bissau, começando talvez por um livro
do Paulo Freire que se tornou muito conhecido: o Cartas à Guiné-Bissau.40
Dessas cartas — que são, aliás, dezessete — pelo menos onze, são dirigidas a
Mário Cabral e seis à equipe. Afinal, você chegou a receber mesmo essas cartas
ou era mais um recurso literário que o Paulo utilizou? Qual é a história dessas
cartas?
MÁRIO: Eu realmente tenho muito prazer em responder a essas questões,
embora possa dizer que a memória nem sempre retém com tanta lucidez todo o
percurso, não é? O que posso dizer é que, com a libertação do país todo, com
aquela escola que foi a luta de libertação — em que Amílcar dizia que quem sabe
deve ensinar àquele que não sabe —então, chegada a independência, nós
quisemos fazer uma grande campanha de alfabetização. O ideal seria alfabetizar
toda a gente, porque chegamos à independência com 93,7% de analfabetos, o que
significava que o país, para se desenvolver, não poderia fazê-lo sem fazer um
recurso enorme à alfabetização.
Enquanto ministro da Educação, tentei ir para a parte de mobilização, de
sensibilização, de envolvimento dos jovens em campanhas de alfabetização por
todo o país. E tivemos muitos sucessos, mas também tivemos muitas
dificuldades. Por quê? Porque, apesar do entusiasmo, não havia os
conhecimentos, a experiência pedagógica de como se iria desenvolver o trabalho.
Tínhamos uma pequena equipe que foi trabalhando, mas os primeiros
embates começaram por ser pela língua. Por que nós, a alfabetização, estávamos
a fazê-la em português. Além de ser uma língua desconhecida pela grande
maioria da população, as pessoas não entendiam muito bem a razão. Lembro-me
de que, uma vez, me disseram: “Mas, afinal, os colonialistas estiveram cá
quinhentos anos e não nos fizeram aprender a língua deles. Como é que agora o
PAIGC, que lutou contra o colonialismo, vai-nos ensinar o português?!” Eu
disse: “Olha, é tão simples como isso: eu sou agrônomo. Estamos a tentar
melhorar a nossa agricultura. Nós temos que recorrer a instrumentos, sementes
melhoradas, adubos etc., mas também vamos recorrer a tratores. Não fomos nós
que inventamos o trator. Nós vamos utilizá-lo para abrir os caminhos do
desenvolvimento. Ora, a alfabetização é isso mesmo. As nossas línguas são
muitas, uma trintena, e não temos a capacidade de fazer a alfabetização em todas
as línguas. Vamos utilizar o português. Se calhar, vamos utilizar o crioulo, que é
uma língua falada por mais ou menos 80% da população.”
Com o tempo, então, nós, conhecendo a grande experiência que tinha Paulo
Freire, quisemos pedir o apoio dele. E então Paulo Freire vem dar-nos esse apoio
intelectual, esse apoio de conhecimentos vividos em diferentes situações mais ou
menos próximas daquelas que estávamos a viver. E o processo continuou, mas
Paulo Freire, que era um grande intelectual, um homem realmente de uma
capacidade, de uma oralidade extraordinária na explicação e no envolvimento,
foi nosso professor, de nós todos. Passávamos horas discutindo todas as
questões.
Devo dizer que, depois da independência, com todo o entusiasmo que
apareceu por todo o país, inclusive na chamada diáspora, as pessoas estavam
muito disponíveis para vir. Lembro-me de uma primeira missão que eu,
enquanto ministro da Educação, e o ministro da Saúde fizemos a Portugal, para
ir procurar quadros, porque não havia professores. A maior parte dos professores
eram ou militares ou esposas dos militares, das poucas escolas primárias que
havia. Foram todos para Portugal! Então nós fomos à procura de cooperação
com professores portugueses, por meio de um quadro estabelecido entre os dois
países. Mas também encontramos muitos dos nossos compatriotas que estavam a
estudar. Muitos deles abandonaram os seus estudos para vir trabalhar para o
desenvolvimento do país. E participaram nisso.
2. “FALÁVAMOS MAS NÃO ESCREVÍAMOS.” E A DEDICATÓRIA A AMÍLCAR
CABRAL
MÁRIO: E, então, havia muitas discussões, porque era gente com uma formação
intelectual já bastante boa, e tinham também alguma coisa a dizer quanto a como
fazer essa alfabetização. Com a experiência do Paulo Freire e da sua equipe,
fizemos todo um processo, e as Cartas à Guiné-Bissau aparecem como o
resultado do intercâmbio que fomos estabelecendo, dos diálogos que se
produziram.
E aí foi muito bom, porque Paulo Freire teve capacidade de sintetizar essa
experiência, que era mais oral — aliás, essa é a tradição africana, não é? —, mas
não escrevíamos. Ele foi capaz de pôr no papel muitas das ideias que
intercambiávamos e as sínteses, para poder continuar na sessão seguinte.
Portanto, essas cartas efetivamente foram cartas, ou escritas diretamente ou
resultado das conversas que tivemos, mas que ele procurava, de certa maneira,
sintetizar, para facilitar o progresso nos trabalhos subsequentes.
SÉRGIO: Você recebeu alguma dessas cartas pelo correio? Ou não era carta,
carta mesmo?
MÁRIO: Algumas sim. Eu não as tenho agora, porque a minha vida tem
mudado muito, mas a minha esposa certamente tem muitas cartas que nós
recebemos de Paulo Freire. E outras foram também eventualmente trabalhadas
em função das nossas conversas. Mas ele sempre procurava mandar cartas. Aliás,
antes de qualquer outra missão, havia sempre uma proposta de como continuar
no diálogo, nos trabalhos que nós estávamos a fazer.
Falei de minha esposa, que trabalhou na educação, como posso falar da Dulce
Borges, que agora trabalha na Unesco, no Brasil, e que era a diretora geral do
ensino, ede vários outros: do Manecas Rambeau Barcelos e outros que
participaram nos primeiros momentos do lançamento dessa grande epopeia que
foi a educação na Guiné-Bissau.
SÉRGIO: O livro Cartas à Guiné-Bissau é dedicado a Amílcar Cabral.41 Como é
que você define o papel que o Amílcar Cabral representou? E, a partir do
relacionamento que você teve com ele — você certamente conviveu com ele,
não?
MÁRIO: Naturalmente.
SÉRGIO: …qual a sua visão do Amílcar hoje? Como é que você resumiria as
ideias que o Amílcar tinha em relação à educação, a todo o processo de
independência e da construção do país, aliás, onde a educação tinha um papel
fundamental? Qual o balanço que você faria da participação do Amílcar, como
pessoa e como um dos fundadores da nação guineense?
MÁRIO: Penso que o Paulo Freire compreendeu muito bem que Amílcar
Cabral foi um grande pedagogo, apesar de não o ter conhecido pessoalmente. Eu
conheci o Amílcar pessoalmente, e o primeiro contato que tive com ele foi ainda
criança, estudante em Gabu.42 Meu pai era chefe dos Correios. Amílcar Cabral,
naquele inquérito agrícola que fez à Guiné, foi ao Gabu. E ele, que era um
homem simples, contatou muita gente, e foi contatar um senhor que tinha um
apelido igual ao dele, Abel Cabral, que era o meu pai.
E então, quando ele chegou à minha casa, eu e meus irmãos estávamos a
tomar banho lá no quintal, assim à vontade. E eu vi aquele homem negro, de
sandálias plásticas nos pés, e de quem o meu pai disseme: “É engenheiro
agrônomo.” Aquilo causou-me um impacto enorme, e não é por acaso que eu
sou também agrônomo. Terá sido o nosso primeiro encontro. Mais tarde, já
como adulto, como estudante, primeiro em Bissau, mas depois na universidade,
não foi com dificuldade que eu me teria mobilizado para integrar as fileiras
clandestinas do PAIGC.
Amílcar foi um homem muito simples, com uma argúcia muito grande, de
uma grande capacidade de diálogo, razão pela qual conseguiu realmente colar as
partes e construir pouco a pouco a nação guineense. Isso é um processo
pedagógico! Aliás, se tiver a ocasião de ler livros de Basil Davidson,43 há de ver a
grandeza desse homem, desse intelectual africano, e das perspectivas que ele
tinha para o futuro. Ontem ainda fui convidado pelos antigos alunos da escola
piloto, e pediram-me para dizer duas coisas. E uma das coisas, foi: “Este encontro
vai exatamente na linha de recordar os ensinamentos de Amílcar Cabral, que foi
o nosso grande professor, o nosso grande líder, e que nos faltou no momento
mais precioso do desenvolvimento histórico nacional.”
3. “UM MOMENTO ESPECIAL. FOI PENA QUE NÃO SE TIVESSE CONTINUADO”
MÁRIO: Penso que Paulo Freire, eventualmente tendo lido livros que Amílcar
teria escrito ou teria inspirado, compreendeu que ele realmente era o elo, como
nós dizemos, o fundador da nacionalidade guineense e cabo-verdiana. Porque
tivemos essa particularidade de ter sido um único partido para lutar para a
libertação de dois povos. Essa ligação entre Guiné e Cabo Verde remonta dos
tempos históricos, que Amílcar soube realmente utilizar para promover essa luta
pela libertação nacional. Por isso eu digo que a influência de Amílcar não é só de
ontem, de hoje, mas será de amanhã ainda, porque temos muito o que aprender
com os seus ensinamentos.
Paulo Freire utiliza muito bem essas imagens e todo o processo de
reconstrução nacional, de que, digamos, a educação não é senão um aspecto, mas
um aspecto muito importante. Esse processo inspirou — e ainda bem — toda a
edificação do sistema educativo. Porque, quando chegamos à independência,
como eu disse, tínhamos 97,3% de analfabetismo; tínhamos catorze professores
primários formados, tínhamos uma única professora do ensino secundário —
que é a tal Dulce Borges.
Está a ver o que era construir o Ministério da Educação? A educação era
apenas um serviço ligado a Portugal. A maior parte da administração era dirigida
por militares, e o funcionário mais elevado que encontramos era uma pessoa que
tinha o nível de secretária, praticamente, e que foi promovido, à última hora,
como segundo oficial. Quer dizer, nós tivemos que construir a partir da primeira
pedra, praticamente, o Ministério da Educação, razão porque a experiência que
tivemos com Paulo Freire e com a sua equipe ajudou não só a alfabetização, mas
todo o processo da instauração do sistema educativo no país.
Aliás quando, em 1978 fizemos o primeiro encontro dos ministros de
Educação e alfabetizadores dos países lusófonos, dos Palop,44 a influência de
Paulo Freire foi perfeitamente evidente. E aí envolvemos os outros países, nossos
irmãos Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, e foi realmente
um momento especial. Foi pena que não se tivesse continuado. Logo a seguir,
entretanto, eu também mudei para outra responsabilidade, para ministro da
Agricultura. Mas aquele foi um momento alto, em que todos os países recémlibertados estavam à procura de uma afirmação, à procura de um sistema
educativo que fosse uma resposta à própria situação cultural que cada país vivia;
quais os caminhos deveriam ser trilhados para aí chegar?
Não tenho estado muito ligado a essas questões agora, mas eu sei, inclusive
pelos dois últimos ministros da Educação. Um deles foi um jovem de quem eu
gostava muito, e trazia-o sempre para os debates. Ele ainda falava dessa
experiência e dizia: “E pena que não tenhamos a capacidade de reproduzir esse
ambiente do dar e do receber que havia!” Porque nesse processo todos nós
aprendemos, do ministro aos simples alunos, com as conversas que tivemos,
longas horas de debates e de troca de ideias. E há, felizmente, muita coisa que foi
publicada. O problema agora seria fazer uma síntese atualizada daquilo de que
foi produzido na época, daquilo que foi escrito, daquilo de que a nossa memória
ainda se lembra, para poder continuar a inspirar o processo da edificação do
nosso sistema educativo, como parte integrante do desenvolvimento.
Penso que algumas falhas que nós tivemos e estamos tendo no
desenvolvimento é porque a educação não foi considerada um problema de toda
a sociedade, como nós dizíamos.
4. A HERANÇA E A ESCOLA COLONIAL: “POUCA GENTE TINHA ACESSO”
SÉRGIO: Uma observação que eu queria fazer, ainda antes de entrarmos mais
diretamente na própria experiência da alfabetização com a orientação que o
Paulo deu, é a seguinte, quanto à situação que vocês herdam do período colonial.
No próprio Cartas à Guiné-Bissau há, num determinado momento, uma
referência a um texto de Luiza Teotônio Pereira e Luís Motta, onde eles dizem:
Em dez anos, de 1963 a 1973, foram formados os seguintes quadros do paigc: 36 com o curso
superior, 46 com o curso técnico médio, 241 com cursos profissionais e de especialização e 174
quadros políticos e sindicais. Em contrapartida, desde 1471 até 1961, apenas se formaram catorze
guineenses com curso superior e onze no nível técnico.45
Qual era a situação que vocês herdaram, basicamente? Como é que era o dia a
dia da educação na Guiné ainda no tempo colonial? Você, por exemplo, foi aluno
da escola primária aqui. Como é que era essa escola? Como é que você, negro
guineense, teve acesso a ela e, a partir do seu caso particular, como é que você
descreveria a situação da educação no período de antes da independência?
MÁRIO: Digamos que a escola, no período colonial, era uma escola
extremamente seletiva.46 Pouca gente tinha acesso à escola. Tive acesso porque,
sendo meu pai funcionário público, era natural que eu fosse à escola. E, como eu,
outros filhos de gente com uma certa posição social, foram. Mas a grande
maioria dos meus contemporâneos, das crianças com quem brincávamos, ou não
tinham acesso à escola ou tinham-no em circunstâncias extremamente difíceis.47
Por isso, era uma escola que começava já por ser seletiva, porque uma grande
parte da população não tinha acesso. Depois, quando entrassem para a escola,
poucos chegariam ao fim. Portanto, o sistema piramidal formava-se de início. Eu
fui dos poucos, eventualmente, que chegou ao antigo sétimo ano do liceu, para
poder ter esperanças de candidatar-me a uma bolsa de estudos, o que me
conduziu a Portugal. Eram muito poucos os que chegavam a essa situação.
A escola era muito seletiva, efetivamente: quando chegávamos ao liceu,
grande parte dos estudantes eram os filhos dos funcionários coloniais europeus
que estavam aqui. Podemos dizer também que havia muitos cabo-verdianos,
filhos dos originários de Cabo Verde que estavam também na administração. E
os poucos guineenses que aí chegavam tinham passado por um sistema de
filtragem muito rigoroso, razão pela qual essa comparação que Luiza Teotônio e
Luís Motta estavam a fazer é um tanto baseada nas estatísticas que nós tentamos
demonstrar: que os colonialistas, nestes cinco séculos que aqui estiveram, não
tinham formado praticamente nada! Essa foi a herança que nós recebemos.
5. “A PANCADA ERA A CHAVE PARA ABRIR AS CONSCIÊNCIAS”
SÉRGIO: No dia a dia da tua escola, você como aluno: como é que era essa escola,
você se lembra? Da pedagogia que se utilizava, do relacionamento entre
professor e aluno, você ainda se recorda? Apanhava-se nessa escola? Você
chegou a apanhar alguma vez? Quais eram os métodos utilizados?
MÁRIO: O método era o “magister dixit”. Aí não havia diálogo. O professor
era o homem que sabia tudo e que ensinava tudo, os alunos só tinham que
aprender. E tinham que aprender, porque, se não aprendessem, apanhavam de
palmatória. Eu ainda fui do tempo da palmatória, da vara. Felizmente não
apanhei, talvez porque… não digo que fosse um estudante brilhante, mas, das
turmas por onde passei, muitas vezes eu era como que um auxiliar do professor,
para fazer perguntas, fazer as lições dos meus colegas. E lembro-me, uma vez, da
dor que senti ao ter que dar palmatoadas em minha irmã mais velha, porque ela
não tinha respondido às questões. Éramos nós que batíamos, em substituição ao
professor.
Bom, esse era o sistema que o nosso professor tinha instaurado, numa escola
missionária. Aliás, depois, quando fui ministro da Educação, mudei o nome das
escolas, e uma das escolas chama-se precisamente “Antônio José de Souza”,
porque o nosso professor chamava-se assim, e era um bom professor. Mas,
pronto, ele utilizava os velhos métodos, em que a pancada era a chave para abrir
as consciências, talvez para as pessoas aprenderem melhor.
Era uma escola, portanto, neste estilo, a que nós tivemos. O relacionamento
entre os professores e os alunos era muito hierarquizado. Esse professor, Antônio
José de Souza, que me marcou muito, era considerado um bom professor, e
efetivamente era. Ele tinha uma maneira de dialogar com os seus estudantes,
sempre com aquele respeito do professor, mas com um intercâmbio, o que não
acontecia em muitas outras escolas, em que o professor era o senhor que
chegava, dava a sua aula e ia-se embora, não tinha mais nada a ver com os
alunos. Mas, como eu disse, na minha quarta classe frequentei uma escola
missionária. E aí havia um outro espírito, um espírito missionário, de tentar
evangelizar.
Enfim, essa escola era uma escola pouco democrática, para não dizer nada
democrática. E o espírito de dar e receber era muito pouco constatado. Os
métodos eram muito rígidos. Os professores obrigavam a memorizar, como dizia
o Paulo Freire, a comer, a mastigar esse conhecimento, que tinha pouco de
inspirador, pouco de participativo.
6. ALFABETIZAÇÃO EM LÍNGUAS NACIONAIS? “AÍ TIVEMOS DIFICULDADES DE
ESCREVER”
SÉRGIO: Entrando já no âmago da experiência da educação pós-independência e
do trabalho na área da alfabetização: uma das questões que voltam com mais
frequência é a questão da escolha da língua. Aliás, na parte final já do livro Cartas
à Guiné-Bissau, o Paulo diz especificamente o seguinte:
Um dos pontos a que terei de voltar, de maneira mais ampla, possivelmente no primeiro destes
futuros relatórios, é o da língua. Na verdade, quanto mais me inspiro na experiência guineense,
tanto mais a importância desse problema se evidencia, demandando respostas adequadas em
situações diferentes. De fato, o problema da língua não pode deixar de ser uma das preocupações
centrais de uma sociedade que, libertando-se do colonialismo e recusando o neocolonialismo, se
dá ao esforço de sua recriação. E neste esforço de recriação da sociedade a reconquista pelo Povo
de sua Palavra é um dado fundamental.48
Esse problema da língua volta sempre, quando se procura fazer o balanço da
experiência, e há críticas, inclusive, justamente à escolha da língua portuguesa,
não porque ela fosse a língua do colono; o problema não é tanto ideológico, mas
prático, que vem do fato de que a língua portuguesa não corresponde à realidade
cotidiana do aluno. Como é que se pode querer então que ele aprenda, se não é a
sua própria língua? É claro que hoje nós vemos isso de uma forma crítica porque
temos um outro contexto, já aprendemos etc., mas, na época como é que você
situava essa questão da língua? Além do que você já disse, no início, que reflexões
você faria sobre esse ponto, e como você pensa que se deve encarar o problema
da alfabetização e da educação na Guiné-Bissau, tendo em vista a questão da
língua a ser utilizada no ensino?
MÁRIO: é uma questão recorrente, não? Cada vez que você enfrenta, e
sobretudo analisa, o fenômeno educativo, tem que esbarrar no problema da
língua que, aliás, não é um problema guineense, é um problema universal. Não é
por acaso que a Unesco acaba por discutir as questões da língua e considera que,
de fato, a alfabetização e o ensino devem ser feitos nas línguas nacionais.
Esses dados, nós descobrimos na prática do dia a dia. Como eu disse, as
pessoas ficaram de certa maneira escan dalizadas quando o paigc ensina a língua
do colono que ele expulsou! Aí já se põe o problema, o porquê da língua
portuguesa. Mas, como eu disse, nós tentamos explicar sempre: como um
instrumento, como uma abertura a um ambiente maior, porque as nossas línguas
não eram escritas. Fizemos um esforço de ver como resolver o problema, porque
um país de pouco mais de um milhão de habitantes, com trinta línguas!49
Certamente não são os meios do país que vão permitir alfabetizar, produzir
livros, produzir todo o material didático e pedagógico necessário para o efeito,
não é? Então nós escolhemos, na altura, seis línguas: era o português e, entre as
línguas nacionais, era o crioulo, o balanta, o fula, o manjaco e o mandinga. Com
a escolha dessas línguas, fazia-se uma cobertura de cerca de 80% da população.
Mas mesmo aí tivemos dificuldades de escrever. E mesmo em relação à
escrita do crioulo, é uma questão que ainda hoje se discute. Estava a ver aí nesse
livro,50 em que se escreve “Kacu-Martel”. Em crioulo, nós tínhamos adotado o
“c” como “tch”, porque é um som que não existe no português: “katchu”. O “c”
praticamente não é utilizado no crioulo, há outros fonemas que podem dar o
som. Então nós utilizamos o “c” como “tch”. Portanto, daí se vê toda a
complexidade do problema.
Mas é verdade que, para que uma pessoa possa dominar os instrumentos do
desenvolvimento, precisa de o fazer numa língua que domina absolutamente.
Aliás, costuma-se dizer que o africano tem tendência a aprender outras línguas.
Por quê? Porque normalmente aprende uma, que é a materna, e depois aprende
outra, que é a língua oficial, desde a mais tenra idade. Fica, portanto, preparado
para absorver outras línguas, porque já teve base e começa a parecer, logo de
início, um poliglota. O problema de língua, portanto, é um problema atual, não?
7. ALFABETIZAR EM SEIS LÍNGUAS? AS MINORIAS, OS FILHOS DOS DIRIGENTES E OS
FILHOS DO POVO
SÉRGIO: Para estimulá-lo mais dentro desse debate, gostaria de observar o
seguinte. Aliás, é um comentário que eu já havia feito bastante tempo atrás, com
relação ao problema que Angola enfrentava também, no caso da alfabet ização.
Com o agravante, no caso angolano, de que eles não têm, ao contrário de vocês
aqui, uma língua crioula, que servisse — sendo língua nacional, portanto língua
africana — como instrumento de comunicação entre as diferentes etnias. Por
isso, no caso de Angola, a situação é mais difícil ainda.
O que eu argumentava em Angola era: quando se vai para uma escolha das
línguas nacionais — que, como você disse, a Unesco privilegia — e tendo em
vista as condições econômicas, sociais, o processo de desenvolvimento de cada
país e o quadro linguístico de que o país dispõe, eu me pergunto até que ponto,
ainda que justificada pedagogicamente ou ideologicamente, essa escolha das
línguas é viável na prática.
Vejamos: um país que tem dificuldades para formar professores já numa
determinada língua, imagine agora esse país tendo que formar professores em x
línguas. No caso da Guiné-Bissau, seria o quê? Seis línguas nacionais? Em vez de
você formar professores numa língua, você teria que formá-los então em seis
línguas diferentes. Além disso, você teria que pressupor que os alunos seriam
agrupados, fisicamente, de acordo com as suas próprias etnias. Bastaria que
houvesse, numa escola, duas ou três crianças de cada uma das diferentes línguas,
para que se justificasse a presença de professores em todas essas línguas, certo?
Ora, se o critério é escolher a alfabetização na língua materna, ou seja,
reconhecer a cada criança o direito de alfabetizar-se na sua própria língua, o que
fazer então com as crianças pertencentes às minorias linguísticas? A própria
escolha de algumas das línguas nacionais e a não escolha de outras,
provavelmente com base em estatísticas, criaria um problema sério do ponto de
vista do direito da criança, na medida em que o princípio da não discriminação
estaria em causa. Isso para não falarmos dessa organização do ensino poder vir a
fomentar tendências tribalistas, num contexto onde os fatores de unidade
nacional ainda são frágeis, não é?
Mas não é só isso. Seria preciso produzir materiais de ensino, de leitura, de
estudo, nas tais seis línguas, porque, do ponto de vista ideológico, nós teríamos
então que encarar de uma maneira equitativa as diferentes línguas, e assim não se
justificaria que se tivesse material para uma e não para outra. Ora, num país que
já tem dificuldades de produzir material e de formar professores numa língua,
imagine o que não seria em seis línguas diferentes!
Para complicar ainda mais as dificuldades, são línguas que, na maior parte
dos casos, não têm tradição escrita ainda. Claro que elas podem começar a ter.
Aliás, este não deveria nem ser um argumento capital na não escolha de uma
língua: não é pelo fato de que ela não seja ainda língua escrita que não se poderia
utilizá-la, na medida em que se pode criar então a história da escrita e aí essa
história se acumularia. Portanto, não é esse o maior problema.
O problema, ainda prático, é o de como organizar a educação para que todas
as crianças pudessem ter o direito assegurado de serem alfabetizadas na sua
própria língua. Além disso, se você, como dirigente, tem uma prática do
português e fala em casa com os seus filhos a língua portuguesa, os seus filhos já
terão um acesso mais espontâneo, mais natural a essa língua. Isso já ocorre em
muitas situações, por exemplo, em Angola, onde já há um número significativo
de crianças que falam o português praticamente como língua materna. Então,
nada mais justo que o português também possa ser uma língua de ensino…
MÁRIO: Exato.
SÉRGIO: …para as crianças, guineenses ou angolanas, que já nascem numa
situação que as leva a falarem o português como língua materna. Então nós
teríamos aí, para intensificar um pouco mais essa complexidade, alunos que
teriam o direito de serem alfabetizados em língua portuguesa e fazerem o ensino
primário nessa língua, certo?
Então pergunto: daqui a alguns anos, quando os alunos forem avançando,
terminam a escola primária, começam a segunda fase do ensino de base, o ensino
secundário, o que é que vai acontecer? A menos que nós adotemos — esta é que é
a minha posição — uma política de bilinguismo efetiva, para que as crianças
aprendam realmente uma segunda língua, que seja uma língua veicular e que dê
maior acesso aos canais de comunicação com o mundo; a menos que a gente faça
isso, o que vai acontecer é que os alunos filhos dos dirigentes, ou daqueles que
tiveram mais acesso à língua portuguesa, vão ter muito mais vantagens no
desenvolvimento do seu processo na educação secundária, e mesmo na superior,
do que aqueles, os filhos do povo, de diferentes etnias, que acabaram tendo a
educação primária na língua nacional.
8. “POR QUE É QUE OS NOSSOS FILHOS VÃO APRENDER NESSA LÍNGUA?”
SÉRGIO: Essa é a complexidade que eu vejo, e gostaria de ouvi-lo a respeito. Mas
há uma última observação que eu faria e que, aliás, eu já tinha discutido também
com o Paulo. É a seguinte: o que a gente observa — e a Unesco já constatou isso
em muitas partes do mundo — é que a recaída no analfabetismo é um problema
tremendo. Quando há interesse, da parte dos governos, há muitas vezes também
uma pressa enorme em promover campanhas de alfabetização, em demonstrar,
através de número s, que há um avanço nessa área, talvez porque seja essa uma
das áreas escolhidas entre os indicadores de desenvolvimento mais evidentes. No
entanto, a gente vê que, depois, como os alfabetizados não têm a oportunidade
de praticar, de conviver no dia a dia com o domínio do instrumento que
aprenderam, eles acabam praticamente voltando para a estaca zero.
Ora, o que eu discutia com o Paulo era: em vez de nos precipitarmos para
uma alfabetização entendida já como processo de aquisição do domínio da
leitura e da escrita, por que não nos assegurarmos primeiro de que — no caso,
por exemplo, de uma segunda língua, como é a língua portuguesa na Guiné — os
alunos a dominem primeiro oralmente? Evidentemente, essa língua irá entrando
à medida que o processo de modernização tecnológica e de desenvolvimento for
acontecendo. Como língua que permite maior abertura para o mundo, ela
permitirá que quem a domine ultrapasse as fronteiras do nacional, por um lado,
e do cultural, entendido como âmbito de uma etnia apenas, por outro.
Por que a pressa? Por que não trabalharmos primeiro no sentido de garantir
um domínio efetivo da oralidade, para depois então passarmos para essa fase do
domínio da leitura e da escrita? Enfim, já falei um bocado e queria te ouvir um
pouco em relação a isso tudo que eu havia comentado antes: a escolha das
línguas, essa complexidade toda. Como é que você reage em relação a isso?
MÁRIO: A questão da língua é muito complexa porque é um problema
político, um problema econômico, um problema com muitas vertentes. Porque
se trata de uma opção: quando você tem trinta línguas, por que selecionar seis,
por exemplo, no caso da Guiné-Bissau, em vez de serem todas? Cada língua tem
o seu direito, não é? Mas a capacidade do Estado não se compadece com a
instauração de uma alfabetização de cada língua de cada cidadão. E, para mais,
também há o problema do nacional: a Guiné-Bissau não pode ser um mosaico de
identidades próprias, que aprendem na sua língua e fazem tudo na sua língua. Aí
o crioulo desempenhou, na luta de libertação, e continua a desempenhar um
papel de unificador, de língua veicular, e acho que isso deve ser privilegiado.
Acredito que, como nós fizemos a opção na ocasião, era a de utilizar o
português como uma língua de acesso ao universal, às outras culturas, uma
língua escrita, já com material de aprendizagem, de intercâmbios etc.; o crioulo,
como língua de unificação e, sobretudo para a alfabetização, identificar algumas
línguas que pudessem facilitar os conhecimentos.
E discutimos essa questão da introdução do crioulo como língua de ensino
nos primeiros dois, três anos, precisamente para permitir um maior acolhimento
dos novos conhecimentos que os alunos iam tendo, um maior intercâmbio, uma
maior penetração. Mas para depois continuar em português, porque não
teríamos capacidade de fazer todo o ensino, digamos, como se faz em relação ao
suaíli, porque o suaíli é uma língua regional: não é um país, são vários países.
Bom, mas aí está o problema de que nem sempre nós recebemos, sobretudo
da parte da pequena burguesia, muita receptividade, porque diziam: “Mas, por
quê?” Uma vez, o Manuel Rambeau Barcelos, o Manecas, já como ministro da
Educação, pediu-me para ir lá, com a minha autoridade política e experiência de
antigo ministro, para dizer às pessoas o bem que era ensinar em crioulo.
Mas depois houve uma senhora que me disse: “Mas olha lá, Mário Cabral!
Você aprendeu em português desde a escola primária e fala muito bem o
português, e nós temos muito orgulho nisto. Você agora quer ensinar aos nossos
filhos o crioulo, por quê? Você não aprendeu em português tudo o que tinha que
aprender?” E eu disse: “Repare que a experiência é diferente. Eu, filho de
funcionário, um dos privilegiados dessa sociedade, tinha com o meu pai, com a
minha mãe, possibilidade mesmo em casa, já, de falar em português.” Bom, com
a minha mãe falava sobretudo em crioulo, com o meu pai sobretudo em
português. O indivíduo tem, desde o início, essa experiência bicultural,
bilinguística, mas não são todas as crianças que têm essa mesma situação.
9. “POR QUE NÃO FAZER UM POEMA EM CASSANGA?”
MÁRIO: Por vezes, as pessoas pensavam que a língua nacional era uma
despromoção, era uma língua de segunda. “Por que é que os nossos filhos vão
aprender nessa língua?” Portanto, penso que, quanto ao problema da oralidade,
sobretudo em relação à alfabetização, nós utilizamos muito isso. A questão, por
exemplo, dos cassangas: queriam aprender na sua língua. Nós não podíamos
ensinar na língua cassanga, porque não tínhamos instrumentos. Então iniciamos
por um processo de mobilização comunitária, de fazer uma atividade em
comum, a produção de um campo agrícola, produção de bananas, de hortaliças
etc. Fizemos muita atividade cultural, teatro, manifestações, e foi a partir daí que
essa população, que pretendíamos al fabetizar, sentiu n ecessidade de registrar o
número de cachos de bananas, preparar o futuro, e aí foram para a alfabetização
no crioulo. Disseram: “Nós temos necessidade.”
Essa pressa de que falou é um pouco a resposta que o próprio país, o Estado,
o governo têm que dar às preocupações de desenvolvimento. Creio que, para que
não se recaia no analfabetismo, é preciso integrar a educação como um elemento
do desenvolvimento. Quer dizer, tem que haver uma sequência, porque senão,
por que é que eu vou precisar de escrever e de ler? Não é só para aquecer, porque
aqui já o clima é quente, não é? (ri)
E tivemos consciência disso logo no início, razão pela qual começamos a fazer
todo um trabalho de produção de material pós-alfabetização. Porque seria
necessário que houvesse jornais, publicações, que as pessoas tivessem uma
necessidade de continuar a utilizar a sua língua, para poderem manter os
conhecimentos adquiridos. Nós optamos inclusive por fazer a escrita do crioulo
no alfabeto africano, para facilitar que, uma vez conhecida uma língua nacional,
se pudessem escrever outras também.
Enfim, esse problema é extremamente complexo e, realmente, não é tão
evidente como isso, porque — disse muito bem — tem-se que formar todos os
professores nas línguas nacionais, nas línguas locais em que se queira fazer
aprender. E por que, numa escola, ter um batalhão de professores para ensinar a
poucos alunos? Razão pela qual esse problema tem que ser contextualizado,
analisado profundamente. Aí, mais uma razão de se escolher, do meu ponto de
vista, para o ensino geral, duas línguas: a língua veicular, língua integradora, que
é o crioulo, e a língua oficial, que é o português. As outras seriam sobretudo
utilizadas no processo de alfabetização, em que as pessoas precisam da língua
para o dia a dia, para a sua ocupação, como instrumento para lhe permitir fazer
os registros, as reflexões etc., e também como língua de cultura. Por que não
fazer um poema em cassanga? Certamente que teria muito mais força de
conteúdo do que escrever o traduzido, não é? O problema da língua condiciona,
muitas vezes, o próprio raciocínio, razão por que, quando a pessoa se exprime na
sua própria língua, na sua língua materna, está mais habilitada a dar todo o
conteúdo cultural, semântico, do que quando tem que traduzir para outra língua.
Mas isso põe realmente o problema da capacidade financeira e, por vezes, de
não só codificar a língua, mas ter capacidade de a utilizar, e em permanência,
para não haver as tais recaídas no analfabetismo.
10. PASSADO? “PROGRESSOS ASSINALÁVEIS”. PRESENTE? “QUALQUER COISA
DE ERRADO”
SÉRGIO: Sei que o nosso tempo é curto, Mário, mas, antes de acabar a nossa
conversa, eu queria te fazer duas perguntas, basicamente. A primeira é: com
relação ao trabalho que foi desenvolvido com o apoio do Paulo Freire, que lições
você tirou desse processo? Ao olhar de novo para trás, que conclusões você extrai
dele?
A segunda questão está mais relacionada com a situação na Guiné-Bissau
hoje. Apesar de todo o trabalho que foi feito, no qual você teve uma
responsabilidade de liderança durante um bom período, você chega a uma
situação, hoje, em que o analfabetismo é muito alto, não é? Por exemplo, apenas
no que diz respeito às mulheres, que estão entre os grupos mais desfavorecidos,
temos mais de duzentas mil analfabetas. Estamos ainda com o problema da
exclusão de uma maioria de crianças que não vão à escola, e aí a gente encontra a
fonte de onde brota o analfabetismo adulto, certo? Como é que você encara esse
problema?
Há, portanto, de um lado, um balanço, que eu gostaria que você fizesse, da
época em que Paulo Freire teve uma participação maior. De outro, a situação
atual. Como é que você vê esses dois momentos do processo da educação na
Guiné-Bissau?
MÁRIO: Eu diria que a participação de Paulo Freire marcou muito a educação
nos primeiros anos. Eu falei desse encontro dos ministros da Educação, que foi
um momento alto no intercâmbio e na procura das vias para o desenvolvimento
do sistema educativo, como parte integrante do desenvolvimento geral do país. E
acredito que fizemos, na ocasião, progressos assinaláveis, e conseguimos dar à
sociedade, ao governo, em geral, a ideia da necessidade, da prioridade que a
educação merecia. Nós tivemos na ocasião a ideia de colocar uma escola em cada
cinco quilômetros, para facilitar que as crianças fossem à escola etc.
Hoje estamos a falar da educação para todos, e tive muito gosto em
participar, enquanto funcionário da Unesco, na preparação do Fórum Mundial
da Educação para Todos.51 Foi um momento de ver muita frustração, porque
investiu-se muito dinheiro, e os resultados não são visíveis. Quer dizer, a África
está, no geral, a 50% da alfabetização das crianças em idade escolar, o que é
extremamente mau. A Guiné-Bissau faz parte desse complexo, quando
poderíamos ter tido — precisamente devido à forma como se encarou a
educação, a importância para o desenvolvimento que a educação representa —
maior consciência e uma utilização mais racional dos fundos, para esse setor tão
importante para o desenvolvimento do nosso país.
SÉRGIO: Onde é que se falhou? O que é que não andou bem e que explica essa
recaída?
MÁRIO: Penso que, sobretudo nos últimos tempos, o que explica o atraso é
que chegamos ao ponto de ter um ministro da Educação por ano! Estive quatro
anos na Educação. Fui, voltei por mais três anos. Teve o Fidelis,52 que acaba de
falecer, que ficou cinco anos. Mas, depois disso, quando se entra no momento da
dinâmica do multipartidarismo etc., e por causa das influências, eventualmente,
das contestações que havia na sociedade, quem apanha normalmente é o
ministro da Educação, não é? E então os ministros da Educação foram mudando,
e, antes que um dominasse o aparelho, já estava a vir um novo. Creio que isso
contribuiu bastante.
Mas também, devido aos problemas sociais, econômicos e outros que a
sociedade começou a viver, passou-se a colocar as verbas noutros setores. A
educação nunca foi muito privilegiada do ponto de vista orçamental, mas pelo
menos havia um grande apoio por parte dos doadores. Mas, quando os doadores
veem toda a instabilidade que há no sistema educativo, a quem pedir
responsabilidades? Portanto, muitas vezes as instituições recuaram também, em
função da própria instabilidade, e penso que essas, entre outras, serão as razões
pelas quais, em vez de se avançar, quase que se regrediu.
Eu ouvi com satisfação o antigo ministro da Educação Huco Monteiro —
João José da Silva Monteiro — dizer que nós deveremos retomar, relembrar,
fazer uma releitura e eventualmente ir novamente para campanhas de
alfabetização, para o envolvimento de uma participação maior dos professores
etc. E acho que o atual ministro também, Geraldo Martins,53 na sua perspectiva
da política educativa, tem esse elemento, de tentar melhorar a qualidade e alargar
o acesso ao ensino. Esses são elementos que são indispensáveis, mas infelizmente
nem sempre o governo coloca expressamente na sua distribuição orçamental esse
aspecto.
Acaba-se por dar mais dinheiro à Segurança ou às Forças Armadas do que se
dá à educação. Bom, quando realmente a situação política é de instabilidade, a
ponto de ter que se reforçar o controle do cidadão para evitar o pior, aí há
qualquer coisa de errado! Ora, o desenvolvimento, a paz social existem quando
há um mínimo de capacidade de gestão.
As pessoas têm que ter, na sua perspectiva, uma esperança! Ontem eu falava
com um amigo, e ele me dizia: “Ouve, vocês, como combatentes da liberdade da
pátria, falam muito do passado!” Eu disse: “Sim, as pessoas falam muito do
passado porque o presente é difícil e não há perspectivas de futuro”. Quando
você não tem, numa perspectiva de futuro, coisas que o estimulem, a tendência é
recorrer a um passado glorioso que você teve. E acho que este país está muito a
sonhar com o passado, não está efetivamente a afrontar o presente e, sobretudo,
fazendo uma perspectiva para o futuro. Essa é uma necessidade nacional. Se não
formos capazes de fazer isso, este país, que já está em tremendas dificuldades,
ainda conhecerá maiores dificuldades.
Mas tenho esperanças, porque me parece que há uma consciência política
geral crescente, de que governar não pode ser mais um aspecto puramente
político, em que os partidos concorrem para os postos de responsabilidade mais
no sentido de se autossatisfazer do que de ser um delegado escolhido pelo povo, a
serviço do povo. Há um mínimo de profissionalismo que é preciso instaurar na
classe política para que, realmente, as pessoas trabalhem para construir, mas
envolvendo a todos, nessa perspectiva democrática d e acesso ao
desenvolvimento.
11. “UM HOMEM QUE OUVIA MUITO E QUE OBSERVAVA AINDA MAIS”
SÉRGIO: Quando você se lembra hoje de Paulo, se tivesse que resumir em poucas
palavras o que é que você mais aprendeu com ele, o que você reteria como
essencial, na palavra e na contribuição dele para a educação na Guiné-Bissau?
MÁRIO: Um aspecto muito importante é a sua pedagogia da liberdade, de uma
abertura para não se ficar enquadrado numa metodologia muito rígida. Quer
dizer, o intercâmbio em todo processo foi uma das questões que o Paulo Freire
sempre acentuou. E esse processo, aquilo que se passa na escola, se fosse
transportado para a sociedade, creio que seria muito bom para o
desenvolvimento do país. E nisso Paulo nos ajudou muito, nessa abordagem
aberta do aspecto social.
Ele era, de fato, um homem político, com uma capacidade de síntese e uma
capacidade de diálogo muito grandes. Era um homem que ouvia muito e,
sobretudo, que observava ainda mais. Com essas observações, ele ajudou muito a
jovem classe revolucionária — que queria queimar etapas — a guardar um
bocadinho mais o fósforo, para com essa queima não queimar o essencial. (ri)
12. MULHERES: “UM MINISTÉRIO PRENHE”, A DECISÃO DE CABRAL E “A SUA
BELA ELZA”
SÉRGIO: Já que nós estamos no Dia Internacional da Mulher: você me havia feito
um comentário sobre a relação do Paulo com a dona Elza. Qual era a ideia que o
Paulo te passava em relação a essa questão da mulher? Q uando a gente vê ainda
hoje a luta que a mulher tem, não só na África mas nos outros continentes, para
sobreviver e para se impor, qual era o sentido dos comentários dele?
MÁRIO: Eu disse que o Paulo Freire era um observador. E ele então observava
a sociedade e descrevia a mulher como um elemento de participação. Por acaso
não desenvolvi esse aspecto há pouco: a necessidade da tal questão do gênero, de
fazer que a mulher progrida para uma igualdade na participação, nos direitos
políticos etc.
O Paulo acautelava muito esse aspecto, mas ele também dizia: “Tu tens aí um
ministério prenhe de mulheres!”, porque nossos colaboradores eram
colaboradoras. Dos sete elementos principais, só dois é que éramos homens; era
eu e um padre, o padre Macedo. E o Paulo Freire gostava muito daquela decisão
que o Amílcar Cabral tomou, de que, em cada comitê constituído de cinco
pessoas, dois elementos tinham que ser mulheres. E aí, Cabral era intransigente:
podiam ser cinco mulheres, mas não podiam ser cinco homens, tinham que ser
pelo menos duas mulheres.54 Infelizmente essa aprendizagem não se desenvolveu
muito, mas Paulo Freire insistia muito na necessidade de continuar com essa
ideia, como uma forma de trazer a mulher de fato a uma atitude participativa,
acabar com os complexos históricos da inferioridade da mulher.
Às vezes, nos discursos, falava da mulher com toda a poesia de que Paulo
Freire era capaz. Lembro-me então de uma vez em que falou tão bem da Elza,
que era a sua companheira, sua amiga, sua musa, enfim, que as nossas mulheres
ficaram invejosas. (ri) Às vezes passávamos maus bocados para explicar por que
não tínhamos esse discurso, como tinha Paulo Freire da sua bela Elza!
(Num próximo livro, pretendo trazer novos diálogos sobre a Guiné-Bissau,
Cabo Verde e Moçambique.)
Notas
Paulo Freire, Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. São Paulo: Paz e Terra,
1984, 4a ed. [5a edição, São Paulo: Paz e Terra, 2011].
40
“A Amílcar Cabral, educador-educando de seu povo.” É essa a frase com que Paulo começa o seu livro
sobre a experiência guineense. A página seguinte, por sua vez, é inteiramente dedicada à seguinte citação de
Amílcar: “Posso ter minha opinião sobre muitos temas, sobre a maneira de organizar a luta; de organizar
um partido; uma opinião que se formou em mim, por exemplo, na Europa, na Ásia, ou ainda em outros
países da África, a partir de livros, de documentos, de encontros que me influenciaram. Não posso porém
pretender organizar um partido, organizar a luta, a partir de minhas ideias. Devo fazê-lo a partir da
realidade concreta do país.” (Ib., p. 7.)
41
42
Capital de região a leste da Guiné-Bissau.
Um deles é inteiramente voltado à luta pela independência da Guiné-Bissau. O original é inglês, mas a
versão que conheço é a francesa, com prefácio do próprio Amílcar Cabral, Révolution en Afrique: La
libération de la Guinée Portugaise. Paris: Éditions du Seuil, 1969.
43
44
Sigla que designa o grupo dos cinco Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa.
45
Ver nota número 11 do capítulo 1.
Curiosamente, no capítulo da “Instrução Pública”, o Anudrio da Guiné Portuguesa 1946 fazia as seguintes
observações:
“A Superintendência do ensino primário pertence ao governador. O ensino primário acha-se dividido em
elementar e rudimentar.
“O primeiro visa fornecer à criança os instrumentos fundamentais de todo o saber e as bases de uma cultura
geral, preparando-se para a vida social. O ensino primário para não indígenas faz-se nas escolas do ensino
primário elementar e compreende as matérias do programa do ensino primário adotado na metrópole e
mandado observar pelo Ministério das Colônias. É ministrado em quatro classes anuais, correspondendo as
três primeiras ao 1º grau — ensino elementar — e a quarta ao 2º grau — ensino complementar — atuais.
“O ensino para indígenas faz-se em escolas de ensino primário rudimentar e compreende as matérias dos
programas adotados pelo Conselho de Instrução Pública da Colônia. Nestas escolas, o ensino tem feição
intuitiva e prática, tendendo à valorização moral e econômica do indígena, pela aprendizagem e
aperfeiçoamento da técnica de produção e integração no espírito da civilização portuguesa. […]
“O ano letivo nas escolas de ensino primário elementar tem início em 7 de outubro e termina em 15 de
julho, realizando-se os exames na segunda quinzena deste mês. […] Nas escolas de ensino primário
rudimentar, o ano letivo é fixado pelo Conselho de Instrução Pública, tendo em atenção a quadra mais
adequada para o ensino das granjas de ensino prático agrícola.” (Lisboa: Sociedade Industrial de Tipografia,
p. 164-5.)
46
De acordo com Amílcar Cabral, “na Guiné, 99% da população não podiam ir à escola. A escola era só
para os assimilados, ou filhos dos assimilados, vocês conhecem a história toda, não vou contá-la outra vez.
Mas é uma desgraça que o tuga causou na nossa terra, não deixar os nossos filhos avançarem, aprender,
entender a realidade da nossa vida, da nossa terra, da nossa sociedade, entender a realidade da África, do
47
mundo de hoje. Isso é um obstáculo grande, uma dificuldade enorme para o desenvolvimento da nossa
luta”. In Amílcar Cabral, Nacionalismo e cultura.Santiago de Compostela: Edisóns Laiovento, 1999, p. 43.
48
Paulo Freire, Cartas à Guiné-Bissau, p. 173.
Pelo visto, o número de línguas faladas na Guiné-Bissau é controverso. No primeiro capítulo, item 9, o
professor e linguista Emílio Giusti falava em dezoito, “além do crioulo”. Pelo que pude saber junto aos
próprios guineenses, uma lista não exaustiva das línguas e grupos etnolinguísticos ainda presentes no país
nos aproxima efetivamente do número avençado por Mário Cabral, ou seja: o crioulo; o fula (futa-fula, fulaforro, boinca, gabunca); o balanta (balanta-mané, mansuanca, balanta-cuntoe); o brame (manjaco, papel,
mancanhe); o mandinca (mandinga, biafada, oinca, sussu, saraculê, djacanca, padjadinca); o felupe (djola); o
baiote; o cassanga; o banhune; o bijagó; o nalu; o tanda; o cobiana e o cocoli. E o português, língua oficial.
49
50 Mário Cabral faz alusão a um exemplar que estava sobre a mesa, O crioulo da Guiné-Bissau: filosofia e
sabedoria, do professor Benjamim Pinto Bull. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (Icalp,
Portugal) e Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (Inep, Guiné-Bissau), 1989.
51
Realizado em Dakar, em abril de 2000.
52
Fidelis Cabral D’Almada.
53
Já substituído por Filomena Lopes, na remodelação ministerial ocorrida em novembro de 2002.
Em seu já citado livro sobre a libertação da Guiné, publicado após sua visita às áreas então sob o controle
do PAIGC, em outubro de 1967, Basil Davidson reproduz as palavras do então comissário político
guineense Chico Mendes: “Em cada aldeia, na região liberada, fizemos a eleição do comitê da ‘tabanca’
(aldeia crioula). Em geral, ele é composto por três homens e duas mulheres. O comitê da aldeia é eleito pela
assembleia da aldeia, isto é, por todos os aldeões” (Op. cit., p. 93).
Por outro lado, as citações que vêm a seguir mostram claramente a preocupação constante de Amílcar
Cabral com a questão da mulher. Ao analisar a estrutura social da Guiné “portuguesa”, por exemplo,
durante um seminário organizado pelo Centro Franz Fanon de Milão, em 1964, Amílcar comentava: “A
situação da mulher é um elemento de comparação muito importante. Entre os fulas, a mulher não goza de
nenhum direito social: participa na produção mas não colhe os seus frutos. Por outro lado, a poligamia é
uma instituição muito respeitada, sendo a mulher considerada, de certa forma, como propriedade do
marido. […] Os balantas, apesar de revelarem fortes tendências para a poligamia, são, na sua maioria,
monógamos. A mulher participa na produção, mas é proprietária do que produz, o que lhe confere uma
situação privilegiada, pois a sua liberdade é efetiva, exceto no que se refere ao filho, que o chefe de família
pode sempre reclamar; é necessário detectar aqui uma razão econômica, ou seja, que a força de uma família
é sobretudo representada pelo número de braços capazes de trabalhar”. In Amílcar Cabral, A arma da
teoria: unidade e luta. Lisboa: Seara Nova, 1978, p. 101-2.
Outro exemplo: “Tem havido resistência surda, calada, por vezes, contra a presença de mulheres entre
aqueles que mandam. Alguns camaradas fazem o máximo para evitar que as mulheres mandem, embora por
vezes haja mulheres que têm mais categoria para mandar do que eles. Infelizmente, algumas das nossas
camaradas mulheres não têm sabido manter respeito e aquela dignidade necessária para defender a sua
posição como pessoas que estão a mandar. Não têm sabido fugir a certas tentações, ou pelo menos tomar
certas responsabilidades sobre os seus ombros, sem complexos. Há camaradas homens, alguns, que não
querem entender que a liberdade para o nosso povo quer dizer liberdade também para as mulheres, a
soberania para o nosso povo quer dizer que as mulheres também devem participar nisso, e que a força do
nosso partido vale mais na medida em que as nossas mulheres peguem neles teso para mandarem também,
54
com os homens. Muita gente diz que Cabral está com as suas manias de pôr as mulheres a mandar também
— ‘Deixa pôr, mas nós vamos sabotar por trás. Podem sabotar hoje, sabotar amanhã, mas qualquer dia
ficam mal’.” (Ib., p. 152.)
Ou ainda: “A tendência de alguns camaradas é a seguinte: um comissário político, por exemplo, vê um
rapazinho bom militante: em vez de se ocupar dele para o ajudar, para o entender mais, para avançar, em
vez de o animar, não, faz dele o menino de recados, porque é esperto, sabe bem, vai rapidamente; se lhe der
uma coisa para guardar, guarda bem; e, então, dá-lhe o seu saco de roupas, para ele guardar, em vez de fazer
dele um valor para a nossa terra. Ou então: aparece uma rapariga, esperta, mais ou menos bonita; em vez de
a ajudar, dar-lhe a mão para avançar, para ser enfermeira, ser professora, para ir estudar, para ser uma boa
miliciana, ou qualquer outra coisa, não, faz dela sua amante, porque é muito bonita e ele é que tem o direito
de tomar conta dela. Temos de acabar com isso.” (Ib., p. 152-3.)
Ou, finalmente: “As mulheres têm dois colonialismos por vencer: o dos portugueses e o dos homens.” (Ib.)
Anexo I
O ATO DE ESTUDAR — A
Tinha chovido muito toda a noite. Havia enormes poças de água nas partes
mais baixas do terreno. Em certos lugares, a terra, de tão molhada, tinha virado
lama. Às vezes, mais do que escorregar, os pés se atolavam na lama até acima dos
tornozelos. Era difícil andar.
Pedro e António estavam a transportar numa camioneta cestos cheios de cacau
para o sítio onde deveriam secar. Em certa altura, perceberam que a camioneta
não atravessaria o atoleiro que tinham pela frente. Pararam. Desceram da
camioneta. Olharam o atoleiro, que era um problema para eles. Atravessaram a pé
os dois metros de lama, defendidos pelas suas botas de cano longo. Sentiram a
espessura do lamaçal. Pensaram. Discutiram como resolver o problema. Depois,
com a ajuda de algumas pedras e de galhos secos de árvores, deram ao terreno a
consistência mínima para que as rodas da camioneta passassem sem atolar.
Pedro e António estudaram. Procuraram compreender o problema que tinham
de resolver e, em seguida, encontraram uma resposta precisa.
Não se estuda apenas nas escolas.
Pedro e António estudaram enquanto trabalhavam. Estudar é assumir uma
atitude séria e curiosa diante de um problema.
O ATO DE ESTUDAR — B
Esta atitude séria e curiosa na procura de compreender as coisas e os fatos
caracteriza o ato de estudar. Não importa que o estudo seja feito no momento e no
lugar do nosso trabalho, como no caso de Pedro e António, que acabamos de ver.
Não importa que o estudo seja feito noutro local e noutro momento, como o estudo
que fazemos no Círculo de Cultura. Em qualquer caso, o estudo exige sempre esta
atitude séria e curiosa na procura de compreender as coisas e os fatos que
analisamos.
Um texto para ser lido é um texto para ser estudado. Um texto para ser
estudado é um texto para ser interpretado. Não podemos interpretar um texto se o
lemos sem atenção, sem curiosidade; se desistirmos da leitura quando encontramos
a primeira dificuldade. Que seria da produção de cacau naquela roça, se Pedro e
António tivessem desistido de prosseguir o trabalho por causa do lamaçal?!
Se um texto às vezes é difícil, insiste em compreendê-lo. Trabalha nele, como
António e Pedro trabalharam em relação ao problema do lamaçal.
Estudar exige disciplina. Estudar não é fácil porque estudar é criar e recriar e
não repetir apenas o que os outros dizem.
Estudar é um dever revolucionário.
Vamos estudar!55
Nota
In “A luta continua — Segundo Caderno de Cultura Popular — Nosso Povo, Nossa Terra — Textos para
ler e discutir (Iniciação à Gramática)”. República Democrática de São Tomé e Príncipe, Ministério da
Educação Nacional e Desportos, Comissão Nacional Coordenadora dos Círculos de Cultura Popular. São
Tomé, 1978, p. 7-8. Impresso com a ajuda da Unesco. Ver ainda: Paulo Freire, A importância do ato de ler
em três artigos que se completam, 32a ed. São Paulo: Cortez, 1996, p. 57-9.
55
Anexo II
ALFABETIZAÇÃO EM MASSA NO BRASIL: UMA
VISÃO COMPARADA DO MÉTODO MOBRAL E DO
MÉTODO PAULO FREIRE56
1. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES
Problema socioeconômico contemporâneo de primeira ordem, a alfabetização
em massa é apontada, especialmente nos países subdesenvolvidos, como uma das
coordenadas básicas de aceleração do processo de desenvolvimento. Se a
constatação desse fato é comum a todos os países possuidores desse problema, as
soluções procuradas, entretanto, nem sempre obedecem a diretrizes
concordantes, quer por se partir de pressuposições teóricas diversas, quer por se
contar com um contexto de realidade variável de país para país.
Interessa-nos, como análise, a experiência brasileira de alfabetização, seus
fundamentos teóricos, seus níveis de atuação, seus recursos metodológicos e
demais componentes desse empreendimento de âmbito nacional. Um estudo
desses elementos se faz necessário ao se encarar a alfabetização em massa como
propósito de solução da problemática socioeconômica brasileira, processo
recentemente incrementado por meio de uma estratégia posta em execução,
simultaneamente, em todos os estados da federação.
Salientem-se, porém, as limitações próprias de uma primeira abordagem,
onde o tratamento exaustivo do problema é preterido em função de uma
inevitável superficialidade, a ser suplantada em eventuais investigações
posteriores.
2. DADOS INTRODUTÓRIOS
Considerada como problema diretamente ligado às condições que determinam o
desenvolvimento global de uma nação, a educação tem sido alvo de
preocupações gerais no curso da História. Tida ora como proposição humanista
de aprimoramento cultural, ora como investimento seguro para melhor
aproveitamento da capacidade produtiva do homem, é atualmente um dos mais
importantes parâmetros para a evolução da sociedade moderna, principalmente
no que toca às transformaçõ es da estrutura econômica. É a partir dessa
constatação que os países subdesenvolvidos têm-se lançado à implantação de
programas educacionais em vários níveis, visando principalmente à geração de
mão de obra que garanta a aceleração do desenvolvimento econômico e social.
Preocupações desse teor levaram à criação do Movimento Brasileiro de
Alfabetização (Mobral), instituído a 15 de dezembro de 1967 pelo governo Costa
e Silva e implantado por meio de trabalhos de alfabetização em massa a partir de
8 de setembro de 1970. Com essa iniciativa, pretendia-se erradicar do território
nacional um problema que de há muito se apresentava de difícil
equacionamento.
De acordo com dados oficiais, havia no Brasil, em 1940, aproximadamente 13
milhões de analfabetos, que representavam 56% da população de mais de quinze
anos de idade. Em 1960, o número de analfabetos era de 16 milhões,
representando 39% da população da mesma faixa etária, isto é: não obstante se
registrasse um decréscimo do percentual de analfabetos, houve aumento
progressivo em números absolutos.
Interpretações oficiais57 dão a esse respeito, como determinante do problema,
em grande parte, a incapacidade do sistema de educação regular em absorver
todas as crianças em idade escolar. E como quase 50% dos matriculados na 1a
série escolar não chegam à 2a, por repetência ou evasão, os “evadidos”
contribuem para o aumento da massa de analfabetos e semialfabetizados.
Movimentos anteriores, por outro lado, não lograram alcançar êxito por
incorrerem, ainda segundo fontes oficiais do Mobral58 em falhas básicas: atuação
feita por ações isoladas, apenas subvencionadas pelo governo, sem qualquer
outra orientação; não acompanhamento e falta de avaliação de métodos e da
rentabilidade das subvenções; e preocupação de ensinar somente a ler e a
escrever, marginalizando o semianalfabeto. A esses fatores de insucesso, apontados oficialmente, inclui-se, como se verá, a atribuição de implicações políticas a
atuações de alfabetização popular consideradas perniciosas à ordem políticosocial, em determinado período da realidade brasileira.
Implantado em âmbito nacional, o Mobral, que até 1970 contava somente
com recursos previstos em orçamento da União, passou a absorver 30% da renda
da loteria esportiva e de 1% a 2% sobre o imposto de renda, o que, adicionado às
verbas de procedência estadual e municipal, movimenta a estrutura
administrativa de alfabetização implantada em todos os estados do país. Essa
canalização financeira, por sua vez, justifica-se pelas pretensões registradas nas
estimativas feitas para o período 1971-1974, nos Cursos de Alfabetização e
Educação Integrada:
Quadro I — Alfabetização
1971 2.000.000 alunos
1972 2.000.000
1973 2.000.000
1974 2.000.000
Total: 8.000.000
Quadro II — Educação integrada
1971-1972 1.335.000 alunos
1972-1973 1.000.000
1973-1974 1.000.000
Total: 3.335.000
o que totaliza a aspiração de 11.335.000 alunos a serem formados.59 A análise de
um empreendimento dessa extensão impõe-nos, evidentemente, uma
averiguação tanto dos princípios teóricos que norteiam seu desencadeamento
quanto da procedência do instrumental metodológico de que se vale, como
recurso de mobilização social. São estes os aspectos considerados aqui como
objeto de estudo.
3. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO MOBRAL
Documentos do Movimento Brasileiro de Alfabetização estabelecem três
aspectos fundamentais que constituem sua base teórica: a apreciação ao valor
humano e econômico do analfabeto; a avaliação sociológica dos contextos em
que se inserem; e a observação crítica da realidade do sistema educacional
brasileiro.
A premência de mão de obra qualificada, ao menos para assumir a
racionalidade no trabalho agropecuário e industrial, justifica prioritariamente a
execução de um investimento em alfabetização de adultos, até mesmo, se
necessário, “em lugar da canalização maciça de verbas para a educação
sistemática da infância”, opinam as fontes competentes.60 Evidencia-se, portanto,
a preocupação imediata em transformar os marginalizados do mundo
tecnológico em agentes produtivos, ainda que essa iniciativa viesse a
comprometer outro programa de investimento a longo prazo, como a educação
da população infantil brasileira. Há que, gerando mão de obra, permitir-se dispor
de homens com poder aquisitivo, consumidor, e é “isto que é essencial ao
desenvolvimento deste país”.61
Pretende o Mobral não se ater simplesmente ao fornecimento do
instrumental de leitura e aprendizado com vistas à qualificação profissional do
alfabetizado, mas importa saber que serão as condições do mercado de trabalho
as determinantes da desmarginalização e integração do analfabeto.
Além disso, o Mobral aponta o tradicionalismo humanístico e acadêmico,
que presidiu a formação do sistema educacional brasileiro, como fator de
bloqueio, a ser substituído por uma educação voltada para a tecnologia, a
valorização do trabalho, a qualificação profissional, a ser garantida, em
graduação crescente, desde os primeiros níveis de escolaridade. Diga-se de
passagem: o teor profissionalizante da Lei nº 5.692, que estabelece as diretrizes de
uma educação nacional, vem confirmar, junto ao sistema educacional regular, as
proposições mantidas pelo Mobral.
Como imperativo teórico, salienta-se que o domínio da leitura e da escrita
permite a descoberta progressiva, segundo necessidades e possibilidades do
educando, das respostas às suas indagações e dificuldades no processo de
construção do seu mundo, ao mesmo tempo que elimina a necessidade da
presença permanente de um orientador. Perceba-se, entretanto, que o processo
educativo ocorre evidentemente com base em diretrizes desejáveis, isto é,
direções previamente determinadas, a que deverão submeter-se as tais
necessidades e possibilidades do educando.
Em dois planos o Mobral define as suas diretrizes: pela alfabetização, e pela
consequente semiqualificação, propõe-se a introduzir o educando não apenas no
domínio da leitura, da escrita e da contagem para a obtenção de conhecimentos,
mas ainda criar condições para o desenvolvimento de habilidades que influam na
subsistência da família, com vistas à melhoria do seu nível econômico e à sua
introdução num mecanismo de consumo mais intensivo.
Salienta o Mobral, ainda, que sua filosofia operacional decorre dos seguintes
princípios:
a) ao governo não cabe a responsabilidade total dos problemas nacionais;
b) as comunidades devem assumir sua parcela de responsabilidade na solução
dos problemas locais; daí atribuir-se ao município a função de célula básica de
ação, sob a coordenação dos estados; e
c) à iniciativa privada, em qualquer dos seus ramos operacionais, como parte
da comunidade, compete também participar na solução desses problemas.
4. NÍVEIS DE ATUAÇÃO DO MOBRAL
Com o intuito proclamado de eliminar o analfabetismo, integrar o alfabetizado
no mercado de trabalho, possibilit ar-lhe educação continuada, oferecer
oportunidades para a promoção humana, possibilitar treinamento para
preparação de mão de obra necessária e incentivar o desenvolvimento
comunitário, o Mobral escalona sua atuação em três fases sucessivas:
Alfabetização Funcional, Programa de Desenvolvimento Comunitário e Curso
de Educação Integrada.
Num primeiro passo, afirmam os documentos oficiais, os contatos com os
alfabetizandos se destinam à introdução de normas de leitura, escrita e
contagem, que devem contribuir para que esses alfabetizandos conheçam e
interpretem criticamente sua realidade, adquiram capacitação necessária para
atuarem sobre ela por meio do trabalho e se integrem consciente e criativamente
à vida da comunidade. É a fase da Alfabetização Funcional, que se prolonga por
aproximadamente cinco meses, e que merecerá análise detalhada no item 6.
Já alfabetizados, os egressos do Curso de Alfabetização Funcional passam
para o Programa de Desenvolvimento Comunitário, quando se fixarão as noções
de leitura e escrita já adquiridas, promovendo-se ainda o dsenvolvimento da
sociabilidade dos alunos a partir de atividades comunitárias, em que se procurará
reforçar a linguagem oral e escrita, aproveitar as horas de lazer com excursões,
grupos de canto coral, danças folclóricas, festas, jogos, palestras e demais
programas de integração dos alfabetizandos à comunidade. Prevê-se que estes
venham a conhecer a área geográfica de seu núcleo comunitário, seus habitantes,
suas necessidades, seus problemas, suas especialidades e que estabeleçam relações
de dependência entre a própria atuação e o desenvolvimento de sua comunidade.
Para isso, procede-se à organização de grupos “que atuarão diretamente em sua
realidade, partindo-se das necessidades e interesses do próprio grupo”.62
Suplantadas as suas primeiras etapas, chega-se à fase de Educação Integrada,
nos moldes de um curso supletivo, em que se pressupõe o aprofundamento de
noções, atitudes e habilidades já assimiladas anteriormente, isto é, o
aprimoramento das técnicas de ler, escrever e contar, interiorização dos valores
referentes à brasilidade, desenvolvimento do raciocínio reflexivo e lógico,
informação e abertura no campo de capacitação para o trabalho, e formação e
aperfeiçoamento da mão de obra. Os cursos de Educação Integrada têm uma
duração variável entre oito e doze meses, durante os quais “o professor deverá
desenvolver nos alunos:
– a consciência de si próprio como um ser em desenvolvimento, capaz de
pensar reflexivamente e de comunicar suas ideias e sentimentos às outras
pessoas; capaz de interagir, de várias formas, com seus semelhantes; e
capaz, sobretudo, de ser responsável pelo seu próprio desenvolvimento;
– a consciência de si próprio como membro da sociedade humana,
sociedade essa que varia no tempo e no espaço, e que está em constante
processo de mudança sociocultural;
– a consciência de si próprio como membro de determinados agrupamentos
sociais, com direitos e deveres, o mais importante dos quais é ser um
elemento atuante naqueles agrupamentos;
– condições para formar uma escala de valores onde conhecimento
científico e trabalho sejam valorizados adequadamente;
– a compreensão dinâmica e funcional dos fatos biológicos, físicos,
socioeconômicos e culturais de seu meio imediato e mediato;
– a vontade de utilizar os recursos de seu meio ambiente para favorecer o
processo de seu desenvolvimento profissional, recreativo e cultural, e as
condições de satisfazer a essa vontade.”63
Inclua-se ainda na estratégia do Mobral a perspectiva prevista de mais um
passo, em que se pretende proceder a um treinamento profissional dos
alfabetizados nos setores em que estiverem integrados.
No entanto, apesar da ênfase e das pretensões com que se traçam os objetivos
da fase de Educação Integrada, é na fase da alfabetização que se contam as
maiores preocupações numéricas do Movimento (Quadros 1 e 2), numa
proporção de — até 1974 — mais que o dobro do contingente a favor dos cursos
de alfabetização (3.335.000 e 8.000.000, respectivamente). É pertinente, portanto,
que uma análise do Movimento se fixe preferencialmente nessa primeira fase,
quer por revestir-se de maior expressividade estatística, quer por não ser
possível, num primeiro ensaio como este, alcançar limites mais abrangentes.
5. A FASE DE ALFABETIZAÇÃO NO MOBRAL E SUA PROCEDÊNCIA COMO MÉTODO
Antes de se iniciar o processo de alfabetização propriamente dito, a orientação
dada aos professores do Mobral insiste na necessidade de que procedam a um
estudo das características de seus futuros alunos adultos, onde trabalham, quais
as suas diversões, seus interesses e aspirações, seus problemas de saúde, como
vivem as suas famílias etc., por meio de contatos individuais e em grupo.
Para facilitar aos professores a elaboração desse quadro de referências, o
Mobral apresenta antecipadamente as características mais prováveis, ressaltando:
a timidez do adulto analfabeto, seu fatalismo (“Deus quer assim, não adianta
mudar” etc.), seu senso de inferioridade e pessimismo, seu imediatismo e suas
preocupações restritas ao seu pequeno mundo, sua noção de “falta de cultura”,
por julgar cultos apenas os retentores de conhecimentos de alto nível etc.
Aconselha-se, nesse sentido, que os professores lhes façam conceituar cultura em
perspectiva mais ampla, como algo que diferencia os homens dos animais, pela
criação e transformação de tudo o que lhes é recurso de subsistência, isto é, que
cheguem à conceituação antropológica do fenômeno cultural.
Superada a fase de familiarização professor-alunos, e considerados os
objetivos explicitados na busca de um ensino funcional e útil para os adultos,
introduz-se o instrumental metodológico de aprendizagem. De posse de cartilhas
elaboradas em âmbito nacional pelo Movimento, contendo palavras de
pressuposto conhecimento pelos alunos, estes passarão a discutir o significado
dessas palavras (tijolo, comida, remédio, sapato, barriga, cachaça, futebol, circo,
máquina, dinheiro, viagem, professora, enxada, hospital, limpeza, foguete,
plástico, união, trabalho, escola, saúde, diversão etc.). Usando-se como exemplo a
primeira palavra-chave (ou palavra geradora), tem-se a seguinte sequência:
– começa-se a aula com a apresentação de um quadro que contém a
ilustração e a palavra-chave tijolo;
– passa-se ao debate sugerido pela figura, onde se abordará, por exemplo, a
importância do trabalho realizado pelo homem na transformação do seu
ambiente, as condições necessárias a uma casa, o trabalho de quem a
constrói e demais contribuições extraídas da vida comum dos
alfabetizandos (é indispensável que os alunos associem a imagem à
palavra dada);
– feita a associação, os alunos “lerão” a palavra, já escrita no quadro, em voz
alta, várias vezes, até que sejam capazes de identificá-la, se novamente
apresentada;
– chamar-se-á então a atenção dos alunos para o número de vezes em que se
abre a boca, na pronúncia da palavra-chave, levando-os à ideia de
“pedaços” (sílabas);
– escritos os “pedaços”, os alunos lerão até memorizarem sucessivamente os
três “pedaços” e guardarem bem o “nome” de cada um; saberão em
seguida que cada um desses pedaços possui sua família, atentando, por
exemplo, no quadro negro, para a do ti:
ta
te
ti
tu,
to
exercitando-os até que saibam discernir todos os pedaços dessa família;
– com a apresentação do grupo familiar de jo e lo, estará construído o
quadro da descoberta:
ta
te
ti
to
tu
ja
je
ji
jo
ju
la
le
li
lo
lu,
onde os alunos, juntando sílabas, descobrirão que se podem montar novas
palavras;
– fazendo-os atentarem para os pedaços menores (letras) no quadro da
descoberta, perceberão o som das vogais e sua utilização em todos os
pedaços;
– assim que os alfabetizandos tiverem montado novas palavras e
demonstrarem domínio do quadro da descoberta, é momento de se passar
à escrita da palavra-chave, dos pedaços, das famílias, do quadro da
descoberta e das palavras que formarem. Após exercícios de montagem de
novas palavras e de fixação, em classe e em casa, introduzir-se-ão
sucessivamente novas palavras-chave, obedecendo-se à mesma sequência.
A documentação do Mobral ressalta, nos vários passos do processo de
alfabetização, a participação ativa do alfabetizando como agente da sua própria
aprendizagem, o que constitui eficiente recurso de motivação, na medida em que
ele se considera o autor do seu próprio progresso; motivação, aliás, que se verá
enriquecida se os orientadores persistirem na adequação das atividades didáticas
às necessidades, interesses e aspirações dos educandos, levando-os a
estabelecerem a ligação prática de suas aquisições na escola com as atividades
diárias profissionais, familiares etc.
Pela análise do roteiro utilizado pelo Mobral no processo de Alfabetização
Funcional, evidencia-se, à primeira vista, sensível inspiração de passos buscados,
com ligeiras modificações, em outra fonte metodológica de alfabetização. Tratase da marcante influência exercida pelo chamado “método Paulo Freire” na
composição do quadro metodológico do Mobral, pelo menos no tocante à
primeira fase do Movimento. Dessa evidente inspiração saíram as principais
coordenadas para a concepção de um programa oficial de alfabetização em
massa, o que se constata a partir de uma apreciação, ainda que superficial, das
proposições feitas pelo método-fonte de referência. Senão, vejamos.
6. CONTRIBUIÇÕES DO MÉTODO PAULO FREIRE A UM PROGRAMA DE
ALFABETIZAÇÃO
6.1 Circunstâncias históricas
Um rápido relato das implicações históricas do método Paulo Freire faz-se
necessário, antes que se proceda ao estudo de sua estrutura interna. A primeira
aplicação dos propósitos do professor Paulo Freire e sua equipe do Serviço de
Extensão Cultural da Universidade do Recife data de 1962, na região Nordeste,
área de maior problemática no contexto nacional. Partindo de estudos
sociológicos e de suges tões fornecidas pela teoria da comunicação, Paulo Freire
desenvolveu inicialmente uma experiência na cidade de Angicos, Rio Grande do
Norte, com resultados positivos surpreendentes: em aproximadamente 45 dias,
trezentos trabalhadores foram alfabetizados.
Aprovado pelo governo federal, o sistema estendeu-se a outras áreas do
território nacional, envolvendo antes os setores urbanos, após o que se estenderia
aos setores rurais. Cursos de preparação de orientadores foram ministrados,
entre junho de 1963 e março de 1964, “em quase todas as capitais dos estados
(somente no estado da Guanabara inscreveram-se quase 6 mil pessoas); houve
também curso nos estados do Rio Grande do Norte, São Paulo, Bahia, Sergipe e
Rio Grande do Sul, atingindo a vários milhares de pessoas”,64 conta Francisco
Weffort, prefaciador de Paulo Freire em Educação como prática da liberdade.
Para 1964, previa-se a alfabetização de cerca de 2 milhões de pessoas, por
meio da instalação de 20 mil círculos de cultura, com trinta alfabetizandos por
círculo, em cursos de três meses de duração. É ainda Weff ort a comentar a
interrupção que, em seguida, o plano sofreria: “Nestes últimos anos, o fantasma
do comunismo, que as classes dominantes agitam contra qualquer governo
democrático da América Latina, teria alcançado feições reais aos olhos dos
reacionários na presença política das classes populares. O movimento de
educação popular, solidário à ascensão democrática das massas, não poderia
deixar de ser atingido […]. Os reacionários não podiam compreender que um
educador católico se fizesse expressão dos oprimidos e menos ainda podiam
compreender que a cultura levada ao povo pudesse conduzir à dúvida sobre a
legitimidade de seus privilégios.”65
6.2 Fundamentos teóricos
Desprezadas as conotações políticas passíveis de serem consideradas nocivas,
entretanto, o método Paulo Freire estruturou-se através de experiências do seu
autor durante vários anos em educação de adultos em áreas proletárias e
subproletárias, urbanas e rurais. Dessa vivência surgiu uma nova estratégia
pedagógica em que a escola, por exemplo, cujo conceito foi julgado
demasiadamente passivo, foi substituída pelo círculo de cultura. Nele, em vez de
professor, se encontra um coordenador de debates que, por meio de discussões,
de debates, e não mais de aulas, se relaciona com os participantes do grupo (os
alfabetizandos). As discussões de grupo obedecem a uma programação temática
proposta pelos próprios participantes.
Pretendia Paulo Freire, com isso, dotar os educandos de uma consciência
crítica (representação das coisas e dos fatos como se dão na existência empírica,
nas suas correlações causais e circunstanciais), em contraposição à consciência
mágica que até então os teria caracterizado. Consciência mágica que, no
entender de Paulo Freire, “não chega a acreditar-se ‘superior aos fatos’,
dominando-os de fora, nem ‘se julga livre para entendê-los como melhor lhe
agradar’. Simplesmente os capta, emprestando-lhes um poder superior, que a
domina de fora, e a que tem, por isso mesmo, de submeter-se com docilidade. É
próprio desta consciência o fatalismo, que leva ao cruzamento dos braços, à
impossibilidade de fazer algo diante do poder dos fatos, sob os quais fica vencido
o homem”.66
A preocupação primordial com a busca da conscientização, paralelamente ao
trabalho de alfabetização do educando, caracteriza assim, fundamentalmente, o
método Paulo Freire. Atribui-se ao debate função criticizadora e motivadora,
pela qual o analfabeto incorpora criticamente a necessidade de alfabetizar-se. E o
consegue — garante o educador — “na medida em que a alfabetização é mais do
que o simples domínio psicológico e mecânico de técnicas de ler e escrever. É o
domínio dessas técnicas, em termos conscientes. É entender o que se lê e escrever
o que se entende. É comunicar-se graficamente. É uma incorporação”.
Incorporação de que se apropria não a partir de imposições, de iniciativas de fora
para dentro do analfabeto, mas em sentido contrário; apenas com a colaboração
do coordenador.
Daí não se adotar, no método, o uso de cartilhas que, por menos que o
queiram, acabam entregando ao alfabetizando palavras que deveriam surgir por
sugestão própria, isso quando não se mostram alheias à realidade vivencial do
educando. As bases da alfabetização, por isso, assentam-se nas chamadas
palavras geradoras, denominação que Paulo Freire dá às palavras que,
decompostas em seus elementos silábicos, possibilitam a formação de outras,
pela combinação desses elementos. Delas, “quinze ou dezoito nos pareciam
suficientes, para o processo de alfabetização pela conscientização” — observa.
6.3 Elaboração e execução do Método
Sedimentadas as bases teóricas de sua pedagogia de alfabetizaçãoconscientização, Paulo Freire procedia às fases de elaboração e execução prática
do Método de acordo com o seguinte roteiro:
a. levantamento, por meio de contatos informais, do universo vocabular
(vocábulos conotados de sentido existencial e emocional, falares típicos,
expressões particulares etc.) dos moradores do núcleo a ser trabalhado;
b. seleção, dentro do universo vocabular pesquisado, das palavras que maior
riqueza fonêmica revelarem, obedecendo-se ainda a uma sequência de
dificuldades fonéticas gradativamente crescentes, e à frequência de uso na
vida prática;
c. criação de situações existenciais específicas ao grupo que se alfabetizará, nas
quais se alojarão as palavras geradoras;
d. elaboração de fichas-roteiro, sem prescrições rígidas, que orientem os
coordenadores nos debates;
e. elaboração de fichas em que constem, decompostas, as palavras geradoras e
suas famílias fonêmicas.
Terminados os trabalhos de preparação do material, confeccionado em slides
ou mesmo em cartazes, a execução prática consistia nos seguintes passos:
– introdução da situação por meio do cartaz ou slide, com a primeira
palavra geradora, representada gráfica e iconicamente, e debate em torno
de suas implicações (exemplo de palavra geradora apresentada por Paulo
Freire: tijolo);
–
–
–
–
–
caracterização da palavra no contexto da situação e, em seguida,
introdução da palavra, isoladamente;
visualização dos “pedaços” (ti — jo — lo), de onde se parte para o
reconhecimento das famílias fonêmicas; demonstração de que é o
movimento da boca que determina o “pedaço” (sílaba);
projeção da família fonêmica (no exemplo, ta — te — ti — to — tu), em
que os alfabetizandos deverão reconhecer o ti; comparando-se com os
outros pedaços, levá-los a perceber que o final das sílabas é diferente, pelo
que não podem ser chamados de ti; descoberta das vogais a, e, i, o, u;
igual iniciativa quanto às famílias fonêmicas de jo e lo, com exercícios de
fixação das novas sílabas (ja — je — ji — jo — ju e la — le — li — lo — lu);
apresentação simultânea das três famílias fonêmicas, isto é, revelação da
ficha da descoberta.
ta–te–ti–to–tu
ja–je–ji–jo–ju
la–le–li–lo–lu
}
Ficha da descoberta
fundamento de todo o processo de alfabetização;
– exercícios de leitura da ficha nos vários sentidos, e formação, pelos
alfabetizandos, de novas palavras;
– após o reconhecimento de todas as sílabas, passa-se ao processamento da
escrita, obedecendo-se à mesma articulação da fase oral. Seguem-se
exercícios, em classe e em casa, de formação de novas palavras. “Não
importa” — diz Paulo Freire — “que [o educando] traga vocábulos que
não sejam termos. O que importa, no dia em que põe o pé nesse terreno
novo, é a descoberta do mecanismo das combinações fonêmicas.”
Idêntico roteiro se aplica às demais palavras geradoras, cuidando-se dos
exercícios de fixação e verificação necessários a um andamento sem problemas
do processo, e ressaltando-se sempre a atuação dinâmica do grupo como
determinante de ritmos a serem cumpridos e da gênese dos temas a serem
propostos, com vistas à alfabetização, por meio da conscientização motivadora.
7. CONSIDERAÇÕES COMPLEMENTARES
Simultaneamente abordados — ainda que n ão se proceda a um estudo exaustivo
de suas implicações —, torna-se claro que os dois processos de alfabetização aqui
analisados se relacionam em termos de afinidade quanto à metodologia escolhida
para introdução do analfabeto no universo da cultura letrada. É sensível a
influência exercida pelo método Paulo Freire sobre o Mobral em sua fase de
Alfabetização Funcional, não obstante os documentos emanados do Movimento
se silenciarem quanto às fontes de origem do método adotado.67
Relações de similaridade se encontram, efetivamente, já na discussão dos
recursos de motivação fundados nos debates iniciais sobre a cultura em seu
contexto antropológico. A exemplo de Paulo Freire (“A distinção entre os dois
mundos: o da natureza e o da cultura. O papel ativo do homem em sua e com sua
realidade” etc.), o Mobral se vale da interpretação antropológica do conceito de
cultura como base de atuação (“O conceito de cultura é muito mais amplo.
Cultura é o que diferencia os homens dos animais etc.”), dominante em todos os
debates propostos no decurso da fase de alfabetização. A construção linguística a
partir de desarticulações silábicas como instrumental de novas combinações
fonêmicas é igualmente mantida e, com exceção da substituição sinonímica de
termos (“palavra-chave” em vez de “palavra geradora”, “quadro da descoberta”
no lugar de “ficha da descoberta”), o tratamento pedagógico é praticamente
idêntico nos dois métodos.
Há que, entretanto, apontar-se diferenciação significativa: a utilização de
cartilha única, elaborada pelo Mobral para aplicação em âmbito nacional,
contrapõe-se à ideia negativa de Paulo Freire sobre sua adoção: “as cartilhas, por
mais que procurem evitar, terminam por doar ao analfabeto palavras e sentenças
que, realmente, devem resultar de seu esforço criador. […] Daí a nossa descrença
inicial nas cartilhas que pretendem a montagem da sinalização gráfica como uma
doação e reduzem o analfabeto mais à condição de objeto que de sujeito de sua
alfabetização” — argumenta ele. O Mobral, ao contrário, decidiu-se pela seleção
de palavras consideradas de domínio nacional, desprezando possíveis
peculiaridades linguísticas de caráter local ou regional. Se considerarmos
influente como estimulação motivadora a participação do alfabetizando na
elaboração do seu próprio material de alfabetização, é possível efetivamente que
a adoção prévia de uma cartilha motive em menor escala.
A assintonia mais expressiva entre os dois métodos de alfabetização, porém,
prende-se à insistência quanto aos objetivos proclamados: enquanto os do
Mobral se atêm preferencialmente a propósitos de aproveitamento de mão de
obra, inclusão do homem nos processos de produção e consumo e sua integração
na comunidade, Paulo Freire enfatiza a todo momento uma pedagogia da
conscientização como instrumento de libertação: “Todo aprendizado deve
encontrar-se intimamente associado à tomada de consciência da situação real
vivida pelo educando.”68 “Pensávamos a alfabetização do homem brasileiro, em
posição de tomada de consciência, na emersão que fizera no processo da nossa
realidade. Num trabalho com que tentássemos a promoção da ingenuidade em
criticidade, ao mesmo tempo que alfabetizássemos.”69
Quanto à viabilidade de execução do método Paulo Freire, acrescente-se, não
se deveu certamente a determinantes de ordem especificamente pedagógica, mas
à sua inoportunidade política, já que “esta conscientização muitas vezes significa
o começo da busca de uma posição de luta”,70 virtualmente atentatória à
manutenção do status quo e incômoda, portanto, às classes dominantes. Em que
pesem os argumentos em contrário (“Se uma pedagogia da liberdade traz o
germe da revolta, nem por isso seria correto afirmar que esta se encontra, como
tal, entre os objetivos do educador. Se ocorre é apenas e exclusivamente porque a
conscientização divisa uma situação real em que os dados mais frequentes são a
luta e a violência.”71), a ameaça de uma convulsão social terá impelido à
condenação o método Paulo Freire. O que não impediu, todavia, que fossem
mantidas e reaproveitadas as contribuições instrumentais do método, uma vez
extirpadas, é claro, as suas diretrizes ideológicas originais.
Sérgio Guimarães
Notas
Ensaio de estudante, apresentado à cadeira de Problemas Sociais e Econômicos Contemporâneos,
durante o 3º semestre do curso de Comunicação Social da Escola de Comunicações e Artes (ECA),
Universidade de São Paulo, verão de 1972.
56
Mobral — Movimento Brasileiro de Alfabetização. Brazilian Literacy Movement. Mouvement Brésilien
pour l’Alphabétisation. Movimento Brasilero de Alfabetización. — Alfabetização: um projeto brasileiro.
Ministério da Educação e Cultura (MEC). São Paulo: Abril (Material de divulgação do Mobral no Exterior).
57
58
MEC, Mobral, Fundação Mobral, Coordenação Estadual de São Paulo (Mimeogr.).
59
Idem à nota 57.
“A nova concepção da educação de adultos”. Movimento Brasileiro de Alfabetização. Cursos de
Educação Integrada, maio de 1971 (Mimeogr.).
60
61
Idem.
62
Idem à nota 58.
Curso de Educação Integrada — Guia do Professor. Ministério da Educação e Cultura, Fundação
Movimento Brasileiro de Alfabetização Mobral. São Paulo: Abril. 446 p.
63
64 F.C. Weffort, “Educação e Política”, in Paulo Freire, Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e
Terra, 1971 [14a edição, São Paulo: Paz e Terra, 2011].
65
Ib.
66
Ib., p. 138 e 139.
Uma única referência bibliográfica aponta a utilização de elementos teóricos de Paulo Freire, extraídos de
seu livro Educação como prática de liberdade. É encontrada em Textos para treinamento de professores —
Programa de Educação Integrada Mobral. Não se trata, porém, de alusões aos passos da alfabetização, mas a
conceituações gerais desse autor sobre o processo educativo, com base no diálogo.
67
68
Idem à nota 57.
69
Paulo Freire, Educação como prática da liberdade, p. 104 [14a edição, p. 136].
70
Idem à nota 64.
71
Idem à nota 64.
Anexo III
CAMARADA PROFESSOR! CARTAS SOBRE O
ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA EM ANGOLA
1º BLOCO “DOS OUVIDOS À BOCA: APRENDER A
OUVIR, ENSINAR A FALAR”
EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA
RECENTEMENTE APRESENTADO como material do 1º Ciclo de Estudos, organizado
pela Seção Técnica do Departamento Nacional de Sup eração com vistas à
formação dos seus próprios integrantes, este conjunto de cartas não passa de
uma sugestão.72 A partir daí, poder-se-ia produzir algo parecido, como parte dos
materiais destinados à formação pedagógica dos professores do Ensino de Base,
em especial os do 1º nível.
Dado o nível coloquial em que estão propositadamente redigidas, essas cartas
acham-se pontilhadas de expressões características da variante linguística
brasileira. Desnecessário dizer que, se se optar por um aproveitamento deste
material, será imprescindível ajustá-lo ao nível coloquial do falar angolano.
Apesar de já terem sido discutidas com os componentes da Comissão de
Língua Portuguesa do Departamento Nacional de Superação, é provável que
estas cartas mereçam alterações (parciais ou mesmo totais). Os seus destinatários
só terão a ganhar com isso. Algumas modificações, aliás, já foram sugeridas
durante o 1º Ciclo de Estudos. Ainda não figuram nesta versão por razões
puramente técnicas.
Por outro lado, este trabalho constitui apenas um primeiro bloco, consagrado
inteiramente à aprendizagem da língua portuguesa em seu nível oral. Se a ideia
global vier a ser aprovada, caberia, para o futuro, a realização de um segundo
bloco, já voltado para a problemática da aprendizagem da língua quanto à
escrita.73
Quanto à distribuição de cartas desse gênero, resta definir a sua inclusão num
programa de formação pedagógica dos professores, bem como a sua forma de
entrega aos destinatários. Se este material for utilizado, é possível distribuí-lo
quer carta por carta, quer em grupos de dois, três, quatro ou mesmo mais cartas
de uma vez, de acordo com as possibilidades encontradas no terreno. O
importante é que não se altere a ordem em que vêm apresentadas.
No caso de alguns professores enviarem dúvidas ou questões (tal como é
sugerido na carta nº 0), parece-nos que a sugestão mais adequada seria a de se
agrupar as questões em função de temas e respondê-las em bloco. Nessas cartas
de respostas poderiam figurar uma ou mais questões consideradas mais
representativas entre as que abordassem determinados temas. De qualquer
forma, parece-nos importante que essas cartas de resposta possam ser remetidas
a todos, e não apenas àqueles que escreveram.
Acrescente-se, por fim, que a responsabilidade científico-pedagógica dos
conteúdos presentes neste material recai integralmente sobre este especialista,
que se coloca à inteira disposição para, a qualquer tempo, esclarecer, rever e/ou
aprofundar aspectos que suscitem dúvidas ou que pareçam pouco desenvolvidos.
Antonio Sérgio A. B. Guimarães,
especialista da Unesco em língua portuguesa
Luanda, dezembro de 1980
Nota 72 Como a ideia deste anexo é a de apresentar apenas um exemplo de
material elaborado especificamente para professores angolanos, e não de
expor toda a metodologia sugerida para o ensino da língua portuguesa como
segunda língua, resolvi reproduzir apenas três das dezoito cartas por mim
escritas.
Este material deveria ter por nome “Dos olhos à mão: aprender a ler, ensinar e escrever”. Acontece que,
no mês em que terminei a redação desse primeiro bloco dedicado à oralidade, isto é, em dezembro de 1980,
decidi não renovar o contrato com a Unesco e voltei para o Brasil. Que eu saiba, esse segundo bloco de
cartas acabou por não ser redigido.
72
CARTA Nº O — CONTATO INICIAL
APRESENTAÇÃO DAS CARTAS
LUANDA, ABRIL DE 1981
CAMARADA PROFESSOR DO 1º NÍVEL,
Pode dar-nos um pouco da sua atenção a partir de agora? Queremos
conversar algum tempo consigo. Este é o primeiro grande esforço que faremos
para entrar em contacto com o camarada. Esperamos que este contacto seja bom
para todos — para si e para nós.
Primeiro, queremos apresentar-nos: somos os professores da Comissão de
Língua Portuguesa e trabalhamos na Direcção Nacional de Formação de
Quadros do Ensino, dentro do Ministério da Educação.
Mas, por falar em trabalho, como vai o seu trabalho, camarada professor? O
nosso, apesar de todos os problemas, vai bem. Temos muitas dificuldades (quem
não as tem?), mas estamos a fazer o possível para executar as nossas tarefas
correctamente.
E os seus estudos, como estão? Conseguiu frequentar a 1a etapa da
Superação? E o seu tempo? Tem tido tempo suficiente para estudar nas horas
vagas?
Pois bem, camarada professor: escrevemos-lhe esta primeira carta com o
desejo de que o camarada tome conhecimento do que lhe queremos dizer.
Sabemos que você, camarada professor,
é uma pessoa adulta;
não teve muitas oportunidades de estudo, mas…
é um indivíduo que, ao ensinar, procura dividir com as crianças aquilo que
aprendeu;
é um adulto que não quer parar de estudar; quer saber mais, para poder
continuar a dividir aquilo que sabe com os nossos miúdos.
Por isso, pela maneira como nós o vemos, camarada professor, é que
decidimos dedicar este trabalho, enviando-lhe esta série de cartas. Nelas,
queremos conversar consigo, convidando-o a pensar naquilo que dizemos para,
em seguida, tentar pôr em prática aquilo que lhe sugerimos.
Nós, como já o dissemos no início, somos professores de Língua Portuguesa.
Somos, portanto, professores, como o camarada. Apenas nós tivemos a
oportunidade de estudar um pouco melhor os problemas dos nossos professores,
no ensino.
Por isso, reunimos alguns pensamentos sobre o assunto e, hoje, tentamos
colaborar consigo no esforço que o camarada faz para superar-se, como
estudante e como professor.
Vamos discutir consigo algumas ideias sobre uma questão importante e
difícil no nosso país: o problema da língua portuguesa e o problema do ensino
dessa língua às nossas crianças.
Uma coisa é certa: não pretendemos de modo algum dizer que já temos a
solução do problema. De modo algum. Essa questão é muito complicada e não
pode ser resolvida assim de um momento para o outro. Talvez ainda passem
vários anos, até que a comunicação verbal no nosso país possa ser feita sem
maiores dificuldades.
Mas o importante para nós, hoje, não é isso. Queremos apenas apresentar-lhe
algumas ideias e dar-lhe algumas sugestões concretas de como agir em sala de
aula, de como enfrentar a questão da língua na sua escola, frente aos seus alunos.
Eles estão a aprender a língua portuguesa, e nós temos de ser bons professores
para eles. Bons professores de língua portuguesa e bons professores em língua
portuguesa.
Evidentemente essas ideias, essas sugestões não vão apagar todas as suas
dúvidas. Nada disso. As nossas sugestões talvez sirvam apenas para o ajudar um
pouco na sua tarefa de ensinar. Se o camarada conseguir, com isso, melhorar um
pouco o seu trabalho, já estará a prestar um bom serviço ao nosso país, que
espera tanto das nossas crianças de hoje, futuros quadros de amanhã.
Se as nossas cartas conseguirem isso, ou seja, uma pequena melhoria no seu
trabalho, já ficaremos contentes. Por quê? Porque, nesse caso, já teremos
alcançado os nossos objectivos.
Procure ler esta série de cartas com atenção. Verá que temos coisas
interessantes para discutir consigo: sobre a língua e sobre os problemas que se
tem quando se está a aprendê-la (e, no seu caso, a ensiná-la) como segunda
língua. Pedimos-lhe apenas um pouco de confiança no que lhe dissermos.
Se, depois de ter lido as cartas, quiser entrar em contacto conosco, escrevanos. A nossa direcção é:
Comissão de Língua Portuguesa
Departamento Nacional de Superação
Direcção Nacional de Formação de Quadros do Ensino
Ministério da Educação
LUANDA
A nossa intenção é mesmo esta: precisamos conhecer-nos melhor,
você, que trabalha aí directamente com as crianças do nosso país, da
Iniciação à 4a classe; e
nós, que fomos trazidos ao Ministério da Educação para trabalharmos na
preparação de materiais e cursos destinados à sua superação.
Estamos, portanto, à sua inteira disposição. Quando puder, quando quiser,
ou quando sentir necessidade de uma palavra nossa de apoio como colegas de
profissão, escreva-nos. E conte conosco.
Muito bem, mas agora vamos deixá-lo em paz, para que o camarada possa
afinal ler essas cartas que acabam de chegar-lhe às mãos.
Boa leitura, bom trabalho, e até breve.
Cordialmente,
Os professores da Comissão de Língua
Portuguesa do Departamento Nacional de
Superação DNFQE — Ministério da Educação
Luanda
CARTA Nº 1 — A LÍNGUA PORTUGUESA EM
ANGOLA. A QUESTÃO DAS LÍNGUAS
MATERNAS. A NECESSIDADE DE UMA LÍNGUA
VEICULAR LUANDA, ABRIL DE 1981
CAMARADA PROFESSOR:
Comecemos pelo princípio. Ao trabalhar com os seus alunos, o camarada está
certamente a utilizar a língua portuguesa. Os seus alunos estão a aprendê-la.
Correcto? Mas veja bem: dissemos Língua Portuguesa, porque esse é o nome da
matéria. Mas por que Língua Portuguesa como nome, e não Língua Veicular?
O camarada sabe que, no nosso país, não se fala apenas uma língua. Em todo
o território angolano falam-se várias línguas, mais ou menos diferentes umas das
outras. As que são de origem africana nós chamamos de línguas nacionais. Essas
línguas, em geral, são faladas como línguas maternas, porque foram aprendidas
por primeiro, ainda em casa, quando ainda éramos miúdos.
Isso, aliás, não é novidade para os professores que frequentaram a 1a Etapa da
Superação. Se for este o seu caso, lembre-se das duas primeiras Unidades de
Língua Portuguesa. Elas falavam exactamente nessas coisas.
A esse respeito, se quiser, faça o seguinte exercício: tente lembrar-se do nome
de umas oito línguas africanas faladas em Angola, sem consultar ninguém. Anote
isso em algum lugar e confira depois com a lista de línguas que aparecem na
Unidade nº 1 de Língua Portuguesa (se você ainda tiver a Unidade, é claro!).
Observe ainda entre as pessoas que vivem consigo: todas elas falam a mesma
língua materna? E com relação aos seus alunos, qual é a situação? Todos eles
falam a mesma língua? Ou há mais que uma língua materna na sua sala de aula?
Observe.
E tente responder: se as pessoas falam línguas maternas diferentes, como é
que conseguirão comunicar-se entre si? Será necessário que aprendam a falar
todas as línguas? Ora, sabemos que essa hipótese seria praticamente impossível.
Por outro lado, sabemos que esse problema não ocorre só na República
Popular de Angola, mas em muitos outros países. E a solução é quase sempre a
mesma: nesse caso, recorre-se a uma língua comum, com a qual todos possam
comunicar o que pensam. É a essa língua que chamamos de língua veicular.
Ora, em Angola todos sabemos que essa língua veicular é a língua portuguesa.
É a língua de comunicação, de união, entre todos os angolanos que falam línguas
diferentes.
Mas veja bem: aqui em Angola, a língua veicular é a língua portuguesa, mas,
em outros países, a língua veicular pode ser outra. O russo, por exemplo, é a
língua veicular da União Soviética. No Zaire, é o francês. E assim por diante…
Língua veicular não é, portanto, o nome de uma língua. Língua veicular é a
função que uma língua pode ter, ou seja, o papel, a utilização que se faz de uma
língua. Por isso é que os professores que fizeram a 1a Etapa da Superação
receberam fascículos que se chamavam Unidades de Língua Portuguesa, e não
Unidades de Língua Veicular. Naquelas unidades, estudamos a língua
portuguesa especificamente, e não qualquer outra língua veicular.
Isso pode parecer um detalhe sem importância, mas é antes de mais nada
uma questão de lógica: precisamos acostumar-nos a chamar as coisas pelos seus
próprios nomes.
Por hoje é só. Na próxima carta voltaremos a falar dessa questão de língua
portuguesa. Verá que, para isso, teremos de falar um pouco de História. Até a
próxima carta…
A equipe de professores de Língua Portuguesa
CARTA Nº 2 — A LÍNGUA PORTUGUESA E A
HISTÓRIA DO COLONIALISMO LUANDA, ABRIL
DE 1981
PREZADO CAMARADA:
Que tal se continuássemos a nossa conversa sobre a língua?
Na primeira carta, esclarecemos que o nome adequado é Língua Portuguesa.
Portuguesa? Sim, portuguesa, isto é, a língua inicialmente falada apenas em
Portugal, pelo povo português.
Mas aí alguém pode estranhar: “Que história é essa? Estamos em plena África
e estudamos uma língua que não é africana? Como é que é isso?”
Observe bem essas perguntas feitas acima. Verá que uma das palavras mais
importantes nelas, palavra-chave, é a palavra história, também conhecida, no
nosso caso, com o nome de colonialismo.
Se recuarmos alguns séculos, veremos que os portugueses não ficaram apenas
em Portugal. Aliás, todos nós já conhecemos essa história, não? Os portugueses
resolveram sair pelo mundo, atravessar os mares à procura de riquezas, à
conquista de novas terras. Chegaram à África, atingiram as Índias, descobriram o
Brasil.
Por onde passavam, iam-se instalando. Logo tornaram-se os donos dessas
terras todas e formaram — com esses territórios conquistados — um grande
Império.
Pois bem: nesses territórios novos, os portugueses procuraram introduzir os
seus costumes, a sua religião católica, a sua maneira de viver, o seu jeito de falar e
de escrever, isto é, a sua língua.
Sabemos todos que essas conquistas não foram fáceis. Houve lutas, houve
resistências: os habitantes dessas terras não queriam ser dominados em suas
próprias casas, e revoltavam-se como podiam.
Essa luta entre os dominadores e os dominados durou séculos, e, em cada
lugar, foi diferente. No Brasil, por exemplo, os portugueses tiveram de
reconhecer a independência do povo brasileiro já no começo do século passado,
em 1822. Mas, na África, a luta pela libertação demorou mais tempo para
triunfar. E, no caso de Angola, só terminou há cinco anos, como todos nós
sabemos.
O camarada talvez pergunte: “Mas, afinal, estamos a falar de língua ou de
política?” A sua pergunta terá razão de ser, mas a resposta seria: quando falamos
de língua, temos de falar também de história, de política. Isso tudo está muito
ligado, uma coisa depende da outra.
A língua portuguesa espalhou-se pelo mundo porque os portugueses
procuraram conquistar novas terras. Na procura dessas terras, porém, não
estavam sozinhos. Havia outros que também queriam conquistá-las: os ingleses,
os franceses, os holandeses, para falarmos apenas de alguns. Aliás, se os
portugueses tivessem conquistado o mundo todo, é provável que a língua
portuguesa fosse hoje a língua veicular de todos os povos. Mas isto não
aconteceu e, portanto, não compliquemos a história.
Tomemos agora um outro exemplo: o da língua inglesa. Essa língua é
considerada hoje uma das mais importantes línguas nos contatos internacionais.
Será por acaso? Claro que não. Basta lembrar que os ingleses foram grandes
colonialistas, e que a sua mais importante ex-colônia — os Estados Unidos, cujo
povo fala inglês — continuou a seguir pelo mesmo caminho. É por isso que hoje,
se o camarada souber falar inglês, encontrará sem dúvida grande facilidade de
comunicação em qualquer parte do mundo.
Mas voltemos à língua portuguesa e sejamos claros: hoje ela é falada por
vários povos que não são portugueses. (Lembra-se ainda em que países o
português é falado? Aqueles que fizeram a 1a Etapa da Superação devem
recordar-se de que já falamos nisso na Unidade nº 1 de Língua Portuguesa.)
Também isso acontece, aliás, com outras línguas, com outros povos. Quer
exemplos? Olhe o caso da América Latina: mexicanos, cubanos, argentinos,
bolivianos, uruguaios, paraguaios, peruanos, nicaraguenses e colombianos, para
citarmos apenas alguns dos povos que lá vivem… Todos eles falam hoje a
língua… espanhola. E, no entanto, nenhum desses povos é espanhol, nem se
sente espanhol. Simplesmente esses povos estão a utilizar a língua de seus antigos
colonos, os espanhóis, para estarem unidos. Eles resolveram tirar bom proveito
daquilo que aprenderam. Perceberam que poderiam aproveitar aquilo que
aprenderam com os colonos espanhóis, em benefício próprio.
Vejamos agora o nosso caso, em Angola. Durante o período colonial, muita
coisa foi feita: foram construídos prédios, foram abertas estradas, fundaram-se
cidades, máquinas foram importadas etc. Enfim, à custa do esforço do povo
angolano, muitos trabalhos foram realizados enquanto os portugueses estavam
aqui como patrões.
Ao perderem o poder, com a independência angolana, os colonialistas
retiraram-se, levando consigo o que podiam. Evidentemente não puderam levar
tudo, e muita coisa ficou: prédios, máquinas, cidades, certos costumes, a língua
portuguesa… tudo isso ficou, como sinal da passagem dos colonos portugueses.
E agora? O que fazer com o patrimônio, isto é, com esse conjunto de coisas
que ficaram? Destruir tudo? Deitar tudo fora? Claro que não. O melhor é
procurar fazer bom uso do que ficou, não acha?
Pois é isso o que está a acontecer com a língua portuguesa em Angola.
Unindo-se todos numa só nação, os angolanos tinham necessidade de uma
língua, através da qual todos pudessem comunicar entre si. Que língua utilizar?
A língua portuguesa? Ou uma língua africana? Nesse caso, qual delas? E por que
razão esta, e não aquela outra língua africana?
Como o camarada pode imaginar, a escolha de uma língua africana, pelo
menos actualmente, despertaria muitos problemas. Isso só iria tornar mais difícil
a união de todos nós. Foi por isso que o MPLA escolheu a língua portuguesa
como língua veicular: ela é, por enquanto, a única língua que pode servir de meio
de comunicação entre todos nós.
Paremos um pouco por aqui. Tente agora responder, mentalmente, às
seguintes perguntas sobre o que já vimos nestas primeiras duas cartas:
1. Qual o nome mais adequado para a língua de comunicação que estamos a
2.
3.
4.
5.
ensinar? Por que motivo? (Veja bem, é o nome da língua, e não a sua
função…)
Qual é a situação de Angola no que diz respeito à questão de línguas?
O que é língua veicular? Dê dois exemplos de línguas veiculares no mundo.
Você acha que há alguma relação entre a língua portuguesa e a História? Se
acha que sim, qual é?
Na sua opinião, que atitude se deve tomar diante do patrimônio deixado
pelo período colonial?
Respondeu? Então, até à próxima carta. Nela falaremos um pouco sobre os
problemas que aparecem quando se quer aprender uma língua que não é a
materna.
A equipe
CARTA Nº 17 — ÚLTIMA CARTA LUANDA,
JULHO DE 1981
CAMARADA PROFESSOR:
Gostaríamos de terminar esta série de cartas falando-lhe um pouco sobre a
fabricação de redes. Isso mesmo, de redes. Redes de pesca, por exemplo. O
camarada certamente já viu pescadores a fabricar as suas redes, não? Pois bem.
Para isso, eles usam fios, que podem ser de algodão ou de plástico (náilon), de
acordo com os seus costumes e as suas possibilidades de arranjar material. Esses
fios vão sendo trançados e pouco a pouco acabam por formar uma rede.
Mas, mesmo que nunca tenha visto um pescador a trançar a sua rede, de
certeza conhece outros trabalhos parecidos a esse. Por exemplo, as redes feitas
com fios de arame, que depois serão usadas para se fazer cercados, galinheiros
etc.
E mesmo os povos que não fazem redes fazem coisas semelhantes: fabricam
cestos, esteiras, tapetes, trançados com capim ou com junco, sisal, corda, palha,
etc. Logicamente, cada povo tem a sua maneira própria de trançar, de fazer os
laços, de dar os pontos. E, mesmo quando um povo aprende isso de algum outro,
acaba sempre por modificar um pouco a maneira de fazer os trançados.
Aliás, mesmo dentro de um povo, há diferenças, às vezes, conforme a região.
Há até mesmo indivíduos que trançam de uma maneira muito pessoal, com um
estilo próprio.
Muito bem. Estamos a falar-lhe sobre isso por uma razão muito simples:
pense agora na língua portuguesa como se ela fosse uma grande rede. Essa rede
começou a ser trançada há muitos séculos atrás, em Portugal, isso já sabemos.
Mas, depois disso, nunca mais parou de ser trançada. Milhões e milhões de
portugueses participaram desse trabalho, ajudando na evolução dessa rede.
Vieram as viagens, fundaram-se as colônias portuguesas em outros continentes,
e a rede da língua continuou a ser fabricada.
Nesses outros países, evidentemente, a maneira de se trançar essa rede (isto é,
o modo de falar, por exemplo) foi-se modificando. Se você ouvir hoje um
brasileiro a falar, verá que há bastante diferença entre a maneira como ele fala e a
maneira de um lisboeta, não?
Da mesma forma, todo estrangeiro que passa por Angola percebe que o
angolano fala a língua portuguesa de uma forma diferente da dos portugueses. A
entoação, por exemplo, não é sempre a mesma. Há no nosso país muitas palavras
que não existem no português de Portugal. Mesmo na construção de frases, o
angolano às vezes as constrói de uma forma diferente.
Tudo isso é muito “natural” e muito positivo. E sinal de que a língua
portuguesa continua a evoluir, que ela não para. Os povos que outrora eram
colonizados pelos portugueses não falam exactamente como os portugueses, e
isso é óptimo! No caso do nosso país, estamos aos poucos começando a adaptar a
língua portuguesa à realidade local, à maneira do povo angolano. Para isso
ajudam também as línguas nacionais, que oferecem palavras aos poucos aceites
em língua portuguesa.
Agora observe uma coisa: já reparou que essas diferenças são maiores na fala
do que na escrita? Pois bem, também isso é “natural”. A parte oral de uma língua
evolui mais depressa do que a parte escrita. Mas uma coisa é certa: mesmo sendo
mais lenta no nível escrito, essa evolução não para, porque faz parte da vida.
De nada adiantaria nós defendermos a língua portuguesa de uma forma
ingênua, afirmando que ela deve ser falada como falam os portugueses. É inútil.
A língua continua a ser a mesma, mas a maneira de falar muda de acordo com a
época e a realidade de cada país.
Há aqueles que dizem que os povos outrora colonizados pelos portugueses
estão a corromper a língua portuguesa. Pois bem, não estamos a corromper coisa
nenhuma. Estamos a mudá-la, a adaptá-la melhor à nossa realidade e às nossas
necessidades de comunicação. Aliás, a propósito dessa história de se corromper a
língua portuguesa, houve um escritor brasileiro que tinha uma boa resposta para
aqueles que acusam os povos de corromperem a língua portuguesa. Ele dizia, em
tom de brincadeira, mais ou menos o seguinte: “Pois é isso mesmo.
Corrompamos o português, da mesma forma que os portugueses corromperam o
latim.”
Muito bem. A língua portuguesa é uma espécie de rede enorme, com uma
história muito comprida. Cada pessoa que fala essa língua contribui, mesmo sem
o saber, na fabricação de mais um bocadinho dessa rede. Cada um de nós tem o
seu papel (mesmo que não seja um grande papel!) na história de uma língua.
Através de cada um de nós é que a língua continua a existir.
No nosso país — já o dissemos várias vezes e achamos que ninguém põe isso
em dúvida —, a língua portuguesa é necessária. É a língua de comunicação entre
todos os angolanos que falam línguas maternas diferentes, não é isso?
Por isso mesmo, é necessário que as pessoas falem-na, que todos saibam
exprimir-se nela. Os que já a falam devem praticá-la sempre, para poderem
evoluir ainda mais no conhecimento dessa língua e poderem comunicar ainda
melhor as próprias ideias. Quanto aos que ainda não a falam, é necessário e
urgente que comecem a aprender a língua portuguesa. Foi a partir dessas ideias
que resolvemos escrever-lhe esta série de cartas. Achamos que elas poderiam
ajudá-lo no seu trabalho de ensinar às crianças essa língua, que é nova para a
maioria delas.
Queremos que as crianças de Angola sejam bilíngues: que falem bem a sua
língua materna e que aprendam o mais cedo e o melhor possível a língua
portuguesa como segunda língua. Dessa forma, também os seus alunos
contribuirão para que a rede da língua portuguesa continue a ser trançada.
Mas achamos também, por outro lado, que a língua portuguesa no nosso país
não é exactamente a mesma que é falada em Portugal. Não é e nem deve ser.
Aliás, a tendência será cada vez mais a de uma língua portuguesa à maneira
angolana, temos certeza disso. Mas deixemos isso para o futuro: ele dirá se temos
ou não temos razão.
A equipe
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Izabel Aleixo
PRODUÇÃO EDITORIAL
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REVISÃO
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Priscila Gurgel Thereso
PROJETO GRÁFICO
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