O que é método Paulo Freire
Carlos Rodrigues Brandão
Copyright © by Marília Bernardes Marques, 2006
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Primeira edição, 1981
32ª reimpressão, 2011
1ª edição eBook, 2017
Diretora editorial: Danda Prado
Editor: Max Welcman
Revisão: José E. Andrade e Natália Chagas Máximo
Capa: 123 (antigo 27) Artistas Gráficos
eBook: Ana Clara Cornelio, Bruna Cecília Bueno, João Pedro Rocha e José
Eduardo S. Góes
Diagramação: Iago Sardini
Produção: Editora Hedra Ltda.
editora e livraria brasiliense
R. Antônio de Barros, 1839 - Tatuapé, São Paulo - SP, 03401-001
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Sumário
Por quê? Pra quê?
Um dia, perto de angicos
O abc do método
O trabalho da fala: a pesquisa do universo vocabular
O trabalho sobre a fala: as palavras geradoras
A dimensão mais ampla: o tema gerador
O trabalho com a fala: o círculo de cultura
Reler o Mundo: as fichas de cultura
Reler a fala: as palavras geradoras
Ajustar, inovar, criar
As experiências pioneiras do Nordeste e do Rio de Janeiro
O trabalho no interior de Goiás, hoje
O projeto de alfabetização dos funcionários de uma universidade
Do método ao sistema, do sistema ao sonho
Ontem: o sistema
O instrumento de produção de uma nova consciência
Hoje: um instrumento a serviço dos movimentos populares
Contra o quê? Em nome do quê?
Conclusão
Indicações para leitura
Sobre o autor
Por quê? Pra quê?
Devo confessar, amigo leitor, que este livro foi escrito no fôlego de alguns dias e
deve ter, portanto, todas as qualidades e também os defeitos do que é feito no
quente da coisa, na hora em que a força da vontade de dizer pode ganhar do
cuidado de dizer com calma, no vagar do sério, com ciência e paciência. Mas é
que eu tenho razões. E vou contar. Poucos dias depois de haver combinado
escrevê-lo, de haver inclusive conversado o começo do fio da ideia dele com
Paulo Freire, acabei viajando para o Nordeste. Uma coisa não tinha nada a ver
com a outra, mas acabou tendo.
Comecei a rascunhar o livro num caderno, no dia 1º de maio deste ano1, em
Campinas. Depois, no mesmo dia, a caminho de São Paulo e, daí, no de
Fortaleza, Ceará. No dia seguinte eu segui com a viagem e o rascunho do livro,
de Fortaleza a Mossoró, que fica num canto do sertão do Rio Grande do Norte.
O rascunho da primeira parte do livro foi acabado na viagem de volta do
Nordeste ao Sul, cinco dias depois. Eu voltava de um curso na cidade de
Mossoró sobre as ideias e o método de Paulo Freire. Coisa que contando não se
acredita. Mas eu conto.
Mossoró fica perto de Angicos, uma cidadezinha nos fundos do Nordeste, onde
neste ano o sol seca e resseca tudo o que há. Foi ali onde, pela primeira vez —
depois de uma pequena experiência em um bairro do Recife —, a equipe do
Serviço de Extensão Universitária da Universidade Federal de Pernambuco,
coordenada pelo professor Paulo Freire, testou o que veio a se chamar: “o
Método Paulo Freire de Alfabetização de Adultos”.
Na verdade, leitor, ali não se experimentava só um novo método, mas, através
dele, um novo sentimento de Mundo, uma nova esperança no Homem. Uma
nova crença, também, no valor e no poder da Educação. Sinais do amor que o
homem planta e que brotavam ali, no chão seco do sertão, há vinte anos.
Pois vinte anos depois um punhado de gente se reuniu em Mossoró pra repensar
junta, para trás, como é que aquilo foi. Pra pensar junta, para frente, como é que
agora poderia ser. Foi programada uma “Semana de Arte e Filosofia”, naquele
ano dedicada ao tema: Filosofia e Educação Popular. Vieram estudantes e
educadores de todo o Nordeste. Veio até alguma gente do Sul. A ideia era a de
fazer a crítica de todo o trabalho anterior de Educação Popular e de Cultura
Popular desencadeado no Brasil no começo dos anos 1960. Fazer a crítica para
repensar uma coisa e a outra, para “reinventar a educação” hoje, para os dias de
hoje2, como o próprio Paulo Freire gosta de dizer. As pessoas da minha geração,
os que viveram nos começos de 1960 o alvorecer da ideia, queriam a memória
dela. Recontar juntos, perguntar: “como é que foi?”. Mas os jovens, os
estudantes de colégio e das universidades que se amontoaram por lá, queriam é
saber: “como é que faz?”.
Por isso o “Programa da Semana” tinha de tudo, de reuniões e mesas-redondas
de revisão das experiências do passado, a sessões de discussão dos trabalhos
atuais e dos sonhos possíveis de trabalho futuro com a Educação Popular: um
nome? Um mito? Um modo de fazer?
Crispiniano Neto, um professor e repentista notável do lugar, escreveu o
“Programa da Semana” em cordel e abriu cantoria desse jeito:
De um a oito de maio
Mossoró tem alegria
De receber todo o povo
Que pensa em democracia,
Que é quando a terra se irmana
Pra promover a Semana
De Arte e Filosofia.
Porém a Filosofia
Que aqui estamos falando
Não é daqueles que não
têm: por quê, pra quê nem quando;
É uma coisa real,
Que fura como punhal,
Ferindo quem está ditando.
A nossa filosofia
Não tá suspensa no ar;
Não é livro em prateleira
Nem frase pra declamar.
Filosofia pra gente
É um jeito consciente
Do povo se libertar.
No meio dos oito dias da “Semana” o meu trabalho lá era o de fazer o tal
pequeno curso sobre Paulo Freire. E no cordel do “Programa” se anunciava
assim:
Sábado 02/05
tarde: 14h
às 17h
Então, na parte da tarde
Professor Carlos Brandão
No Sistema Paulo Freire
De Alfabetização
Vai dar um curso e mostrar
Como alfabetizar
Visando a libertação.
E o curso foi de um sábado até uma terça, com dias de trabalho da manhã à
noite. Como havia muita gente na “Semana”, de estudantes dos colégios da
cidade a professores, doutores e candidatos “da pós” a mestre e doutor, o curso
foi feito afinal num cinema do Centro, onde à noite se prometia em “sessão
dupla”: Simbad, o marujo e A estudante que levou pau.
Um pequeno curso pensado para recontar como se fez e praticou o Método Paulo
Freire, acabou virando um lugar de debate quente sobre a questão da Educação
Popular. E aí sim, leitor, o pau comeu. Não ficou coisa sobre o que não se
perguntasse, mesmo que não houvesse resposta pronta nem pra metade.
O que mais me espantou com alegria foi a insistência das perguntas dos mais
moços, de uma gente pra quem o passado “do tempo da educação popular” era o
que eles haviam lido, vários anos depois, nos livros de quem viveu aquilo, ou de
quem falou sobre quem viveu. Mas esses “mais jovens”, estudantes do Nordeste,
quase todos, não queriam saber da história da coisa. Dos casos das estórias do
que houve no começo dos anos 1960, eles queriam só o que pudesse servir para
pensar uma outra prática, numa outra história.
Havíamos pensado aproveitar a “Semana” para fazer entre nós, “os de 1960”,
umas reuniões de “memória”. Aproveitar que estaríamos afinal tantos dias
reunidos num dos lugares onde muitos anos atrás tudo começou, para rever
juntos “como foi”. Alguns não puderam ir e foram poucas as reuniões de sacudir
a poeira da caixa da memória. Mesmo que tivessem ido todos, por certo não teria
a poeira da caixa da memória. Mesmo que tivessem ido todos, por certo não teria
sido possível. Os jovens da “Semana” tinham muitas perguntas sobre “como
pode ser” e eles nos disseram que, elas sim, deviam ser respondidas. Paulo
Freire, que durante meses antes alimentou a vontade de rever Mossoró e
Angicos, acabou não podendo ir. O cansaço do trabalho dos primeiros meses da
volta do exílio venceu o programa de seus “encontros” na “Semana”. Venceu
nossos planos de reuniões de memória e venceu até mesmo a encomenda que ele
havia feito, de que não faltasse na mesa do almoço: carne de sol com gerimum.
No cordel do programa ficou escrito:
Sexta-feira
08/05
8h
às 11h
E como na sexta-feira
ninguém tem mais paciência
então pensamos em ter
ter uma atração de potência
e resolvemos botar
Paulo Freire pra contar
sua vida e experiência.
Parte do que escrevo daqui para baixo são momentos desta vida e experiência.
Em outras andanças pelo Brasil, sempre para cursos, encontros e conversas sobre
Educação Popular, aos poucos percebi que mesmo quem não foi “dos anos
1960” leu quase tudo o que Paulo Freire escreveu. É difícil encontrar alguém que
esteja ligado de algum modo com a educação, com os movimentos populares de
agora, e que não tenha lido os seus escritos e não conheça as suas ideias. No
entanto, fora um ou outro, quase ninguém conhece a prática de seu método de
alfabetização.
Na revista Estudos Universitários, nº 4, onde pela primeira vez aparecem as
ideias e o método da equipe de Paulo Freire em Pernambuco, o artigo escrito por
Aurenice Cardoso e que fala da prática do trabalho de alfabetizar com o método,
é o último de uma série sobre o assunto. Em alguns livros de Paulo Freire e de
outros educadores, são poucas as páginas sobre o método e, não raro, elas estão
escondidas em algum “anexo”.
Paulo Freire.
Talvez por isso mesmo eu tenha resolvido escrever aqui o caso às avessas e
fazer, como aconteceu no “curso de Mossoró”, o livro ao contrário. Já que a
prática mais vivida foi a do método de alfabetização, é dela que vamos partir
juntos, leitor, depois de contar alguma coisa de sua história. Falo direto dele
como algo vivo que se faz e refaz enquanto se usa. Por isso descrevo alguns
passos de como ele é criado a cada vez que se usa. Falo sobre como o método
educa enquanto se constrói e, portanto, falo de um método como um processo,
com as sequencias e etapas que ele repete a cada vez; como uma história coletiva
de criar e fazer, que é a sua melhor ideia.
Depois disso, aí sim, coloco a prática do método dentro do trabalho da educação
popular de que ele sempre foi imaginado como um instrumento entre outros.
Você se lembra, leitor, daquela letra de poema que se tem cantado muito por aí?
Caminhante, não há caminho
Se faz caminho ao andar.
Pois bem, as pessoas de quem se fala aqui sonharam um caminho e começaram a
Pois bem, as pessoas de quem se fala aqui sonharam um caminho e começaram a
andar. O “método” foi só a botina que calçaram nos pés para caminhar. Muita
gente, de tanto haver olhado só as marcas dela no caminho, pensou que aquilo
fosse toda a prática. E toda a história do que se fez.
A questão é que Paulo Freire não propôs um método entre outros. Um método
psicopedagogicamente diferente e, quem sabe, melhor? Antes de fazer isso ele
investiu aos brados com uma educação, contra outras. Por isso, depois de falar
contra que educação a sua se apresenta e como é a educação em que ele crê, é
preciso dizer contra que tipo de Mundo ele acredita em um outro, e por que crê
que a educação que reinventa pode ser um instrumento a mais no trabalho de os
homens o criarem, transformando este que aí está.
Mas, que homens? De que mundo? Termino estes escritos sobre o Método Paulo
Freire por onde começam quase todos os estudos sobre as suas ideias. Pelas
ideias. Pelo arcabouço com que ele pensa e repensa o homem, a história, o
trabalho, a cultura, a educação e mais o fio que amarra e puxa tudo isso: a
liberdade. Termino a nossa conversa pelo modo como, para que tudo aquilo
acima se transforme, ele imaginou criar uma ferramenta que ajudasse o homem a
começar pelo começo; por um jeito mais humano de ensinar-aprender a ler e
escrever. Uma das práticas sociais por onde começa esta história que continua a
procurar, com as gentes de maio em Mossoró, respostas às suas tantas perguntas
de por quê? e pra quê?
1. “deste ano” refere-se ao ano em que o livro foi escrito, 1981.↩
2. “hoje” refere-se ao período em que o livro foi escrito, ou seja, anos 1980.↩
Um dia, perto de angicos
Havia uma equipe de professores nordestinos no Serviço de Extensão
Universitária da Universidade Federal de Pernambuco. Alguns deles eram
também gente do Movimento de Cultura Popular do Recife, o primeiro que se
fez no Brasil, na aurora dos anos 1960. Na aurora do tempo em que,
coletivamente, pela única vez alguma educação no Brasil foi criativa e sonhou
que poderia servir para libertar o homem, mais do que, apenas, para ensiná-lo,
torná-lo “doméstico”.
Primeiro foi feita uma pequena experiência na casa que o MCP conseguiu
arrumar numa periferia de Recife. Foram 5 alfabetizandos. Dois saíram, ficaram
3. De lá a equipe realizou as primeiras experiências mais amplas em Angicos e
Mossoró, no Rio Grande do Norte, e em João Pessoa, na Paraíba, com o pessoal
da CEPLAR. Lavradores do Nordeste foram os primeiros homens a viverem a
experiência nova do “círculo de cultura”. Foram os primeiros a serem
alfabetizados de dentro para fora, através de seu próprio trabalho.
Depois de haver sido testado em “círculos” na roça e na cidade, no Nordeste, o
trabalho com o método foi levado por muitas mãos ao Rio de Janeiro, a São
Paulo e a Brasília. Aquele era o tempo da criação dos movimentos populares de
cultura (MCP), dos centros de cultura popular do movimento estudantil (CPC),
do Movimento de Educação de Base da Igreja Católica (MEB), da campanha De
Pé no Chão também se Aprende a Ler, da Prefeitura de Natal, entre tantos outros
grupos, lugares e equipes onde se misturavam educadores, estudantes,
professores, profissionais de outras áreas que, por toda a parte, davam sentidos
novos a velhas palavras: educação popular, cultura popular.
Os resultados obtidos — 300 trabalhadores alfabetizados em 45 dias —
impressionaram profundamente a opinião pública. Decidiu-se aplicar o
método em todo o território nacional, mas desta vez com o apoio do
Governo Federal. E foi assim que, entre junho de 1963 e março de 1964,
foram realizados cursos de formação de coordenadores na maior parte das
Capitais dos Estados brasileiros (no Estado da Guanabara se inscreveram
mais de 6.000 pessoas; igualmente criaram-se cursos nos Estados do Rio
Grande do Norte, São Paulo, Bahia, Sergipe e Rio Grande do Sul, que
agrupavam vários milhares de pessoas. O plano de ação de 1964 previa a
instalação de 20.000 círculos de cultura, capazes de formar, no mesmo ano,
por volta de 2 milhões de alunos. Cada círculo educava, em dois meses, 30
alunos.) — Paulo Freire, Conscientização.
Não houve tempo para passar das primeiras experiências para os trabalhos de
amplo fôlego com a alfabetização de adultos. Em fevereiro de 1964, o governo
do Estado da Guanabara apreendeu na gráfica milhares de exemplares da cartilha
do Movimento de Educação de Base: Viver é Lutar. Logo nos primeiros dias de
abril, a Campanha Nacional de Alfabetização, idealizada sob direção de Paulo
Freire, pelo governo deposto, foi denunciada publicamente como
“perigosamente subversiva”. Em tempo de baioneta a cartilha que se cale.
Aqueles foram anos — cada vez piores, até 1968 — em que por toda parte
educadores eram presos e trabalhos de educação, condenados. Paulo Freire foi
um dos primeiros educadores presos e, depois, exilados. Foi para o Chile com a
família, o sonho e o método. Todos exilados do país por 16 anos.
Pouco tempo depois da chegada ao Chile o país destaca-se entre todos do mundo
pelo seu trabalho em favor do adulto analfabeto. O Chile recebe de UNESCO
uma distinção como um dos 5 países que melhor contribuíram para superar o
analfabetismo. Programas nacionais são desenvolvidos a partir das ideias e do
sistema de trabalho de um brasileiro exilado. Antes que também lá a baioneta
encoste a cartilha no muro, Paulo Freire vai para os Estados Unidos e, depois,
para a Europa. Em Genebra ele cria, com outros companheiros de exílio, o
Instituto de Ação Cultural (IDAC). A nova equipe viaja vezes seguidas para
diversos países da África onde, depois da libertação política — como aconteceu
nas antigas colônias de Portugal —, luta-se por todas as outras liberdades,
inclusive por aquela que se obtém de aprender a saber. Por toda a parte há sinais
de sua passagem e, quanto mais o poder do pensamento oficial procura fazer
com que se esqueça do seu nome aqui no Brasil, tanto mais ele é convidado a
falar em inúmeros outros países de todo o mundo. Tanto mais é lido e estudado e
tanto mais o seu método é difundido e repensado. Em 1980 Paulo Freire voltou
ao Brasil “para aprender tudo de novo”, como ele mesmo disse, como se tivesse
lido os versos de Cecília Meireles que eu coloquei no começo destes escritos.
Ou, quem sabe? Foi ela quem aprendeu com ele?
O abc do método
O trabalho da fala: a pesquisa do universo
vocabular
Métodos de alfabetização têm um material pronto: cartazes, cartilhas, cadernos
de exercício. Quanto mais o alfabetizador acredita que aprender é enfiar o saber
de quem sabe no suposto vazio de quem sabe, tanto mais tudo é feito de longe e
chega pronto, previsto. Paulo Freire pensou que um método de educação
construído em cima da ideia de um diálogo entre educador e educando, onde há
sempre partes de cada um no outro, não poderia começar com o educador
trazendo pronto, do seu mundo, do seu saber, o seu método e o material da fala
dele.
Um dos pressupostos do método é a ideia de que ninguém educa ninguém e
ninguém se educa sozinho. A educação, que deve ser um ato coletivo, solidário
— um ato de amor, dá pra pensar sem susto —, não pode ser imposta. Porque
educar é uma tarefa de trocas entre pessoas e, se não pode ser nunca feita por um
sujeito isolado (até a autoeducação é um diálogo à distância), não pode ser
também o resultado do despejo de quem supõe que possui todo o saber, sobre
aquele que, do outro lado, foi obrigado a pensar que não possui nenhum. “Não
há educadores puros”, pensou Paulo Freire. “Nem educandos.” De um lado e do
outro do trabalho em que se ensina e aprende, há sempre educadores-educandos
e educandos-educadores. De lado a lado se ensina. De lado a lado se aprende.
A cartilha é um saber abstrato, pré-fabricado e imposto. É uma espécie de roupa
de tamanho único que serve pra todo mundo e pra ninguém. Ora, o núcleo da
alfabetização é uma fala que virou escrita, uma fala social que virou escrita
pedagógica. Mesmo quando há quem diga que ali tudo é neutro e que foi
escolhido ao acaso, ou por critérios de pura pedagogia, todos nós sabemos que
quem dá a palavra dá o tema, quem dá o tema dirige o pensamento, quem dirige
o pensamento pode ter o poder de guiar a consciência. O Cipriano Neto, aquele
do cordel do “Programa”, saberia dizer: “quem dá o mote dá a ideia”.
Outra coisa, imagine você, leitor, que por certo aprendeu a ler faz tempo e
esqueceu o custo da coisa, imagine um operário chegando, depois de uma
jornada macha de trabalho, na sala de aula e tendo que repetir no meio da noite:
Eva viu a uva.
Eva viu a uva.
A ave é do Ivo.
Ivo vai na roça.
Pior ainda, aqui e ali, quando fazem cartilhas e livros de leitura para adultos, os
textos escolhidos para o “ensino das primeiras letras” deixam muitas vezes
passar pelas entrelinhas um pensar que pensa pelo alfabetizando. Uma maneira
de “dizer o mundo” que, quando é discutida, oculta na própria fala que propõe
uma leitura irreal da realidade social. É quando o estudo que desvela o segredo
da escrita, vela o da vida. É quando, no livra dirigido às gentes do povo, aos
operários, fala o senhor, o patrão. Um exemplo recolhido pelo próprio Paulo
Freire.
Pedro não sabia ler. Pedro estava envergonhado. Um dia Pedro foi à escola
e se inscreveu num curso noturno. O professor de Pedro era muito bom.
Agora Pedro sabe ler. Veja o rosto de Pedro (essas lições em geral são
ilustradas). Pedro está sorrindo. Ele é um homem feliz. Ele tem um bom
trabalho. Todos teriam que seguir o seu exemplo — (Pedagogia do
Oprimido).
Esta é uma das razões pelas quais este é um método que se constrói a cada vez
que ele é coletivamente usado dentro de um círculo de cultura de educadores e
educandos. E o trabalho de construir o repertório dos símbolos da alfabetização
já é o começo do trabalho de aprender. Por isso ele deve envolver um máximo de
pessoas da comunidade, do lugar onde serão formadas uma ou mais turmas de
alfabetizandos. A ideia de uma ação dialogal entre educadores e educandos deve
começar com uma prática de ação comum entre as pessoas do programa de
alfabetização e as da comunidade.
Assim, nas primeiras experiências, depois de a comunidade aceitar envolver-se
com o trabalho de alfabetização, a tarefa que inicia a troca que ensina é uma
pequena pesquisa. É um trabalho coletivo, coparticipado, de construção do
conhecimento da realidade local: o lugar imediato onde as pessoas vivem e irão
ser alfabetizadas.
Esta primeira etapa pedagógica de construção do método foi chamada por Paulo
Freire de vários nomes semelhantes: “levantamento do universo vocabular” (em
Educação como prática da liberdade), “descoberta do universo vocabular” (em
Conscientização), “pesquisa do universo vocabular” (em Conscientização e
alfabetização), “investigação do universo temático” (em Pedagogia do
oprimido). De livro para livro algumas palavras mudaram, mas sempre
permaneceu viva a mesma ideia: a ideia de que há um universo de fala da cultura
da gente do lugar, que deve ser: investigado, pesquisado, levantado, descoberto.
E como é que esse primeiro passo de descoberta é feito? Caderno de campo na
mão, olhos e ouvidos atentos, se possível (se adequado) gravador em punho. As
pessoas do “programa de educação” misturam-se com as “da comunidade”. Se
for viável, habitam — sem molestá-lo — o seu cotidiano. Não há questionários
nem roteiros predeterminados para a pesquisa. Se houvesse, eles seriam como
uma cartilha. Trariam pronto o ponto de vista dos pesquisadores. Há perguntas
sobre a vida, sobre casos acontecidos, sobre o trabalho, sobre modos de ver e
compreender o mundo. Perguntas que emergem de uma vivência que começa a
acontecer ali.
Sobre este primeiro momento de trabalho, Aurenice Cardoso escreveu o
seguinte, há cerca de 20 anos:
O contacto inicial e direto que estabelecemos com a comunidade é durante
a pesquisa do universo vocabular — etapa realizada no campo e que é a
primeira do Sistema Paulo Freire de Educação de Adultos. Não é uma
pesquisa de alto rigor científico, não vamos testar nenhuma hipótese. Tratase de uma pesquisa simples que tem como objetivo imediato à obtenção dos
vocábulos mais usados pela população a se alfabetizar — (Conscientização
e Alfabetização).
Das muitas conversas com o mundo da comunidade: pessoas, casais, famílias,
pequenos grupos, equipes locais, todas as situações de vida e trabalho podem ser
exploradas. É tão importante saber como os lavradores do lugar fazem o seu
trabalho com a terra, como saber de que modo as mulheres guardam a sabedoria
do cuidado de seus filhos. O vivido e o pensado que existem vivos na fala de
todos, todo ele é importante: palavras, frases, ditos, provérbios, modos
peculiares de dizer, de versejar ou de cantar o mundo e traduzir a vida.
Reuniões podem ser provocadas para efeitos de um momento da pesquisa. Elas
podem ser também a hora de se trocar com as pessoas ideias sobre o trabalho de
aprender a ler e escrever. Reuniões costumeiras podem ser aproveitadas para a
pesquisa: rezas, festas, folganças dos moços do lugar, discussões no sindicato.
Algumas frases inteiras serão guardadas e um dia, mais tarde, devolvidas ao
grupo, no círculo de cultura. Dos primeiros levantamentos no Nordeste ficaram
ditos nunca esquecidos de gentes da roça: “Janeiro em Angicos é duro de se
viver, porque janeiro é cabra danado pra judiar de nós”. Frases como as de João
Guimarães Rosa, lembrou um dia Paulo Freire. Ou foram as dele que
aprenderam a ser como as das gentes do sertão?
A pesquisa do universo vocabular deve ser conduzida de tal forma que reduza
sempre a diferença entre pesquisador e pesquisado. O próprio fato de que se está
fazendo uma primeira etapa do método, com o levantamento, deve ser anunciado
claramente. Futuros animadores de círculos de cultura, futuros alfabetizandos,
devem ser incentivados a participar dos trabalhos e a avaliar o seu andamento. A
todo o momento é preciso fugir da imagem da pesquisa tradicional, que se
alimenta justamente da oposição pesquisador/pesquisado. O que se “descobre”
com o levantamento não são homens-objeto, nem é uma “realidade neutra”. São
os pensamentos-linguagens das pessoas. São falas que, a seu modo, desvelam o
mundo e contêm, para a pesquisa, os temas geradores falados através das
palavras geradoras.
A partir do levantamento das “palavras” a pesquisa descobre as pistas de um
mundo imediato, configurado pelo repertório dos símbolos através dos quais os
educandos passam para as etapas seguintes do aprendizado coletivo e solidário
de uma dupla leitura: a da realidade social que se vive e a da palavra escrita que
a retraduz.
Ora, leitor, há uma ideia que será dita e repetida aqui algumas vezes. O método
aponta regras de fazer, mas em coisa alguma ele deve impor formas únicas,
formas sobre como fazer. De uma situação para outra, de um tempo para outro,
sempre é possível criar sobre o método, inovar instrumentos e procedimentos de
trabalho. Nas experiências feitas sob a direção de Paulo Freire houve avanços no
trabalho de fazer a pesquisa do universo vocabular: 1º) a ampliação da presença
ativa da comunidade, desde as reuniões de decisão sobre a pesquisa; 2º) a
ampliação do próprio “universo” pesquisado que, nas primeiras experiências,
esteve mais concentrado sobre o levantamento de palavras e, nas seguintes,
sobre a descoberta de temas, problemas, modos de ver e viver; 3º) a ampliação
dos usos do material obtido na pesquisa, dentro e fora dos trabalhos de
alfabetização no círculo de cultura. Para ampliar estes usos de conhecimento
pesquisado, a pesquisa pode estender-se a uma busca de dados secundários sobre
a comunidade e sua região: mapas, relatórios, estudos feitos.
Façamos uma síntese. O objetivo da pesquisa do universo vocabular e temático é
surpreender a maneira como uma realidade social existe na vida e no
pensamento, no imaginário dos seus participantes. A pesquisa deve ser um ato
criativo e não um ato de consumo. A descoberta coletiva da vida através da fala;
do mundo através da palavra não deve servir apenas para que os educadores
obtenham um primeiro conjunto de material de alfabetização: palavras, frases,
dados, desenhos, fotos. Deve servir também para criar um momento comum de
descoberta. Tal como o próprio Paulo Freire desenvolveu depois em suas ideias
sobre pesquisa participante, comum significa, aqui, coparticipado entre pessoas
dos dois lados do trabalho de alfabetizar: agentes de educação e as gentes da
comunidade.
Procurando palavras geradoras o trabalho de descobri-las é, ele mesmo, um
momento gerador, um momento de trabalho comum de que as outras etapas do
método serão outras situações comuns de uma mesma descoberta aprofundada.
O trabalho sobre a fala: as palavras geradoras
Quando o trabalho da pesquisa das palavras geradoras está concluído, o que é
que a equipe de trabalho tem nas mãos? Tem o seu próprio trabalho e ele foi o
mais importante: reuniões foram feitas, decisões de encaminhamento foram
tomadas com a comunidade, pessoas foram conhecidas, grupos locais de
pesquisa foram organizados. Tem o produto do trabalho — o material da
pesquisa. Tem falas registradas: escritas, gravadas, guardadas na memória.
Frases como esta: “aqui o melhor mês é março, a chuva parou e o arroz a gente
tá começando a colher”; ou como esta:
a criançada por aqui aprende é com os mais velhos, vendo a gente na roça,
na lavoura todo o dia. Os menorzinhos ajuda trazendo a comida lá da casa
até aqui. Os maiorzinhos já pega na enxada e ajuda na limpa.
De inúmeras frases assim — frases que recontam a vida do lugar e que devem
recortar todas as suas situações, com todas as categorias de seus sujeitos — saem
as palavras geradoras de que o método faz o seu miolo.
Quando o solitário criador de uma cartilha de alfabetização escolhe as palavrasguia para o ensino da leitura, ele lança mão de critérios puramente linguísticos
que submete aos pedagógicos. Pode até ser que use critérios afetivos, mas
sempre eles serão os seus, pessoais e, para os alunos alfabetizandos, arbitrários.
Por isso, palavras como: Eva, Ivo, ovo, ave, sapato, são tão universais quando
vazias. E, na verdade, elas nada precisam dizer nem evocar, porque
tradicionalmente alfabetizar tem sido considerado como um trabalho mecânico
de ensino de uma habilidade necessária, mas neutra. Uma espécie de mágica que
vira mania, ato coletivo compulsivo com que se aprende pelo esforço do simples
repetir sem refletir.
Ora, no Método Paulo Freire entra um critério que, se não é novo, apareceu
repensado. Este critério novo ajuda na escolha do repertório das palavras do
trabalho criativo de aprender a ler. As palavras são a menor unidade da
pesquisa, assim como os fonemas das palavras serão a menor unidade do
método. Mas, aqui, as palavras não são só um instrumento de leitura da língua;
são também instrumentos de releitura coletiva da realidade social onde a língua
existe, e existem os homens que a falam e as relações entre os homens. Portanto,
as palavras precisam servir para as duas leituras e os seus critérios de escolha são
três, dois deles usuais em outros métodos, o outro, novo e renovador:
1º) a riqueza fonêmica da palavra geradora;
2º) as dificuldades fonéticas da língua;
3º) a densidade pragmática do sentido.
A melhor palavra geradora é aquela que reúne em si a maior porcentagem
possível dos critérios sintático (possibilidade ou riqueza fonêmica, grau de
dificuldade fonêmica complexa, de manipulabilidade dos conjuntos de
sinais, as sílabas etc.), semântico (maior ou menor intensidade do vínculo
entre a palavra e o ser que designa, maior ou menor adequação entre
palavra e ser designado etc.), pragmático (maior ou menor teor de
conscientização que a palavra traz em potencial, ou conjunto de reações
socioculturais que a palavra gera na pessoa ou grupo que a utiliza)” —
(Fundamentação Teórica do Programa).
Emergindo todas através da pesquisa das falas cotidianas das pessoas do lugar,
convertidas na primeira escrita do método, capazes de codificarem, como
símbolos da língua, as situações mais significativas da vida coletiva da vida de
quem lhes fala, as palavras geradoras devem conter todos os fonemas da Língua
Portuguesa e devem incluir todas as dificuldades de pronúncia e escrita (s, ss, ç,
ch, x, lh e outros terrores gramaticais).
Estes dois critérios determinam a própria apresentação das palavras depois, nos
dias das reuniões de alfabetização. Esta ordem é a da dificuldade crescente de
leitura e escrita e da lógica de linguagem na explicação progressiva destas
dificuldades.
Mas as palavras devem também conter sentidos explícitos, diretos e é bom que
eles estejam carregados de carga afetiva e de memória crítica. São boas as
palavras que convivem com a fala comum da gente do lugar e que, mesmo sendo
de uso geral na região, sejam sentidas por quem fala como “uma coisa daqui”:
palavras que as pessoas usam no toda a hora da fala. Mas os seus sentidos
devem apontar para as questões da vida, do trabalho; devem ser símbolos
concretos da existência real das pessoas, como “chuva”, “enxada” e “lavoura”
são para o lavrador; como “favela”, “tijolo” e “salário” são para o operário.
As palavras geradoras não precisam ser muitas. De 16 a 23 é o bastante.
Precisam, em conjunto, responder aos três critérios de escolha. No começo dos
anos 1960, para uma comunidade em Cajueiro Seco, no Recife, a equipe
escolheu as seguintes: tijolo, voto, siri, palha, biscate, cinza, doença,chafariz,
máquina, emprego, engenho, mangue, terra, enxada, classe. Para uma colônia
agrícola da cidade do Cabo, em Pernambuco: tijolo, voto, roçado, abacaxi,
cacimba, fome, feira, milho, maniva, planta, lombriga, engenho, guia, barracão,
charque, cozinha, sal.
Às vezes é bom que a prática desobedeça à regra. Houve começos de
experiências no Brasil onde a pesquisa do universo vocabular foi feita em escala
mais ampla, envolvendo inúmeras comunidades. Isto aconteceu pelo menos uma
vez no Rio de Janeiro e outra em Goiás. A ideia então foi a de reunir pesquisas
de descoberta feitas em vários lugares e separar delas as que, servindo aos
critérios de escolha, fossem também as mais comuns.
Assim, as palavras geradoras escolhidas para uma campanha de alfabetização
nos morros e favelas do Rio de Janeiro foram estas: favela, chuva, arado,
terreno, comida, batuque, poço, bicicleta, trabalho, salário, profissão, governo,
mangue, engenho, enxada, tijolo, riqueza.
Observe, leitor, que, no seu limite mais conciso, estas poucas palavras codificam
o modo de vida das pessoas dos lugares onde a “descoberta” foi feita. Para serem
decodificadas num outro momento de descoberta, o do círculo de cultura, a cada
palavra foi associado um núcleo de questões, ao mesmo tempo existenciais
(ligadas à vida) e políticas (ligadas aos determinantes sociais das condições da
vida). Este núcleo de referência gerador serve apenas como um roteiro de
sugestão de troca de ideias, de debates nos círculos. Assim, para a palavra
“batuque” os “aspectos de discussão” foram: “cultura do povo, folclore, cultura
erudita, alienação cultural”. Para “governo”: “plano político, o poder político, o
papel do povo na organização do povo, participação popular”.
No Estado de Goiás, o Movimento de Educação de Base enfrentou o desafio de
recriar o método para a situação de um trabalho de alfabetização através do
rádio, de escolas radiofônicas. As pistas do trabalho de ensinar- -aprender eram
ditas pelo rádio a um monitor-animador em cada escola. Ouvindo a fala do
“programa” com o seu círculo de alfabetizandos, ele deveria realizar o trabalho
do diálogo da alfabetização, de que as discussões sugeridas por palavras são um
momento. Com o levantamento feito em várias comunidades agrárias das regiões
do Estado onde seria implantado o trabalho, foram escolhidas estas palavras:
Benedito, Jovelina, mata, fogo, sapato, casa, enxada, roçado, bicicleta,
trabalho, bezerro, máquina, safra, armazém, assinatura, produção, farinha,
estrada.
Algumas outras invenções foram feitas aí, leitor, e elas ajudam a pensar, no
concreto, a ideia de tomar o método como um roteiro de trabalho pedagógico e
criar sobre ele, sem desvirtuar o seu sentido e a sua prática. Veja, muito ao gosto
da “gente da lavoura” no sertão, as duas primeiras palavras geradoras são nomes
de pessoas. São nomes comuns em Goiás e sugerem a possibilidade de se
imaginar um casal de “povo da roça”, uma família. Ao longo do trabalho dos
grupos sobre as palavras geradoras, poderia ser construída uma história, ou uma
sequencia de “causos” que, sendo de uns “Benedito e Jovelina”, poderiam ser de
quaisquer outros, as gentes vivas de cada lugar; viventes reais de referência.
Por outro lado, como todo o trabalho de alfabetização era então feito em
comunidades de lavradores (camponeses, parceiros, agregados, peões de
lavoura), a ordem das palavras procurava seguir de perto a sequencia do ciclo do
trabalho agrícola do plantio de cereais: o preparo do solo, a aração, o plantio, as
limpas, a colheita, o armazenamento, a comercialização, o beneficiamento para
uso próprio.
Nas experiências de trabalho mais simples, onde o aprender a ler e escrever é a
parte mais importante e supera a ideia de educadores e educandos viverem o
fazer o diálogo através do qual todos aprendem também a ler e escrever, a tarefa
de codificação do material de alfabetização pode acabar na escolha das palavras
geradoras.
A dimensão mais ampla: o tema gerador
Quando a proposta de trabalho com o método é mais ampla, esta etapa de
codificação da descoberta continua na escolha dos temas geradores. Isto pode
acontecer quando, mesmo na etapa de alfabetização, há um interesse em
provocar debates mais a fundo sobre as questões que as palavras geradoras
apenas sugerem. Acontece também, com mais frequência, quando a etapa de
alfabetização é prolongada na de pós-alfabetização, para que os alunos dos
grupos de cultura atinjam plenamente aquilo que os educadores chamam de
alfabetização funcional: um domínio das habilidades de leitura, escrita e cálculo
mais operativo do que o que a simples alfabetização proporciona.
Cada palavra tem o seu uso semântico próprio. Serve para introduzir os fonemas
cuja recombinação, feita pelo exercício coletivo de educador e educandos,
alfabetiza. Em ordem crescente de dificuldade, cada palavra ajuda a que estes
resolvam, com a contribuição daquele, as questões que aos poucos esclarecem os
mistérios do ler e escrever.
Mas cada palavra tem também a sua carga pragmática que, vimos, é uma
combinação de teor afetivo com peso crítico. “Trabalho”, “roçado”, “farinha”
são palavras carregadas da memória da vida de quem vive no campo, do seu
trabalho. Cada palavra esconde muitas falas porque está carregada dos sinais da
dor, luta e esperança de quem vive do seu trabalho, passa fome e luta por não
perder a pouca terra que lhe resta.
Assim como na pesquisa do universo vocabular cada palavra geradora aparece
dentro de frases, de falas das pessoas, cada palavra aponta para questões, para
temas: temas geradores. Vamos ver um pouco adiante que, antes de trabalhar
com a palavra para fazer o trabalho coletivo de alfabetizar e alfabetizar-se, o
grupo de educandos trabalha a questão que a palavra geradora sugere, desafia a
pensar sobre.
Durante todo o tempo da pesquisa; mais tarde, durante todo o tempo do trabalho
do círculo de cultura, é preciso estar atento para o que se fala. As falas, as
conversas, as frases, entrevistas, discussões dentro ou fora do círculo, tudo está
carregado dos temas da comunidade: seus assuntos, sua vida. A vida da família
em casa, no quintal, na lavoura; as alegrias, a devoção e o trabalho ritual das
festas “do santo do lugar”; a luta coletiva contra a ameaça da expulsão das terras
festas “do santo do lugar”; a luta coletiva contra a ameaça da expulsão das terras
de trabalho do lavrador; as questões dos grupos populares organizados — grupos
de jovens, de mulheres, de igrejas, de trabalho político; as questões do
relacionamento das pessoas com a natureza, as tradições da cultura e as
mudanças de tudo; as relações da comunidade com as tramas do poder; o
sentimento do mundo.
Ora, estes temas concretos da vida que espontaneamente aparecem quando se
fala sobre ela, sobre seus caminhos, remetem a questões que sempre são as das
relações do homem: com o seu meio ambiente, a natureza, através do trabalho;
com a ordem social da produção de bens sobre a natureza; com as pessoas e
grupos de pessoas dentro e fora dos limites da comunidade, da vizinhança, do
município, da região; com os valores, símbolos, ideias. Reunidos para serem
materiais de discussão em fases mais adiantadas do trabalho do círculo, estes são
os seus temas geradores.
Primeiramente estes temas devem ser distribuídos entre as várias ciências
do homem, sem que isto signifique que no programa devam ser
considerados como departamentos estanques. Significa apenas que um tema
possui uma visão mais específica, central, conforme a sua situação em um
domínio qualquer das especializações... O tema DESENVOLVIMENTO,
por exemplo, ainda que esteja situado no domínio da economia, não lhe é
exclusivo. Receberá enfoques da sociologia, da antropologia, assim como
da psicologia social, interessadas na questão da mudança cultural, da
mudança de atitudes e nos valores que igualmente interessam a uma
filosofia do desenvolvimento — (Contribución para el Proceso de
Concientización en America Latina).
Temas geradores foram pensados por Paulo Freire para serem usados na fase de
pós-alfabetização. Falo deles aqui, descrevendo os momentos de produção do
material de construção do método, porque hoje em dia a tendência é não dividir
o trabalho de pesquisa de descoberta, fazendo ao mesmo tempo o levantamento
de dois níveis de universos: o vocabular e o temático, um como núcleo gerador
da fase de alfabetização, outro da de pós-alfabetização.
Tal como no caso das palavras geradoras, os temas são colecionados sob todas as
formas possíveis de material: entrevistas escritas e gravadas, dados sobre o
lugar, sobre a comunidade, fotos, documentos.
Uma série de temas geradores pode ser distribuída assim:
1. a natureza e o homem: o ambiente;
2. relações do homem com a natureza: o trabalho;
3. o processo produtivo: o trabalho como questão;
4. relações de trabalho (operário ou camponês);
5. formas de expropriação: relações de poder;
6. a produção social do migrante;
7. formas populares de resistência e de luta.
As palavras geradoras são instrumentos que, durante o trabalho de alfabetização,
conduzem os debates que cada uma delas sugere e à compreensão de mundo
(que é o melhor nome para a ideia de conscientização que nos espera algumas
páginas à frente) a ser aberta e aprofundada com os diálogos dos educandos em
torno aos temas geradores, instrumentos de debate de uma fase posterior do
trabalho do círculo.
O material “pra começo de conversa” do Método Paulo Freire está criado (mas
nunca acabado, creia, leitor), quando:
1º) em uma comunidade comprometida com um trabalho de educação
popular existem um ou mais círculos formados ou em formação, com o seu
grupo de educandos e o seu animador (um agente de educação “do
programa” ou um educador já alfabetizado, da própria comunidade);
2º) foi feito um primeiro momento do trabalho de pesquisa de descoberta do
universo vocabular e/ou (hoje em dia mais e do que ou) do universo
temático;
3º) todo o material da pesquisa feita dentro e fora da comunidade (mas
sempre sobre ela e a partir dela) foi reunido, organizado, discutido,
inclusive com a gente do lugar;
4º) o instrumental do trabalho de alfabetização foi codificado, transformado
em símbolos de uso no círculo de cultura: palavras geradoras, cartazes e
fichas com as palavras, desenhos e fonemas, fotos, anotações com dados
etc. (e, conforme o caso, muitos etc. que cada equipe saberá obter e criar);
5º) a equipe de trabalho e, sobretudo, os animadores de círculos de cultura,
estão não só familiarizados com o método e o seu material específico para
trabalho no lugar, com a sua gente, mas também treinados sobre o método a
ponto de sabê-la usar, ao mesmo tempo, com eficiência autônoma e
criatividade.
Nas experiências pioneiras no Brasil e no Chile, não era com o trabalho de
decodificar as palavras geradoras que o método começava a ser praticado nos
círculos. Era com o trabalho de pensar juntos a partir de umas fichas de cultura
que educador-educandos principiavam o seu aprendizado.
As fichas de cultura são desenhos feitos em cartazes ou projetados em slides.
Uma após a outra, elas provocam os primeiros debates, as primeiras trocas de
ideias entre o animador e os educandos, ou entre os educandos. Em conjunto elas
introduzem ideias de base que, partindo de situações existenciais, possibilitam a
apreensão coletiva do conceito de cultura e conduzem a outros conceitos
fundamentais que muitas vezes reaparecerão e serão rediscutidos durante todo o
trabalho de alfabetização: “trabalho”, “diálogo”, “mundo”, “natureza”,
“homem”, “sociedade”.
Algumas vezes a equipe do método trazia pronta as suas fichas de cultura.
Outras vezes elas eram criadas na própria comunidade, inclusive com desenhos
sugeridos aos próprios artistas do lugar. Eram levantadas durante os momentos
de pesquisa da descoberta e eram desenhadas depois de discutidas, durante o
trabalho de codificação dos dados e situações descobertas.
Mas como tudo no método implica criação, ajustamento do próprio instrumental
de trabalho às condições e peculiaridades de cada lugar de seu uso, aqui e ali as
fichas de cultura passaram, de desenhos imaginados, para sequencias de fotos
em que as próprias ideias que elas devem sugerir eram imagens concretas da
vida das pessoas da comunidade.
Ao falar de como o método é vivido, quero apresentar as sequencias originais
destas fichas.
O trabalho com a fala: o círculo de
cultura
Dá pra desconfiar que “círculo de cultura” é uma ideia que substitui a de “turma
de alunos” ou a de “sala de aula”. “Círculo”, porque todos estão à volta de uma
equipe de trabalho que não tem um professor ou um alfabetizador, mas um
animador de debates que, como um companheiro alfabetizado, participa de uma
atividade comum em que todos se ensinam e aprendem. O animador coordena
um grupo que não dirige e, a todo momento, anima um trabalho orientando uma
equipe cuja maior qualidade deve ser a participação ativa em todos os momentos
do diálogo, que é o seu único método de estudo no círculo.
“De cultura”, porque, muito mais do que o aprendizado individual de “saber ler
e escrever”, o que o círculo produz são modos próprios e novos, solidários,
coletivos, de pensar. E todos juntos aprenderão, de fase em fase, de palavra em
palavra, que aquilo que constroem é uma outra maneira de fazer a cultura que os
faz, por sua vez, homens, sujeitos, seres de história — palavras e ideias-chave
no pensamento de Freire.
Reler o Mundo: as fichas de cultura
Uma noite está tudo pronto. O pessoal do círculo convocado e então “a coisa”
começa.
Quando sente que dá, o animador coloca diante de todos o primeiro cartaz das
fichas de cultura. Ele chama a atenção para o desenho, a gravura. Sugere que
digam o que estão vendo: o que a figura mostra? Quais são as partes, os
elementos dela? O que será que ela quer dizer? Com o que é que parece?
Este é o desenho que foi usado nos primeiros círculos de cultura do Nordeste. A
discussão dele pode tomar todo o tempo da primeira reunião do círculo. Pode
continuar no outro dia. Paulo Freire escreveu assim sobre esta gravura:
1ª situação — o homem no mundo e com o mundo. Natureza e cultura.
Através do debate desta situação, em que se discute o homem como um ser de
relações, se chega à distinção entre os dois mundos — o da natureza e o da
cultura. Percebe-se a posição normal do homem como um ser no mundo e com o
mundo.
Como um criador e recriador que, através do trabalho, vai alterando a
realidade. Com perguntas simples, tais como: quem fez o poço? por que o
fez? como o fez? quando?, que se repetem com relação aos demais
‘elementos’ da situação, emergem dois conceitos básicos: o de necessidade
e o de trabalho e a cultura se explicita num primeiro nível, o de
subsistência. O homem fez o poço porque teve necessidade de água. E o fez
na medida em que, relacionando-se com o mundo, fez dele objeto de seu
conhecimento. Submetendo-o, pelo trabalho, a um processo de
transformação. Assim, fez a casa, sua roupa, seus instrumentos de trabalho.
A partir daí, se discute com o grupo, em termos evidentemente simples,
mas criticamente objetivos, as relações entre os homens, que não podem ser
de dominação nem de transformação, como as anteriores, mas de sujeitos
— (Educação como Prática da Liberdade).
Nos primeiros tempos do método as outras situações eram as seguintes:
2ª) o diálogo entre os homens mediatizado pela natureza;
3ª) o caçador iletrado, o índio;
4ª) o caçador letrado, a cultura letrada, diferenças de culturas;
5ª) o caçador gato, cultura e natureza;
6ª) o homem transforma a matéria da natureza através do seu trabalho;
7ª) um jarro, produto do trabalho do homem com a natureza, utilidade e
beleza, a arte;
8ª) uma poesia, a cultura espiritual;
9ª) padrões de comportamento dos homens e entre os homens;
10ª) um círculo de cultura funcionando, síntese de todas as discussões
anteriores.
Acho que é uma boa ideia transcrever também que Paulo Freire falou há muitos
anos a respeito desta última “situação existencial provocadora”. Ela é um
exemplo de como se sugeria indicar o andamento das discussões e antecipa,
leitor, as páginas em que descrevo o seu pensamento sobre o homem e a
educação.
10ª situação — círculo de cultura funcionando. Síntese das discussões
anteriores.
Esta situação apresenta um círculo de cultura funcionando. Ao vê-la,
facilmente se identificam na representação. Debate-se a cultura como
facilmente se identificam na representação. Debate-se a cultura como
aquisição sistemática de conhecimentos e também a democratização da
cultura, dentro do quadro geral da “democratização fundamental”, que
caracteriza o processo brasileiro.
A “democratização da cultura”, disse certa vez um desses anônimos mestres
analfabetos, “tem de partir do que somos e do que fazemos como povo. Não
do que pensem e queiram alguns de nós”. Além desses debates a propósito
da cultura e de sua democratização, analisava-se o funcionamento de um
círculo de cultura, seu sentido dinâmico, a força criadora do diálogo, o
aclaramento das consciências. Em duas noites são discutidas estas
situações, motivando-se intensamente os homens para iniciar, na terceira, a
sua alfabetização, que é vista, agora, como uma chave para abrir a eles a
comunicação escrita.
Exemplos de fichas de cultura (nos. 3 e 6).
Situação existencial provocadora.
Só assim a alfabetização cobra sentido. E a consequência de uma reflexão
que o homem começa a fazer sobre sua própria capacidade de refletir.
Sobre sua posição no mundo. Sobre o mundo mesmo. Sobre seu trabalho.
Sobre seu poder de transformar o mundo. Sobre o encontro das
consciências. Reflexão sobre a própria alfabetização, que deixa de ser assim
algo externo ao homem, para ser dele mesmo. Para sair de dentro de si, em
relação com o mundo, como uma criação.
Só assim nos parece válido o trabalho da alfabetização, em que a palavra
seja compreendida pelo homem na sua justa significação: como uma força
de transformação do mundo. Só assim a alfabetização tem sentido. Na
medida em que o homem, embora analfabeto, descobrindo a relatividade da
ignorância e da sabedoria, retira um dos fundamentos para a sua
manipulação pelas falsas elites. Só assim a alfabetização tem sentido. Na
medida em que, implicando em todo este esforço de reflexão do homem
sobre si mesmo e sobre o mundo em que e com que está, o faz descobrir
que o mundo é seu também, que o seu trabalho não é a pena que paga por
ser homem, mas um modo de amar — e ajudar o mundo a ser melhor —
(Educação como Prática da Liberdade).
Estas são as finalidades das fichas de cultura, que sugerem os debates a partir
das imagens das situações existenciais: levar o grupo de educandos a rever
criticamente conceitos fundamentais para pensar-se e ao seu mundo; motivá-lo
para assumir, crítica e ativamente, o trabalho de alfabetizar-se. Quando você
para assumir, crítica e ativamente, o trabalho de alfabetizar-se. Quando você
chegar nas últimas páginas do livro, leitor, descobrirá o que de certo já sabe, ou
já imagina. O trabalho com as fichas de cultura introduzia questões, inaugurava
conceitos e convidava a ideias de um pensar que é, na verdade, o do próprio
fundamento do método: de sua filosofia e de sua pedagogia.
Desde este primeiro trabalho coletivo dentro do círculo (porque antes dele já
houve muito) é fundamental que o animador preserve o espírito de diálogo e
participação que terá sido o da equipe, desde o seu aparecimento na
comunidade. E importante que o grupo não apenas participe, como uma espécie
de coro que segue e repete solo do animador. É preciso que haja sempre o que
Paulo Freire chamou um dia de “participação criadora”. Assim, ele não deve
fazer, por sua conta e para os educandos, a decodificação da gravura. Já que é
decodificando um desenho em ideias, em símbolos da fala, que o grupo cria e os
educandos aprendem, é preciso que seja seu este trabalho. O animador deve
sempre evitar fazer para ou por. Deve criar as situações em que, com a sua
ajuda, o grupo faça o trabalho de pensar, de refletir coletivamente. Por isso ele
não guia, mas favorece, orienta.
Ao refletir com o grupo, não deve conduzir debate sobre as situações
existenciais — e, mais tarde, a partir das palavras geradoras — como se tudo
fosse um jogo de adivinhação: “o que é que vemos aí? E agora?”. O grupo deve
sentir que o trabalho é de problematização de uma realidade que a todos
envolve: o que a gravura sugere? Em que um dos seus elementos se distingue do
outro? Por que é assim e não de outra maneira? Como poderia ser? Como
deveria ser? Qual o sentido do que se fala, do que se discute a partir do que todos
veem?
Quando surgirem as palavras articuladoras do pensamento crítico: homem,
mundo, trabalho, natureza, cultura, diálogo, educação, direitos, justiça,
liberdade, criação e tantas outras, é sobre elas que o animador deve provocar um
pensar coletivo mais demorado. Estas palavras poderiam ser chamadas de
articuladoras. Elas mais adiante vão somar-se com as geradoras, as de
alfabetização e lhes vão dar sentido. E vão articulá-las com um pensamento
crítico que deverá, por sua vez, articular-se com o próprio pensar sobre a vida e a
condição de vida das pessoas do círculo de cultura.
Reler a fala: as palavras geradoras
Cada palavra geradora tem o seu desenho e é com ele, nele, que ela aparece no
círculo. Parte do trabalho de construção do método, na etapa anterior, será o de
elaborar o conjunto do material de cada uma das palavras, tal como ele vai
aparecer daqui para frente.
Depois de completar a sequencia das fichas de cultura, o animador pode mostrar
ao grupo a primeira palavra geradora. Isso deve ser feito, por exemplo, logo
depois da discussão da última situação existencial sugerida pela ficha 10a, caso
ela tenha terminado antes de haver chegado a hora combinada para os trabalhos
se encerrarem, cada vez.
Do mesmo jeito como no caso da sequencia de cartazes “de cultura”, os “das
palavras geradoras” devem sugerir, de maneira muito natural, um debate a
respeito do que é visto. Nas primeiras experiências do Nordeste, para que o
próprio animador tivesse em mãos um roteiro que o ajudasse a encaminhar os
trabalhos de cada palavra, foi costume elaborar uma espécie de “plano de
palavra” para cada uma. Assim, em 1961 em Mossoró e Angicos, era este o
encaminhamento da palavra geradora: salário.
Palavra geradora: salário
Ideias para discussão:
a valorização do trabalho e a recompensa.
finalidade do salário: manutenção do trabalhador e de sua família.
o horário do trabalho segundo a lei.
o salário mínimo e o salário justo.
repouso semanal — férias — décimo terceiro mês.
Finalidades da conversa:
levar o grupo a discutir sobre a situação do salário dos camponeses.
discutir o porquê dessa situação.
discutir com o pessoal sobre o valor e a recompensa do trabalho.
despertar no grupo o interesse de conhecer as leis do salário.
levar o grupo a descobrir o dever que cada um tem de exigir o salário
justo.
Encaminhamento da conversa:
o que é que vocês estão vendo neste quadro?
como é que está a situação do salário dos camponeses? por quê?
o que é o salário?
como deve ser o salário? por quê?
o que é que a gente sabe das leis sobre o salário?
o que podemos fazer pra conseguir um salário justo?”
(Método Paulo Freire — Manual do Monitor — documento mimeografado
a álcool e quase apagado, para os círculos de cultura de Mossoró e Angicos
em 1961 e 1962).
Em nome da prática de debate já adquirida pelo grupo, o animador poderá
reduzir as suas perguntas e deixar que seja livre a troca de ideias que a “figura da
palavra” sugere. Assim, o grupo cria o seu tempo e o círculo discute à vontade,
até quando sente que chega e começa a dar ao coordenador sinais de que a hora
de “trabalhar a palavra” chegou.
Quero criar aqui uma imagem da situação do trabalho de alfabetização a partir
das palavras geradoras. Tomo como exemplo a primeira palavra que aparece na
versão do método desenvolvida pelos educadores do Movimento de Educação de
Base, em Goiás, no ano de 1964 (que ano, heim, companheiro?). A primeira
palavra foi Benedito e no primeiro cartaz ela aparece assim:
Quando o grupo diz ou quando o animador percebe que é hora de falar na
palavra, ele chama a atenção para ela, escrita. Ele aponta, caminha com os dedos
pelo traçado do fio dela e pode falar alguma coisa assim:
Tão vendo, pessoal? Olha, esse homem que a gente tava falando sobre ele e
a vida dele, o nome dele tá escrito aqui embaixo. Assim, ó: Benedito (lê
devagar, acompanhando a palavra com os dedos ao longo da palavra, sem
separar artificialmente as suas sílabas). Olha gente: Benedito, Benedito.
Outra vez: Benedito. Agora, vamos ver se vocês repetem comigo. Vamos
lá: Benedito, Benedito, Benedito. Isso gente. A senhora, Dona Maria:
Benedito, Benedito. João, você aí atrás: Benedito. Vocês estão vendo?
Benedito.
A mão do monitor passeia pelo nome escrito cada vez que ela é pronunciada.
Não se trata de memorizar, de decorar o nome. O que vale é ver o nome da
palavra que se diz alto e repete. Ora, no meio do exercício de falar e repetir,
vendo, mostrando, apontando, o animador pode colocar sobre a palavra geradora
do cartaz uma mesma palavra, igual no nome e no desenho das letras, só que
escrita em uma pequena ficha, assim:
Benedito
Um pouco adiante, depois de haver repetido de novo a leitura de ver com todos e
com alguns, ele puxa por cima o cartaz da figura, de modo que, da “figura com a
palavra”, fica a “palavra sem a figura”. Ele repete o “letrume” agora, do mesmo
modo. “Letrume” era como, nos primeiros círculos de cultura, as pessoas da roça
chamavam as letras das palavras, as palavras e seus pedaços. Mais algumas
repetições de ver podem ser feitas e, então, o monitor coloca diante do círculo
outro cartaz com o nome desdobrado em seus fonemas — pedaços:
Be - ne - di - to
be bi ba bu bo
ne ni na nu no
di de da du do
to te ta tu ti
Olha aí, gente. Uma casa não tem as suas partes: quarto, cozinha, sala,
varanda? Tudo no mundo não tem os seus pedaços? Pois uma palavra
também. Tão vendo? Benedito tem esses pedaços aí, assim: Be-ne-di-to,
Be-ne-di-to, Be-ne-di-to.
O monitor lê, acompanha com as mãos as sílabas, os fonemas, na medida em que
os pronuncia. Repete. Depois mostra no todo o que é, abaixo, desdobramento do
conjunto de cada fonema.
Presta atenção agora. Que a gente tem aqui, Ó, aqui assim? Cada pedaço do
nome do Benedito tem a sua família. Aqui tá escrito o Be do Benedito, aqui
o ne, o di, o to. Agora, desse jeito assim tá a família do Be completinha: be,
bi, ba, bu, bo. De novo, olha gente: be, bi, ba, bu, bo. Vamos lá, todo
mundo: be, bi, ba, bo, bu. Joca Ramiro, você agora, dá pra ser? be, bi, ba,
bo, bu. Agora aqui tem a família do ne: ne, ni, na, nu, no. Quem é que lê
comigo? Benedito, você que tem o mesmo nome, vamos lá: ne, ni, na, nu,
no.
Todos veem, leem e repetem com o monitor, sozinhos, em coro. A mão
acompanha agora os pedaços, saltando de um para o outro. Se no meio dos
comentários sobre o exercício que devem ser deixados tão livres quanto possível
— surge a visão espontânea e a ideia das vogais, o animador pode chamar a
atenção sobre elas. Elas são “a parte que muda em cada família”: Be, ne, di, to,
Be, bi, ba, bu, bo. Pode até escrever no quadro ou apresentar um cartaz com elas
e repeti-las com os educandos.
Mais adiante chega o momento mais criativo do trabalho. Ele coloca diante de
todos a ficha de descoberta:
ba be bi bo bu na ne ni no nu da de di do du ta te ti to tu
Ela reintroduz o começo de outro momento importante de criação e de
aprendizagem. A partir dela o grupo para de repetir o que vê e começa a criar
com o que repetiu vendo. Há, portanto, muito mais trabalho sobre este cartaz do
que sobre todos os outros juntos. Depois de mostrar e repetir um pouco ainda as
famílias, o animador lembra pro grupo que, assim como de Benedito foi possível
separar os pedaços e compor a família, juntando de novo os pedaços se pode
formar: Benedito, ou outras palavras, conforme se faz o novo arranjo.
Primeiro ele lê os fonemas em todas as direções possíveis: a) na horizontal —
ba, be, bi, bo, bu; b) na vertical — ba, na, da, ta; c) em diagonais livres — ba,
ne, di, to; bu, no, di, te; d) salteadas, ao acaso — be, to, di, na, du. Se algum
alfabetizando demonstrar vontade de fazer o mesmo, nada melhor. Ele poderá
repetir o que vê de seu lugar. Pode vir até no cartaz e mostrar. Outros podem
fazer o mesmo. O grupo é dono de seu tempo, e de seu trabalho.
A passagem de uma maneira de ler para uma outra deve ser realizada quando o
monitor sente que cada ordem está bem reconhecida. A mão não acompanha,
como antes, o que a leitura fala da ficha de descoberta. Quando sente que ficou
maduro o trabalho, o animador pode dizer:
Olha, gente, do mesmo jeitinho como se pode pegar uma palavra como o
nome Benedito e separar as partes dele: Be, ne, di, to e de cada uma fazer
cada família: ba, be, bi, bo, bu, do mesmo jeitinho a gente pode reunir de
novo os pedaços e formar a palavra do nome de Benedito, assim: Benedito
(ele reúne os pedaços apontando cada um com a mão) Benedito. E a gente
pode formar outras, não pode? Do jeito como juntar de novo os pedaços.
Quem é que quer tentar, gente?
Se alguém no círculo se animar a criar qualquer palavra, isso deve ser muito
incentivado. Mas o animador não deve insistir sobre o grupo e, menos ainda,
sobre uma pessoa. Caso sinta que ainda não dá — e isso acontece apenas nas
primeiras palavras — ele mesmo pode criar, formar novas palavras simples,
acompanhando a fala com o gesto de apontar em movimento cada pedaço e
todos os que formam a palavra.
Ninguém? Tá bom. No começo pode ser meio difícil mesmo. Então eu
começo, olha lá: ba, na, na — banana. De novo, assim, ó: ba, na, na —
banana. Agora, vejam: de, do — dedo. Tão vendo? de, do — dedo (e o dedo
aponta o dedo que a fala pronuncia). Agora, aqui: bo, ti, na — botina. Tem
vez que um pedaço já é palavra: nu.
O coordenador do círculo deve construir apenas algumas poucas palavras. Deve
mostrar, sem ensinar como, uma lógica, um processo de reconstrução de
palavras. Se no meio de seu trabalho alguém quiser FORMAR UMA
PALAVRA, TUDO BEM. Que ele faça.
De novo deve incentivar o grupo a que faça trabalho de criar outras palavras, ou
de recriar as mesmas que ele acabou de formar. As pessoas podem ser
convidadas a fazerem como ele, a virem na frente pra tentar a coisa. Alguns
chegam perto, apontam pedaços, formam palavras: “palavras de pensamento”,
como bota, “palavras mortas”, como benu (se é que em algum canto ela não
existe). De início todas servem, desde que sejam feitas. Só mais tarde é que ele
poderá mostrar a diferença.
Com muita alegria Paulo Freire lembra que um dia, em cima da ficha de
descoberta de tijolo, um alfabetizando de Brasília construiu: tu já lê (tu já lês).
Durante o resto do tempo de uma reunião, todos juntos podem formar palavras.
O monitor pode escrevê-las no quadro (ou num outro cartaz em branco, se não
houver quadro-negro). Caso tenha havido muito trabalho de criação de palavras,
ele pode interromper o processo quando sentir que começa a cansar. Pode
mostrar todas as palavras criadas, escritas por ele, e chamar a atenção de todos
lembrando que aquilo foi o trabalho do grupo.
Caso alguém queira, pode vir ao quadro e escrever uma ou mais palavras. Se a
turma sentir vontade, o que resta do tempo pode ser aproveitado para que, em
seu lugar, cada um escreva — desenhe — as palavras que quiser.
Os educandos devem ser incentivados a escreverem em casa todas as palavras
que forem capazes de formar, sejam elas iguais ou não às que foram formadas na
que forem capazes de formar, sejam elas iguais ou não às que foram formadas na
reunião. Na experiência do MEB de Goiás, os educandos recebiam para cada
palavra uma pequena folha que, em parte, reproduzia o trabalho feito e sugeria
novos exercícios. Com o tempo eles iam montando o seu próprio material de
estudo pessoal: estas folhas-fichas recebidas, as folhas em que escrevem as suas
palavras, seus desenhos, mais tarde, suas anotações e assim por diante. Veja uma
das fichas pessoais sobre uma palavra geradora na página seguinte.
O trabalho de escrever é muito difícil para alguns adultos, por isso houve casos
em que se desenvolveram exercícios de coordenação motora.
Na reunião seguinte à primeira, o trabalho do círculo pode começar com o
convite para que os alfabetizandos leiam alto as palavras que formaram em casa.
Que venham à frente e formem, no cartaz da descoberta, as suas palavras. Quem
quiser, que as escreva para todos. Outros podem dizer as suas, simplesmente. O
animador poderá ir escrevendo na medida em que elas são faladas.
Ora, esgotado o trabalho sobre uma palavra geradora, o animador pode sugerir
que se trabalhe sobre a segunda. Ele procede da mesma maneira e, de uma para a
outra, certamente contará com uma participação mais intensa e mais sábia dos
educandos. De novo o grupo debate o que a palavra geradora sugere. No caso de
Goiás, a segunda palavra geradora é Jovelina que, além de ser muito rica para a
formação de outras palavras, sugere outra pessoa e, muitas vezes, a associação a
um casal de gente da roça: Benedito e Jovelina.
No trabalho de formação de palavras, de uma para a outra, fonemas das
anteriores podem ser convocados para somarem com os de uma nova palavra.
Em certos momentos duas palavras podem aparecer lado a lado em seus cartazes
de descoberta, o que, por certo, multiplica o poder de criação do grupo.
Palavras mais difíceis podem ser apresentadas mais tarde. Em Goiás primeiro
vinham: Benedito, Jovelina, mata, fogo, sapato, casa. Todas elas são palavras
simples, com os fonemas em ordem direta — consoante + vogal — e sem
dificuldades maiores de construção. Depois vinham: enxada, chuva (x e ch),
roçado (o terrível ç), bicicleta, trabalho (tr e lh), bezerro (z, s, ss, ç — que
língua desgraçada!) safra (fr), máquina (qui, que), armazém, assinatura,
produção, farinha (nh), estrada (tr).
As dificuldades são apresentadas, discutidas. Sobre elas o monitor deverá
trabalhar mais tempo deixando, no entanto, que as dificuldades maiores
apareçam quando o grupo estiver pronto para enfrentá-las por sua conta.
Exemplo, para a palavra geradora casa a ficha de descoberta foi escrita assim:
ca
co cu
sa se si so su
e a questão de ce, ci, que, qui foi empurrada mais pra frente, quando o grupo
teve que encarar: máquina.
Entre palavras geradoras frases completas podem ser escritas com poucos
fonemas. É para este exercício, que torna muito motivante e criativo o trabalho
coletivo de construir a língua no ato de aprender a ler, que o animador deve
caminhar, quando sentir que há material bastante para fazê-lo com todos.
Creia, leitor, que com os fonemas de Benedito e Jovelina dá para formar:
Benedito vive Jovelina vive
Benedito lida o dia todo
Jovelina ajuda Benedito na labuta.
Um pouco mais à frente dá pra fazer, entre outras:
O sapato de Jovelina acabou.
Ela lida na casa de sapé.
Benedito capina.
Ele usa a enxada na capina.
Por que é que você não tenta algumas, leitor? Misture os fonemas das palavras
que listei acima e faça a coisa. Fazendo, sentindo, dá pra compreender melhor
como é que funciona.
No fim das palavras — mas não do trabalho — os alunos estão formando não só
frases curtas, ou pequenas falas escritas, mas períodos: “ideias completas”. As
folhas que recebem de tempos em tempos sugerem algumas e eles são
incentivados todo o tempo a fazerem os seus próprios escritos: bilhetes aos
companheiros, pequenas “redações”, notícias de fatos do lugar, jornal do grupo.
Com os fonemas das palavras geradoras do “Paulo Freire de Goiás”, deu para
escrever:
Ajustar, inovar, criar
Nada mais quadrado, companheiro, do que enquadrar o método. Do que pensá-lo
como uma forma sobre o fazer, e não como uma forma de fazer. Nada pior do
que pensar: “o método é assim e deve ser seguido assim”. Você se lembra da
ideia do caminho? Pois é...
Desde as primeiras ideias de Paulo Freire e sua equipe da Universidade Federal
de Pernambuco nada precisa ser rígido no método. Ele não se impõe sobre a
realidade, sobre cada caso. Ele serve a cada situação. O mesmo trabalho coletivo
de construir o método, a cada vez, deve ser também o trabalho de ajustar, inovar
e criar a partir dele.
Nada é rígido e não há receitas. Nada é lei, a não ser as leis da lógica do ato de
aprender e os princípios gramaticais da língua. Há uma proposta de trabalhodiálogo e há uma lógica no processo coletivo de aprender a ler e escrever. Fora
disso cada situação é uma situação e coisa alguma é melhor para um círculo de
cultura para a comunidade à qual o círculo se abre — do que aquilo que a sua
gente descobre, com o próprio trabalho, que é bom, que amplia o diálogo, que
favorece uma leitura crítica da realidade social e uma leitura correta da língua,
que é parte desta realidade.
Há cerca de 20 anos1 atrás, os primeiros testes com o método produziram
resultados surpreendentes. Dava para alfabetizar (a nível elementar, entenda-se
bem) em 40 horas uma turma de adultos dos fundos do Nordeste. Às vezes dava
pra fazer todo o trabalho em até 36 horas. Mas em 1964 as escolas radiofônicas
do Movimento de Educação de Base em Goiás adaptaram o método para um
programa de pelo menos 6 meses de duração. E quando no pequeno patrimônio
de Santa Fé, 16 anos depois, algumas pessoas retomaram o “Paulo Freire do
MEB” para trabalhar com uma turma de jovens e adultos lavradores,
descobriram que o grupo arrumou assunto para discutir Benedito durante 5
reuniões e, no 4º mês, o grupo estava ainda na 8ª palavra geradora.
Quero falar aqui de alguns exemplos de uso do método para dizer, mais com eles
do que com minhas ideias, como um trabalho pedagógico de criar através do
fazer solidário, deve começar pela própria coragem de se recriar a cada vez.
As experiências pioneiras do Nordeste e do Rio
de Janeiro
Em Recife (a primeira experiência em D. Olegarinha, pelo MCP — Movimento
de Cultura Popular), em Angicos, em Mossoró, em João Pessoa, o método foi
trabalhado tal como pensado inicialmente. O círculo começava sempre pelo
debate em torno das fichas de cultura e de suas situações existenciais.
As palavras geradoras eram introduzidas depois com pequenas diferenças, frente
ao modo como se trabalhou com elas em Goiás.
Veja, leitor, como alguns anos depois, lembrando o começo do mesmo trabalho,
agora feito no Rio de Janeiro, Paulo Freire sintetizava os passos:
Palavras geradoras
1. FAVELA — necessidades fundamentais: a. habitação
b. alimentação
c. vestuário
d. saúde
e. educação
...Analisada a situação existencial que representa em fotografia aspecto de
uma favela e em que se debate o problema da habitação, da alimentação, do
vestuário, da saúde, da educação, numa favela e, mais ainda, em que se
descobre a favela como situação problemática, se passa à visualização da
palavra, com a sua vinculação semântica. Em seguida: um slide apenas
com a palavra
FAVELA
Logo depois: outro, com a palavra separada em suas sílabas:
FA – VE – LA
FA – VE – LA
Após; a família fonêmica:
FA – FE – FI – FO – FU
Segue-se
VA – VE – VI – VO – VU
Em outro slide:
LA – LE – LI – LO – LU
Agora , as três famílias (Ficha da Descoberta)
FA – FE – FI – FO – FU
VA – VE – VI – VO – VU
LA – LE – LI – LO – LU
O grupo começa a criar então palavras com as combinações à sua
disposição” (Educação como Prática da Liberdade).
O trabalho no interior de Goiás, hoje
No patrimônio de Santa Fé, município de Jussara, caminho do Rio Araguaia, os
lavradores quiseram um “estudo de ler e escrever”. Ali é um lugar onde, como
em tantos outros hoje em dia, já existe um trabalho popular organizado. Grupos
da comunidade, grupos de lavradores militantes de classe, grupos da Pastoral
Popular da Igreja. Já existe há algum tempo, portanto, um trabalho costumeiro
que traz uma nova ordem de mobilização à ordem tradicional da vizinhança, do
mutirão, dos grupos camponeses de trabalho religioso, como as folias de Santos
Reis.
Num canto do lugarejo, a gente do lugar fez uma “escola” num ranchão de
madeira e palha de Buriti. Agentes de pastoral, professores, foram convocados
por representantes da comunidade para ajudar no andamento da ideia. Pessoas
alfabetizadas do próprio lugar foram preparadas para fazerem o trabalho do
animador.
Nas reuniões iniciais foi pensada uma pesquisa que deveria levantar dados sobre
as condições de vida, sobre as relações (dramáticas) de trabalho agrário no lugar
e, especificamente, sobre questões de educação. O pessoal do lugar pensou em
um trabalho de descoberta nos moldes de pesquisa participante. Esta era uma
modalidade de trabalho coparticipado de descoberta que Paulo Freire e o pessoal
do IDAC haviam desenvolvido na Europa e que, ali mesmo em Goiás, havia sido
realizada em uma pesquisa anterior sobre condições atuais e direitos do povo à
saúde.2
Havia pressa em começar logo o trabalho do círculo de cultura, antes das chuvas,
se possível. Para a primeira turma a ideia foi a de os próprios educandos, com o
animador e mais a ajuda dos professores, fazerem a pesquisa na comunidade ao
mesmo tempo em que se começasse o trabalho de alfabetização da primeira
turma. Então alguém lembrou do “Paulo Freire de Goiás”. 16 anos depois ele foi
descoberto (com emoção), num canto de prateleira do Centro de Treinamento da
Diocese de Goiás, Livre da poeira do tempo, ele emergiu para o trabalho do
grupo. As palavras geradoras, 16 anos depois, pareciam haver saído da própria
comunidade. Antes elas foram discutidas com algumas pessoas do lugar, para
que juntos resolvessem se podiam ser deles também.
Não se pensou em fichas de cultura. Ali havia uma gente do sertão acostumada a
Não se pensou em fichas de cultura. Ali havia uma gente do sertão acostumada a
se reunir em várias situações de grupos orgânicos de movimentos populares
(grupos de mulheres, de jovens, de lavradores). Havia um hábito já arraigado, na
vida e na cultura do lugar, de se discutir o mundo a partir dos problemas da
comunidade. Estas foram as questões levadas para dentro do círculo de cultura.
Os conceitos fundamentais emergiam das discussões que o dia a dia da vida
conduzia da comunidade para o grupo de educandos.
Benedito deu noites de debates entre todos. Havia vários Beneditos conhecidos e
todos viviam um momento difícil da vida do “pobre do lugar”. Não havia um
roteiro — e não há, até agora — para cada palavra geradora. São os
acontecimentos que associam a vida concreta à sugestão das palavras geradoras,
o que provoca o debate de cada noite. Naquele ano (1980) os lavradores do lugar
perderam com a falta de chuva a lavoura do arroz e, depois, a do feijão. O
recurso foi se empregarem de “boia-fria” catador de semente de capim pras
fazendas em volta do povoado e suas terras. Fazendas que, por ironia do destino
(ou do sistema?), continuamente ameaçavam de expropriação de suas terras os
lavradores de Santa Fé.
Estes são os assuntos de debate entre os educandos. Como ali são muitos os
artistas de viola e voz, não é raro que se comece um círculo cantando uma das
muitas canções “dos lavradores de Goiás”3 que correm de boca em boca; de
silêncio em silêncio de espanto em espanto da consciência. O que é que precisa
aprender sobre a realidade, uma gente que dá lições dela, como em Espelho da
Realidade, uma moda de viola de um lavrador de perto?
Os patrão que tem fazenda
Pros pião já tem falado:
Vou arranjá um vaqueiro
Não quero mais agregado
Vou deixá de tocar roça
Os meus plano tá mudado
Vou fazer esta coleita
Porque sou financiado
Lavoura não dá mais nada
Eu já tá sacrificado
Minhas máquinas é tudo cara
Adubo é um preço danado
Adubo é um preço danado
Na lavoura eu ponho capim
Vou formá pasto pro gado!
O pobre do lavrador
Já fica bem apertado
Não tem roça pra plantá
Já fica encabulado
Vem mudando lá da roça
Pra cidade e povoado
Acaba tudo o que tem
Fica bem desequilibrado
Seu dinheiro já acabou
Começa comprá fiado
Serviço ele não acha
Não pode ficá parado
O nome dele acaba
Ele fica desmoralizado.
Imagina a sua vida
Deste jeito aqui não dá
Lá em casa não tem nada
Não tem jeito de comprá
Vai beber uma pinguinha
Pra poder se disfarçá
Fica tonto o dia inteiro
Cai aqui, cai acolá
Chega em casa embriagado
Com a família vai brigá
Não tem fogo, falta lenha
Nada tem pra alimentá
A situação obriga
Ele resolve a roubá.
O cabroco adoece
Não tem jeito de tratá
Panha folha e raiz
Faz todo o tipo de chá
Assim mesmo sem dinheiro
Procura o hospital
Ele não vai atendido
Porque não pode pagá
Procura o seu direito
Procura o seu direito
Através do FUNRURAL
Sai de lá só com a receita
Remédio não tem pra dá,
Só se ferver a receita
E dá pro doente tomá.
Falta terra, falta tudo
Falta a alimentação
Fais o cabocro ficá
Na triste situação
O povo doente e fraco
Prejudica a nação
Faz o homem cachaceiro
Fais outro virá ladrão
Fais mulher mudá de vida
Pra poder ganhá o pão
Traz a fome e a miséria
Perigo a humanidade
Dá uma revolução.
Tem fazenda e fazenda
Que é grande perfeitamente
Sobe serra, desce serra
Salta muita água corrente.
Sem lavoura e sem ninguém
O dono mora ausente
Lá só tem um caçambeiro
Tira onda de valente
Isso é uma grande batalha
Que está na nossa frente
Tem muita gente sem terra
E tem muita terra sem gente.
Tudo o que é da vida e da cultura da comunidade, da região, é trazido para
dentro do círculo. Ali se canta e se verseja. Ali se fazem pequenos “dramas”,
representações improvisadas, um teatro sertanejo que os lavradores de Goiás
sabem fazer sem custo, porque só lhes custa representar a própria vida. Ali
cantam as músicas, as “modas de viola” e as “modas de catira” que se criam na
comunidade, ou que chegam de lugares vizinhos. Tudo é material sobre o qual o
grupo pensa e cria. Tudo se incorpora ao trabalho de aprender a ler e escrever.
Um acontecimento inesperado pode sugerir uma palavra não prevista no
Benedito e Jovelina, e que “entra no debate” e no trabalho de aprender a ler.
Houve pressa de começar. Não há previsão do tempo de acabar o primeiro
trabalho de educação de um grupo de lavradores adultos na “vila de Santa Fé”.
O projeto de alfabetização dos funcionários de
uma universidade
Por ocasião da escolha da lista sêxtupla de candidatos à reitoria da Universidade
Federal de São Carlos (São Paulo), descobriu-se que 40 funcionários não eram
ainda alfabetizados. Um grupo de professores e alunos da Universidade reuniuse, dentro de um seminário aberto de educação, para pensar a questão. Daí
surgiu o Projeto de Alfabetização de Funcionários da UFSC. Durante algum
tempo o grupo se reuniu para aprofundar a proposta de seu trabalho pedagógico.
Durante cerca de 3 meses foi feito um programa de preparação de
alfabetizadores — professores e alunos. A formação da equipe não foi pensada
em momento algum como uma atividade técnica: dominar os princípios de um
método de alfabetização. Isto foi apenas parte de uma reflexão coletiva sobre o
próprio sentido do trabalho a ser desenvolvido e sobre os princípios que
deveriam nortear a prática pedagógica junto aos funcionários-educandos.
O ser alfabetizador consciente e consequente, especialista “mais político”,
está sendo viabilizado ao longo da própria prática pedagógica e dos estudos
sistemáticos paralelos, onde se discute criticamente esta prática no sentido
de torná-la cada vez mais adequada às condições concretas e viáveis do
contexto educacional, de modo específico, e do contexto sócio-políticoeconômico brasileiro, de modo geral (Boletim da ADUFSCar, maio 1981).
Antes de se formarem os grupos de alfabetização foram feitos contatos entre
educadores e educandos, de modo a se reconhecer o universo vocabular. Dele
saíram as palavras geradoras que, em conjunto, constituíam temas de discussão,
sempre ligados ao cotidiano da vida dos alfabetizandos.
Os temas, em conjunto, ligam-se ao “fio condutor” do curso: “ler e escrever de
modo consciente e consequente a sua própria realidade”.
Algumas atividades da alfabetização, às vezes deixadas em segundo plano em
outras experiências, estão sendo levadas com muito empenho: o
desenvolvimento da coordenação matara para o exercício da escrita, o ensino de
matemática (cálculo — trabalho feito em Goiás a partir do desenvolvimento de
um método de ensino baseado nos princípios “de calcular” dos lavradores).
Depois de algum tempo de trabalho, algumas atividades complementares estão
sendo desenvolvidas. Uma delas, a montagem de um Livro de Leitura 1,
construído a partir de escritos dos alunos das primeiras turmas, dentro do próprio
processo de aprender a ler e escrever. Outra, a elaboração de um Livro de
Leitura 2, que aproveita material dos alunos de maior rendimento, sobre cinco
temas de discussão escolhidos. Ele será o documento básico dos trabalhos de
pós-alfabetização. Outra, ainda, a elaboração de um Jornal dos Trabalhadores,
feito sob a iniciativa de educandos dos grupos e com a ajuda dos educadores. Tal
como ocorreu outras vezes, a discussão que deu origem à ideia e, dela, à
realização do jornal, aconteceu quando o grupo debatia a palavra geradora:
jornal. Com turmas de alunos já alfabetizados, abriu-se a possibilidade de
sequencia dos trabalhos, com a etapa de pós-alfabetização. Dela desaparecem as
palavras geradoras. O exercício de aperfeiçoamento de leitura, escrita e cálculo
sai da discussão dos temas geradores. Para os alunos que apresentam ainda
dificuldades de trabalho com a palavra, foram formados grupos de revisão que
aprofundam o estudo coletivo com o Livro de Leitura 1. Para os alunos que
completam bem a primeira etapa, a de pós-alfabetização aparece como uma
sequencia natural de trabalho de equipe. Nesta etapa os educandos trabalham
com a análise de textos simples, que implicam tanto a leitura da realidade que o
conteúdo pragmático sugere, quanto a leitura das dificuldades da língua, que a
leitura sintático-semântica desfia ao grupo.
Há muitos outros exemplos atuais de uso e invenção do Método Paulo Freire.
Neles a ideia de “reinventar a educação” aparece viva e real. Na periferia de
algumas grandes cidades brasileiras os próprios movimentos populares tomam a
iniciativa de propor trabalhos de alfabetização. Há experiências junto a operários
da periferia de São Paulo. Há experiências nas áreas de posseiros do Norte de
Goiás ao Sul do Pará. Para cada contexto e situação, cada equipe formada de
agentes de educação e agentes da comunidade enfrenta o desafio de “pensar de
novo” e de construir o seu modo de trabalhar o e com o método.
1. Refere-se aos anos 1960.↩
2. Sugiro ao leitor que leia A Pesquisa Participante, que esta mesma editora
lançou em 1981. Ali estão reunidos estudos e experiências de trabalhos de
pesquisa com a participação do povo. Há um estudo escrito pela equipe do
IDAC, outro que reproduz uma conferência de Paulo Freire sobre o assunto,
na África. Há também a reprodução do texto completo da pesquisa de
Goiás, O Meio Grito.↩
3. Ver Canto dos Lavradores de Goiás, folheto e fita cassete publicados pelo
Centro de Reflexão e Documentação, de Goiânia.↩
Do método ao sistema, do sistema ao
sonho
Ontem: o sistema
Faz muitos anos, em outro pequeno estudo sobre Paulo Freire, escrevi algumas
ideias que quero reanimar aqui.
O método de alfabetização de adultos do professor Paulo Freire não
representa mais do que a fase inicial de um longo processo dentro de um
Sistema de Educação. Este sistema foi elaborado levando em conta as
seguintes etapas:
a. o método de alfabetização de adultos como processo acelerador da
aprendizagem da leitura e da escrita, a nível elementar. Com a introdução
da técnica de trabalho em grupo proporciona-se um alto grau de atividade
por parte de cada membro do grupo, assim como uma ênfase básica no
processo de conscientização dos adultos participantes. O método foi
elaborado e testado por uma equipe do SEC da Universidade Federal de
Pernambuco e, depois, programado para aplicação em nível estadual e
nacional.
b. um processo sistematizado de educação correspondente ao nível
primário, com o qual se obtém a funcionalidade na leitura e na escrita; um
nível mais profundo no que respeita à conscientização e uma ampliação do
campo de estudos com a introdução de outros elementos necessários à
educação de adultos.
A equipe de técnicos do SEC realizou investigações vocabulares e de interesses,
a fim de elaborar o material didático para os adultos que haviam terminado a
primeira fase da aprendizagem. Foi feita uma redução do vocabulário da língua
portuguesa, obtendo-se um conjunto mínimo e útil de vocábulos que permitiram
elaborar textos impressos. Inicialmente eles deveriam tratar dos seguintes temas:
a) legislação do trabalho, geografia econômica, sindicalização, assuntos técnicos
ligados ao trabalho (camponês ou operário), arte popular e folclórica; b) obras
importantes da literatura brasileira; c) material escrito pelos alunos de vários
círculos de cultura, como poesia, prosa, crítica etc.;
c. uma etapa mais avançada de educação, que deve ser oferecida a todo o povo:
uma abertura a todos os canais de comunicação possíveis à sua circunstância; ao
acesso à cultura em todos os seus níveis e nas suas três dimensões básicas:
acesso à cultura em todos os seus níveis e nas suas três dimensões básicas:
emergência, extensão e criação; formação de um público ativo, participante e
crítico; criação de uma cultura popular (e não, popularizada) onde o povo ocupe
os polos de criador e consumidor (esta última etapa estava em fase de
investigação quando a equipe do SEC teve que suspender os seus trabalhos).
O Sistema preconizava a formação de universidades populares, que assumiriam
a tarefa de oferecer serviços culturais em vários níveis: popular, secundário, préuniversitário e universitário, através do que os adultos teriam a oportunidade de
realizar não um curso de emergência, mas um processo contínuo e tão completo
quanto fosse possível de Educação Fundamental (El Metodo Paulo Freire para
la Alfabetización de Adultos).
Na cabeça dos seus primeiros idealizadores, o método de alfabetização de
adultos era a menor parte de um sistema de educação, do mesmo modo como o
trabalho de alfabetizar era só o momento do começo da aventura de educar,
criando entre as pessoas sistemas novos de trocas de gestos, símbolos e
significados, cujo resultado é a transformação de todos através do diálogo de que
cada um aprende.
Assim, o método foi a matriz construída e testada de um sistema de educação do
homem do povo (e de todas as pessoas, por extensão) que imaginou poder
inverter a direção e as regras da educação tradicional, para que os seus sujeitos,
conscientes, participantes, fossem parte do trabalho de mudarem as suas vidas e
a sociedade que, pelo menos em parte, as determina. Em Pernambuco este
Sistema previa as seguintes etapas: 1ª) alfabetização infantil; 2ª) alfabetização de
adultos; 3ª) ciclo primário rápido; 4ª) extensão universitária (universidade
popular); 5ª) Instituto de Ciências do Homem (pensado para ser criado na
Universidade Federal de Pernambuco); 6ª) Centro de Estudos Internacionais
(com foco sobre questões do Terceiro Mundo).
O instrumento de produção de uma nova
consciência
Trabalhando na África, Paulo Freire e seus companheiros do Instituto de Ação
Cultural tiveram a oportunidade de participarem, como educadores, de um
processo de reconstrução de ex-colônias libertadas através da luta de seu povo.
Aí, a própria ideia de uma educação popular, que existe por oposição a uma
suposta “educação dominante” ou uma “educação de elite”, é substituída pela
ideia de educação nacional porque agora, de fato, o povo é a nação e controla a
educação que o Estado popular cria.
A tarefa do educador é, antes de mais nada, a de criar uma outra educação. Ela
foi a “do colonizador” da metrópole, ou a “do opressor” do poder. Servia aos
interesses de reprodução de uma ordem social colonialista, dominante.
Carregava os seus símbolos e dizia as palavras que conferiam legitimidade ao
seu poder. Ela foi no passado uma educação que confirmava, com a
desigualdade do saber, a desigualdade da vida social: colonos e colonizados,
senhores e servos, brancos e negros.
Não servia preservá-la, quando a própria ordem social que a sustentava foi
destruída. Não servia sequer remodelar os seus métodos e mudar alguns dos
conteúdos de seus ensinos escolares, para se ter uma “nova educação”, para um
novo tempo, uma outra vida coletiva.
Torna-se indispensável reinventar a educação e este trabalho, com que os
próprios educadores se reeducam, é um ato político que começa com a afirmação
de que a educação é um trabalho político. Um trabalho político que antes estava
escondido sob o véu da “missão pedagógica do civilizador” e que, agora, aparece
desvelado, como a missão política de participar do trabalho de libertação
também através do ensino, da educação.
Em uma das cartas que Paulo Freire escreveu para animadores de círculos de
cultura das ilhas de São Tomé e Príncipe, na África, estas ideias estão muito
claras. Observe, leitor, como uma proposta de educação do povo afinal aparece
querendo falar em seu nome, a partir dele, do seu lugar na sociedade e na
história.
história.
A tarefa a que nos entregamos, a de possibilitar que um grande número de
nossos camaradas, sobretudo nos campos, mas não somente neles: leiam e
escrevam, o que estavam proibidos de fazer no regime colonial, é uma
tarefa política. A própria decisão de fazer a alfabetização é um ato político.
E preciso estarmos vigilantes com relação às insinuações feitas, às vezes
ingenuamente, às vezes astutamente, no sentido de nos convencer de que a
alfabetização é um problema técnico e pedagógico, não devendo, por isso,
ser ‘misturada com a política’.
Na verdade, não há educação e por isso alfabetização de adultos neutra.
Toda educação tem em si, uma intenção política...
É em razão disto que nós, enquanto educadores-educandos do Povo,
devemos estar cada vez mais claros com relação à nossa opção política e
vigilantes quanto à coerência entre a opção que proclamamos e a prática
que realizamos. Claros no que diz respeito ao em favor de quê e de quem
trabalhamos em educação. Esta clareza vai aumentando na medida em que,
militantemente, criticamente, nos vamos engajando na nossa prática e nela
aprendendo cada vez melhor como trabalhar. É a militância correta que nos
vai ensinando também que só na unidade, na disciplina e no trabalho com o
Povo nos tornamos educadores coerentes com a opção revolucionária que
proclamamos — (“Quatro cartas aos animadores de círculos de cultura de
São Tomé e Príncipe” — A Questão Política da Educação Popular).
A educação que Paulo Freire vislumbra não é apenas politicamente utilitária. Ela
não objetiva somente criar novos quadros para um novo tipo de sociedade. Há
uma proposta politicamente mais humana, a de criar, com o poder do saber do
homem libertado, um homem novo, livre também de dentro para fora. O método
é instrumento de preparação de pessoas para uma tarefa coletiva de reconstrução
nacional. Por isso ele é parte de um programa nacional de educação, cujos
termos são politicamente definidos. Mas o trabalho de alfabetizar — parte do
trabalho de educar — não subordina o educando à tarefa política para que ele se
prepara aprendendo também a ler e escrever.
Um exemplo mais atual e mais próximo de todos nós é o dos trabalhos da
Cruzada Nacional de Alfabetização da Nicarágua. Uma das primeiras tarefas do
país recém-libertado da ditadura de Somoza foi a de repensar a sua educação e
de recomeçar o trabalho pedagógico junto ao povo do país (até então com um
grande índice de analfabetismo), pelo começo. Por uma campanha de
alfabetização destinada a eliminar o analfabetismo do país, tanto quanto a criar
grupos de educandos capazes de usarem também o espaço e o tempo do círculo
de cultura, para pensarem juntos sobre tudo o que aconteceu no país; sobre o
significado das transformações de que foram parte importante; sobre as etapas
seguintes de uma luta de libertação que não terminou com a conquista popular
do poder político. Uma luta de que a própria Campanha Nacional de
Alfabetização foi considerada como uma das etapas muito importantes. Uma vez
mais Paulo Freire foi chamado a colaborar e, pouco depois, outro brasileiro, o
professor Hugo Assmann, coordenou a elaboração de um livro-documento:
Nicarágua triunfa na alfabetização.
Hoje: um instrumento a serviço dos movimentos
populares
De um modo ou de outro o método de alfabetização de Paulo Freire quase
sempre foi empregado dentro de programas ativos de educação de adultos, de
educação de base, de educação popular. Dentro ou fora do âmbito de uma
instituição oficial, o programa costuma ser pré-definido pelos educadores,
quando não por aqueles que constituem o programa e convocam os educadores
para fazê-lo existir na prática. Isto valeu para o trabalho pioneiro do MCP do
Recife, do SEC da Universidade Federal de Pernambuco, da Campanha Nacional
de Alfabetização do MEC, em 1964 (pensado e não realizado), do governo
chileno durante alguns anos, do governo popular de Guiné-Bissau ou de São
Tomé e Príncipe. Isso vale ainda para as pequenas iniciativas de estudantes que,
aqui e ali, alfabetizam adultos com o método. Os educadores iam às
comunidades populares “do campo e da cidade” em busca de condições de
implantação de círculos de cultura. Algumas vezes, mesmo a nível comunitário,
os trabalhos de alfabetização eram parte de um programa mais amplo de
desenvolvimento comunitário ou de mobilização popular. Outras vezes podiam
ser, até mesmo, um compromisso isolado de um educador, com algumas pessoas
de uma comunidade com que ele tinha um relacionamento político, profissional
ou afetivo.
Hoje em dia, na maior parte dos casos, os educadores procuram recuperar a
prática de um método de educação popular criado há vinte anos. Procuram
redescobrir o sentido do uso de um instrumento de trabalho com o povo através
da educação, dentro de uma nova realidade social e cultural. São outros os dias,
são outras as condições.
Cada vez menos, entre 1964 e pelo menos 1978, foram raras as experiências de
um trabalho junto ao povo realizado a partir do emprego de práticas pedagógicas
de alfabetização.
Reprimidos os movimentos de educação popular no Brasil depois de 1964 e,
mais ainda, depois de 1968, coube ao próprio governo a iniciativa de
desenvolver experiências de alfabetização. O MOBRAL é cria deste tempo e o
seu trabalho, em boa medida, foi o próprio inverso dos sonhos e métodos de
Paulo Freire.
Paulo Freire.
Do outro lado da cerca, durante cerca de 15 anos, a prática concreta daquilo que
chamamos de educação popular mudou de um trabalho político junto ao povo,
através da alfabetização, para um trabalho político com o povo, sem
alfabetização. Durante todos estes anos aqui no Brasil, setores de vanguarda da
Igreja Católica foram, nas suas dioceses, paróquias, comunidades de base, alguns
dos espaços mais estáveis e comprometidos de trabalho de mobilização e apoio
dos mesmos grupos e comunidades populares com quem, alguns anos antes,
estiveram trabalhando os educadores dos movimentos de cultura popular.
Assim, nos últimos anos, a própria Igreja, que sempre teve uma antiga
experiência de “ensino do povo”, abandonou em certos setores o trabalho
pedagógico através de pequenos cursos (alfabetização, corte e costura, formação
de lideranças) e procurou criar novas práticas de diálogo mais ágil e
politicamente mais direto com os grupos populares e suas comunidades. Isto
aconteceu no campo e na periferia das cidades. Iniciativas de “escolarização
popular” alternativa (fora do controle direto do poder de Estado) foram deixadas
em segundo plano, durante alguns anos.
Por outro lado, dentro e fora dos limites do trabalho pastoral da Igreja Católica
(a que aos poucos se soma o trabalho de outras igrejas cristãs), surgiram e
cresceram novas formas de organização popular. Surgiram ou foram recriadas,
também, outras maneiras de intelectuais (estudantes, professores, profissionais)
encontrarem o seu lugar pessoal ou coletivo num trabalho de presença e apoio
àquilo a que Paulo Freire chamaria de: práticas populares de libertação.
Com origens e histórias diferentes a partir de 1964, surgem ou ressurgem (de que
cinzas? de que tempos? de que nomes?) por toda a parte: movimentos de
trabalhadores, sindicatos, oposições sindicais, associações populares,
assembleias do povo, grupos de bairro, de vizinhança, de comunidade,
comissões populares de saúde, de luta por creche, por educação. Ao longo dos
últimos anos, não são só algumas comunidades populares trabalhadas pela
prática pastoral da Igreja, ou pela iniciativa de grupos, equipes ou partidos de
intelectuais de dentro e de fora das universidades, as que aos poucos aprendem a
reencontrar os seus recursos e as suas práticas de mobilização comunitária, de
resistência e luta popular. Na verdade são as próprias classes populares que
reinventam a dimensão de seu trabalho político.
IMAGEM 9
Lavradores aprendem a usar a palavra escrita.
Ora, leitor, para as pessoas com a cabeça feita no meio das experiências
pioneiras de educação popular, ficava cada vez mais claro (às vezes tão claro que
acabava difícil) que a missão do educador popular era a de ajudar na criação das
condições do surgimento, e apoiar as condições de fortalecimento dos
movimentos populares: a) de classe, como o sindicato dos metalúrgicos do ABC
ou o Movimento dos Trabalhadores Rurais de Goiás; b) de comunidade, como as
associações de bairro da periferia de Belo Horizonte, as assembleias do povo de
Campinas, os grupos de mulheres de favelas do Rio de Janeiro.
Apoiar, como educador-militante, com a sua contribuição própria,
complementar, os movimentos surgidos por toda a parte e que, em conjunto,
definem-se da seguinte maneira, por exemplo:
Por movimento popular entendemos todas as formas de mobilização e
organização de pessoas das classes populares diretamente vinculadas ao
processo produtivo, tanto na cidade quanto no campo. São movimentos
populares as associações de bairros da periferia, os clubes de mães, as
associações de favelados, os grupos de loteamento clandestino, as
comunidades de base, os grupos organizados em função da luta pela terra e
outras formas de luta e organização populares. É também parte integrante
do movimento popular o movimento sindical que, pela sua própria natureza,
possui um caráter de classe definido pelas categorias profissionais que o
integram.
Nos últimos anos o movimento sindical tem encontrado nos bairros,
animados pelos movimentos populares, um campo de apoio e de trabalho
decisivo à sua organização e lutas. Ao mesmo tempo, a repressão e o
controle direto nos ambientes de trabalho fazem com que o bairro seja um
local de mobilização do próprio movimento sindical. Nesta inter-relação, o
movimento popular adquire sempre mais um caráter de classe, pois assume
como suas as lutas dos trabalhadores. Foi o que se viu recentemente na
greve do ABC paulista — (Doc. de São Bernardo).
Ora, duas ideias que se completam são importantes aqui. Primeira: os
movimentos populares são eles próprios lugares de educação política do povo.
Na verdade, são os melhores lugares e criam as melhores situações para que esta
educação se realize. A própria ideia de práxis em Paulo Freire cabe aí. Ela é o
trabalho político consciente, solidário, acompanhado sem cessar de sua
persistente reflexão, feita por seus agentes. O educador que acompanha este
trabalho político, cuja direção é popular, ajuda esta reflexão como parte de sua
própria práxis. Segunda: os movimentos populares necessitam de pessoas
preparadas em vários sentidos. Os seus militantes — de mães de periferia das
cidades a posseiros do sertão precisam possuir conhecimentos que não são só e
sempre produzidos na e através de sua ação política, comunitária.
Líderes sindicais procuram educadores para que eles ajudem e participem de
cursos de formação sindical. Posseiros do Norte de Goiás, do Sul do Pará, do
Mato Grosso, convocam educadores para que eles façam o trabalho de sua
alfabetização. Lavradores de algumas comunidades combinam com eles a sua
pós-alfabetização. Operários de São Paulo e de Belo Horizonte sonham criar, em
seus próprios sindicatos, cursos autônomos de “supletivo para operários”. Por
certo muitos outros exemplos contemporâneos do Norte e do Nordeste poderiam
somar-se a estes.
Em um documento recente sobre a alternativa de um partido de trabalhadores
está escrito:
Faz-se urgente desenvolver, junto aos movimentos populares, um intensivo
trabalho de educação política que desperte o operário, o trabalhador rural, a
dona de casa e demais pessoas do povo, para o direito inalienável à sua
condição de cidadão que é o de ativa participação na vida política do país,
inclusive na vida partidária.
Cabe à educação política criar consciência de que este direito é exercido
dentro de um processo de engajamento social que, sem ser excludente,
passa por diferentes etapas, desde a mais simples luta pela água no bairro
ou pela defesa da posse da terra até à elaboração de um projeto político
alternativo. A atividade partidária não deve ser exclusiva e jamais
desvinculada do trabalho de base e da inserção do militante nos
movimentos populares.
Através da educação política, isenta de qualquer proselitismo e de
discussões centradas em siglas, o militante encontrará os critérios que lhe
permitam equilibrar a atuação no movimento popular com a atuação nas
esferas do partido — (Doc. de São Bernardo).
Ora, esta educação política de que um partido pode ser o educador e que
prolonga a formação obtida em algum outro movimento popular, pode exigir
situações de trabalhos mais formais de aprendizado, além das que são criadas
através da prática direta da militância popular. A alfabetização é um destes
trabalhos necessários. Assim ela tem aparecido dita de maneira clara nas
reuniões de grupos de lavradores ou de operários. Ninguém acredita que saber
ler e escrever faz o militante, porque todos sabem que, desde o passado, muitos
dos melhores foram analfabetos. Mas ninguém mais discute que ser alfabetizado
equivale a estar bem melhor preparado para o trabalho de libertação popular,
ainda mais agora, quando os movimentos de comunidades e de trabalhadores
usam com tanta frequência a palavra escrita.
O que eu quero dizer aqui, leitor, é que, entre todas, houve uma mudança nisso
tudo que foi a mais importante nos últimos anos, desde quando um dia, no
Recife, se pensou um sistema de educação popular. Fora os que o poder de
Estado patrocina por sua conta, desaparecem os grandes movimentos nacionais
de educadores, a partir da universidade, do estudantado, de grupos autônomos de
profissionais, das igrejas. Aos poucos surgem pequenos trabalhos ancorados
entre um grupo reduzido de educadores populares e as comunidades onde se
colocam para trabalhar. Comunidades, grupos e movimentos populares propõem
como iniciativa própria, ou aceitam, desde que possam incorporá-los no domínio
de suas práticas, programas de alfabetização como parte de um trabalho muito
mais amplo de educação popular.
Entre os educadores que aceitam como seus os projetos dos movimentos
populares, trabalhos de alfabetização deixam de ser programas de iniciativas
externas, às vezes sutilmente impostas, de “grupos de Igreja”, “de estudantes” e
assim por diante. Eles procuram responder às solicitações vindas das
comunidades, de um sindicato, dos movimentos populares. O lugar das decisões
do trabalho de alfabetização tende a deixar de ser o do “programa” e passa ser,
também, ou apenas, o de uma comissão de moradores de uma favela, de uma
associação de bairro de periferia, de uma comunidade eclesial de base, de um
sindicato ou de um movimento de trabalhadores rurais.
O trabalho do educador popular é o de um assessor de setores organizados do
povo, que o convocam para fazer o que o povo ainda não sabe ou não pode fazer,
ou para ajudar, com a sua contribuição específica, os trabalhos de educação que
o povo começa a saber e a poder fazer.
Quero voltar a Goiás para descrever o outro lado daquilo que falei algumas
Quero voltar a Goiás para descrever o outro lado daquilo que falei algumas
páginas atrás.
Durante alguns anos a Pastoral Popular da Igreja da Diocese de Goiás não
incluía nenhum trabalho de alfabetização. Mas por todos os seus municípios,
entre Itaguaru e Britânia, foram feitos trabalhos de apoio à organização de
comunidades de lavradores ou de migrantes de “ponta de rua”: Foram criadas
ações de apoio aos movimentos de trabalhadores rurais, movimentos de “custo
de vida”, comissões de saúde, associações de bairro, grupos de empregadas
domésticas nas cidades.
O ponto de partida foi o de que as práticas sociais que comprometiam os
agentes de pastoral (professores; padres, médicos, religiosas, estudantes) com os
agentes da base (lavradores, lavradoras, mulheres de lavradores/lavadeiras,
volantes, migrantes subempregados, pedreiros e tantos outros) eram ações de
serviço à organização de grupos e movimentos nas comunidades. Era o apoio e a
ajuda ao esforço popular de criar, ao lado de suas formas tradicionais de
organização comunitária (vizinhanças, parentes, mutirões, grupos rituais),
formas orgânicas de organização popular (movimentos, frentes de luta,
comissões setoriais, representações locais, sindicatos, oposições sindicais).
Ora, como de parte dos agentes a participação envolvia presença, criação de
espaços de reflexão da ação popular, troca de conhecimentos, oferta de
informações necessárias ao povo, produção de grupos populares de apoio, este
trabalho tem sido chamado: de educação popular no seu todo, ainda que durante
mais de 10 anos houvesse ali, de parte dos mesmos agentes de pastoral, uma
atividade sequer de alfabetização de adultos, por exemplo.
Quando a um dado momento algumas comunidades reconhecem a necessidade
de ampliar seu espaço de estudo e pensam em alfabetização, em pósalfabetização, em cursos de supletivo, elas convocam os mesmos agentes para
que as ajudem: promovendo cursos, círculos de estudo, ou assessorando pessoas
da própria comunidade a fazê-lo. Aqui e ali, de alguns “patrimônios” ou de
“pontas de rua” surgem ideias sobre o assunto, florescem iniciativas, formam-se
pequenas comissões, discutem-se as questões, programa-se o trabalho de
alfabetização onde se quer alfabetização; de posição onde se quer pósalfabetização.
Não há, portanto, um programa único, uma “campanha diocesana de
alfabetização” maciça, nascida pronta de uma reunião de agentes de pastoral.
Jovens e adultos de algumas comunidades (poucas por enquanto) pesam suas
Jovens e adultos de algumas comunidades (poucas por enquanto) pesam suas
necessidades de educação e programam formas de responder a elas. Ao mesmo
tempo pensam formar comissões de agentes dos lugares para que cobrem do
Estado (da prefeitura, do governo estadual) os seus direitos à educação: a criação
de escolas isoladas, de colégios estaduais, de serviços de merenda escolar, por
exemplo.
Este é, ali, um tempo novo de criação de formas não conhecidas ainda de
trabalho pedagógico de compromisso popular na região. As experiências
populares do passado servem apenas como o relato da memória do que foi feito
um dia. Servem como indicadores de caminhos.
De forma semelhante, em São Paulo, em São Carlos, em Campinas, Paulo Freire
participa de novas experiências de alfabetização popular. Quase sempre elas têm
a mesma trajetória e sempre apontam para uma participação mais ativa e
determinante das próprias comunidades locais. Não há nenhuma grande
“campanha” ou nenhum grande “programa” de dimensões muito amplas.
Através do IDAC que, de volta, ele trouxe para o Brasil, de setores institucionais
ou estudantis das universidades onde trabalha, de grupos autônomos de jovens
educadores, Paulo Freire procura colocar-se a serviço das iniciativas populares
de trabalho em sua própria educação.
Cada local de vivência e organização, cada espaço popular mobilizado propõe o
seu programa. Mais adiante programas locais de trabalho pedagógico poderão
ser ampliados, regionalizados. Mas isso, esperamos todos, será feito agora “de
baixo para cima” ou, como é melhor dizer: “da base para os agentes”.
O sonho será o tempo em que tenhamos entre nós uma educação popular que
amplie muitas vezes, em abrangência e poder, essas poucas, mas tão
esperançosamente crescentes, experiências de trabalho pedagógico a serviço das
práticas políticas populares. A Educação que sonha ser outra, em outro tempo,
dentro de um mundo solidário, libertado da opressão e da desigualdade, aprende
com o dia a dia de seu próprio existir que, primeiro, ela precisa ser a educação,
da construção deste tempo vindouro, que é o horizonte da esperança do educador
popular.
Contra o quê? Em nome do quê?
Às vezes é muito difícil falar sobre ideias que deram origem ao Método Paulo
Freire, porque elas são muito simples e algumas pessoas precisam complicá-las.
Na verdade Paulo Freire não tem sequer uma teoria pedagógica definitiva. Ele
tem um afeto e a sua prática. Por isso fica difícil teorizar a seu respeito, sem
viver a prática que é o sentido desse afeto. Por isso é fácil compreender o que ele
tem falado e escrito, quando se parte da vivência da prática do compromisso que
tem sido, mais do que sua teoria, a sua crença.
Como discutir com os termos complicados da ciência um educador cuja ideiachave é o amor? Procure, leitor, folhear de alma limpa os escritos dele. Aos
olhos ferozes dos tecnocratas do poder e da educação, pode ser que tudo aquilo
não passe de uma espécie de poesia pedagógica, tão edificante quanto inviável. E
aos seus olhos?
Coisas simples. Paulo Freire acredita que o dado fundamental das relações de
todas as coisas no Mundo é o diálogo. O diálogo é o sentimento do amor tornado
ação. As trocas entre o homem e a natureza são originalmente regidas pelo
diálogo. Paulo Freire pernambucanamente fala mesmo de: “diálogo do homem
com a natureza”. Isto quer dizer que as coisas que existem no mundo, da terra ao
trigo, são dadas ao homem. Elas existem para ele e se oferecem ao homem para
serem dominadas por ele. Para serem amorosamente transformadas e
significadas pelo homem e para ele. O homem responde à dádiva da natureza
com o ato do trabalho. O trabalho do homem é a sua parte no diálogo que
deveria ser o fundamento de todos os outros atos humanos. Com o trabalho livre
e solidário sobre a natureza, o homem cria a sua cultura, transforma o mundo,
faz a história e dá sentido à vida.
Em si mesmas, as relações entre os homens não são mais do que outro momento
de um mesmo diálogo. Do mesmo modo como o homem depende da natureza
para sobreviver e a natureza depende do homem para ter sentido, os homens
dependem uns dos outros para sobreviverem e darem sentido ao mundo e a si
mesmos. Por isso mesmo, o diálogo não é só uma qualidade do modo humano de
existir e agir. Ele é a condição deste modo e é o que torna humano o homem que
o vive.
O trabalho não é uma relação entre o homem e a natureza. O trabalho é uma
relação entre os homens através da natureza. Por isso ele deveria ser o domínio
mais fervorosamente concreto do diálogo entre os homens. Transformar o
Mundo, tornando-o cada vez mais humano, é o sentido do trabalho. E como todo
o trabalho do homem sobre o Mundo é coletivo, ele é também um modo de
exaltação da solidariedade entre os homens.
Em si mesma a cultura, que é o resíduo que o trabalho humano deixa sobre o
Mundo, deveria ser todas as formas visíveis ou comunicáveis da significação do
diálogo entre os homens e de todos os seus efeitos sobre o Mundo.
No entanto, a história concreta do homem nega de muitos modos o diálogo entre
os homens e entre eles e a natureza, ainda que ela no horizonte seja a trajetória
da reconquista do diálogo.
Na prática as relações sociais do trabalho, ao produzirem os bens de que o
homem sobrevive, reproduziram condições concretas em que alguns poucos
sobrevivem do trabalho dos outros. Sobrevivem de deter modos de poder que
surgem onde o diálogo acaba e onde o trabalho, afinal, separa e opõe categorias
de homens opostos, de grupos e classes sociais antagônicos.
A desigualdade entre os homens e as estruturas sociais dela derivadas: de
produção de bens materiais, de reprodução da ordem do trabalho e de todas as
outras relações entre todos os tipos de pessoas, de criação dos símbolos e
significados com que a consciência representa o mundo e os homens se
comunicam, gera o reinado da opressão. Gera e preserva um tipo de Mundo ruim
que, não obstante, é preciso transformar.
Na sociedade desigual (“colonialista”, “capitalista”, “opressora”) também o
saber aparece dividido entre os homens. Em primeiro lugar ele não existe
plenamente como representação coletiva e solidária do Mundo concreto onde se
vive, tal como ele é. O poder, que controla politicamente a ordem social que o
sustenta, também determina ideologicamente o saber, o pensamento, os valores,
os símbolos com que se apresenta como legítimo. Ele cria e recria os
instrumentos e artifícios para que as pessoas oprimidas por ele pensem como ele,
pensando que pensam por si próprias.
A educação é um destes instrumentos. Ela é um destes artifícios. Ao falar
primeiro de uma educação bancária e, mais tarde, de uma invasão cultural
dominante sobre a cultura e a consciência dos sujeitos oprimidos, Paulo Freire
leva às últimas consequências a sua crítica política da educação que serve ao
poder da sociedade desigual.
Tomemos o exemplo da própria alfabetização. Nas experiências tradicionais dos
programas oficiais, o ensino do ler e escrever mistura à palavra de ilusão uma
realidade de fantasia. O mundo que ali se mostra oculta, justamente, o mundo
que aqui se vive. Através de figuras, palavras, frases, indicações de leituras, a
realidade social aparece ao educando como um fetiche: um mundo dado, irreal,
pronto e estático, bonito, acabado e sem conflitos.
Assim, o acesso real do aluno à uma compreensão de Mundo através da
alfabetização, mistura opostos. Mistura uma eficácia real para a leitura da língua
(de fato se aprende a ler e escrever) com uma ineficácia para a leitura da vida
(de fato se aprende a ler como verdadeiro aquilo que é irreal e como irreal aquilo
que poderia ser tornado humanamente verdadeiro).
A educação imposta aparece como ofertada. O interesse político de tornar,
também a educação, um instrumento de reprodução da desigualdade e de
ocultação da realidade à consciência, aparece como uma questão de trabalho
técnico sustentado por princípios de ciências neutras. Assim, a educação que
serve, nas mãos do poder que oprime, para ocultar de todos a própria realidade
da opressão e para fazer os homens cada vez mais diferentes pelo grau
diferenciado de saber que distribui, oculta-se a si mesma.
Parte do próprio trabalho da educação opressora é disfarçar-se de “neutra”, de
“humana” ou de “democratizadora”. Ela pode melhorar pedagogicamente, mas
politicamente apenas aumenta o poder de dividir e iludir.
No entanto, o poder da opressão política não é absoluto e a mesma história
humana que o cria, mais adiante o destrói. No entanto, também, o poder do saber
opressor e o poder dos sistemas e artifícios de sua difusão não são absolutos.
A consciência do oprimido, que aprende com o trabalho pedagógico da educação
do opressor a pensar como ele e a legitimar a ordem de Mundo que ele impõe,
aprende a pensar por si própria. Aprende a desvelar a mentira do saber imposto,
quando aprende a fazer a prática política cujo horizonte é a sua liberdade. É a
construção progressiva, mas irreversível, de uma sociedade conquistada pelo
povo, e, então, reconduzida ao diálogo.
A consciência do povo é invadida de muitos modos pelos símbolos do saber de
A consciência do povo é invadida de muitos modos pelos símbolos do saber de
quem o oprime através do trabalho. No entanto, invadida, ela não foi
conquistada. Por isso é legitimo pensar no poder de uma outra educação.
É legítimo pensar em um trabalho pedagógico que se realiza todos os dias, em
todas as situações em que as classes populares vivem o trabalho de sua própria
organização política. Se um educador pretende ser consequente com a ideia de
criar com o povo a condição da conquista de sua própria liberdade, nada é mais
importante do que isto. Quando a consciência do oprimido acompanha a prática
política popular, ela aprende a pensar a si própria e ao mundo, do ponto de vista
desta prática. Por isso, a educação libertadora que é, ao mesmo tempo, o sonho e
o método de Paulo Freire, é a reflexão desta prática popular, tornada possível
também através da participação do educador: com o seu saber que subverte a
intenção de domínio da educação opressora; com os seus recursos colocados a
serviço da educação do oprimido.
Nisso tudo a coisa aparentemente pequena, que é um trabalho de alfabetização
de homens adultos do povo, tem o seu lugar. Porque não é mais do que um outro
instrumento conquistado para a educação popular, para o lado de sua prática.
Mas um instrumento que, entre o sonho e o método, atua no domínio do saber.
De um saber popular a que serve e de onde o educador espera que venha um dia
a conquista da volta definitiva do diálogo.
Por isso também o próprio método de alfabetização que Paulo Freire pensou
funciona de tal sorte que realiza, dentro do círculo de cultura, a prática do
diálogo que o sonho do educador imagina um dia poder existir no círculo do
mundo, entre todos os homens, aí sim, plenamente educadores-educandos de
todas as coisas. Daí surge a própria ideia de conscientização, tão nuclear em
Paulo Freire. Ela é um processo de transformação do modo de pensar. É o
resultado nunca terminado do trabalho coletivo, através da prática política
humanamente refletida, da produção pessoal de uma nova lógica e de uma nova
compreensão de Mundo: crítica, criativa e comprometida. O homem que se
conscientiza é aquele que aprende a pensar do ponto de vista da prática de classe
que reflete, aos poucos, o trabalho de desvendamento simbólico da opressão e o
trabalho político de luta pela sua superação.
Conclusão
Peço licença para terminar
soletrando a canção de rebeldia
que existe nos fonemas da alegria:
canção de amor geral que eu vi crescer
nos olhos do homem que aprendeu a ler
("Canção para os fonemas da alegria", Thiago de Mello)
Indicações para leitura
Quem voltar aos livros que Paulo Freire escreveu vai notar que, de propósito,
falei muito do que ele fala pouco e pouco do que ele fala muito. Deixei para as
poucas páginas do final aquilo que é quase tudo nos seus escritos: suas ideias
sobre o amor e o diálogo, o homem e o mundo, o saber e a educação. Insisti em
mostrar o método como é e como pode ser, conforme se crie sobre ele.
Dois livros de Paulo Freire são fundamentais: A educação como prática da
liberdade e Pedagogia do oprimido, ambos da Editora Paz e Terra. Não importa
que o próprio autor considere às vezes superadas algumas ideias do primeiro
livro. Ali elas tomaram a forma de um livro pela primeira vez.
Os primeiros escritos da equipe da Universidade Federal de Pernambuco existem
apenas em uma revista publicada em junho de 1963, pela Universidade onde o
método foi criado. Chama-se: Estudos Universitários nº 93. Os quatro artigos:
Paulo Freire — conscientização e alfabetização, Uma nova visão do processo,
Jarbas Maciel — A fundamentação teórica do sistema Paulo Freire; Jomard
Muniz de Brito
— Educação de Adultos e Unificação da Cultura; Aurenice Cardoso —
Conscientização e alfabetização, uma visão prática do sistema Paulo Freire.
Estes quatro artigos e muitos outros, que constituem os fundamentos das ideias e
práticas de educação popular e cultura popular no Brasil, vão sair proximamente
em um livro da Edições Graal: Educação popular e cultura Popular — Memória
dos anos 1960. Pela Brasiliense sai A pesquisa participante, onde Paulo Freire e
a equipe do IDAC sistematizam e aprofundam a prática da pesquisa popular.
Outros livros de Paulo Freire: Ação cultural para a liberdade e Extensão e
comunicação, da Paz e Terra. Conscientização, da Cortez e Moraes, onde ele
conta a sua vida e resume o seu método.
Para um conhecimento de suas ideias, quando trabalhou com ex-colônias
portuguesas da África, recém-libertadas: Cartas de Guiné-Bissau, também da
Paz e Terra, e: “Quatro Cartas aos Animadores de Círculos de Cultura de São
Tomé e Príncipe”, publicadas em A questão política da educação popular, da
Brasiliense. O leitor poderá ler também Vivendo e aprendendo, da mesma
editora, escrito pelo pessoal do IDAC. No anexo do livro de Lauro de Oliveira
Lima, Tecnologia, Educação e Democracia (Ed. Civilização Brasileira), há uma
das melhores explicações concisas sobre o método.
Entre os livros mais complicados, quem tiver tempo e coragem pode enfrentar os
seguintes:
Estado e educação popular, de Celso de Rui Beisiegel, editado pela Pioneira;
Educação popular e educação de adultos, e Paulo Freire e o
Desenvolvimentismo-Nacionalista, de Vanilda Pereira Paiva um das Edições
Loyola e outro da Civilização Brasileira; Educação popular e conscientização,
de Júlio Barreiro, publicado pela Vozes.
Há inúmeros artigos de Paulo Freire e sobre ele espalhados “no Brasil e no
Mundo”. A melhor maneira de compreender as suas ideias é ir aos seus escritos
pelo caminho dos problemas que a prática da educação coloca para o educador.
Paulo Freire escreveu sempre em “estado de missão” (muitas vezes, “em estado
de graça” também). Por isso os seus escritos fazem pleno sentido para quem
chega a eles através das questões que o seu próprio trabalho colocou.
Sobre o autor
Carlos Rodrigues Brandão nasceu no Rio de Janeiro em 14 de abril de 1940.
Desde 1963 trabalha com grupos e movimentos de educação popular, prática que
iniciou no Movimento de Educação de base e que hoje continua através do
Centro de Estudos de Educação e Sociedade (CEEDES) e do Centro Ecumênico
de Documentação e Informação (CEDI).
É antropólogo e trabalha no Departamento de Ciências Sociais da Universidade
de Campinas (UNICAMP). Lecionou na Faculdade de Educação da
Universidade de Brasília, da Universidade Federal de Goiás e da Universidade
Católica de Goiás.
Na área de cultura popular, tem publicados: Cavalhadas de Pirenópolis; O
Divino, o Santo e a Senhora: Peões, Pretos e Congos; A Folia de Reis
Mossâmedes; Deus te Salve, Casa Santa e Plantar, Comer, Colher (um estudo
sobre o campesinato goiano); e pela Brasiliense: Os Deuses do Povo; além de
Sacerdotes de Viola, pela Vozes. Na área de educação popular, A Questão
Política da Educação Popular, O que é Educação e O que é Folclore, todos pela
Brasiliense.
O que é célula-tronco
Marques, Marília Bernardes 9788511350579
105 páginas Compre agora e leia
Este livro é uma condição oportuna e indispensável ao enriquecimento
de um dos temas contemporâneos mais desafiadores envolvendo a
ciência: o uso das células-tronco embrionárias.
A autora aborda o tema com um enfoque abrangente e integrador,
descrevendo e analisando a forma histórica e social assumida, até o
presente, pelo dilema que fervilha a cada dia nas páginas dos jornais do
mundo todo.
Analisa uma a uma as justificações presentes nas numerosas visões em
confronto, prudentemente tentando manter a devida distância dos
indisfarçáveis interesses em jogo.
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O que é ética
Valls, Álvaro L. M.
9788511351200
61 páginas Compre agora e leia
Não existe povo ou lugar que não tenha noções de bem e mal, de certo
e errado. Da Grécia antiga aos nossos dias, a ética é um conceito que
sempre esteve presente em todas as sociedades.
Mas, apesar disso, as dúvidas são muitas. Seria a ética apenas um
princípio supremo que atravessa toda a história da humanidade? E numa
sociedade capitalista, qual a relação entre ética e lucro?
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O que são direitos humanos das mulheres
de Teles, Maria Amélia Almeida 9788511350302
130 páginas Compre agora e leia
Sempre houve preconceito contra a discussão das questõs específicas
das mulheres. Não se concebia que mulheres violentadas por seus
maridos/companheiros, espancadas e assassinadas sob a alegação de
defesa da honra tinham seus direitos humanos violados. Considera-se
normal que mulheres tenham salários mais baixos que homens, que
mulheres sejam alvo das ações masculinas de assédio sexual, de
estupro e demais tipos de violência de gênero. É como se os direitos do
homem incluíssem os da mulher, ou como se estes fossem secundários.
A exclusão da cidadania das mulheres está arraigada em nossa cultura.
É preciso tratar o tema recuperando os conceitos históricos e as lutas
políticas já travadas para conquistar a igualdade. Consolidar os direitos
humanos das mulheres é prioridade para uma sociedade justa e digna.
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O que é educação popular
Brandão, Carlos Rodrigues 9788511350562
95 páginas Compre agora e leia
Normalmente, a educação é pensada em domínios restritos como a
Universidade, a alfabetização, o Ensino Médio e a supervisão escolar.
Na maioria das vezes ela não é analisada em seu cotidiano, a cultura.
A educação propriamente dita é um domínio de ideias e práticas regidas
pelas diferenças entre as diversas realidades sociais. Mais do que
pensar em domínios restritos, é necessário pensar no modo de ser da
educação popular e nas várias formas e situações que ela possui hoje
em dia: a educação na comunidade primitiva, no ensino público, nas
classes populares e na sociedade igualitária.
A educação pode ser tanto uma forma de opressão quanto uma forma
de libertação. Isto depende apenas de como ela é pensada e praticada.
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O que é direito
Filho, Roberto Lyra 9788511010626
100 páginas Compre agora e leia
Quais as relações entre Direito e Justiça, Direito e ideologia, Direito e
conflito social? Em linguagem clara e precisa, o professor Roberto Lyra
discute as várias dimensões do direito, apresentando-o não como
conjunto imutável de regras, mas como atividade em permanente
transformação: "A maior dificuldade, numa apresentação do direito, não
será mostrar o que ele é, mas dissolver as imagens falsas ou distorcidas
que muita gente aceita como retrato fiel."
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