http://doi.org/10.5007/2177-7055.2020v41n85p249
O Princípio da Dignidade Humana e suas Projeções
no Âmbito Laboral: possibilidades e limites
The Principle of Human Dignity and its Projections in the Workplace:
possibilities and limits
Ipojucan Demétrius Vecchi1
Marcos Leite Garcia2
Liton Lanes Pilau Sobrinho2
1
Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS, Brasil
2
Resumo: O objetivo do presente estudo é analisar a dignidade da pessoa humana de acordo
com suas projeções no mundo do trabalho. Para
tanto, será abordada a noção de dignidade da
pessoa humana no campo jurídico desde a sua
positivação constitucional e seus efeitos nas
relações entre capital e trabalho. Por fim, serão
vistos os limites estruturais para a incidência
da dignidade humana nas relações de trabalho.
O método utilizado para a pesquisa é o indutivo.
Conclui-se que a dignidade humana indica várias
limitações salutares ao cidadão trabalhador.
Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, SC, Brasil
Abstract: The objective of the present study
is to analyze the dignity of the human person
according to their projections in the world of
work. In order to do so, the notion of human
dignity in the juridical field will be approached from its constitutional positivation and
its effects on the relations between capital and
labor. Finally, the structural limits for the incidence of human dignity in labor relations will
be seen. The method used for the research is the
inductive one. At the end of the article it is verified that human dignity indicates several salutary limitations to the working citizen.
Palavras-chave: Dignidade. Pessoa Humana.
Trabalho. Positivação Constitucional. Cidadão. Keywords: Dignity. Human Person. Work.
Constitutional Positivation. Citizen.
Recebido em: 16/03/2020
Revisado em: 17/07/2020
Aprovado em: 03/08/2020
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O Princípio da Dignidade Humana e suas Projeções no Âmbito Laboral: possibilidades e limites
1 Introdução
O presente texto tem como objetivo analisar a ideia de dignidade,
sua constituição histórica, filosófica e jurídica, para, então, perscrutar de
suas potencialidades e eventuais limites de consideração no âmbito as relações de trabalho subordinado.
O princípio da dignidade humana é considerado como um dos cernes dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, tanto em nível internacional como interno. Sua importância para a práxis jurídica é imensurável, o que também só ocorrer no campo das relações de trabalho
subordinadas. O problema é como aplicar a dignidade da pessoa em todos
os âmbitos. Assim, o presente trabalho tem como justificativa a questão
da dignidade da pessoa humana relacionada com suas projeções no âmbito laboral, suas possibilidades e limites. Dessa maneira, a dignidade humana será também desenvolvida no âmbito social, a partir da defesa de
uma vida digna do cidadão.
A metodologia da pesquisa foi desenvolvida mediante leitura pelo
método indutivo. Trata-se de pesquisa básica, exploratória e bibliográfica, estruturada em quatro fragmentos. Para tanto, num primeiro momento,
far-se-á um breve escorço histórico da ideia de dignidade humana, perpassando da filosofia moral ao direito. Num segundo momento, abordar-se-á
a noção de dignidade humana propriamente no campo jurídico, sua positivação constitucional e efeitos. Posteriormente, analisar-se-á os eventuais
reflexos do princípio da dignidade humana no campo trabalhista. Por fim,
serão abordados os possíveis limites estruturais para a plena incidência da
dignidade humana nas relações de trabalho subordinadas.
2 Histórico da Ideia de Dignidade, da Filosofia Moral ao Direito
Talvez um dos erros mais comuns nas análises socioeconômicas,
políticas e jurídicas é aquele que se consubstancia na adoção de uma postura que se apega a um termo, uma palavra, uma locução, desconectada
de sua origem histórica, de seu contexto, dando-lhe um caráter de eternidade, deixando-se, assim, de se verificar e se analisar o caráter específico
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que um referido termo, palavra ou locução, representa em cada formação
social. Com a ideia de dignidade humana, não é diferente.
Como tudo que é humano é marcado pela historicidade, também
a noção de dignidade humana não pode escapar desse crivo histórico.
A ideia de dignidade humana surge no processo de transformações socais e históricas que marcam a humanidade, essa ideia aparece também
no campo jurídico apenas na modernidade.
Iñigo de Miguel Beriain (2004, p. 189) afirma que a origem da palavra dignidade provém do sânscrito, com raiz dec e com o sentido de
conveniente, adequado, conforme a algo ou alguém. Posteriormente, tendo sido adotada pelas línguas latinas, à referida palavra foi acrescentado o
sufixo mus, formando o vocábulo decmus, acabando por derivar em dignus e dignidade. Segundo o autor, a palavra “dignidade” tinha duas conotações, dois sentidos. Numa primeira conotação, a palavra dignidade era
utilizada no sentido de reconhecer um aspecto diferenciado, superior, a
alguém em razão de sua posição social, a um cargo políticos eclesiásticos
ou honorífico. Assim, em todas essas situações, a ideia de dignidade está
atrelada a algo externo à própria pessoa, estando associada às circunstâncias sociais, políticas, econômicas, que lhe conferem uma distinção em
relação aos demais. Junto a esse primeiro sentido, surgiu outro, especialmente a partir da filosofia estoica e do cristianismo, que jungiu a ideia de
dignidade ao campo do ser (da pessoa), no sentido de considerar a pessoa
humana como centro do cosmos (estoicismo) ou como criada à imagem e
semelhança de Deus (cristianismo). Sustenta o autor, que após um certo
colapso dessa concepção durante a Idade Média, com o Renascimento, a
ideia de dignidade assume caráter de grande importância na discussão da
filosofia, muito embora sempre estando vinculada a ideia de dignidade
com uma razão teológica (em razão de ser o homem criado à imagem e
semelhança de Deus).
Assim com o advento do Direito Racional Racionalista
(iusracionalismo)1, a partir de autores como Christian Tomasius, Christian
Sobre o tema do Direito Natural Moderno, ou direito natural racionalista, veja-se o
argumento de Jürgen Habermas (2008, p. 87-162) sobre o fato de ser o acontecimento
mais importante da história da humanidade.
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Wolf, Samuel Pufendorf (GARCIA, 2005a), as reflexões e as reivindicações sobre a tolerância religiosa, humanização do direito penal e do processo penal e limitação do poder do Estado, todas categorias relacionadas
com a dignidade da pessoa humana, irão contribuir para o desenvolvimento dos ideais de liberdade. Ademais serão desenvolvidos posteriormente por autores como Beccaria e Voltaire (PECES-BARBA, 2003, p.
38-64), e que terão na obra de Immanuel Kant o seu ponto de convergência e complementação. Da mesma forma, argumenta De Miguel Beriain
(2004, p. 192-193):
Será, no obstante, el genio de Kant el que dotará al concepto de
uma nueva dimensión, moldeando sus antiguos rasgos con otros incorporados por él impulsándolo de esta manera hacía la posición de
privilegio que ahora ocupa. A Kant se deben, entre otras, la idea de
que lo digno es aquello que no tiene precio, o que la humanidade e
sen sí misma uma dignidad, pensamientos que vienen a convertir a
la dignidad en una idea clave dentro de su sistema moral.
De igual maneira, a dignidade será desenvolvida pelos filósofos da
Ilustração francesa, como o Barão de Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau. Então, De Miguel Berain (2004, p 193) conclui o seguinte:
[...] la noción de dignidad influirá sobremanera en los trabajos de,
entre otros, Jean Jacques Rousseau o Fichte, para luego, ya a finales del siglo, entrar a formar parte de las recopilaciones de los enciclopedistas franceses y de las declaraciones de derechos propias del
período histórico en cuestión.
Posteriormente, a influência do conceito de dignidade humana irá
se deixar sentir inclusive dentro das fileiras dos movimentos marxista,
já que a ideia será compartilhada e considerada um ponto de partida e
de chegada dos direitos fundamentais de todo ser humano, nas palavras
de Gregorio Peces-Barba2, professor e líder socialista espanhol. Uma vez
Para determinar o caminho ilosóico percorrido pela dignidade da pessoa humana como
ponto de partida e de chegada dos direitos fundamentais, Gregorio Peces-Barba chama a
atenção para os ensinamentos da história. Em seu escrito sobre o tema, o autor madrilenho
2
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que seja através da linha tradicional que considera a alienação trabalhista
como o reverso da dignidade humana3 por meio de uma variante explícita
na obra de Ernest Bloch (2011), que defende a tese de que o direito natural, reduzido já quase que exclusivamente ao postulado da defesa da dignidade da pessoa humana, tem sido durante séculos o autêntico referente
da defesa dos direitos humanos (DE MIGUEL BERAIN, 2004, p. 193).
Como se pode perceber, a ideia de dignidade humana sofre profundas alterações em seu sentido ao longo das alterações socioeconômicas,
políticas e jurídicas ocorridas ao longo da história, não se podendo falar
de um conceito trans-histórico de dignidade, igualando a noção moderna
de dignidade humana ao seu sentido original clássico ou mesmo no medievo.
No que diz respeito ao sentido da dignidade humana kantiano e nas
reivindicações posteriormente levadas a cabo pelas revoluções igualitárias e socialistas, de modo particular no que diz respeito aos autores de
inspiração marxista, cumpre destacar que não há como afirmar – e muito
menos de modo generalizado – que estes estejam propriamente negando a dignidade da pessoa humana ou seu reconhecimento. Para comprovar tal afirmação faz-se fundamental citar a expressiva obra, escrita em
1961, Naturrech und menscliche Würde do filósofo alemão e humanista
marxista Ernest Bloch (2011)4 que, embora tenha considerado a liberdanos faz lembrar que “[...] a ideia de dignidade, como todos os demais que tratamos no
âmbito da cultura moral, política e jurídica, são construções do pensamento humano”
(PECES-BARBA, 1994, p. 319). Essa interpretação do que o professor Gregorio PecesBarba quer dizer, sobre a dignidade humana ser o ponto de partida e ao mesmo tempo o
ponto chegada dos direitos humanos, signiica que: 1º) a dignidade da pessoa humana deve
ser teoricamente considerada como fundamento dos direitos humanos, desde a igualdade,
e, por isso, seu ponto de partida; 2º) a dignidade da pessoa humana deve ser averiguada
na prática para ver se houve uma violação de direitos humanos, desde a igualdade. Enim,
se foi violado um direito fundamental, deve-se ver se foi violada a dignidade da pessoa
humana, e, por isso, depois de um longo caminho ilosóico teórico e prático, o ponto de
chegada dos direitos humanos.
3
Aqui nos recorda o eterno repetir do trabalho, operário ou não, e o sem sentido da vida
na obra de Albert Camus, O mito de Sísifo (2020).
4
Aqui em questão utiliza-se a tradução de Felipe González Vicén ao espanhol da obra de
Ernest Bloch (2011).
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de e a igualdade ilusões do iusnaturalismo burguês, e mesmo afirmando
a negativa da existência de direitos naturais no sentido de inatos, destaca o importantíssimo fato histórico que todos os direitos humanos foram
conquistados pelas lutas reivindicatórias. Certamente que pode-se afirmar
que significam as lutas dos movimentos sociais e populares como reivindicações dos Direitos dos mais débeis, conceito de grupo dos mais fracos
desenvolvido por Luigi Ferrajoli (1999) e Gregorio Peces-Barba (1994).
Assim, Bloch e os autores de sua linha de pensamento reconhecem uma
vontade para a liberdade e dignidade, além de que dita corrente acaba elaborando uma fundamentação crítica e marxista da dignidade, sem nenhuma dúvida importantíssima para o desenvolvimento dos direitos humanos
e da dignidade humana no contexto contemporâneo.
No contexto do presente artigo, a projeção da dignidade humana no
âmbito dos direitos fundamentais sociais deve ser considerada como uma
continuação no relato cronológico de acontecimentos da dignidade da
pessoa humana, assentada inicialmente no consenso proposto por Immanuel Kant e desenvolvida no contexto das reivindicações dos grupos mais
vulneráveis de cada momento histórico da modernidade/contemporaneidade, que se dá nas relações sociais dos oprimidos com os mais fortes e
opressores. Assim, o grupo dos mais débeis que reivindicam Direitos e
que exigem que seja reconhecida sua dignidade será inicialmente o grupo de burgueses e sans culottes, depois os trabalhadores ou proletários
e, posteriormente, as minorias sociológicas, como as mulheres, idosos,
crianças, consumidores etc. E hoje em dia há também outros tipos de minorias, como alguns grupos de oprimidos da atualidade e as especificações de conteúdo como as relacionadas com o meio ambiente, a sustentabilidade, a bioética, as novas tecnologias etc. Cada momento histórico
tem a sua própria exigência de melhoria das condições dignas de vida.
Para tal, adotou-se as linhas de evolução teórica dos direitos fundamentais
e da dignidade humana, propostas por Noberto Bobbio (1992, p. 67-83)
e desenvolvidas por Gregorio Peces-Barba (1995, p. 154-205): marcadas
pelos seguintes processos de positivação, generalização, internacionalização e especificação. Confirmando assim que os direitos sociais, incluindo
os direitos trabalhistas, educação, saúde pública e também a democracia
do sufrágio universal, se desenvolverão no processo de generalização ao
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longo do século XIX e serão primeiramente positivados nas constituições
do início do século XX: México de 1917 e Alemanha de 1919. E reconstruídas a partir das constituições do pós-guerra: Itália de 1948, Alemanha
de 1949, França de 1958, Portugal de 1976, Espanha de 1978 etc. Nesse
caminho segue a nova visão social da dignidade da pessoa humana com
a inclusão – generalização – de todos os seres humanos, ou seja, todos os
membros da sociedade humana.
Portanto, como sustenta Eduardo Ramalho Rabenhorst (2010, p.
25-28), a noção de dignidade e, também, a própria ideia de humanidade
não se fazem presentes no pensamento clássico. Aliás, segundo o autor,
também a ideia de “gênero humano” só se delineia de forma mais nítida
na modernidade. O autor sustenta que, no mundo antigo, a ideia de dignidade estava vinculada à honra, ao mérito, a uma função, posição social ou
ofício desempenhado por alguém. Fundamentado em Jean-François Mattei, Rabenhorst (2010, p. 28) afirma que:
[...] o adjetivo latino “dignus” que também se refere às qualidades
particulares de um indivíduo que suscitam estima, prestígio ou mérito. A propósito, [...] a palavra latina dignitas tem um caráter nitidamente aristocrático. Pertencer à nobreza romana, desempenhar
um cargo político ou ter antepassados ilustres é o que confere dignidade aos indivíduos. Mesmo em Cícero, o termo dignitas guarda esse sentido de excelência, grandeza ou eminência, ainda que o
ilustre pensados romano tenha se aproximado do conceito cristão
de dignidade ao afirmar que o valor do homem decorre de suas semelhanças com os deuses, principalmente no que concerne à capacidade de discernir o justo do injusto.
Assim, é possível dizer que a dignidade da pessoa humana na atualidade é um conceito que vem se esboçando a partir da modernidade ou
das transformações da sociedade antes da era da modernidade. Dessa forma, somente no trânsito para a modernidade, como sustenta Gregorio Peces-Barba (2005, p. 23-24), é que a reflexão sobre a dignidade humana no
campo da filosofia do direito se torna plena, tendo por suporte a ideia do
homem como centro do mundo e centrado no mundo, estando tal concep-
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ção marcada pelo antropocentrismo e pela laicização e não mais por um
aspecto predominantemente teológico.
Marcos Leite Garcia (2005b, p. 21-22), na esteira do pensamento
de Gregorio Peces-Barba, sustenta que é no trânsito para a modernidade,
em meio às transformações socioeconômicas e políticas que marcam a
passagem do medievo para o mundo moderno, que a ideia moderna de
dignidade humana se constituiu como ideia fonte para o desenvolvimento
da filosofia dos direitos fundamentais. Garcia (2005b, p. 22) afirma que:
Ao longo do período em questão é quando se formará a filosofia
dos direitos fundamentais, assim chamada pelo professor Peces-Barba, como aproximação moderna da dignidade humana, em
meio das feições características das mudanças que se influem e se
entrelaçam. Estas se dariam resumidamente nos campos da economia, da política e da mudança de mentalidade. A profunda mudança
na situação econômica com o surgimento e progressivo amadurecimento do capitalismo e com o crescente protagonismo da burguesia, favorecerá a mentalidade individualista diante da visão do homem em estamentos. No campo político o pluralismo do poder será
substituído pelo Estado como forma de poder racional centralizado
e burocratizado. O Estado é soberano, na construção doutrinal que
se inicia com Jean Bodin, ou seja, o Estado não reconhece superior
e tem o monopólio no uso da força legítima. Seu crescente poder
como Estado absoluto, a utilização do Direito como intrumentum
regni, exigirão como antítese, para garantir ao indivíduo um espaço pessoal, a reclamação de uns direitos. Mas, o Estado absoluto é
uma etapa imprescindível. Seu esforço de centralização, de robustecimento de uma soberania unitária e indivisível, sua consideração do indivíduo abstrato, o homo juridicus como destinatário das
normas, criará as condições necessárias para o aparecimento dos
direitos fundamentais positivados exatamente com as revoluções liberais contrárias ao Estado absoluto.
Com efeito, desenvolvida no campo da filosofia no trânsito para a
modernidade, é que a noção de dignidade humana vai se constituir como
ideia motriz da construção da filosofia dos direitos fundamentais. Cabe
salientar que, no entanto, em sua origem, a noção de dignidade humana
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não é uma noção jurídica, mas sim filosófica, que acaba por adentrar no
campo do direito.
Peces-Barba (2005, p. 27) afirma que:
En su origen, dignidad humana no es un concepto jurídico como
puede serlo el derecho subjetivo, el deber jurídico o el delito, ni
tampoco político como Democracia o Parlamento, sino más bien
una construcción de la Filosofia para expresar el valor intrínseco
de la persona derivado de una serie de rasgos de identificación que
la hacen única e irrepetible, que es el centro del mundo y que está
centrada en el mundo. La persona es un fin que ella misma decide sometiéndose a la regla, que no tiene precio y que no puede ser
utilizada como medio, por todas las posibilidades que encierra su
condición, que suponen esa idea de dignidad humana en el punto de
partida. Estamos ante un deber ser fundante que explica los fines de
la ética pública política y jurídica, al servicio de ese deber ser. Por
eso, la dignidad no es um rasgo o una cualidad de la persona que
genera principios y derechos, sino un proyecto que debe realizarse
y conquistarse.
Portanto, a ideia de dignidade humana como atributo de todos os
seres humanos, centrada no “valor absoluto” de cada indivíduo do gênero
humano, é uma construção social e histórica surgida no trânsito para a
modernidade, distinguindo-se radicalmente do sentido que se dava à dignidade nas sociedades antigas e medievais, estando atrelada ao campo da
filosofia moral e, posteriormente, aparecendo no campo da filosofia jurídica.
Entende-se que, muito embora inspiradora de toda a construção moderna da filosofia dos direitos fundamentais, a ideia de dignidade humana,
no entanto, só adentra definitivamente no campo propriamente jurídico por
meio da pressão social exercida pelo movimento social dos trabalhadores.
Com efeito, de acordo com o que estipula Peter Häberle (2005, p. 117118), foi o movimento trabalhista que, definitivamente, se inspirando nas
especulações filosóficas sobre a dignidade humana, construiu a ponte entre estas e a prática jurídica concreta. Afirma o autor alemão (HÄBERLE,
2005, p. 118, grifos nossos) com relação aos autores do século XIX:
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Na metade do século XIX a dignidade humana se tornou “idéia-motriz política do movimento trabalhista”: Lassalle exige a melhoria das condições materiais das classes trabalhadoras e que se
lhes proporcione uma existência verdadeiramente digna; Proudhon
dá um passo adiante, ao incluir a dignidade da pessoa na idéia de
justiça. Com isso, o pensamento da dignidade humana abriu-se
a uma nova dimensão, a do Direito e da justiça, transitando do
reino do “pensamento puro” para a prática jurídica.
Assim, a noção de dignidade humana, inspiradora da construção de
toda a filosofia dos direitos fundamentais, ideal da burguesia em sua fase
revolucionária diante das formas sociais do medievo, ou melhor do início da modernidade, tornou-se bandeira de luta do movimento social dos
trabalhadores e adentrou no campo da prática jurídica como postulação
concreta de melhores e dignas condições de trabalho, muito embora o seu
evolver no campo do direito não tenha ficado restrito às relações de trabalho subordinado.
No processo de seu desenvolvimento prático e teórico no campo do
direito, o valor/princípio da dignidade humana se espraiou de forma intensa por, praticamente, todos os campos do direito, destacando-se o campo dos direitos humanos proclamados em âmbito internacional, como é o
caso, exemplar, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
bem como adentrou nos ordenamentos jurídicos de vários países, como é
o caso do Brasil com a Constituição Federal de 1988.
3 A Noção de Dignidade Humana no Campo Jurídico, sua
Positivação no Direito
Como já foi mencionado, a ideia de dignidade humana foi desenvolvida no campo da filosofia moral e só posteriormente adentrou no mundo
jurídico. No campo da filosofia, pode-se afirmar que foi Immanuel Kant
quem formulou uma noção de dignidade humana que serve de fundamento da noção jurídica hoje dominante.
Para Kant, a ideia de dignidade está ligada ao homem como ser racional que, por sua vontade, obedece às leis que ele próprio institui. Se258
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gundo Kant, a moralidade consiste na legislação que possibilita o reino dos
fins. Assim, ela (legislação) deve se encontrar em todo ser racional e deve
prover de sua vontade, segundo o princípio que impõe que se deve “agir somente segundo uma máxima tal que possa ser erigida como lei universal”.
Quanto à ideia de dignidade mesma, Kant (1984, p. 134-135) afirma:
No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Uma coisa que tem um preço pode ser substituída por qualquer outra coisa
equivalente; pelo contrário, o que está acima de todo preço e, por
conseguinte, o que não admite equivalente, é o que tem uma dignidade. Tudo o que se refere às inclinações e necessidades gerais
do homem tem um preço de mercadoria; o que, embora não pressuponha uma necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é, à
satisfação que nos advém de um simples jogo, mesmo destituído
de finalidade, de nossas faculdades intelectuais, tem um preço de
sentimento; mas o que constitui a só condição capaz de fazer que
alguma coisa seja um fim em si, isso não tem apenas simples valor
relativo, isto é, um preço, mas sim um valor intrínseco, uma dignidade. Ora, a moralidade é a única condição capaz de fazer um ser
racional ser um fim em si, pois só mediante ela é possível ser um
membro legislador no reino dos fins. Pelo que, a moralidade, bem
como a humanidade, enquanto capaz de moralidade, são as únicas
coisas que possuem dignidade.
Em especial, a partir da construção kantiana, a doutrina jurídica lapidou a noção de dignidade humana, erigindo-a em valor central na construção da teoria dos direitos humanos e fundamentais (PÉREZ LUÑO,
2003, p. 572-573)5, além de princípio fundamental dos ordenamentos jurídicos hodiernos.
Com perceptível influência da posição kantiana, um dos autores
que se debruçou sobre a ideia de dignidade humana no campo jurídico
foi Günther Dürig. O referido autor desenvolveu a chamada “fórmula
Antonio Enrique Pérez Luño (2003, p. 572-573) airma que a “[...] condición axiológica
de los derechos humanos no se agota en su dependência del concepto general de justicia,
se prolonga en la determinación de su contenido ligado a los valores de la dignidad, la
libertad y la igualdad”.
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objeto”, que acabou por ser encampada e consagrada pela Corte Constitucional Alemã. Segundo essa fórmula, sempre que uma pessoa humana
for tratada como mero objeto (coisificação da pessoa humana) ou, ainda,
sendo totalmente desprezada ou desconsiderada, ignorando-se suas necessidades básicas (nadificação da pessoa humana), sua dignidade humana
estaria sendo ferida6.
Por seu turno, Eusebio Fernández García (2001, p. 12 e 17)7, o qual
utiliza os termos valor e princípio como intercambiáveis, aduz que a noção
dignidade humana se apresenta como o valor de cada pessoa, do respeito básico à sua condição humana, impedindo que sua vida, ou integridade,
seja substituída por qualquer outro valor social. O autor sustenta que a dignidade é o valor fonte de outros valores, como a autonomia, a segurança, a
liberdade e a igualdade, os quais fundamentam os distintos tipos de direitos
humanos. Então, sustenta Fernández García (2001, p. 19-20):
Cuando Kant, en la Fundamentación de la metafísica de las costumbres, mantiene que “lo que halla por encima de todo precio, y
por tanto no admite nada equivalente, tiene una dignidade” y que
“La autonomia es, así, pues, el fundamento de la dignidade de la
naturaleza humana y de toda naturaleza racional”, estaba reforzando ese enlace dignidad-derechos, puesto que la autonomía de los
seres humanos significa la expresión de su mayoría de edad. Desde
este momento histórico que es también el de las Declaraciones de
derechos americana y francesas del útlimo cuarto del siglo XVIII,
hasta la actualidad, se interpretará, creo que corretamente, la dignidade humana no solamente como lo más valioso, lo que no tiene
precio, lo que exige un respeto inmediato, sino también como el
derecho a tener derechos.
Por tanto, respetar la dignidade de los seres humanos equivale a reconocerles ciertos derechos. Si el reconocimento de los derechos humanos es
el médio de garantizar la realización de una vida digna, su falta de recononocimiento significa vivir por debajo de la exigencia de esa viga digna.
Sobre este assunto, ver Gonçalves (2010, p. 452).
Em sentido contrário ao sustentado, Ana Paula Costa Barbosa (2002, p. 95) argumenta
que o princípio da dignidade humana se funda nos valores da liberdade e da igualdade.
6
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Em linha semelhante está a posição de Peces-Barba, que sustenta
que a dignidade humana é, hodiernamente, um referente do pensamento moral, político e jurídico, não propriamente como princípio ou valor,
como aponta Eusebio Fernandez, mas como critério fundante dos valores,
dos princípios e dos direitos8. Peces-Barba afirma (2005, p. 25) que:
La dignidad humana en la modernidad y también en este siglo XXI
aparece en un contexto intelectual que arranca del tránsito a la modernidad, que ha superado avatares históricos y confrontaciones intelectuales y que se sitúa en lo que llamo el proceso de humanización y de racionalización que acompañan a la persona y a la sociedad
en los diversos procesos de liberación, que conducen a la primera a
la mayoría de edad y a la segunda a una organización bien ordenada
que contribuye al desarrollo de las dimensiones de esa dignidad.
La dignidad de la persona y la dignidad de la humanidad son dos
aspectos de una misma mentalidad, la del antropocentrismo y de la
laicidad, dos coordenadas que encuadran todo el proceso.
Antonio Luiz Martínez-Pujalte (1992, p. 91) alega que o que diferencia os seres humanos dos demais seres não humanos, momento em
que, então, está radicada a dignidade humana, é a capacidade de entender
e de querer, e, como consequência, a capacidade de conhecer a moralidade dos atos e atuar de acordo. Em suma, a dignidade humana tem sua
raiz na potencialidade que o ser humano tem de ser autoconsciente e livre. Sendo assim, com base em Kant e Conklin, o autor Martínez-Pujalte
(1992, p. 92-93) afirma que:
La dignidade humana se identifica con la condición de persona,
como pone de relieve Kant, quien utiliza precisamente los térmiSobre essa diferença de pensamento em relação a Peces-Barba, por seu turno,
airma Fernández García (2001, p. 20): “Creo que no me sitúo lejos de Gregorio
PECES-BARBA, cuando ha indicado, sobre la conexión entre la dignidade humana y los
valores superiores de nuestro ordenamento jurídico constitucional (art. 1.1 de la C.E.),
que “la dignidade humana es el fundamento y la razón de la necesidad de esos valores
superiores, es la raíz última de todo, y creo que su inclusión entre los valores superiores
no es metodologicamente correcta, puesto que estós son los caminhos para ser real y
efectiva la dignidade humana”.
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nos “dignidade” (Würde) y “personalidade” (Persönlichkeit) como
sinónimos. Por su parte, el profesor canadiense William Conklin,
tratando de indagar el sentido da la expresión “respeto a la persona”
que subyace a la teoría de los derechos humanos, escribe que “la
humanidade común a todas las personas es su potencialidade”, pues
“cada persona es una potencialidad aberta en el processo de llegar
a ser.
Ingo Wolfgang Sarlet (2012, p. 49-73), seguindo os passos de Kant
e Dürig, defende que a dignidade humana é uma qualidade ínsita a cada
pessoa humana e que a distingue dos demais seres, razão pela qual todo
indivíduo é merecedor de igual respeito e consideração por parte de todos. Sarlet (2012, p. 73) assim define a dignidade da pessoa humana:
Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade
intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do
mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer
ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir
as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos
destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Da mesma forma, outro autor brasileiro que trata com maestria a
questão da dignidade da pessoa humana, Daniel Sarmento (2016, p. 104,
grifos do autor), leciona que:
No Direito contemporâneo a palavra ‘dignidade’ tem sido usada
[...] geralmente associado aos direitos humanos. A palavra dignidade é empregada como qualidade intrínseca de todos os seres humanos, independentemente de seu status e de sua conduta. A dignidade é ontológica, e não contingente. Em outras palavras, todos
os indivíduos que pertencem à espécie humana possuem dignidade
apenas por serem pessoas.
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E também destaca Daniel Sarmento (2016, p. 104), no sentido da
igualdade existente na questão da dignidade da pessoa humana, que:
Não se admitem restrições relativas a fatores de gênero, idade, cor,
orientação sexual, nacionalidade, deficiência, capacidade intelectual ou qualquer outro. E ninguém se despe de dignidade humana,
ainda que cometa crimes gravíssimos, que pratique os atos mais
abomináveis. O homicida e o torturador têm o mesmo valor intrínseco que o herói e que o santo. A dignidade humana, que não é
concedida por ninguém, não pode ser retirada pelo Estado ou pela
sociedade, em nenhuma situação. Ela é inerente à personalidade
humana e, portanto, embora possa ser violada e ofendida pela ação
do Estado ou de particulares, jamais será perdida pelo seu titular.
Por sua vez, Maria Rosynete Oliveira de Lima (1999, p. 213), partindo do disposto no artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos do
Homem de 1948 (“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência devem agir
uns para com os outros em espírito de fraternidade”), fala sobre os postulados básicos para que se estabeleça o que significa a dignidade da pessoa
humana. Por sua vez, o constitucionalista português da Universidade de
Lisboa, Jorge Miranda, ressalta os postulados fundamentais e as projeções da dignidade da pessoa humana:
a) A dignidade da pessoa humana reporta-se a todas e a cada uma
das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta; b)
Cada pessoa vive em relação comunitária, mas a dignidade que
possui é dela mesma, e não da situação em si; c) O primado da pessoa é o ser, não o ter; a liberdade prevalece sobre a propriedade; d)
Só a dignidade justifica a procura da qualidade de vida; e) A proteção da dignidade das pessoas está para além da cidadania portuguesa e postula uma visão universalista da atribuição de direitos;
f) A dignidade da pessoa pressupõe a autonomia vital da pessoa, a
sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades
públicas e às outras pessoas; [...] h) A dignidade da pessoa exige
condições adequadas de vida material; i) O primado da pessoa
é o ser, não o ter prevalece sobre a propriedade; j) Só a dignidade justifica a procura da qualidade de vida; l) A dignidade de
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O Princípio da Dignidade Humana e suas Projeções no Âmbito Laboral: possibilidades e limites
cada pessoa é um prius em relação à vontade popular. (MIRANDA,
2004, p. 199-200, grifos nossos)
Assim, pode-se dizer que a dignidade da pessoa humana é uma
categoria axiológica aberta a ser preenchida/completada pelo intérprete
da norma no momento de sua concretização. Portanto, segundo Marya
Rosynete Lima (1999, p. 214) “[...] é preciso levar em conta as exigências básicas do ser humano em concreto, indispensáveis para dar-lhe uma
existência digna, bem como para proporcionar-lhe as condições de desenvolvimento das suas potencialidades”.
Levando em conta todas essas contribuições da doutrina sobre o valor/princípio9 da dignidade da pessoa humana, é possível tentar delinear
algumas das consequências prático-jurídicas de sua previsão no ordenamento jurídico constitucional brasileiro. A dignidade é destacada praticamente em todas as declarações e tratados internacionais sobre direitos
humanos e está consagrada em pelo menos 149 constituições vigentes em
suas respectivas nações (SARMENTO, 2016, p. 15), ainda que a questão
de sua efetividade seja outro assunto bastante mais complexo10.
No direito brasileiro vigente, a noção de dignidade humana é prevista como princípio fundamental constitucional no inciso III do artigo 1º
da CF de 1988, configurando-se como uma das chaves de interpretação
de todo o ordenamento jurídico vigente11. Com efeito, todo o ordenamento jurídico brasileiro deve ser interpretado a partir dos princípios fundamentais de “abrem a ordem jurídica nacional”, os quais estão previstos no
No presente texto, os vocábulos “valor” e “princípio” são tomados como intercambiáveis.
Entre os 149 países que expressamente consagram a dignidade estão incluídos
verdadeiras ditaduras e regimes de exceção em que não há igualdade, liberdade e justiça
imparcial. A hipocrisia é uma terrível característica humana e em muitos países usam a
dignidade humana apenas como demagogia. Assim, é possível encontrar a consagração
da dignidade humana em países notórios pelas graves violação dos direitos humanos,
como a Síria de Al Bashar, o Sudão e a Somália, entre muitos outros em todo o mundo
(entre os quais seria possível citar diversos países da América Latina, até mesmo o Brasil
pela situação de extrema pobreza de boa parte de sua população).
11
Sobre o tema, entre outros, ver Gomes (1996) e Oliveira (2002) e Oliveira (2002).
9
10
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primeiro Título da CF de 1988, entre os quais, o princípio da dignidade da
pessoa humana tem caráter destacado12.
Está previsto ainda, no artigo 170, caput, da CF de 1988, como um
princípio impositivo da ordem econômica, ou seja, princípio a ser observado pela atividade econômica, ao determinar que toda a atividade econômica tem como fim garantir “vida digna”13.
Além disso, o princípio da dignidade da pessoa humana é a fonte
primordial dos direitos humanos fundamentais, estabelecendo também o
limite absoluto das restrições a esses direitos (núcleo essencial em dignidade), pois é indisponível. Além disso, se irradia por toda a sociedade, ou
seja, esse princípio atua não apenas nas relações entre Estado e indivíduo,
mas nas relações interindividuais também.
A consagração constituída do princípio da dignidade da pessoa humana traduz-se no reconhecimento de que a ordem jurídica existe para
a pessoa humana, sua defesa e para o desenvolvimento integral. Assim,
caracteriza-se como princípio que serve de base sólida para a construção
de um sistema jurídico que aspire a um mínimo de legitimidade14.
O princípio da dignidade da pessoa humana estabelece um grau de
proteção e autonomia da pessoa humana frente ao Estado e às demais pessoas humanas ou pessoas jurídicas públicas ou privadas, além de impor a
satisfação de condições mínimas de existência capazes de fazer com que
o ser humano consiga realmente viver e não apenas sobreviver. Na verdade, não é possível descrever todas as esferas e consequências que podem
advir de sua previsão no direito positivo, pois sua normatividade se expande de acordo com os contextos sociais ao longo do tempo.
Robert Alexy (2008) distingue diante da “norma” que prevê a dignidade humana,
a “regra” de dignidade e o “princípio” da dignidade. A regra de dignidade, uma vez
deinida sua aplicação, é impostergável. Por outro lado, muito embora entenda possível o
sopesamento do princípio da dignidade humana frente a outros princípios constitucionais,
Alexy (2008, p. 114) airma que existe um âmbito praticamente inafastável da dignidade
humana, ou seja, que o princípio da dignidade humana se encontra num patamar
diferenciado frente aos demais princípios.
13
Ver, nesse sentido, Grau (2002. p. 238 e ss.).
14
Ver sobre esse tema em Tepedino (2001, p. 67).
12
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O Princípio da Dignidade Humana e suas Projeções no Âmbito Laboral: possibilidades e limites
Dessa forma, o princípio da dignidade da pessoa humana coloca em
foco o tema do chamado “mínimo existencial”. Na lição de Ricardo Luís
Lorenzetti (1998, p. 328), com base em Rawls, o mínimo existencial se
caracteriza como os bens fundamentais que são descobertos pela indagação de quais condições sociais são necessárias para tornar possível que as
pessoas realizem sua ideia do bem e desenvolvam e exerçam suas capacidades morais. Esses bens, continua o autor, são aqueles de que o indivíduo necessita para conseguir desenvolver-se minimamente na sociedade,
abrangendo liberdade, trabalho, moradia, educação, saúde. Portanto, são
bens que correspondem à própria qualidade humana, cabendo ao direito e
à organização social e econômica, que devem servir aos homens, garantir
esses bens para que se possa realmente falar em pessoa humana. Em virtude disso, tais bens fundamentais são um mínimo social, uma base que
corresponde ao bom funcionamento da organização humana e que permite a ela continuar sendo chamada dessa maneira.
Portanto, existe a tendência de construção de um piso mínimo de
direitos básicos, fundamentais; assim, esses direitos subjetivos são oponíveis aos sujeitos passivos, que tanto podem ser o Estado como os demais
cidadãos. Cabe salientar, ainda, que a autonomia da pessoa humana, da
qual se fala, não deve ser entendida em sentido individualista, mas sim
como individualidade que coexiste com outras individualidades, uma pessoa humana autônoma, mas não isolada, integrante de uma sociedade que
está em relação com outras pessoas.
46) :
15
Aliás, nesse sentido, afirma Luiz Fernando Barzotto (2010, p. 45Desse modo, a pessoa está para a natureza humana como o todo
para a parte. A pessoa é o homem singular e concreto, portanto, a
natureza humana (racionalidade, sociabilidade, etc.), com seus acidentes (idade, inteligência, etc.), unidos existencialmente. “Humano” designa uma classe ou um gênero, um grupo, a espécie. Pessoa
Para uma concepção de dignidade humana intimamente vinculada com considerações
sobre a solidariedade social, a qual é necessária para que o indivíduo possa se realizar na
organização social em colaboração efetiva com os demais, no cuidado mútuo e, assim, em
posição diametralmente oposta ao individualismo, ver Ramose (2010, p. 175-220).
15
266
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designa “algum homem” e, portanto, um existente. [...] Ao passo
que o elemento individualidade, existência em si, aplicada à pessoa,
seja intuitivo, o segundo elemento da ideia de pessoa, a alteridade,
é insólita, por sua oposição ao individualismo moderno. Contudo, a
ideia de alteridade, ou o caráter relacional do ser humano é central
.... A pessoa é um ser em relação ou um ser com outrem ... Isso significa que não há pessoa anteriormente à relação com outra pessoa:
“A experiência do outro é tão originária quanto a experiência de
si”. Não há uma percepção de si como pessoa e, posteriormente,
a percepção do outro como pessoa. Somente na relação alguém é
pessoa.
Outra questão, que não parece demasiado distinguir e salientar, é
que a dignidade da pessoa humana se aplica ao indivíduo humano, às
“pessoas físicas/naturais”, não sendo estendível às “pessoas jurídicas”
públicas ou privadas, situação que muitas vezes parece não ficar muito
clara. Um exemplo importante dessa temática é a atribuição, sem maiores
reflexões, de direitos fundamentais às pessoas jurídicas.
Com efeito, José Carlos Vieira de Andrade (2001, p. 183) é enfático
em defender um cuidado extremo na atribuição de direitos fundamentais
às pessoas jurídicas. O autor adverte que é perigoso estender demasiadamente os direitos humanos fundamentais às pessoas coletivas, pois essas
pessoas apenas analogicamente podem ser consideradas titulares desses
direitos como direitos atípicos. Afirma ainda que, nesses casos, não se trataria de verdadeiros direitos subjetivos, mas de garantias institucionais,
já que os direitos humanos fundamentais têm como verdadeiro titular a
pessoa humana.
No mesmo sentido, no campo da filosofia crítica, Franz Hinkelammert
(2012, p. 105-107) sustenta que os direitos humanos estão fundados na
dignidade da pessoa humana, o que só cabe às “pessoas naturais”, não às
“pessoas jurídicas”. O autor afirma que:
Si hoy tenemos que decidir sobre instituciones a partir de los derechos humanos, tenemos que tener claro que las instituciones no
tienen derechos humanos, sino que están sometidas al criterio de
los derechos humanos [...].
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O Princípio da Dignidade Humana e suas Projeções no Âmbito Laboral: possibilidades e limites
Sin embargo, el derecho humano consiste en derechos que corresponden al ser humano como ser corporal integral y que incluye el
derecho de vivir. Expresado en el lenguaje jurídico, se trata de derechos de personas naturales, a diferencia de las personas jurídicas.
Las personas jurídicas no tienen derechos humanos, porque no son
seres humanos, solamente las personas naturales los tienen. Las
grandes sociedades anónimas son personas jurídicas, como tales no
pueden tener ninguna clase de derechos humanos. Las personas jurídicas no tienen derechos humanos, solamente las personas naturales los tienen. (HINKELAMMERT, 2012, p. 105-107)
Robert Alexy (2003, p. 25-26) também tem posição semelhante, ao
afirmar que os direitos fundamentais são essencialmente direitos dos “indivíduos” e sempre que se admite a sua extensão a grupos, organizações
ou pessoas jurídicas, é porque tal reconhecimento favorece a posição de
indivíduos.
Assim, entende-se que, tendo por baliza o princípio da dignidade da
pessoa humana, é possível avaliar, com o adequado “espírito crítico”, até
que ponto cada sociedade (aqui envolvendo o Estado e a chamada “sociedade civil”), num determinado momento histórico, realmente está tratando
a cada pessoa humana, a cada indivíduo social16 como um fim e não como
um meio; como um sujeito dotado de eticidade que põe e julga os fins17; até
que ponto suas necessidades18 estão sendo satisfeitas ou inviabilizadas pela
Como bem lembra Karl Marx (2008a, p. 74, nota 18), a pessoa humana só se vê e se
reconhece em seu semelhante. Além disso, com inesse crítica, Marx (2008b, p. 239)
airma: “O homem, no sentido mais literal, é um zoon politikon (animal político – grego
– N.E.), não somente um animal sociável, mas também um animal que não se pode isolar
senão dentro da sociedade”.
17
Sobre tal temática, airma Enrique Dussel (2002, p. 491, nota 358): “[...] Como airmaba
Kant, la persona no es un medio; pero, más allá de Kant, no es tampoco un in, sino que
es un sujeto ético que ‘pone’ (y ‘juzga’) los ines’”.
18
Não se deve perder de vista que as “necessidades” não são apenas físicas, orgânicas,
mas também sociais, históricas, culturais. Sobre esse tema, ver Marx (2011, p. 222) e
Marx (2008a, p. 57, 64 e 201). Da mesma forma sobre necessidades humanas básicas
e mínimo existencial, ver Sarmento (2016, p. 189-239), especiicamente o Cap. 5:
O mínimo existencial, e Añón Roig (1994).
16
268
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estrutura social; até que ponto lhe é possível viver como humano que possa
aspirar ao desenvolvimento integral de sua humanidade.
4 Reflexos Prático-Jurídicos do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana no Campo Laboral
No campo das relações de trabalho, o princípio da dignidade da
pessoa humana tem um espectro de possibilidades de aplicação extremamente vasto. Cabe lembrar que o princípio basilar do direito do trabalho é
o princípio da proteção19.
O princípio da proteção, nuclear no direito do trabalho, tem como
propósito diminuir a desigualdade material entre patrões e empregados
por meio de compensações jurídicas. Assim, o princípio da proteção impõe a busca pela efetivação, nos limites do modo de produção dominante, de uma igualdade substancial entre partes de uma relação estrutural e
contratualmente desigual.
O princípio da proteção é fundamental para a própria existência do
direito do trabalho, pois esse ramo do direito surge justamente das diferenças de poder socioeconômico entre empregadores e empregados.
Pois bem, o princípio da proteção é a materialização, a projeção, a
concretização no campo das relações de trabalho subordinado, do princípio da dignidade da pessoa humana. Isso não significa que o princípio
da dignidade humana não tenha projeção direta nas relações de trabalho,
mas, sim, que ganha densidade normativa com a atuação do princípio da
proteção, o qual, por outro lado, ganha um alto grau de legitimidade ético-jurídica ao estar fundado na dignidade humana.
Cinthia Maria da Fonseca Espada (2008, p. 96), em sentido semelhante ao já sustentado, aponta que:
Com base nesta definição pode-se afirmar que a incidência do princípio da dignidade da pessoa humana no âmbito do trabalho impliSobre essa questão, ver Rodrigues (1978, p. 27), Genro (1994), Camino (2003, p. 9697), Delgado (2008, p. 197 e ss.), Delgado e Delgado (2017, p. 69 e ss.).
19
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O Princípio da Dignidade Humana e suas Projeções no Âmbito Laboral: possibilidades e limites
ca a necessidade de se proteger o trabalhador contra qualquer ato
atentatório à sua dignidade, de lhe garantir condições de labor saudáveis e dignas, e também de propiciar e promover a inclusão social. Constata-se, desta forma, que o núcleo do princípio protetor do
empregado encontra seu fundamento no princípio da dignidade da
pessoa humana, considerando-se que a principal finalidade da proteção ao trabalhador é promover a sua dignidade. Nesse passo, embora o propósito do princípio protetor do empregado também seja
o de tratar desigualmente os desiguais para promover a igualdade
real/substancial entre partes que se encontram em desigualdade de
fato (princípio isonômico) em seu núcleo, a principal finalidade do
princípio é promover a dignidade do trabalhador. Assim, promover
a igualdade real constitui um dos meios de promoção da dignidade
do obreiro.
Häberle (2005, p. 113), por seu turno, analisando a jurisprudência
dos Tribunais alemães sobre a dignidade humana nas relações de trabalho, afirma que:
A jurisprudência federal trabalhista prevalentemente trata de modo
mais específico a irradiação do art. 1º. da LF sobre as relações de
emprego. Na verdade, trata-se aqui da proteção da esfera íntima e
privada no sentido do direito geral de personalidade, embora fique,
apesar disso, em primeiro plano uma configuração humanamente
digna da relação de emprego, na qual também o empregador encontra-se obrigado por um dever de cuidado e assistência (Fürsorgepflicht). Trata-se como que de um direito da personalidade específico da esfera trabalhista. A configuração dessa relação de emprego,
bem como o direito coletivo do trabalho, encontra seus limites no
art. 1º. da LF; ainda na negação de uma violação da dignidade humana à luz da vinculação comunitária do cidadão repousa também
uma determinação de conteúdo específica do direito do trabalho.
Dito isso, conforme já salientado, percebe-se que as possibilidades
de incidência do princípio da dignidade humana no campo do direito do
trabalho são bastante amplas.
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No campo do direito internacional, entre inúmeras outras Declarações e Convenções Internacionais, cabe destacar a Declaração da OIT
sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho de 199820, a
qual tem por pressuposto o princípio da dignidade humana. Tal declaração proclama quatro direitos fundamentais básicos dos trabalhadores: a)
a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação
coletiva; b) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; c) a abolição efetiva do trabalho infantil; e d) a eliminação da
discriminação em matéria de emprego e ocupação. A íntima vinculação
de tais direitos com a dignidade humana é solar.
A liberdade sindical e o reconhecimento das negociações coletivas
têm a função de garantir um patamar de maior força e equilíbrio aos trabalhadores nas suas tratativas, compensando sua debilidade individual, ficando evidenciado o objetivo de proteção à dignidade dos trabalhadores,
reconhecendo e reforçando a sua autonomia por meio dos entes coletivos
obreiros.
Com relação à eliminação do trabalho forçado ou obrigatório, o
vínculo com o princípio da dignidade humana é ainda mais evidente, pois
essas formas de trabalho coisificam o ser humano, degradando a sua condição de pessoa e reduzindo as vítimas, absolutamente, à condição de coisas, de objetos.
Outrossim, a vinculação da eliminação do trabalho infantil com
a dignidade humana também é evidente, pois o trabalho infantil agride
frontalmente a possibilidade do livre desenvolvimento da personalidade
de crianças e adolescentes que, ainda em fase de amadurecimento, são
cerceados em suas possibilidades de um desenvolvimento amplo de suas
capacidades e potencialidades.
Por fim, no tocante à eliminação de todas as formas de discriminação, além do vínculo efetivo com o princípio da igualdade, a vinculação
com o princípio da dignidade humana é também bastante forte, pois aqui
A referida Declaração da OIT está disponível neste endereço eletrônico: https://www.
ilo.org/public/english/standards/declaration/declaration_portuguese.pdf.
20
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O Princípio da Dignidade Humana e suas Projeções no Âmbito Laboral: possibilidades e limites
se trata de garantir o igual respeito e consideração que toda pessoa humana deve ter garantida em razão de integrar o gênero humano.
Outro tema de extrema relevância, o qual tem também estreita vinculação com o princípio da dignidade humana no campo das relações de
trabalho subordinado, é o relativo à chamada “eficácia horizontal ou eficácia dos direitos fundamentais em relações privadas”.
Sobre o tema da vinculação dos particulares à dignidade humana,
Sarlet (2012, p. 99) afirma o seguinte:
Para além desta vinculação (na dimensão positiva e negativa) do
Estado, também a ordem comunitária e, portanto, todas as entidades privadas e os particulares encontram-se diretamente vinculados
pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Com efeito, por sua
natureza igualitária e por exprimir a ideia de solidariedade entre os
membros da comunidade humana, o princípio da dignidade da pessoa humana vincula também no âmbito das relações entre os particulares.
Nessa temática, duas ideias básicas são primordiais para a defesa da
incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas: a existência
de relações assimétricas (de poder no âmbito privado) e o princípio da
dignidade humana. Esse último é um forte componente para que se intensifique a incidência desses direitos nas relações privadas em geral e nas
relações de trabalho subordinado, em especial21.
Além de inúmeras outras possibilidades, são exemplos concretos
de aplicação jurisprudencial do princípio da dignidade da pessoa humana no campo do direito do trabalho, a proteção contra o trabalho escravo
(Inq. n. 3.412, Plenário do STF, disponível em: www.stf.jus.br); a vedação do assédio moral (RR-890-89.2013.5.09.0653, 6ª Turma do TST, disponível em: www.tst.jus.br); a vedação do assédio sexual (RO 002208283.2015.5.04.0221, 7ª Turma do TRT4, disponível em: www.trt4.jus.br);
e a indenização do chamado “dano existencial”.22
Ver, nesse sentido, Bilbao Ubillos (2010, p. 284).
Ver, nesse sentido, a decisão proferida pela 1ª Turma do TRT da 4ª Região, em 14.03.2012,
no processo 0000105-14.2011.5.04.0241 (o qual pode ser conferido no site do Tribunal –
21
22
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Seqüência (Florianópolis), n. 85, p. 249-286, ago. 2020
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Portanto, é evidente a projeção do princípio da dignidade humana
no campo das relações de emprego, o que é fundado não apenas na doutrina, como também na jurisprudência.
Além disso, não há o que contestar sobre a importância central da
incidência do princípio da dignidade humana para a efetividade da proteção dos trabalhadores no âmbito laboral.
No entanto, não se pode esquecer de uma pergunta que, ao que se
entende, não é comumente feita, e que tanto deveria interessar: a dignidade humana, ou seja, o ser humano ser tratado como fim e não como meio
é amplamente possível numa relação na qual o indivíduo passa a ser meio
de produção subordinado/dependente a uma estrutura socioeconômica
que não lhe pertence?
Eis a questão que será tratada em seguida.
5 Os Limites Estruturais para a Plena Incidência da Dignidade
Humana nas Relações de Trabalho Subordinadas
Conforme foi abordado no presente texto, a ideia de dignidade humana, profundamente marcada pelo pensamento kantiano, pode ser sintetizada como a qualidade que é reconhecida a cada ser humano, apenas
pelo fato de pertencer ao gênero humano, de ser tratado e considerado
ww.trt4.jus.br), tendo como relator o des. fed. do trabalho José Felipe Ledur, com a seguinte
ementa: Dano existencial. Jornada extra excedente do limite legal de tolerância. Direitos
fundamentais. “O dano existencial é uma espécie de dano imaterial, mediante o qual, no
caso das relações de trabalho, o trabalhador sofre danos/limitações em relação à sua
vida fora do ambiente de trabalho em razão de condutas ilícitas praticadas pelo tomador
do trabalho. Havendo a prestação habitual de trabalho em jornadas extras excedentes do
limite legal relativo à quantidade de horas extras, resta conigurado dano à existência,
dada a violação de direitos fundamentais do trabalho que integram decisão jurídicoobjetiva adotada pela Constituição. Do princípio fundamental da dignidade da pessoa
humana decorre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade do trabalhador,
nele integrado o direito ao desenvolvimento proissional, o que exige condições dignas de
trabalho e observância dos direitos fundamentais também pelos empregadores (eicácia
horizontal dos direitos fundamentais). Recurso provido”.
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O Princípio da Dignidade Humana e suas Projeções no Âmbito Laboral: possibilidades e limites
como um fim em si, o que deveria impedir a sua objetificação, coisificação, enfim, a sua degradação/desconsideração como indivíduo.
Ocorre que, em especial, nas relações de trabalho subordinado, a
pessoa do trabalhador está inserida numa relação socioeconômica estrutural na qual está em posição de subordinação/depedência em relação ao
outro polo dessa relação (o patrão/empregador).
Como a força de trabalho está em potência na própria corporalidade
viva do trabalhador, não existe como comandar e adquirir essa força de
trabalho desconectada da pessoa humana que a porta, ou seja, para poder
utilizar a força de trabalho, inevitavelmente deve-se utilizar como meio a
pessoa que o presta.
Eis um limite estrututal que o modo de produção dominante impõe
para a ideia da dignidade humana.
Cumpre enfatizar, aliás, que a contradição existente entre o trabalho
assalariado (no caso dos serviçais domésticos, trabalhadores assalariados)
e a dignidade humana não passou despercebida para o próprio Kant, o
que não significa que o autor não tenha se rendido e tentado justificar
tal situação. Tanto é assim, que o autor criou uma categoria especial de
direito, o chamado “ius realiter personale”, no qual o trabalhador era,
em parte, tratado como se fosse uma coisa, embora mantivesse, em outros
aspectos, sua personalidade.
Com efeito, na “Seção III” da Doutrina do Direito, Kant (1993, p.
104) trata daquilo que denomina “direito misto” ou “direito real pessoal” (ius realiter personale). Segundo Kant, esse direito é o da posse de
um objeto exterior como se fosse uma coisa, de seu uso como o uso de
uma pessoa. Três tipos de relações são possíveis aqui: a “aquisição” pelo
homem de uma mulher; a “aquisição” de filhos pelo casal e a “aquisição” pela família de servos. No entanto, Kant salienta que se essas coisas
são passíveis de aquisição, não são de alienação, e o direito do possuidor
é eminentemente pessoal. Tratando especificamente das relações que se
dão entre o senhor e os servos (trabalhadores assalariados domésticos),
relação que reconhece não ser de igualdade, mas de obediência, Kant
(1993, p. 104) diz:
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Ipojucan Demétrius Vecchi – Marcos Leite Garcia – Liton Lanes Pilau Sobrinho
Os servidores ou criados formam parte, neste estado de coisas, do
Seu do amo da casa, ainda em virtude de direito real, pelo que respeita à forma (o estado de posse); porque o amo pode, caso seu
criado fuja, fazê-lo retornar ao seu poder por sua única e própria
vontade; porém quanto à matéria, isto é, quando ao uso, ao serviços
que dele se possa obter, não poderá nunca exercer ato de proprietário (dominus servi), porque o servidor somente está submetido ao
seu poder por um contrato, e um contrato no qual uma das partes
renunciara a sua liberdade inteira em proveito alheio, cessando, por
conseguinte, de ser uma pessoa, e não tendo, pelo mesmo, nenhum
dever de observar o contrato, é uma contradição. Tal contrato é,
pois, nulo e de nenhum efeito. Não nos compete aqui falar do direito de propriedade sobre o que perdeu sua personalidade por seus
crimes. O contrato de um amo sobre a liberdade de um servidor
não pode, portanto, ser de tal natureza que o que obriga possa fazer
degenerar o uso da liberdade de outro em abuso. Não só o amo tem
o direito de julgar com respeito a este uso, como também o criado. Este nunca pode ser reduzido à servidão. Não pode, portanto,
comprometer-se por toda sua vida, mas somente por um tempo determinado; e durante este tempo uma das partes contratantes pode
despedir a outra. [...]
Nisto, como nos dois títulos que precedem, vê-se que há um direito
pessoal-real (o do amo sobre os criados), visto que estes podem ser
reduzidos ao poder daquele e reivindicados como sua coisa exterior
contra todo possuidor, mesmo antes que seja necessário examinar
as razões que pudessem ter tido para fugir e o direito que lhes assista.
Celso Naoto Kashiura Jr. (2014, p. 72, 82-89) lembra que Kant está
situado geográfica e historicamente no momento da transição das relações
feudais de produção para relações propriamente capitalistas (burguesas).
Na sua Prússia, então atrasada em relação à Inglaterra, por exemplo, ainda as relações capitalistas não estavam de todo consolidadas, muito embora o trabalho assalariado já se fizesse presente. Salienta, ainda, que as
contradições do pensamento kantiano não são senão as contradições realmente existentes na realidade, cabendo a Kant, muito embora sua defesa
do sistema, a intuição de ter percebido a desigualdade e as contradições
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O Princípio da Dignidade Humana e suas Projeções no Âmbito Laboral: possibilidades e limites
inerentes às relações capitalistas burguesas. Kashiura Jr. (2014, p. 143144) menciona que:
Se, como propõe Tosel, o direito é, na formulação de Kant, como
um centauro, o meio do caminho entre a pureza ideal da moralidade e a exterioridade empírica, o criado doméstico submetido ao ius
realiter personale expressa com máxima evidência essa condição
de ser híbrido. Meio coisa e meio homem, traz na sua cabeça a forma racional da liberdade, mas o seu corpo é o de uma besta. Kant
procura, ao seu modo, elevá-lo à condição de sujeito livre, mas não
pode negar a sua coisificação perante o senhor. Não pode dissimular, mesmo sob a forma da personalidade jurídica, a desigualdade
de ambos [...].
A formulação kantiana tende, assim, a ratificar simultaneamente a
circulação mercantil livre – na forma da universalidade dos livres proprietários, frente aos quais não pode haver res nullius – e elementos residuais
de uma produção senhorial presa à terra – na forma de uma coisificação
do trabalhador que perpetua explicitamente, embora de maneira atenuada,
o mando do senhor.
Como sustenta Dussel (2002, p. 322), citando explicitamente Marx,
nas relações de trabalho no modo de produção capitalista, ocorre uma inversão ética estrutural: o fim se torna meio e o meio se torna fim. Dussel
(2002, p. 322) diz ainda que:
La “fuente creadora del valor” (persona digna y que pone los fines)
queda fundada en su producto (como su mediación): se trata de una
“inversión”. La valorización del valor es el “ser” y el “fundamento”
de un sistema que vive de la vida del obrero, es una ontología totalizada:
El proceso del trabajo se manifiesta en el interior de la produción
capitalista con respecto al proceso de valorización, situando a este
último como fin, y a sí mesmo [al trabajo] sólo como medio.
Marx se refiere explícitamente a Kant, la persona del trabajador es
colocada como medio, y el medio (es proceso de valorización del
capital), como fin. Es la inversión que se expresa en el fenómeno
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del fetichismo. [...] Esta inversión, esta negación ética primera,
esencial para la reproducción del capital como tal, y en la que consiste la relación social de dominación, se cumple en el proceso de la
“subsunción” [...].
Bernard Edelman (1976) é enfático ao afirmar a aporia da “forma
sujeito”, na qual se reconhece a uma pessoa humana a sua dignidade no
exato momento em que a transforma em objeto. Se reconhece que os trabalhadores são sujeitos livres e iguais, juridicamente dotados de dignos
para que possam livremente venderem-se no mercado. Com efeito, aponta
Edelman (1976, p. 94):
A Forma sujeito de direito é aporética, isto é, põe um problema que
não pode resolver. Se o homem é para ele mesmo o seu próprio capital, a circulação deste capital supõe que ele possa dispor dele em
nome (ao preço) dele próprio, isto é, em nome do mesmo capital
que o constitui. Podemos resumir esta aporia: o homem deve ser
simultaneamente sujeito e objeto de direito. A estrutura da forma
sujeito de direito analisa-se então como decomposição mercantil do
homem em sujeito/atributos.
trina:
Assim segue Edelman (1976, p. 105) em suas ideias acerca da DouQuanto à “má consciência da Doutrina”, posso situá-la no seu discurso latente, que enuncia a adequação “de direito natural” da pessoa humana e do sujeito de direito. A interpelação ideológica – toda
a pessoa é sujeito de direito – tornando-se categoria eterna – o sujeito de direito é qualquer pessoa – mergulha a doutrina num terrível embaraço. Porque, se a Forma Sujeito é bem a forma necessário
do homem que participa nas trocas e na produção, ela é além disso
esta Forma na qual se deve também realizar a liberdade e a igualdade. E, para “eles”, o dilema vem a ser o seguinte: o sujeito de
direito realiza a sua liberdade pela venda dele próprio. Estes professores não compreenderam que a categoria de sujeito de direito é um
produto da história, e que a evolução do processo capitalista realiza
aí todas as determinações: o sujeito de direito torna-se o seu último
produto: objecto de direito.
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O Princípio da Dignidade Humana e suas Projeções no Âmbito Laboral: possibilidades e limites
Não se quer com isso afirmar a falta de importância do princípio
da dignidade humana no campo laboral, assim como não se quer dizer
que não exista a possibilidade de trabalhos e de tratamentos mais dignos
ou menos dignos (basta pensar no trabalho precarizado, de crianças em
tenra idade ou em situação análoga à de escravo). O que se quer é chamar a atenção para o limite que o modo de produção impõe ao direito, ao
mesmo tempo em que se demonstra que a realização plena da dignidade
humana teria que ultrapassar esse limite.
Como sustenta Juan Ramón Capella (1998, p. 82), o limite da socialização sob o capitalismo está no fato de que os indivíduos são postos,
nesse sistema, como meios de valorização do capital, para que os investimentos se recuperem acrescidos de lucros que são apropriados privadamente. O autor afirma:
A socialização capitalista, a reunião em cooperação objetiva das
pessoas, que suscita esse modo econômico de produção, cuja eficácia em abstrato é indiscutível, tem, pois, o limite de não dispor
de mecanismos que façam das pessoas fins em si mesmos e entre
si mesmos, que sejam invioláveis pelo processo de socialização da
produção.
Conseqüência: para uma socialização pós-capitalista, onde isto não
ocorra, é necessário diferenciar os mecanismos contáveis da racionalidade ou eficiência da cooperação produtiva – projetos e planos
públicos, mercados de ajuste, etc. – dos mecanismos de decisão
acerca da produção e de distribuição do produto (material e espiritual) sem os quais uma pessoa não pode ser considerada fim em si
mesma. No capitalismo, os mecanismos e sujeitos sociais que controlam a eficiência econômica são os mesmos que decidem a produção e determinam a distribuição. Diferenciar ambas as questões
é tarefa de formas de organização social efetivamente emancipatórias. (CAPELLA, 1998, p. 82)
Assim, para a uma realização mais efetiva da ideia de dignidade humana nas relações sociais em geral, e nas de trabalho, em especial, seria
necessária a construção de outras formas de convívio social, possíveis e viáveis, nas quais as condições de produção e distribuição fossem pautadas
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pelo controle social dos indivíduos associados, bem como nas quais o valor
de uso (riqueza material) prevaleça sobre o valor (riqueza capitalista).
No entanto, enquanto não se efetivam essas outras formas socias e,
portanto, dentro dos limites impostos pela forma social capitalista, o princípio da dignidade humana possui uma carga normativa extremamente vigorosa, a qual não pode ficar como mera promessa do prevista nos textos
normativos fundamentais, mas deve ser expressa e concretizada em cada
manifestação jurídica.
6 Conclusão
Como se tentou evidenciar, a ideia de dignidade humana, muito embora tenha um longo percurso na história, só ganha o sentido que lhe é
hodiernamente reconhecido no trânsito para a modernidade. Nesse momento histórico o labor, primeiramente dos filósofos e depois dos juristas,
vai lapidar a noção moderna de dignidade. Um dos nomes-chave nesse
processo é o de Kant, para o qual a dignidade, tendo em vista a racionalidade e a liberdade humanas, significa tratar o homem como um fim em si.
Adentrando no mundo jurídico positivo, em muito pela pressão social dos trabalhadores, a dignidade humana é alçada ao patamar de princípio (valor) central e fundamental, sendo a base sólida para a construção
da teoria e da prática dos direitos humanos e fundamentais. Ela passa a
ser considerada um dos pilares da legitimidade dos ordenamentos jurídicos, verdadeiro critério de aferição de justiça do direito positivo.
No campo trabalhista, como ficou assentado, o princípio da dignidade humana tem vários reflexos, como na proibição do trabalho infantil
e do trabalho escravo, na vedação dos assédios moral e sexual, na vedação de tratamento discriminatório, na postulação da eficácia horizontal
dos direitos fundamentais, entre inúmeras outras possibilidades.
No entanto, conforme se procurou demonstrar, o princípio da dignidade humana, em especial, no campo das relações de trabalho subordinado, não consegue escapar dos limites estruturais do modo de produção
capitalista. Dessa forma, a pessoa humana, fim em si, ao adentrar nessas
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O Princípio da Dignidade Humana e suas Projeções no Âmbito Laboral: possibilidades e limites
relações, transmuta-se em meio para um fim externo, a valorização do
capital.
Assim, sem menosprezar a importância do reconhecimento e da
aplicação do princípio da dignidade humana no campo das relações de
trabalho, mesmo com os limites apontados, urge que se encontrem outras
formas de sociabilidade, nas quais o princípio da dignidade humana possa
se realizar mais intensamente.
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Ipojucan Demétrius Vecchi é doutorando do Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
Mestre em Direito pela Universidade do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor
do Curso de Graduação em Direito da Universidade de Passo Fundo (UPF).
Advogado trabalhista.
E-mail:
[email protected]
Endereço proissional: Universidade de Passo Fundo, Faculdade de Direito, BR
285, Bairro de São José. Passo Fundo, RS. CEP 99052-900.
https://orcid.org/0000-0001-7998-1304
Marcos Leite Garcia é doutor em Direitos Fundamentais (2000) e Master em
Direitos Humanos (1990), ambos os cursos realizados no Instituto de Direitos
Humanos da Universidade Complutense de Madrid, Espanha. Realizou estágio
pós-doutoral na Universidade de Santa Catarina entre 2011e 2012. Desde 2001
professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica,
Cursos de Mestrado e Doutorado, e do Curso de Graduação em Direito da
Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) – Santa Catarina. Da mesma maneira,
desde 2015 professor do Programa de Pós-Graduação em Direito, Curso de
Mestrado, da Universidade de Passo Fundo (UPF) – Rio Grande do Sul.
E-mail:
[email protected]
Endereço proissional: Universidade do Vale do Itajaí, Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica. Rua Uruguai, n. 458, Centro, Itajaí,
SC. CEP 88302-901.
https://orcid.org/0000-0003-3299-3556
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O Princípio da Dignidade Humana e suas Projeções no Âmbito Laboral: possibilidades e limites
Liton Lanes Pilau Sobrinho é doutor em Direito pela Universidade do Vale do
Rio dos Sinos – UNISINOS (2008). Mestre em Direito pela Universidade de Santa
Cruz do Sul – UNISC (2000). Possui graduação em Direito pela Universidade de
Cruz Alta (1997). Professor dos cursos de Mestrado e Doutorado no Programa
de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale
do Itajaí. Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado
em Direito da Universidade de Passo Fundo. Coordenador do PPGDireito da
Universidade de Passo Fundo. Pós-doutor em Direito pela Universidade de
Sevilha, US. Espanha.
E-mail:
[email protected]
Endereço proissional: Universidade do Vale do Itajaí, Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica. Rua Uruguai, n. 458, Centro, Itajaí,
SC. CEP 88302-901.
https://orcid.org/0000-0001-5696-4747
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