Medicalização e normalização da sociedade
Medicalization and normalization of society
Medicalización y normalización de la sociedade
Flavia Cristina Silveira Lemos
Geise do Socorro Lima Gomes
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira
Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, PA, Brasil
Dolores Cristina Gomes Galindo
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT, Brasil
Resumo
Este artigo é um ensaio temático e teórico sobre as práticas de medicalização, a partir das
análises de Michel Foucault sobre poderes e saberes da disciplina e da biopolítica, em um
campo da bio-história e da normalização da sociedade. O texto apresenta alguns aspectos que
sustentam processos de medicalização por meio da racionalidade patologizadora dos corpos e
das relações sociais, culturais e subjetivas. A docilização da existência e a gerência da vida
passaram a fazer parte dos cálculos no biopoder, se tornando dispositivos de governo das
condutas, na sociedade contemporânea. Governar a vida em nome da expansão da mesma e
do aumento da saúde implica um ato permanente de organizar os corpos e a saúde deles, de
acordo com os critérios do Estado sobre saúde.
Palavras-chave: Medicalização; Biopoder; Norma; Sociedade; Governo.
Abstract
This article is a thematic and theoretical essay on the practices of medicalization, based on
Michel Foucault's analysis of the powers and knowledges of discipline and biopolitics, in a
field of bio-history and the normalization of society. The text presents some aspects that
support processes of medicalization through the pathological rationality of bodies and social,
cultural and subjective relations. The docilization of existence and the management of life
became part of the calculations in biopower, becoming devices of governance of the conduct
in contemporary society. Governing life in the name of expanding it and increasing health
implies a permanent act of organizing their bodies and their health, according to the state's
health points.
Keywords: Medicalization; Biopower; Standard; Society; Government.
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Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D.
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Resumen
Este artículo es un ensayo temático y teórico sobre prácticas de medicalización, basado en el
análisis de Michel Foucault de los poderes y el conocimiento de la disciplina y la biopolítica,
en un campo de la biohistoria y la normalización de la sociedad. El texto presenta algunos
aspectos que apoyan los procesos de medicalización a través de la racionalidad patologizante
de los cuerpos y las relaciones sociales, culturales y subjetivas. La docilización de la
existencia y el manejo de la vida se convirtieron en parte de los cálculos en biopoder,
convirtiéndose en dispositivos para conducir conductas en la sociedad contemporánea.
Gobernar la vida en nombre de expandirla y aumentar la salud implica un acto permanente de
organizar sus cuerpos y su salud, de acuerdo con los criterios de salud del Estado.
Medicalización;
Palabras-clave:
Biopoder;
Estándar;
Sociedad;
Gobierno.
que, por volta do século XVII, vão
Introdução
objetivar o corpo a partir de uma
Este artigo tem o objetivo de
preocupação com a vida, no sentido de
problematizar as práticas medicalizantes, a
buscar recursos, estratégias, técnicas que
partir da normalização da sociedade.
garantam o prolongamento desta. Ao
Busca-se analisar como as normas são
conjunto que se cria com esses propósitos,
acionadas
de
o autor vai designar de biopoder. Este
da
conceito por sua vez, abarca dois diferentes
biopolítica,
modos de investimentos políticos do poder
para
medicalização
operar
social
anatomopolítica
considerando
e
os
processos
por
da
aportes
meio
de
Michel
sobre a vida: em nível individual e
Foucault no campo da Filosofia e da
coletivo.
História.
Foucault
Às
intervenções
(2005a)
anatomopolíticas
Anatomopolítica,
bio-história
e
e
chamar
às
de
intervenções
coletivas de biopolítica. As duas formas se
atravessam,
medicalização
vai
individuais
mas
na
análise
mais
pormenorizada, percebemos que estão
A história do corpo humano se
imanentes
em
suas
funções
confunde com a das intervenções sobre o
particularizadas. Rabinow e Rose (2006,
mesmo. A esse respeito Foucault (2011d)
p. 28) explicam essas especificações
vai chamar de bio-história, a história do
realizadas pelo filósofo:
homem e da vida e suas implicações.
Dentro
dessa
bio-história,
situa
o
desenvolvimento de tecnologias de poder
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O conceito de biopoder serve para trazer à
tona um campo composto por tentativas
mais ou menos racionalizadas de intervir
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Medicalização e Normalização da Sociedade
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sobre as características vitais da existência
na
humana. As características vitais dos seres
direcionados para a regulamentação da
humanos, seres viventes que nascem,
crescem, habitam um corpo que pode ser
biopolítica,
os
artefatos
foram
população por meio do controle das taxas
treinado e aumentado e, por fim adoecem e
de morbidade e mortalidade, no uso de
morrem. E as características vitais das
estatísticas e cálculos probabilísticos sobre
coletividades ou populações compostas de
os supostos riscos que a população
tais seres viventes. E, enquanto Foucault é
padeceria. Essa bipolaridade do poder, por
de algum modo impreciso em seu uso dos
termos no campo do biopoder, podemos
usar o termo “biopolítica” para abarcar
sua vez ancorava-se ou era proveniente de
saberes
diversos:
a
epidemiologia,
a
e
psicologia, a estatística, o direito, a
contestações sobre as problematizações da
medicina, a pedagogia, a economia e
vitalidade humana coletiva, morbidade e
outros (Foucault, 2008i).
Um desses
saberes
campo
todas
as
mortalidade,
estratégias
sobre
específicas
as
formas
de
conhecimento, regimes de autoridade e
corresponde
ao
da
práticas de intervenção que são desejáveis,
medicina, que teve maior notoriedade a
legítimas e eficazes.
partir
do
século
XVIII,
com
o
aperfeiçoamento de instrumentos para
Esses autores chamam a atenção
para as condições em que esses conceitos
explorar com mais exatidão o corpo
humano (Ortega & Zorzanelli, 2010).
foram sendo forjados por Foucault, uma
Foucault
(2011a,
2011b)
vai
vez que nasceram baseados em estudos
afirmar que essa intervenção médica a
históricos, específicos, não caracterizando
nível biológico vai deixar na humanidade
“trans-históricos”,
mas
que
um rastro de medicalização, ou seja, sob a
determinadas
práticas
e
tutela dos saberes médicos e saberes
acontecimentos. Assim, para o domínio da
biológicos, uma diversidade de discursos
anatomopolítica, Foucault (2008d) estudou
sobre
e descreveu as estratégias e os mecanismos
comportamentos
empregados para obter maior eficiência
integram
dos corpos individuais, garantindo ao
medicalização, interferindo por sua vez na
mesmo tempo a docilidade do sujeito.
construção de instituições, sistemas de
conceitos
pontuavam
Os mecanismos disciplinares são
confeccionados, espalhados em diversas
esferas da sociedade, por meio do exame,
da sanção normalizadora e da vigilância. Já
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higiene,
uma
condutas,
são
saúde,
produzidos
e
capilar
de
rede
limpeza, transporte, conservação, etc., até
que nada escape às suas teias.
Foucault
(2011a)
situa
quatro
grandes processos que vão caracterizar a
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o
século XVIII. Antes disso, era um lugar
aparecimento de uma autoridade médica;
com fins assistenciais para pobres, um
2) o surgimento de um campo de
lugar para morrer, um mecanismo de
intervenção
da
exclusão, de conversão espiritual, menos
doença; 3) introdução de um aparelho de
médico. Foucault (2011c) evidencia que o
medicalização coletiva: o hospital; 4)
hospital ganha uma função terapêutica a
introdução
de
partir de uma nova prática que consistia na
administração médica. No primeiro caso,
comparação entre os hospitais por meio de
teremos um saber que expande sua “área
visitas e observações sistemáticas. No
de
uma
texto “A incorporação do hospital na
questões
tecnologia moderna” (2011c) vai falar mais
medicina
do
século
da
medicina
de
1)
distinto
mecanismos
conhecimento”
autoridade
XVIII:
social
tornando-se
a
decidir
relativas a uma cidade, a um bairro, criação
detalhadamente
de instituições e regulamentos. É uma
exemplificando como que esta instituição
prática da medicina vinculada ao Estado,
vai mudar de função a partir da introdução
exemplificada pelo
pensador, com o
de mecanismos disciplinares no espaço
exemplo do que ocorreu na Alemanha: “A
desordenado do hospital. E por fim, na
criação de funcionários médicos nomeados
criação de mecanismos de administração
pelo governo com responsabilidade sobre
médica, Foucault (2011b) vai dar como
uma região, seu domínio de poder ou de
exemplos, registros de dados, comparações
exercício da autoridade de seu saber”
estatísticas, que vão compor e endossar o
(Foucault, 2008a, p. 84).
campo da medicalização. Todos esses
Na segunda característica vão se
desse
processo,
elementos fazem a medicina, considerada
tornar objetos da medicina o ar, a água, os
uma
esgotos, as construções. Intervenções na
alastramento
regulação
seu
configurando-se agora como uma prática
essas
social. Há, para Foucault nesse momento,
das
funcionamento,
cidades
e
que
tem
de
prática
individual,
alcançar
totalmente
características, maior dimensionadas na
um
desbloqueio
França, como uma medicina urbana ou
medicina, em que se abrem,
um
novo,
epistemológico
da
medicina das coisas, como afirma Foucault
(2011a).
elemento,
O
hospital,
sendo
um
como
terceiro
sistema
de
confinamento coletivo vai se tornar uma
instituição de medicalização a partir do
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[...]
as
possibilidades
da
anatomia
patológica, da grande medicina hospitalar
e dos progressos simbolizados pelos nomes
de Bichat, Laennec, Bayle etc. Por
conseguinte, a medicina se dedica a outros
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Medicalização e Normalização da Sociedade
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domínios diferentes dos da doença e que
tudo que se considera como desvio ou
não são regidos pela demanda do paciente.
anomalias é capturado pela intervenção
Esse é um velho fenômeno que faz parte
das
características
fundamentais
da
médica, mesmo, como ressalta o autor, sem
medicina moderna (Foucault, 2011b, p.
nunca alguém ter dito que anomalia sexual
385).
é uma doença. Trata-se, portanto, de
observarmos que tudo que se diz referente
por
Esse acontecimento vai ser definido
à saúde, acabou se tornando objeto de
Foucault
intervenção médica. Assim, se o ar está
indefinida”
como
uma
“medicalização
vez
que
seu
contaminado ou não, se a organização
direcionamento ao longo dos séculos até a
urbana atende a alguns critérios, os fluxos,
atualidade foi se espraiando para diversos
o saneamento de água etc., ampliando a
espaços, embora, ressalte Foucault (2011b)
intervenção autoritária da medicina nos
que no século XX tentou-se delimitar mais
domínios da existência individual ou
o “campo da medicina”, a partir do doente,
coletiva.
da sua dor, dos seus sintomas, do seu malestar, circunscrevendo um conjunto de
Normalização
objetos
corpos
considerados
“doentes”.
Essa
e
medicalização
dos
“limitação” encontrou fissuras para escape
por meio das práticas autoritárias da
Ewald (1993) traça uma importante
medicina, que exerce sobre o doente uma
descrição do que significa esse conceito de
função de autoridade.
“norma” para Foucault. Trata-se, pois, de
Nos cita como exemplo, os casos
um
elemento
de
ligação
entre
de contratação que exigem parecer médico;
individualidades
as políticas sistemáticas e obrigatórias de
norma,
screening, de localização da doença no
corresponde a uma medida, ou seja, a uma
conjunto da população e que não surgiram
produção de medida comum. É graças à
de demandas de doentes; em alguns casos
norma
de julgamento judiciários, em muitos
modernidade, uma vez que a sociedade
países solicita-se avaliações psiquiátricas.
normativa interfere no funcionamento das
Outro exemplo, sobre intervenção médica
disciplinas “normalizando-as”. Por essa
em objetos que não são da competência
razão, Foucault vai dizer que não devemos
médica, Foucault cita o comportamento
confundir “disciplinas” e “normas”. As
sexual ou a sexualidade. A esse respeito,
disciplinas são formas de adestramento do
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e
segundo
que
as
instituições.
Ewald
podemos
A
(1993),
definir
a
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corpo, e a norma é quem especifica o
dizer que no espaço normativo não
sujeito,
haja partilha possível, que não haja
individualizando-o,
tornando-o
lugar
comparável.
para
um
processo
de
valorização. As práticas da norma
não são relativistas. O normal opõe-
A norma permite abordar os desvios,
se, de fato, ao anormal. Mas esta
indefinidamente, cada vez mais discretos,
partilha é de um gênero especial:
minuciosos, e faz que ao mesmo tempo
formula-se em termos de limiares e
esses desvios não enclausurem ninguém
limites. [...] Compreende-se que ela
numa natureza, uma vez que eles, ao
nunca exprimirá uma lei da natureza;
individualizarem, nunca são mais do que a
tão-só pode formular a pura relação
expressão de uma relação, da relação
do grupo consigo mesmo (Ewald,
indefinidamente reconduzida de uns com
1993, p. 87).
os outros (Ewald, 1993, p. 86).
De acordo com Foucault (2008c),
nesse jogo das normalizações disciplinares,
o que é fundante não é o “normal” ou o
“anormal”, mas sim a própria norma. É ela
que vai dar o caráter primitivo de
prescrição, estabelecendo a descrição do
que é normal e do que não é, tornando-os
presumíveis. Portanto, a norma é uma
referência, sem se tornar modelo fixo.
Ewald (1993) vai explicar ainda que a
norma faz funcionar um sistema de
comunicação que liga as individualidades,
sem procurar uma origem ou um sujeito,
“[...] manifesta antes a existência de um
possível”:
Foucault, no livro “Os anormais”,
inicia
seus
cursos
sobre
esse
tema
apresentando os três primeiros elementos
que se formaram ao longo dos séculos
XVII e XVIII, cujos investimentos de
poder se debruçaram sob a forma de
instituições,
disciplinas
e
saberes
constituindo e refinando os sujeitos a
serem considerados dentro do campo das
“anormalidades”. Esses três elementos são:
1) o monstro humano – cujo contexto de
referência é a lei, a noção jurídica. Esse
elemento corresponde à figura que infringe
tanto as leis da sociedade quanto as leis da
natureza. 2) o indivíduo a ser corrigido –
Foucault (2010a) vai dizer que seu
contexto é a própria família e que essa é
Do normal ao anormal, a linha é,
pois, incerta. Não reenvia a nada na
uma figura específica dos séculos XVII e
natureza. O anormal está na norma: o
XVIII) a criança masturbadora – cujo
gigante tal como o anão, o idiota tal
contexto é mais estreito que a família: o
como o gênio. Mas isso não quer
quarto, a cama, o corpo. As três figuras
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Medicalização e Normalização da Sociedade
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estiveram
bem
características
demarcadas
específicas
e
por
Se apresenta como sendo a corrigir na
saberes
medida em que fracassaram todas as
técnicas, todos os procedimentos, todos os
determinados.
Foucault nesses cursos vai dizer
investimentos familiares e corriqueiros de
educação pelos quais se pode tentar
que o monstro é uma exceção, um duplo de
corrigi-lo.
animal e espécie humana, que se torna um
paradoxalmente, o incorrigível, na medida
problema tanto para o saber médico quanto
em que é incorrigível, requer um certo
para o judiciário. Essa figura é importante
porque ele representa a infração à lei, às
leis
da
natureza
desvelando
suas
irregularidades possíveis. Logo, o monstro
[...]
E,
no
entanto,
número de correções específicas em torno
de si de sobreintervenções em relação às
técnicas familiares e corriqueiras de
educação e correção, isto é, uma nova
tecnologia de reeducação.
torna-se modelo de todas as discrepâncias
e vai levantar a questão “Descobrir qual o
Desse modo, Foucault vai situar
fundo de monstruosidade que existe por
essa figura como sendo um dos ancestrais
trás das pequenas anomalias, dos pequenos
mais próximos do indivíduo anormal do
desvios, das pequenas irregularidades é o
século XIX, servindo como suporte para
problema que vamos encontrar ao longo de
todas as instituições criadas para abrigar os
todo o século XIX” (Foucault, 2010a, p.
anormais. Em relação ao terceiro exemplo,
48). No segundo caso, do indivíduo a ser
“o masturbador”, precisamente a criança
corrigido, sua taxa de frequência é mais
masturbadora (aparece no fim do século
recorrente. Quem investe nesse sujeito é
XVIII e início do XIX), vai encontrar um
uma economia de poder exercida pela
investimento de poder em forma de
família e pelas instituições que lhe são
microcélulas recaindo sobre o indivíduo e
próximas. Assim, afirma Foucault que a
seu corpo. Para Foucault (2010a) a
escola, a oficina, a rua, a igreja e outras
diferença entre este e os outros elementos,
vão compor uma malha por onde esse
é que este aparece como uma figura
indivíduo passa e é capturado a fim de que
universal,
sejam investidos nele técnicas de correção.
segredo, que é ao mesmo tempo um
Contudo, ressalta Foucault (2010a, p.50),
segredo universal, já que se trata de uma
esse indivíduo a ser corrigido é na verdade
prática que todos conhecem, contudo, não
incorrigível, já que,
revelada,
pois
fazendo
carrega
desse
consigo
segredo
um
um
segredo compartilhado.
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Ele vai nos dizer que a organização
que ganhará sua regularidade científica em
dos saberes e das técnicas antropológicas
meados de 1820 a 1830 (Foucault, 2010a).
do século XIX fará desse segredo universal
Na passagem do século XVIII para o XIX,
a raiz para quase todos os males,
Foucault (2010a) afirma que há uma
privilegiando
males
mudança nos mecanismos de poder, com o
corporais, doenças nervosas e psíquicas.
advento de novas tecnologias científicas e
Ou seja, configura-se uma etiologia sexual
industriais, bem como o surgimento de
que será suporte ou princípio de explicação
políticas de governo (governamentalidade)
para todos os males e doenças. Em resumo,
que engendram outras concepções de
Foucault nos diz com esses três exemplos
Estado (Estado Liberal). Nesse ínterim,
que
algumas
o
as
doenças
anormal
do
ou
século
XIX
é
alianças
entre
determinados
descendente dessas três figuras: o monstro,
saberes acontecem, como foi o caso da
o incorrigível, o onanista. Apesar de suas
psiquiatria com a justiça, da medicina com
especificidades,
a psiquiatria e da psiquiatria e a higiene
são
figuras
que
se
pública.
comunicam entre si.
Elas permanecem afastadas até o
Foucault (2010a) assevera que é a
século XIX, por conta da separação entre
psiquiatria o saber responsável por “criar”,
os saberes e os sistemas de poder que as
“fabricar”
institui. Da feita que esses sistemas de
inventaria esse sujeito a partir das sutis
poderes e de saberes também começam a
transformações que fariam a passagem do
se comunicar o entrelaçamento entre elas
monstro ao anormal. Essa passagem se
vai se tornando mais visível. Assim, o
daria então do monstro (o bicho papão, o
monstro situa-se nos regimes de saber e de
exagero)
poder político-judiciário, bem como na
monstruosidade é dividida em pequenas
história natural, que busca distinguir as
anomalias). Vale lembrar ainda, que nessa
espécies, os gêneros e os reinos, como
passagem a psiquiatria não era um ramo
reitera Foucault (2010a). Já o incorrigível
especializado da medicina geral. E que
situa-se
inclusive
no
saber
que
está
sendo
o
sujeito
para
para
“anormal”.
as
ganhar
anomalias
um
lugar
Ela
(a
de
constituído ao longo do século XVIII, que
visibilidade, a psiquiatria recorria a alguns
é o saber das técnicas pedagógicas, das
princípios de estruturação e organização da
técnicas de educação coletiva, de formação
medicina
de aptidões. E o masturbador é capturado
acontecimentos (situações de saúde a nível
por uma nascente biologia da sexualidade,
mental). Contudo, um lugar de destaque só
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para
explicar
determinados
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Nasce assim o monstro moral que,
foi conseguido quando esta passou a
“elaborar”
discursos
que
explicariam
pertencendo
à
categoria
apanhado
conseguia pensar. Um exemplo sobre essa
decodificá-lo
troca de posições de saber e autoridades,
pequenas perversidades, maldades infantis,
encontramos na aliança do poder médico
pequenos desvios, etc. E nesse afã para
com o poder judiciário quando se direciona
poder existir como uma instituição de
para o sujeito considerado criminoso e se
saber
ela
psiquiatria
é
determinadas situações que ninguém mais
nas
análises
precisa
que
vai
sobre
as
realizar
duas
de
codificações: 1) codificar a loucura como
racionalidade”, ou “ausência de interesse”,
doença; tornar patológico os discursos, os
tal
erros, as ilusões da loucura e no trato das
pergunta
como
por
suas
apontam
“condições
pela
jurídica,
os
documentos
análises
estudados por Foucault (2010a).
fazer
a
sintomatologia,
a
A lei, para ser aplicada, exigia que
nosografia, prognóstico, fichas clínicas,
se soubesse se esse sujeito a ser julgado era
observações. 2) codificar a loucura como
louco ou não. Mas ela não possuía
perigo: implantar o discurso que a doença
condições de materializar e nem de
pode se tornar um perigo social, portanto, é
averiguar essa situação. Assim, recorre à
preciso criar medidas de proteção social.
psiquiatria conferindo-lhe poder de fazer
Desse
essa identificação. Então, o debate sobre
funcionar em nome do saber médico e a
esse sujeito perscruta se ao cometer um
psiquiatria age como um saber sobre a
crime há ou não racionalidade, ou seja,
doença mental importante para a regulação
“interesse”, por parte do criminoso. Se sim,
da higiene pública (Foucault, 2010a).
este é julgado de acordo com o código
penal.
modo,
a
proteção
começa
a
Outro ponto de ligação importante
entre
saberes
da
medicina
para
o
alargamento de suas práticas na sociedade
A questão do ilegal e a questão do
anormal, ou ainda a do criminoso e a do
patológico,
passam,
portanto a
ficar
deu-se por meio da neurologia. Assim,
epilepsia e os automatismos vão servir de
ligadas, e isso não se dá a partir de uma
suporte
nova ideologia própria, nem de um
psiquiátricos.
aparelho estatal, mas em função de uma
nesses cursos que a família vai se tornar
tecnologia que caracteriza as novas regras
um dos primeiros alvos de investimento
da economia do poder de punir (Foucault,
2010a, p. 78).
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dessa
para
todos
Foucault
medicalização,
os
sintomas
destaca
sobretudo,
ainda
no
investimento feito sobre as crianças e
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adolescentes, a fim de controlar a sua
num
masturbação. Interessante,
regularidade funcional, como princípio de
diz ele,
o
outro sentido:
a norma
como
funcionamento adaptado e ajustado; o
discurso inicialmente sobre essas situações
“normal” a que se oporá o patológico, o
não é moralizante, mas de somatização e
mórbido, o desorganizado, a disfunção
de patologização. Ele descreve uma série
(Foucault, 2010a, p. 138-139).
de situações que são realizadas pelos
Com esse pequeno resumo da
médicos e de discursos elaborados a fim de
o
genealogia esboçada por Foucault sobre os
causa
anormais, quisemos mostrar a emergência
etiológica das mais diferentes doenças. Daí
desses conceitos importantes para nós,
em diante com essas alianças e a
como
elaboração
“anormalidade”, “medicalização”, e como
sustentar
a
masturbação
comportamento
sexual
desses
ou
como
novos discursos a
os
de
“norma”,
resultado
de
“normal”,
psiquiatria se atribui como tarefa percorrer
foram o
na direção de todas as desordens e instaura
diversos, historicamente constituídos, e
a “explosão sintomatológica” na sociedade
que em nossa contemporaneidade se
pondo em evidência, enfim, a norma, tal
atualiza
como destaca Foucault (2010a, p. 138):
medicalizada, formadora de subjetividades
constituindo
procedimentos
uma
biopolítica
adentradas num jogo que se forma na
Organizando
esse
fenomenologicamente
campo
aberto,
mas
cientificamente modelado, a psiquiatria vai
por em contato duas coisas. De um lado,
ela vai introduzir efetivamente, em toda a
busca da saúde e de performances ideais,
capturadas cada vez
biopolítica
mais por
empresarial
tal
uma
como
abordaremos no próximo tópico.
superfície do campo que ela percorre, essa
coisa que lhe era até então parcialmente
Conclusões provisórias
alheia, a norma, entendida como regra de
conduta,
como
lei
informal,
como
princípio de conformidade; a norma a que
Vamos encontrar um interessante
se opõe a irregularidade, a desordem, a
estudo com Ortega e Zorzanelli (2010)
esquisitice,
sobre
a
excentricidade,
o
a
visibilidade
do
corpo
pela
desnivelamento, a discrepância. É isso que
sociedade, que se institui por meio das
ela introduz pela explosão do campo
práticas e saberes médicos. Tomando como
sintomatológico. Mas sua ancoragem na
medicina orgânica ou funcional, por
referência temporal os séculos descritos no
intermédio da neurologia, permite-lhe
tópico anterior, principalmente o século
chamar também a ela a norma entendida
XVIII. Esses autores esboçam um breve
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Medicalização e Normalização da Sociedade
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resumo do surgimento da medicina na
autores: “Os métodos de visualização se
esfera da visibilidade, a partir do advento
baseiam na crença de que o objeto
de
artefatos,
representado está diretamente acessado
possibilitando o escrutínio do corpo e
como ele realmente é.”, fazendo uma
alavancando
O
explícita relação entre “ver” e “realidade”,
desbravamento da viscerabilidade do nosso
como se a realidade fosse algo a ser
corpo foi uma condição imprescindível
“descoberta” ou “desvelada”, e a visão a
desde
maneira mais eloquente de realizar essa
novas
tecnologias
os
o
e
saberes
século
médicos.
XVIII
para
o
desenvolvimento das explorações médicas,
“inteligibilidade”.
Essa passagem para o território da
que culminaram nos alcances da medicina
visão deu-se segundo esses autores quando
na contemporaneidade.
Esses autores destacam que a visão
a pesquisa médica, que durante anos
na
baseava-se na dedução morfológica e na
discursos
comparação com outros animais, tem no
científicos privilégios capazes de situá-los
método da observação outro caminho a
no centro dos jogos de verdade. No campo
trilhar. Primeiro que, para isso, uma
da medicina esse acontecimento ganhou
mudança de investimento sobre o corpo e
uma
se
sobre a vida se fizeram importantes. Cresce
estendendo a todos os ramos que lhe
a preocupação com o prolongamento da
compõem. É claro que esse procedimento é
vida, evitando-se as doenças. O que já
herdeiro
das
havia sido apontado por Foucault em
ciências naturais que sempre tiveram a
Vigiar e Punir (2008d) e História da
“visão” como elemento crucial para a
Sexualidade I: vontade de saber (2007)
comprovação da verdade. As ciências
quando a vida passa a ser objetivada por
biológicas começaram a imitar os métodos
investimentos políticos. Contudo, apesar
de dissecação, estratificação, organização e
do alcance das máquinas ser maior do que
outros que compunham as “vantagens
os dos sentidos, ressaltam os autores que
diagnósticas de ver”.
mesmo com o uso das novas tecnologias
ou
uma
racionalidade
visibilidade
possibilitou
dimensão
das
pautada
aos
extraordinária
práticas
científicas
Diante dessa configuração Ortega e
Zorzanelli
(2010,
p.17)
se
propõem
para quantificação/verificação do corpo, os
médicos continuaram a usar das inferências
analisar o papel das tecnologias de
para
visualização médica na construção social e
Assim, “um olhar livre de interpretação é
cultural das doenças. Assim, declaram os
uma ficção que oculta a adaptação às
Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97
justificar
evidências
“médicas”.
87
Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D.
______________________________________________________________________
estabelecidas
com os problemas causados pelas situações
socialmente desde longa data” (Ortega &
em que a descrição anatômica-fisiológica
Zorzanelli, 2010, p.38).
não
condições
visuais
Essa observação é importante para
consegue
encontrar
registros
no
cérebro.
pensarmos em como o fascínio pela
Esse campo tem um ponto de gatilho,
visibilidade nos captura, a ponto de
sobretudo nas décadas de 1950 e 1960,
sustentar determinados discursos no campo
quando os pesquisadores passaram a
da verdade oferecendo sem pestanejar a
utilizar
scans
por
tomografia
esses discursos credibilidade que vão ser
computadorizada – que culminou nos anos
sancionadas por sua vez, culturalmente.
1970 no uso clínico dessas tecnologias.
Em
[...] A ressonância magnética funcional
“O
nascimento
da
clínica”
tornou possível acompanhar, praticamente
encontramos com Foucault (2004b) uma
em tempo real, a ativação cerebral, ou seja,
arqueologia do olhar médico sobre a vida,
precisamente
sobre o
corpo
e
para que áreas o sangue se desloca. O
suas
conceito de base para as tecnologias de
alterações morfisiológicas e patológicas. O
imageamento cerebral desenvolvidas mais
“olhar” seja ele entendido como um
recentemente,
como
a
ressonância
magnética funcional e a tomografia por
recurso de percepção visual, seja como
emissão de prósitrons, é que uma mudança
uma produção de saber, foi fundante para a
no fluxo sanguíneo regional pode refletir a
hegemonia da medicina no campo da
atividade neural e as áreas desenvolvidas
cientificidade:
em determinada função ou tarefa (Ortega
“o
olho
torna-se
o
& Zorzanelli, 2010, p. 50, grifo do autor).
depositário e a fonte da clareza; tem o
poder de trazer à luz uma verdade que ele
só recebe à medida que lhe deu a luz”
(Foucault, 2004b, p.10). Da descoberta do
Raio-X a outros instrumentos para a
visualização
interior
do
corpo,
a
abrangência dessas práticas compõe uma
“tecnologização do diagnóstico” que vai
atingir o campo da doença mental (Ortega
& Zorzanelli, 2010). É por meio da
neurologia, preferencialmente habituada ao
registro imagético do corpo “fora de
Essas
visibilidades
na
saúde
formam um novo campo do cuidado de si e
na gestão dos corpos disciplinados e na
regulação da população. Para Ewald
(1993),
com
a
economia
de
poder
voltando-se para o corpo coletivo, cria-se
um novo dispositivo chamado “segurança”,
que vai marcar a passagem então da
microfísica para o plano biopolítico, tendo
no conceito de “risco” um homólogo do
controle” que a medicina vai tentar lidar
Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97
88
Medicalização e Normalização da Sociedade
______________________________________________________________________
que era a “norma” para as disciplinas.
acumulação de fatos, de dados que se
Portanto,
amontoam desesperadamente. Porque, na
medida em que a rede habitual dos
O que é um risco? Na linguagem corrente,
o termo é tomado como sinônimo de
perigo, de acontecimento funesto que pode
significados foi suspensa, todos os fatos,
até os que a instantes podiam parecer os
suceder a qualquer um; designa uma
mais insignificantes, devem ser notados,
ameaça objectiva. Na segurança, o termo
sem hierarquia e nem privilégio”.
de
risco
não
designa
nem
um
acontecimento nem mesmo um tipo de
acontecimento
da
realidade
–
os
acontecimentos “funestos” – mas um
Nessa
processualidade
das
multiplicidades o “número” torna-se um
elemento importante, porque ocupa o lugar
mundo de tratamento específico de certos
do sentido, ou seja, ele “faz sentido por si
acontecimentos que podem suceder a um
mesmo. A noção de massa (de população,
grupo de indivíduos, ou mais exatamente a
de coletividade) toma o lugar da natureza
valores
ou de essência” (Ewald, 1993, p. 91).
ou
capitais
possuídos
ou
representados por uma coletividade de
indivíduos, ou seja, por uma população.
Assim, de acordo com os autores, os fatos
Em si mesmo, nada é um risco, não existe
se organizam por categorias, de acordo
risco na realidade. Inversamente, tudo
com alguns nomes: “nascimento, morte,
pode constituir um risco, tudo depende da
acidente,
maneira como se analisa o perigo, como se
preocupando-se apenas com os efeitos dos
considera o acontecimento (Ewald, 1993,
p. 88-89).
suicídio,
avaliação”,
riscos, sobrepujando as causas nessa
racionalidade das probabilidades. Foucault
E sobre essa noção de risco uma
(2008c)
vem
falar
das
racionalidade é conjecturada formalizando
governamentalidades liberais que criam
o cálculo das probabilidades, em que
essa racionalidade, ampliando os campos
diversos elementos começam a entrar num
de exercício das tecnologias de poder. Para
jogo de lógica estatística a fim de se
ele, nos dispositivos de segurança a
calcular os aparentes “riscos”. Para Ewald
liberdade é elemento fundamental dessas
(1993, p. 90) tem-se um cálculo das
tecnologias de poder das quais temos
regularidades em que cada evento ocorre e
falado ao longo do texto. Primeiro que a
um cálculo das possibilidades de novas
ideia ou como queiram a ideologia da
ocorrências.
processo
liberdade, foi quem deu condições de
“pura
desenvolvimento dessas formas modernas
transforma
factualidade”:
Esse
os
duplo
eventos
“Reduz
a
em
uma
Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97
pura
capitalistas
de
economia.
Assim,
a
89
Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D.
______________________________________________________________________
liberdade, nos afirma Foucault (2008c, p.
acaso e das probabilidades, como forma de
63-64) é ao mesmo tempo uma ideologia e
intervir na população, penetrá-la:
técnica de governo:
A população é, portanto, tudo o que vai se
estender do arraigamento biológico pela
Um dispositivo de segurança só poderá
espécie à superfície de contato oferecida
funcionar bem, [...] justamente se lhe for
pelo público. Da espécie ao público: temos
dado certa coisa que é a liberdade, no
sentido
moderno
[que
essa
aí todo um campo de novas realidades,
palavra]
novas realidade no sentido de que são, para
adquire no século XVIII: não mais as
os mecanismos de poder, os elementos
franquias e os privilégios vinculados a uma
pertinentes, o espaço pertinente no interior
pessoa, mas a possibilidade de movimento,
do qual e a propósito do qual se deve agir
de deslocamento, processo de circulação
(Foucault, 2008c, p. 99).
tanto de pessoas como das coisas. [...] um
poder que se pensa como regulação que só
A medicalização encontra nessa
pode se efetuar através de e apoiando-se na
racionalidade probabilística um ponto de
liberdade de cada um.
encontro para sua ancoragem: “Governar o
Desse modo, esse conceito de
liberdade
para
Foucault
extrapola
a
futuro traz a lógica da gestão do risco para
o presente em deslizamento com o perigo a
concepção ideológica porque ela atua
evitar
fundamentalmente como uma tecnologia
sociedade daquilo que teme e, portanto,
de poder, numa gestão governamental cujo
visa a se prevenir como tentativa de
saber predominante é a economia política.
controle biologizante e político” (Galindo,
Essa economia política a partir do século
Lemos & Rodrigues, 2014, p. 258). Essa
XVIII
vai
pensar
funcionamento
os
e
para
defender
e
assegurar
a
colocar
em
governamentalidade
dispositivos
de
espaços/tempos de experiências subjetivas
cria
outros
segurança que atuem no conjunto da
cada
população, dessa forma, um modo de lidar
sociabilidade
com as multiplicidades: crescimento e
preocupação com o controle e regulação da
organização das cidades, circulação das
vida está pautada em um dos aspectos da
pessoas,
lógica médica. Assim, se a noção de risco
mortalidades,
mercadorias,
fluxos,
natalidade,
doenças
vez
mais
marcadas
medicalizada,
por
onde
uma
a
etc.
impõe à sociedade um “medo” do acaso,
(Foucault, 2008c). Essas multiplicidades
do futuro, a medicalização é aceita ou
vão ser geridas por uma racionalização do
naturalizada em diversos aspectos, porque
entra
Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97
nessa
lógica
da
segurança,
90
Medicalização e Normalização da Sociedade
______________________________________________________________________
convencendo as pessoas de que o melhor é
medicalizante, mantido pelo pagamento
fazer um investimento em si mesmas, em
regular de taxas para sua manutenção.
sua saúde, aderindo às diversas formas de
Ressaltam
“seguros”.
preocupação com o desenvolvimento das
Biopolítica
empresarial
e
ainda
autoras
que
crianças,
gerindo
e
desenvolvimento em ciclos, gera um
transformando-os em mercadorias a serem
capital a regular e administrar, operando ao
privatizados, tal como sugerem as autoras:
mesmo
eventos
da
vida
tempo
“segurança
A privatização da vida como biocapital faz
parte de toda uma economia política que
entra em cena por meio do cálculo da
classificação
a
governamentalidade neoliberal, portanto,
os
a
as
pela
desse
investimentos
numa
prevenção”
numa
e
“docilização pela educação”. Ou seja,
temos aí, as duas tecnologias de poder,
virtualidade, baseado em amostras e em
disciplinar
e
biopolítica,
operando
indicadores genéticos utilizados como um
simultaneamente na gestão da vida.
mapa da gestão da vida, do fazer viver
São duas formas de poder que
biopolítico, juntamente com a ampliação
capturam a vida por meio de discursos e
de habilidades futuras e produtivas da
disciplina usada por antecipação, em
saberes que põem em funcionamento uma
termos de controle dos corpos no tempo e
rede
entrecruzada
de
forças,
onde
no espaço (Galindo, Lemos & Rodrigues,
transversalmente lhe tangenciam práticas
2014, p. 256).
liberais que realizam um controle social
utilitarista tanto no plano coletivo quanto
Nesse mesmo trabalho, Galindo,
Lemos e Rodrigues (2014) discorrem sobre
no microfísico, individual. De acordo
Lemos, Cruz e Souza (2014, p. 09):
o mercado privado que se confeccionou em
torno da coleta das células-tronco do
[...] é relevante problematizar a gestão
cordão umbilical. O material coletado é
utilitarista dos corpos individuais e em
transformado em um capital de risco
grupo no presente, materializada de forma
biológico, pondo em circulação discursos
sobre a necessidade futura de crianças
cada vez mais linear e determinista, em
termos de medicalização da educação.
Estes
procedimentos
reducionistas
da
virem a ter algum problema de saúde.
biomedicina são intensificados na visão da
Criam-se
escola
argumentos
em
torno
da
probabilidade do aparecimento de doenças
que nem se quer existem e a promessa da
participação do cliente nesse controle
Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97
e
dos
processos
de
ensino-
aprendizagem, limitadas às neurociências,
aos
aspectos
neurobiológicos
e
comportamentais apenas.
91
Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D.
______________________________________________________________________
A objetivação da educação por
age desde a esfera individual (marketing de
práticas medicalizantes é um assunto que
si mesmo, empresário de si) quanto no
vem sido trabalhado desde a década de
coletivo (conquista de novos mercados a
1980 (Collares & Moysés, 1982, 1992) e se
todo tempo). No que tange a educação, ele
expõe em pesquisas na atualidade (Galindo
cita “as formas de controle contínuo, a
et al, 2014, Facci & Souza, 2014, Moyses
avaliação contínua, e a ação da formação
& Collares, 2014, Souza, 2014, 2009,
permanente sobre a escola, o abandono
2005, 2000), por conta da enxurrada de
correspondente de qualquer pesquisa na
procedimentos,
fármacos,
Universidade, a introdução da ‘empresa’
discursos, que operam nessa racionalidade
em todos os níveis de escolaridade”
biomedicalizante, tendo na esfera da
(Deleuze, 2008, p. 225). A esse respeito
educação,
ressaltam Lemos, Cruz e Souza (2014, p.
tecnologias,
principalmente
a
educação
14):
básica, seu maior expoente.
A
nesses
medicalização
domínios
de
se
generaliza
poder
e
criam
performances que são geridas por essas
formas de controle pautadas por discursos
de saúde, engendrados em enunciações
O
marketing
escolar
e
empresarial
modulará cada vez mais detalhadamente a
vida e os pequenos atos cotidianos como
investimentos e marketing. Tudo pode se
tornar marca e signo de sucesso pessoal e
proferidas em nome da paz e da segurança.
relacional
Contudo, estes são pautados pela lógica do
crescente, que comercializa até mesmo os
mercado uma vez que são ideias vendidas
sentimentos, as amizades, a docência, a
na educação, no trabalho e na saúde. Para
Deleuze (2008, p. 223) essa “sociedade de
controle” em que vivemos, produz um
homem “ondulatório, funcionando em
órbita, num feixe contínuo”, contudo,
endividado, porque no capitalismo de
nossa atualidade, esse se volta para o
produto, para sua venda, transformando
tudo em produtos venais por meio do
marketing.
Essa noção de marketing opera
educação
e nome de
familiar
e
um mercado
religiosa,
a
performance física e a cultural.
Uma das consequências advindas
desse tipo de racionalidade da vida,
guiadas pela
lógica
mercadológica e
medicalizante, segundo estes autores é o
silenciamento das diferenças. Isto se dá
pelo discurso de uma “educação para a
paz”, que está se materializando por meio
de “[...] medidas médico-psicológicas e as
programações
de
risco
de
caráter
como ferramenta de controle social, que
Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97
92
Medicalização e Normalização da Sociedade
______________________________________________________________________
cognitivo-comportamentais ou ainda, as
com
teorias
utilizando
das
relações
humanas,
os
elementos
aos
como
quais
marco
estamos
inicial
para
psicotrópicos, os exercícios físicos e as
problematizar as práticas medicalizantes
aulas de arte e lazer [...]” (Lemos, Cruz &
que por meio de desníveis discursivos
Souza, 2014, p. 14).
compõem o currículo de psicologia e que
Esses acontecimentos despertam
atuam
como
filtro
silenciador
das
interesse e nos guiam na construção desse
diferenças. A literatura levantada sobre a
trabalho doutoral e nos convida a pensar
formação em psicologia no Brasil, por
que por mais que não haja uma relação de
meio das diferentes perspectivas as quais
causalidade entre esses elementos e as
foram trabalhadas,
práticas produzidas nos documentos que
condições históricas pelas quais teríamos
compõem o currículo de formação em
que nos debruçar a fim de que fosse
psicologia, contudo, na malha que se forma
possível transitar pelas histórias contadas
entre esses acontecimentos, as práticas em
sobre o campo de tensões formadas por
funcionamento operadas por esse currículo
diferentes grupos, sob o registro de
não são neutras, agenciam forças políticas,
diferentes
oriundas da produção e disputa de saberes
almejando adentrar nas lutas empreendidas
que intencionam seu locus nesse currículo.
para compor um projeto de sociedade.
nos
indicaram as
posicionamentos
teóricos,
Desse modo, como assinala Veyne (2008,
p. 248), é preciso estudar as práticas não
Referências
como uma “instância misteriosa, um
subsolo da história, um motor oculto [...]
Existem regras estritas que sustentam as
práticas [...] que é uma certa política”
Logo, por meio dessa arqueogenealogia
que
se
pretende
desenvolver
nessa
pesquisa, busca-se pela raridade desse
acontecimento por meio da interpelação
das práticas que o produzem, ou seja,
dando visibilidade as objetivações de
práticas determinadas historicamente.
Os operados conceituais que foram
apresentados nessa seção nos ajudaram
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Flavia Cristina Silveira Lemos é
professora associada II em psicologia
social/UFPA, bolsista de produtividade em
pesquisa CNPQ PQ2. Psicóloga-UNESP,
mestre em Psicologia Social-UNESP e
doutora em História Cultural-UNESP.
E-mail:
[email protected]
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-66010653
Geise do Socorro Lima Gomes é
psicóloga pela UFPA, mestre em
Psicologia (UFPA) e também doutora em
Educação (UFPA).
E-mail:
[email protected]
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Medicalização e Normalização da Sociedade
______________________________________________________________________
ORCID:
9059-8568
https://orcid.org/0000-0001-
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira é
psicólogo ( UFPA), mestre e doutor em
Saúde do trabalhador na ENSP-FIOCRUZ.
É também coordenador do Programa de
Pós-graduação em Psicologia da UFPA e
professor associado II de Psicologia Social
do trabalho - UFPA.
E-mail:
[email protected]
ORCID:
https://orcid.org/0000-00021969-380X
Dolores Cristina Gomes Galindo é
psicóloga (UFPE), mestre e doutora em
Psicologia Social - PUC-SP e professora
associada II de Psicologia Social da
UFMT. É também professora no Programa
de Pós-graduação de Estudos da Cultura
Contemporânea-UFMT.
E-mail:
[email protected]
ORCID: http:orcid.org0000-0003-20713967
Enviado em: 02/06/19– Aceito em: 07/07/20
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