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Medicalização e normalização da sociedade

2020

Este artigo e um ensaio tematico e teorico sobre as praticas de medicalizacao, a partir das analises de Michel Foucault sobre poderes e saberes da disciplina e da biopolitica, em um campo da bio-historia e da normalizacao da sociedade. O texto apresenta alguns aspectos que sustentam processos de medicalizacao por meio da racionalidade patologizadora dos corpos e das relacoes sociais, culturais e subjetivas. A docilizacao da existencia e a gerencia da vida passaram a fazer parte dos calculos no biopoder, se tornando dispositivos de governo das condutas, na sociedade contemporânea. Governar a vida em nome da expansao da mesma e do aumento da saude implica um ato permanente de organizar os corpos e a saude deles, de acordo com os criterios do Estado sobre saude.

Medicalização e normalização da sociedade Medicalization and normalization of society Medicalización y normalización de la sociedade Flavia Cristina Silveira Lemos Geise do Socorro Lima Gomes Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, PA, Brasil Dolores Cristina Gomes Galindo Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT, Brasil Resumo Este artigo é um ensaio temático e teórico sobre as práticas de medicalização, a partir das análises de Michel Foucault sobre poderes e saberes da disciplina e da biopolítica, em um campo da bio-história e da normalização da sociedade. O texto apresenta alguns aspectos que sustentam processos de medicalização por meio da racionalidade patologizadora dos corpos e das relações sociais, culturais e subjetivas. A docilização da existência e a gerência da vida passaram a fazer parte dos cálculos no biopoder, se tornando dispositivos de governo das condutas, na sociedade contemporânea. Governar a vida em nome da expansão da mesma e do aumento da saúde implica um ato permanente de organizar os corpos e a saúde deles, de acordo com os critérios do Estado sobre saúde. Palavras-chave: Medicalização; Biopoder; Norma; Sociedade; Governo. Abstract This article is a thematic and theoretical essay on the practices of medicalization, based on Michel Foucault's analysis of the powers and knowledges of discipline and biopolitics, in a field of bio-history and the normalization of society. The text presents some aspects that support processes of medicalization through the pathological rationality of bodies and social, cultural and subjective relations. The docilization of existence and the management of life became part of the calculations in biopower, becoming devices of governance of the conduct in contemporary society. Governing life in the name of expanding it and increasing health implies a permanent act of organizing their bodies and their health, according to the state's health points. Keywords: Medicalization; Biopower; Standard; Society; Government. Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 77 Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D. ______________________________________________________________________ Resumen Este artículo es un ensayo temático y teórico sobre prácticas de medicalización, basado en el análisis de Michel Foucault de los poderes y el conocimiento de la disciplina y la biopolítica, en un campo de la biohistoria y la normalización de la sociedad. El texto presenta algunos aspectos que apoyan los procesos de medicalización a través de la racionalidad patologizante de los cuerpos y las relaciones sociales, culturales y subjetivas. La docilización de la existencia y el manejo de la vida se convirtieron en parte de los cálculos en biopoder, convirtiéndose en dispositivos para conducir conductas en la sociedad contemporánea. Gobernar la vida en nombre de expandirla y aumentar la salud implica un acto permanente de organizar sus cuerpos y su salud, de acuerdo con los criterios de salud del Estado. Medicalización; Palabras-clave: Biopoder; Estándar; Sociedad; Gobierno. que, por volta do século XVII, vão Introdução objetivar o corpo a partir de uma Este artigo tem o objetivo de preocupação com a vida, no sentido de problematizar as práticas medicalizantes, a buscar recursos, estratégias, técnicas que partir da normalização da sociedade. garantam o prolongamento desta. Ao Busca-se analisar como as normas são conjunto que se cria com esses propósitos, acionadas de o autor vai designar de biopoder. Este da conceito por sua vez, abarca dois diferentes biopolítica, modos de investimentos políticos do poder para medicalização operar social anatomopolítica considerando e os processos por da aportes meio de Michel sobre a vida: em nível individual e Foucault no campo da Filosofia e da coletivo. História. Foucault Às intervenções (2005a) anatomopolíticas Anatomopolítica, bio-história e e chamar às de intervenções coletivas de biopolítica. As duas formas se atravessam, medicalização vai individuais mas na análise mais pormenorizada, percebemos que estão A história do corpo humano se imanentes em suas funções confunde com a das intervenções sobre o particularizadas. Rabinow e Rose (2006, mesmo. A esse respeito Foucault (2011d) p. 28) explicam essas especificações vai chamar de bio-história, a história do realizadas pelo filósofo: homem e da vida e suas implicações. Dentro dessa bio-história, situa o desenvolvimento de tecnologias de poder Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 O conceito de biopoder serve para trazer à tona um campo composto por tentativas mais ou menos racionalizadas de intervir 78 Medicalização e Normalização da Sociedade ______________________________________________________________________ sobre as características vitais da existência na humana. As características vitais dos seres direcionados para a regulamentação da humanos, seres viventes que nascem, crescem, habitam um corpo que pode ser biopolítica, os artefatos foram população por meio do controle das taxas treinado e aumentado e, por fim adoecem e de morbidade e mortalidade, no uso de morrem. E as características vitais das estatísticas e cálculos probabilísticos sobre coletividades ou populações compostas de os supostos riscos que a população tais seres viventes. E, enquanto Foucault é padeceria. Essa bipolaridade do poder, por de algum modo impreciso em seu uso dos termos no campo do biopoder, podemos usar o termo “biopolítica” para abarcar sua vez ancorava-se ou era proveniente de saberes diversos: a epidemiologia, a e psicologia, a estatística, o direito, a contestações sobre as problematizações da medicina, a pedagogia, a economia e vitalidade humana coletiva, morbidade e outros (Foucault, 2008i). Um desses saberes campo todas as mortalidade, estratégias sobre específicas as formas de conhecimento, regimes de autoridade e corresponde ao da práticas de intervenção que são desejáveis, medicina, que teve maior notoriedade a legítimas e eficazes. partir do século XVIII, com o aperfeiçoamento de instrumentos para Esses autores chamam a atenção para as condições em que esses conceitos explorar com mais exatidão o corpo humano (Ortega & Zorzanelli, 2010). foram sendo forjados por Foucault, uma Foucault (2011a, 2011b) vai vez que nasceram baseados em estudos afirmar que essa intervenção médica a históricos, específicos, não caracterizando nível biológico vai deixar na humanidade “trans-históricos”, mas que um rastro de medicalização, ou seja, sob a determinadas práticas e tutela dos saberes médicos e saberes acontecimentos. Assim, para o domínio da biológicos, uma diversidade de discursos anatomopolítica, Foucault (2008d) estudou sobre e descreveu as estratégias e os mecanismos comportamentos empregados para obter maior eficiência integram dos corpos individuais, garantindo ao medicalização, interferindo por sua vez na mesmo tempo a docilidade do sujeito. construção de instituições, sistemas de conceitos pontuavam Os mecanismos disciplinares são confeccionados, espalhados em diversas esferas da sociedade, por meio do exame, da sanção normalizadora e da vigilância. Já Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 higiene, uma condutas, são saúde, produzidos e capilar de rede limpeza, transporte, conservação, etc., até que nada escape às suas teias. Foucault (2011a) situa quatro grandes processos que vão caracterizar a 79 Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D. ______________________________________________________________________ o século XVIII. Antes disso, era um lugar aparecimento de uma autoridade médica; com fins assistenciais para pobres, um 2) o surgimento de um campo de lugar para morrer, um mecanismo de intervenção da exclusão, de conversão espiritual, menos doença; 3) introdução de um aparelho de médico. Foucault (2011c) evidencia que o medicalização coletiva: o hospital; 4) hospital ganha uma função terapêutica a introdução de partir de uma nova prática que consistia na administração médica. No primeiro caso, comparação entre os hospitais por meio de teremos um saber que expande sua “área visitas e observações sistemáticas. No de uma texto “A incorporação do hospital na questões tecnologia moderna” (2011c) vai falar mais medicina do século da medicina de 1) distinto mecanismos conhecimento” autoridade XVIII: social tornando-se a decidir relativas a uma cidade, a um bairro, criação detalhadamente de instituições e regulamentos. É uma exemplificando como que esta instituição prática da medicina vinculada ao Estado, vai mudar de função a partir da introdução exemplificada pelo pensador, com o de mecanismos disciplinares no espaço exemplo do que ocorreu na Alemanha: “A desordenado do hospital. E por fim, na criação de funcionários médicos nomeados criação de mecanismos de administração pelo governo com responsabilidade sobre médica, Foucault (2011b) vai dar como uma região, seu domínio de poder ou de exemplos, registros de dados, comparações exercício da autoridade de seu saber” estatísticas, que vão compor e endossar o (Foucault, 2008a, p. 84). campo da medicalização. Todos esses Na segunda característica vão se desse processo, elementos fazem a medicina, considerada tornar objetos da medicina o ar, a água, os uma esgotos, as construções. Intervenções na alastramento regulação seu configurando-se agora como uma prática essas social. Há, para Foucault nesse momento, das funcionamento, cidades e que tem de prática individual, alcançar totalmente características, maior dimensionadas na um desbloqueio França, como uma medicina urbana ou medicina, em que se abrem, um novo, epistemológico da medicina das coisas, como afirma Foucault (2011a). elemento, O hospital, sendo um como terceiro sistema de confinamento coletivo vai se tornar uma instituição de medicalização a partir do Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 [...] as possibilidades da anatomia patológica, da grande medicina hospitalar e dos progressos simbolizados pelos nomes de Bichat, Laennec, Bayle etc. Por conseguinte, a medicina se dedica a outros 80 Medicalização e Normalização da Sociedade ______________________________________________________________________ domínios diferentes dos da doença e que tudo que se considera como desvio ou não são regidos pela demanda do paciente. anomalias é capturado pela intervenção Esse é um velho fenômeno que faz parte das características fundamentais da médica, mesmo, como ressalta o autor, sem medicina moderna (Foucault, 2011b, p. nunca alguém ter dito que anomalia sexual 385). é uma doença. Trata-se, portanto, de observarmos que tudo que se diz referente por Esse acontecimento vai ser definido à saúde, acabou se tornando objeto de Foucault intervenção médica. Assim, se o ar está indefinida” como uma “medicalização vez que seu contaminado ou não, se a organização direcionamento ao longo dos séculos até a urbana atende a alguns critérios, os fluxos, atualidade foi se espraiando para diversos o saneamento de água etc., ampliando a espaços, embora, ressalte Foucault (2011b) intervenção autoritária da medicina nos que no século XX tentou-se delimitar mais domínios da existência individual ou o “campo da medicina”, a partir do doente, coletiva. da sua dor, dos seus sintomas, do seu malestar, circunscrevendo um conjunto de Normalização objetos corpos considerados “doentes”. Essa e medicalização dos “limitação” encontrou fissuras para escape por meio das práticas autoritárias da Ewald (1993) traça uma importante medicina, que exerce sobre o doente uma descrição do que significa esse conceito de função de autoridade. “norma” para Foucault. Trata-se, pois, de Nos cita como exemplo, os casos um elemento de ligação entre de contratação que exigem parecer médico; individualidades as políticas sistemáticas e obrigatórias de norma, screening, de localização da doença no corresponde a uma medida, ou seja, a uma conjunto da população e que não surgiram produção de medida comum. É graças à de demandas de doentes; em alguns casos norma de julgamento judiciários, em muitos modernidade, uma vez que a sociedade países solicita-se avaliações psiquiátricas. normativa interfere no funcionamento das Outro exemplo, sobre intervenção médica disciplinas “normalizando-as”. Por essa em objetos que não são da competência razão, Foucault vai dizer que não devemos médica, Foucault cita o comportamento confundir “disciplinas” e “normas”. As sexual ou a sexualidade. A esse respeito, disciplinas são formas de adestramento do Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 e segundo que as instituições. Ewald podemos A (1993), definir a 81 Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D. ______________________________________________________________________ corpo, e a norma é quem especifica o dizer que no espaço normativo não sujeito, haja partilha possível, que não haja individualizando-o, tornando-o lugar comparável. para um processo de valorização. As práticas da norma não são relativistas. O normal opõe- A norma permite abordar os desvios, se, de fato, ao anormal. Mas esta indefinidamente, cada vez mais discretos, partilha é de um gênero especial: minuciosos, e faz que ao mesmo tempo formula-se em termos de limiares e esses desvios não enclausurem ninguém limites. [...] Compreende-se que ela numa natureza, uma vez que eles, ao nunca exprimirá uma lei da natureza; individualizarem, nunca são mais do que a tão-só pode formular a pura relação expressão de uma relação, da relação do grupo consigo mesmo (Ewald, indefinidamente reconduzida de uns com 1993, p. 87). os outros (Ewald, 1993, p. 86). De acordo com Foucault (2008c), nesse jogo das normalizações disciplinares, o que é fundante não é o “normal” ou o “anormal”, mas sim a própria norma. É ela que vai dar o caráter primitivo de prescrição, estabelecendo a descrição do que é normal e do que não é, tornando-os presumíveis. Portanto, a norma é uma referência, sem se tornar modelo fixo. Ewald (1993) vai explicar ainda que a norma faz funcionar um sistema de comunicação que liga as individualidades, sem procurar uma origem ou um sujeito, “[...] manifesta antes a existência de um possível”: Foucault, no livro “Os anormais”, inicia seus cursos sobre esse tema apresentando os três primeiros elementos que se formaram ao longo dos séculos XVII e XVIII, cujos investimentos de poder se debruçaram sob a forma de instituições, disciplinas e saberes constituindo e refinando os sujeitos a serem considerados dentro do campo das “anormalidades”. Esses três elementos são: 1) o monstro humano – cujo contexto de referência é a lei, a noção jurídica. Esse elemento corresponde à figura que infringe tanto as leis da sociedade quanto as leis da natureza. 2) o indivíduo a ser corrigido – Foucault (2010a) vai dizer que seu contexto é a própria família e que essa é Do normal ao anormal, a linha é, pois, incerta. Não reenvia a nada na uma figura específica dos séculos XVII e natureza. O anormal está na norma: o XVIII) a criança masturbadora – cujo gigante tal como o anão, o idiota tal contexto é mais estreito que a família: o como o gênio. Mas isso não quer quarto, a cama, o corpo. As três figuras Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 82 Medicalização e Normalização da Sociedade ______________________________________________________________________ estiveram bem características demarcadas específicas e por Se apresenta como sendo a corrigir na saberes medida em que fracassaram todas as técnicas, todos os procedimentos, todos os determinados. Foucault nesses cursos vai dizer investimentos familiares e corriqueiros de educação pelos quais se pode tentar que o monstro é uma exceção, um duplo de corrigi-lo. animal e espécie humana, que se torna um paradoxalmente, o incorrigível, na medida problema tanto para o saber médico quanto em que é incorrigível, requer um certo para o judiciário. Essa figura é importante porque ele representa a infração à lei, às leis da natureza desvelando suas irregularidades possíveis. Logo, o monstro [...] E, no entanto, número de correções específicas em torno de si de sobreintervenções em relação às técnicas familiares e corriqueiras de educação e correção, isto é, uma nova tecnologia de reeducação. torna-se modelo de todas as discrepâncias e vai levantar a questão “Descobrir qual o Desse modo, Foucault vai situar fundo de monstruosidade que existe por essa figura como sendo um dos ancestrais trás das pequenas anomalias, dos pequenos mais próximos do indivíduo anormal do desvios, das pequenas irregularidades é o século XIX, servindo como suporte para problema que vamos encontrar ao longo de todas as instituições criadas para abrigar os todo o século XIX” (Foucault, 2010a, p. anormais. Em relação ao terceiro exemplo, 48). No segundo caso, do indivíduo a ser “o masturbador”, precisamente a criança corrigido, sua taxa de frequência é mais masturbadora (aparece no fim do século recorrente. Quem investe nesse sujeito é XVIII e início do XIX), vai encontrar um uma economia de poder exercida pela investimento de poder em forma de família e pelas instituições que lhe são microcélulas recaindo sobre o indivíduo e próximas. Assim, afirma Foucault que a seu corpo. Para Foucault (2010a) a escola, a oficina, a rua, a igreja e outras diferença entre este e os outros elementos, vão compor uma malha por onde esse é que este aparece como uma figura indivíduo passa e é capturado a fim de que universal, sejam investidos nele técnicas de correção. segredo, que é ao mesmo tempo um Contudo, ressalta Foucault (2010a, p.50), segredo universal, já que se trata de uma esse indivíduo a ser corrigido é na verdade prática que todos conhecem, contudo, não incorrigível, já que, revelada, pois fazendo carrega desse consigo segredo um um segredo compartilhado. Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 83 Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D. ______________________________________________________________________ Ele vai nos dizer que a organização que ganhará sua regularidade científica em dos saberes e das técnicas antropológicas meados de 1820 a 1830 (Foucault, 2010a). do século XIX fará desse segredo universal Na passagem do século XVIII para o XIX, a raiz para quase todos os males, Foucault (2010a) afirma que há uma privilegiando males mudança nos mecanismos de poder, com o corporais, doenças nervosas e psíquicas. advento de novas tecnologias científicas e Ou seja, configura-se uma etiologia sexual industriais, bem como o surgimento de que será suporte ou princípio de explicação políticas de governo (governamentalidade) para todos os males e doenças. Em resumo, que engendram outras concepções de Foucault nos diz com esses três exemplos Estado (Estado Liberal). Nesse ínterim, que algumas o as doenças anormal do ou século XIX é alianças entre determinados descendente dessas três figuras: o monstro, saberes acontecem, como foi o caso da o incorrigível, o onanista. Apesar de suas psiquiatria com a justiça, da medicina com especificidades, a psiquiatria e da psiquiatria e a higiene são figuras que se pública. comunicam entre si. Elas permanecem afastadas até o Foucault (2010a) assevera que é a século XIX, por conta da separação entre psiquiatria o saber responsável por “criar”, os saberes e os sistemas de poder que as “fabricar” institui. Da feita que esses sistemas de inventaria esse sujeito a partir das sutis poderes e de saberes também começam a transformações que fariam a passagem do se comunicar o entrelaçamento entre elas monstro ao anormal. Essa passagem se vai se tornando mais visível. Assim, o daria então do monstro (o bicho papão, o monstro situa-se nos regimes de saber e de exagero) poder político-judiciário, bem como na monstruosidade é dividida em pequenas história natural, que busca distinguir as anomalias). Vale lembrar ainda, que nessa espécies, os gêneros e os reinos, como passagem a psiquiatria não era um ramo reitera Foucault (2010a). Já o incorrigível especializado da medicina geral. E que situa-se inclusive no saber que está sendo o sujeito para para “anormal”. as ganhar anomalias um lugar Ela (a de constituído ao longo do século XVIII, que visibilidade, a psiquiatria recorria a alguns é o saber das técnicas pedagógicas, das princípios de estruturação e organização da técnicas de educação coletiva, de formação medicina de aptidões. E o masturbador é capturado acontecimentos (situações de saúde a nível por uma nascente biologia da sexualidade, mental). Contudo, um lugar de destaque só Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 para explicar determinados 84 Medicalização e Normalização da Sociedade ______________________________________________________________________ Nasce assim o monstro moral que, foi conseguido quando esta passou a “elaborar” discursos que explicariam pertencendo à categoria apanhado conseguia pensar. Um exemplo sobre essa decodificá-lo troca de posições de saber e autoridades, pequenas perversidades, maldades infantis, encontramos na aliança do poder médico pequenos desvios, etc. E nesse afã para com o poder judiciário quando se direciona poder existir como uma instituição de para o sujeito considerado criminoso e se saber ela psiquiatria é determinadas situações que ninguém mais nas análises precisa que vai sobre as realizar duas de codificações: 1) codificar a loucura como racionalidade”, ou “ausência de interesse”, doença; tornar patológico os discursos, os tal erros, as ilusões da loucura e no trato das pergunta como por suas apontam “condições pela jurídica, os documentos análises estudados por Foucault (2010a). fazer a sintomatologia, a A lei, para ser aplicada, exigia que nosografia, prognóstico, fichas clínicas, se soubesse se esse sujeito a ser julgado era observações. 2) codificar a loucura como louco ou não. Mas ela não possuía perigo: implantar o discurso que a doença condições de materializar e nem de pode se tornar um perigo social, portanto, é averiguar essa situação. Assim, recorre à preciso criar medidas de proteção social. psiquiatria conferindo-lhe poder de fazer Desse essa identificação. Então, o debate sobre funcionar em nome do saber médico e a esse sujeito perscruta se ao cometer um psiquiatria age como um saber sobre a crime há ou não racionalidade, ou seja, doença mental importante para a regulação “interesse”, por parte do criminoso. Se sim, da higiene pública (Foucault, 2010a). este é julgado de acordo com o código penal. modo, a proteção começa a Outro ponto de ligação importante entre saberes da medicina para o alargamento de suas práticas na sociedade A questão do ilegal e a questão do anormal, ou ainda a do criminoso e a do patológico, passam, portanto a ficar deu-se por meio da neurologia. Assim, epilepsia e os automatismos vão servir de ligadas, e isso não se dá a partir de uma suporte nova ideologia própria, nem de um psiquiátricos. aparelho estatal, mas em função de uma nesses cursos que a família vai se tornar tecnologia que caracteriza as novas regras um dos primeiros alvos de investimento da economia do poder de punir (Foucault, 2010a, p. 78). Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 dessa para todos Foucault medicalização, os sintomas destaca sobretudo, ainda no investimento feito sobre as crianças e 85 Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D. ______________________________________________________________________ adolescentes, a fim de controlar a sua num masturbação. Interessante, regularidade funcional, como princípio de diz ele, o outro sentido: a norma como funcionamento adaptado e ajustado; o discurso inicialmente sobre essas situações “normal” a que se oporá o patológico, o não é moralizante, mas de somatização e mórbido, o desorganizado, a disfunção de patologização. Ele descreve uma série (Foucault, 2010a, p. 138-139). de situações que são realizadas pelos Com esse pequeno resumo da médicos e de discursos elaborados a fim de o genealogia esboçada por Foucault sobre os causa anormais, quisemos mostrar a emergência etiológica das mais diferentes doenças. Daí desses conceitos importantes para nós, em diante com essas alianças e a como elaboração “anormalidade”, “medicalização”, e como sustentar a masturbação comportamento sexual desses ou como novos discursos a os de “norma”, resultado de “normal”, psiquiatria se atribui como tarefa percorrer foram o na direção de todas as desordens e instaura diversos, historicamente constituídos, e a “explosão sintomatológica” na sociedade que em nossa contemporaneidade se pondo em evidência, enfim, a norma, tal atualiza como destaca Foucault (2010a, p. 138): medicalizada, formadora de subjetividades constituindo procedimentos uma biopolítica adentradas num jogo que se forma na Organizando esse fenomenologicamente campo aberto, mas cientificamente modelado, a psiquiatria vai por em contato duas coisas. De um lado, ela vai introduzir efetivamente, em toda a busca da saúde e de performances ideais, capturadas cada vez biopolítica mais por empresarial tal uma como abordaremos no próximo tópico. superfície do campo que ela percorre, essa coisa que lhe era até então parcialmente Conclusões provisórias alheia, a norma, entendida como regra de conduta, como lei informal, como princípio de conformidade; a norma a que Vamos encontrar um interessante se opõe a irregularidade, a desordem, a estudo com Ortega e Zorzanelli (2010) esquisitice, sobre a excentricidade, o a visibilidade do corpo pela desnivelamento, a discrepância. É isso que sociedade, que se institui por meio das ela introduz pela explosão do campo práticas e saberes médicos. Tomando como sintomatológico. Mas sua ancoragem na medicina orgânica ou funcional, por referência temporal os séculos descritos no intermédio da neurologia, permite-lhe tópico anterior, principalmente o século chamar também a ela a norma entendida XVIII. Esses autores esboçam um breve Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 86 Medicalização e Normalização da Sociedade ______________________________________________________________________ resumo do surgimento da medicina na autores: “Os métodos de visualização se esfera da visibilidade, a partir do advento baseiam na crença de que o objeto de artefatos, representado está diretamente acessado possibilitando o escrutínio do corpo e como ele realmente é.”, fazendo uma alavancando O explícita relação entre “ver” e “realidade”, desbravamento da viscerabilidade do nosso como se a realidade fosse algo a ser corpo foi uma condição imprescindível “descoberta” ou “desvelada”, e a visão a desde maneira mais eloquente de realizar essa novas tecnologias os o e saberes século médicos. XVIII para o desenvolvimento das explorações médicas, “inteligibilidade”. Essa passagem para o território da que culminaram nos alcances da medicina visão deu-se segundo esses autores quando na contemporaneidade. Esses autores destacam que a visão a pesquisa médica, que durante anos na baseava-se na dedução morfológica e na discursos comparação com outros animais, tem no científicos privilégios capazes de situá-los método da observação outro caminho a no centro dos jogos de verdade. No campo trilhar. Primeiro que, para isso, uma da medicina esse acontecimento ganhou mudança de investimento sobre o corpo e uma se sobre a vida se fizeram importantes. Cresce estendendo a todos os ramos que lhe a preocupação com o prolongamento da compõem. É claro que esse procedimento é vida, evitando-se as doenças. O que já herdeiro das havia sido apontado por Foucault em ciências naturais que sempre tiveram a Vigiar e Punir (2008d) e História da “visão” como elemento crucial para a Sexualidade I: vontade de saber (2007) comprovação da verdade. As ciências quando a vida passa a ser objetivada por biológicas começaram a imitar os métodos investimentos políticos. Contudo, apesar de dissecação, estratificação, organização e do alcance das máquinas ser maior do que outros que compunham as “vantagens os dos sentidos, ressaltam os autores que diagnósticas de ver”. mesmo com o uso das novas tecnologias ou uma racionalidade visibilidade possibilitou dimensão das pautada aos extraordinária práticas científicas Diante dessa configuração Ortega e Zorzanelli (2010, p.17) se propõem para quantificação/verificação do corpo, os médicos continuaram a usar das inferências analisar o papel das tecnologias de para visualização médica na construção social e Assim, “um olhar livre de interpretação é cultural das doenças. Assim, declaram os uma ficção que oculta a adaptação às Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 justificar evidências “médicas”. 87 Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D. ______________________________________________________________________ estabelecidas com os problemas causados pelas situações socialmente desde longa data” (Ortega & em que a descrição anatômica-fisiológica Zorzanelli, 2010, p.38). não condições visuais Essa observação é importante para consegue encontrar registros no cérebro. pensarmos em como o fascínio pela Esse campo tem um ponto de gatilho, visibilidade nos captura, a ponto de sobretudo nas décadas de 1950 e 1960, sustentar determinados discursos no campo quando os pesquisadores passaram a da verdade oferecendo sem pestanejar a utilizar scans por tomografia esses discursos credibilidade que vão ser computadorizada – que culminou nos anos sancionadas por sua vez, culturalmente. 1970 no uso clínico dessas tecnologias. Em [...] A ressonância magnética funcional “O nascimento da clínica” tornou possível acompanhar, praticamente encontramos com Foucault (2004b) uma em tempo real, a ativação cerebral, ou seja, arqueologia do olhar médico sobre a vida, precisamente sobre o corpo e para que áreas o sangue se desloca. O suas conceito de base para as tecnologias de alterações morfisiológicas e patológicas. O imageamento cerebral desenvolvidas mais “olhar” seja ele entendido como um recentemente, como a ressonância magnética funcional e a tomografia por recurso de percepção visual, seja como emissão de prósitrons, é que uma mudança uma produção de saber, foi fundante para a no fluxo sanguíneo regional pode refletir a hegemonia da medicina no campo da atividade neural e as áreas desenvolvidas cientificidade: em determinada função ou tarefa (Ortega “o olho torna-se o & Zorzanelli, 2010, p. 50, grifo do autor). depositário e a fonte da clareza; tem o poder de trazer à luz uma verdade que ele só recebe à medida que lhe deu a luz” (Foucault, 2004b, p.10). Da descoberta do Raio-X a outros instrumentos para a visualização interior do corpo, a abrangência dessas práticas compõe uma “tecnologização do diagnóstico” que vai atingir o campo da doença mental (Ortega & Zorzanelli, 2010). É por meio da neurologia, preferencialmente habituada ao registro imagético do corpo “fora de Essas visibilidades na saúde formam um novo campo do cuidado de si e na gestão dos corpos disciplinados e na regulação da população. Para Ewald (1993), com a economia de poder voltando-se para o corpo coletivo, cria-se um novo dispositivo chamado “segurança”, que vai marcar a passagem então da microfísica para o plano biopolítico, tendo no conceito de “risco” um homólogo do controle” que a medicina vai tentar lidar Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 88 Medicalização e Normalização da Sociedade ______________________________________________________________________ que era a “norma” para as disciplinas. acumulação de fatos, de dados que se Portanto, amontoam desesperadamente. Porque, na medida em que a rede habitual dos O que é um risco? Na linguagem corrente, o termo é tomado como sinônimo de perigo, de acontecimento funesto que pode significados foi suspensa, todos os fatos, até os que a instantes podiam parecer os suceder a qualquer um; designa uma mais insignificantes, devem ser notados, ameaça objectiva. Na segurança, o termo sem hierarquia e nem privilégio”. de risco não designa nem um acontecimento nem mesmo um tipo de acontecimento da realidade – os acontecimentos “funestos” – mas um Nessa processualidade das multiplicidades o “número” torna-se um elemento importante, porque ocupa o lugar mundo de tratamento específico de certos do sentido, ou seja, ele “faz sentido por si acontecimentos que podem suceder a um mesmo. A noção de massa (de população, grupo de indivíduos, ou mais exatamente a de coletividade) toma o lugar da natureza valores ou de essência” (Ewald, 1993, p. 91). ou capitais possuídos ou representados por uma coletividade de indivíduos, ou seja, por uma população. Assim, de acordo com os autores, os fatos Em si mesmo, nada é um risco, não existe se organizam por categorias, de acordo risco na realidade. Inversamente, tudo com alguns nomes: “nascimento, morte, pode constituir um risco, tudo depende da acidente, maneira como se analisa o perigo, como se preocupando-se apenas com os efeitos dos considera o acontecimento (Ewald, 1993, p. 88-89). suicídio, avaliação”, riscos, sobrepujando as causas nessa racionalidade das probabilidades. Foucault E sobre essa noção de risco uma (2008c) vem falar das racionalidade é conjecturada formalizando governamentalidades liberais que criam o cálculo das probabilidades, em que essa racionalidade, ampliando os campos diversos elementos começam a entrar num de exercício das tecnologias de poder. Para jogo de lógica estatística a fim de se ele, nos dispositivos de segurança a calcular os aparentes “riscos”. Para Ewald liberdade é elemento fundamental dessas (1993, p. 90) tem-se um cálculo das tecnologias de poder das quais temos regularidades em que cada evento ocorre e falado ao longo do texto. Primeiro que a um cálculo das possibilidades de novas ideia ou como queiram a ideologia da ocorrências. processo liberdade, foi quem deu condições de “pura desenvolvimento dessas formas modernas transforma factualidade”: Esse os duplo eventos “Reduz a em uma Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 pura capitalistas de economia. Assim, a 89 Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D. ______________________________________________________________________ liberdade, nos afirma Foucault (2008c, p. acaso e das probabilidades, como forma de 63-64) é ao mesmo tempo uma ideologia e intervir na população, penetrá-la: técnica de governo: A população é, portanto, tudo o que vai se estender do arraigamento biológico pela Um dispositivo de segurança só poderá espécie à superfície de contato oferecida funcionar bem, [...] justamente se lhe for pelo público. Da espécie ao público: temos dado certa coisa que é a liberdade, no sentido moderno [que essa aí todo um campo de novas realidades, palavra] novas realidade no sentido de que são, para adquire no século XVIII: não mais as os mecanismos de poder, os elementos franquias e os privilégios vinculados a uma pertinentes, o espaço pertinente no interior pessoa, mas a possibilidade de movimento, do qual e a propósito do qual se deve agir de deslocamento, processo de circulação (Foucault, 2008c, p. 99). tanto de pessoas como das coisas. [...] um poder que se pensa como regulação que só A medicalização encontra nessa pode se efetuar através de e apoiando-se na racionalidade probabilística um ponto de liberdade de cada um. encontro para sua ancoragem: “Governar o Desse modo, esse conceito de liberdade para Foucault extrapola a futuro traz a lógica da gestão do risco para o presente em deslizamento com o perigo a concepção ideológica porque ela atua evitar fundamentalmente como uma tecnologia sociedade daquilo que teme e, portanto, de poder, numa gestão governamental cujo visa a se prevenir como tentativa de saber predominante é a economia política. controle biologizante e político” (Galindo, Essa economia política a partir do século Lemos & Rodrigues, 2014, p. 258). Essa XVIII vai pensar funcionamento os e para defender e assegurar a colocar em governamentalidade dispositivos de espaços/tempos de experiências subjetivas cria outros segurança que atuem no conjunto da cada população, dessa forma, um modo de lidar sociabilidade com as multiplicidades: crescimento e preocupação com o controle e regulação da organização das cidades, circulação das vida está pautada em um dos aspectos da pessoas, lógica médica. Assim, se a noção de risco mortalidades, mercadorias, fluxos, natalidade, doenças vez mais marcadas medicalizada, por onde uma a etc. impõe à sociedade um “medo” do acaso, (Foucault, 2008c). Essas multiplicidades do futuro, a medicalização é aceita ou vão ser geridas por uma racionalização do naturalizada em diversos aspectos, porque entra Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 nessa lógica da segurança, 90 Medicalização e Normalização da Sociedade ______________________________________________________________________ convencendo as pessoas de que o melhor é medicalizante, mantido pelo pagamento fazer um investimento em si mesmas, em regular de taxas para sua manutenção. sua saúde, aderindo às diversas formas de Ressaltam “seguros”. preocupação com o desenvolvimento das Biopolítica empresarial e ainda autoras que crianças, gerindo e desenvolvimento em ciclos, gera um transformando-os em mercadorias a serem capital a regular e administrar, operando ao privatizados, tal como sugerem as autoras: mesmo eventos da vida tempo “segurança A privatização da vida como biocapital faz parte de toda uma economia política que entra em cena por meio do cálculo da classificação a governamentalidade neoliberal, portanto, os a as pela desse investimentos numa prevenção” numa e “docilização pela educação”. Ou seja, temos aí, as duas tecnologias de poder, virtualidade, baseado em amostras e em disciplinar e biopolítica, operando indicadores genéticos utilizados como um simultaneamente na gestão da vida. mapa da gestão da vida, do fazer viver São duas formas de poder que biopolítico, juntamente com a ampliação capturam a vida por meio de discursos e de habilidades futuras e produtivas da disciplina usada por antecipação, em saberes que põem em funcionamento uma termos de controle dos corpos no tempo e rede entrecruzada de forças, onde no espaço (Galindo, Lemos & Rodrigues, transversalmente lhe tangenciam práticas 2014, p. 256). liberais que realizam um controle social utilitarista tanto no plano coletivo quanto Nesse mesmo trabalho, Galindo, Lemos e Rodrigues (2014) discorrem sobre no microfísico, individual. De acordo Lemos, Cruz e Souza (2014, p. 09): o mercado privado que se confeccionou em torno da coleta das células-tronco do [...] é relevante problematizar a gestão cordão umbilical. O material coletado é utilitarista dos corpos individuais e em transformado em um capital de risco grupo no presente, materializada de forma biológico, pondo em circulação discursos sobre a necessidade futura de crianças cada vez mais linear e determinista, em termos de medicalização da educação. Estes procedimentos reducionistas da virem a ter algum problema de saúde. biomedicina são intensificados na visão da Criam-se escola argumentos em torno da probabilidade do aparecimento de doenças que nem se quer existem e a promessa da participação do cliente nesse controle Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 e dos processos de ensino- aprendizagem, limitadas às neurociências, aos aspectos neurobiológicos e comportamentais apenas. 91 Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D. ______________________________________________________________________ A objetivação da educação por age desde a esfera individual (marketing de práticas medicalizantes é um assunto que si mesmo, empresário de si) quanto no vem sido trabalhado desde a década de coletivo (conquista de novos mercados a 1980 (Collares & Moysés, 1982, 1992) e se todo tempo). No que tange a educação, ele expõe em pesquisas na atualidade (Galindo cita “as formas de controle contínuo, a et al, 2014, Facci & Souza, 2014, Moyses avaliação contínua, e a ação da formação & Collares, 2014, Souza, 2014, 2009, permanente sobre a escola, o abandono 2005, 2000), por conta da enxurrada de correspondente de qualquer pesquisa na procedimentos, fármacos, Universidade, a introdução da ‘empresa’ discursos, que operam nessa racionalidade em todos os níveis de escolaridade” biomedicalizante, tendo na esfera da (Deleuze, 2008, p. 225). A esse respeito educação, ressaltam Lemos, Cruz e Souza (2014, p. tecnologias, principalmente a educação 14): básica, seu maior expoente. A nesses medicalização domínios de se generaliza poder e criam performances que são geridas por essas formas de controle pautadas por discursos de saúde, engendrados em enunciações O marketing escolar e empresarial modulará cada vez mais detalhadamente a vida e os pequenos atos cotidianos como investimentos e marketing. Tudo pode se tornar marca e signo de sucesso pessoal e proferidas em nome da paz e da segurança. relacional Contudo, estes são pautados pela lógica do crescente, que comercializa até mesmo os mercado uma vez que são ideias vendidas sentimentos, as amizades, a docência, a na educação, no trabalho e na saúde. Para Deleuze (2008, p. 223) essa “sociedade de controle” em que vivemos, produz um homem “ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo”, contudo, endividado, porque no capitalismo de nossa atualidade, esse se volta para o produto, para sua venda, transformando tudo em produtos venais por meio do marketing. Essa noção de marketing opera educação e nome de familiar e um mercado religiosa, a performance física e a cultural. Uma das consequências advindas desse tipo de racionalidade da vida, guiadas pela lógica mercadológica e medicalizante, segundo estes autores é o silenciamento das diferenças. Isto se dá pelo discurso de uma “educação para a paz”, que está se materializando por meio de “[...] medidas médico-psicológicas e as programações de risco de caráter como ferramenta de controle social, que Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 92 Medicalização e Normalização da Sociedade ______________________________________________________________________ cognitivo-comportamentais ou ainda, as com teorias utilizando das relações humanas, os elementos aos como quais marco estamos inicial para psicotrópicos, os exercícios físicos e as problematizar as práticas medicalizantes aulas de arte e lazer [...]” (Lemos, Cruz & que por meio de desníveis discursivos Souza, 2014, p. 14). compõem o currículo de psicologia e que Esses acontecimentos despertam atuam como filtro silenciador das interesse e nos guiam na construção desse diferenças. A literatura levantada sobre a trabalho doutoral e nos convida a pensar formação em psicologia no Brasil, por que por mais que não haja uma relação de meio das diferentes perspectivas as quais causalidade entre esses elementos e as foram trabalhadas, práticas produzidas nos documentos que condições históricas pelas quais teríamos compõem o currículo de formação em que nos debruçar a fim de que fosse psicologia, contudo, na malha que se forma possível transitar pelas histórias contadas entre esses acontecimentos, as práticas em sobre o campo de tensões formadas por funcionamento operadas por esse currículo diferentes grupos, sob o registro de não são neutras, agenciam forças políticas, diferentes oriundas da produção e disputa de saberes almejando adentrar nas lutas empreendidas que intencionam seu locus nesse currículo. para compor um projeto de sociedade. nos indicaram as posicionamentos teóricos, Desse modo, como assinala Veyne (2008, p. 248), é preciso estudar as práticas não Referências como uma “instância misteriosa, um subsolo da história, um motor oculto [...] Existem regras estritas que sustentam as práticas [...] que é uma certa política” Logo, por meio dessa arqueogenealogia que se pretende desenvolver nessa pesquisa, busca-se pela raridade desse acontecimento por meio da interpelação das práticas que o produzem, ou seja, dando visibilidade as objetivações de práticas determinadas historicamente. Os operados conceituais que foram apresentados nessa seção nos ajudaram Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 Aquino, J. G. (2013). A difusão do pensamento de Michel Foucault na educação brasileira: um itinerário bibliográfico. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, 18(53), abr.-jun. Recuperado de https://www.scielo.br/scielo.php?pid= S141324782013000200004&script=sci_abstr act&tlng=pt#:~:text=O%20presente% 20artigo%20tem%20o,per%C3%ADo do%20entre%201990%20e%202012. Boarini, M. L. (2007). A formação do psicólogo. Psicologia em Estudo, Maringá, 12(2), 443-444, maio/ago. Recuperado de 93 Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D. ______________________________________________________________________ https://www.scielo.br/scielo.php?script =sci_arttext&pid=S141373722007000200027&nrm=iso&tlng= pt Camargo Jr. K. R. de. (2007). As armadilhas da “concepção positiva de saúde”. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 1(76), 63-76. 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Flavia Cristina Silveira Lemos é professora associada II em psicologia social/UFPA, bolsista de produtividade em pesquisa CNPQ PQ2. Psicóloga-UNESP, mestre em Psicologia Social-UNESP e doutora em História Cultural-UNESP. E-mail: [email protected] ORCID: http://orcid.org/0000-0002-66010653 Geise do Socorro Lima Gomes é psicóloga pela UFPA, mestre em Psicologia (UFPA) e também doutora em Educação (UFPA). E-mail: [email protected] 96 Medicalização e Normalização da Sociedade ______________________________________________________________________ ORCID: 9059-8568 https://orcid.org/0000-0001- Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira é psicólogo ( UFPA), mestre e doutor em Saúde do trabalhador na ENSP-FIOCRUZ. É também coordenador do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFPA e professor associado II de Psicologia Social do trabalho - UFPA. E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000-00021969-380X Dolores Cristina Gomes Galindo é psicóloga (UFPE), mestre e doutora em Psicologia Social - PUC-SP e professora associada II de Psicologia Social da UFMT. É também professora no Programa de Pós-graduação de Estudos da Cultura Contemporânea-UFMT. E-mail: [email protected] ORCID: http:orcid.org0000-0003-20713967 Enviado em: 02/06/19– Aceito em: 07/07/20 Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 97