Luciane Pereira da Silva Navarro
(Organizadora)
Bibliografia: História da Mídia e
da Imprensa
Atena Editora
2019
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Bibliografia [recurso eletrônico] : história da mídia e da imprensa /
Organizadora Luciane Pereira da Silva Navarro. – Ponta Grossa,
PR: Atena Editora, 2019.
Formato: PDF
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Modo de acesso: World Wide Web.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7247-605-8
DOI 10.22533/at.ed.058190309
1. Jornalismo – Bibliografia. I. Navarro, Luciane Pereira da Silva.
CDD 016.0704495
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422
Atena Editora
Ponta Grossa – Paraná - Brasil
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APRESENTAÇÃO
As páginas que você está prestes a ler vão conduzi-lo para além da mera
constatação histórica sobre os caminhos percorridos pela imprensa nos últimos
dois séculos. Os textos que compõem esta obra elástica vão levá-lo à compreensão
singular de particularidades sobre o desenvolvimento da comunicação e do jornalismo
sob as perspectivas política, cultural, social e histórica.
Ao percorrer os capítulos, especialmente no primeiro e último, você, leitor,
encontrará textos que, habilmente construídos, suscitam a reflexão sobre as práticas
comunicacionais em diferentes contextos políticos desde o Estado Novo, a Ditadura
Militar até a crise recente enfrentada pelo Brasil e que culminou com o impeachment
de Dilma Rousseff. A amplitude temporal dos textos torna perceptível a evolução do
papel dos meios de comunicação, tradicionais e alternativos, ao longo do tempo e
através da evolução tecnológica. No capítulo final, em especial, a política é o pano de
fundo de grande parte dos textos que, ao cabo, vão ajudá-lo a compreender tramas
históricas que conduziram o jornalismo ao seu status atual, uma prática profissional
em rápida e constante transformação.
As aproximações e afastamentos entre diferentes linguagens, formatos
jornalísticos e práticas socioculturais estão organizadas no segundo capítulo: Mídia,
Arte e Memória. Os artigos selecionados abordam desde quadrinhos, ilustração,
documentarismo e street papers até jornalismo literário. Da trama tecida entre os
títulos desta seção emana a compreensão do valor memorialístico do jornalismo,
prática diária de registro da realidade e de escuta dos sujeitos, que contribui para a
preservação da memória social.
Luciane Pereira da Silva Navarro
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1 ................................................................................................................ 1
MÍDIA IMPRESSA, COMUNICAÇÃO E HISTÓRIA: BREVES CONSIDERAÇÕES E
APROXIMAÇÕES
Giovana Montes Celinski
Ivania Skura
DOI 10.22533/at.ed.0581903091
CAPÍTULO 2 .............................................................................................................. 11
OS CEM ANOS DA IMPRENSA NO BRASIL: A COMEMORAÇÃO ATRAVÉS DA
EXPOSIÇÃO E DOS CATÁLOGOS DO IHGB
Alvaro Daniel Costa
DOI 10.22533/at.ed.0581903092
CAPÍTULO 3 .............................................................................................................. 23
A HISTÓRIA DA TV BRASIL ENCONTRANDO A SAÚDE: UM ESTUDO DE CASO
Vitor Pereira de Almeida
Iluska Maria da Silva Coutinho
DOI 10.22533/at.ed.0581903093
CAPÍTULO 4 .............................................................................................................. 37
ASPECTOS DA HISTÓRIA DO JORNALISMO ESPORTIVO
Thalita Raphaela Neves de Oliveira
DOI 10.22533/at.ed.0581903094
CAPÍTULO 5 .............................................................................................................. 50
RADIOJORNALISMO NO BRASIL: UMA ANÁLISE DA EVOLUÇÃO CURRICULAR
Lourival da Cruz Galvão Júnior
DOI 10.22533/at.ed.0581903095
CAPÍTULO 6 .............................................................................................................. 62
COMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO: DAS TIC AOS DISPOSITIVOS MÓVEIS
Ana Graciela M. F. da Fonseca Voltolini
José Serafim Bertoloto
André Galvan da Silveira
Ed Wilson Rodrigues Silva Júnior
Lucinete Ornagui De Oliveira Nakamura
Paula Viviana Queiroz Dantas
DOI 10.22533/at.ed.0581903096
CAPÍTULO 7 .............................................................................................................. 74
O SURGIMENTO DA IMPRENSA EM MATO GROSSO E EM MATO GROSSO DO
SUL
Danusa Santana Andrade
DOI 10.22533/at.ed.0581903097
SUMÁRIO
CAPÍTULO 8 .............................................................................................................. 85
DESENVOLVIMENTO E DIFUSÃO DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS A PARTIR
DE JORNAIS ESTADUNIDENSES DO SÉCULO XIX
Juliana de Kássia de Oliveira Angelim
DOI 10.22533/at.ed.0581903098
CAPÍTULO 9 .............................................................................................................. 97
DA ILUSTRAÇÃO À TELA DA TV: A EVOLUÇÃO DA EXPRESSÃO ARTÍSTICA NAS
REVISTAS BRASILEIRAS
Talita Souza Magnolo
DOI 10.22533/at.ed.0581903099
CAPÍTULO 10 .......................................................................................................... 114
CONTRIBUIÇÕES DO JORNALISMO LITERÁRIO PARA A CONSTRUÇÃO DE PÓSMEMÓRIAS NA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA NA ÁFRICA DO SÉCULO XX
Flávia Arruda Rodrigues
DOI 10.22533/at.ed.05819030910
CAPÍTULO 11 .......................................................................................................... 123
O DOCUMENTÁRIO XICO STOCKINGER COMO LUGAR DE MEMÓRIA
Alini Hammerschmitt
DOI 10.22533/at.ed.05819030911
CAPÍTULO 12 .......................................................................................................... 132
JORNALISMO NA ERA DOS TESTEMUNHOS: UMA CHANCE DE APRENDER COM
O CINEMA
Cristine Gerk Pinto Carneiro
DOI 10.22533/at.ed.05819030912
CAPÍTULO 13 .......................................................................................................... 145
OS STREET PAPERS COMO INSTRUMENTOS DE RESGATE DO CIDADÃO EM
VULNERABILIDADE SOCIAL: ESTUDO DE CASO DA REVISTA OCAS”
Franklin Larrubia Valverde
Marília Gomes Ghizzi Godoy
Rosemari Fagá Viégas
DOI 10.22533/at.ed.05819030913
CAPÍTULO 14 .......................................................................................................... 156
CRIAÇÃO DA PRIMEIRA TV EDUCATIVA DO BRASIL - A IMPLANTAÇÃO DA TV
UNIVERSITÁRIA, CANAL 11: EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E AS RELAÇÕES DE
PODER
Maria Clara de Azevêdo Angeiras
DOI 10.22533/at.ed.05819030914
SUMÁRIO
CAPÍTULO 15 .......................................................................................................... 169
REPRESENTAÇÃO SOCIAL DE PODER E REBELDIA NO JORNALISMO IMPRESSO
NO COMEÇO DO SÉCULO XX – LITERATURA E ANARQUISMO EM PERSPECTIVA
HISTORIOGRÁFICA
Manuel Marquez Viscaíno Jr
DOI 10.22533/at.ed.05819030915
CAPÍTULO 16 .......................................................................................................... 183
CORRESPONDENTES BRASILEIROS NA SEGUNDA GUERRA E A SAÍDA PARA
TRÊS TIPOS DE CENSURA
Rosamary Esquenazi
DOI 10.22533/at.ed.05819030916
CAPÍTULO 17 .......................................................................................................... 192
IMPRENSA ALTERNATIVA E NEOPENTECOSTALISMO: ESTRATÉGIAS PARA UM
MOMENTO DE CRISE POLÍTICA
Matheus Lobo Pismel
DOI 10.22533/at.ed.05819030917
CAPÍTULO 18 .......................................................................................................... 202
PORTFÓLIO DE ORLANDO BRITO: O FIM DA ERA DILMA NA REVISTA PIAUÍ
André Melo Mendes
Mírian Sousa Alves
DOI 10.22533/at.ed.05819030918
SOBRE A ORGANIZADORA................................................................................... 215
ÍNDICE REMISSIVO ................................................................................................ 216
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1
doi
MÍDIA IMPRESSA, COMUNICAÇÃO E HISTÓRIA: BREVES
CONSIDERAÇÕES E APROXIMAÇÕES
Giovana Montes Celinski
Universidade Tuiuti do Paraná (UTP)
Curitiba - Paraná
Ivania Skura
Universidade Tuiuti do Paraná (UTP)
Curitiba - Paraná
RESUMO: São tecidas reflexões que abordam
a pesquisa da mídia impressa aproximando
noções da História e da Comunicação Social
para apontar alguns caminhos teóricos e
metodológicos. Abordamos brevemente a
história da imprensa, o redimensionamento
da relação entre História e fontes de pesquisa
proposto pela Escola dos Annales, indicamos
alguns nortes para os primeiros contatos
com periódicos, assim como apresentamos
como via metodológica a Análise de
Conteúdo de Laurence Bardin e a perspectiva
de representações de Roger Chartier.
Destacamos a importância de considerar os
amplos contextos e especificidades de cada
mídia impressa, assim como seus conteúdos,
textos e recursos visuais. Ao considerar a lida
com o corpus de análise segundo um rigor
conceitual e metodológico, apontamos para o
cuidado de não conceber as conclusões como
integrais ou únicas, já que a leitura dependerá
diretamente das necessidades que a empiria
costuma apontar e do enlace de elementos que
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
constituem o olhar que se dá à investigação.
PALAVRAS-CHAVE: Imprensa. Escola dos
Annales. Análise de conteúdo. Periódicos.
PRINTED MEDIA, COMMUNICATION AND
HISTORY: BRIEF CONSIDERATIONS AND
APPROACHES
ABSTRACT: Reflections on the research of the
printed media are brought together, bringing
notions of History and Social Communication to
point out some theoretical and methodological
paths. We briefly discuss the history of the press,
the resizing of the relationship between History
and sources of research proposed by the School
of Annales, we have indicated some norms for
the first contact with periodicals, as well as
we present as a methodological approach the
Content Analysis of Laurence Bardin and the
perspective of representations of Roger Chartier.
We emphasize the importance of considering
the broad contexts and specificities of each
printed media, as well as its contents, texts
and visual resources. We also emphasize the
importance of deal with the corpus of analysis
according to a conceptual and methodological
rigor, and we point to the care not to conceive
of the conclusions as integral or unique, since
the reading will depend directly on the needs
that the empirical usually points and the link of
elements that constitute the look of research.
Capítulo 1
1
KEYWORDS: Press. School of Annales. Content analysis. Newspapers
1 | INTRODUÇÃO
Este texto traz algumas reflexões sobre Mídia impressa, História e Comunicação
Social, tendo como norte considerações sobre o uso de periódicos como objeto e
fonte de investigação. São feitas considerações por uma dimensão que contempla
caminhos de investigação que se apoiam em bases referenciais, mas são, também,
bastante pautados pela leitura pessoal, pelo enlace de elementos constitutivos do
olhar de quem pesquisa.
Uma breve história da imprensa é trazida, assim como é explorado o cenário da
Nova História, inaugurado pela Escola dos Annales, para apontar a legitimidade de
documentos da mídia no uso da pesquisa em História e em campos de conhecimento
correlatos, como é o caso da Comunicação.
Estreitando o olhar para as representações em Chartier como balizadoras, um
primeiro caminho para aproximação com as fontes da mídia impressa que originam
inferências e considerações da pesquisa, é indicado pelas aproximações com a
Análise de Conteúdo de Laurence Bardin (2011). São destacados, também, alguns
indicativos que permitem dar início a uma análise que se aproxima das representações
confrontando texto e contexto.
O estudo da mídia impressa se mostra de grande relevância nos campos da
Comunicação e da História, pois reflete em suas páginas as interações e configurações
de determinada sociedade, assim como a cultura de uma época. Ao considerar a
presença desses veículos no cotidiano, a técnica de Análise de Conteúdo como
possibilidade metodológica se mostra pertinente, pois auxilia na categorização dos
dados e no tratamento das informações coletadas, favorecendo o desenvolvimento
de interpretações referenciais que auxiliem na compreensão do periódico analisado.
2 | DE ONDE PARTIMOS
Para iniciar a discussão sobre mídia impressa, é pertinente elucidar que a
imprensa só alcançou as dimensões pelas quais hoje a identificamos no fim do século
XIX, mas já no século XV, com a invenção do tipo móvel de Gutenberg, intensificou a
divulgação do saber com suporte na impressão de livros, revistas, jornais e panfletos
(SILVA; FRANCO, 2010).
O desenvolvimento da impressão possibilitou a reprodução precisa de
determinada obra em centenas e até milhares de cópias (DEFLEUR; BALLROKEACH,
1993). Johann Gutenberg criou sua invenção a partir de uma grande prensa de uvas
modificada. O inventor concretizou sua ideia ao produzir moldes de aço para cada
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 1
2
letra, os quais poderiam ser utilizados repetidamente, alinhados em uma bandeja
com a finalidade de formar palavras e frases. Ao molhá-los na tinta e pressioná-los
sobre o papel, obtinha-se uma imagem bastante nítida, “[...] não havia erros como
os cometidos comumente nas cópias à mão” (DEFLEUR; BALL-ROKEACH, 1993, p.
38).
A Bíblia foi o primeiro projeto desenvolvido por Gutenberg. Pela primeira vez as
Escrituras Sagradas estavam disponíveis em outros idiomas, não apenas no latim.
Desta forma, o surgimento da prensa possibilitou a difusão da alfabetização, pois
se expandiu a disponibilidade de livros em diversas línguas. As pessoas comuns
passaram a ter acesso a conteúdos e conhecimentos antes restritos a uma minoria
alfabetizada (DEFLEUR; BALL-ROKEACH, 1993).
A criação da prensa de Gutenberg possibilitou o posterior desenvolvimento
de mídias noticiosas impressas. De acordo com DeFleur e Ball-Rokeach (1993), o
primeiro veículo verdadeiro de comunicação de massa surgiu sob o formato de “jornal
de tostão” na década de 1830, em Nova Iorque. Vendido a preços baixos para a
classe média e trabalhadora, o jornal de tostão foi um sucesso e logo se disseminou
ao redor do mundo.
Os novos meios de comunicação de massa – livros, jornais, revistas – trouxeram
transformações importantes para a sociedade e para a comunicação humana
no fim do século XIX. Esses veículos noticiosos – os periódicos - representavam
novas formas de compreensão da realidade, ao considerar a rapidez de difusão de
informações e a potencialidade de registro e de preservação da memória (DEFLEUR;
BALLROKEACH, 1993).
A Comunicação Social, ao debruçar-se sobre periódicos para compreender
determinados fenômenos sociais, se coloca como campo interdisciplinar estratégico
para a compreensão da contemporaneidade (CRUZ; PEIXOTO, 2007; SILVA;
FRANCO, 2010), mas é na História que a investigação com a mídia impressa adquire
legitimidade, por meio da proposta de compreensão do passado, da vida humana e
suas complexidades inaugurada pelo movimento da escola dos Annales (Os Annales
d’Histoire Économique et Sociale (1929)), revista acadêmica francesa que, no intuito
de problematizar as perspectivas hegemônicas do período, difundiu uma nova
abordagem interdisciplinar da História. Notoriamente reconhecida sobretudo a partir
da sua terceira geração, na década de 1970, destacou-se a proposta da inserção de
novos problemas, novas abordagens e novos objetos, dão lugar a uma nova perspectiva
historiográfica (LE GOFF; NORA, 1976a, 1976b, 1976c), redimensionando a relação
entre História e fontes de pesquisa, uma vez que a confluência desta com outras
ciências possibilitou olhar para novos materiais com possibilidades de abordagem. A
escola dos Annales pode ser considerada, assim, como um movimento de historiadores
franceses vanguardistas que visavam modificar os paradigmas da chamada História
tradicional, autoproclamada como a Nova História, “abrindo a disciplina aos olhares e
teorias de outros lugares de conhecimento, ampliando o próprio domínio da História”
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 1
3
(BARBOSA, 2014, p. 194).
No movimento dos Annales expressaram-se inquietudes e experiências de um
novo exercício histórico, com base na proposição de pesquisa sobre sujeitos e objetos
antes tais como mulher e família, infância e educação, livro e leitura, entre outros.
Ao tratar do cotidiano e das contradições da história humana em um movimento
desenraizado da noção positivista (RIBEIRO; SILVA; SILVA, 2014; BURKE, 1997;
LE GOFF, 1990), as fontes passaram a ser ampliadas, de modo que se valoriza,
agora, aquilo que o historiador enxerga como passível de análise, compreensão e
interpretação (CAVALCANTE, 2002; SILVA; FRANCO, 2010; RIBEIRO; SILVA; SILVA,
2014).
A relação entre História e fontes de pesquisa foi redimensionada quando a
confluência desta com outras ciências possibilitou esse olhar para novos materiais
com possibilidades de serem abordados. Esta nova escola teórica mostrou-se como
decisiva não só para a História, mas também para outros campos de saberes, incluindo
a Comunicação, “em função de dois postulados centrais: a percepção da importância
dos diálogos disciplinares, reconhecendo a necessidade de aproximação com os
bons vizinhos da História, e a vinculação da pesquisa histórica às preocupações do
presente” (BARBOSA, 2014, p. 192). Explica a autora que, gradualmente, substitui-se
a História que se preocupa com fatos isolados para, cada vez mais, se compreender
aspectos coletivos e sociais.
Nesta direção,
[...] observa-se, cada vez mais, a influência das abordagens culturais, das quais
os estudos de Roger Chartier, sobre práticas culturais compartilhadas por grupos
que fazem uso e se apropriam dos produtos culturais, são exemplos importantes,
sobretudo para os estudos da comunicação, cujas análises inauguram a
preocupação de uma história cultural a partir da compreensão das práticas
produzidas por aqueles que partilham um mundo também cultural. Um mundo que
é desvendado não só por práticas, mas nas representações que são produzidas
a partir das apropriações que cada ator cultural pode realizar ao reconstruir, pelas
práticas, os textos que fazem parte do seu mundo (BARBOSA, 2014, p. 197-198).
Determinado texto é sempre produzido por um setor social e, por isso, não pode
corresponder fielmente à realidade, mas a uma representação (CHARTIER, 1990). As
representações, na visão de Chartier (1991), constituem-se como formas de classificar
e de perceber, como instituições sociais que denotam divisões da organização social
e práticas que constroem o próprio mundo social. “As representações não são simples
imagens, verídicas ou enganosas, do mundo social. Elas têm uma energia própria que
persuade seus leitores ou seus espectadores que o real corresponde efetivamente ao
que elas dizem ou mostram” (CHARTIER, 2011, p. 27).
Analisar e questionar representações dos modos de ser e de viver, de
fenômenos e situações presentes em fontes pertinentes para a pesquisa da História
e da Comunicação envolve um trabalho cuidadoso e constante. A lida empírica com
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 1
4
periódicos tem, neste sentido, como ponto de referência as possíveis influências
em processos cujos aspectos evidenciados na mídia impressa analisada possam
suscitar. Visões sociopolíticas da linha editorial, diagramação, elementos gráficos,
iconográficos e textuais, formato, preço, tiragem, distribuição, circulação e identidade
visual são alguns indicativos pré-definidos que, invariavelmente, comunicam ao
pesquisador dados orientadores para posteriores análises.
Scalzo (2003) reflete sobre a importância de considerar as especificidades
do periódico em questão estudado. Por exemplo, no caso da análise da mídia
impressa revista, a autora aponta três aspectos definidores: especialização, formato
físico e periodicidade. Nota-se que as características apontadas também podem
ser observadas em outros formatos de mídia impressa, como jornais e livros. O
primeiro aspecto definidor, a especialização, refere-se à linha editorial do periódico
direcionada às demandas de um público leitor. No caso de revistas, esse público é
mais segmentado do que nos jornais1, pois existe um grande número de revistas
para atender a diversos gostos de públicos específicos: periódicos de política, de
economia, de cultura, de fotografia, de moda, de esportes, de automobilismo, de
conteúdo infantil, de conteúdos sobre Ciência, etc.
O formato físico é o segundo aspecto definidor da mídia impressa revista
(SCALZO, 2003). Nesse sentido, preocupa-se não apenas com o conteúdo que será
publicado, mas também com a forma na qual ele será apresentado, ou seja, tratase da forma como as informações serão colocadas na página do periódico. Como
comentamos nos parágrafos anteriores, o formato físico da mídia impressa ressalta o
aspecto visual do texto, como o tipo de papel, as cores, fontes e os recursos visuais
utilizados, assim como o posicionamento dos elementos na página. O design da
publicação facilita a leitura das informações e, desta forma, é essencial considerá-lo
quando se realiza pesquisa científica sobre determinado periódico. Elementos gráficos
como boxes, uso de fonte em caixa alta, destaques em cores diferentes, inserção de
fios (linhas horizontais que dividem espaços entre conteúdos) e de vinhetas (pequenos
títulos que marcam assuntos e temas recorrentes na parte superior da página) são
exemplos de itens que hierarquizam a informação.
O terceiro aspecto definidor da mídia impressa revista é a periodicidade (SCALZO,
2003). Nota-se que, nessa especificidade, jornais e revistas se diferenciam. Enquanto
os jornais apresentam edições diárias, as revistas apresentam periodicidade mais
extensa, que pode ser: semanal, mensal, trimestral, semestral, anual, etc. Essa
característica é bastante importante, pois reflete diretamente nos conteúdos a serem
publicados, assim como no tipo de texto a ser produzido.
Ao considerar que o público leitor da mídia impressa revista é especializado,
observa-se um aprofundamento maior nos assuntos, assim como um refinamento
1
Em jornais, essas divisões se fazem geralmente em cadernos especiais ou suplementares,
cuja criação aponta para a necessidade de novos campos temáticos, permitindo “a secundarização de
conteúdos ou ainda a abertura de espaço para interesses de grupos específicos” (CRUZ; PEIXOTO,
2007, p. 267).
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 1
5
textual, tendo o jornalista/escritor mais possibilidades de trabalhar o estilo do texto,
enquanto nos periódicos de publicação diária, privilegia-se a coleta de informações
com base na periodicidade, que permite enxergar o desenvolvimento de processos e
fenômenos (FARIA, 2013).
Outra diferença entre jornais e revistas apontada por Casali (2004) é a presença
de conteúdos jornalísticos na publicação. Enquanto os jornais possuem predominância
de publicação de conteúdos noticiosos2, as revistas já se caracterizam pela hibridez
de seus conteúdos, também apresentando seções de materiais não jornalísticos,
como conteúdos de entretenimento, por exemplo.
Os aspectos acima evidenciados das mídias impressas são fundamentais
para uma compreensão mais aprofundada das representações nas pesquisas
realizadas nos campos da Comunicação e da História. Ressaltamos que mesmo
que as especificidades apresentadas por Scalzo (2003) e Casali (2004) reflitam em
sua maior parte sobre características verificáveis na própria edição impressa da
publicação (assuntos abordados, aspectos textuais, diagramação, elementos gráficos,
periodicidade, tiragem, preço, etc), é também importante identificar características
de contexto e de usos da mídia impressa analisada em pesquisas científicas, como
questões referentes à produção, distribuição e circulação do periódico em questão.
Avaliar o contexto em que se insere determinada mídia impressa também reflete
instituições e interações sociais entre os sujeitos, assim como aspectos culturais de
determinados grupos e sociedades. Nota-se, portanto, a complexidade que envolve a
análise de periódicos dentro dos campos da Comunicação e da História.
Nesta perspectiva, deve-se considerar a imprensa em sua historicidade,
notando contextos e articulações mais amplas, ligadas à época em que o veículo de
comunicação foi criado, dados de sua propriedade e equipe editorial, perfil este o qual
reflete, de alguma forma, uma linha editorial pré-definida consoante com a cultura
política de sua origem. O conteúdo impresso, pelos modos como traz as mensagens,
do mesmo modo, também é capaz de revelar pistas das intenções e discursos que
cada mídia carrega consigo.
Desta forma, antes de analisar um periódico, faz-se necessário desenhar
um caminho metodológico coerente, a fim de desenvolver uma investigação com
consistência sobre determinada publicação. A seguir, apresentamos uma possibilidade
de abordagem metodológica referente a estudos de mídia impressa: a análise de
conteúdo.
3 | PARA OS PRIMEIROS CONTATOS
Ao considerar as representações (CHARTIER, 2011) como fontes de pesquisa
nos campos da História e da Comunicação, têm-se diversas possibilidades de
2
Pela tradição do formato, são poucos os espaços destinados para outros fins, como é o caso
das colunas de piadas, palavras-cruzadas, horóscopo e sinopses de filmes em cartaz nos cinemas.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 1
6
abordagem na análise de periódicos. Neste texto, discutimos especificamente algumas
potencialidades referentes à técnica de análise de conteúdo. Como coloca Bardin
(2011), a técnica foi desenvolvida inicialmente no departamento de Jornalismo da
Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Os primeiros estudos possuíam viés
quantitativo e Lasswell é o primeiro nome que marca o campo, com suas investigações
sobre imprensa e propaganda na década de 1910.
Entretanto, os usos atuais da técnica superaram as críticas iniciais sobre a
abordagem, a qual apresentava tendência fortemente quantitativa (BARDIN, 2011).
Desta forma, a análise de conteúdo interage com diversos aspectos subjetivos,
dialogando com os campos da lexicometria, da enunciação linguística, da análise de
conversação, da documentação e base de dados, entre outros. Nota-se, portanto,
que além do caráter quantitativo da técnica, a análise de conteúdo também apresenta
uma perspectiva qualitativa de investigação de determinado objeto de estudo, como
no caso de análise de periódicos, por exemplo.
A análise de conteúdo, como instrumento das comunicações, permite explorar
fontes de pesquisa em estudos empíricos com apoio de técnicas específicas, ainda
que estas não sejam doutrinais ou normativas. É necessário considerar, assim, que
“não existe coisa pronta em análise de conteúdo” (BARDIN, 2011, p. 36). O método
empregado depende diretamente do material que se deseja estudar e se dedica e ao
tipo de interpretação pretendida.
Brevemente, destacamos: a regra da exaustividade, em que todos os elementos
do corpus são extenuantemente consultados, explorados e conhecidos; a regra
da representatividade, pela qual se efetua o estudo com base em uma amostra
representativa do universo inicial; a regra da homogeneidade, que permite que em
universos mais similares, amostras menores sejam aceitáveis e representativas;
e, por fim, a regra de pertinência, a qual constata que os documentos devem ser
adequados e selecionados enquanto fonte de informação visando conformar-se ao
objetivo que incentivou a análise.
Bardin (2011) ainda permite que se siga uma etapa cronológica pela qual,
em linhas gerais, procede-se para 1) Pré-análise: seleção e organização do material
documental. Na sequência, 2) Descrição Analítica: análise dos documentos tendo
como base hipóteses e referenciais teóricos, pelos quais são identificados temas de
estudo e tramas de relações, podendo-se fazer a sua decodificação, classificação
e categorização. Por fim, 3) Interpretação referencial: elaboração de inferências
e relações entre as bases documentais e teoria, mediante os dados empíricos e
informações coletadas, permitindo a compreensão das relações entre o objeto de
análise e seu contexto mais amplo.
Considerando as etapas da análise de conteúdo propostas por Bardin (2011),
nota-se que a utilização da técnica possibilita o delineamento dos primeiros caminhos
metodológicos. Pode-se utilizá-la para explorar as singularidades e detalhes de
determinada mídia impressa direcionando a investigação para o estudo de exemplares
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 1
7
específicos da publicação, segundo um recorte espacial e temporal pré-definido.
Desta forma, a pesquisa se volta para as edições finalizadas da mídia analisada
como corpus de análise, seus conteúdos, textos e recursos visuais utilizados.
Outra possibilidade de utilização de técnica de análise de conteúdo para
investigação de mídia impressa pode se direcionar para os sujeitos participantes dos
fluxos de circulação do periódico, desde a produção até a distribuição da publicação.
Encontram-se envolvidos nesse processo jornalistas, escritores, editores, vendedores,
leitores, entre outros atores. Nesse contexto de estudo, a fala dos sujeitos revela
impressões e sutilezas sobre a mídia impressa em questão que não seriam observadas
em uma análise voltada para os aspectos textuais e visuais da publicação. A partir do
uso de estratégias metodológicas como, por exemplo, a aplicação de questionários
e de entrevistas para a captação da fala desses sujeitos, a técnica de análise de
conteúdo se mostra como uma possibilidade de análise das informações coletadas,
possibilitando o tratamento e posterior interpretação referencial das informações.
Abrem-se, neste sentido, numerosas opções capazes de contemplar caminhos
de análise. Conforme aponta Silva (2013), geralmente, há três rumos principais para a
lida empírica com a mídia impressa: 1) a dos produtores do discurso; 2) a dos leitores;
e 3) a da linguagem, focada em representações e comunicação. Cada perspectiva
dialoga com as demais em certo nível. O critério há de ser definido pelo pesquisador,
segundo as necessidades que o objeto, temática e problema de pesquisa irão apontar.
4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mídia gravou e destacou momentos marcantes da história, e os periódicos
ocupam papel importante nesse processo, em um movimento no qual, para além
de registrar, estes também apontam culturas, identidades e modelos sociais.
Quando a imprensa é tomada como fonte de pesquisa, no entanto, não deve ser
compreendida como efeito de verdade, mas como uma versão dentre tantas outras.
Não compreendemos os discursos como verdadeiros, mas admitimos que há, nas
representações neles presentes, uma força social das percepções do mundo que
a elas confere uma versão legítima, pertinentes para os estudos da Comunicação
Social e da História.
A mídia impressa, vista como produto cultural que reflete e cria visões de
mundo, não fornece, de modo algum, conclusões únicas. Pode oferecer significados
contraditórios, não resolvidos e que tem, portanto, um caráter orientado para a
reconstrução de condições explicativas da realidade social, cujas discussões devem
ser pautadas no rigor conceitual, análise e argumentação sólidas, ainda que não
possam ser considerados terminadas, pois renovam-se a cada nova consulta.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 1
8
REFERÊNCIAS
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Capítulo 1
9
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Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 1
10
CAPÍTULO 2
doi
OS CEM ANOS DA IMPRENSA NO BRASIL:
A COMEMORAÇÃO ATRAVÉS DA EXPOSIÇÃO E
DOS CATÁLOGOS DO IHGB
Alvaro Daniel Costa
Universidade Estadual de Ponta Grossa Grossa
(UEPG)
OS CEM ANOS DA IMPRENSA PERIÓDICA
EM TERRAS TUPINIQUINS E O JORNALISMO
BRASILEIRO EM NÚMEROS
O ano de 1908 foi um marco na história
do Brasil, pois se comemorava o 100º ano
RESUMO: O presente artigo é fruto de uma
apresentação no 11º Encontro Nacional de
História da Mídia. A discussão giram em torno
do primeiro capítulo de uma dissertação sobre
um estudo sobre a memória e a comemoração
do centenário da imprensa a partir da Revista
do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro
(IHGB). A edição comemorativa da revista IHGB
visava organizar uma espécie de inventário
completo sobre todos os jornais publicados em
território nacional até então. Cada estado teria
um responsável por realizar esse levantamento
que posteriormente seria publicado em formato
de inventário. Dessa maneira, o foco principal
deste estudo é analisar o discurso comemorativo
do centenário da imprensa através da ideia
de uma exposição e do Tomo Consagrado
à Exposição Commemorativa do Primeiro
Centenário da Imprensa no Brasil. Neste caso, a
imprensa como veículo fundamental na história
do Brasil nação.
PALAVRAS-CHAVE: História do jornalismo;
História da imprensa; IHGB; comemoração;
centenário
da imprensa no país. Cabe lembrar que no
mesmo contexto também se lembrava do
centenário da vinda da família Real, ou seja,
de transformações consideradas essenciais
na história do país como, por exemplo, a
abertura dos portos bem como a mudança do
status jurídico de Colônia para Reino Unido. A
imprensa fez parte dessas mudanças, sendo
vista como o início da emancipação do Brasil
por muitos historiadores. De acordo com Márcia
Abreu (2010) o Brasil foi o 12º país da América
Latina a obter, da respectiva metrópole o direito
de impressão.
Antes toda a documentação política e
administrativa teve de se processar por meio
dos manuscritos. De acordo com José Mindlin
(2011, p. 19) duas medidas foram importantes
no momento que a corte portuguesa era
transferida para cá: a abertura dos portos e
a Impressão Régia. Foram esses fatores que
abriram o Brasil para o mundo do ponto de vista
político e cultural sendo a primeira com efeito
imediato e a segunda com resultados mais
tardios. A imprensa durante cem anos também
foi a construtora de uma história nacional.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 2
11
Durante seu primeiro centenário passou por três conjunturas políticas distintas:
quando o Brasil ainda era Colônia, depois Império e por fim República.
O Instituto Geográfico Brasileiro pensando na importância que o jornalismo teve
para o país pensou em uma maneira de celebrar tal data. Para as comemorações
do primeiro centenário da imprensa periódica no Brasil o IHGB publicou uma edição
introdutória intitulada Tomo Consagrado ao Centenário da Imprensa Periódica. Posto
isso, cada Tomo continha os objetivos do grupo que organizou como, por exemplo,
falas do presidente, análise da exposição e comemoração a partir da visão de alguns
membros. O primeiro volume possui texto de autoria de Alfredo de Carvalho intitulado
“Gêneses e Progresso” que cita ideias gerais sobre o centenário da imprensa, o mesmo
foi o responsável pela confecção do catálogo comemorativo de Pernambuco, estado
nordestino que mais teve títulos impressos nos cem primeiros anos. A segunda parte
contou com um inventário com os títulos dos jornais publicados nas regiões Norte e
Nordeste (sem a Bahia).
Dentre os resultados obtidos através da segunda parte do Tomo, foram
contabilizados 5277 títulos de periódicos somente na região norte e nordeste. A
publicação comemorativa contou com 821 páginas e continha aspectos gerais como
ano, cidade, nome da publicação, durabilidade, posicionamento político. Alguns
títulos mais importantes continham uma síntese histórica sobre todos os elementos
já mencionados, mas com um acréscimo de um texto mais descritivo e que possuía
mais riquezas de detalhes.
Da listagem, o estado que mais se destaca é Pernambuco com 1622 publicações,
seguido de Ceará com 947, já o Pará apresenta 697 periódicos. Dos outros locais
Alagoas somou 471 jornais, no Amazonas o número foi de 347, Maranhão 308,
Rio Grande do Norte 255, Sergipe 226, Piauí 219 e Paraíba 185. Dentre o número
aproximado de jornais publicados no país levando em consideração as regiões
Norte e Nordeste temos que uma média de que 35,18% do total dos periódicos
publicados no país foram dessa região. Posteriormente foi lançando alguns Tomos
Regionais como, por exemplo, Catalogo dos jornaes publicados no Paraná de 1854
a 1907, escrito por Romário Martins, além de uma edição especial da imprensa
Pernambucana e a paulista lançada apenas em 1914.
A GRANDE COMEMORAÇÃO: UMA EMPREITADA ATRAVÉS DO IHGB
Um dos principais objetivos de qualquer tipo de comemoração é o despertar
através de um determinado sentimento de euforia e alegria, algum determinado feito
histórico ou algo que ficou marcado no tempo. Por trás de uma comemoração existe
um simbolismo ou ato simbólico através de um ato de rememoração. Eram bem
comuns, sobretudo, no século XIX, festividades que marcavam o festejo de alguns
fatos históricos de uma nação ainda em processo de formação. Também se deve
mencionar o fato de que muitos desses atos simbólicos culminavam em Exposições
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 2
12
com o intuito de reunir através de objetos e documentos algo que pudesse comprovar
e revelar a própria história nacional.
A ideia de uma catalogação e exposição dos periódicos que existiriam no Brasil
no século XIX e XX vem ao encontro do conhecimento da própria história do país.
Para Correa (2015, p. 180) o século XIX se insere no que chamamos de “cultura das
exposições”, não só no Brasil, mas no mundo todo.
As exposições seriam uma espécie de vitrine da ciência e progresso. O próprio
século XIX ficou conhecido como um século que muitas ciências se desenvolveram
e entre elas se encontra a própria história, que estava buscando seu espaço. As
exposições brilharam e foram emblemas da modernidade e progresso. Correa (2015,
p.181) aponta que as mesmas se tornaram “eventos-símbolos da modernidade e do
progresso material, científico e intelectual das nações civilizadas”.
Organizar uma exposição era mais que materializar a própria história, mas servir
como celebração. Candau (2016, p.147) analisa, através do positivismo comtiano,
que a ideia de celebrar está inserida em um culto sistemático da humanidade. A
celebração, nesse caso, numa acepção positivista, como um desenvolvimento de um
espírito histórico e ao mesmo tempo com um sentimento de continuidade.
Existe na ideia de celebração um princípio organizador cujo objetivo é a
unificação. Para Candeau (2016, p.147) “[n]o espírito dos preceitos de Comte,
aniversários e comemorações invadiam os calendários para organizar as memórias
com esperança de unificá-las”. A noção de laços identitários também faz parte nas
comemorações, uma vez que elas buscam através de elementos fundadores o
sentimento de pertencimento a uma cultura em comum.
Um motivo de se comemorar é quando o estado forja ou busca identidades
de qual que supostamente a nação se identifique. No caso da história da imprensa
brasileira é o fato dela, em boa parte dos seus cem anos, se desenvolver juntamente
com o Brasil nação. A ideia do IHGB era fazer como motivo “festivo” uma exposição
do centenário bem como a confecção de um inventário. No caso do centenário da
imprensa, o IHGB e seus responsáveis pensaram na coleta e no esforço intelectual
de cada representante escolhidos por região a elaboração de um catálogo que
pudesse ser símbolo desse esforço coletivo que mostraria o desenvolvimento da
palavra impressa nacional. Percebe-se aí o vínculo que os une, os cem anos de uma
impressa brasileira. Apesar da grande variedade de títulos, temos na comemoração do
centenário um meio de se mostrar a diversidade através da unidade, ou seja, mostrar
os periódicos de cada região a partir de um projeto integrador que é a exposição
e a confecção dos Tomos. Por trás de uma celebração havia um projeto patriótico.
As exposições e Tomos comemorativos nos ajudam a compreender sobre lugares,
saberes, discursos, práticas e até mesmo sobre a concepção de história, que neste
caso é do que quer ser lembrar ou comemorar.
Na décima terceira sessão ordinária que se realizou em 29 de julho de 1907
no IHGB, Max Fleiuss foi o interlocutor responsável por uma solenidade de caráter
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 2
13
histórico ao lembrar o centenário da imprensa periódica no Brasil. O Tomo I (1908,
p.6) apresenta um discurso em que se lembra o dia 13 de maio de 1908, data que
se completou os cem anos de imprensa no Brasil e que, por esse motivo, o IHGB
deveria promover “celebração condigna de data tão memorável, por meio de uma
exposição jornalística, a ser inaugurada naquelle dia”. Ainda no mesmo Tomo (1908,
p.5) Fleiuss revela que os organizadores acreditam que “uma exposição pública fora
o melhor meio de consagrar tão momentosa data”. O autor ainda classifica o trabalho
de organização das comemorações através da Exposição e dos catálogos produzidos
como um inestimável serviço patriótico e que grande parte da glória desse esforço se
devia ao presidente do IHGB Barão do Rio Branco.
Sobre as questões comemorativas pode-se dizer que são uma espécie de
montagem de um quebra-cabeça, uma vez que são seletivas, ou seja, você lembra
ou relembra de algo que é importante ou que te dizem ser importante. Aqui o Estado
entra no papel de legitimador ao festejar ou lembrar de datas que façam sentido para
o espírito patriótico. Candeau (2016) lembra que a comemoração é uma espécie
de máquina de remontar o tempo e ainda usa uma frase de Antonie Prost quando
revela que a comemoração “tem o dom de limpar o passado” e de retirar a alteridade
inquietante, ou seja, existe na comemoração um ato de separação do que se quer
lembrar ou valorizar.
A comemoração passa a ser um projeto que pensa na união ou forja a mesma
ou como mostra Candeau (2016) do que viria a “ser uma memória compartilhada”.
A questão é: o que merece ser comemorado ou compartilhado socialmente? A
comemoração do centenário da imprensa esteve relacionada a uma memória que
remete s origens e ao mesmo tempo ao tempo presente, referindo-se ao início do
século XX.
A celebração passa a ser uma manipulação da memória, ou seja, ela teria um
caráter seletivo. De acordo com Silva (2002):
(...) as comemorações nacionais oferecem exemplos pertinentes, uma vez que
elas são objeto de interesses em jogo (políticos, ideológicos, éticos, etc.). O uso
perverso da seleção da memória coletiva encontra-se, portanto, nesse processo
de "rememoração" social, cuja função é justamente a de impedir o próprio
esquecimento.
Comemorar significa um reavivamento coletivo de um acontecimento e no caso
do centenário da imprensa um processo de “revisão histórica” da própria história do
país. Os eventos de exposição não só se inserem nesse projeto de revisão e memória
como também fazem parte do desenvolvimento científico que está nos pilares do IHGB.
Os grupos responsáveis por essas exposições e comemorações se envolviam em
debates intelectuais sobre tais empreitadas. Tanto as exposições quanto os catálogos
eram meios de divulgação científica. Como o próprio termo revela expor significa
mostrar e divulgar. No centenário da imprensa brasileira o primeiro objetivo presente
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 2
14
no Tomo I parte I reflete justamente essa característica expositiva: “Exposição de
todos os jornaes publicados no Brazil, no século decorrido de 1808 a 1907 (31
de dezembro) ” e como quarto objetivo pôr fim a “cunhagem de uma medalha
commemorativa”, além do já mencionado catálogo. Esse servia não apenas como
fonte de pesquisa, mas de certa maneira como um guia de todo esforço intelectual.
Havia por trás das empreitadas comemorativas a questão do que Correa (2015,
p.190) chama de “empenho patriótico” cujo desígnio era a “contribuição para com os
espaços do saber do país” e que se “mobilizassem na tarefa de ajudar a enriquecer
o acervo exposto na mostra e indicado no catálogo”. Na introdução da primeira parte
do Tomo comemorativo (1908, p.9-10) Fleiuss afirma que: “Todos esses catálogos,
alguns primorosamente elaborados, patenteam a boa vontade se seus organizadores,
que prestaram, desse modo, relevantíssimo serviço a bibliographia brazileira e a mais
digna homenagem à imprensa de nossa terra”.
A ideia de um catálogo comemorativo é justamente a reunião e acumulação
das fontes encontradas leia-se jornais e revistas. O mesmo serviria de guia para
aficionados ou ponto de partidas para investigações futuras. Um dos métodos
comemorativos também era a difusão do saber e mobilizavam os intelectuais bem
como as instituições culturais da época.
Deve-se ainda mencionar o fato que toda celebração é um evento efêmero e
datado, uma vez que as comemorações possuem datas “afixadas”, dias, anos para
ocorrerem. No caso do centenário da imprensa foi um ano específico: 1908. Qualquer
celebração fora desse ano estaria fora de uma “lógica” do porquê se comemorar.
A ideia comemorativa expositiva ia além de mostrar algo, mas com função
documental, pois além do trabalho de pesquisa em reunir os exemplares de jornais
os organizadores elaborariam um catálogo com no objetivo de que documentasse
a história da imprensa ali. Tanto no século XIX como no XX era muito importante a
questão da acumulação de documentos que pudessem de alguma forma contar a
história do Brasil. Instituições como o IHGB e a Biblioteca Nacional se propuseram
em ser os principais receptores desses documentos que poderiam ser livros, objetos
e nesse caso, jornais e revistas. Ainda sobre a questão de acumulação documental
(leia-se fontes) deve-se mencionar que o Estado era o principal intermediador ou
como lembra Correa (2015) um produtor de uma massa documental.
As intituladas Exposições Universais vinham acompanhas de um Guia e de
modo semelhante aconteceu no centenário da Imprensa só que dessa vez seria
um catálogo metódico e a cunhagem de uma medalha comemorativa. Para Correa
(2015, p.197) “o guia servia para perpetuar o evento, ressaltando o que ele mais tinha
de interessante e curioso”. Os guias e catálogos tinham o escopo de “dar a ver” a
exposição ao leitor e funcionavam de uma maneira educativa.
Tanto as exposições comemorativas quanto os catálogos reuniam coleções e
possuíam um caráter de preciosidade e raridade, pois, traziam ao público objetos ou,
nesse caso, títulos de periódicos até então desconhecidos pelo leitor, cujo acesso
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 2
15
seria limitado se não fosse pela pesquisa intelectual. As exposições comemorativas
tinham a importância não só pelo valor estético, mas no sentido de ser uma “divulgação
científica e histórica”, uma vez que mesmo que sendo momentâneas elas possuíam
um desígnio de ficar para posteridade.
A ideia de comemoração também está no sentido de eternizar um momento.
Para o IHGB além das exposições e festividades, a confecção de livros, estudos e
catálogos deveriam ter a materialidade garantida. Essa materialidade é própria da
configuração dos Estados Nacionais no século XIX e que teve continuidade com força
no início do século XX. O bem material seja objetos, livros jornais ajudariam a contar
a história nacional, uma vez, que o conceito de verdade era estabelecido através dos
documentos, esses seriam uma forma de se ter acesso ao passado ou a presença
materializada. O pretério materializado também se configurava nas exposições.
Para Correa (2015, p. 204) “expostos ao olhar do público, os objetos de uma
coleção permitiam a comunicação entre dois mundos distantes” seja no tempo
ou espaço. Atrelado a exposição comemorativa os Anais da Imprensa Brasileira
possibilitariam futuras inquirições acerca da história não só da própria imprensa, mas
do país.
Ainda sobre as exposições universais pode-se dizer que elas eram
consideradas de acordo com Schwarcz (2015) como “festas do progresso”. A
tradição delas desde Dom Pedro II perdurou durante o século XIX e continuou no
século posterior. Os cartazes que faziam propaganda desses eventos mostravam
a grandiosidade em que imperava o conhecimento, avanços tecnológicos através
da ciência e as questões culturais. A autora ainda afirma que essas exposições ou
“festas do progresso” eram concebidas por intelectuais, políticos e empresários e
constituíam em espaços de apresentação da própria burguesia, as mesmas eram
exibidas como uma espécie de parque de diversões para adultos e despertavam a
curiosidade, exibiam o “exótico” e revelavam o progresso.
De acordo com o primeiro Tomo sobre o centenário da imprensa a Exposição
Comemorativa do ano de 1908 contou com 25 mil jornais e que 10 mil ficaram de
fora. Na parte final do Tomo I (1908, p.86) há o discurso do Conde de Afonso Celso
que ressalta a importância da imprensa e da coleta de dados para realização de
tal evento. Celso classifica aquele momento do centenário como um momento de
entusiasmo quando diz: “Vasta necrópole de commoções” e que os impressos traziam
muitas ideias e despertariam muitas emoções. Diz Celso (1908 p.86) “quantas idéias
e paixões despertaram eles” e completa quando aponta: “quantos acontecimentos
decisivos provocaram”.
No discurso, presente no ato de encerramento da exposição do centenário da
imprensa, Celso (1908, p.89) alerta que uma comemoração sem exposição seria
lacunosa, que um evento desse porte deveria ser feito uma mostra para exaltar um
momento tão extraordinário na história do Brasil. Diz ele:
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 2
16
A Exposição Nacional, destinada a festejar a abertura dos portos, isto é, o início da
Independência do Brazil, isto é, o início da Independência do Brazil, se não essa
própria independencia, porque depois daquele acto, a nossa Patria se emancipou
da metropole- a Exposição Nacional lacunosa seria, se nella não figurasse uma
secção de jornaes
Na visão de Celso (1908, p.89) a imprensa foi colaboradora para os avanços do
Brasil e com a sua vinda ao Brasil estaria predestinado ao progresso. Relembra ele
que que
Porque a imprensa foi a colaboradora preciosíssima e fomentadora, a defensora,
a preconizadora insuprível de todos os melhoramentos industriaes e artisticos que
opulentam a Exposição. Não fora a imprensa, e a Exposição deixara de ser o que
é, difficilmente existiria.
Os elogios ao IHGB não eram poupados devido ao esforço e ao “esplendido
conjunto”. As adjetivações são comuns não só nos discursos, mas nas introduções
dos catálogos. Os sentidos dos discursos empregados pelo IHGB estão na própria
compreensão do porquê adjetivam, ou seja, para o IHGB a exaltação é o que dá
sentido à existência da imprensa e do próprio sentido de comemorar. Para Orlandi
(2010, p.26) a análise do discurso é compreender como um objeto simbólico produz
sentidos sejam eles textos, enunciados, pinturas, músicas, etc. Que efeito tem um
discurso comemorativo? Na análise de discurso proposta por Orlandi (2010, p.32)
é “fundamental para se compreender o discurso a sua relação com os sujeitos e
ideologia”, ou seja, o centro de produção desse discurso de comemoração era um
espaço político de afirmação de uma identidade nacional que ainda estava sendo
construída.
O discurso de Celso (1908, p.89) ilustra o fato de louvar e celebrar a iniciativa
do IGHB como o responsável pela comemoração que marcaria a história do Brasil e
que de certa forma já conduziria o país a um caminho de sucesso. Nas palavras dele:
O contingente do Instituto Historico, longe de destoar, sobresahiu, mereceu aplauso
e encomio. Deu uma nota clara, vibrante e harmoniosa, no hymno triumphal entoado
pelas grandes, belas e uteis cousas reunidas na exposição-ohymno do esforço, da
energia, da perseverança, da capacidade e, sobretudo, da confiança na suprema
predestinação do Brazil.
A comemoração dos cem anos de imprensa tinha outro aspecto. Os periódicos
não só corroborariam com o desenvolvimento do país, como também eram provas
do progresso. Apesar de serem catálogos, eles tinham uma função na lógica
comemorativa de ser um instrumento de poder também construir de maneira material
a história dos jornais e também da história do Brasil. Falar do passado, pensando no
presente (comemorar) e sendo a aposta para o futuro como um esboço de bibliografia
histórica.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 2
17
Imagem II: capa dos Anais da Imprensa Pernambucana
Fonte: Annaes da Imprensa Periódica Pernambucana de 1821- 1908.
Comemorar tanto através de uma exposição ou catálogo era uma maneira
de contribuir não só com a escrita do país, mas com o método histórico. A História
enquanto ciência estava se afirmando e os estudos feitos pelos intelectuais do IHGB
serviriam para tais realizações. Os jornais seriam vestígios para a escrita da história
e se tornariam fontes para pesquisas futuras.
O projeto de se comemorar através de um catálogo era ambicioso, pois além
de servir de ponta pé inicial a pesquisadores seria possível desvelar uma história
da nação, indicando mesmo que sumariamente dados básicos sobre cada título. Os
catálogos comemorativos poderiam se encaixar no que Correa (2015, p.226) intitula
de patrimônio documental, para a autora:
O interesse não apenas pela procura, mas também pela divulgação e publicação
de documentos que lançassem luz sobre a história do Brasil acabou por estimular a
publicação dos Anais e também a ideia de se fazer uma exposição e um catálogo de
tudo o que houvesse no país que servisse para compor sua história. Se a escrita da
história precisava de documentos para se realizar, esses deveriam ser levantados,
localizados, descritos, expostos e organizados em um catálogo.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 2
18
O ato comemorativo tinha outro aspecto para além da questão da unidade
nacional:
o conhecimento por regiões. Com os estudos e catálogos regionais
passava-se a conhecer melhor o Brasil para além dos grandes centros (leia-se
algumas capitais e cidades litorâneas). Dessa maneira alguns estados lançaram seus
inventários do centenário da imprensa como, por exemplo, Paraná, Pernambuco e
São Paulo apenas em 1914. A comemoração só estaria completa com o lançamento
de um Tomo Geral, o que não ocorreu, diferente da Exposição que jornais do Brasil
todo estavam expostos de acordo com os discursos da época
Todavia, para uma comemoração, não basta ter uma memória de origem.
Apenas o motivo da vinda da família real, abertura dos portos e vinda da tipografia
não basta para se “comemorar” o centenário. Como aponta Candeau (2016, p.98) “é
preciso de um eixo temporal, uma trajetória marcada por essas referências, que são
os acontecimentos”. Os cem anos da imprensa foi um acontecimento que fez evocar
um “balanço” de fatos que transformaram não só a imprensa, mas a história do Brasil.
Certas lembranças simbólicas passam a compor nossa identidade e comemorar
passa a significar o que Candeau (2016) chama de um “dever da memória”.
De acordo com Walter Benjamin (2006, p.518), “escrever a história significa
dar às datas a sua fisionomia”, ou seja, a comemoração do centenário da imprensa
é uma dessas fisionomias que demonstrou ter importância para realização de tal
festividade. O ano de 1908 foi inteiro comemorativo, já que a exposição ficou aberta
à visitação até o mês de outubro do mesmo ano de acordo com a primeira parte do
Tomo Consagrado ao Centenário da Imprensa.
A comemoração foi, portanto, simbólica e real ao mesmo tempo. Simbólica por
ser uma data, um evento de certa forma não “palpável” e real por se materializar em
uma exposição, mesmo que efêmera e no catálogo perene. Essa característica de
lembrar é típica das sociedades modernas. A comemoração foi um pedaço escolhido
da memória identitária nacional, ou seja, não foi selecionada à toa, mas sim pensada
estrategicamente por ser um “balanço” histórico de um século de imprensa
Outro ponto, é pensar na comemoração como um ato político, pois definir datas
é um dos fatores de formação de identidade nacional. A comemoração, mesmo que
efêmera, faz parte da agenda cultural do país, pois fica eternizada seja em feriados,
datas, eventos, nesse caso uma exposição ou ainda eternizada através de catálogos
metódicos.
Comemorar vira uma estratégia deliberada, pois determinado grupo intelectual
e político determinou que assim seria. Tanto a exposição quanto a confecção dos
catálogos metódicos figuram como lugares de memória seja pelo aspecto simbólico
de se perpetuar no imaginário ou em um aspecto físico por se transformar em
documento. A memória oral também é levada em consideração, uma vez que são
transcritas as falas dos intelectuais responsáveis pelos aos comemorativos.
Paul Ricoeur (2014, p.404) nos seus estudos sobre memória cita Maurice
Halbwachs quando diz que “a história é aprendida pela memorização de datas, de
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 2
19
fatos, de nomenclaturas, de acontecimentos marcantes, de personagens importantes,
de festas a celebrar”, isto é, as comemorações fazem parte da história e podem
encaixar-se no que Ricoeur chama de narrativas ensinadas. Isso é reforçado pelo
enquadramento no calendário dos acontecimentos, ou seja, as comemorações
fazem parte de um enquadramento que se passa através de datas-chave que foram
exteriorizadas por quem pensou um projeto de nação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao pensar uma exposição ou um catálogo comemorativo, os intelectuais
participam da construção da memória social. De acordo com Lucia Lippi Oliveira
(2000, p.185-186) as comemorações ou efemérides permitem refundar ou refundar
identidades sejam elas regionais, nacionais.
Por fim compreende-se que uma comemoração implica em um processo de
construção discursiva e que influencia na construção de valores e sentidos ou ainda o
que Cardoso (1998, p.2) chama de “ ato de integração de sentidos”. Deve-se também
pensar no ato comemorativo como uma reconstrução ou rememoração de um ato
passado a partir do presente. Apesar da exaltação ao passado, o presente que está
em jogo e discussão. Cardoso (1998, p.4) ainda aponta que “o que se comemora é o
sentido do próprio presente” e que a comemoração é um processo ativo e dirigido da
história coletiva.
As comemorações em torno do centenário da imprensa são mais um eixo de
reafirmação de uma memória nacional dentre tantos outros meios simbólicos de
integração. Dentre os exemplos se deve citar a bandeira nacional, as festas, os
feriados, cartilhas e nesse caso um ano específico: 1908 como um ano central em
nossa história. A comemoração do centenário da imprensa periódica é dotada de um
tipo específico de discurso: a da imprensa como vitrine do progresso.
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Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 2
22
CAPÍTULO 3
doi
A HISTÓRIA DA TV BRASIL ENCONTRANDO A SAÚDE:
UM ESTUDO DE CASO
Vitor Pereira de Almeida
Universidade Federal de Juiz de Fora, Doutorando
em Comunicação.
Juiz de Fora, Minas Gerais.
Iluska Maria da Silva Coutinho
Universidade Federal de Juiz de Fora, Professora
Doutora da Faculdade de Comunicação Social.
Juiz de Fora, Minas Gerais.
RESUMO: O presente trabalho tem como
proposta apresentar a história da EBC – Empresa
Brasil de Comunicação e, particularmente a
história da TV Brasil. Além disso, analisar o
espaço dedicado à saúde no telejornalismo
público brasileiro, com a avaliação de
parâmetros para realizar inferências acerca
da qualidade da cobertura sobre saúde no
telejornalismo público. O objeto de estudo é
a série do programa Repórter Brasil edição
noturna “Nos corredores do SUS”. Investigações
anteriores desenvolvidas no âmbito da UFJF
pelo “Laboratório de Jornalismo e Narrativas
Audiovisuais” oferecem o referencial teórico
para a avaliação empírica, realizada a partir
de pesquisa de edições disponíveis na rede
mundial de computadores. Além disso, o
trabalho de pesquisa aponta, ainda, como se
dá a cobertura em saúde pelo telejornalismo
público, no Repórter Brasil, telejornal objeto
dessa pesquisa, e apresenta a tendência de
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
utilizar fontes oficiais nas reportagens, aqui
denominadas falas de autoridade.
PALAVRAS-CHAVE: História das Mídias
Audiovisuais; História da EBC; TV Brasil; Saúde.
THE HISTORY OF TV BRASIL FINDING THE
HEALTH: A CASE STUDY
ABSTRACT: The present work intends to
present the history of EBC - Empresa Brasil
de Comunicação and, particularly the history
of TV Brasil. In addition, to analyze the space
dedicated to health in Brazilian public television
journalism, with the evaluation of parameters
to make inferences about the quality of health
coverage in public television journalism. The
object of study is the series of the program
Repórter Brasil night edition "Nos corredores
do SUS". Previous research developed within
the scope of the UFJF by the "Laboratório de
Jornalismo e Narrativas Audiovisuais" offer the
theoretical reference for the empirical evaluation,
realized from research of editions available in the
worldwide network of computers. In addition, the
research also points to the coverage of health
by public telejournalism, in the Repórter Brasil,
television newscast object of this research, and
presents the tendency to use official sources in
the reports, here called authority lines.
KEYWORDS: History of Audiovisual Media;
History of EBC; TV Brasil; Health.
Capítulo 3
23
1 | HISTÓRIA DA EBC E DA TV BRASIL
A Empresa Brasil de Comunicação, mais conhecida pela sigla EBC, é uma
empresa pública que possui um conglomerado de mídia no Brasil. Foi criada em
2007 para gerir as emissoras de rádio e televisão públicas federais. A EBC (Empresa
Brasil de Comunicação) é responsável pela Rede Nacional de Comunicação Pública
e gere as emissoras federais. A EBC administra a TV Brasil, a TV Brasil Internacional,
a Agência Brasil, a Radioagência Nacional e as oito emissoras do sistema público
de rádio. Ela é ainda responsável pela produção de conteúdos da Secretaria de
Comunicação do Governo Federal, como o programa “A Voz do Brasil” e atividades
do canal NBR. O canal NBR é produtor de imagens de eventos realizados no Palácio
do Planalto.
Essa proximidade entre os canais públicos e estatais acaba sendo um alvo de
críticas à TV Brasil. Afinal, como manter autonomia se quem produz e comanda a
TV Brasil também produz e comanda o canal NBR? No site da EBC, em sua carta
de apresentação, é afirmado que os veículos da EBC têm autonomia para definir
produção, programação e distribuição de conteúdos. Atualmente, são veiculados
conteúdos jornalísticos, educativos, culturais e de entretenimento com o objetivo de
levar informações de qualidade sobre os principais acontecimentos no Brasil e no
mundo para o maior número de pessoas (Site da EBC, 2016).
O governo federal cria a EBC em 25 de outubro de 2007. Nessa data se deu a
publicação no Diário Oficial da União. Sua sede fica em Brasília, mas existem centros
de produção e escritórios regionais espalhados pelo Brasil. A EBC tem autonomia e
independência em relação ao governo federal para definir produção, programação e
distribuição de conteúdos.
A empresa nasce da união dos patrimônios e do pessoal da Empresa Brasileira
de Comunicação (Radiobrás) e dos bens públicos da União que estavam sob a guarda
da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), que coordenava
a TVE Brasil.
Mesmo com todas as definições de pluralidade e princípios editoriais abrangentes
das televisões públicas, a concentração dos meios de produção de conteúdo e
de comunicação como um todo ainda dificulta a democratização da comunicação.
Coutinho (2013) destaca o caráter privado da mídia e, ainda ressalta que diversos
autores também o fazem.
Diversos autores como Mattos (2000), Ramos (2007), Brittos e Bolaño (2007), entre
outros, já destacaram o caráter eminentemente privado, e a concentração da
radiodifusão no Brasil. Desde a implantação da TV Tupi de São Paulo, em 1950,
até a constituição da primeira rede de televisão brasileira, então com transmissão
terrestre, a operação das emissoras de televisão em nosso país sempre esteve
associada à exploração comercial, ainda que muitas vezes com o patrocínio
do Estado, um dos principais anunciantes ao longo da história da TV brasileira
(COUTINHO, 2013, p3).
Ao constituir-se como responsável pela gestão da comunicação pública nacional,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 3
24
além de herdar os canais de rádio e televisão geridos pela estatal Radiobrás e pela
TVE do Rio Janeiro, coube à EBC a responsabilidade pela implantação de novas
emissoras públicas de radiodifusão, dentre as quais figura a TV Brasil.
No Brasil, a TV pública tem sua maior representante na TV Brasil. Ela foi criada
em 2007 para suprir as pendências do jornalismo comercial e, também, como uma
demanda da sociedade no âmbito da disputa pela democratização da comunicação.
Coutinho (2013), no livro “A informação na TV pública” expõe o caráter plural da TV
Brasil.
Propõe-se nessa perspectiva, em diversos trabalhos de pesquisa, compreender
a prática do telejornalismo em uma emissora pública na perspectiva da
complementariedade, no exercício desse direito, social à comunicação. Nesse
sentido, a TV Brasil, como emissora de televisão pública deveria possibilitar a
difusão de diferentes vozes, imagens e sons, produzidos segundo uma diversidade
de princípios editoriais de tal modo que a pluralidade de opiniões e perspectivas
fosse construída a partir da experimentação do direito de comunicar, em um canal
público (COUTINHO, 2013 p. 27).
A criação da TV Brasil se deu como uma rede. Ela reuniu a TVE do Rio de Janeiro,
a TVE do Maranhão e da Radiobrás. Coutinho (2013) mostra como se deu a criação e
ressalta que ela foi considerada uma vitória no campo público da comunicação.
Apresentada como a nova rede pública de televisão brasileira, a TV Brasil foi
criada em 2007, durante o governo Lula, por meio de medida provisória. A MP
398, publicada no Diário Oficial da União em 11 de outubro de 2007, enfrentou
resistências na mídia brasileira, que denunciava a criação de uma televisão de
governo, e no próprio Congresso Nacional. Um dos canais pertencentes à Empresa
Brasil de Comunicação (EBC), a TV Brasil reuniu a TVE do Rio de Janeiro, a TVE
do Maranhão e da Radiobrás, e foi considerada “uma vitória do campo público de
comunicação” por diversos defensores da democratização da mídia e por autores
como Aguiar (2012, p21) (COUTINHO, 2013, p 23-24).
Ainda sobre o papel da TV pública no Brasil e da TV Brasil em especial, Coutinho
(2013) destaca a importância da implantação da TV Brasil para a democratização dos
meios.
A implantação da TV Brasil representou uma importante conquista para segmentos
da sociedade brasileira envolvidos com a luta pela pluralidade e democratização
do acesso à comunicação e à informação no Brasil. No que se refere à oferta de
informação televisiva, a constituição de uma emissora de TV pública se constituiu
em uma alternativa concreta para a prática de um jornalismo orientado de forma
efetiva pela observância do interesse público e caracterizado pelo exercício dos
direitos à informação e comunicação por telespectadores (COUTINHO, 2013 p.28).
Resta explanar o financiamento da TV Brasil, a fim de questionar sobre a
participação do governo. O financiamento da TV Brasil se dá via EBC. A EBC recebe
do governo federal por seus serviços de comunicação e publicidade realizados pelos
canais estatais e repassa à TV Brasil. Esse modelo é muito criticado e se tornou alvo
de questionamentos quanto à subordinação da TV Brasil ao governo federal. Bucci
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 3
25
(2010) destaca o fato e reafirma que
Seja no plano político (relações com o governo e o Estado), seja no plano
econômico (relações com o mercado), a independência é indispensável para a
realização de qualquer projeto de radiodifusão pública. "Independência" não deve
ser entendido, no entanto, como "arrogância". Em tempos de valorização da noção
de interdependência, envolta em fetiches, incensada pelo presente contexto global,
é preciso uma certa cautela ao se pregar a independência. Atualmente, o desafio
ético é aprender a conviver em um ambiente onde não existe mais a possibilidade do
isolamento absoluto de nenhum ator, país ou comunidade. Independência, portanto,
não é isolamento, mas autonomia de critérios de decisão e de procedimentos. É
o distanciamento crítico em relação ao poder político ou estatal e em relação ao
mercado. De modo algum implica uma postura de autossuficiência ética, cultural e
jornalística (BUCCI, 2010, p 6).
A principal proposta da TV Brasil é ampliar e diversificar o acesso à oferta de
conteúdo audiovisual. Ela está presente em todo o território brasileiro e, agora, ainda
conta com canais de seus programas no site de hospedagem de vídeos “youtube”.
Através deles, todos os que não têm acesso ao sinal, ainda novo, da TV Brasil
podem conferir a programação da emissora; também servindo de acervo de materiais
produzidos. Além disso, existe a possibilidade de participar pela página da TV Brasil
no site de redes sociais Facebook e ainda, enviar mensagens de textos e mensagens
via aplicativo Whats App. Essa participação é incentivada a fim de garantir maior
pluralidade de vozes; mesmo estando cientes dos problemas de acesso e conexão à
internet.
Em 2016, o Brasil passou por conflitos políticos que resultaram em um processo
de impeachment da presidenta eleita. O vice, ao assumir o governo, começa um
processo de desmonte da comunicação pública no país. Seu primeiro ato foi desfazer
o Conselho Curador da EBC e criar a MP 744, que determina que o presidente da
EBC seja indicado pelo presidente da república.
2 | COBERTURA EM SAÚDE
As relações entre saúde e comunicação são (ou deveriam ser) estreitas.
Após discorrer sobre a comunicação pública e os direitos do acesso à informação,
principalmente na TV pública, deve-se intuir a relação associada ao direito do cidadão
de ter acesso à informação e à saúde. Kucinski (2000) fala sobre esses novos
conceitos e como influenciam na definição de políticas públicas de saúde. Os novos
conceitos de saúde e doença são dados pela mídia, na relação jornalismo e saúde.
Os novos conceitos de saúde-doença têm vastas implicações na definição de
políticas públicas de saúde e, portanto, em seu acompanhamento jornalístico.
Essas políticas não devem se limitar a combater focos ou endemias, ainda que isso
continue sendo útil e necessário, mas devem procurar, principalmente, a melhoria
da qualidade geral de vida da população. Mais do que causa, as endemias
seriam a consequência da má qualidade ambiental ou de vida. Melhorar moradia,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 3
26
transporte, saneamento, qualidade do ar e da alimentação seriam importantes
políticas públicas a serem cobradas como essenciais ao exercício do direito à
saúde (KUCINSKI, 2000, biblioteca online da Scielo).
Ainda nessa perspectiva, o jornalismo em saúde tem uma responsabilidade a
mais. Além de elencar as novidades em notícias ainda deve perpetuar a informação e
horizontalizar a percepção do telespectador-paciente. É necessário contextualizar a
informação e, ainda, inseri-la no todo. Teixeira (2009) destaca esse aspecto.
sobre a responsabilidade do jornalismo em saúde com foco especial na seguinte
questão: o jornalismo em saúde deve apenas contar a novidade ou deve também
oferecer à sociedade a noção do todo, contando a novidade, mas contextualizando
também o que ela acrescenta ou discorda do conjunto de evidências anteriores
(TEIXEIRA, 2009).
3 | ANÁLISES
Para o levantamento e análise empíricos foi analisado o material disponível na
internet no site do Repórter Brasil (http://tvbrasil.ebc.com.br/reporterbrasil). Existem
duas edições, uma diurna e outra noturna. O alvo do artigo é a análise da edição
noturna. Os dados coletados para analise foram todos os episódios da série “Nos
corredores do SUS”, exibida no Repórter Brasil edição noturna. Para a análise da
série foram consultadas as reportagens via internet no site da emissora TV Brasil.
Para avaliá-las foram utilizados dados de pesquisas anteriores do grupo de pesquisa
“Laboratório de Jornalismo e Narrativas Audiovisuais”. São apresentados eixos de
análises.
O Repórter Brasil é o principal telejornal diário (não exibido aos domingos) da
TV Brasil. A proposta do Repórter Brasil é trazer o jornalismo público às televisões
brasileiras. De segunda a sexta possui duração de uma hora e aos sábados 30
minutos.
3.1 A série “Nos Corredores do SUS”
A série “Nos corredores do SUS” busca mostrar a historia do SUS e como
ele se encontra atualmente. “Nos corredores do SUS” foi veiculada na semana de
18 a 22 de janeiro de 2016 no principal telejornal da emissora pública TV Brasil, o
Repórter Brasil edição noturna. A partir dessa série, com cinco episódios, foram feitas
análises quali-quantitativas a respeito da cobertura em saúde e de sua qualidade
no telejornalismo público. A série de reportagens foi analisada a partir dos vídeos
disponibilizados no sítio oficial da emissora de televisão. Na época da série houve
uma mobilização importante nas redes sociais, em especial o facebook, que deu
notoriedade a “Nos corredores do SUS”. A série foi produzida pela própria TV Brasil,
em Brasília e o último episódio, especial do Reino Unido e Estados Unidos, feito por
correspondentes.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 3
27
Todos os vídeos das cinco reportagens foram assistidos via site da TV Brasil.
A partir desse primeiro contato com o material audiovisual pôde-se começar a
análise. Para as análises qualitativas foram realizadas inferências acerca de três
eixos considerados centrais nos estudos do Laboratório de Jornalismo e Narrativas
Audiovisuais, Pluralidade, Diversidade e Cidadania/Autonomia. Para fins de
sistematização eles foram denominados eixos A, B e C, respectivamente. O método
de coleta de dados é a Análise da Materialidade Audiovisual, uma metodologia
desenvolvida pela professora Iluska Coutinho que visa a pesquisa das unidades de
texto+som+imagem+tempo+edição através de eixos de análises.
No eixo A, que trata da pluralidade, são englobadas as pluralidades de
participações. São analisados os setores sociais representados, as temáticas de
cada matéria, quais são os partidos políticos citados, se há presença do governo;
em caso positivo de que forma, quais são as perspectivas de mundo enunciadas, se
existem elementos regionais fora do eixo padrão (sul e sudeste) e se há presença de
sotaques.
No eixo B, que trata da diversidade, é trabalhada a inclusão. São analisados
como é dada a inclusão do público na narrativa (e de que forma ela se dá, via
personagens?), como é dada a inserção da população; se existe direito à voz. São
analisadas, também, as fontes e o tratamento dado a elas; quais fontes aparecem,
se as fontes tem autoridade atribuída e direito à voz. Ainda no eixo B são analisados
a temática (abordagens, como o tema é tratado, se o enfoque é diferenciado ou se
recorrem a narrativas e modelos convencionais).
No eixo B, segundo pesquisas do grupo “Laboratório de Jornalismo e Narrativas
Audiovisuais”, ainda deve-se analisar os formatos utilizados. Porém, essa parte será
descartada para essa pesquisa visto que a série analisada segue um padrão no que
se trata do formato e se tornaria redundante analisá-lo. Será apenas citado.
O eixo C trata de cidadania/autonomia. Nele são analisados se há
contextualização dos fatos e inserção de desdobramentos possíveis inclusive para o
cidadão, se a narrativa insere ou tem presença de estímulos à ação do telespectador
e como essa convocação é feita, se há inclusão do cidadão comum como agente da
narrativa se o cidadão age e transforma a realidade do fato narrado. E, ainda, se a
matéria possui um viés formativo, de perspectiva ou tom educativo.
3.1.1 Reportagem 1
A reportagem 1 conta um pouco da história da criação do SUS e conta como as
pessoas chegam até o Sistema Único de Saúde. Explica, também, sobre os diversos
pontos e formas de atendimento da população (pronto socorro, samu, UPAs). O tempo
total de cabeça mais reportagem soma três minutos e cinquenta e seis segundos
(3’56’’).
No eixo A - Pluralidade percebe-se que não são muitos os setores sociais
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 3
28
representados. As fontes que efetivamente tem direito à voz são os especialistas
(nesse caso uma representante do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde). Cinco
personagens falaram poucos segundos, três deles nem foram creditados. As
temáticas são diversificadas, porém quase não se nota a presença de retrancas.
Partidos políticos não são mencionados nessa primeira reportagem. A presença do
governo se dá, indiretamente, pela apresentação de responsabilidades com relação
ao SUS, sem interferência direta. Elementos regionais e presença de sotaque, que
deveriam ser prezados no telejornalismo público, não estão presentes. Em alguns
casos a contextualização dos fatos é dada, em outras o fato é noticiado como se fosse
uma máxima de conhecimento geral. De três minutos e cinquenta e seis segundos
(3’56’’), vinte e um segundos foram destinados a uma única fala, da representante do
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (por ser o “poder instituído”, passar-se-á a ser
denominado “autoridade” daqui para frente). O gráfico abaixo mostra o total de tempo
da fala da autoridade nessa primeira reportagem.
Gráfico 1: Tempo de fala da autoridade na reportagem 1
Fonte: Elaborado pelo próprio autor.
No eixo B - Diversidade percebe-se que a inclusão não é trabalhada na primeira
reportagem da série “Nos corredores do SUS”. As narrativas deveriam inserir o público,
mas só o fazem ao pegar personagens comuns quase sem direito de fala. As fontes
são variadas, mas a estrutura comum é a de um personagem que reafirma o texto do
repórter seguido de um especialista (nesse caso um enfermeiro). A autoridade, como
foi nomeada acima, é a última a ser entrevistada. Ela é a representante do poder
instituído. A temática é tratada da forma padrão, seguindo inclusive a padronização
dos formatos (Cabeça em estúdio + Off + entrevista com personagem + Passagem +
entrevista com especialista/autoridade).
No eixo C - Cidadania/Autonomia percebe-se que a explicação do contexto dos
fatos nem sempre se dá ao cidadão leigo. Alguns temas precisam ser mais bem
explicados e detalhados para a compreensão geral; por exemplo a atuação do SAMU
e a própria existência do SAMU. O que difere o SAMU de uma ambulância normal?
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 3
29
Quais são os equipamentos do SAMU? Esses e diversos outros questionamentos
ficaram em aberto. Os desdobramentos possíveis não são explorados. A narrativa
não insere o telespectador nem o convida à ação. O tempo todo o telespectador só
é informado, superficialmente, da notícia. Ele é um “consumidor passivo”, não sendo
agente da narrativa. O viés é apenas informativo.
3.1.2 Reportagem 2
A reportagem 2 conta como se dá o financiamento do SUS.
No eixo A - Pluralidade percebe-se que não são muitos os setores sociais
representados. As fontes que efetivamente tem direito à voz são os especialistas
(nesse caso o vice presidente do Conselho Federal de Medicina, uma professora do
departamento de saúde coletiva da UNB e o governador do Distrito Federal). Quatro
personagens falaram poucos segundos, dois deles nem foram creditados. A temática
foi única, girando em torno do financiamento do SUS. Não se nota a presença de
retrancas. Partidos políticos não são mencionados nessa segunda reportagem. A
presença do governo se dá, indiretamente, pela apresentação de responsabilidades
com relação ao SUS, sem interferência direta. O governador do Distrito Federal teve
direito à fala. Elementos regionais e presença de sotaque, que deveriam ser prezados
no telejornalismo público, não estão presentes. Em alguns casos a contextualização
dos fatos é dada, em outras o fato é noticiado como se fosse uma máxima de
conhecimento geral. De quatro minutos e dezessete segundos (4’17’’), quarenta
e nove segundos foram destinados a falas de autoridades, do vice presidente do
Conselho Federal de Medicina, da professora do departamento de saúde coletiva da
UNB e do governador do Distrito Federal. O gráfico abaixo mostra o total de tempo da
fala das autoridades nessa segunda reportagem.
Gráfico 2: Tempo de fala das autoridades na reportagem 2.
Fonte: Elaborado pelo próprio autor.
No eixo B - Diversidade percebe-se que a inclusão não é trabalhada na segunda
reportagem da série “Nos corredores do SUS”. As narrativas deveriam inserir o
público, mas só o fazem ao pegar personagens comuns quase sem direito de fala. As
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 3
30
fontes são variadas, mas a estrutura comum é a de um personagem que reafirma o
texto do repórter seguido de um especialista. As autoridades são as fontes que mais
possuem tempo de fala. A temática é tratada da forma padrão, seguindo inclusive a
padronização dos formatos (Cabeça em estúdio + Off + entrevista com personagem
+ Passagem + entrevista com especialista/autoridade).
No eixo C - Cidadania/Autonomia percebe-se que a explicação do contexto dos
fatos nem sempre se dá ao cidadão leigo. Alguns temas precisam ser mais bem
explicados e detalhados para a compreensão geral; por exemplo qual a participação
e as responsabilidades dos planos de saúde visto que foi informado que todo cidadão,
tendo plano de saúde ou não, tem o direito de ser atendido pelo SUS. Então, pra quê
existem os planos de saúde; já que pessoas que tem plano declararam que não foram
atendidas pela rede privada e conseguiram o atendimento na rede pública? Esses e
diversos outros questionamentos ficaram em aberto. Os desdobramentos possíveis
não são explorados. A narrativa não insere o telespectador nem o convida à ação.
O tempo todo o telespectador só é informado, superficialmente, da notícia. Ele é um
“consumidor passivo”, não sendo agente da narrativa. O viés é apenas informativo.
3.1.3 Reportagem 3
A reportagem 3 mostra os projetos do SUS que não saíram do papel e as
propostas para melhorar o atendimento à população na visão de especialistas.
No eixo A - Pluralidade percebe-se que não são muitos os setores sociais
representados; nessa terceira reportagem só especialistas foram entrevistados.
As fontes que efetivamente tem direito à voz são os especialistas (nesse caso
uma representante do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, uma professora do
departamento de saúde coletiva da UNB, uma assessora de gerência de enfermagem
do Hospital de Base, o vice-presidente do Conselho Federal de Medicina e o governador
do Distrito Federal). Nenhum personagem foi entrevistado nessa reportagem. A
temática foi única, girando em torno dos projetos para o sistema de saúde que não
saíram do papel e as propostas para melhor o atendimento à população. Não se
nota a presença de retrancas. Partidos políticos não são mencionados nessa terceira
reportagem. A presença do governo se dá, indiretamente, pela apresentação de
responsabilidades com relação ao SUS, sem interferência direta. O governador do
Distrito Federal teve direito à fala. Elementos regionais e presença de sotaque, que
deveriam ser prezados no telejornalismo público, não estão presentes. Em alguns casos
a contextualização dos fatos é dada, em outras o fato é noticiado como se fosse uma
máxima de conhecimento geral. De três minutos e cinquenta e um segundos (3’51’’),
oitenta e cinco segundos foram destinados a falas de autoridades, uma representante
do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, uma professora do departamento de
saúde coletiva da UNB, uma assessora de gerência de enfermagem do Hospital de
Base, o vice-presidente do Conselho Federal de Medicina e o governador do Distrito
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Capítulo 3
31
Federal. O gráfico abaixo mostra o total de tempo da fala das autoridades nessa
terceira reportagem.
Gráfico 3: Tempo de fala das autoridades na reportagem 3
Fonte: Elaborado pelo próprio autor.
No eixo B - Diversidade percebe-se que a inclusão não é trabalhada na terceira
reportagem da série “Nos corredores do SUS”. As narrativas deveriam inserir o
público, mas essa reportagem nem personagens têm. As fontes são variadas, mas
a estrutura comum é a de um personagem que reafirma o texto do repórter seguido
de um especialista. As autoridades são as fontes que mais possuem tempo de fala. A
temática é tratada da forma padrão, seguindo inclusive a padronização dos formatos
(Cabeça em estúdio + Off + Passagem + entrevista com especialista/autoridade).
No eixo C - Cidadania/Autonomia percebe-se que a explicação do contexto dos
fatos nem sempre se dá ao cidadão leigo. Alguns temas precisam ser mais bem
explicados e detalhados para a compreensão geral; por exemplo, qual a participação
e as responsabilidades dos políticos que não votaram as emendas e projetos para
o SUS? Por que o SUS ainda não tem total financiamento que a lei do ano de 2015
determinou? Esses e diversos outros questionamentos ficaram em aberto. Os
desdobramentos possíveis não são explorados. A narrativa não insere o telespectador
nem o convida à ação. O tempo todo o telespectador só é informado, superficialmente,
da notícia. Ele é um “consumidor passivo”, não sendo agente da narrativa. O viés é
apenas informativo.
3.1.4 Reportagem 4
A reportagem 4 mostra os atendimentos complexos que o SUS realiza com
sucesso, apesar das dificuldades existentes com recursos.
No eixo A - Pluralidade percebe-se que não são muitos os setores sociais
representados. As fontes que efetivamente tem direito à voz são os especialistas
(nesse caso a coordenadora de ensino e pesquisa do Hospital de Base e a assessora
da gerência de enfermagem do Hospital de Base). Uma personagem fala poucos
segundos contando sua experiência no tratamento do câncer. A temática foi única,
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Capítulo 3
32
girando em torno dos tratamentos de alta complexidade que o SUS realiza com
sucesso apesar das dificuldades. Não se nota a presença de retrancas. Partidos
políticos não são mencionados nessa quarta reportagem. A presença do governo
se dá, indiretamente, pela apresentação de responsabilidades com relação ao SUS,
sem interferência direta. Elementos regionais e presença de sotaque, que deveriam
ser prezados no telejornalismo público, não estão presentes. Em alguns casos a
contextualização dos fatos é dada, em outras o fato é noticiado como se fosse uma
máxima de conhecimento geral. De três minutos e quarenta e cinco segundos (3’45’’),
cinquenta segundos foram destinados a falas de autoridades, a coordenadora de
ensino e pesquisa do Hospital de Base e a assessora da gerência de enfermagem do
Hospital de Base. O gráfico abaixo mostra o total de tempo da fala das autoridades
nessa quarta reportagem.
Gráfico 4: Tempo de fala das autoridades na reportagem 4.
Fonte: Elaborado pelo próprio autor.
No eixo B - Diversidade percebe-se que a inclusão não é trabalhada na quarta
reportagem da série “Nos corredores do SUS”. As narrativas deveriam inserir o
público, mas essa reportagem só tem uma personagem pouco utilizada. As fontes
são variadas, mas a estrutura comum é a de um personagem que reafirma o texto
do repórter seguido de um especialista. As autoridades são as fontes que mais
possuem tempo de fala. A temática é tratada da forma padrão, seguindo inclusive a
padronização dos formatos (Cabeça em estúdio + Off + entrevista com personagem
+ Passagem + entrevista com especialista/autoridade).
No eixo C - Cidadania/Autonomia percebe-se que a explicação do contexto dos
fatos nem sempre se dá ao cidadão leigo. Alguns temas precisam ser mais bem
explicados e detalhados para a compreensão geral; por exemplo, qual a participação
e as responsabilidades dos procedimentos de alta complexidade? Os planos de saúde
não são obrigados a cobrir? A única informação que é dada é que o SUS é quem
realiza os tratamentos de alta complexidade. Esses e diversos outros questionamentos
ficaram em aberto. Os desdobramentos possíveis não são explorados. A narrativa
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Capítulo 3
33
não insere o telespectador nem o convida à ação. O tempo todo o telespectador só
é informado, superficialmente, da notícia. Ele é um “consumidor passivo”, não sendo
agente da narrativa. O viés é apenas informativo.
3.1.5 Reportagem 5
A reportagem 5 nos mostra como é a saúde nos Estados Unidos da América e no
Reino Unido (oficialmente Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda da Norte, engloba
os países Escócia, Inglaterra, Irlanda do Norte e País de Gales). Nos Estados Unidos,
a saúde é praticamente privada. Já no Reino Unido existe um sistema de saúde
gratuito parecido com o SUS.
No eixo A - Pluralidade percebe-se que não são muitos os setores sociais
representados. A reportagem foi toda construída em offs e passagens. A temática
foi única, girando em torno do funcionamento dos sistemas de saúde nos Estados
Unidos da América e do Reino Unido. Não se nota a presença de retrancas. Partidos
políticos não são mencionados nessa quinta reportagem. A presença do governo não
existe. Elementos regionais e presença de sotaque, que deveriam ser prezados no
telejornalismo público, não estão presentes. Em alguns casos a contextualização
dos fatos é dada, em outras o fato é noticiado como se fosse uma máxima de
conhecimento geral. A reportagem de quatro minutos e trinta e três segundos (4’33’’)
foi toda construída em offs e passagens. Não houve entrevistas. O gráfico abaixo
mostra o total de tempo da fala das autoridades nessa quinta reportagem.
Gráfico 5: Tempo de fala das autoridades na reportagem 5
Fonte: Elaborado pelo próprio autor.
No eixo B - Diversidade percebe-se que a inclusão não é trabalhada na quarta
reportagem da série “Nos corredores do SUS”. As narrativas deveriam inserir o público,
mas essa reportagem não tem personagens. A reportagem não possui fontes e a
estrutura se dá em offs e passagens. A temática é tratada da forma padrão, seguindo
inclusive a padronização dos formatos (Cabeça em estúdio + Off + Passagem + Off).
No eixo C - Cidadania/Autonomia percebe-se que a explicação do contexto dos
fatos nem sempre se dá ao cidadão leigo. Alguns temas precisam ser mais bem
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 3
34
explicados e detalhados para a compreensão geral; por exemplo, qual a participação e
as responsabilidades dos procedimentos do governo dos Estados Unidos da América
na saúde pública? Não existe saúde pública nos Estados Unidos da América? Esses
e diversos outros questionamentos ficaram em aberto. Os desdobramentos possíveis
não são explorados. A narrativa não insere o telespectador nem o convida à ação.
O tempo todo o telespectador só é informado, superficialmente, da notícia. Ele é um
“consumidor passivo”, não sendo agente da narrativa. O viés é apenas informativo.
4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sobre a série “Nos corredores do SUS”, nota-se uma padronização de formatos,
temáticas diversificadas e um reaproveitamento de fontes. Em cinco episódios a mesma
fonte aparece em três deles. Além disso, é notória uma tendência à oficialização das
fontes. O maior tempo de fala se deu para as fontes oficiais, também chamadas aqui
de “autoridades”.
Com relação aos eixos de análise percebe-se, também, certa padronização da
série de reportagens. No eixo A - Pluralidade percebe-se que não são muitos os
setores sociais representados. As fontes que efetivamente tem direito à voz são
os especialistas. As temáticas foram diversificadas ao longo da série, cada episódio
com seu tema específico. No eixo B - Diversidade percebe-se que a inclusão não é
trabalhada na série de reportagens “Nos corredores do SUS”. As narrativas deveriam
inserir o público, mas essas reportagens têm poucos personagens; o episódio
cinco nem teve personagem algum. No eixo C - Cidadania/Autonomia percebe-se
que a explicação do contexto dos fatos nem sempre se dá ao cidadão leigo. Alguns
temas precisam ser mais bem explicados e detalhados para a compreensão geral.
Alguns questionamentos ficaram em aberto. Os desdobramentos possíveis não
são explorados. A narrativa não insere o telespectador nem o convida à ação. O
tempo todo o telespectador só é informado, superficialmente, da notícia. Ele é um
“consumidor passivo”, não sendo agente da narrativa. O viés é apenas informativo.
REFERÊNCIAS
BUCCI, Eugênio. É possível fazer televisão pública no Brasil? NOVOS ESTUDOS: revista
da CEBRAP, São Paulo, n.88, p.5-18, nov. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?pid=S0101-33002010000300001&script=sci_arttext>. Acesso em 13/02/2017.
COUTINHO, Iluska (org). A informação na TV pública. Florianópolis: Insular, 2013.
EBC. Sobre a EBC. Disponível em: <http://www.ebc.com.br/sobre-a-ebc>. Acesso em 17/01/2017.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalismo, saúde e cidadania. Biblioteca online da Scielo. Disponível em
< http://www.scielo.br//scielo.php?script=sci_arttext& pid=S1414-32832000000100025>. Acesso em
10/02/2017.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 3
35
TEIXEIRA, Ricardo A. Por um melhor jornalismo em saúde. Revista ICBNeuro. Disponível em <
http://www.icbneuro.com.br/consciencia/ jornalismoSaude.php?p=js&id=9>. Acesso em 07/02/2017.
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Capítulo 3
36
CAPÍTULO 4
doi
ASPECTOS DA HISTÓRIA DO JORNALISMO ESPORTIVO
Thalita Raphaela Neves de Oliveira
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
SPORTS JOURNALISM HISTORY’S
ASPECTS
Rio de Janeiro – RJ
RESUMO: Assim como os clubes de futebol, ao
longo de sua trajetória a cobertura jornalística
especializada em esportes também acumulou
conquistas e derrotas. Se, por um lado, o esporte
estabeleceu-se como editoria permanente e de
destaque nos principais veículos brasileiros, por
outro, foi relegado a uma visão estigmatizada
que, embora em menor escala, ainda perdura,
caracterizando a atividade como uma área de
menor prestígio quando comparada às demais
coberturas. Ao longo de seus pouco mais de
cem anos, a imprensa esportiva se desenvolveu
concomitantemente ao esporte mais popular do
país e ao cargo mais subestimado da profissão
– o jornalista esportivo – passando por diversas
transformações significativas em seu modus
operandi. Essa trajetória de altos e baixos
é o que se pretende descrever neste artigo,
ilustrado a partir da experiência de quatro
emblemáticos representantes do jornalismo
esportivo impresso brasileiro: A Gazeta
Esportiva, o Jornal dos Sports, a revista Placar
e o diário esportivo Lance!.
PALAVRAS-CHAVE: jornalismo esportivo; A
Gazeta Esportiva; Jornal dos Sports; Placar;
Lance!
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
ABSTRACT: Like football clubs, throughout its
history, journalistic coverage specialized in sports
also accumulated achievements and defeats.
If, on the one hand, sport established itself as
a permanent and prominent area in the main
Brazilian vehicles, on the other, it was relegated
to a stigmatized view that, although to a lesser
extent, still persists, characterizing the activity
as a less prestigious area when compared to
the other coverages. Over the course of its little
more than a hundred years, the sports press
has developed simultaneously the country's
most popular sport and the most underrated
position of the profession – the sports journalist
– undergoing several significant transformations
in its modus operandi. This trajectory of ups and
downs is what I intend to describe in this article,
illustrated by the experience of four emblematic
representatives of Brazilian’s sports journalism:
A Gazeta Esportiva, Jornal dos Sports, Placar
and Lance!.
KEYWORDS: sports journalism; A Gazeta
Esportiva; Jornal dos Sports; Placar; Lance!
Capítulo 4
37
1 | INTRODUÇÃO
Pensa-se em introduzir o futebol, nesta terra. É uma lembrança que, certamente,
será bem recebida pelo público, que, de ordinário, adora as novidades. Vai ser,
por algum tempo, a mania, a maluqueira, a ideia fixa de muita gente. Com exceção
talvez de um ou outro tísico, completamente impossibilitado de aplicar o mais
insignificante pontapé a uma bola de borracha, vai haver por aí uma excitação, um
furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um mês.
(RAMOS, 1962, p. 90).
Ao primeiro olhar, em uma análise acalorada e subjetiva como a do torcedor na
arquibancada diante de seu time do coração, a declaração acima tende a ser vista
como uma profecia equivocada: deu zebra, como diria o jargão que hoje é comum
no futebol, mas que, na verdade, surgiu de outro jogo bastante conhecido por aqui, o
jogo do bicho. Porém, olhando-se friamente para o excerto, em uma análise objetiva
como se pressupõe ser a do repórter em uma redação de jornal, é possível interpretar
esse trecho da crônica “Traços a Esmo” de Graciliano Ramos – escrita para o Jornal
O Índio em 1921 – não como uma descrença amadora no esporte bretão recémchegado ao Brasil, mas, sim, como uma sátira à apropriação cultural, sob uma ótica
nacionalista. Ou, mais especificamente no caso do escritor nordestino, sob uma ótica
regionalista, como ele próprio sugere no mesmo excerto: “Estrangeirices não entram
facilmente na terra do espinho. O futebol, o boxe, o turfe, nada pega.” (RAMOS, 1962,
p. 92).
A terra do espinho, de fato, era o Nordeste, assim caracterizado pelo autor na
intenção de criticar o dualismo entre as metrópoles brasileiras que começaram a
crescer vertiginosamente no final do século XIX – sob a forte influência civilizatória
europeia – e as vidas secas do sertão nordestino. “Não é que me repugne a introdução
de coisas exóticas entre nós. Mas gosto de indagar se elas serão assimiláveis ou
não.” (RAMOS, 1962, p. 92), explica o romancista, revogando as interpretações de
suas crônicas futebolísticas enquanto meras profecias equivocadas. Esse discurso
satírico utilizado pelo autor seria, para Soares e Lovisolo (1997), uma maneira de
criticar os diversos problemas sociais, políticos e culturais enraizados no país, de
modo que “talvez, o texto viesse a ser melhor entendido, se o futebol fosse visto
meramente como instrumento retórico para Graciliano expor suas críticas românticas
à cidade.” (p.7).
Porém, se ainda restam dúvidas de que Graciliano estava mesmo sendo irônico,
basta acompanhar o desfecho da referida crônica: “A rasteira! Este, sim, é o esporte
nacional por excelência! Todos nós vivemos mais ou menos a atirar rasteira uns nos
outros. [...] No comércio, na indústria, nas letras e nas artes, no jornalismo, no teatro,
nas cavações, a rasteira triunfa.” (RAMOS, 1962, p. 93). No futebol, sabe-se que a
rasteira é passível de cartão amarelo, quiçá vermelho. No jornalismo, contudo, na
maioria dos casos esse golpe sequer é punido. Pelo contrário: muitas vezes dá-se
rasteira nos fundamentos da profissão como trunfo para vender jornais, tendenciar
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 4
38
pontos de vista ou manipular audiências, jogando o Código de Ética para escanteio.
A audiência, inclusive, foi um dos fatores preponderantes para o desenvolvimento
do jornalismo esportivo no Brasil e no mundo, juntamente com a popularização do
futebol e a sua consequente profissionalização, que ocorreu em percurso simultâneo
à profissionalização do próprio jornalista. Nesse sentido, a seguinte pergunta proposta
por Melo (2012) ajuda a compreender como a relação causa-consequência entre
imprensa e esporte se consolidou devido à popularização das práticas desportivas na
sociedade: “A popularidade crescente da prática esportiva dever-se-ia a esse espaço
privilegiado que obteve na imprensa ou, pelo contrário, esse espaço na imprensa
dever-se-ia à popularidade crescente da prática esportiva?” (p. 23).
Respondendo ao seu próprio questionamento, o autor argumenta que essa
relação é como uma via de mão-dupla, de modo que “a imprensa progressivamente
noticiou o esporte porque ele crescentemente tornou-se uma prática socialmente
valorizada”. E, por sua vez, “a prática também se tornou crescentemente valorizada
porque foi progressivamente noticiada na imprensa” (p. 48).
Todavia, mesmo diante desse duplo e progressivo avanço – tanto na prática
quanto na divulgação desportiva – pode-se dizer que a história do jornalismo esportivo
no Brasil e no mundo é recente, com pouco mais de cem anos, podendo ser datada
da segunda metade do século XIX, quando começaram a surgir as primeiras notas
sobre os típicos esportes praticados pelas elites sociais, como a caça e o turfe.
Nesse sentido, Melo (2012) explica que, “mesmo que o esporte em si não fosse
determinante dos rumos políticos e econômicos do país, em torno dos clubes se
organizava gente influente da sociedade, a quem à imprensa interessava relacionarse.” (p. 25). Ainda que nessa passagem o autor estivesse se referindo ao futebol –
que em seus primórdios também era uma prática elitista – o argumento é válido ao
se pensar nas demais relações de interesse mútuo que vigoravam entre a imprensa
e as elites sociais da época.
Isso esclarece o fato de que os primeiros registros esportivos dos quais se tem
notícia (literalmente) tenham sido, segundo Fonseca (1997, p. 127), de autoria da
revista francesa Le Sport (1854), que publicava crônicas sobre os esportes mais
praticados pelas elites até então – haras, turfe e caça – e notas sobre canoagem,
natação, pesca, boxe, bilhar e outras práticas também consideradas elitistas na época.
Além da revista Le Sport, outras publicações esportivas pioneiras que merecem
destaque são os jornais Sportsman (Inglaterra, 1852), Gazzetta dello Sport (Itália,
1896) e El Mundo Deportivo (Espanha, 1906); e as revistas El Cazador (1856) e El
Sport Español (1869), ambas espanholas.
Quanto ao jornalismo esportivo brasileiro, este tem como marco inicial o ano de
1856, em um cenário onde o futebol ainda estava longe de se tornar o protagonista,
conforme afirma Ribeiro (2007):
O jornalismo esportivo brasileiro teria nascido em 1856, com O Atleta, passando
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Capítulo 4
39
receitas para o aprimoramento físico dos habitantes do Rio de Janeiro. Pouco
depois, em 1885, circularam O Sport e O Sportsman. Em 1891, surgiu em São Paulo
A Platea Sportiva, um suplemento de A Platea, criado em 1888. Dez anos depois, em
1898, também em São Paulo, surgiram a revista O Sport e o jornal Gazeta Sportiva
(que não tem nada a ver com o jornal que seria criado futuramente), periódico
de distribuição gratuita que circulava somente aos domingos. Em nenhuma das
publicações o futebol era prioridade: apenas notícias de turfe, regatas e ciclismo.
(RIBEIRO, 2007, pp. 26-27).
No entanto, até o final do século XIX, o noticiário esportivo carecia de um espaço
específico tal qual o que se conhece hoje por editorias. Naquela época, as notícias
esportivas “se misturavam com informações comerciais, políticas, econômicas, por
vezes inseridas no bloco dos acontecimentos sociais” (MELO, 2012, p. 26). Nesse
sentido, Melo destaca o Jornal do Brasil que, de acordo com o autor, já nos seus
primórdios dedicou atenção especial ao esporte, publicando em seu segundo dia de
circulação, 10 de abril de 1891, uma coluna denominada “Sport”.
Os primeiros registros nas publicações brasileiras eram as escassas notas
sobre as práticas desportivas inerentes ao cotidiano das elites sociais do final do
século XIX – caça, turfe e remo. O futebol, em si, só viria a ser oficialmente noticiado
no ano de 1901. O feito, segundo Ribeiro (2007), foi do jornal Correio da Manhã que,
em 22 de setembro do referido ano, publicou em sua coluna “Sport” informações
sobre a partida realizada entre as equipes do Paysandu Cricket Club e Rio Cricket
and Atlhetic Association, as únicas existentes no Rio de Janeiro até então.
Por mais que algumas publicações estivessem começando a dedicar espaço
noticioso ao esporte – inclusive com colunas específicas – o jornalismo esportivo já
nascia como uma atividade subestimada e arraigada de preconceitos desde a virada
do século. Isso porque, nessa época, o esporte era visto como recreação, sendo,
portanto, inadmissível a possibilidade de notícias de entretenimento ocuparem as
manchetes antes destinadas a temas nobres como política e economia, conforme
afirma Coelho (2003). Ainda de acordo com o autor, o fato de a prática desportiva ser,
em princípio, quase exclusiva às classes de maior poder aquisitivo, também freava
o desenvolvimento das editorias esportivas. A lógica era a seguinte: sendo o esporte
interesse apenas das elites – minoria no país – isso implicaria em menor vendagem
de jornais. Logo, não seria lucrativo noticiá-lo.
Em suma, desde sua chegada ao Brasil – passando pelo percurso da
popularização, profissionalização e até a consagração das editorias esportivas – o
futebol demorou mais de 50 anos para conquistar o destaque que atualmente tem na
imprensa brasileira. O caminho foi longo e ainda continua em traçado. Contudo, não se
pode deixar de citar alguns dos principais expoentes responsáveis pela consolidação
da imprensa esportiva simultaneamente à profissionalização do futebol. Para tanto,
este estudo pontuará em seguida alguns aspectos históricos envolvendo a criação de
publicações que são referências nesse sentido, como o Jornal dos Sports, A Gazeta
Esportiva, a revista Placar e o diário Lance!.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 4
40
2 | A GAZETA ESPORTIVA E O JORNAL DOS SPORTS
As versões oficiais dedicam o título de primeiro diário voltado exclusivamente
à cobertura esportiva ao Jornal dos Sports, do Rio de Janeiro. Porém, para Coelho
(2003), A Gazeta Esportiva, de São Paulo, pode ser considerada a primeira publicação
a lutar ferozmente pela consagração do noticiário de esportes. Isso porque, em 1928
– e, portanto, antes da criação do Jornal dos Sports – A Gazeta Esportiva já havia
nascido como um suplemento do jornal A Gazeta. Fundada pela figura icônica de
Cásper Líbero, A Gazeta existe desde 1906, tornando-se um diário exclusivamente
esportivo em 1947. A Gazeta Esportiva, inclusive, é a única referência ao jornalismo
esportivo que aparece na obra de fôlego do historiador Nelson Werneck Sodré, de
1966, a “História da imprensa no Brasil”, como bem observaram Buarque de Hollanda
e Melo (2012).
Abrindo parênteses para contextualizar um importante dado da imprensa
esportiva no Rio Grande do Sul, vale ressaltar que, logo depois da criação de A
Gazeta diária, foi lançada em Porto Alegre pela Companhia Jornalística Caldas Júnior
a Folha da Tarde Esportiva, que circulou diariamente de 15 de setembro de 1949 a
novembro de 1969, quando o jornal especializado acabou e foi incorporado – como
caderno, com o nome de Folha Esportiva e com os mesmos colunistas – pela recém-
criada Folha da Manhã, que circulou até 1980. A Folha da Tarde Esportiva começou
a circular em 12 de abril de 1937, semanalmente, às segundas-feiras. E passou a
circular diariamente em 15 de setembro de 1949. A Folha da Tarde Esportiva era
voltada ao esporte profissional e amador, chegando a circular com mais de 50 páginas.
Conforme Hatje (1996), para muitos profissionais da imprensa gaúcha, esse fato é
considerado o ápice da história do jornalismo esportivo impresso do Rio Grande do
Sul.
Voltando à região Sudeste, como se sabe, nas primeiras décadas do século XX,
a cidade de São Paulo passou por um avassalador processo de urbanização, como
resultado do sucesso econômico de uma cidade que vivia a transição da economia
cafeeira para a industrial. E foi justamente nesse contexto da modernização de São
Paulo que A Gazeta Esportiva se consolidou enquanto diário totalmente voltado à
cobertura de esportes. Essa conjuntura foi, portanto, inevitavelmente refletida nas
publicações do jornal que, segundo Toledo (2012), tratavam do esporte sob um viés
nacionalista, valorizando sua feição popular – o futebol de várzea, por exemplo – e
seus aspectos técnicos, como a disciplina e o coletivismo.
Nesse sentido, A Gazeta Esportiva rivalizava com a perspectiva da malandragem
do futebol-arte dominante na cobertura de esportes dos principais jornais do Rio de
Janeiro, sobretudo com o Jornal dos Sports e o seu time de cronistas de peso, que
“exerciam múltiplas funções simultâneas: cronistas, dirigentes de clubes, presidentes
de entidades esportivas, bacharéis, políticos e literatos” (RIBEIRO, 2007, p. 96).
Em uma dessas rusgas entre os dois pioneiros do jornalismo esportivo no Brasil, o
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Capítulo 4
41
correspondente de A Gazeta no Rio Janeiro, José Silveira, chegara a escrever:
O público deve ser educado por uma escola mais esportiva e menos literária.
[...] O grande fato, todavia, é que os literatos conquistaram o futebol. Duvidamos,
entretanto, que eles conquistem o público futebolístico. Pelo menos, enquanto
teimarem em escrever sobre futebol com a mesma tinta que escrevem seus
romances. (José Silveira, A Gazeta, 24 jun. 1944).
De acordo com Toledo (2012), todas essas críticas endereçadas aos diários
cariocas se referiam, na verdade, não apenas ao embate futebol-arte versus futebol
moderno; mas, principalmente, à suposta incapacidade de os cronistas do time de
Mário Filho escreverem com isenção sobre futebol. Acredita-se que o recado acima,
por exemplo, tenha sido destinado a José Lins do Rego, “levando-se em conta o
seu partidarismo inconfessável pelo Flamengo” (p. 75), clube pelo qual se apaixonou
graças à figura de Leônidas da Silva, o artilheiro do Mundial de 1938, que também
jogara pelo Flamengo. Lins chegou até mesmo a entrar para a política do clube,
assumindo a secretaria geral rubro-negra em 1942.
Fazendo o contraponto, Ribeiro (2007) sugere que o partidarismo de José
Lins não era tão inconfessável assim, já que a parcialidade do escritor paraibano foi
justamente a característica responsável por demarcar sua carreira na crônica esportiva,
mais precisamente na coluna “Esporte e Vida”, a qual assinou entre 1945 e 1953 pelo
Jornal dos Sports. “Escrevia sobre tudo, mas especialmente de seu Flamengo e sem
a menor vergonha de expor sua parcialidade. Criticava os rivais rubro-negros a ponto
de ser agredido com objetos atirados por torcedores nas tribunas dos estádios que
frequentava.” (p. 117). Essa experiência de José Lins do Rego na crônica esportiva,
inclusive, teria deixado até a ele próprio impressionado com a repercussão de suas
palavras, como citado por Ribeiro (2007, p. 117):
A um escritor vale o aplauso, a crítica de elogios, mas a vaia, com a gritaria, as
laranjas... os palavrões, deu-me a sensação da notoriedade verdadeira. Verifiquei
que a crônica esportiva era maior agente da paixão que a crítica literária ou
jornalismo político. Tinha mais de vinte anos de exercício de imprensa e só com
uma palavra arrancava, de uma multidão enfurecida, uma descarga de raiva como
nunca sentira. (José Lins do Rego, Jornal dos Sports, 07 mar. 1945).
A Gazeta Esportiva, até então menos simpática às crônicas românticas do
futebol, chegou a ter tiragens recordes de mais de 500 mil exemplares. Contudo, com
o surgimento e a consagração do rádio e da TV, o seu declínio foi gradativo. Em 2001,
quando completou 73 anos de existência, o jornal vendia apenas 14 mil exemplares
diários. Em seus piores momentos, registrou tiragens de 4 mil exemplares. Por conta
dessa insignificante marca, desde 19 de novembro de 2001 A Gazeta Esportiva
parou de ir às bancas e, “pela impossibilidade de simplesmente desaparecer, pois a
dona do jornal, Fundação Cásper Líbero, era obrigada a manter o título no mercado”
(RIBEIRO, 2007, p. 302), acabou migrando-se para o portal gazetaesportiva.net e
para a agência de notícias Gazeta Press, que hoje detém um dos maiores acervos de
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 4
42
fotos e notícias esportivas no país.
Enquanto em São Paulo a iniciativa pioneira partiu de Cásper Líbero, no Rio
de Janeiro coube à família Rodrigues – mais precisamente a Mário Leite Rodrigues
Filho, o irmão mais velho de Nelson Rodrigues – o feito de fazer história no jornalismo
esportivo brasileiro, o que se deu por meio do Jornal dos Sports, criado em 1931.
Como dito, seus fundadores foram Argemiro Bulcão, que antes dirigia o jornal Rio
Sportivo, e Ozéas Mota, proprietário da gráfica que imprimia essa publicação. Em
seus primórdios, porém, o Jornal dos Sports ainda estava longe de ser o protagonista
da cena esportiva, dividindo a concorrência com as seções esportivas de jornais já
consagrados na época, como o Jornal do Brasil (1893) e o Correio da Manhã (1903).
Entretanto, esse cenário se inverteu drasticamente a partir de 1936, quando
os sócios desfizeram o acordo e venderam o Jornal dos Sports para Mário Filho,
o típico personagem bem-relacionado em todas as esferas da sociedade. Antunes
(2004) afirma que “a opção de Mário Filho por escrever de forma dramática situações
que poderiam parecer corriqueiras aproximou definitivamente o torcedor do jogador
e da vida do clube” (p. 103), o que poderia ser uma das explicações para a rápida
ascensão do Jornal dos Sports (JS).
Nesse sentido, Buarque de Hollanda (2012) afirma que a experiência de
periódicos estrangeiros na unificação de informações esportivas, bem como na
invenção de prêmios, torneios e taças diversas – como o L’Équipe (França, 1900) e o
Gazzeta dello Sport (Itália, 1896) – também foi fator de influência para a consagração
do JS, popularmente conhecido como O cor-de-rosa, devido à tonalidade de sua
impressão gráfica, outra inspiração advinda das publicações estrangeiras.
Ademais, ainda segundo o autor, desde o início da experiência de Mário Filho
no JS, o diretor esteve cercado por um seleto grupo de colaboradores dos mais altos
escalões do esporte e da política, como Vargas Neto, Luiz Galotti e Mário Pollo, além
de nomes como João Lyra Filho, José Lins do Rego e de seu próprio irmão Nelson
Rodrigues, tudo isso graças às suas articulações enquanto empresário e homem
público de esportes. Ribeiro (2007) também chama atenção para o poder articulador
de Mário Filho:
Em suas mãos, o jornalismo esportivo ganharia novas dimensões. Na forma, quase
tudo mudava: título, subtítulo, legendas. O conteúdo abria espaço para a vida dos
personagens que faziam o espetáculo. Jogadores passaram a ser endeusados,
especialmente os negros. Nos bastidores, Mário criava uma rede de informações
poderosa. (p. 75).
O jornal de Mário Filho pautou grande período de competições esportivas e
futebolísticas durante as décadas de 1940, 1950 e 1960. E, mesmo que o futebol
sobressaísse, todas as modalidades eram contempladas: do tênis ao golfe, do remo
ao atletismo, do boxe ao hipismo – nacionais e internacionais. Além disso, nas
páginas do JS, havia espaço também para ciência, educação e cultura, sobretudo
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 4
43
pela presença desses “cronistas-cartolas” (BUARQUE DE HOLLANDA, 2012, p. 105)
que escreviam diariamente no jornal.
Quanto às linhas editoriais do JS, Mário Filho nunca escondera sua proposta de
utilizar o futebol enquanto símbolo de fortalecimento do nacionalismo. Exemplo disso
é a cobertura que antecedeu o início da Copa do Mundo de 1950 e que trazia, além
dos registros da construção do Maracanã (oficialmente batizado de Estádio Jornalista
Mário Filho), o trabalho do cartunista Otelo, por meio do personagem “Moço do Samba”
(MOURA, 1998), que personificava traços característicos do futebol brasileiro, como
a alegria, a malícia, o improviso e a malandragem.
Por outro lado, com um viés disciplinador, parte da imprensa que cobria a
concentração da Seleção às vésperas daquela Copa, fazia circular diariamente em
seus periódicos cartilhas de regras para os jogadores, tradicionalmente contrários ao
regime de concentração: “Era proibido circular na boate, no bar e no salão de jogos do
hotel, também era proibido fumar no alojamento e salas de refeições, ingerir bebidas
alcoólicas e jogar carteado a dinheiro.” (RIBEIRO, 2007, p. 130). Avessos ou não a
esse sistema, fato é que o clima de “já ganhou” havia tomado conta não somente da
delegação brasileira da Copa de 1950, mas também, de toda a imprensa esportiva às
vésperas do que seria o fatídico Maracanazo.
Os treze gols marcados contra suecos e espanhóis deixaram essa certeza. Dois
dias antes, na sexta-feira, uma empresa de cinema presenteou todos os jogadores
da seleção com permanentes válidas por cinco anos. Até aí nada de mais, não
fosse a frase datilografada na cortesia: “Aos campeões do mundo de 1950.”.
(RIBEIRO, 2007, p. 131).
A linguagem doutrinária do jornal de Mário Filho, sua centralização na capital
nacional, o contexto de profissionalização do futebol e, claro, o time de colaboradores
do JS, tudo isso contribuiu para justificar a experiência de O cor-de-rosa como um
marco da emancipação do jornalismo esportivo brasileiro. (BUARQUE DE HOLLANDA,
2012). Contudo, ainda de acordo com o autor, seria injusto atribuir todo o sucesso
do Jornal dos Sports apenas à figura influente de Mário Filho, já que, nesse contexto
simultâneo da profissionalização do jornalista, os profissionais da área também foram
grandes responsáveis pela qualidade técnica das publicações.
Se Mário Filho foi um grande agente de mediação entre diversas esferas da vida
esportiva, política e cultural do Rio de Janeiro, não é o caráter personalista de sua
“obra” que está em jogo aqui. Tem-se em mira, ao contrário, a capacidade coletiva
do jornalista esportivo de “inventar tradições” e de “inventar multidões”, assim como
de pregar sua pedagogia esportiva. Isso se dava não de maneira isolada, mas em
conjunto com outros atores, dentre profissionais, redatores e técnicos qualificados.
(pp. 83/84).
Apesar de o Jornal dos Sports poder ser considerado a experiência de jornalismo
esportivo mais bem-sucedida até então, perdurando por cinco décadas no auge, o
jornal começou a definhar com a morte de Mário Filho em 1966, enfraquecendo-se
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 4
44
gradualmente até 1990 e findando-se de vez em 2007. Porém, esse fato coube tanto
às vicissitudes trágicas da família Rodrigues quanto à inserção de outro periódico que
marcaria a virada dos anos 1960 para os anos 1970 na imprensa esportiva brasileira:
a revista semanal Placar.
3 | A REVISTA PLACAR E O DIÁRIO ESPORTIVO LANCE!
Fundada no início de 1970 e pertencente ao grupo Abril, a Placar surgiu como
concorrente direta do Jornal dos Sports – resistindo ao tempo e ao contexto da ditadura
e da censura prévia – e chegando a vender mais de 100 mil exemplares semanais
durante a Copa de 1970. Nesse aspecto, Coelho (2003) relembra que, enquanto
no Brasil a primeira revista esportiva com publicação regular só se estabeleceu
nos anos 1970, países como a Itália e a Argentina já possuíam revistas dedicadas
exclusivamente aos esportes desde 1927.
Segundo Buarque de Hollanda (2012), essa concorrência direta com o JS ia
além do plano da vendagem – onde a Placar chegou a alcançar a marca de 500 mil
exemplares vendidos já em sua primeira edição – para abranger também a contratação
de profissionais consagrados que antes faziam parte do quadro de funcionários de
Mário Filho e que agora migravam para as páginas da revista, a exemplo do cartunista
Henfil. A charge, inclusive, junto da crônica esportiva, funcionava como uma licença
editorial para possibilitar o discurso crítico e engajado que, desde o início, compunha
as linhas editoriais da Placar, como demonstram os dois excertos abaixo:
A maior e melhor revista esportiva do Brasil, publicada pela Editora Abril, surgiu no
auge da efervescência política do país e no olho do furacão da crise instalada com
a demissão do técnico da Seleção Brasileira às vésperas da disputa da Copa do
Mundo do México. Placar, idealizada pelo jornalista e advogado Cláudio de Souza,
era destinada a leitores interessados em reportagens mais elaboradas, inteligentes,
escritas por feras do jornalismo esportivo. (RIBEIRO, 2007, p. 208).
Temos hoje no país uma nova mentalidade no jornalismo esportivo: a paixão
clubística, as preocupações pessoais, os interesses menores foram substituídos
pela crítica construtiva, pela análise ponderada, pela reportagem desassombrada
e imparcial. E tudo isso faz parte da filosofia da PLACAR. (Victor Civita, editor da
ed. 1 da Placar, apud MALAIA, 2012, pp. 153/154).
Ao longo de sua trajetória, a revista Placar passou por várias mudanças editoriais
que, segundo Malaia (2012), contribuíram para sua manutenção no jornalismo
esportivo, sobretudo ao se considerar um cenário onde a divulgação da informação
esportiva dividia-se entre o jornal impresso, o rádio e a TV. Nesse sentido, o autor
destaca a proposta de cunho social da revista, ao dar “voz a jogadores que não se
furtavam a declarar seu posicionamento político no período” (p. 169), destacando, por
exemplo, a contratação do sociólogo e jornalista esportivo Juca Kfouri e a cobertura
de movimentos sociais como a Democracia Corinthiana na luta pelas Diretas Já.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 4
45
O autor ressalta, ainda, as sucessivas mudanças nos slogans da revista como
uma estratégia editorial para manter a aproximação de seu público no contexto sócioeconômico e esportivo ao longo de cada período da publicação: “Se no início dos
anos 1980, Placar passou a se chamar ‘Placar Todos os Esportes’, no final da década
já era a ‘Placar Mais’ e nos anos 1990 passou a ser a ‘Placar: Futebol, sexo e rock &
roll’.” (p. 169).
Todavia, quanto às estratégias editoriais para fidelizar a audiência, pode-se
considerar que nenhum jornal foi mais efetivo nesse quesito do que o diário esportivo
Lance!, criado em 1997 pelo economista Walter de Mattos Júnior, com conceito
editorial e projeto gráfico comprados – assinados pelo designer catalão Antoní Cases
– e público-alvo bem definido: o torcedor consumidor. Em formato tabloide, esse
seria o primeiro jornal totalmente em cores publicado no Brasil, além de ser pioneiro
também no âmbito de sua fundação, já que foi o primeiro projeto midiático do eixo
Rio-São Paulo formado por investidores, e não por grupos familiares.
Inspirado nas experiências editoriais de Antoní Cases em diários estrangeiros
como o argentino Olé e o espanhol Marca, em poucos meses o multicolorido Lance!
se tornaria o diário esportivo mais popular do país, testemunhando a decadência de
seu concorrente direto em São Paulo, A Gazeta Esportiva, e também do Jornal dos
Sports no Rio de Janeiro. Além disso, na proposta de Cases, a cobertura do Lance!
deveria sempre priorizar os aspectos positivos das equipes, surpreendendo por seu
enfoque original e humanizado, sendo “um lugar para o torcedor encontrar prazer,
não sofrimento” (STYCER, 2012, p. 196).
Em 2012, perto de completar quinze anos de existência, o Lance! figurava entre
os dez jornais mais vendidos em banca no país, segundo Stycer (2012), com tiragem
acima de 100 mil exemplares diários, fato que comprova sua consagração no mercado
editorial brasileiro. Com a aposta na valorização do design gráfico como forma de
aprimorar o conteúdo informativo, foi também no Lance! que, pela primeira vez no
jornalismo esportivo, o texto perderia sua primazia absoluta nas páginas dos jornais.
E não somente a linguagem visual passava a ser mais valorizada, mas, também,
o conteúdo publicitário, explorando uma vasta gama de produtos relacionados ao
esporte. Conforme explica Stycer (2012), “o Lance! visava, claramente, desde o início,
ser uma espécie de vitrine, um canal de comunicação entre o mundo do futebol e o
seu potencial público consumidor” (p. 197).
A estratégia foi eficiente ao se considerar, sobretudo, o contexto de reestruturação
do futebol nesse período, como as recorrentes crises administrativas da Confederação
Brasileira de Futebol (CBF), a comercialização dos direitos de transmissão para a TV
e o desenvolvimento do marketing esportivo, onde muitas agremiações passaram a
ostentar a figura de clubes-empresas. Nesse contexto, Buarque de Hollanda e Melo
(2012) salientam que a proposta do Lance! em criar um tabloide voltado para o público
consumidor de renda elevada, situado majoritariamente entre as classes A e B, “dá
insumos também para se pôr em suspeita a visão estereotipada do perfil medíocre
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 4
46
que cerca a imagem do leitor-torcedor” (p. 19).
Ou seja, além de priorizar as angulações positivas – aproximando o leitor-torcedor
de seu time do coração – e de desfazer a primazia do texto nas publicações esportivas,
o diário também coloca em xeque o estereótipo que caracteriza o consumidor de
informação esportiva enquanto público de interesses menores, confirmando que
esse “esforço do Lance! em realçar o ‘jovem qualificado’ está em total sintonia com a
compreensão de que, na fase do ‘futebol-empresa’, a busca pelo leitor- torcedor está
intimamente relacionada à sua capacidade de consumo.” (STYCER, 2012, p. 197).
Contudo, o próprio Stycer (2012) faz o contraponto com base em pesquisas que, em
2005, apontaram um acréscimo de leitores do Lance! pertencentes às classes B e C,
que já somariam 45% do público do jornal.
Visualizo o leitor do Lance!, por um lado, como um jovem de classe média abonada
que vai à janela do apartamento gritar “chupa!” quando seu time ganha, protegido
de um outro leitor do jornal, de origem humilde, que passa embaixo, na calçada, e
não pode alcançá-lo. (STYCER, 2012, 199).
Em seus 20 anos de existência, o Lance! segue como principal diário esportivo
impresso do país, contando também com versões regionais e conteúdo multimídia,
como forma de se adequar ao processo de convergência midiática pelo qual passa
a mídia brasileira desde o início do século XXI. Entre idas e vindas, a revista
Placar também sobrevive no mercado editorial brasileiro, adaptando-se frente às
transformações midiáticas da virada do século. Isso dá indícios para se pensar nos
motivos que levaram os dois principais jornais da época – A Gazeta Esportiva e o
Jornal dos Sports – a começarem a cair e não se levantarem mais.
Segundo Stycer (2012), não há dados suficientes para se chegar precisamente
a essa resposta, mesmo porque não se pode justificar com exatidão o argumento de
que esses dois periódicos tenham perdido espaço para a TV – que ainda engatinhava
nas transmissões esportivas – ou para o rádio que, apesar de já ser um veículo de
força expressiva na cobertura de esportes, não afetava o interesse do público pelos
jornais esportivos. Nem tampouco se pode dizer que A Gazeta Esportiva e o Jornal
dos Sports tenham sido abalados pela concorrência, uma vez que, até então, a única
novidade de peso no mercado era a Placar, de circulação semanal.
Portanto, a explicação mais plausível para a decadência dos dois periódicos
considerados o marco do jornalismo esportivo brasileiro está relacionada ao momento
de crise e desorganização das entidades esportivas nacionais no final dos anos 80,
fato que, ainda segundo o autor, culminou no processo de modernização do futebol
brasileiro, agora na era do marketing e do patrocínio esportivo.
É possível pensar no impacto da televisão, que passa a transmitir jogos de futebol
com alguma frequência (e em cores, com o advento da nova tecnologia) a partir
da década de 1970, e em ritmo massificado na década seguinte, mas é uma
hipótese de difícil verificação. É notório que o rádio, usado de forma intensiva
em transmissões esportivas justamente a partir da década de 30, não afetou o
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 4
47
interesse pelos jornais esportivos, muito pelo contrário. Se for correta a hipótese que
A Gazeta Esportiva e o Jornal dos Sports cresceram apoiados na popularização do
futebol, faz sentido imaginar que tenham começado a decadência no momento em
que a desorganização atingiu o auge e os clubes enfrentaram a maior crise de sua
história. (STYCER, 2012, p. 191).
4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir desta breve contextualização dos aspectos históricos da mídia esportiva
impressa brasileira, percebeu-se que a quantidade de mudanças pelas quais o
jornalismo esportivo passou desde sua origem é inversamente proporcional ao seu
escasso tempo de existência no Brasil e no mundo. Compreender essa trajetória
histórica se faz necessário para traçar paralelos entre a consolidação da editoria
esportiva e a performance do profissional da área nos dias de hoje, considerando-se
as especificidades de uma seção que, por tratar de esportes, lida mais de perto com
os aspectos da subjetividade humana.
Mesmo ciente do desafio da profissão e, sobretudo, da editoria, Beting (2005)
considera um privilégio cobrir esportes, sobretudo o futebol, paixão nacional. “Amo
o que faço: sou pago para ver jogos de futebol. Sei de amigos que venderiam a mãe
para fazer o que faço – pena que alguns coleguinhas vendam a alma ou se vendam
para continuar no meio.” (p. 14). Unzelte (2008), por sua vez, faz o contraponto: “Só
mesmo com uma dose maciça de paixão é possível trabalhar à noite e nos finais
de semana em uma das áreas de menor valorização e remuneração da atividade
jornalística.” (p. 12).
Esse percurso instável e desafiador da editoria é justamente o que permite
debater sobre os caminhos que o jornalismo esportivo já traçou e sobre os rumos
que vem tomando desde então, principalmente quanto às minúcias de seu fazernotícia e ao arraigado papel de editoria secundária. No ano de 1956, em um tempo
onde sequer sonhava-se com a internet, Nelson Rodrigues, citado por Antunes (2004,
p. 173), já dava pistas para se refletir sobre esses dilemas: “Hoje, nós temos tudo:
jornal, rádio e tevê. O que nos falta é, justamente, a capacidade de admirar, de cobrir
o acontecimento com o nosso espanto.”.
REFERÊNCIAS
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HATJE, Marli. O jornalismo esportivo impresso do Rio Grande do Sul de 1945 a 1995: a história
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Rio de Janeiro: FAPERJ/7 LETRAS, 2012, v. 1, p. 186-206.
TOLEDO, Luiz Henrique de. A cidade e o jornal: a Gazeta Esportiva e os sentidos da modernidade
na São Paulo da primeira metade do século XX. In: BUARQUE DE HOLLANDA, Bernardo Borges;
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UNZELTE, Celso. Jornalismo esportivo: relatos de uma paixão. São Paulo: Saraiva, 2009.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 4
49
CAPÍTULO 5
doi
RADIOJORNALISMO NO BRASIL: UMA ANÁLISE DA
EVOLUÇÃO CURRICULAR
Lourival da Cruz Galvão Júnior
Universidade de Taubaté – UNITAU
RADIOJOURNALISM IN BRAZIL: AN
ANALYSIS OF CURRICULAR EVOLUTION
Taubaté / SP
Centro Universitário Módulo
Caraguatatuba / SP
RESUMO: Compreender os aspectos atuais
relativos à formação em Radiojornalismo no
Brasil exige identificar, no passado, elementos
que moldaram a configuração vigente de uma
disciplina específica do sistema de ensino superior
que habilita futuros profissionais a atuarem em
uma mídia que tem por constituição natural a
emissão sonora. A partir desse pressuposto
parte-se à análise do processo de evolução
curricular, nos cursos superiores de Jornalismo,
da formação acadêmica em Radiojornalismo.
Tem-se como procedimento metodológico
a pesquisa bibliográfica e documental que
permitiu observar um percurso histórico de
viés
humanístico-técnico-profissional
que
direciona-se, na contemporaneidade, para um
modelo de ensino envolvido em um contexto
de reavaliação e de reposicionamento perante
a realidade da formação em Radiojornalismo,
principalmente no que tange às potencialidades
digitais disponíveis à ampliação da presença
desse modelo de jornalismo junto aos públicos.
PALAVRAS-CHAVE:
Radiojornalismo;
Formação; História; Currículos.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
ABSTRACT: Understanding the current aspects
of training in Radiojournalism in Brazil requires
identifying, in the past, elements that shaped
the current configuration of a specific discipline
of the higher education system that enables
future professionals to act in a media that has a
natural constitution as the sound emission. From
this assumption we start with the analysis of the
process of curricular evolution, in the superior
courses of Journalism, of the academic formation
in Radiojournalism. It has as a methodological
procedure the bibliographic and documentary
research that allowed to observe a historical
course of humanistic-technical-professional
bias that is directed, contemporaneously, to
a teaching model involved in a context of reevaluation and repositioning before the reality
of training in Radiojournalism, especially with
regard to the digital potential available to the
expansion of the presence of this model of
journalism with the public.
KEYWORDS: Radiojournalism; Formation;
Story; Resumes.
A projeção do futuro exige, como ocorre na
atualidade, um novo repensar sobre as formas
de produção de conteúdos comunicacionais
Capítulo 5
50
para o rádio em todos os seus formatos e modelos, dentre eles o jornalístico. Das
primeiras transmissões analógicas ao despontar da era digital, o jornalismo radiofônico
mobilizou e cativou indivíduos que agora dispõem de novas possibilidades de acesso
às mais diversas informações em áudio que também podem ser acessadas por diversos
outros artefatos tecnológicos. Um dos mais populares no Brasil é o smartphone,
que atingiu em 2017 a marca de 208 milhões de aparelhos, ou seja, um para cada
habitante do país. O cenário contemporâneo torna o Radiojornalismo acessível a um
imensurável público que, em épocas passadas, tinha apenas o aparelho de rádio
valvulado e depois transistorizado como único aparato para obtenção de conteúdos
sonoros.
A velocidade em que as transformações ocorrem, modificando o rádio e a
maneira como ele se relaciona com os indivíduos revela-se como desafio à formação
de jornalistas que, porvetura, atuarão neste segmento. Dessa forma, entende-se
como oportuna a análise do processo de desenvolvimento histórico da formação
em Radiojornalismo, com vistas a possibilitar discussões que apontem para uma
reconfiguração próxima às necessidades presentes e futuras não apenas das
emissoras, mas dos futuros profissionais e do público.
Tem-se assim, como ponto de partida deste trabalho o período de transição entre
os séculos XIX e XX, quando começa a prática do jornalismo no Brasil, caracterizada
então como amadora por comportar poucas especializações e por não obedecer as
divisões sistematizadas de funções e de tarefas relacionadas ao processo de produção
da notícia. O Correio Braziliense, editado em Londres, Inglaterra, por Hipólito José da
Costa entre 1808 a 1822 era a expressão do experimentalismo vigente à época, assim
como a Gazeta do Rio de Janeiro, o primeiro impresso no país também de 1808, que
revelava fragilidade jornalística principalmente por ser produzido na oficina tipográfica
oficial trazida ao Brasil pelo regente Dom João VI que, na companhia da família real,
deixou Portugal durante as invasões napoleônicas na Europa (COSTELLA, 1984,
p.92).
Outra nuance advinda dessa conjuntura era o exercício do jornalismo, visto como
trampolim para ascensão social em um país em transformação principalmente por
causa da substituição do regime monárquico pelo republicano. Conforme Marques
de Melo (2000), atuar com jornalismo facilitava o acesso à carreira na burocracia
estatal ou na política, modelando a área como conveniente àqueles que aspiravam
posições de liderança na sociedade brasileira. A industrialização da imprensa,
entretanto, ocasionou um lento processo de profissionalização e fez com que o
jornalismo praticado em grande parte por literatos ou bacharéis das faculdades de
Direito exigisse formação de caráter específico.
A primeira proposta para viabilizar a formação de jornalistas profissionais foi
tardia e não surgiu de órgão governamental ou do setor patronal. Ela foi classista,
sendo apresentada em 1908 no ato de instalação da Associação Brasileira de
Imprensa – ABI. Dentre outras prioridades, a entidade discutiu a urgência na criação
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 5
51
de cursos para formação universitária de jornalistas, com a intenção de proporcionar
conhecimento científico sobre a atividade aos iniciantes e aos profissionais na
ativa. Apenas em 1918 a entidade elaborou e aprovou um projeto detalhado sobre
o assunto, que foi apresentado no Primeiro Congresso Brasileiro dos Jornalistas
realizado naquele mesmo ano, no Rio de Janeiro. A proposta sugeria a criação de
uma escola de Jornalismo que ficaria sob a responsabilidade da ABI, que ainda
cuidaria da estrutura do curso. A escola sequer chegou a ser implantada, mas o
assunto continuou merecendo atenção de dirigentes da entidade, como Barbosa Lima
Sobrinho, que demonstrou no livro O problema da imprensa, de 1923, preocupação
com a qualidade do jornalismo, apontando como alternativa o exemplo dos norteamericanos que instituíam escolas para a formação de jornalistas (MARQUES DE
MELO, 1974, p. 16). As intenções não saíram do papel, em grande parte, devido ao
conservadorismo educacional da primeira república brasileira.
O decreto-lei nº 19.851, de 11 de abril de 1931, determinou a criação do estatuto
das universidades brasileiras e atribuiu ao ensino universitário a finalidade de elevar
o nível da cultura geral dos estudantes, estimulando a investigação científica nas
mais diversas áreas do conhecimento humano e habilitando o exercício de atividades
que requeressem preparo técnico e científico superior. Neste contexto se consolidam
projetos visando à formação de jornalistas, como a implantação de uma cátedra
de Jornalismo, então ligada à Universidade do Distrito Federal – a UDF, no Rio de
Janeiro, exposto em abril de 1935. A instituição, formada por um instituto de educação
e de escolas de ciências, de economia e direito, de filosofia e letras e do instituto de
artes, ofereceria cursos inéditos no ensino superior brasileiro, dentre eles Jornalismo
e Publicidade (MARQUES DE MELO, 2000, p. 84). As aulas, que dispunham de
professores franceses e brasileiros não atendiam aos parâmetros reivindicados pela
ABI, já que eram oferecidas por uma instituição educacional voltada a formação
autônoma – e não específica – de jornalistas. Dentre outros propósitos, o curso
revelava em sua estrutura a intenção de refletir sobre o fenômeno ascendente da
cultura de massa, correlacionando o Jornalismo e a Publicidade.
A estratégia da ABI para efetivar a criação da Escola de Jornalismo orientou-se no
sentido de reivindicá-la junto ao Estado, amarrando-a no estatuto de regulamentação
da profissão de jornalista. Assim, a criação do curso pioneiro da UDF permitiu que
a ABI obtivesse de Getulio Vargas, presidente à época, o compromisso de manter
escolas para formar novos jornalistas (MARQUES DE MELO, 2000, p. 84). A cátedra
foi designada ao jornalista Costa Rego, então secretário de redação do Correio da
Manhã, jornal carioca considerado um dos principais formadores de opinião do país.
Apontado por Marques de Melo (2000, p. 86) como primeiro catedrático brasileiro de
Jornalismo, Costa Rego empreendeu na Universidade do Distrito Federal enfoque
pedagógico que se assemelhava menos ao modelo norte-americano e mais às
experiências europeias que tinham diretrizes de valorização da formação humanística
e o estímulo dos valores éticos dos profissionais (op. cit., p. 87).
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 5
52
Desarticulada em 1939 por conta da extinção da UDF no governo ditatorial de
Getúlio Vargas, o Estado Novo, a cátedra demonstrou o propósito em estimular ações
efetivas que visassem à capacitação jornalística a partir de preceitos educacionais.
Apesar de ser o responsável pelo fim da cátedra da UDF, o governo de Vargas atendeu
aos anseios da ABI ao instituir, em 1938, pelo decreto-lei 910, o ensino superior de
Jornalismo, integrando-o na estrutura universitária brasileira como setor vinculado
às Faculdades de Filosofia. As escolas para preparação de jornalistas tinham como
propósito capacitar profissionais aptos a atuar na imprensa e, para tanto, deveriam
organizar e sistematizar esse ensino (MARQUES DE MELO, 1974, p. 19). A criação
dessas escolas ainda determinava que os profissionais formados fossem obrigados
a fazer a inscrição no Registro da Profissão Jornalística, uma vez que era preciso
apresentar, no ato do registro, diplomas do curso superior de jornalismo ou exames
prestados em escolas. Entretanto, o ensino só teria suas diretrizes pedagógicas
estabelecidas em 1946, quando o Ministério da Educação fixou uma estrutura
curricular e definiu outras providências de natureza didática, contanto para isso com
a assessoria da ABI (Idem, Ibidem).
Outro episódio relevante à qualificação profissional foi a realização em São
Paulo, em 1943, de um curso livre de jornalismo patrocinado pela Associação dos
Profissionais de Imprensa de São Paulo – APISP. A iniciativa levou a publicação, em
1945, do livro Curso de Jornalismo editado pelo advogado e jornalista Vitorino Prata
Castelo Branco. A obra sistematizava o ensino de jornalismo, dando oportunidade aos
interessados em aprender a profissão. No curso, o aprendiz a jornalista era desafiado
a dominar técnicas da área e a desenvolver o senso crítico e a responsabilidade
social. Os 12 capítulos do livro foram vendidos separadamente como fascículos
publicados na revista mensal Cursos, que era editada por Vitorino e circulava em
todo Brasil (Idem, Ibidem).
Os conteúdos eram expostos no formato de lições que abordavam técnicas
jornalísticas e que ofereciam resumos históricos e uma série de exercícios práticos.
A obra, apesar de posteriormente ser considerada como pioneira e relevante à
elaboração dos conteúdos programáticos dos primeiros cursos de Jornalismo no
país, sendo apontada por Vitorino Prata Castelo Branco como a primeira do gênero a
ser publicada em Língua Portuguesa, foi criticada pelo Sindicato dos Jornalistas, que
solicitou a então secretaria de Segurança Pública a suspensão da publicação, por
considera-la voltada exclusivamente a objetivos comerciais (MARQUES DE MELO,
1974, p. 18).
A inclusão oficial do curso de jornalismo no sistema de ensino superior do
Brasil aconteceu em 13 de maio de 1943 com a promulgação do Decreto-lei nº
5.480, assinado por Getulio Vargas e pelo Ministro da Educação da época, Gustavo
Capanema. O ato atribuiu à Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro o
oferecimento do curso em cooperação com a ABI e os sindicatos dos jornalistas e das
empresas jornalísticas. Porém, as atividades naquela instituição tiveram início tardio,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 5
53
em 1948, por causa da publicação do decreto 22.245 de 6 de dezembro de 1946, que
regulamentou o decreto-lei anterior .
De acordo com o decreto, as aulas dos cursos de jornalismo seriam ministradas
em três anos e deveriam promover a formação, o aperfeiçoamento e a extensão
cultural. Dentre as primeiras disciplinas escolhidas para o curso destacavam-se
Português e Literatura, Francês ou Inglês, Geografia Humana, História da Civilização,
Ética e Legislação de Imprensa, Sociologia, História do Brasil, História da Imprensa,
Noções de Direito, Técnicas de Jornalismo, Economia Política, Psicologia Social e
Organização e Administração de Jornal. A disponibilização dos conteúdos técnicos e
teóricos era discrepante em relação às ações de caráter prático, pois ocorreriam fora
do ambiente escolar, mediante a realização de estágios obrigatórios em organizações
jornalísticas.
A formação de jornalistas por instituições de ensino superior no Brasil começou
de forma efetiva em 1947 na Fundação Cásper Líbero, que firmou convênio com a
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. O curso pioneiro, agregado
à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras São Bento até o fim de 1971, tornou-se
autônomo e autorizado a utilizar a denominação de Escola em 1958, oferecendo, um
ano depois, cursos de pós-graduação em nível de especialização e de aperfeiçoamento.
O nome foi alterado em 1972 para Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero
que incorporou, além do curso de Jornalismo, os de Relações Públicas e Publicidade
e Propaganda. Em 2002, a instituição abriu o curso de Rádio e TV e, em 2003, o
curso de graduação em Turismo teve seu funcionamento autorizado pelo Ministério
da Educação (KOSHIYAMA, 2007).
A CONSOLIDAÇÃO DO RADIOJORNALISMO NAS BASES CURRICULARES
A Faculdade de Jornalismo da Fundação Cásper Líbero, bem como o curso
criado em 1948 na Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro – depois UFRJ,
indicaram a opção por um modelo de ensino baseado na corrente pedagógica norteamericana que observava a orientação humanístico-técnico-profissional. Segundo
Beltrão (1972, p. 109), os casos brasileiros mostravam tendência mais humanística do
que técnico-profissional, condição resultante da falta de equipamentos nas escolas,
da inexperiência didática e do limitado conhecimento teórico dos primeiros docentes
oriundos, em grande maioria, das redações e de outras áreas correlatas.
Segundo Beltrão (1972, p. 109), a Faculdade de Jornalismo da Fundação Cásper
Líbero, bem como o curso criado em 1948 na Faculdade Nacional de Filosofia do Rio
de Janeiro – depois UFRJ, indicaram a opção por um modelo de ensino baseado na
corrente pedagógica Norte-americana de orientação humanístico-técnico-profissional.
O autor relata que os casos brasileiros mostravam tendência mais humanística do
que técnico-profissional, condição resultante da falta de equipamentos nas escolas,
da inexperiência didática e do limitado conhecimento teórico dos primeiros docentes,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 5
54
que eram provenientes, em grande maioria, das redações e de outras áreas correlatas.
Nesta circusntância, a formação em Radiojornalismo caracterizou-se embrionária
e à merçe de adaptações. Exemplo disso era a atuação, na Casper Líbero, de
um profissional de rádio que era produtor, locutor e ator, mas que tinha formação
universitária em Direito e que foi chamado a lecionar:
Convidado para ocupar uma cátedra, em uma semana expôs tudo que sabia e ficou
impossibilitado de orientar a classe. Como era de um caráter honesto, demitiu-se
– o que nem sempre ocorre com professores, que sem tarimba no magistério e
sem qualquer curiosidade para com os métodos pedagógicos, continuam ditando
classes, como se estivessem em uma tribuna parlamentar no exercício de uma
ação procrastinadora (BELTRÃO, 1972, p. 109).
Após a criação dos primeiros cursos de jornalismo, ações de intervenção
do Estado no sentido de regulamentar os currículos tornaram-se cada vez mais
evidentes e constantes. Um desses atos ocorreu em 1961 com a criação da lei 4.024
que estabeleceu as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e o Conselho Federal
de Educação – CFE, órgão que tinha a competência de fixar o currículo mínimo
dos cursos superiores. Entre 1962 a 1984, a legislação que normatizou a área da
Comunicação Social com relação aos currículos implantados foi composta por cinco
pareceres do CFE e três resoluções do Ministério da Educação. Como resultados dos
atos normativos foram criados, no Brasil, cinco currículos mínimos que atenderam ao
Jornalismo e, posteriormente, a área da Comunicação Social.
O primeiro currículo mínimo do curso de Jornalismo foi criado em decorrência
do parecer 323/62, que revelou a tendência de formar profissionais de imprensa, de
rádio e de televisão. As disciplinas foram denominadas de forma global, podendo ser
desdobradas. As de caráter geral eram obrigatórias, enquanto as técnicas previam
atividades práticas que seriam realizadas durante estágio em redações de jornal,
emissoras de rádio e televisão e empresas de publicidade. Não há, contudo, indicação
explícita dos conteúdos programáticos relativos a formação em Radiojornalismo
(MOURA, 2002, p. 83).
O segundo currículo mínimo, implantado pelo parecer 984/65, ampliou a duração
do curso, que passou a atender a três níveis: cultural (formado por disciplinas de
formação humanística), fenomenológico (com matérias teóricas voltadas à área da
Comunicação) e instrumental (com disciplinas técnicas ou de especialização). O
Radiojornalismo é citado apenas – e indiretamente – no segundo currículo mínimo
como Jornalismo Radiofônico, sendo incluído à grade curricular na modalidade
transmissão de notícias.
A segunda reformulação curricular visava, de acordo com o documento, a
formação de profissionais polivalentes e que atuassem em modalidades noticiosas
diversas, como jornalismo diário, periódico, ilustrado, televisionado, cinematográfico,
publicitário e relações públicas. Nas matérias técnicas e práticas o parecer determinou
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 5
55
a aplicação de exercícios para treinamento que deveriam ser feitos em laboratórios
pertencentes às instituições de ensino ou entidades conveniadas aos cursos. Nesses
locais, o parecer indicava a obrigatoriedade na elaboração de um jornal impresso
e de programas de rádio e televisão. Haveria ainda uma disciplina de redação que
complementaria o estudo da Língua Portuguesa e outras disciplinas complementares
poderiam ser acrescentadas ao currículo mínimo de jornalismo (MOURA, 2002, p.
85).
As alterações estruturais promovidas na segunda intervenção feita ao currículo
mínimo sofreram a influência direta do Centro Internacional de Estudos Superiores
de Jornalismo para a América Latina – CIESPAL, entidade vinculada à Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, com sede em
Quito, no Equador. Uma das contribuições desse órgão foi a realização de seminários
para o desenvolvimento de estudos de Comunicação Social promovidos em 1965
em cinco cidades da América Latina: Medelín, Colômbia; Cidade do México, México;
Buenos Aires, Argentina; e Rio de Janeiro, Brasil.
Os seminários tiveram apoio da ABI e a participação de profissionais e docentes
brasileiros, dentre eles dois renomados defensores da formação acadêmica dos
jornalistas: Carlos Rizzini, professor do curso de Jornalismo da Universidade do Brasil
que investigou a formação de jornalistas em diferentes partes do mundo, como nos
Estados Unidos onde avaliou, nos cursos de Jornalismo de Missouri e Columbia, as
estruturas curriculares com o intuito de formular propostas para um modelo brasileiro;
e Luiz Beltrão – que iniciou trajetória acadêmica ao fundar, em 1961, o curso de
jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco, sendo reconhecido não apenas
como jornalista renomado da região Nordeste do país, mas principalmente pela visão
sobre o preparo dos profissionais e pela criação de um curso de jornalismo mais
adequado à realidade nacional (MARQUES DE MELO, 1974).
Os resultados dos eventos do CIESPAL mostraram-se fundamentais à
renovação de escolas de Jornalismo da América Latina. No caso brasileiro, as
atualizações despontaram em 1969, ano em que o Decreto-lei 972 regulamentou
o exercício da profissão de jornalista. Conforme Meditsch (1999), o CIESPAL
exerceu papel preponderante na formação do campo acadêmico, pois a entidade
não se limitava a propor a formação de um novo tipo de profissional, mas sugeria a
extinção e substituição das profissões previamente existentes. “A política do Centro
influenciou a regulamentação profissional em diversos países e conseguiu unificar a
linguagem acadêmica da área em todo o continente, com a boa desculpa de facilitar
o intercâmbio” (op. cit., p. 3).
O terceiro currículo mínimo surgiu em 1969 com a publicação do parecer 631/69
e da resolução 11/69 do CFE. Dentre as principais alterações destacaram-se a
nova carga horária, nova duração e denominação do curso, que passou a ser de
Comunicação Social, atribuindo aos formandos o grau de Bacharel com habilitação
em Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Relações Públicas e Editoração. Metade
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 5
56
do programa era destinado a todas as habilitações, enquanto a outra metade tinha
disciplinas específicas para cada habilitação (MOURA, 2002, p. 86).
O quarto currículo mínimo, estabelecido pelo parecer 1203/77, apontou três fases
do ensino vigente na área de Comunicação: clássico-humanista, científico-técnica
e crítico-reflexiva. Ampliaram-se também as habilitações, sendo acrescentados os
cursos de Rádio e Televisão e Cinematografia.
O último currículo mínimo, instaurado pelo parecer 480/83, surgiu após
trabalho de uma comissão especial formada por conselheiros, professores e, mais
tarde, representantes discentes, que fizeram um levantamento junto à comunidade
acadêmica e as áreas empresariais e profissionais. A resolução 02/84 fixou o
currículo mínimo, estabelecendo exigências de infraestrutura para o funcionamento
dos cursos. No Jornalismo, determinou-se que fossem feitas 8 edições anuais de
jornais-laboratório (op. cit., p. 95).
Os cursos de Comunicação Social precisaram aguardar até 1996 para que fosse
criada a lei 9.394, que estabeleceu novas diretrizes e bases da educação nacional.
Popularizada como Lei de Diretrizes de Base ou LDB, a normatização garantiu
autonomia às instituições de ensino superior, acabando assim com a trajetória dos
currículos mínimos.
Para Marques de Melo (2007), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
representou um avanço e uma responsabilidade maior aos docentes compromissados
com a elaboração das novas grades curriculares, agora sintonizadas com as
demandas locais e regionais. Porém, muitos docentes, na visão de Marques de Melo,
se acomodaram “aos modelos adotados pela burocracia acadêmica ou sutilmente
impostos pelas vanguardas que integram as comissões verificadoras do Ministério da
Educação” (Idem, Ibidem).
STATUS
CURRICULAR
RADIOJORNALISMO
CONTEMPORÂNEO
DA
FORMAÇÃO
EM
Atualmente, os cursos de Jornalismo estão às voltas com adequações em
seus currículos depois que foi aprovada, pelo Ministério da Educação, a Resolução
nº 1, de 27 de setembro de 2013 que estabelece novas DCNs. De acordo com o
artigo 17 do documento, as alterações deverão ser implantadas, obrigatoriamente,
no prazo máximo de dois anos após a publicação, ou seja, logo após o início do
segundo semestre de 2015. Dentre as principais modificações determinadas está a
autonomia dos bacharelados de Jornalismo, que antes eram vinculados ao campo
da Comunicação Social como habilitações, conforme indica o Artigo 5 que trata da
qualificação a ser oferecida pelos cursos:
O concluinte do curso de Jornalismo deve estar apto para o desempenho
profissional de jornalista, com formação acadêmica generalista, humanista, crítica,
ética e reflexiva, capacitando-o, dessa forma, a atuar como produtor intelectual
e agente da cidadania, capaz de responder, por um lado, à complexidade e ao
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 5
57
pluralismo característicos da sociedade e da cultura contemporâneas, e, por outro,
possuir os fundamentos teóricos e técnicos especializados, o que lhe proporcionará
clareza e segurança para o exercício de sua função social específica, de identidade
profissional singular e diferenciada em relação ao campo maior da comunicação
social (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2013).
A resolução do Ministério da Educação determina ainda a divisão equilibrada
da carga horária entre ações teóricas e práticas, conforme indica o artigo 9. Houve
também aumento da carga horária para o mínimo de 3.200 horas, sendo que 200 horas
serão atribuídas para o estágio dos estudantes (Artigo 10), que se tornou obrigatório e
supervisionado (Artigo 12). Outra mudança foi a obrigatoriedade de desenvolvimento
individual dos TCCs – Trabalhos de Conclusão de Curso (Artigo 11) .
As novas diretrizes curriculares dos cursos de Jornalismo surgiram do trabalho
de uma comissão de especialistas nomeada em 2009 pelo Ministério da Educação,
sob a presidência do Prof. Dr. José Marques de Melo. Docente-fundador da ECA/
USP, onde também atuou entre 1989 a 1993 como diretor, Marques de Melo ressaltou
que as novas diretrizes resultam de um modelo brasileiro de ensino de comunicação
construído nas últimas sete décadas e que tem, em sua matriz pedagógica, certa
singularidade que se projeta no panorama mundial.
Criamos uma via crítico-experimental mesclando o padrão europeu com o modelo
americano, ou seja, o estudo teórico com a aprendizagem pragmática e, portanto,
logramos uma via crítico-experimental de ensino e pesquisa. Daí vem a pergunta:
o sistema é perfeito? Absolutamente não. Ele tem muitas fragilidades, ele deve
ser melhorado e é isso que nós vamos fazer a partir dessas diretrizes (FÓRUM –
DEPOIMENTO DE JOSÉ MARQUES DE MELO, 2014).
A declaração feita no fórum Diretrizes Nacionais Curso de Graduação de
Jornalismo realizado na ECA/USP em 14 de fevereiro de 2014 reforça o propósito
de que a formação no novo contexto deve envolver os profissionais em questões
de foro social, observando a reconfiguração dos meios. “O Jornalismo adquiriu
maior complexidade, principalmente em função da convergência midiática e das
transformações da sociedade. Precisamos imediatamente vencer a batalha pela
inclusão educativa das maiorias incultas e iletradas que povoam o território nacional”
(Idem, Ibidem). Para Marques de Melo, esse deve ser um dos compromissos do
Jornalismo.
Outro representante da comissão responsável por elaborar as diretrizes que
esteve presente no fórum realizado na ECA/USP foi o Prof. Dr. Eduardo Meditsch,
da UFSC. Na ocasião, o docente declarou que a aprovação das matrizes curriculares
representa uma oportunidade de aprimorar a formação de jornalistas, que devem ser
capacitados para enfrentar os desafios da profissão nos mais diversos âmbitos. “Isso
significa também uma mudança de rumos, uma quebra de paradigmas na maneira
como a questão do ensino do Jornalismo tem sido levada no Brasil, [ensino] que
tem problemas estruturais muito graves” (FÓRUM – DEPOIMENTO DE EDUARDO
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 5
58
MEDITSCH, 2014).
Conforme o artigo 6 das novas DCNs, a organização dos currículos de Jornalismo
deve contemplar, no projeto pedagógico, conteúdos que atendam a seis eixos de
formação: fundamentação humanística, fundamentação específica, fundamentação
contextual, formação profissional, aplicação processual e prática laboratorial. O
Radiojornalismo insere-se no eixo de aplicação processual (parágrafo V do artigo 6),
que tem por intenção fornecer ao estudante ferramentas técnicas e metodológicas
para a realização de coberturas jornalísticas em diferentes suportes: jornalismo
impresso, telejornalismo, webjornalismo, assessorias de imprensa e outras demandas
do mercado. O eixo relativo à prática laboral (parágrafo VI), que se propõe a integrar
os demais segmentos, define ainda a elaboração de projetos editorias que tenham
publicação efetiva e periodicidade regular, sendo o radiojornal uma dessas atividades
destacadas (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2013).
A efetivação do novo modelo educacional passa, contudo, pela realidade das
salas de aula e laboratórios dos cursos de Jornalismo. Na atualidade, a formação em
Radiojornalismo propõe-se a conciliar estratégias teórico/práticas com características
e interesses dos diversos segmentos envolvidos nesse processo. Tornou-se comum
encontrar, nos cursos, modelos metodológicos e pedagógicos particulares e
heterogêneos que buscam superar as tradicionais barreiras impostas à formação em
Radiojornalismo. Na avaliação de Maluly e Maciel (2013), se destacam entre esses
entraves as dificuldades de infraestrutura técnica e operacional, a baixa valorização do
rádio em relação às outras áreas dos cursos de Jornalismo e “o contumaz desinteresse
dos estudantes pelo meio (mais grave ainda quando se trata da produção jornalística)”.
Obstáculos semelhantes também são identificados por Meditsch (2001) no âmbito
das instituições de ensino. “Algumas de nossas melhores escolas de Jornalismo
consideram o rádio como um mero acessório, quase um enfeite, merecedor de uma
mísera disciplina perdida no currículo e não levada muito a sério”.
Aos fatores apresentados acrescenta-se a frequente perspectiva pessimista
que ronda o rádio, sucessivamente condenado até por pessoas que atuam nele ao
desaparecimento ou a substituição por mídias digitais. É fundamental compreender
que o meio se adapta a nova realidade, sendo a convergência com outras mídias no
ambiente digital prova dessa evolução. A imbricação ocorrida no ambiente virtual é
fundamental não apenas para motivar o processo de formação, mas principalmente
para torná-lo aderente à realidade.
Emprega-se de forma coerente a esse contexto a reflexão de Meditsch (2001)
de que a formação em Radiojornalismo não capacita os estudantes somente para
atuar no rádio. “Quem sai dominando a linguagem do veículo se adapta muito mais
facilmente tanto à expressão audiovisual quanto ao texto utilizado na internet”. De
acordo com o autor, o rádio serviu como modelo para os primeiros sites noticiosos na
Web, “desde o serviço de radioescuta até a edição em fluxo contínuo - porque ninguém
como o rádio tinha antes o know-how de trabalhar com informação jornalística em
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 5
59
tempo real” (Idem, Ibidem).
Outro fator apontado como relevante à valorização da formação em
Radiojornalismo é a possibilidade de comparar a história do rádio com a conformação
das novas mídias que se estabelecem na internet. Para Meditsch, compreender o
atual momento e seu processo evolutivo exige o entendimento sobre as origens
e problemáticas que envolveram os meios tradicionais no decorrer da história. Tal
propositura merece atenção não apenas de docentes e pesquisadores, mas também
das instituições de ensino que oferecem disciplinas como o Radiojornalismo.
Considera-se que tal reflexão efetivará, na prática, ações que permitam ao ensino
acompanhar, em ritmo mais acelerado, a velocidade da era digital, seja no rádio, seja
noutra mídia.
REFERÊNCIAS
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_________. Costa Rego: o primeiro catedrático de jornalismo do Brasil. São Paulo: Revista
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Capítulo 5
60
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Resolução nº 1, de 27 de setembro de 2013 que institui as
Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Jornalismo, bacharelado, e dá outras
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curriculares. Porto Alegre: Ed. PUC/RS, 2002.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 5
61
CAPÍTULO 6
doi
COMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO: DAS TIC AOS
DISPOSITIVOS MÓVEIS
Ana Graciela M. F. da Fonseca Voltolini
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Ensino - UNIC/IFMT
Cuiabá – Mato Grosso
José Serafim Bertoloto
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Ensino - UNIC/IFMT
Cuiabá – Mato Grosso
André Galvan da Silveira
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Ensino - UNIC/IFMT
Cuiabá – Mato Grosso
Ed Wilson Rodrigues Silva Júnior
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Ensino - UNIC/IFMT
a recomendação e apropriação destes para
o processo de ensino-aprendizagem. A partir
da perspectiva da evolução tecnológica e das
iniciativas de inserção dessas tecnologias
nesse universo, tem como objetivo apresentar
breve trajetória das formas de apropriação
de dispositivos tais como telefones celulares,
smartphones e tablets para o processo de
ensino-aprendizagem.
PALAVRAS-CHAVE:
Comunicação;
Educação; Novas Tecnologias; Dispositivos
móveis; Ensino-aprendizagem.
COMMUNICATION AND EDUCATION: FROM
TIC TO MOBILE DEVICES
Cuiabá – Mato Grosso
Lucinete Ornagui De Oliveira Nakamura
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Ensino - UNIC/IFMT
Cuiabá – Mato Grosso
Paula Viviana Queiroz Dantas
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Ensino - UNIC/IFMT
Cuiabá – Mato Grosso
RESUMO: Este artigo apresenta aporte teórico
acerca da trajetória da relação Comunicação
e Educação, no que se refere à introdução
das novas tecnologias de informação e
comunicação — TIC aos dispositivos móveis,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
ABSTRACT: This article presents a theoretical
contribution about the trajectory of the
Communication and Education relation,
regarding the introduction of the new information
and communication technologies — TIC to
mobile devices, the recommendation and
appropriation of these for the teaching-learning
process. From the perspective of technological
evolution and the initiatives of insertion of these
technologies in this universe, it aims to present
a brief trajectory of the forms of appropriation of
devices such as mobile phones, smartphones
and tablets for the teaching-learning process.
KEYWORDS: Communication; Education; New
technologies; Mobile devices; Teaching-learning
Capítulo 6
62
1 | INTRODUÇÃO
É preciso considerar que as inovações tecnológicas vêm transformando a vida
das pessoas. Ao longo da história a sociedade foi se organizando a partir da mudança
de suportes tecnológicos, que incidem sobre diversos âmbitos, como, por exemplo,
no processo educativo “Pesquisas atuais buscam compreender esta mudança
complexa, que acontece na sociedade e muda os hábitos das pessoas também no
campo educacional” (CORAZZA, 2013, p.5).
Com o advento da internet, das máquinas computacionais e recentemente das
tecnologias móveis, cada vez mais aparatos de informação e comunicação, agora
digitais, vêm sendo recomendados e incorporados também para o processo de
ensino-aprendizagem.
A respeito da trajetória que envolve os meios de comunicação e o processo de
ensino-aprendizagem podemos determinar dois momentos, antes e depois das novas
tecnologias digitais. Antes, marcado pelas características de meios centralizados e
de fluxo unidirecional, com base analógica. Depois, por meios de fluxo bidirecional e
descentralizados, pautados no digital. Atualmente, todos os atores envolvidos nesse
processo — secretarias, escolas, professores e estudantes se veem cercados e
precisam lidar com sistemas digitais conectados (internet/web, dispositivos móveis,
tv digital, games, etc.) com seus “softwares inteligentes”, como Lima Junior (2013)
descreve o novo ecossistema informativo.
No entanto, nesta trajetória, Freire e Guimarães (2011) destacam que esta
relação antecede as chamadas novas tecnologias de informação e comunicação
— TIC. Contudo, com as TIC essa relação ganha novos contornos, tendo em vista
as características e a gama de recursos embutidos nestas tecnologias que podem
proporcionar novas soluções para os processos de ensino-aprendizagem, com
destaque para o uso de dispositivos móveis.
Neste aspecto, podemos citar o crescimento dos dispositivos móveis, em especial
celulares e smartphones, com adesão inquestionável pela sociedade. Por parte do
poder público, destacamos projetos e ações que tiveram como mote a distribuição de
equipamentos como laptops e tablets para escolas públicas. Esse universo possibilita
práticas e movimentos como a Aprendizagem Móvel e o Traga Sua Própria Tecnologia
ou Dispositivo, bem como a utilização de aplicativos móveis.
Dessa maneira, este artigo apresenta uma breve trajetória das tecnologias
digitais chegando ao uso de dispositivos móveis, das formas de apropriação de
telefones celulares, smartphones e tablets para o processo de ensino-aprendizagem.
2 | TIC NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM
De acordo com Campos (2008) inúmeras inovações tecnológicas têm adentrado
o universo da educação desde a década de 1970 e de alguma maneira vem
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 6
63
transformando muitas práticas educativas no interior da escola. Em contrapartida, a
escola tem utilizado essas inovações de diversas maneiras, com diferentes objetivos
e projetos. Nesse sentido, o processo de ensino-aprendizagem é impactado em
virtude dos avanços tecnológicos, onde a apropriação dessas tecnologias pode
dar novo significado a esse processo (PAGAMUNCI, s.d). O uso de tecnologias
como instrumento auxiliar pode promover cooperação, comunicação, motivação e
potencializar relações.
Para Paulo Freire (1996) a educação não se reduz à técnica, mas não se faz sem
ela, utilizar computadores na educação, por exemplo, pode expandir a capacidade
crítica e criativa dos estudantes, depende de quem o usa, a favor de que e de quem,
e para quê. Os meios de comunicação e os instrumentos tecnológicos são invenções
do ser humano, o risco está em promovê-los a “fazedores de nós mesmos”, ao
contrário, estes instrumentos estão disponíveis e devemos aproveitá-los (FREIRE E
GUIMARÃES, 2011).
Magalhães e Mill (2012) alertam para a tendência de reinvenção da roda
a cada novo artefato lançado. Para Muniz Sodré a cada inovação tecnológica o
mercado instaura uma nova era “O contexto tecnofílico dá margem ao aparecimento
de mitologias maquínicas propagadas pelo mercado e de gurus milenaristas, que
apregoam mudanças fundamentais na história por efeito das novas tecnologias”
(2012, p.31). No tocante à educação, Sodré aponta sobre fazer coincidir o avanço
das tecnologias da comunicação e da informação com a chegada de uma “nova era”
educacional.
Conforme aponta Santaella (2010), a revolução digital está acarretando
transformações por todos os níveis e facetas da existência humana, especialmente
para os processos educacionais. Para Duarte, Bertoldi e Scandelari a sociedade
se depara com os mais variados meios de comunicação, que de maneira decisiva
vem transformando a vida dos indivíduos. Assim, a educação não pode ignorar este
fato e cabe a ela se adaptar “mediante novas pedagogias que incluam os meios
de comunicação na aprendizagem, a fim de integrar as estratégias cognitivas e
emocionais crianças e jovens gerados numa era digital e conectar os professores ao
mundo dos alunos” (2001, p.1).
As mudanças imputadas pelas novas tecnologias se devem à transformação do
conhecimento único para a pluralidade de informações, uma sociedade de escolhas,
que favorece a interatividade, que faz do sujeito um receptor, autor, ator “Este sujeito,
seja ele aluno ou receptor da comunicação vai cultivando novos hábitos de aquisição
do conhecimento e de se relacionar com a sociedade” (CORAZZA, 2012, p.10-1).
Magalhães e Mill colocam que as tecnologias tornam-se parte indispensável do
processo de desenvolvimento cognitivo dos educandos, pois promovem, estimulam
a interação entre os sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem
“a aprendizagem é social e as TIC potencializam as relações comunicacionais e,
portanto, criam melhores condições para a aprendizagem efetiva” (2012, p.12). Além
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Capítulo 6
64
dos processos de inovação pelo qual as TIC passam constantemente, muitas se
tornaram mais acessíveis, do ponto de vista econômico, e mais amigáveis, não sendo
necessário ser um especialista para manuseá-las (LIMA JUNIOR, 2013). Sobre o
segundo ponto de vista, para Carmo (2012), entre os recursos tecnológicos existentes,
pode-se destacar o desenvolvimento de interfaces “amigáveis”, que possibilitam uma
navegação intuitiva, o que influenciou e tem facilitado à inserção das pessoas nesse
universo.
As tecnologias digitais podem apoiar o processo de ensino-aprendizagem com
a riqueza de recursos online, que representam grande potencial para professores
e alunos, oferecem novas formas de apresentar informações, conteúdo e ideias,
de uma maneira dinâmica e interativa, contribuindo no enriquecimento do diálogo
(LUCKIN et.al., 2012).
Acerca das oportunidades para a educação no contexto digital, Sunkel (2011)
elenca algumas, tais como: acesso a materiais de alta qualidade a partir de locais
remotos; aprendizagem, independentemente da localização física do sujeito;
propostas de aprendizagem interativa e flexível; reduzir a presença física para acessar
recursos e ambientes de aprendizagem; desenvolver serviços de aprendizagem de
modo a superar limitações de informação, especialmente em países e comunidades
economicamente e geograficamente desfavorecidas; gerar dados sobre progressos,
preferências e capacidades de aprendizagem e utilizar as TIC para aumentar a
eficiência, melhorar a aprendizagem e reduzir custos.
O diferencial para os processos de ensino-aprendizagem com TIC reside no
fator digital. Para Costa (2008), o termo “digital” carrega uma série de conotações,
dentre as quais o acúmulo de dados, a possibilidade de manipulação de informações
e a ampliação da participação e comunicação nos mais variados aspectos, através de
um celular, da internet, por exemplo.
Foi a partir da década de 1980 que o país iniciou as atividades de formação de
educadores para a implantação de TIC na educação e recontextualização da prática
pedagógica. Desde a década de 1980 até os dias atuais, o país implantou alguns
programas/projetos governamentais para o uso de TIC no ensino-aprendizagem, os
laboratórios de informática através do Programa Nacional de Tecnologia Educacional
(ProInfo) – criado pelo Ministério da Educação com o objetivo de promover o uso
pedagógico da informática na rede pública; o PROUCA – Programa Um Computador
por Aluno, do Governo Federal que propôs a utilização de laptops educacionais; e
entre 2012 e 2013 o Governo deu início a uma política de aquisição e distribuição de
tablets para escolas públicas (ROSA E AZENHA, 2015), são alguns exemplos.
Léa Fagundes (2011) coloca o Programa Nacional de Informática na Educação
(ProInfo) como um grande esforço feito pelo Ministério da Educação (MEC), através
da Secretaria de Educação a Distância, em parceria com os governos estaduais
e municipais, para introduzir tecnologias e telecomunicações na escola pública. O
programa forneceu uma estrutura para acesso a tecnologias através da instalação de
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Capítulo 6
65
microcomputadores em escolas e Núcleos de Tecnologia Educacional (NTE), centros
utilizados para a formação de professores e técnicos.
Podemos dizer que a primeira iniciativa para a apropriação de tecnologias
móveis pela educação no Brasil foi através do Programa Um Computador por Aluno –
PROUCA. Iniciativa do Governo Federal baseada no uso de um laptop de baixo custo,
apto ao enlace de conectividade sem fio, objetivando o conhecimento e tecnologias
que oportunizam a inovação pedagógica nas escolas públicas (CARVALHO E
POCRIFKA, 2010). O PROUCA foi concebido a partir da ideia do autor Nicholas
Negroponte, idealizador do projeto internacional intitulado “One Laptop per Child”
que propõe a inclusão digital por meio de um recurso computacional educacional de
baixo custo, assim cada aluno recebe um laptop.
Para Silva e Abranches (2010), o PROUCA propõe um reencantamento
da educação através da inserção individualizada de laptops como medida para
alavancar os patamares cognitivos, oportunizando inclusão digital e social. Outro fator
destacado, é viabilizar novas formas de socialização e construção do conhecimento,
como também ampliar a interação entre sujeitos e o acesso ao conhecimento pelos
grupos periféricos, ultrapassando o espaço escolar.
3 | MOBILIDADE E TECNOLOGIAS MÓVEIS
“Voar é com os pássaros, mas mover-se sem perder contato, agora é das coisas
mais humanas do mundo” (QUEIROZ, 2008, p.37). As tecnologias móveis propiciaram
e vem refinando cada vez mais essa experiência através dos incrementos aos quais
são submetidas e em velocidade sem precedentes. Além da evolução tecnológica, a
aceitação dos dispositivos móveis é outro fator a ser levado em conta “cuja velocidade
de absorção e domesticação vem se dando em progressão geométrica espantosa”
(SANTAELLA, 2010, p.21).
Se antes tínhamos um cenário ancorado, como classifica SANTAELLA (2007),
onde computadores e telefones ocupavam lugares fixos, com as conexões móveis
esse cenário muda. As tecnologias móveis permitem não só a conexão, mas sim
uma conexão contínua, em que o dispositivo representa um ponto de conexão móvel,
dando mobilidade para o usuário circular pelos espaços físicos. Nesse contexto,
conforme explica Lemos (2009), de posse de uma estrutura que alia dispositivos
portáteis e tecnologias de acesso sem fio, além das possibilidades de consumo, há
possibilidades também de produção e distribuição de informação, diferentemente do
contexto anterior, composto por meios massivos.
O uso de smartphones, celulares e tablets e os incrementos que cercam esses
dispositivos, como acesso a internet e aplicativos está cada vez mais comum e
inserido em nosso cotidiano. Essas tecnologias vêm moldando a forma como nos
relacionamos com o mundo e também engendrando novos hábitos.
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Capítulo 6
66
Para Straubhaar e LaRose (2004) a indústria de telefonia tem grande impacto
na trajetória dos meios de comunicação. Embora o telefone celular ocupe um lugar
de destaque, a infraestrutura de telecomunicação combinada com tecnologias
de computação pode ser considerada o sistema nervoso central da comunicação
contemporânea. É justamente a convergência dos meios de comunicação,
telecomunicações e computadores que transformaram, por exemplo, o telefone
celular em um aparato multifuncional.
Inicialmente, o celular era apenas um aparelho destinado a comunicação de voz.
Mais tarde suas funções foram sendo ampliadas e hoje corresponde a uma central
multimídia ou podemos usar a denominação de André Lemos (2007): Dispositivos
Híbridos Móveis de Conexão Multirrede (DHMCM). O autor explica que os DHMCM
aliam potência comunicativa (voz, texto, foto, vídeo), conexão em rede e mobilidade
por territórios informacionais. Os modelos denominados smartphone, “telefone
inteligente” apresentam-se como uma tecnologia que reúne várias mídias num só
aparelho (telefone, internet, console de jogos, recursos dos computadores pessoais)
(MERIJE, 2012).
De acordo com Mülbert e Pereira (2011), as inovações tecnológicas oriundas
do desenvolvimento das telecomunicações têm oportunizado acesso a diferentes
ambientes e formas de aprendizagem. O que antes dependia de um aparelho ligado a
uma estrutura fixa de rede, hoje conta com dispositivos móveis que também permitem
o acesso a ambientes e recursos educacionais similares. Esse cenário cria condições
para o desenvolvimento de atividades de ensino-aprendizagem com dispositivos
móveis. Com isso, instituições e professores são incentivados a apropriar-se desses
dispositivos, utilizados com objetivos didáticos para apoiar o processo de ensinoaprendizagem (TAROUCO et al.,2004).
4 | DISPOSITIVOS MÓVEIS E ENSINO-APRENDIZAGEM
Entre os dispositivos móveis, a UNESCO recomenda o uso de celulares, e
mais recentemente, smartphones, para práticas que visam o ensino-aprendizagem.
A justificativa para a recomendação se deve, primeiramente, a popularização desses
aparatos, e posteriormente, aos avanços tecnológicos que vem possibilitando, cada
vez mais, a ampliação dos seus recursos. Para o Policy Guidelines (UNESCO,
2013), os celulares são populares onde as demais tecnologias são escassas, como
em alguns países africanos. Ainda, representa uma possibilidade de aprendizagem
interrupta, ampliada e teoricamente de baixo custo, se levar em conta que grande
parte da população tem, considerando a possibilidade de aproveitar uma tecnologia
disponível, recomendação feita visando à redução de custos e aproveitamento
imediato.
Nessa perspectiva, o Panorama Tecnológico NMC 2015 Universidades
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Capítulo 6
67
Brasileiras, realizado pelo The New Media Consortium e Saraiva, destaca o
sistema BYOD, abreviatura em inglês de Bring Your Own Device, que em português
significa Traga Seu Próprio Dispositivo (TSPD). O TSPD refere-se a uma prática de
implementação de tecnologia móvel em que as pessoas levam seus próprios laptops,
tablets, smartphones e demais aparelhos móveis para o local de aprendizagem ou de
trabalho. O sistema TSPD permite aos estudantes acessarem os mesmos aparelhos
na escola e em casa, ampliam-se as oportunidades de estudo a horas e lugares fora
das salas de aulas; permite que os estudantes trabalhem com a tecnologia com a
qual eles já estão confortáveis e familiarizados e elimina a necessidade de apoio e
outras demandas que recaem sobre as universidades, que muitas vezes acabam
cobrando pelo uso para manterem os aparelhos disponíveis.
Em contrapartida, no Brasil os tablets são os dispositivos mais recentes e em
voga atualmente na educação pública, conforme aponta o estudo Aprendizagem
Móvel no Brasil (ROSA E AZENHA, 2015). De acordo com o estudo, isto ocorre dado
o seu custo competitivo, sua compacticidade, comparável aos antigos netbooks, e a
mobilidade que proporcionam. As aquisições somavam mais de 400.000 (quatrocentos
mil) tablets em julho de 2014. Em casos extremos, há redes que já equiparam seus
professores com notebooks recentemente e estão, novamente, equipando-os com
tablets. Ainda sobre a aquisição de tablets pelo Governo Federal, que ocorreu entre
2012/2013, na avaliação dos técnicos de TI das secretarias, a qualidade do dispositivo
adquirido deixou a desejar em termos de memória, armazenamento, processamento,
e também no funcionamento da tela sensível ao toque.
Ribeiro et al. (2013) cita algumas tecnologias que podem apoiar o uso de
dispositivos móveis pela educação. Práticas que podem ser desenvolvidas sem
o auxílio da internet, chamadas de práticas off-line, ou ainda, práticas em que a
sincronização com a internet acontece em momento específico. Entretanto, destacam
que cada vez mais crescem as ofertas de gratuidade das operadoras de telefonia para
alguns usos específicos, como redes sociais. Dentre as práticas off-line descritas por
Ribeiro et al. (2013) está o QR Code, código visual decodificado através da câmera
de celulares e tablets que precisam ter um aplicativo leitor de QR Code instalado. A
leitura desvenda a imagem visual transformando-a em uma indicação de endereço
online ou outro tipo de informação.
Outra tecnologia que vem ganhando espaço dentro do contexto da Aprendizagem
Móvel são os aplicativos. Para ampliar a produtividade e as funcionalidades dos
dispositivos móveis, os usuários estão sempre em busca de aplicativos que podem
ser instalados nos seus aparelhos, disponíveis nas chamadas “lojas” de cada uma das
plataformas. Os aplicativos podem ser primariamente de conteúdo ou de interação
(RIBEIRO et al., 2013).
Neste universo de possibilidades proporcionado pelos avanços tecnológicos e a
disseminação das tecnologias móveis, como celulares, smartphones e tablets surge à
chamada Aprendizagem Móvel - AM. Aprendizagem Móvel é a aprendizagem entregue
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Capítulo 6
68
ou suportada por meio de dispositivos de mão tais como PDAs (Personal Digital
Assistant) smartphones, iPods, tablets e outros pequenos dispositivos digitais que
carregam ou manipulam informações (MÜLBERT E PEREIRA, 2011). A mobilidade e
multifuncionalidade desses dispositivos têm representado possibilidades que podem
ser exploradas também para o ensino-aprendizagem.
Percebe-se que o uso desses dispositivos pode ir além do entretenimento “As
tecnologias móveis têm potencial para complementar as práticas de aprendizagem,
em convergência com outros métodos e outras mídias, permitindo a ampliação do
espaço educacional para a sociedade como um todo” (FEDOCE E SQUIRRA, 2011,
p.276).
Traxler (2011) diferencia a aprendizagem com TIC das com tecnologias móveis:
As implicações pessoais, culturais e sociais desta mudança residem na diferença
essencial entre as TIC de mesa e as tecnologias móveis. A interação com as outras
TIC surge dentro de uma bolha, em momentos e espaços específicos em que o
aluno está de costas voltadas para o resto do mundo, numa situação significativa
e possivelmente premeditada. A interação com as tecnologias móveis é diferente e
faz parte integrante de todos os momentos e espaços das vidas dos alunos (p.39).
Para Tarouco et al. (2004) a AM é uma ampliação da educação a distância,
uma expansão dessa modalidade de ensino. Sena e Burgos (2010) apontam para
a invasão das tecnologias móveis no ambiente escolar, o que mostra como esses
aparatos são populares entre os alunos, uma opção frente a perca da atratividade da
escola. Moura (2009) assinala o celular como parte integrante da vida moderna em
todo o mundo e ainda cita a relação aparatos de comunicação e escola. A respeito
dessa relação, Moura destaca que impasses e desconfianças sempre se fizeram
presente, com a TV foi mais difícil, com o computador um pouco menos. Para a
autora, com a difusão dos celulares, depois da lousa, o celular passa ser a segunda
tela no contexto de aprendizagem.
Segundo Traxler (2011) desde 2001 a Aprendizagem Móvel tem vindo a
amadurecer e a consolidar-se. Ainda, conforme o autor, a AM já provou ser capaz
de levar a aprendizagem a pessoas, comunidades e países que antes estavam
demasiado afastados para poderem beneficiar de outras iniciativas educativas,
reforçar e enriquecer atividades de aprendizagem, através de experiências mais
personalizadas, autênticas, situadas e sensíveis ao contexto.
5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da grande e desajeitada coleção de caixas dos computadores mainframe,
passando pelos computadores pessoais sobre a mesa, chegando à tecnologia móvel,
com celulares e smartphones (SANTAELLA, 2007) a presença desses aparatos
impactam a sociedade em diversos níveis.
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Capítulo 6
69
A difusão das TIC desperta a atenção e faz desses aparatos e dos aspectos
que os cercam, tema de pesquisas e discussões a respeito das implicações destes
em diversas áreas do conhecimento. Em relação à Educação, Freire e Guimarães
(2011) apontam que o acesso e a penetração dos meios de comunicação eram
cada vez maiores já na década de 1980. Além disso, considerados mais dinâmicos,
contemporâneos frente à escola, que no contexto analógico já se via desafiada,
questionada.
Sharples, Taylor e Vavoula (2005) destacam três eras de aprendizado mediadas
por recursos de comunicação. Na primeira, a era da alfabetização em massa, o livro foi
o meio de instrução, e o objetivo principal do sistema de educação era a transmissão
de informação. Na segunda, a era do computador, a educação é reconceituada
em torno da construção do conhecimento através da modelagem de informações,
processamento e interação. A terceira é a era da tecnologia móvel, onde a educação
é concebida como uma conversa em contexto, habilitada pela interação contínua
através de tecnologia pessoal e móvel.
A era da tecnologia móvel para o ensino-aprendizagem é possibilitada pelo
crescimento dos dispositivos móveis, em número e funcionalidades, com ampla
aderência pela sociedade, não sendo diferente no universo educacional. Por parte do
poder público, é possível perceber que o foco das propostas de Aprendizagem Móvel
está na distribuição de equipamentos.
Ao longo do artigo, citamos algumas propostas que consistem na entrega
de laptops e tablets para escolas públicas, situando o lugar ocupado por essas
tecnologias, assim como de celulares e smartphones, considerados o ápice da
convergência tecnológica e com potencial para atuarem também nesse segmento.
Tratou-se aqui de um esforço em traçar uma breve trajetória que contribua
na compreensão do percurso do uso de novas tecnologias no processo de ensinoaprendizagem até a proposição de dispositivos móveis, bem como destacar
perspectivas e características dessa recomendação e apropriação.
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Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 6
73
CAPÍTULO 7
doi
O SURGIMENTO DA IMPRENSA EM MATO GROSSO E EM
MATO GROSSO DO SUL
Danusa Santana Andrade
Doutoranda em Comunicação pela Universidade
Metodista de São Paulo, é mestre em
Comunicação pela Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul (UFMS) e especialista em
Comunicação Empresarial e Governamental pela
Unitoledo (SP). Endereço eletrônico: danusa.
[email protected]
* Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Impressa, integrante do 3º Encontro Centro-Oeste de História da Mídia realizado na Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, em Campo Grande, em 2016.
RESUMO: Este estudo resgata, de forma
resumida, a partir de pesquisa bibliográfica, o
início do processo de instalação da imprensa
nos estados de Mato Grosso e de Mato Grosso
do Sul, na época Mato Grosso uno. A pesquisa
observou que a imprensa do estado - então
unificado - surgiu sob o domínio oficial e durante
os vinte primeiros anos de atividade passou
do poder público à atividade privada, sem
deixar de perder vínculo com o governo, que
a patrocinava. Outro aspecto observado é que,
apesar de a imprensa ter surgido inicialmente
na região norte (hoje Mato Grosso), a região
sul (hoje Mato Grosso do Sul) alavancou a
atividade, pois, depois de Cuiabá, as cidades
que despontaram no setor foram Corumbá,
Campo Grande e Três Lagoas, todas do atual
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
estado de Mato Grosso do Sul. O estudo, que
resgatou fatos importantes da instalação da
imprensa nos dois estados, concluiu que esses
periódicos surgiram em uma época na qual a
maioria dos jornais brasileiros não escondia sua
cor partidária, surgia em defesa de uma causa,
ou bandeira.
PALAVRAS-CHAVE: história do jornalismo;
Mato Grosso; Mato Grosso do Sul; história da
imprensa.
INTRODUÇÃO
A região Centro-Oeste do país, composta
pelos estados de Goiás, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul, além do Distrito Federal, foi
cenário de relevantes momentos históricos do
Brasil, como a instalação da Capital Federal em
Brasília, e a divisão de Mato Grosso (originando
Mato Grosso do Sul) e de Goiás (dando origem
a Tocantins). Esses momentos marcantes da
história foram refletidos nas páginas dos jornais
da época que realizaram suas versões sobre
os fatos para a sociedade.
A abordagem da imprensa e a sua
participação em momentos relevantes da
história são, com frequência, alvos de pesquisas
na
área
da
comunicação.
Com
menos
constância, surgem também contribuições
acadêmicas versando sobre o surgimento e
Capítulo 7
74
o desenvolvimento da imprensa em determinadas regiões do país. Esses estudos
ajudam a entender como os modelos empregados atualmente foram delineados
com o passar do tempo e permitem um olhar um pouco menos estreito sobre as
publicações atuais.
Neste sentido, a partir de pesquisa bibliográfica, e com a natural limitação de
espaço que o texto científico exige, este ensaio resgata, de forma resumida, o início
do processo de instalação da imprensa em Mato Grosso e em Mato Grosso do Sul.
A história desses estados teve início em 8 de abril de 1719, quando, conforme
Campestrini e Guimarães (1991), nasceu o arraial de Forquilha, origem de Cuiabá.
Cento e vinte anos depois, em 14 de agosto de 1839, na região norte do então
estado de Mato Grosso uno, surgiu a imprensa do estado, de cunho oficial, com o
lançamento do semanário Themis Mattogrossense, sob a presidência provincial de
Estevão Ribeiro de Resende. Já a história da imprensa de Mato Grosso do Sul (na
época, ainda região sul de Mato Grosso) teve início 38 anos mais tarde, em 18 de
janeiro de 1877, em Corumbá, com o surgimento do jornal O Iniciador, criado pelas
mãos dos comerciantes Manoel Antônio Guimarães e Silvestre Antunes Pereira da
Serra.
A imprensa do então estado de Mato Grosso uno nasceu sob o domínio oficial
e durante os vinte primeiros anos de atividade passou do poder público à atividade
privada, sem deixar de perder vínculo com o governo, que a patrocinava.
Ela
surgiu em uma época na qual a maioria dos jornais brasileiros não escondia sua cor
partidária, surgia em defesa de uma causa, ou bandeira. Esses órgãos de imprensa,
inclusive, ao circularem o primeiro número, faziam a sua apresentação estabelecendo
um programa a seguir, identificando as ideias políticas que defendiam.
Inicialmente o estudo resgata o surgimento da imprensa em Mato Grosso, em
seguida é apresentado o aparecimento da imprensa em Mato Grosso do Sul e, por
fim, são elencadas algumas características dos órgãos de imprensa dos estados, na
época Mato Grosso uno.
1 | SURGIMENTO DA IMPRENSA EM MATO GROSSO
Após 31 anos do surgimento da imprensa no Brasil, que nasceu em 1º de junho
de 1808 com o jornal Correio Brasiliense, editado pelo gaúcho Hipólito José da Costa
em Londres e com conteúdo editorial voltado aos brasileiros, seguido pela Gazeta do
Rio de Janeiro, com cunho oficial, lançado pela Coroa Portuguesa em 10 de setembro
daquele ano, em 14 de agosto de 1839, sob a presidência provincial de Estevão
Ribeiro de Resende, surgiu a imprensa oficial em Mato Grosso com o lançamento do
semanário Themis Mattogrossense.
Antes disso, conforme Zaramella (2004), com a inexistência da imprensa na
Província de Mato Grosso e com a outorga da Constituição do Império de 25 de março
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 7
75
de 1824, que fez com que a as Capitanias passassem a denominar-se Províncias,
a partir de 1830 os atos oficiais da administração regência, os estatutos e editais
de entidades, as notícias mato-grossenses e outros documentos que necessitavam
de publicidade, começaram a ser impressos no jornal Matutina Meyapontense, da
vizinha Província de Goyaz. O periódico circulou de 5 de março de 1830 a 24 de
maio de 1834 no Arraial goiano de Meyaponte (hoje Pirenópolis), onde foi montada
a primeira tipografia da região Centro Oeste do país, que foi a Typographia Oliveira.
A ideia da introdução em Mato Grosso da primeira tipografia, conforme Mendonça
(1975), coube ao presidente provincial José Antonio Pimenta Bueno, depois marquês
de São Vicente. Ele foi empossado em 26 de agosto de 1836 e em seu relatório
Presidencial, lido perante a Assembleia Legislativa Provincial em 1º de março de
1837, apresentava a necessidade da instalação da tipografia.
O Themis, cujas páginas eram divididas em duas colunas largas, circulava às
quartas-feiras. Apesar do caráter oficial, seus exemplares eram comercializados,
pois a assinatura do jornal era feita na casa de João Alves Ferreira e Joaquim
de Almeida Falcão, em Cuiabá, ao custo de 800 réis por trimestre. O exemplar
avulso saía a 80 réis. No ano do lançamento do seu primeiro jornal, o Themis
Matogrossense, Cuiabá tinha uma população estimada em 12 mil habitantes
(ZARAMELLA, 2004, p. 08-09)
O Themis Mattogrossense desapareceu em julho de 1840, após o corte de
verba da Assembleia Provincial destinada ao custeio da tipografia em oposição ao
então presidente provincial, Estevão Resende. Já na presidência de Conego José da
Silva Guimarães (MENDONÇA, 1975), empossado em 28 de outubro daquele ano, a
administração da tipografia foi reorganizada e a 30 de julho de 1842 surgiu o Cuiabano
Official, um ano depois modificado para O Cuiabano, que perdurou até 1845. Ainda
oficial, surgiu novamente em 1847 com o título Gazeta Cuiabana, durando um ano.
Em 1848, segundo Mendonça (1975), a Assembleia Legislativa autorizou o então
Presidente Dr. João Chrispiniano Soares a vender a tipografia que foi arrematada
em 31 de agosto por 810$000, tendo por esse modo parar em mão particular, nela
imprimindo-se em setembro O Echo Cuiabano.
Mendonça (1975, p. 9) recorda momentos do desenvolvimento desse jornal:
Durou pouco, porém; em face do desacordo entre o novo Presidente Dr. Joaquim
José de Oliveira e vários chefes de repartições, aos quais demitiu e suspendeu,
inclusive o Chefe de Polícia, desenvolveu-se nesta cidade seria agitação de animo
e por algum tempo circulou a notícia de que a tipografia fora clandestinamente
levada para Poconé por insinuação do ex-Promotor Público José Delfino de
Almeida. Tal fato, entretando, carece de fundamento, porquanto em Poconé não foi
ainda publicado jornal algum, em 1851 O Echo Cuiabano era novamente reeditado
nesta capital e em suas oficinas impressa a Coleção de Leis de 1850.
O Echo Cuiabano, conforme Zaramella (2004), foi identificado como o primeiro
periódico particular de Mato Grosso. Editado a partir de 2 setembro de 1848, o Echo
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 7
76
tinha um formato de 26,5 centímetros de altura por 15,5 centímetros de largura, um
pouco menor que os jornais oficiais anteriores, publicando, entre outras informações,
os atos e a legislação oficial. Zaramella (Idem, p. 11) menciona que: “a publicação
dos atos oficiais no Echo Cuiabano, contratada pelo Presidente Crispiniano por
1:200$000, formalizou uma conduta que o governo da Província passaria a adotar a
partir daquela data [...]”.
A partir de 1848, a imprensa da região norte do estado começou a vender espaço
ao governo para dar publicidade a seus atos, ação que foi acompanhada também
pela imprensa de todo o país.
A imprensa desenvolve-se lenta, mas progressivamente, no país. Assim, embora
distante da estrutura industrial que começa a se consolidar nos países mais
desenvolvidos economicamente, ocorrem alguns progressos. O alastramento
dos prelos permite a multiplicação dos jornais e outras publicações em diferentes
localidades. O jornalismo tem, por isso, influência em vários aspectos do contexto
sócio-político do país, como as revoltas ocorridas durante a Regência e após esse
período. A imprensa participa também dos debates que estão ligados ao fim do
trabalho escravo e à adoção do regime republicano (LAGO e ROMANCINI, 2007,
p. 45).
Considerado o primeiro periódico de oposição ao governo em Mato Grosso, em
julho 1859, conforme Zaramella (2004), foi lançado em Cuiabá o jornal A Imprensa
de Cuyabá, que se apresentava como veículo político, mercantil e literário. Fundado
pelo Padre Ernesto Camilo Barreto e por João de Souza Neves, representou uma
revolução editorial na imprensa mato-grossense, no momento em que desenvolveu
nas suas páginas oposição ao governo da época, do Tenente Coronel Antônio Pedro
de Alencastro. Em função da posição política do jornal, o Padre Ernesto foi preso e
deportado para o Rio de Janeiro, num episódio que repercutiu nacionalmente e que
motivou a demissão de Antônio Pedro de Alencastro do seu cargo de Presidente da
Província.
Um fato importante que ocorreu na região e que foi retratado pelos jornais
da época foi a Guerra da Tríplice Aliança contra a República do Paraguai (1865-
1870). O conflito, segundo Zaramella (2004) foi acompanhado pelos periódicos mato-
grossenses, confirmando uma fase marcada pela preocupação da imprensa regional
com as causas políticas e sociais.
Zaramella (2004) afirma que a segunda metade do século XIX foi marcada pelo
capitalismo, em sua fase industrial. “Isso significava que a produção local, além de
abastecer o mercado interno, cuja população crescia, teria que atender também ao
comércio internacional (Idem, p.13-14)”.
Essa fase do capitalismo também se estendeu à imprensa da época que
acompanhou a industrialização e modernizou-se como em todo o país. Os jornais,
buscando garantir prestação de serviços ao governo, passaram a fazer oposição até
conseguirem vender espaços para atos oficiais. Zaramella (2004) registrou já nesse
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 7
77
período a disputa pela publicidade oficial entre os periódicos.
Data histórica para a imprensa de Mato Grosso, em 15 de janeiro 1935, como
relata Mendonça (1963), passou a Gazeta, órgão oficial, a ser publicada diariamente.
Naquele ato, o nome do Ex-Interventor Federal, Julio Strubing Müller, ficou gravado
como o reformador da Imprensa Oficial: foi no seu governo que a Imprensa Oficial
adquiriu quatro linotipos e uma grande Rotativa.
A Gazeta passou a chamar-se Diário Oficial em 1938, na administração de
Archimedes Pereira Lima, que fundou, no ano seguinte, o jornal O Estado de Mato
Grosso. Lima foi um importante nome da história da imprensa em Mato Grosso.
Jucá (2009) define Archimedes1 como quem dinamizou a Imprensa Oficial do
estado. O autor recorda que Archimedes, que era natural de Campo Grande, estava
no Rio de Janeiro trabalhando na Gazeta de Notícias quando foi designado para
cobrir o atentado sofrido pelos então senadores João Villasbôas e Vespasiano
Barbosa Martins, na varanda da casa do advogado Mário Mota, em Cuiabá. Depois
de concluir o seu trabalho, o jornalista foi convidado pelo então Interventor Federal, o
Capitão Manoel Ari da Silva Pires, para dirigir a Typographia Official do Estado, e teve
o endosso do então Governador eleito, Júlio Strubing Müller, dirigindo a Imprensa
Oficial do Estado de 1937 a 1945.
Lima inseriu seu nome da história da imprensa de Mato Grosso a partir da
instauração da ditadura, no final de 1937, quando a imprensa passou a viver sob
o regime de censura. Com a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP), foram instalados nos estados os Departamentos Estaduais de Imprensa e
Propaganda.
Mendonça (1963) registrou que, nesse período, a imprensa de Mato Grosso foi
regida pelo olhar de Lima, sustentando que a nomeação do jornalista realizada pelo
Interventor Júlio Müller para a Repartição, foi um ato de justiça, cedendo a Lima o
título de reformador da imprensa oficial.
O DEIP em Mato Grosso, em virtude do espírito liberal do seu diretor, que é jornalista
profissional, nunca exerceu a censura, e até auxiliava a imprensa local dando-lhe
a mais completa liberdade. Aliás, durante todo o tempo da Ditadura, pelo menos
em Mato Grosso, nunca houve falta de garantia à imprensa. O próprio Interventor
Júlio Müller dava à imprensa todo o apoio. Não sabemos de um só atentado contra
a liberdade de imprensa, durante todo esse período que vai de 10 de novembro de
1937 a 29 de outubro de 1945, data da queda da Ditadura no Brasil (MENDONÇA,
1963, p. 63).
Jucá (2009) sustenta que foi durante a gestão de Lima como diretor da Imprensa
Oficial que foram adquiridos os quatro linotipos, em 1938. A partir desse período, foi
introduzido em Mato Grosso o sistema de composição de textos hot type (composição
1
O portal de notícias do Jornal Diário de Cuiabá rendeu a Archimedes Pereira Lima, uma homenagem pelo seu centenário, comemorado em 1º de janeiro de 2008. Na abertura da reportagem, o
veículo considera o fundador do jornal O Estado de Mato Grosso uma das figuras mais importantes da
história recente de Mato Grosso.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 7
78
a quente), antes baseado em tipos móveis, passando os textos a serem fundidos
em chumbo, linha por linha, através das matrizes dos linotipos. O sistema esteve
em funcionamento em vários jornais de Cuiabá até a década de 1970, quando
começaram a funcionar os primeiros sistemas de composição a frio (cold type),
através de componedoras fotográficas.
Mendonça (1963) recorda que a campanha Brigadeirista que culminou com a
queda de ditadura Vargas, foi no seu início em Cuiabá, por meio de boletins. Conforme
o autor, o primeiro jornal das oposições Coligadas, o Correio Matogrossense, apareceu
apenas em 2 de dezembro de 1945.
Outro fato que merece registro na história da imprensa de Mato Grosso é a
fundação da Associação da Imprensa Matogrossense, em 23 de janeiro de 1934.
Mendonça (1963) menciona que a Associação teve grande prestígio nos primeiros
tempos, fazendo um deputado classista na Constituinte Estadual de 1934. Com o
golpe de Estado, de 10 de novembro de 1937, a Associação quase desapareceu. Após
aprovação na Assembleia Legislativa, o Poder Executivo reconheceu a Associação
de utilidade pública e sancionou a lei No. 259, de 23 de agosto de 1949, instituindo
uma subvenção de doze mil cruzeiros para a Associação.
Um fato curioso aconteceu às vésperas da divisão de Mato Grosso. Provavelmente
prevendo a divisão, o então Governador do estado, José Garcia Neto, privilegiou a
região norte, transformando por meio da Lei n. 3.907, de 19 de setembro de 1977, a
Imprensa Oficial do Estado de Mato Grosso em autarquia vinculada à então Secretaria
de Estado de Administração. Jucá (2009) aponta que o Decreto n. 1.090, de 29 de
setembro de 1977, definiu a sua estrutura: orçamento próprio, autonomia financeira,
estrutura industrial competitiva e aberta, personalidade jurídica própria, sede e foro
em Cuiabá.
As primeiras páginas deste ensaio resgataram, resumidamente, o início e os
primeiros passos do desenvolvimento da região norte da imprensa do então estado
de Mato Grosso uno. A seguir, é apresentado o surgimento da imprensa na região sul
(hoje Mato Grosso do Sul) e, em seguida, são apresentadas algumas características
da imprensa dessas regiões daquele período.
2 | A IMPRENSA EM MATO GROSSO DO SUL
A imprensa surgiu na região sul do antigo estado de Mato Grosso uno em
Corumbá, que foi, depois de Cuiabá, a primeira cidade a ter imprensa própria no
estado. A cidade figurou como polo de desenvolvimento para o estado especialmente
pela importância do porto.
Na fase próspera que Corumbá viveu após a Guerra do Paraguai, os comerciantes
Manoel Antônio Guimarães e Silvestre Antunes Pereira da Serra lançaram, em 18 de
janeiro de 1877, O Iniciador. Mendonça (1963) caracteriza o jornal, que era impresso
em quatro colunas, como órgão comercial, noticioso e literário. O calendário da
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 7
79
semana e indicações das fases lunares eram publicados na primeira coluna. Todo o
material tipográfico foi adquirido em Assunção (Paraguai).
Após três anos, surgiram, conforme Mendonça2 (1963), A Opinião e O
Corumbaense (órgão dos interesses do comércio e da lavoura).
Até as primeiras
décadas do início do século passado, surgiram outras dezenas de jornais, registrados
pelos historiadores da época em Corumbá.
Campo Grande, hoje capital de Mato Grosso do Sul, em 1913 não dispunha
de energia elétrica (que surgiu em 1918) e também não havia recebido os trilhos da
Noroeste (o que ocorreu em 1914), mas naquele ano, conforme Rodrigues (1976),
foi lançado o primeiro jornal da cidade, naquele período uma próspera vila, com
quase dois mil habitantes, recebendo boiadeiros de Minas Gerais e de São Paulo que
realizavam os seus negócios.
O advogado pernambucano Arlindo Gomes de Andrade, que foi o primeiro Juiz
de Direito e mais tarde o Intendente (prefeito) de Campo Grande, “[...] movido de
entusiasmo pela terra em que se fixara, resolveu dar-lhe um jornal, que fosse um
órgão de ligação entre Campo Grande e as povoações vizinhas (RODRIGUES, 1976,
p. 12)”.
Pelas mãos de Arlindo Andrade, no dia 22 de junho de 1913, circulou a primeira
edição do jornal O Estado de Matto Grosso, que passou, segundo Rodrigues (1976),
à história da imprensa como o primeiro tipograficamente impresso no sul do estado.
Impresso em papel couchê importado de Assunção, no Paraguai, com quatro páginas,
sendo a primeira impressa com tinta dourada. O formato do primeiro número media
32 centímetros por 44 e as colunas eram de seis por 34 centímetros.
A primeira página do O Estado de Mato Grosso continha o preço cobrado pela
assinatura e logo a seguir, dava a explicação pelo seu formato devido a demora da
chegada das máquinas encomendadas da Alemanha. Também havia uma pequena
seção de anúncios de três advogados e de um médico.
Rodrigues (1976) aponta que, como sempre acontecia, os órgãos de imprensa,
ao circular o primeiro número, faziam a sua apresentação estabelecendo um programa
a seguir, as ideias políticas que defendiam, mas O Estado de Matto Grosso não seguiu
a tradição e afirmou no seu principal artigo não ter programa definido. “Todavia não
se descuidaria do progresso de Mato Grosso, especialmente do Sul. A agricultura,
o comércio, a pecuária, os meios de comunicação e os recursos naturais da região
seriam os temas principais de suas preocupações (Idem, p. 15)”.
Rodrigues (1976) recorda que durante os 65 anos após o surgimento do
primeiro jornal de Campo Grande, várias dezenas de publicações apareceram na
cidade e, depois de algum tempo, desapareceram. “De O Estado de Matto Grosso até
os diários de hoje, a manutenção dos órgãos de imprensa tem sido arrojada obra de
2
O autor também registra o lançamento de outros jornais naquele período até o início da nova
centúria em Corumbá: Calabrote e Athleta (1882); Diabinho (1884); Oasis (1887); Echo do Povo (1894);
A Federação (1896); O Sertanejo e O Tiradentes (1897); A Violeta, Município de Corumbá e A Pátria
(1899); Garibaldi (1900); O Brasil (1903); O Autonomista e A Satyra (1904).
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 7
80
coragem e de civismo, verdadeira escola de abnegação (Idem, p. 45)”.
A partir do jornal mais antigo de Campo Grande ainda em funcionamento, o
Correio do Estado, fundado em 1954, Rodrigues (1976) lista outros veículos que
surgiram na capital de Mato Grosso do Sul: A Ordem (1916); O Sul (1917); Rui Barbosa
(1919); A Nota (1919); Guarani; O Imparcial (1930); O Correio do Sul; O Martelo (1917);
Miosótis; Jornal do Comércio (1921); Delta (1928); Diário do Sul (1929; A Cidade
(1920); A República (1931); O Correio de Campo Grande (1931); Diário Oficial (1932);
O Progressista (1933); O Imparcial (1933); O Estado (1934); O Campograndense
(1935); Folha da Serra (1931); O Matogrossense (1944); O Esparadrapo (1973); Eco
(1939); O Estandarte (1956); O Amambaí (1976) e D. Bosco (1976).
O primeiro jornal diário a circular em Campo Grande, segundo Mendonça (1963),
foi o Diário do Sul, lançado em 1926, de propriedade da empresa jornalística Diário do
Sul LTDA. Caracterizou-se por fazer propaganda do Centro Cívico Campo-Grandense.
Assim como Rodrigues, Mendonça também acompanhou o desenvolvimento da
imprensa na região sul do estado, listando o lançamento de alguns dos principais
jornais da época.
Seguida de Campo Grande, Corumbá e Cuiabá, Três Lagoas representou a
quarta cidade do estado onde a imprensa teve o maior desenvolvimento. Como recorda
Mendonça (1963), fundada em 1909, em 1918 Três Lagoas passou de acampamento
provisório a estação ferroviária e depois elevada à comarca. O primeiro jornal que
circulou na cidade foi o Gazeta do Comércio, em 1919, fundado e dirigido pelo poeta
Elmano Soares. A Epocha surgiu em 28 de outubro de 1920, sob a direção do Dr.
Argeo de Andrade e Noginel Pegado. Depois vieram: O Democrata (1937); O Jornal
do Povo (1949), entre outros.
Esse breve resgate do surgimento da imprensa na região sul, permite à
pesquisa considerar que a região sul alavancou o desenvolvimento da imprensa em
Mato Grosso, já que depois de Cuiabá, as cidades que despontaram no setor foram
Corumbá, Campo Grande e Três Lagoas, todas do atual estado de Mato Grosso do
Sul. A seguir são apresentadas algumas características da imprensa das regiões na
época.
3 | CARACTERÍSTICAS DA IMPRENSA
Desde os primeiros passos da imprensa no estado de Mato Grosso, os jornais
nasciam para levantar bandeiras políticas ou representativas, o que se percebe em
1868 com o lançamento do jornal A Situação, que era órgão do Partido Conservador.
Mendonça (1963) menciona outros veículos com o mesmo cunho: O Povo (1878), que
defendia princípios democráticos; O Expectador (1883), órgão dos interesses sociais
e A Gazeta (1888), jornal republicano que fez propaganda ativa da democracia e
que ao lado de A Situação e A Província de Mato Grosso (órgão do Partido Liberal)
figuraram como os três jornais que circularam no ano da Proclamação da República,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
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em 1889, em Cuiabá.
Mendonça (1963) resgata o registro de Karl Von Den Steinen falando sobre a
imprensa de Cuiabá no verão de 1884 em seu livro Durch Central-Brasilien: “Todos
estes jornais saiam uma vez por semana, aos domingos. Não traziam mais do que
política partidária, acontecimentos locais, notícias várias, injúrias pessoais e poesia
Idem, p. 11).”
O relato de Steinen sobre a imprensa de Cuiabá em 1884 retrata também a
imprensa de todo o estado daquele período. “Não era assim só em Cuiabá, mas sim
toda a imprensa do interior em todo o Império (MENDONÇA, 1963, p. 12)”.
No que concerne à região sul, assim como na região norte, os jornais nasciam
apresentando sua bandeira à defesa de interesses como o Sul (1917) que se
apresentava como órgão dedicado à defesa dos interesses do sul de Mato Grosso.
Também houve nas duas primeiras décadas o surgimento de veículos que eram
destinados à propaganda de candidaturas como o Rui Barbosa (1919). Após três
anos do lançamento do primeiro jornal da região sul do estado, os jornais apareceram
para servir classes, como O Corumbaense, órgão dos interesses do comércio e da
lavoura.
A revista mensal Guarani tinha por fim a divulgação da língua guarani. O Correio
do Sul era órgão do Partido Republicano de Mato Grosso. Também havia espaço para
a literatura: o Miosótis era um pequeno jornal literário. Já o Jornal do Comércio, de
1921, foi um órgão dedicado exclusivamente aos interesses legítimos do comércio e
das classes produtoras. Delta, de 1928, era órgão da maçonaria. Diário Oficial (1932)
era órgão oficial do governo revolucionário de Mato Grosso durante a Revolução
Constitucionalista de 1932.
Seguindo a mesma linhagem, surgiu, em 1890, conforme Mendonça (1963), o
15 de Novembro, órgão do Partido Nacional Republicano e o Gazeta Oficial, criado
pelo então Governador Geral Antonio Maria Coelho. O autor também registrou o
surgimento de: A Reação (1902), órgão do Partido Republicano; A Coligação (1905),
folha política criada para combater o então presidente do Estado, Coronel Antônio
Pais de Barros; A Cruz (1910), folha católica da Liga do Bom Jesus de Cuiabá, que
ocupa depois do Diário Oficial do Estado, o lugar de veterano no jornalismo matogrossense.
Mendonça (1963) registrou nas primeiras décadas daquela centúria dezenas de
jornais criados para levantar uma bandeira e defender alguma causa. O autor também
registrou a abertura do jornal A Plebe (1927-1930), o único a fazer a propaganda da
candidatura de Getúlio Vargas e menciona a participação do jornal O Momento, órgão
de oposição ao governo provisório de Getúlio Vargas e que preparou o ambiente para
a Revolução Constitucionalista de 1932. O Momento divulgava em seu número 99, de
15 de maio de 1932, a notícia do atentado contra as suas oficinas. Após a Revolução,
em 1933, surgiram novos jornais, sempre em prol de alguma causa. O destaque é
para o Jornal do Comércio, importante veículo da época e que reuniu alguns dos
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 7
82
melhores jornalistas do estado.
Rodrigues (1976) menciona o surgimento de alguns jornais na região sul,
caracterizando-os: O Progressista (1933) era órgão do Partido Progressista de
Mato Grosso. O Estado (1934) dizia-se órgão oficial do município e do estado. O
Matogrossense (1944) surgiu como órgão do Partido Social Progressista e mais
tarde ficou a serviço do Partido Social Democrático. O Esparadrapo (1973) era órgão
informativo da Santa Casa. O Amambaí (1976) órgão oficial do círculo militar de
Campo Grande; D. Bosco (1976) revista de pequeno formato apresentou-se com
a finalidade de ser veículo de informação e comunicação de todas as atividades do
Colégio Dom Bosco.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este breve ensaio permite tecer algumas considerações. A primeira é que a
imprensa no então Mato Grosso uno nasceu sob o domínio oficial e passou do poder
público à atividade privada, sem deixar de perder vínculo com o governo, que a
patrocinava.
Essa imprensa foi instalada no então estado unificado em uma época na qual a
maioria dos jornais brasileiros não escondia sua cor partidária, surgia em defesa de
uma causa, ou bandeira. Essa tendência foi acompanhada pelos órgãos de imprensa
de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul a partir de 1868, quando houve o lançamento
do jornal A Situação, que era órgão do Partido Conservador.
O estudo também identificou datas importantes da instalação da imprensa nos
dois estados, como o surgimento do primeiro periódico particular em Mato Grosso
uno, em 1848, a introdução da fase do capitalismo estendida à imprensa, a censura
imposta durante a ditadura militar, o surgimento do primeiro jornal de oposição e a
fundação, em 1934, da Associação da Imprensa Matogrossense.
A história da imprensa de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul precisa
ser compreendida através de abordagens interpretativas que respeitem suas
singularidades articuladas ao contexto mais amplo do desenvolvimento histórico da
região Centro-Oeste do Brasil. Atualmente, o cenário de publicações acadêmicas
versando sobre os principais acontecimentos da história da imprensa desses estados
ainda é tímido e, por sua relevância, essa memória carece ser resgatada em suas
diversas facetas para que a sociedade possa conhecer um pouco mais dessa
importante região brasileira.
REFERÊNCIAS
CAMPESTRINI, Hildebrando; GUIMARÃES, Acyr Vaz. História de Mato Grosso do Sul. Edição
histórica. Campo Grande: Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, 1991.
JUCÁ, Pedro Rocha. Imprensa Oficial de Mato Grosso – 170 anos de história. 2009. Disponível
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Capítulo 7
83
em: <http://www.iomat.mt.gov.br/stored/livro/livro_iomat_170_anos.pdf>. Acesso em 29 jul. 2014.
LAGO, Cláudia; ROMANCINI, Richard. História do Jornalismo no Brasil. Florianópolis: Insular,
2007.
MENDONÇA, Estevão de. Breve Memória sobre a Imprensa em Mato-Grosso. Editora UFMT,
1975.
MENDONÇA, Rubens de. História do jornalismo em Mato Grosso. 1963.
RODRIGUES, José Barbosa. O Primeiro Jornal de Campo Grande. S. ed.1976.
ZARAMELLA, Sônia. Jornal em Mato Grosso - no começo de tudo, a participação popular. II
Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho, Florianópolis, 2004. Disponível em:< http://www.
ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/2o-encontro-2004-1/Jornal%20em%20Mato%20Grosso%20-%20.
doc/view>. Acesso em: 08 jul. 2014.
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Capítulo 7
84
CAPÍTULO 8
doi
DESENVOLVIMENTO E DIFUSÃO DAS HISTÓRIAS EM
QUADRINHOS A PARTIR DE JORNAIS ESTADUNIDENSES
DO SÉCULO XIX
Juliana de Kássia de Oliveira Angelim
Universidade Federal do Pará, Programa de
Pós-Graduação em História Social da Amazônia,
Belém – PA
RESUMO: A narrativa formada pela interação
entre imagens e palavras caracteriza, de
maneira geral, o que se considera como a nona
arte e um dos principais meios de comunicação
da atualidade: as histórias em quadrinhos.
Ao sondar as origens destas, depara-se com
jornais estadunidenses do século XIX, visto
que a introdução de tiras em quadrinhos
nos suplementos dominicais e nas páginas
diárias desses periódicos impulsionaram o
desenvolvimento e a difusão das histórias em
quadrinhos não só nos Estados Unidos como
em países afora, dentre eles o Brasil. Assim,
com o presente trabalho, propõe-se apresentar
uma breve trajetória dessa forma de arte e meio
de comunicação nos dois países, tendo os
jornais como ponto de partida e atentando para
os períodos em ascendência e em decadência
ao longo do caminho.
PALAVRAS-CHAVE: Jornais; Histórias em
quadrinhos; Meio de comunicação.
DEVELOPMENT AND DISSEMINATION OF
COMICS FROM NINETEENTH CENTURY
AMERICAN NEWSPAPERS
ABSTRACT: The narrative formed by the
interaction between images and words
characterizes, in a general way, what is
considered as the ninth art and one of the
principal mass media of the present time: comics.
By tracing its origins, it is possible to encounter
nineteenth century American newspapers,
since the introduction of comic strips in the
Sunday supplements and daily pages of these
periodicals propelled the development and the
dissemination of the comics not only in the
United States but around the world as well,
including Brazil. Thus, with the present work, it
is proposed to present a brief trajectory of this
form of art and mass media in the two countries,
having the newspapers as a starting point and
paying attention to periods of ascendancy and
decay along the way.
KEYWORDS: Newspapers; Comics; Mass
media.
1 | INTRODUÇÃO
De acordo com Zilda Anselmo (1975,
p.22), “são vários os critérios dos meios
de comunicação de massa. Na literatura
especializada, um dos critérios os divide
em meios impressos (jornal, revista, livro e
quadrinhos) e os meios não-impressos ou
audiovisuais (cinema, rádio e televisão)”. Desse
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 8
85
modo, a narrativa formada pela interação entre imagens e palavras caracteriza, de
maneira geral, um dos principais meios de comunicação da atualidade: as histórias
em quadrinhos – ou simplesmente “quadrinhos” ou “HQs”. Estas, além de terem suas
publicações próprias (com histórias que abordam da vida cotidiana à ficção científica,
do humor ao terror, dentre outros gêneros/estilos), também estão presentes em
jornais, revistas, anúncios publicitários e livros didáticos, por exemplo. Não é à toa
que:
As histórias em quadrinhos se tornaram a tal ponto um componente central da
cultura contemporânea, com uma bibliografia tão extensa, que seria trivial insistir no
que todos sabemos de sua aliança inovadora, desde o final do século XIX, entre
a cultura icônica e a literária. Participam da arte e do jornalismo, são a literatura
mais lida, o ramo da indústria editorial que produz maiores lucros (CANCLINI, 2000,
p.339).
O percurso das histórias em quadrinhos até se tornarem um componente central
da cultura contemporânea é marcado por ascendências e decadências, e, embora
não se possa precisar com exatidão e unanimidade qual a origem desse meio de
comunicação, tradicionalmente as bibliografias sobre o tema tomam como ponto de
partida o jornalismo, e, em especial, dois jornais estadunidenses do século XIX. Isso
porque, ainda que a utilização de imagens para a construção de narrativas seja datada
da pré-história, quando imagens eram gravadas em cavernas, as iniciativas de Joseph
Pulitzer e de William Randolph Hearst – proprietários dos jornais New York World
e Morning Journal, respectivamente – são tidas como o início do desenvolvimento
e difusão das histórias em quadrinhos (ANSELMO, 1975, p.40, 45). E é com base
nessa perspectiva que prossegue este texto.
2 | AS TIRAS DIÁRIAS E OS SUPLEMENTOS DOMINICAIS DE JORNAIS
ESTADUNIDENSES
Joseph Pulitzer foi um imigrante húngaro que comprou o New York World
em 1883 e que, dentre outros recursos, valeu-se de grandes manchetes, artigos
sensacionalistas e ilustrações para ampliar o público leitor do seu jornal (ANSELMO,
1975, p.45). Uma das estratégias adotadas para atrair leitores foi a criação de um
suplemento dominical, que, por priorizar a imagem ao texto, serviu ao propósito de
cativar tanto aqueles que não sabiam ler quanto os imigrantes que não dominavam a
língua inglesa.
Nesse contexto, notabiliza-se um ilustrador em especial, chamado Richard
Outcault, cujos desenhos figuraram no suplemento dominical do New York World
(GOIDA; KLEINERT, 2011, p.9). Em 1895, Outcault criou Down Hogan’s Alley (O Beco
de Hogan, em tradução livre), série de desenhos onde apareceu pela primeira vez
o personagem Yellow Kid (conhecido no Brasil por Garoto ou Menino Amarelo), que,
devido à grande popularidade, um ano depois viria a se tornar o protagonista da que
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 8
86
muitos consideram como a primeira história em quadrinhos do mundo (LUCCHETTI,
2001, p.1-2).
O que faz de Down Hogan’s Alley uma “série de desenhos”, enquanto que The
Yellow Kid recebe o status de história em quadrinhos, é a inserção de um elemento
essencial às HQs modernas: o balão de fala. Para Zilda Anselmo (1975, p.44),
as histórias em quadrinhos possuem como elementos essenciais “a narração em
sequências de imagens, continuidade dos personagens duma sequência a outra e o
diálogo incluso na imagem”.
Cabe, entretanto, colocar que a utilização dos balões de fala por Outcault
(inicialmente traduzida na aparição de falas apenas na camisola do garoto, e não
dentro de balões) não equivale exatamente à primeira inclusão de texto na imagem.
Ainda em meados do século XIX, o artista francês Rodolphe Topffer criou histórias
que constavam de imagens separadas por um traço vertical, que demarcava os limites
entre a imagem e uma legenda que a acompanhava (ANSELMO, 1975, p.43). Mas,
apesar de a Europa ocupar uma posição precursora no que se refere às histórias em
quadrinhos no Ocidente, o balão de fala propriamente dito só teria aparecido com o
garoto amarelo de Outcault. Além do mais, as histórias em quadrinhos dos artistas
europeus só começaram a ganhar maior visibilidade no exterior a partir do final da
Segunda Guerra Mundial, período em que as HQs estadunidenses já tinham ganhado
o mundo (GOIDA; KLEINERT, 2011, p.11).
Após comprar o Morning Journal em 1895, William Hearst passou a disputar
leitores com Pulitzer, valendo-se, também, da publicação de um suplemento dominical
ilustrado para aumentar as vendas do jornal. Contratou o desenhista Rudolph Dirks,
criador de The Katzenjammer Kids (Os Sobrinhos do Capitão ou Hans e Fritz, no
Brasil), que retratava dois garotos malandros sempre revoltados contra o poder
estabelecido (ANSELMO, 1975, p.46).
As tiras em quadrinhos serviram de tal forma ao propósito de ampliação do
público leitor e das vendas dos dois jornais citados que passaram a ser publicadas
nas modalidades daily strips (lançadas diariamente, em preto e branco) e sunday
pages (aparecendo coloridas nos tradicionais suplementos dominicais). Além disso,
visando organizar melhor uma distribuição das histórias em quadrinhos, tanto Pulitzer
quanto Hearst criaram os chamados Syndicates, que enviavam a mesma HQ para
vários jornais e conferiam aos seus criadores o ganho de uma porcentagem do lucro
das vendas (GOIDA; KLEINERT, 2011, p.9).
As iniciativas dos proprietários do New York World e do Morning Journal não
só atraíram leitores e compradores para os jornais como também artistas para a
produção de histórias em quadrinhos, o que, somando às inovações técnicas da
imprensa – com a utilização de máquinas como linotipos, rotativas e estereotipias em
zinco, que tornaram o produto mais barato e acessível –, fez do final do século XIX e
do início do XX uma época promissora para o desenvolvimento das HQs (ANSELMO,
1975, p.47).
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 8
87
Os artistas criaram tiras de garotos, animais e família, para citar alguns temas,
e, até a década de 20, todas elas possuíam a finalidade de provocar o riso no público
leitor. Tal cenário modifica-se a partir de 1929, quando o gênero humorístico passa
a dividir espaço com tiras de aventura, ficção científica, detetives e muitas outras:
trata-se do início da chamada era de ouro dos quadrinhos, que perduraria até o ano
de 1938. Personagens como Dick Tracy (de Chester Gould), Flash Gordon (de Alex
Raymond), Mandrake, o Mágico (de Lee Falk/Phil Davis) e Phanton, conhecido no
Brasil como O Fantasma (de Lee Falk/Ray Moore), datam dessa época (GOIDA;
KLEINERT, 2011, p.9-10).
Ademais, foi na década de 30 que, dado o sucesso das HQs nos jornais, também
começaram a ganhar popularidade as revistas próprias de quadrinhos, denominadas
de comic books, nos Estados Unidos (no Brasil, estas ficaram conhecidas pelo nome
de gibis). Inicialmente, o conteúdo dessas publicações era composto apenas de
material compilado das principais histórias em quadrinhos publicadas nos jornais, até
que, com o tempo e a ampliação do número de leitores, as editoras passaram a investir
em material exclusivo. No fim da década, em 1938, surgiu o primeiro super-herói
da história dos quadrinhos, o Super-Homem. Adicionando o seu sucesso imediato
à criação do Batman, um ano depois, estava dada a largada para o aparecimento
de centenas de super-heróis e para a disseminação de suas histórias pelo mundo
(GOIDA; KLEINERT, 2011, p.10).
Certamente, as histórias em quadrinhos estadunidenses finalizaram a década
de 30 em pleno desenvolvimento, exportando suas grandes séries para vários países.
Mas, com o início da década de 40, tanto o curso da história mundial como a função
social dos quadrinhos foram diretamente afetados pela Segunda Guerra Mundial.
Uma das primeiras consequências da influência da guerra foi a proibição das HQs
advindas dos Estados Unidos em países como Itália, França, Alemanha e União
Soviética. Além disso, as HQs se tornaram instrumentos de propaganda da guerra,
de forma que os artistas, em colaboração com o governo estadunidense, fizeram com
que seus personagens entrassem em luta contra os japoneses, desfizessem intrigas
inimigas, derrotassem espiões e sabotadores, enfim, tomassem parte ativa no conflito
mundial (ANSELMO, 1975, p.56).
Marcada por proibições de veiculação e restrições no conteúdo abordado pelas
HQs, conclui-se que a década de 40, no geral, caracteriza-se por uma lenta evolução
das histórias em quadrinhos – para não falar em decadência. A década seguinte,
ainda que não mais inserida no contexto da guerra, manteve, em parte, tal situação
de declínio das HQs, visto que se acentuou nessa época o ataque aos quadrinhos
por parte de profissionais como psiquiatras, educadores e psicólogos:
A HQ foi acusada de representar para os jovens uma perda de tempo e de atenção,
de desenvolver a preguiça mental, de não ter nenhuma sutileza, de tornar as coisas
demasiadamente fáceis, de falta de estilo e de moral, de humorismo imbecil ou de
reduzir as maravilhas da linguagem a grosseiros monossílabos. Com o aumento da
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Capítulo 8
88
delinquência juvenil após a Segunda Grande Guerra, esses ataques se tornaram
mais violentos e as acusações de psicólogos e pedagogos culminaram com a
publicação da obra do psiquiatra [Fredric] Wertham (1954), The Seduction of the
Innocent (A Sedução dos Inocentes) (ANSELMO, 1975, p.58).
Ainda que os argumentos de Wertham tenham sido refutados posteriormente e
apontados como exagerados e generalizadores, as HQs não conseguiram escapar
da censura dos syndicates estadunidenses. Outro motivo de preocupação era a
concorrência advinda da televisão, de forma que, na década de 50, chegou-se até a
prenunciar o desaparecimento das histórias em quadrinhos. Tal prognóstico revelouse totalmente equivocado devido, dentre outros fatores, ao revigoramento das tiras
diárias dos jornais a partir do início da publicação de HQs de caráter intelectual, a
exemplo de Peanuts (conhecido no Brasil como Minduim), de Charles Schulz. Em
1950, também começa a ganhar destaque publicações de terror, com histórias de
vampiros e monstros diversos. Histórias de outros gêneros/estilos não deixaram de
ser publicadas e, num balanço geral, o pós-guerra inicia um período de criatividade e
de renovação para as histórias em quadrinhos (ANSELMO, 1975, p.59-60).
Mesmo a censura, que teria perdurado até a década de 80, provocou reações que
revelaram uma criatividade implícita ou ainda desconhecida. Na metade da década
de 60, teve início a publicação dos chamados underground comics, histórias livres,
irreverentes, contestadoras e até mesmo pornográficas, de artistas não filiados aos
syndicates ou às editoras de comic books (GOIDA; KLEINERT, 2011, p.11). Assim,
as histórias em quadrinhos – que inicialmente fizeram sucesso por abordar de forma
cômica temas relacionados à vida cotidiana, objetivando o maior número possível
de leitores – estavam, algumas décadas depois de sua época de ouro, visando um
público mais restrito, adulto, com histórias de caráter intelectual, crítico e, por que
não, erótico.
É importante colocar que, a partir da década de 60, veio à tona um grande
momento de avanço para a Europa em se tratando de quadrinhos. Tanto histórias
exclusivas para o público adulto quanto personagens a exemplo de Asterix, de
René Goscinny/Albert Uderzo, aceito pelos mais variados públicos, foram sinônimo
de sucesso para as HQs europeias; sucesso não necessariamente refletido em
exportações e lucros gigantescos, mas observado pelo próprio desenvolvimento das
histórias em quadrinhos (GOIDA; KLEINERT, 2011, p.11).
Diferentemente das tiras em jornais ou dos comic books estadunidenses, as HQs
europeias passaram a ser publicadas em séries, cujas narrativas completavam-se em
45 ou mais páginas e depois eram publicadas em álbuns. Esse formato continuou
sendo adotado ao longo dos anos, enquanto nos Estados Unidos, mesmo com a
publicação de quadrinhos em outros formatos (como em comic books), nada superou
o sucesso das tiras cômicas, conclusivas em quatro ou menos quadrinhos, publicadas
nos jornais. Entretanto, mesmo essas tiras nos jornais começaram a passar por
um período de decadência, entre 1980 e 1990, o que implicou no aparecimento de
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 8
89
minisséries e graphic novels, para renovar o gosto pelas HQs: “Assim, decadente nos
jornais, mas explodindo em revistas e nas livrarias, os quadrinhos sobreviveram, em
transformação e revolução muito saudáveis” (GOIDA; KLEINERT, 2011, p.12).
3 | OS SUPLEMENTOS DE JORNAIS BRASILEIROS
Apesar da posterior decadência das histórias em quadrinhos nos jornais dos
Estados Unidos, reitera-se a importância das tiras publicadas no New York World
e no Morning Journal para que as HQs se tornassem um dos principais meios de
comunicação e um componente central da cultura contemporânea. O sucesso do
Garoto Amarelo de Outcault e d’Os Sobrinhos do Capitão de Dirks abriu caminho
para que cada vez mais desenhistas se dedicassem aos quadrinhos, estimulados por
um público leitor também crescente. Difundidas para além das fronteiras nacionais,
as HQs estadunidenses despontaram como um marco para o desenvolvimento das
histórias em quadrinhos em vários países, dentre eles o Brasil. E os jornais também
desempenharam um papel fundamental para a consolidação das HQs neste país,
como será visto a partir de agora.
De acordo com Álvaro de Moya & Moacy Cirne (2002, p.122), já no século XIX,
houve trabalhos pioneiros em quadrinhos no Brasil, e todos de autoria do caricaturista
italiano Angelo Agostini. São eles: As cobranças, obra precursora do modo narrativo
das histórias em quadrinhos, publicada em 1867; As aventuras de Nhô- Quim, datada
de 1869, e As aventuras de Zé Caipora, cuja primeira publicação ocorreu em 1883.
Mas, dada a importância e o sucesso adquiridos pela primeira revista em quadrinhos
publicada no país, autores como Zilda Anselmo (1975, p.67) e Stela Lachtermacher e
Edison Miguel (in LUYTEN, 1985, p.41) iniciam a história dos quadrinhos no Brasil a
partir de 1905, com a publicação de O Tico-Tico.
A revista, que circulou até 1962, insere-se numa nova fase da imprensa brasileira,
em que o público leitor passa por segmentação e os conteúdos de jornais e revistas
deixam de ser voltados exclusivamente para os adultos e começam a visar, também,
as crianças. Combinando entretenimento e educação, O Tico-Tico trazia histórias em
quadrinhos, versos, contos, enigmas e adivinhações, bem como conhecimentos e
aprendizados sobre ciências, matemática, geografia, artes e educação moral e cívica,
para citar uma parte dos conteúdos que compunham suas páginas (MERLO, 2004,
p.4-5).
As HQs publicadas na revista eram, em sua maioria, reproduções de tiras dos
jornais estadunidenses, tendo como exemplo de maior sucesso o título Buster Brown,
de Outcault – que, apresentado aos pequenos leitores como Chiquinho, continuou a
figurar n’O Tico-Tico mesmo depois do seu término nos Estados Unidos, ficando ao
encargo de artistas nacionais a produção de novas histórias (MOYA, 1977, p.202).
Entretanto, vale destacar que a ênfase em histórias e personagens estrangeiros não
implica na inexistência de títulos nacionais: de acordo com Zilda Anselmo (1975, p.67),
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 8
90
apesar da maioria dos desenhistas brasileiros adaptarem personagens vindos de
fora, muitos deles também criavam personagens nacionais para a revista, a exemplo
de Oswaldo Storni, criador de Zé Macaco e Faustina, e de Luís Sá, que lançou RecoReco, Bolão e Azeitona.
Dito isso, é chegada a hora de falar dos jornais. A criação de suplementos que
dedicavam espaço aos quadrinhos como estratégia para a ampliação de leitores e
de exemplares vendidos não se restringiu ao território estadunidense, sendo também
vislumbrada em jornais do Brasil. A tendência foi inaugurada em 1929, pelo jornal
Gazeta de São Paulo, com a publicação da Gazetinha ou Gazeta Infantil, que, mesmo
sendo interrompida em diversos períodos, não deixou de fazer sucesso (MOYA, 1977,
p.207).
Em seu primeiro número, a Gazetinha apresentou na página central uma
aventura do Gato Félix, de Pat Sullivan, além de trazer para o público brasileiro
histórias d’O Fantasma, de Lee Falk, e de Little Nemo in Slumberland (aqui traduzida
como O Sonho de Carlinhos), de Windsor Macay, por exemplo (LACHTERMACHER;
MIGUEL, 1985, p.43). Quanto aos personagens nacionais, destaca-se a apresentação
do radialista Nhô Totico, do ator Procópio Ferreira e do artista de circo Piolim como
personagens de HQ, por parte dos desenhistas Messias de Melo e Nino Borges. Em
1949, o suplemento passou a ser chamado de Gazeta Juvenil (ANSELMO, 1975,
p.67-68).
Para Álvaro de Moya (1977, p.202), o grande acontecimento das histórias em
quadrinhos no Brasil ocorreu no dia 14 de março de 1934, quando Adolfo Aizen lançou
o Suplemento Juvenil, apêndice semanal do jornal carioca A Nação. Depois de 15
edições, o enorme sucesso adquirido pela publicação culminou no seu desligamento
do jornal e consequente independência econômica, ao passar a ser editado
separadamente. Como prova de tamanho sucesso, nenhuma outra publicação do
gênero superou o recorde de vendas do Suplemento Juvenil – 360 mil exemplares
nas três edições lançadas semanalmente. Mandrake, Dick Tracy (de Chester Gould)
e Bill, o agente secreto X-9 (de Dashiell Hammett e Alex Raymond), além de histórias
nacionais, a exemplo de Roberto Sorocaba, de autoria de Monteiro Filho, foram
alguns dos títulos que figuraram em suas páginas.
Em 1937, o Suplemento Juvenil lançou outra revista, Mirim, também em três
edições por semana. Enquanto o Suplemento tinha tamanho tabloide e era publicado
às terças, quintas e sábados, Mirim tinha tamanho meio-tablóide, e era disponibilizado
para venda às quartas, sextas e domingos. Numa tentativa de reproduzir o êxito
alcançado por ambas, surgiram duas publicações, apêndices do jornal O Globo, de
Roberto Marinho: O Globo Juvenil, imitação do Suplemento; e Gibi, seguindo os
passos de Mirim (MOYA, 1977, p.205).
Mas, independente disso, é inegável a contribuição de Gibi para a história dos
quadrinhos no Brasil, uma vez que o título da revista passou a ser sinônimo de revistas
em quadrinhos em geral. Histórias em quadrinhos de Li’l Abner (aqui conhecida como
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 8
91
Ferdinando, de Al Capp) e Alley Oop (Brucutu, de V. T. Hamlin) foram lançadas por
Gibi, que posteriormente passou a se chamar Gibi Mensal, com histórias completas,
no estilo dos comic books – publicando as histórias dos heróis Capitão Marvel,
Príncipe Submarino e Tocha Humana, por exemplo (MOYA, 1977, p.205).
Ainda em 1937, a Gazetinha publicou A Garra Cinzenta, autêntica história de
terror brasileira, escrita pelo jornalista Francisco Armond e desenhada por Renato
Silva. O sucesso foi tamanho que a HQ chegou a ser publicada no México, na Bélgica
e na França (ANSELMO, 1975, p.68). E esse foi só o prelúdio de um gênero que viria
a ser bastante apreciado no cenário dos quadrinhos no Brasil.
Seguindo a linha do Suplemento Juvenil e da Gazetinha, surgem várias publicações
de quadrinhos a partir de 1938 no Brasil, entre as quais Guri (com aventuras
interplanetárias), Mirim Sextaferino (que origina o Mirim mensal), o Correio Universal
(que publica Connie no século XXX e o Fantasma), Lobinho, Sesinho (publicado
pelo Sesi), O Jornalzinho, Vida Infantil, Vida Juvenil, Biriba, O Terror Negro, Aliança
Juvenil, Mão Negra, Era uma vez (só com histórias nacionais de Rodolfo, Fábio
Horta e Antônio Rocha), Brotinho (uma experiência de amadores que seu único
número publica Sam e Paulinho, uma história que usa o futebol brasileiro como
tema); Capitão Atlas e o Vingador (editada por Péricles do Amaral e desenhada
por Márcio Morais); Jerônimo, desenhada por Edmundo Rodrigues e editada
pela Rio Gráfica; O Herói, primeira revista da Editora Brasil-América de Aizen, e,
principalmente, em 1959, O Pererê, de Ziraldo (ANSELMO, 1975, p.68-69).
Com o fim da publicação do Suplemento Juvenil, em 1945, Adolfo Aizen iniciou
a Editora Brasil-América (EBAL), no mesmo ano. O Herói, sua primeira revista,
tornou-se também sua principal publicação. A partir de então, muitas outras editoras
menores especializaram-se nos gêneros de terror, guerra e aventuras, ainda com
predominância de histórias estrangeiras ou da influência delas nos desenhos de
artistas brasileiros (MOYA, 1977, p.210; LACHTERMACHER; MIGUEL, 1985, p.43).
Em 1948, Aizen protagonizaria novamente um importante acontecimento das
histórias em quadrinhos no Brasil: o lançamento da chamada Edição Maravilhosa, pela
EBAL, que reuniu vários desenhistas brasileiros na tarefa de adaptar para HQs obras
de escritores estrangeiros e nacionais. O Guarani (de José de Alencar), Os Sertões
(de Euclides da Cunha) e Memórias de um Sargento de Milícias (de Manuel Antônio
de Almeida) são exemplos de títulos da literatura brasileira que foram quadrinizados
pela Edição Maravilhosa (ANSELMO, 1975, p.71).
Além da EBAL, surgiram várias editoras brasileiras que se encarregaram de
suprir a demanda de histórias em quadrinhos no país, e, na década de 50, algumas
delas – La Selva, Salvador Bentivegna e GEP – trabalharam principalmente com
material nacional. Entretanto, uma vez que era bem mais barato importar HQs do que
produzir aqui, os títulos publicados continuavam sendo majoritariamente estrangeiros.
Grandes editoras, como a própria EBAL e a Abril, não hesitaram em trazer heróis
estadunidenses para o mercado nacional de quadrinhos. Nesse contexto, nadando
contra a corrente, emergiram alguns artistas que, destacando-se primeiramente nas
tiras dos jornais, abriram a possibilidade de novas publicações mensais. Trata-se de
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
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Henfil, Angeli, Glauco e Laerte, para citar alguns (GOIDA; KLEINERT, 2011, p.13).
No ano de 1959, ao estrear uma tira semanal no caderno de variedades da Folha
da Manhã (atualmente, Folha de São Paulo), teve início a trajetória de um dos mais
conhecidos desenhistas profissionais do Brasil: Maurício de Sousa. Depois de mais
ou menos uma década de sucesso nas páginas dos jornais, os personagens da hoje
denominada Turma da Mônica (vale destacar que a Mônica não foi a primeira criação
de Maurício, aparecendo apenas posteriormente, num papel secundário, até cair nas
graças do público e se tornar líder da turma) começaram a ganhar suas revistas
próprias, pela editora Abril. E, da editora Abril para a Globo e desta para a Panini, as
HQs de Maurício de Sousa permanecem até os dias atuais um indiscutível êxito de
vendas nacionalmente, conquistando, também, leitores nos Estados Unidos, Itália e
Japão, dentre vários outros países (GUSMAN, 2006, p.8, 36, 40; SOUSA, 2004, p.8).
Antecipando o que ocorreria nos Estados Unidos entre 1980 e 1990, as revistas
de histórias em quadrinhos no Brasil passaram a se sobressair às publicações de
HQs em jornais desde pelo menos o final da década de 60. A trajetória de Maurício
de Sousa, iniciando carreira nas páginas dos jornais até suas HQs ganharem revistas
próprias, é um reflexo disso. Ademais, de acordo com Álvaro de Moya (1977, p.211),
em 1967, Aizen tentou repetir o já antigo sucesso do Suplemento Juvenil com o
Suplemento em Quadrinhos, mas conseguiu levar o empreendimento apenas até a
terceira edição. Isso porque, na época, o método estadunidense de publicação de
tiras diárias e de suplementos dominicais já constava de baixa receptividade, ao
passo que a compilação de histórias completas em comic books revelava-se mais
vantajosa.
Mas, ainda que as tiras diárias e os suplementos dominicais deixem de ter
a recepção obtida inicialmente, a demanda por publicações próprias denota tal
emancipação e popularidade das histórias em quadrinhos, que, de outrora dependente
dos jornais para circular, passam a dividir com eles o status de meio de comunicação.
As HQs se fizeram cada vez mais presentes no cotidiano das pessoas, através do
lançamento dos mais diversos títulos, voltados para os mais diversos públicos e
gostos, ao redor do mundo. Por outro lado, o fato de não ser mais preciso recorrer aos
jornais para acompanhar as aventuras de determinado personagem não significa que
estes tenham cessado de publicar histórias em quadrinhos: uma vez que chamam
atenção por sua visualidade inerente, os quadrinhos passam a ser rotineiramente
utilizados por jornais, revistas, anúncios publicitários, livros didáticos e etc.
4 | SOBRE CRÍTICAS E DEFESAS ÀS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
Luis Gasca coloca no prefácio do Shazam! de Álvaro de Moya (1977, p.10) que
“o comic popular, simples, barato, publicou-se e se publica, se consome portanto em
grandes quantidades, influi na cultura, língua e costumes de seus inúmeros leitores,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 8
93
modela seus gostos e suas inclinações”. Sendo assim, não é difícil conceber que as
histórias em quadrinhos, não só um sucesso de consumo como também influentes
de várias formas sobre os seus leitores, certamente despertam o interesse de
pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento.
Dentre esses profissionais, vale relembrar o psiquiatra Fredric Wertham. Ao
lançar o livro A sedução dos inocentes, onde expõe a tese de que os quadrinhos
exerceriam tão má influência sobre seus leitores que seriam “a fonte de todos os
problemas americanos” (ANSELMO, 1975, p.59), ele ajudou a impulsionar um dos
períodos de maior censura das histórias em quadrinhos. Entretanto, críticas às HQs
não ocorreram apenas na década de 50. Ao longo do tempo, estas foram acusadas
de: dispor o seu leitor para uma atitude de preguiça mental; retardar o processo
de abstração (o que se refere a um desprendimento dos objetos concretos para as
representações, simbólicas e abstratas, da linguagem); dificultar o hábito da leitura de
livros, e, ainda, apresentar temas nocivos (incluindo valores de ordem moral, política
ou social) estranhos à cultura do indivíduo. Inclusive, dentre as posições assumidas a
respeito das HQs, há até mesmo aqueles que julgaram necessário suprimir legalmente
toda e qualquer literatura em quadrinhos (MOYA, 1977, p.138-139).
Um dos maiores equívocos dessas críticas é a generalização. Em vez de
tomar todas as publicações em quadrinhos como prejudiciais aos seus leitores, cabe
considerar que, independente do gênero de obras em questão, existem produções de
diversas qualidades. Como apontado no livro de Álvaro de Moya (1977, p.139), “ao
lado de inúmeras obras de pouco valor literário ou moral, frequentemente nocivas,
existe sempre boa parcela que se salva”. O que, obviamente, não implica que, em
função da parcela nociva, deva-se extinguir todo um veículo de comunicação.
O argumento se completa quando Mauro Wolf (2008, p.37) fala que “a eficácia
dos meios de comunicação de massa pode ser analisada apenas dentro do contexto
social em que estes agem. Sua influência deriva mais das características do sistema
social a eles circunstante do que do conteúdo que difundem”. Quer dizer, em vez de
culpar como responsáveis pela personalidade e atitudes dos indivíduos os títulos
violentos, eróticos e/ou de pouco valor literário ou moral das histórias em quadrinhos,
é preciso analisar primeiramente os contextos social, familiar, político, e tantos outros
em que estes indivíduos se encontram inseridos.
Superados alguns preconceitos, as HQs se apresentam como importante
ferramenta educacional para as escolas. Introduzidas nos livros didáticos como
recursos para aprendizagem, passaram a ser um instrumento de ensino tanto para
adultos quanto, especialmente, para crianças, ao tratarem de assuntos ligados às
diversas áreas do conhecimento (SILVA, 1985, p.55). Falando sobre o público infantil,
as histórias em quadrinhos representam uma espécie de leitura dinâmica para a
criança, que, não raro, aprende a ler com elas. Assim como a televisão, trata-se de
uma forma rápida e sintética de apreender as coisas, além de exercitar a criatividade
e a imaginação da criança quando bem utilizada (ANSELMO, 1975, p.33; LUYTEN,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 8
94
1985, p.8).
E é justamente por associarem imagens e palavras que os quadrinhos são de
grande importância para a compreensão dos leitores mirins:
A criança, entretanto, na indigência dos seus conhecimentos, revela-se pobre em
sua estrutura de representações, fato do qual, sem dúvida, decorre a grande aridez
que encontra no terreno da linguagem abstrata, desligada de sua experiência
sensível, acarretando seu justificado desinteresse pela leitura [...]. As noções
gerais e abstratas, que as palavras buscam sugerir, passam, por intermédio das
ilustrações, a tornar-se mais concretas, texto e gravura se completam, como
aspectos da mesma realidade significativa, evitando a formação de falsas e
errôneas imagens, divorciadas do verdadeiro sentido das palavras (MOYA, 1977,
p.142-143).
Sendo assim, antes de compreender a linguagem abstrata que dispensa a
associação da palavra a uma imagem ou objeto concreto, é necessário que a criança
conheça as palavras passíveis de representação imagética, responsáveis pelo
desenvolvimento da imaginação e inteligência. Portanto, lidar com dois importantes
dispositivos de comunicação não só torna singular o meio de comunicação conhecido
como história em quadrinhos quanto faz dele um grandioso recurso educacional.
Ainda que o percurso das HQs tenha sido pautado, também, por decadências e
desconfianças, felizmente, nas palavras de Paul Gravett (2006, p.123), “há muito
tempo se sabe que os quadrinhos são um veículo atraente e altamente eficaz para
levar informação”.
5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre bancas de revistas, livrarias, supermercados e escolas, são diversos os
lugares em que é possível entrar em contato com as histórias em quadrinhos, decerto
um dos principais meios de comunicação da atualidade. A narrativa formada pela
interação entre imagens e palavras despertou a atenção de proprietários de jornais
interessados em ampliar seu número de leitores e compradores, o que ocasionou o
início da publicação de tiras em quadrinhos nos suplementos dominicais do New York
World e do Morning Journal, a partir do final do século XIX. Declara-se aí o ponto de
partida para as HQs invadirem as páginas de uma ampla gama de jornais, seja em
suas edições diárias ou em suplementos, nos Estados Unidos e em países afora.
No Brasil, os jornais não tardariam a seguir a tendência, com o lançamento do
primeiro suplemento em 1929. Nessa época, já se tem a emergência do chamado
“jornal-empresa” no país, que, tido como negócio e não mais como espaço por
excelência para se tratar de questões políticas, passa a exigir que seus donos
atentem para a necessidade de jornais visualmente atraentes, capazes de atender
às exigências do crescente público leitor (LUCA, p.1). O contexto, então, é mais do
que propício para, assim como ocorreu nos Estados Unidos, vários jornais passarem
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 8
95
a se ocupar da publicação de histórias em quadrinhos, no Brasil.
Para concluir, a posterior decadência das tiras diárias e suplementos dos jornais
(em razão da popularidade adquirida pelas revistas próprias de HQs) não implica
na perda de importância desses periódicos para a consolidação das histórias em
quadrinhos nos dois países retratados – e no mundo, tendo em vista a repercussão
generalizada das iniciativas de Joseph Pulitzer e de William Randolph Hearst. O
meio de comunicação conhecido como histórias em quadrinhos não “nasceu” como
um componente central da cultura contemporânea, mas veio a sê-lo através de um
percurso que dependeu grandemente dos jornais.
REFERÊNCIAS
ANSELMO, Zilda Augusta. Histórias em quadrinhos. Petrópolis: Vozes, 1975.
CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 3ª ed.
São Paulo: EDUSP, 2000.
GOIDA (GOIDANICH, Hiron Cardoso); KLEINERT, André. Enciclopédia dos Quadrinhos. Porto
Alegre: L&PM, 2011.
GRAVETT, Paul. Mangá: como o Japão reinventou os quadrinhos. São Paulo: Conrad, 2006.
GUSMAN, Sidney. Maurício: Quadrinho a quadrinho. São Paulo: Globo, 2006.
LACHTERMACHER, Stela & MIGUEL, Edison. HQ no Brasil: sua história e luta pelo mercado. In:
LUYTEN, Sonia Bibe (org.). Histórias em quadrinhos: leitura crítica. São Paulo: Edições Paulinas,
1985.
LUCA, Tania Regina de. A grande imprensa no Brasil da primeira metade do século XX.
Disponível em: <http://www.brasa.org/wordpress/Documents/BRASA_IX/Tania-Luca.pdf>. Acesso em:
14 Ago. 2016.
LUCCHETTI, Marco Aurélio. O menino amarelo: o nascimento das histórias em quadrinhos. In:
Revista Olhar, São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, ano 3, nº 5-6, 2011.
LUYTEN, Sonia M. Bibe – (Organizadora). História em Quadrinhos: Leitura Crítica. 2ª ed. São
Paulo: Paulinas, 1985.
MERLO, Maria Cristina. O Tico-Tico: um marco nas histórias em quadrinhos no Brasil (1905-1962).
2003. Dissertação (Mestrado), Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São
Paulo.
MOYA, Álvaro de. SHAZAM!. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1977.
SILVA, João Nelson. HQ nos Livros Didáticos. In: LUYTEN, Sonia Bibe (org.). Histórias em
quadrinhos: leitura crítica. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.
SOUSA, Maurício de. Maurício 30 anos. São Paulo: Globo, 2004.
WOLF, Mauro. Teorias das comunicações de massa. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 8
96
CAPÍTULO 9
doi
DA ILUSTRAÇÃO À TELA DA TV: A EVOLUÇÃO DA
EXPRESSÃO ARTÍSTICA NAS REVISTAS BRASILEIRAS
Talita Souza Magnolo
Universidade Federal de Juiz de For a
Juiz de Fora, Minas Gerais
RESUMO: Este trabalho parte de uma breve
exposição cronológica sobre o surgimento e
evolução da revista no Brasil enquanto meio
de comunicação e sua posterior segmentação
até chegar nas revistas especializadas. Será
traçado um panorama da constituição da
imprensa, com o objetivo de compreender o
contexto histórico do surgimento dos primeiros
periódicos, evolução e maturação até chegar
nos anos 1960 e 1970, que são o foco histórico
deste artigo, considerando também a revista
“Intervalo”, nosso objeto de estudo, que existiu
entre 1962 e 1973. No Brasil, a Editora Abril,
desde seu surgimento, marcou a evolução
da mídia impressa brasileira e, até os dias de
hoje, é atuante com periódicos reconhecidos
nacional e internacionalmente. Apesar do
retrospecto histórico, nosso foco será na revista
“Intervalo”. Neste momento, faz-se necessário
destacar que a história do semanário se perdeu
ao longo dos anos e, depois de uma profunda
pesquisa, constatamos a inexistência de
referências já sistematizadas sobre a história
ou características editoriais da publicação. É
importante destacar que o resgate da cronologia
da revista foi feito através da análise do acervo
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
digital e a realização de entrevistas com
jornalistas e ex-funcionários da Editora Abril e
da “Intervalo”. Interessa-nos não só resgatar
sua história, mas também apresentar suas
características, formatos, conteúdos, equipe
editorial, rotina da redação, sua importância
dentro do contexto histórico e sua contribuição
para a construção do cenário midiático daquela
época. As metodologias utilizadas foram:
pesquisa bibliográfica, análise documental
e realização de entrevistas baseadas na
metodologia da História Oral, proposta por Paul
Thompson (1992).
PALAVRAS-CHAVE:
Revista
“Intervalo”.
História Oral. Imprensa brasileira. Expressão
artística.
FROM THE ILLUSTRATION TO THE TV
SCREEN: THE EVOLUTION OF ARTISTIC
EXPRESSION IN BRAZILIAN MAGAZINES
ABSTRACT: This work starts from a brief
chronological exposition about the emergence
and evolution of magazines in Brazil as a
means of communication and its subsequent
segmentation until arriving at the specialized
magazines. An overview of the constitution
of the press will be drawn up, with the aim of
understanding the historical context of the first
periodicals, evolution and maturation until the
1960s and 1970s, which are the historical focus
of this article, also considering the magazine
Capítulo 9
97
Intervalo our object of study, which existed between 1962 and 1973. In Brazil, Editora
Abril has marked the evolution of the Brazilian printed media and, to this day, is active
with periodicals recognized nationally and internationally. Despite of the historical
retrospective, our focus will be on the magazine Intervalo. At this point, it is necessary
to emphasize that the history of the weekly has been lost over the years and, after
a deep research, we verified the inexistence of a systematized references on the
history or editorial characteristics of the publication. It is important to highlight that the
magazine’s chronology was rescued by analyzing the digital archive and conducting
interviews with journalists and former employees of Editora Abril and Intervalo. We are
interested in not only rescuing its history, but also presenting its characteristics, formats,
contents, editorial team, writing routine, its importance within the historical context and
its contribution to the construction of the media scene of that time. The methodologies
used were: bibliographic research, documentary analysis and interviews based on Oral
History methodology, proposed by Paul Thompson (1992).
KEYWORDS: Magazine “Intervalo”. Oral History. Brazilian press, artistic expression
INTRODUÇÃO
A historiografia sobre os impressos no Brasil é vasta e muito rica. A partir de
estudos desenvolvidos por autores como Tavares e Schwaab (2013), Barbosa (2007
e 2010), Buitoni (2012) e Martins (2001), podemos averiguar que a imprensa brasileira
passou por diversas fases. Podemos ainda destacar, no século XIX, a explosão
tipográfica, fato que permitiu que a imprensa fosse vista como um importante meio
de comunicação, que tinha como proposta narrar sobre os fatos e acontecimentos da
sociedade.
A experiência com periódicos no Brasil começou tardiamente se comparada
com o desenvolvimento da mídia impressa na Europa e Estados Unidos, que foram
inspirações e modelos de produção para os jornais e revistas brasileiras desde seu
início. Martins (2001) afirma que, a partir de meados do século XIX, a imprensa brasileira
passa por um aprimoramento inicial na forma de apurar e noticiar acontecimentos. A
esta fase, considerada pioneira, pertencem características importantes como o caráter
ensaístico e interpretativo dos textos, que abordavam questões como a modernização
da própria comunicação impressa, sua linguagem, estilos e, por consequência, a
mudança no perfil dos leitores e intelectuais.
Nesses primeiros anos, a tipografia era exclusivamente do governo, que também
detinha o poder da maioria dos textos que eram divulgados. Costa (2012) afirma que
só eram publicados conteúdos mediante aprovação. Além de ter sido o precursor
das revistas no Brasil, Silva Serva, por indicação do próprio governo, criou o jornal
“Idade d’Ouro do Brazil”. Mesmo com a possibilidade de funcionamento de outras
tipografias, que se ampliaram pela província, o processo de desenvolvimento da
imprensa brasileira é considerado muito lento, quando comparado com o que ocorria
nos Estados Unidos, por exemplo. Barbosa (2010) destaca a inspiração e adoção
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 9
98
de modelos estrangeiros no jornalismo carioca, o que ocasionou a proliferação de
revistas ilustradas e de costumes, bem como outras técnicas de utilização de fotos
na primeira página, publicação do folhetim e disseminação de caricaturas. Foi com a
Corte portuguesa que as revistas desembarcaram no solo brasileiro, de acordo com
Tavares e Schwaab (2013), que afirmam que elas surgem dentro de um contexto
amador e que seu amadurecimento, evolução e profissionalização caminharam lado a
lado com o desenvolvimento da indústria da mídia, juntamente com o diálogo político,
social e cultural.
As primeiras revistas tiveram pouca importância para a sociedade por serem
mais publicações eruditas do que noticiosas, ou seja, não havia a preocupação com
a notícia, tanto que o grito de D. Pedro às margens do Ipiranga demorou trezes dias
para repercutir nas páginas do jornal “O Espelho”, do Rio de Janeiro (CORRÊA, 2000).
Apesar disso, Tavares e Schwaab (2013) acreditam que, em 1830, a produção das
revistas começou a ter um perfil mais estratégico e comercial. Com a venda por um
preço mais acessível, acontece o aumento da circulação e atração de anunciantes,
até então, escassos.
No decorrer do século XIX, a revista virou moda e, principalmente, ditou moda.
Segundo Martins (2001), essa tendência advinda da Europa se deu graças ao avanço
técnico das gráficas e ao aumento da população leitora, além disso, as publicações
passaram a condensar diversas informações sinalizadoras de invenções e propostas
dos novos tempos. Fazendo o papel intermediário aos caminhos trilhados pelo jornal
e pelos livros, as revistas ampliaram o público leitor e aproximaram o consumidor
do noticiário ligeiro, seriado e diversificado. Tudo isso somado ao baixo custo,
configuração leve, com poucas folhas, leitura fácil com muitas imagens e ilustrações.
OS GRANDES CONGLOMERADOS DA IMPRENSA BRASILEIRA
Em 1930, o panorama criativo e de produção das revistas mudou graças a
dois acontecimentos: a revolução que daria início à Era Vargas e a eleição de uma
Miss Universo que era gaúcha. Corrêa (2000) diz que esses acontecimentos foram
capitaneados pela revista “O Cruzeiro”, que inaugura uma nova forma de se fazer
reportagem. A partir daquele momento, o repórter deixou as redações e foi para a rua,
procurar por matérias e ir além dos fatos e episódios do dia-a-dia. Ganham espaço
temas relacionados ao esporte, consumo, modos de vida, arte, espetáculos e política,
que ocuparam os periódicos de uma forma mais moderna e diferenciada. A revista
“O Cruzeiro” começou a ser distribuída a partir de 1928, no Rio de Janeiro, por Assis
Chateaubriand, e foi um dos mais relevantes semanários ilustrados da história da
imprensa brasileira. Um dos primeiros veículos a integrar os Diários Associados – a
rede de comunicação brasileira pioneira, que contabilizaria 36 jornais, 18 revistas, 36
rádios e 18 emissoras de televisão.
Para Brasil (2015), a revista foi lançada em um momento de generosa expansão
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 9
99
da rede e foi um dos bastiões dos Diários Associados, pois revolucionou o mercado
editorial brasileiro ao criar e ditar padrões, além de ter entusiasmado intensamente
a opinião pública de acordo com as preferências políticas de seu dono e fundador,
sem deixar, porém, de tratar mais tarde da indústria do entretenimento televisivo que
estava nascendo, em especial, os festivais de música. Com o declínio da cadeia após
a morte de Chateaubriand, em 1968, o semanário perdeu muito de seu brilhantismo
na década de 1970, até encerrar suas atividades terminantemente em 1975.
Graficamente, “O Cruzeiro”, em seus anos iniciais, era a mais sofisticada revista no
jornalismo brasileiro. Com uma boa qualidade de impressão e de papel, utilizando
muitas fotografias, o semanário era atraente ao público de classe média. O plano
textual, por outro lado, não ficava atrás: grandes nomes do jornalismo nacional e
internacional ganhavam espaço em suas páginas. Tavares e Schwaab (2013) afirmam
que a revista fazia o gênero de variedades e focava em diferentes temas: políticos,
sociais e econômicos, moda e celebridades, humor ilustrado, noticiário internacional,
história, concursos e promoções, colunismo social, arte e cultura.
Com o advento da televisão no Brasil, o padrão jornalístico, inicialmente
proposto pela revista, já não conseguia mais acompanhar as evoluções e, aos
poucos, foi perdendo seu público leitor que passou a interessar-se mais por assuntos
voltados para a TV (BRASIL, 2015). A década de 1950 representou um momento
de intensas mutações no jornalismo brasileiro e com isso, mais uma vez, o público
divide-se, torna-se mais exigente e cada vez mais diversificado. Com o golpe civil-
militar de 1964, a decadência de “O Cruzeiro” foi inegável, tanto a revista quanto os
demais veículos dos Diários Associados não conseguiam acompanhar o ritmo de
seus concorrentes e perderam a atenção de anunciantes – na época, o lançamento,
em 1952, de “Manchete” pelo Grupo Bloch, a semanal “Intervalo”, em 1962, e,
posteriormente a mensal “Realidade”, em 1966, e “Veja”, em 1968, ambas pela Editora
Abril, contribuíram para a decadência do semanário associado.
A década de 1960 marcou o surgimento de grandes conglomerados editoriais
que passam a dominar o mercado do impresso no Brasil. Tavares e Schwaab (2013)
elegem como grandes destaques dessa época a Editora Globo, a Bloch Editores
e, em especial, a Editora Abril, cuja árvore que a simboliza apareceu pela primeira
vez na capa de “O Pato Donald”, em julho de 1950. A tiragem de exatos 82.370
exemplares marcou o início de uma história de sucesso. Roberto Civita (1992) afirma
que a história começou com a chegada de seu pai, Victor Civita a São Paulo. Ele
e seu sócio, Gordiano Rossi, juntaram suas economias, alugaram uma sala de 20
metros quadrados no centro da cidade e montaram uma pequena gráfica no bairro de
Santana, que, naquele tempo, ficava na periferia. Thomaz Souto Corrêa, que trabalha
na Abril há mais de 50 anos, começou como jornalista e posteriormente assumiu a
direção de diversos impressos, afirma que a Abril nasceu com os primeiros quadrinhos
da Disney no Brasil.
Em 1952, foi rodada a primeira edição de uma revista que viria a ser um dos
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 9
100
seus maiores sucessos: “Capricho”, cuja circulação, em 1959, bateria o recorde
latino-americano, superando a marca de meio milhão de exemplares. Este sucesso
provocou uma multiplicação de títulos e rápido crescimento, levando a Editora Abril
para a liderança das empresas editoras e gráficas da América Latina. Em 1991,
vendeu acima de 200 milhões de exemplares de suas mais de 120 publicações.
Depois de “Capricho”, vieram as revistas “Mickey” (1952) e “Zé Carioca” (1961), para
o público infantil, seguidas pelas femininas “Ilusão” (1958) e “Noturno” (1959) e, por
fim, “Manequim” (1959), a primeira revista brasileira voltada exclusivamente para
moda.
Em 1960, nasceu “Quatro Rodas”, a primeira revista especializada em
automóveis e turismo e, em 1961, chegava às mãos das leitoras brasileiras aquela
que se tornaria sua companheira indispensável: “Claudia”, uma das maiores revistas
femininas de serviço até o momento. Mais tarde, segundo Civita (1992), estas duas
publicações seriam as primeiras da editora a responder aos anseios de seus leitores,
segmentando-se em edições especiais dedicadas à moda – como foi o caso da
“Claudia Moda” – e decoração – “Casa Claudia” –, e criando anuários que ajudaram a
descobrir as maravilhas turísticas do país – com a criação do “Guia Quatro Rodas”. Ao
longo de sua história, a Abril lançou impressos de grande importância para a história
nacional, alguns acabaram de maneira precoce, como foi o caso de “Realidade”
(1966), que tinha a proposta de trazer matérias profundas sobre assuntos polêmicos,
outras continuam em circulação, como é o caso da revista “Veja” (1968), considerada
uma das cinco maiores revistas semanais de informação do mundo (CORRÊA, 2017).
A revista “Realidade” circulou entre 1966 e 1976 e trouxe, ao longo de sua
existência, propostas consideradas inovadoras para a época e, nesse novo estilo,
os jornalistas tinham liberdade para escrever os textos em primeira pessoa, inserir
diálogos com travessões, fazer descrições minuciosas de lugares, feições e objetos.
As grandes reportagens ganharam destaque, consentindo que o repórter construísse
a matéria por um mês ou mais, até sua publicação. Para Severiano (2013, p.17), os
precursores da “Realidade” foram neorrealistas, pois seguiram o segredo de ouro:
“no jornalismo, crônica ou artigo é bronze; entrevista, prata; e reportagem, ouro.”. A
revista documentava o real, divertia, informava e comovia.
A partir dos anos 1960, algumas publicações foram cruciais para o
desenvolvimento do ramo das revistas no Brasil. Além das que eram mais voltadas
para o factual e possuíam um perfil mais sério, surgiram, naquele momento, títulos
que se tornaram decisivos para a segmentação do mercado de impresso brasileiro.
O FENÔMENO DA SEGMENTAÇÃO
Como parte do aprimoramento técnico e criativo das redações, principalmente
na década de 1960, os jornalistas eram enviados como estagiários para trabalhar em
revistas estrangeiras e de lá voltavam editores, fotógrafos e designers consagrados.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 9
101
O principal objetivo desse intercâmbio profissional era trazer para o Brasil uma visão
de qualidade editorial, ideias para novas revistas e a profissionalização do mercado.
As “versões brasileiras” que surgiram nessa época tinham em comum o objetivo de
realizar uma cobertura especializada voltada para um leitor específico. Tavares e
Schwaab (2013) afirmam que existia uma ideia fixa de “descobrir e mostrar o Brasil
ao leitor brasileiro”. O país encontrava-se em um momento de ditadura militar, em
que uma das maiores preocupações era a criação e construção de estratégias para
a disseminação – muitas vezes forçada – de uma identidade nacional. As revistas se
baseavam em modelos estrangeiros, porém, sempre tendo o cuidado de “abrasileirar”
suas fórmulas. Cabe ressaltar que esse processo histórico da segmentação editorial
apresentava suas primeiras motivações muito antes da década de 1960.
Para Buitoni (2009), o surgimento de um modelo de vida baseado no consumo e
o aumento dos índices de escolaridade deram impulso ao mercado editorial, fazendo
com que, partir da década de 1950, alguns dos mais relevantes títulos femininos
surgissem. A modernização do país se acentuou com o plano de desenvolvimentismo
do então presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961) e aumentou a necessidade
por consumo. A mulher, conforme apontado por Corrêa (2000), queria – e precisava
– trabalhar fora, ganhar seu dinheiro e, ao mesmo tempo, se manter informada.
As revistas, enquanto produtos jornalísticos, assumem atributos bastante
característicos. De acordo com Buitoni (2009), diferentemente da imprensa diária, a
revista não precisa, necessariamente, noticiar o que há de “quente” no mundo. Sua
ligação com o que é atual se dá por meio da prática do jornalismo interpretativo, ou seja,
pela expansão do fato original através de entrevistas, antecedentes, consequências,
opinião de especialistas, entre outros. Este tipo de publicação está mais para as linhas
do jornalismo de entretenimento, do opinativo e daquele de serviço, pois engloba
desde palavras-cruzadas até roteiros de turismo e informações sobre lazer, com
páginas dedicadas à opinião e ao colunismo. Outra característica bastante peculiar
das revistas é a relação íntima com seus leitores, para quem ela está sempre se
dirigindo, com um tom coloquial, que conduz o texto como uma conversa, trocas de
conselhos e experiências.
A efervescência cultural a partir dos anos 1950, com movimentos artísticos
– música, poesia, cinema, teatro, literatura e artes plásticas – que buscavam a
integração da ideia do moderno e do desenvolvimento, resultou em um clima de
debates intelectuais e artísticos muito estimulantes. Além disso, todo este movimento
a favor de uma nova cultura brasileira utilizou-se da influência cultural norteamericana e europeia para construir suas ideias de progresso que, quase sempre,
eram associadas ao padrão de consumo e estilo de vida. De forma muito significativa,
a chegada da televisão no Brasil ocupou o imaginário dos brasileiros e ganhou forma,
invadindo, aos poucos, os lares das famílias. A partir daquele momento, não era mais
necessário sair de casa para saber o que acontecia no mundo das celebridades e dos
ídolos, que até então só ocupavam as páginas das revistas, mas que agora estavam
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 9
102
ali, na tela da TV. O meio impresso acompanhou de perto essa mudança, desde as
ondas do rádio até os programas de humor e competições musicais, que passaram a
ser transmitidos por algumas emissoras de TV daquele período.
AS REVISTAS ESPECIALIZADAS
Revistas especializadas como a “Revista do Rádio”, “Cena Muda”, “Cinelândia”,
“Intervalo”, entre outras, trouxeram para a população de seu tempo o que Adorno
e Horkheimer (1982) chamam de “arte leve” ou “cultura leve” – pertencentes à
indústria do divertimento. Mesmo movidas pelo sistema capitalista e, de certa forma,
vislumbrando o lucro no final de cada edição, as revistas, bem como outros meios de
comunicação – o rádio e a televisão, por exemplo – estamparam em suas páginas
não somente atores, atrizes, cantores, personagens, mas também um novo modo de
vida, uma forma divertida, leve e informal de um mundo que estava ganhando cada
vez mais cores e sons.
Enquanto o rádio trazia as vozes e, de certa forma, mexia com o imaginário de
seus ouvintes, o cinema trouxe a imagem. De acordo com Rouchou (2005), o cinema,
que trouxe a representação da realidade com imagens em movimento, foi uma das
criações mais instigantes da virada do século XIX para o século XX. Ao chegar ao
Brasil, assustou a população, provocou reações adversas até que, com o passar
do tempo, caiu no gosto popular. A nova arte ganhou status, elevou-se dentro da
indústria cultural e dividiu com os impressos novos modos de comunicação. A revista
“Cinelândia”, por exemplo, foi uma publicação direcionada ao cinema, tanto o brasileiro
como o hollywoodiano, que circulou entre os anos de 1940 e 1950. Suas capas eram
estampadas com fotos de atores e atrizes, tanto nacionais como internacionais, que
faziam sucesso na época. O semanário continha matérias que iam desde a história do
ator/atriz que estava na capa, até filmes que iriam ser lançados, sempre aproveitando
o avanço e disseminação do cinema no Brasil.
A imprensa, portanto, tentou entrar no universo do mundo moderno não somente
com a “parafernália gráfico-industrial”, mas com o conteúdo de suas páginas. Rouchou
(2005) afirma que as revistas de informação e de variedade passaram a valorizar
os centros urbanos, a descoberta de novos modos de vida, as tecnologias que vão
transformar as rotinas dos habitantes das cidades. A revista “Fon-Fon!”, que surgiu
em 1907, mantinha uma coluna de cinema chamada “Nos cinemas da Avenida”,
onde fornecia algumas notas de cinema, mas principalmente preocupava-se em
dar resumos e opiniões sobre os filmes em cartaz na cidade. “Para Todos” foi uma
publicação lançada em 1918, e continha uma série de reportagens que contemplavam
o pós-guerra, temas sobre a política nacional e internacional.
Buitoni (2009) afirma que os anos 1960 e 1970 chegaram com novos
questionamentos, novas lutas. O movimento hippie, por exemplo, com sua filosofia
de paz e amor, a pílula anticoncepcional e o movimento feminista, juntamente com a
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
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massificação da televisão, conseguiram causar significativos abalos nas estruturas
sociais de então. É, em meio a toda esta conjuntura, que a forma de viver, se
relacionar e se organizar das pessoas muda significativamente nas sociedades por
todo o mundo. As transformações marcam a passagem para um novo estilo de vida
e uma nova lógica cultural do mercado consumidor que, a partir dos 1960, voltou-se
para os assuntos de televisão.
ANOS 1960: A TV GANHA ESPAÇO NAS PÁGINAS DAS REVISTAS
Para Barbosa (2010), a televisão transformou suas imagens numa função da
imaginação do público, através das quais o telespectador percebe um lugar distante,
mas que através de sua imaginação se torna próximo de uma imagem potencial de “onde
gostaria de estar”. A mesma tática foi utilizada pela revista “Intervalo”, ao trazer muitas
fotografias – recorrendo à questão imagética da televisão –, ilustrações, comentários,
reportagens com curiosidades e comentários sobre os programas, comportando-se
como um amigo e conselheiro do leitor ao assistir determinado programa na TV. Estas
estratégias foram necessárias, pois se a revista trouxesse apenas longos textos, sem
imagens e sem um dinamismo, o leitor se cansaria facilmente e não se fidelizaria.
Pensar na possibilidade imagética da TV é quase que naturalmente visualizar a
utopia como o reino da televisão, já que em nenhum meio massivo a produção de
ficções imaginativas via imagens é mais expressiva. As imagens da TV constroem
um parâmetro identitário e, ao mesmo tempo, permitem a produção da imaginação,
que só se realiza naquilo que se projeta como ficção, nas imagens (BARBOSA,
2010, p.23).
Em sua tentativa de dizer o real, a televisão na verdade constrói uma realidade
na forma de um sistema de representações sociais. Mesmo dando a sensação de falsa
liberdade para o telespectador – que pode ligar a TV na hora que quiser e escolher o
canal que deseja assistir –, a televisão se impõe diante da sociedade, mostrando o que
ela quer mostrar, como, por exemplo, a criação e imposição da grade de programação
pelas emissoras brasileiras durante os anos 1960, e o significativo desenvolvimento
da indústria do entretenimento televisivo, que se baseou no entendimento de seu
público-alvo consumidor, consolidou a TV como canal de distribuição de informações,
obtendo forte penetração no mercado, e conseguindo, a partir daquele momento,
desenvolver competências para criar a diferenciação de seus produtos.
Se observarmos a revista “Intervalo” conseguiremos identificar o mesmo padrão
de reprodução imagética e de conteúdo disseminado pela televisão. Portanto, podemos
aferir que, mesmo que a revista desse espaço para que os leitores mandassem cartas
com sugestões – dando a eles essa sensação de participação – o que ia para revista
era o que estava em alta, programas de relevância nacional e maior audiência, das
emissoras mais importantes e com os artistas e cantores mais conhecidos.
Segundo Alexandre Bergamo (2010), após dez anos de existência, a televisão
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brasileira viu brotar um conjunto de técnicas, artistas e produtores em um país que,
até então, vivia em uma atmosfera política cada vez mais radical e instável. Na
tela da TV novos gêneros musicais, programas e ídolos surgiram. Os anos 1960
se caracterizaram, principalmente, pela massificação da televisão e a formatação
definitiva da Indústria Cultural no Brasil, cuja principal característica é a formação
de uma consciência coletiva nas sociedades massificadas que vive em função de
produtos exclusivamente mercadológicos e não mais artísticos.
Com o passar do tempo, a TV passou a ocupar, cada vez mais, as páginas dos
meios de comunicação impresso, em especial as revistas. Algumas delas, apesar de
serem consideradas de variedades, trouxeram assuntos televisivos em peso, como
foi o caso de “Manchete” (1952-2000), “Fatos & Fotos” (1961-1985), “Contigo” (1963
– ainda em circulação), “Amiga” (1970- 1999), entre outras. Porém, surgiram também,
naquela época, revistas que tinham sua linha editorial direcionada totalmente para
a televisão, como, por exemplo, “7 dias na TV”, lançada no início dos anos 1950 e
considerada pioneira ao tratar sobre assuntos relacionados à televisão. O pioneirismo
se deve ao fato de a revista ter tentado trazer a programação televisiva, porém, foi
desbancada pela “Intervalo” que, além de ter trazido a programação de todo Brasil,
inovou na forma de se comunicar com seu público leitor e de falar sobre televisão.
A REVISTA “INTERVALO”
A revista “Intervalo” é considerada uma das mais importantes publicações
especializadas que surgiram entre as décadas de 1960 e 1970, pois valorizou na
íntegra assuntos e temas sobre televisão em todo Brasil. Muito atento ao mercado
dos meios de comunicação nacional e internacional, a inspiração de Victor Civita
para o lançamento da “Intervalo” veio dos Estados Unidos, de uma das revistas mais
famosas da época: a “TV Guide”, uma publicação de formato pequeno, que continha
todas as programações televisivas, cobrindo o continente norte-americano de costa a
costa e todas as emissoras de TV. Essa forma de comunicar a programação e deixar
o telespectador informado para que ele pudesse acompanhar os programas, filmes
e seriados prediletos atraiu os olhos de Victor Civita, que quis replicar essa ideia no
Brasil, através da “Intervalo”. Mais do que trazer a programação, “Intervalo” surgiu
com o intuito de tratar de uma forma jornalística os assuntos que estavam em alta na
televisão.
O semanário chegava às bancas toda quinta-feira. Inicialmente sua proposta
era cobrir a programação televisiva de todo Brasil – Rio de Janeiro, São Paulo, Belo
Horizonte, Curitiba e Salvador – e trazer reportagens também relacionadas com os
programas, shows, telenovelas, entre outros, além de notícias e muitas fotografias.
Lançada oficialmente no dia 10 de janeiro de 1962, em formato pequeno, a revista
“Intervalo” trouxe, uma semana antes, a publicação número zero, feita pela equipe
da editora Abril com o intuito de divulgar a revista para possíveis marcas – isso iria
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garantir a publicidade e, consequentemente, a sobrevivência da revista – e para
as emissoras de rádio e TV da época. Em uma espécie de carta de saudação aos
leitores, Victor Civita, apresenta seu mais novo empreendimento:
Eis Intervalo: A partir de quinta-feira, 10 de janeiro, você encontrará nesta nova
revista da Editôra Abril tudo que sempre quis saber sôbre televisão. Semanalmente,
a começar do próximo número, INTERVALO conterá também uma seção completa
de 32 páginas com informações detalhadíssimas sôbre todos os programas que
você não deve deixar de assistir. Serão informações colhidas “em cima da hora”,
para que você possa ver televisão por prazer e não por hábito. Nós os editores da
CLAUDIA, QUATRO RODAS, MANEQUIM, CAPRICHO e outras grandes revistas
brasileiras, já gostamos muito de INTERVALO. Temos certeza de que você também
gostará (INTERVALO, 1962, Nº 0, p.2).
O exemplar número zero trouxe, entre publicidades e matérias, algumas páginas
amarelas que tiveram a função de chamar a atenção do leitor para os objetivos
da revista, características e propostas de conteúdos: “INTERVALO sairá tôdas
as quintas-feiras, a partir do dia 10 de janeiro. Tôda semana publicará, além das
reportagens e seções cuja qualidade você já teve oportunidade de observar nesta
edição, uma seção especial dedicada aos programas” (INTERVALO, 1962, Nº 0, p.
21). O que atualmente entendemos como programação televisiva, a revista chamou
de “Programas”, como podemos observar na imagem a seguir:
FIGURA 1 – Revista “Intervalo” nº 0: Capa e página 23(06/01/1962)
Fonte: Acervo pessoal
Na página 25, são notórios a preocupação e o cuidado que a revista tinha com o
recolhimento e apuração das informações sobre os filmes e seriados internacionais:
“Particular atenção será dedicada à programação dos seriados. A nossa redação,
recolhendo e coordenando o material enviado pelos nossos correspondentes do
exterior, estará capacitada a informar em primeira mão sôbre os novos programas
produzidos”. Mais à frente, na página 27, a revista promete ao leitor que, lendo
“Intervalo”, estará sempre em dia com o mundo da TV: “Nas primeiras três páginas da
seção que INTERVALO dedica aos programas você encontrará um amplo noticiário
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106
de atualidade, com comentários e fotos. Desta forma, você leitor, estará sempre ‘em
dia’ com tudo de interessante que ocorre no mundo do Vídeo”, e ainda na página 33:
“Onde estiverem os maiores cartazes da TV, onde ‘acontecerem’ coisas importantes
para o público telespectador, INTERVALO estará sempre presente para que seus
leitores sejam sempre os mais bem informados sôbre tudo o que ocorre e diz respeito
à televisão”.
A revista destinava-se para amantes de televisão. De acordo com Jaime Figuerola
(2017), um dos primeiros funcionários do Departamento de Arte da “Intervalo” que
trabalhou na revista entre 1963 e 1966, a revista era para as pessoas que tinham
o aparelho de TV em casa, e que usavam a revista para se manterem informadas
sobre a programação. Para aqueles que não tinham TV, era a opção para ver o
que aconteceu durante a semana e uma forma fácil e barata de ter o contato visual
com seus artistas e cantores prediletos. Já para Laís de Castro (2017) – repórter de
“Intervalo” entre 1967 e 1968 – o público-alvo eram as tietes, as fãs que iam desde
jovens adolescentes até senhoras, já que a revista tratava de conteúdos ecléticos,
para todas as idades – desde a música considerada brega, até os movimentos mais
vanguardistas e demais programas da televisão. Ágata Messina (2017) – redatora e
editora de texto entre 1969 e 1972 – acredita que a revista tratava os assuntos de TV
de forma mais popularesca e, portanto, se direcionava a uma classe mais baixa.
Apesar de possuir diversas seções temáticas, conteúdos diversos e fotografias,
o foco era divulgar seu maior diferencial: a programação televisiva. Bergamo (2010)
afirma que os anos 1960 representaram para a TV brasileira um momento-chave, já
que foi nesse período que várias práticas televisivas foram criadas e consolidadas,
assim como outras foram abandonadas ou profundamente transformadas, em outras
palavras, a programação televisiva era novidade. É neste momento, inclusive, que
o aparelho de televisão deixa de ser “artigo de luxo” para se popularizar – embora
no final dos anos 1960 a quantidade ainda fosse reduzida e se concentrasse no Rio
de Janeiro e São Paulo, era um número crescente a ponto de atrair a atenção dos
profissionais de publicidade.
FIGURA 2 – Revista “Intervalo” nº252: páginas 56 e 57, com a programação televisiva
(05/11/1967)
Fonte: Acervo pessoal
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As mudanças que aconteceram nesta época deixam claro que a televisão
passou a ter um público diferente daquele do rádio, teatro ou do cinema. Junto com
a ebulição da programação televisiva, a “Intervalo” foi se construindo e se adaptando
à nova realidade dos meios de comunicação de massa. É fato que, como qualquer
outro veículo de comunicação, a revista noticiava o que acontecia, trazia artistas
que estavam fazendo sucesso com as primeiras telenovelas, cantores que surgiram
naquele período graças aos mais variados programas musicais, bem como os festivais
de MPB que, durante os anos 1960, ganharam força e um público cativo, tanto a
plateia que acompanhava nos auditórios, como os telespectadores que se reuniam
em casa para assistir pela TV.
Pode-se afirmar que o desenvolvimento da TV provocou diversas mudanças e
aperfeiçoamentos técnicos, originando uma nova forma de comunicar e falar sobre o
que acontecia nos meios de comunicação. O impacto para as revistas que falavam
de televisão na época foi muito grande, porque, ao passo em que a TV era novidade
no Brasil, trabalhar, escrever sobre TV e realizar coberturas de programas também
foi uma significativa novidade. O impacto da TV foi grande e definitivo na organização
dos outros meios de comunicação, não somente na forma de produção, mas no
relacionamento que começou a ser construído entre os canais de TV e as redações;
entre os jornalistas e os cantores, entre os redatores e as gravadoras. Dessa
mudança, nasceu uma nova forma de pensar o jornalismo de televisão, entretanto, os
concorrentes também perceberam o quanto era importante trazer para suas páginas
informações sobre a programação diária, fotos e reportagens.
A regra que valia era publicar o que o público mais gostava de ver nas telas da
TV. A fotografia foi importante porque, dessa forma, as fãs conseguiam guardar a
imagem de seu ídolo – coisa que antes não acontecia no rádio, por exemplo, onde
as fãs só tinham contato com seus ídolos através da voz. Corrêa (2017) afirma ser
importante ressaltar que, ao longo das décadas de 1960 e 1970, a televisão se
modificou: os programas musicais, que eram os favoritos no início dos anos 1960,
deram lugar às telenovelas e aos programas humorísticos e, a partir da década de
1970, noticiários ganharam mais espaço. Toda essa mudança esteve refletida nas
páginas da “Intervalo” que passou, durante sua existência, por três fases, buscando
se adaptar às mudanças de postura do mercado consumidor e do que era transmitido
pela televisão.
Trabalhar com a cobertura do meio artístico naquele momento era novidade.
A produção de notícias era pautada no gosto dos leitores e fãs e, diferentemente
de alguns meios impressos da época, que assumiam um posicionamento político
mais agressivo devido ao golpe civil-militar, a “Intervalo” foi criada para disseminar a
indústria do entretenimento brasileiro, astros, músicas, fofocas e fotos. Mesmo assim,
de acordo com Graça (2017), muitos desses fãs ainda buscavam em seus ídolos as
propostas que disseminavam através da participação em algum movimento musical
que, por mais artísticos que fossem, tinham em si um cunho político, muitas vezes
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de forma “tímida” e “pouco perceptível”, como foi o caso da Jovem Guarda. Porém,
mesmo assim, conseguiam passar isso para o público, ou seja, para Graça (2017), as
pessoas liam a revista para buscar na figura do artista ou do cantor o que ele “botava
pra fora” através de sua arte falada ou cantada.
De acordo com Graça (2017), as seções que ditavam os assuntos da semana
seguinte eram “Os 10 de maior audiência”, que trazia os 10 programas mais vistos,
de acordo com a pesquisa realizada pelo IBOPE; e “Discos mais vendidos”, que trazia
os compactos simples, compactos duplos e long-playings mais vendidos, também
de acordo com a pesquisa do IBOPE. Dulcília Buitoni (2017) lembra que, quando a
revista cresceu, ela começou a investir também em matérias e fotos internacionais.
Além disso, ressalta o trabalho em conjunto de jornalistas e diagramadores, para dar
destaque à determinada fotografia ou reportagem:
Se compravam fotos, às vezes, a gente escolhia, também, fotos internacionais. Aí
a gente fazia matérias sobre, enfim, celebridades internacionais, gente de cinema,
uma Jacqueline Kennedy, se fazia bastante. [...] Quando eu entrei, a diagramação
era junta na sala, isso, para mim, foi um grande aprendizado, acho que é legal
comentar, por causa do modo de produção. Eu ia, às vezes, diagramar junto
com eles, dizer como eu queria, dar mais destaque para tal foto, ajudava muito
(BUITONI, 2017).
De acordo com Buitoni (2017), durante o momento de transição, alguns aspectos
marcaram a mudança de posicionamento da revista que passou a ser mais popular.
Segundo ela, “podia exagerar, fazer um pouco de sensacionalismo, mas eles também
não queriam inventar matéria, essas coisas não, mas podia esquentar um pouquinho
as notícias, nos títulos, na chamada, isso podia fazer”. A jornalista ainda lembra que o
direcionamento era colocar a maior quantidade de fotografias possível, principalmente,
quando eram matérias com pouco texto. Contudo, este posicionamento começou a
incomodar os Civitas e a diretoria da Abril, que tentaram transformar a “Intervalo” em
uma publicação que seguisse a linha de atualidades e celebridades.
Nos anos 1970, a telenovela estava em alta e muitos impressos começaram a
perceber que falar sobre a televisão e sua programação dava retorno. Dessa forma,
de acordo com Pizzo (2017), a revista se tornou obsoleta se comparada com os
jornais diários, por exemplo, que passaram a dar a programação da TV diariamente,
enquanto a “Intervalo” fazia isto semanalmente. A queda nas vendas e a falta de
publicidades que sustentassem o semanário foram responsáveis pela mudança de
nome da revista que, entraria em sua última fase, em 1971.
A revista muda de nome, antes era somente “Intervalo” e, com a mudança, passa
a se chamar “Intervalo 2000”, no dia 21 de outubro de 1971, permanecendo assim até
seu final precoce, em agosto de 1972. A capa da semana anterior anunciou: “Intervalo
2000 sensacional! Dia 21 em todas as bancas”. É possível observar, através das
manchetes, a visível mudança do posicionamento do semanário, que passa a fazer
um jornalismo mais sensacionalista, com questionamentos e fofocas das celebridades
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
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109
De acordo com Corrêa (2017), a revista, neste momento, já estava cansando
por exaustão. A mudança do nome foi uma tentativa que, segundo ele, era aos olhos
de todos um fracasso previsível, porque teve como principal proposta entrar em um
tipo de jornalismo de fofoca e sensacionalismo. A publicação, em sua última fase,
tinha aproximadamente 66 páginas – variando entre 64 e 72 páginas – e trazia um
aumento significativo de fotografias coloridas, reportagens mais extensas e temáticas
de atualidade. A revista, de acordo com Varejão (2017), passaria a ter “de tudo um
pouco”, ou seja, desde turismo até matérias de beleza; além disso, ela acredita que
“Intervalo” foi uma precursora de “Caras”, de uma “Quem”, com foco também em
celebridades. “Ficou aquele negócio meio de celebridade porque rendia fofoca, quem
está com quem, quem casou com quem, quem separou de quem.” (VAREJÃO, 2017).
Eventualmente, com o passar do tempo, “Intervalo” perdeu seu espaço para
outras revistas com o mesmo perfil de outras editoras, mas também para publicações
da própria editora Abril, que ganharam mais investimentos e interesse dos leitores.
No tempo em que esteve em circulação, a revista chegou a vender, de acordo com
Cornavaca (2017), 250.000 exemplares por semana, considerado um grande sucesso
para a época – outros entrevistados mencionaram também esse valor, variando entre
200 e 250 mil exemplares por semana.
Não há consenso entre os depoentes sobre o verdadeiro motivo do fim da revista
“Intervalo”, alguns acreditam que ela perdeu sua essência com o passar dos anos –
inicialmente, ela tinha como principal objetivo falar sobre TV e trazer a programação,
depois, começou a cobrir atualidades e fofocas –, outros acreditam que surgiram
muitos concorrentes, entre eles, jornais que traziam a programação diariamente e
revistas que tratavam do mesmo tema. Algumas fontes apontaram para o fato de
o semanário não estar dando mais lucro e, além disso, a atenção da editora estar
voltada para publicações consideradas mais importantes, como foi o caso de “Veja”.
Independente do real motivo, pudemos observar que o semanário passou por fases
de grande importância, mas também de experimentações, sempre tendo como base
referências de impressos internacionais, o que contribuiu para a modernização do
meio impresso e do mercado de revistas brasileiro.
A revista “Intervalo” marcou a história do impresso brasileiro ao ser a primeira
publicação que trouxe em suas páginas a programação televisiva de todo Brasil.
Através da coleta dos depoimentos, algumas características foram levantadas pela
maioria dos entrevistados, por exemplo: muitos dos depoentes afirmaram que fazer
revista durante os anos 1960 não era fácil, visto que o jornalismo estava começando a
se profissionalizar, além de existir um público fiel do rádio, dos jornais e, posteriormente,
da televisão; o maior desafio era propor um ponto de vista, uma abordagem que ainda
não havia sido pensada.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 9
110
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As entrevistas nos mostraram também um envolvimento emocional muito grande
por parte dos depoentes que, a todo momento, afirmaram que a união, ousadia e
alegria da redação fez toda diferença para a revista “Intervalo”, que se posicionou
como o primeiro impresso semanal a trazer a programação da televisão de todo país
e de todos os canais. Esse grande impacto foi sentido pelo público que pertencia,
inicialmente, às revistas de fotonovelas e que, aos poucos, migrou para a televisão e
seus inúmeros programas. É importante ressaltar que ao longo das décadas de 1960
e 1970, a televisão se modificou: os programas musicais, que eram os favoritos em
meados dos anos 1960, deram lugar às telenovelas e aos programas humorísticos e,
a partir da década de 1970, os noticiários ganharam mais espaço. Toda essa mudança
esteve refletida nas páginas da “Intervalo”, que passou durante sua existência por
três fases, buscando se adaptar às mudanças de postura do mercado consumidor e
do que era transmitido pela televisão.
Além disso, não podemos desconsiderar que entre as décadas de 1960 e 1970
o país ficou cada vez mais urbano, consequentemente, o poder aquisitivo aumentou
e, com o passar do tempo, cada vez mais pessoas tinham acesso à TV. Foi possível
perceber com as entrevistas que a “Intervalo” contribuiu, de certa forma, para construir
o público telespectador ao divulgar os programas mais importantes da época e, além
disso, ajudou a fomentar o mercado das fãs, do histerismo com relação aos artistas e
cantores – mercado este que já estava em alta nos Estados Unidos com o surgimento
dos “Beatles”. Apesar de tratar de assuntos tão leves e voltados para o entretenimento,
a revista era pensada de maneira estratégica para conquistar o mercado dos leitores
e telespectadores da época, para isso contava com matérias ilustradas com muitas
fotografias, promovia a troca de informações com o leitor através das seções de
cartas, trazia a programação televisiva completa, entrevistas, entre outros.
Para os entrevistados, um dos momentos em que a publicação conseguiu atingir
seu auge foi durante os festivais de música, tanto o de Música Popular Brasileira
como o Festival Internacional da Canção. Segundo eles, a música estava em alta
durante as décadas de 1960 e 1970, as pessoas queriam saber sobre os bastidores,
sobre as canções selecionadas, sobre as fofocas dos jurados e, é claro, sobre as
vencedoras. A seguir, vamos analisar como foi construída pela revista “Intervalo” a
narrativa sobre o “III Festival de MPB”, realizado pela TV Record, em 1967.
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Capítulo 9
113
CAPÍTULO 10
doi
CONTRIBUIÇÕES DO JORNALISMO LITERÁRIO PARA A
CONSTRUÇÃO DE PÓS-MEMÓRIAS NA COLONIZAÇÃO
PORTUGUESA NA ÁFRICA DO SÉCULO XX
Flávia Arruda Rodrigues
Universidade Estácio de Sá, Curso de Jornalismo
Niterói, RJ
RESUMO: No intuito de promover o cruzamento
dos campos da Literatura e da Comunicação
Social, o trabalho discute contribuições de
livros recentemente lançados em Portugal que
tematizam o retorno de cidadãos portugueses
que viveram nas colônias até fins de 1975.
Dezenas de livros escritos por filhos e netos
desses ex-colonos têm se destacado como
fenômenos de vendas, evidenciando a
necessidade de reelaboração do trauma da
partida emergencial das antigas possessões
portuguesas para uma metrópole desconhecida
e hostil e, ainda, a interessada recepção
editorial da primeira geração de colonos. Esta,
que ficou conhecida como a dos retornados,
foi, a um tempo, algoz e vítima da colonização.
Alguns dos autores são jovens jornalistas que
se propuseram a realizar a tarefa de reconstruir
memórias silenciadas de seus pais e avós não
só pelo jornalismo literário como pela coleta de
fotografias e documentos.
PALAVRAS-CHAVE: Comunicação social;
Literatura; Colonização; África; Pós-memória.
CONTRIBUTIONS OF LITERARY
JOURNALISM FOR POST-MEMORY
BUILDINGS IN XX CENTURY PORTUGUESE
COLONIZATION IN AFRICA
ABSTRACT: Aiming to promote the crossing
between Literature and Social Communications
fields, this work discusses contributions brought
by books recently published in Portugal wich
tematize the return of portuguese nationals
who lived in former colonies until late 1975.
Many books written by two generations of
colonizers descendants have been outstanding
as best-sellers, emerging the need of trauma
elaboration, since an urgent run for the empire
center took place at the time. There, they
found a hostile environment, as the democratic
Carnation Revolution had just ecloded. This
first generation of colonizers was known as “the
returned”, and was, a one time, foe and victim of
the portuguese domination, specially in Africa.
Some of the authors are young journalists who
decided to endure the task of rebuilding muted
memories of their parents and grandparents,
not only by literary journalism as by collecting
photographs and documents.
KEYWORDS:
Social
communications;
Literature; Colonization, Africa; Post-memories.
Um aspecto que gostaria de destacar ao
iniciar este texto é informar a seus leitores que
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 10
114
este não apenas é um desdobramento inaugural de minhas pesquisas de mestrado
e doutorado no Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (PUC-Rio), mas também a concretização de um desejado movimento de
integração de alguns debates acadêmicos desse campo de saber à minha experiência
como professora de Comunicação Social e jornalista professional com carreira em
redações. Nos últimos seis anos, meu interesse vem se voltando para experiências
que, fundidas, possam convergir para um novo projeto de pesquisa, o que começa
a se materializar agora, com estas primeiras considerações a respeito do tema que
passarei a discutir. É importante afirmar, portanto, que a escrita deste texto elabora
algumas novas percepções sobre o trabalho que alguns jovens jornalistas portugueses
vêm desenvolvendo, especialmente nos últimos dez anos: o da elaboração de pósmemórias que reconstroem e revivem o trauma da derrocada da colonização daquele
país em territórios africanos, em meados do anos 1970. Estas são formulações
iniciais, portanto, que ganharão desdobramentos no decorrer do tempo.
Como a longeva e, ao mesmo tempo, tardia colonização portuguesa na África
(a última a ser encerrada) talvez seja um tema pouco familiar para alguns leitores
brasileiros, apesar do passado histórico comum aos dois países, é necessário oferecer
algumas informações que colaborem para o melhor entendimento das questões que
serão propostas a seguir. O debate que proponho se dá, por exemplo, a partir da
experiência africana dos chamados retornados. Esse grupo de cidadãos portugueses,
que recebeu esta alcunha nos anos de 1974 e 1975, principalmente, era constituído
por colonos daquele país que, por incentivo governamental, em especial na década
de 1960, optaram pela migração para as antigas colônias de Portugal, notadamente
as de Angola e Moçambique, na África.
Até meados da década de 1970, o Estado Novo português assegurou
institucionalmente a vida desses cidadãos nas colônias. Angola, Moçambique, Cabo
Verde e São Tomé e Príncipe, por exemplo, eram territórios anexados à minúscula
porção continental lusitana, e faziam parte do que os governos ditatoriais de António
de Oliveira Salazar (1889-1970) e Marcello Caetano (1906-1980) entendiam como
“império”. Essas regiões distantes funcionavam como extensões comerciais e
administrativas do Estado português e, nelas, habitavam portugueses que não só
viviam das atividades de gestão colonial como da importação e revenda de bens
manufaturados, extração mineral e produção agrícola.
Algumas colônias prosperaram durante a ditadura salazarista e produziram
elites coloniais brancas. Foi o caso de Angola, por exemplo, cujos limites geográficos
guardavam (como ainda guardam) imensas jazidas com fartos recursos naturais
estratégicos como minério de ferro, diamantes e petróleo, além de vastas planícies
adequadas à plantação de outras commodities, como milho e algodão. À época,
os cidadãos portugueses que habitavam essas paragens urbanizaram cidades,
pavimentando e eletrificando ruas, construindo casas, escolas e clubes e, também
interligaram esses centros com as regiões interioranas por meio de estradas
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 10
115
de ferro. Em resumo, eles se preocuparam em construir para si mesmos centros
urbanos inspirados em metrópoles europeias e, na medida do possível, reproduzir
Lisboa. Porém, isso foi feito em lugares que ficavam a distâncias transcontinentais e
usando a mão-de-obra quase escrava da população negra local, cujos serviços eram
demandados à força por via de truculenta hierarquização social.
Essa vida cotidiana sessentista e setentista das colônias portuguesas, de altos
salários, grandes ganhos e prosperidade geral, e que dava a acesso a requintados
bens de consumo, teve seu fim determinado no momento em que os capitães do
Movimento das Forças Armadas (MFA) se insurgiram contra o governo salazarista, em
25 de abril de 1974, rumando principalmente de Santarém, a cerca de 40 quilômetros
ao Norte da capital do país, Lisboa, e forçaram a renúncia do então presidente do
Conselho de Ministros, Marcello Caetano. O insatisfeito contingente militar que
produziu a Revolução dos Cravos também acabou por inviabilizar a permanência
dos portugueses nas colônias, tal como se configurava. E, uma vez desestruturado
o Estado Novo, forças políticas independentistas das colônias, enfim, perceberam
a possibilidade de abertura para, enfim, tomar o poder das elites brancas que as
oprimiam.
O aumento da violência contra os colonos portugueses nos territórios até
então dominados pelo Estado Novo português cresceu a ponto de a presença deles
naqueles lugares se tornar inviável. No interregno entre a Revolução dos Cravos
e as declarações de independência, cerca de 500 mil portugueses voltaram para
a metrópole, muitos em aviões cedidos pelos países da Organização do Tratado
do Atlântico Norte (OTAN), da qual Portugal até hoje faz parte. Este contingente
populacional português ficou conhecido como o dos retornados. É sobre a presença
deles na África, sobre esse regresso abrupto e sobre a readaptação à metrópole a
que os livros em questão se debruçam.
Ao mesmo tempo em que eram perpetradores, algozes de um sistema
colonial e, por isso, agentes de violência, eles, de forma ambivalente, também a
sofreram. Foram acusadores e acusados. Portugueses não só perderam abrupta
e irrecuperavelmente bens, familiares e amigos, como foram forçados a viver em
acomodações improvisadas, principalmente nos hotéis (esvaziados pela revolução
e pela temporada de inverno), no Estoril, na Grande Lisboa, sendo constantemente
acusados pelos compatriotas metropolitanos de serem eles próprios os responsáveis
por suas expulsões das colônias. Além disso, muitos dos retornados haviam nascido
nesses territórios extracontinentais, não tendo tido qualquer contato com a capital
do “império” até aquele momento de suas vidas, o que foi alvo de estranhamento e
motivo para discriminação.
Não bastassem os problemas vividos ao deixarem a África, esses colonos
conheceram o preconceito e o repúdio dos portugueses da metrópole no momento
da chegada, uma vez que foram acomodados pelo governo provisório em hotéis,
recebendo as garantias que eram possíveis em meio às inúmeras incertezas do
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 10
116
Processo Revolucionário em Curso (PREC). Nesse sentido, os colonos revelavam a
ambivalência de sua condição, uma vez que, ao mesmo tempo, eram atores diretos
da ação colonial em territórios dominados por Portugal, eram resultado da falta de
sustentação dela própria. Os ex-colonos não entendiam, como nota o filósofo Eduardo
Lourenço em seu texto “Apelo ao(s) retornado(s)”, republicado este ano em coletânea
organizada por Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, que
Embora organicamente colonizadores (mais que não fosse pela inconsciência
de não saber que o eram, sendo-o superlativamente, a maioria dos portugueses só
se sentia colonialista pela conta alheia (os colonos), como se sentiu anticolonialista
pela mesma razão, ao descobrir que esses “colonos” haviam se convertido num
obstáculo à solução do nosso drama nacional. A partir daí só podiam ser vistos
como causa perdida, o que sempre haviam sido sem que isso jamais nos tivesse
posto qualquer problema. Numa perspectiva anticolonialista coerente não era
possível dissociar da colonização como questão posta ao País colonos que dela
eram o centro, pois era precisamente o seu estatuto de colonizadores que se
encontrava em discussão (LOURENÇO, 2014).
Surge, daí, o trauma dos retornados. Estigma e silêncio que só começam a
ser quebrados a partir da virada do milênio, quando a segunda geração de colonos,
ou seja, os filhos daqueles que lá estiveram como agentes maiores da colonização,
começam a escrever narrativas que reconstroem esse passado, em tentativas de
estabelecer pós-memórias para esses acontecimentos. Apesar dos eventos que foram
as edições desses livros, esse ainda parece ser um tema difícil para os portugueses,
e ainda será necessário contar com tempo para que, aos poucos, a segunda geração
ocupe o espaço e reconte aquele passado com menos magoas do que seus pais e,
até, avós. Tome-se o exemplo do que ocorre no ambiente acadêmico, em Portugal.
O que parece haver é um desinteresse em examinar feridas como esta, ainda
abertas da História portuguesa, e que se materializa vez por outra, por exemplo,
em preocupações como a da investigadora Cláudia Castelo, que, em sua tese de
doutorado em Sociologia Histórica pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade
de Lisboa, abordou outra questão pouco explorada pela academia portuguesa e
igualmente relegada a um lugar de esquecimento: a presença de cidadãos portugueses
nas ex-colônias de povoamento africanas, especialmente Angola e Moçambique.
Na introdução de seu livro, Passagens para a África: o povoamento de Angola e
Moçambique com naturais da metrópole (1920-1974), ela explica que uma de suas
motivações para a realização de seu trabalho de investigação foi a necessidade de
interpretar e contextualizar a presença e atuação dos portugueses na África do século
XX, para além do lugar de saudade que seus discursos frequentemente evocam:
A decisão de investigar o povoamento de Angola e Moçambique com portugueses
da metrópole prende-se não só com a constatação de que este tema ainda
não havia sido tratado na perspectiva das ciências sociais, como com a noção
de que as memórias sobre África veiculadas sob as mais variadas formas não
se preocupam em indagar, problematizar, contextualizar, interpretar, mas apenas
convocar um lugar de saudade. Cumprem uma função emocional mas acabam por
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 10
117
alimentar as ideias feitas e os mitos que se foram enquistando no senso comum.
(CASTELO, 2007, p.17).
O caso dos livros em questão parece se enquadrar, ainda, no que Dominick
LaCapra conceitua como escrita emulativa. Trata-se de um tipo de arte performativa
que revive situações de violência e que pode parecer arriscada, mas é, ainda, uma
forma substancialmente mais segura, em termos psíquicos, para se lidar com traumas
oriundos de situações extremas e ainda não resolvidos. Para as vítimas, configurase como uma forma de reencenar, reviver e superar memórias de acontecimentos
vividos pessoalmente ou transmitidos por pessoas próximas que passaram pelas
mesmas situações-limite. Deve-se aqui assinalar que LaCapra lida com questões
relacionadas ao Holocausto, problemática de abrangência mundial e que certamente
suscita questões diferentes das deixadas pela colonização portuguesa na África do
século XX.
Neste sentido, especialmente na última década, tornou-se comum encontrar,
em livrarias portuguesas, logo à vista, estantes ou mostruários com uma variada
gama de livros que retomam questões como “a vida que os portugueses deixaram”,
“longe da restinga, a Oeste da sanzala” e “terra prometida”, apenas para citar alguns
dos subtítulos que ajudam a vendê-los. Eles formam uma recente leva de narrativas
que têm procurado reescrever a ocupação das colônias africanas empreendida pelos
portugueses, especialmente na segunda metade do século XX e, mais ainda, no
período que foi da Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, às declarações de
independência de países como Angola e Moçambique, entre outras ex-colônias, em
fins de 1975.
Parte desses livros é escrita por jovens jornalistas nascidos, como é importante
assinalar, depois da Revolução dos Cravos. A validade dessa afirmação reside no
fato de que, por serem mais novos do que os acontecimentos históricos, não tiveram
a oportunidade de vivenciar os fatos que narraram senão pela memória de segunda
ordem daqueles que entrevistaram para a composição de seus livros. Ao mesmo
tempo, beneficiados exatamente por esse distanciamento, têm a capacidade de se
aproximar de lembranças dolorosas e as relatarem com menor envolvimento emocional
que seus progenitores ou integrantes da geração anterior, que teve participação direta
nos eventos.
É o caso, por exemplo, da jornalista Rita Garcia, que é de julho de 1979. Ela é
autora de dois títulos de grande sucesso em Portugal: SOS Angola: os dias da ponte
aérea, de 253 páginas, lançado pela Oficina dos Livros, em 2011; e de Os que vieram
de África, o drama da nova vida das famílias chegadas do Ultramar, com suas 270
páginas, de 2012, lançado como sequência do primeiro, dado o volume expressivo
de vendas. Rita Garcia é licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade
Nova de Lisboa e trabalha como jornalista desde o ano 2000, tendo integrado as
equipes da revista Focus e Sábado, entre as de outros veículos de comunicação.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 10
118
É importante salientar que, tanto quanto o valor jornalístico dessas publicações,
muitas vezes escritas como grandes reportagens a meio termo entre a ficção, no
que caracteriza o jornalismo literário, existe a função social que vem sendo cumprida
por essas obras, que é a de trazer à luz temas que estavam silenciados por razões
emocionais ou políticas há aproximadamente 30 ou 40 anos.
O trecho a seguir, por exemplo, dá uma medida do cumprimento de expectativas
que esses textos têm vindo a alcançar. Ele foi extraído de SOS Angola: os dias da
ponte aérea:
No dia da partida, Eduardo e Madalena levantaram-se de madrugada e
despacharam os miúdos para saírem antes de o Sol nascer. Não queriam ser vistos
por ninguém. Fecharam a porta de casa com as mesmas voltas que davam todos
os dias à fechadura e instalaram-se na carrinha em silêncio. Antes de se fazerem à
Estrada, ainda passaram no estabelecimento comercial da família para apanharem
latas de quilo de leite Nido e as conservas com que se alimentariam até terem vaga
na Ponte Aérea.
A catarse de Eduardo começou mal entraram na estrada para Moçâmedes. Quisera
acreditar que a viagem não era definitiva, mas naquele momento tomara consciência
de que o caminho não tinha retorno. “Nos últimos tempos, alguns pretos já nos
diziam: ‘Vai-te embora, branco, desaparece’. Dali em diante, era previsível que a
escalada de hostilidade aumentasse até um ponto insustentável.
Era essa certeza que enlouquecia Eduardo Faustino. Que direito tinham os negros
de o escorraçar de Porto Alexandre, logo a ele que não conhecia outra terra e tão
pouco fizera mal a alguém? Ele era um dos Gémeos, que toda a gente conhecia e
respeitava na cidade. Com que justificação ia deixar para trás tudo o que construíra
numa vida de trabalho? Desde os 12 anos que atendia ao público com Álvaro,
o irmão gémeo. Tanto esforço para nada. Sentia-se destroçado. Ao volante da
carrinha Isuzu, a única coisa que o aliviava era mesmo chorar. (GARCIA, 2011,
p.185)
Alguns elementos do texto de Rita Garcia dão ao leitor a possibilidade da partilha
de experiências entre entrevistados e leitores. Dentre eles, vale destacar aspectos
que tornaram essa experiência comum a cerca de meio milhão de portugueses: um
deles era a pressa em deixarem suas casas, de preferência sem serem notados pelas
indivíduos locais que já os ameaçavam. Outro é o abandono de meios de vida, neste
caso, o estabelecimento comercial. A revolta, a impossibilidade de negociação e a
catarse vividas por Eduardo Faustino, um dos entrevistados de Rita Garcia, também
costumam ser relatadas por outros portugueses que viveram o mesmo momento
histórico.
Como o título do segundo livro de Rita sugere, Os que vieram de África: o drama
da nova vida das famílias chegadas do Ultramar prende-se aos desafios encontrados
na acomodação destas famílias em território continental português. Para que tal
fosse feito, o governo do país criou o Instituto Atendimento aos Retornados Nacionais
(IARN), órgão público que colaborou para o alojamento dos recém-chegados em
hotéis, principalmente na região do Estoril, próxima a Lisboa. O curioso é que muitos
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 10
119
desses estabelecimentos turísticos eram de luxo, mas receberam levas massivas de
portugueses tanto porque era inverno quanto pela impossibilidade de receber turistas,
uma vez que todo os país vivia as convulsões políticas de uma revolução democrática
recém-inaugurada e que encerrava 48 anos de ditadura militar em Portugal.
O primeiro capítulo do segundo livro de Rita Garcia, intitulado “Fuga para o
frio”, inicia-se com o seguinte trecho, que dá a medida do ambiente social que os
retornados encontraram em suas chegadas:
Todos os dias, Irene Lopes chegava à escola a chorar de frio. Saía de casa ainda
noite escura, muitas vezes em jejum, e caminhava até a Guarda durante uma hora
por campos cobertos de neve. Para uma miúda de onze anos que, como ela,
só conhecia o calor de Angola e não tinha abafos grossos para se agasalhar, o
percurso era uma autêntica tortura. Nos primeiros tempos, o dinheiro era tão escasso
que nem chegava para comprar sapatos fechados. Irene calçava as sabrinas de
verão trazidas de África, a que a mãe cortara a biqueira para acompanharem seu
crescimento. Foi assim por algum tempo até os pais arranjarem botas de borracha
pretas para ela e para o irmão.
A família aterrara em Lisboa em 11 de novembro de 1975, o dia de independência
de Angola, vinda da África do Sul, num Boeing 747 da TAP, depois de três meses
em campos de refugiados à espera da viagem para Portugal. A fuga começara em
agosto e obrigara-a a sair à pressa da Cuemba, no distrito do Bié, no centro do
território, para chegar a tempo de apanhar a célebre coluna do senhor Serra, que
estava prestes a sair de Nova Lisboa (Huambo). (GARCIA, 2012, p.21)
A título de contextualização histórica, tomo de empréstimo um trecho do livro
do também jornalista Fernando Dacosta, que não figura como objeto de estudo por
ser da mesma geração que os colonos retornados de mais idade. Dacosta, nascido
em 1945, foi um dos poucos jornalistas a dar visibilidade ao problema dos que
voltavam das colônias, uma vez que, como já dito, as incertezas políticas eram as
principais preocupações do governo provisório recém-estabelecido. Seu livro pioneiro
foi intitulado como Os retornados estão a mudar Portugal. Em 2013, ele lançou um
pequeno livro, que tem como título Os retornados mudaram Portugal, do qual também
extraio um excerto, que reproduzo a seguir.
Note-se que as informações coletadas pelos dois jornalistas são bastante
semelhantes em seu conteúdo, tendo como marcas de diferenciação as gerações a
que cada um deles pertence. De qualquer forma, deve-se ter em conta que a edição
de mais este livro de Dacosta aumenta a lista de títulos produzidos por jornalistas
sobre a questão dos retornados portugueses, o que endossa a perspectiva que
pretendo trabalhar:
A maior parte dos que vieram chegou com a roupa do corpo, escassos haveres
em caixotes e notas inúteis nos bolsos. Alguns tentaram permanecer em
África. Amavam-na, serviam-na, era a sua terra. Nada tendo a esconder, nada
tinham, pensavam, a recear. Os governantes diziam-lhes, pea imprensa e pelos
comícios, isso mesmo.
Caso a caso, história a história, as suas vidas fizeram-se irreais. Alentejo, Algarve,
Beiras, Trás-os-Montes, em todo o lado encontrámos as mesmas faces, os mesmos
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 10
120
olhares, as mesmas acusações, o mesmo aturdimento – não sentem arrependimento
porque não sentem culpa. (DACOSTA, 2013, p.71)
Apresento por fim, um dos trabalhos de Ana Sofia Fonseca, formada pela
Universidade Católica Portuguesa, também jornalista, nascida em 1978 e, por isso,
como Rita Garcia, integrante da geração de novos profissionais que não conheceu
a Revolução dos Cravos por experiência própria, mas que vem produzindo a pósmemória dos retornados portugueses. Freelancer, trabalhou na revista Grande
Reportagem e no semanário SOL, além de ter integrado as redações do jornal
Expresso e da rede de TV portuguesa SIC, onde trabalha até os dias atuais. Sua
experiência editorial anterior havia sido com Barca Velha – Histórias de um vinho,
para o qual realizou entrevistas que deram detalhes sobre o mítico vinho português
da região do Rio Douro. Seu livro Angola, terra prometida: a vida que os portugueses
deixaram, também uma grande reportagem que usa recursos do jornalismo literário,
se ocupa do tema em 328 páginas. A edição do livro apresenta o tema como “um
retrato destes anos dourados”, que de fato foram para os portugueses que, como o
mesmo texto da contracapa afirma, tinham “a vista tranquila da baía de Luanda, os
banhos de mar quente, as mangas maduras a Cuca gelada, as lagostas, o cinema os
gelados do Baleizão”.
O texto de Ana Sofia Fonseca preocupa-se em reencenar e trazer para o momento
presente esse tipo de cotidiano deixado para trás às pressas pelos portugueses e que,
conforme já foi aqui afirmado, não vislumbra possibilidade de volta senão pela escrita
e leitura de tais livros. Já na capa, avistam-se duas fotografias que apresentam uma
vida essencialmente europeia nos trópicos, com direito à imagem de uma criança
negra nativa segurando um guarda-sol para que os portugueses brancos, um deles
com chapéu colonial, não sintam calor demais. A outra fotografia mostra um jovem
casal português sentado na carroceria de um automóvel conversível, também em
Angola, no que aparenta ser um evento esportivo nos anos 1960.
A partir do exemplo dos livros anteriores, seleciono um trecho para reflexão:
O cinema levanta-se numa comovida aclamação. Um pensamento sulca todos
os rostos: mais uma despedida (.), prenúncio de outras (?), talvez da sua. Faltam
quarto meses para a independência, adeus é palavra tão temida quanto repetida. O
“Chá das Seis, quase dezasseis anos de existência, acende as últimas lâmpadas.
Desde novembro de 1959, então com nome de “Chá das Seis e Meia”, e encontro
marcado à sexta-feira, faz parte da rotina da cidade. Conquistou tanto sucesso
que logo ganhou mais tempo e outra honra na agenda. Daí em diante, das seis
da tarde às oito da noite de sábado, a orquestra toma o palco do Restauração.
Os apresentadores, esses, pouco mudam. Alice Cruz e Diamantino Faria fazem
a cortesia dos primeiros tempos. Segue-se Artur Peres. Mais tarde,quando Alice
parte, vem Ruth Soares. (FONSECA, 2009, p.236)
Como marca deste trabalho de Ana Sofia Fonseca está a representação da vida
colonial portuguesa estritamente a partir do ponto de vista do colonizador europeu,
sem aparente preocupação em problematizar o fazer colonial levado a cabo por estes
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 10
121
indivíduos e, principalmente, a violência perpetrada nesses territórios em relação aos
colonizados, especialmente à maioria, que realizava trabalhos braçais em regime
similar ao escravocrata. Não surpreende que tais livros tenham ganhado público leitor
tão expressivo, abrindo possibilidade para outros títulos, inclusive como continuações
das reportagens.
Creio que, a partir do exposto neste trabalho, é possível compreender a
importância da elaboração de tais memórias, uma vez que é importante trazer à luz
temáticas que ficaram obscurecidas ou escondidas por razões políticas e familiares.
Tais esforços jornalísticos realizados por uma geração emocionalmente apta a eles
certamente têm trazido grande contribuição social e, por isso, é digna de destaque.
REFERÊNCIAS
CASTELO, C. Passagens para África: o povoamento de Angola e Moçambique com naturais da
metrópole (1920-1974). Porto: Edições Afrontamento, 2007.
DACOSTA, F. Os retornados mudaram Portugal. 2ª Ed. Lisboa: Edições Parsifal, 2013.
FONSECA, A.S.. Angola, terra prometida: a vida que os portugueses deixaram. 2ª Ed. Lisboa: A
Esfera dos Livros, 2009.
GARCIA, R. SOS Angola: Os dias da ponte aérea. Alfragide: Oficina do Livro, 2011.
_________. Os que vieram de África: o drama da nova vida das famílias chegadas do Ultramar.
Alfragide: Oficina do Livro, 2012.
PORTER, A. O imperalismo europeu (1860-1914). Lisboa: Edições 70, 2011.
LACAPRA, D. Writing history, writing trauma. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2001.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 10
122
CAPÍTULO 11
doi
O DOCUMENTÁRIO XICO STOCKINGER COMO
LUGAR DE MEMÓRIA
Alini Hammerschmitt
Doutoranda em História pela PUC/RS, PPGH.
Porto Alegre, Rio Grande do Sul
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo
discorrer sobre o conceito de Pierre Nora
(1993) a respeito dos lugares de memória,
tomando como objeto o documentário Xico
Stockinger (2012). A justificativa apresentada
para a realização desse trabalho é que, a
discussão a respeito da forma como o cinema
e os audiovisuais no geral são utilizados como
preservadores e difusores de memória, é uma
questão muito relevante para a sociedade
contemporânea. A metodologia adotada foi a
pesquisa bibliográfica e também utilizou-se
de entrevista com questões abertas, aplicadas
ao diretor do filme. Através da análise feita, foi
possível concluir que o documentário abordado
é um lugar de memória, fato que serve como
indicativo de que é necessário dar uma maior
atenção ao papel das artes plásticas e dos
artistas na nossa sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: memória, cinema, artesplásticas
memory, taking as object the documentary Xico
Stockinger (2012). The justification presented for
the realization of this work is that the discussion
of how cinema and audiovisual in general are
used as preservatives and diffusers of memory is
an issue very relevant to contemporary society.
The methodology used was the literature and
also the interview with open questions, applied
to the film's director. Through the analysis made
it possible to conclude that the documentary
handled is a place of memory, a fact that serves
as an indication that is necessary to give greater
attention to the role of the arts and artists in our
society.
KEYWORDS: memory, cinema, fine arts
1 | INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo discorrer
sobre o conceito de Pierre Nora a respeito dos
Lugares de Memória, tomando como objeto
o documentário Xico Stockinger, dirigido por
Frederico Mendina, no ano de 2012, e que,
narra a
vida do artista plástico austríaco
radicado no Brasil.
Dessa forma, ao analisar tal temática,
THE DOCUMENTARY XICO STOCKINGER
AS PLACE OF MEMORY
tendo em perspectiva o filme Xico Stockinger,
ABSTRACT: The aim of this paper is discuss the
concept of Pierre Nora (1993) about the places of
de Memória e de que modo o documentário
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pretende-se pontuar o que é afinal um Lugar
em questão dialoga com este conceito.
Capítulo 11
123
A justificativa apresentada para a realização desse trabalho é que, a discussão a
respeito da forma como o cinema e os audiovisuais no geral são utilizados como
preservadores e difusores de memória, é uma questão muito relevante e atual.
Além disso, acrescenta-se o fato de que, o papel dado a arte e a memória dos
que são notáveis para a nossa comunidade é, cada vez mais, relegado a pequenos
grupos preocupados com que não se apaguem os vestígios do que a sociedade
produziu, do que uma preocupação que atinge a população como um todo.
Neste sentido, a reflexão a respeito de como um filme documentário foi utilizado
por um realizador cinematográfico e sua equipe, para registrar a memória de um
artista plástico contemporâneo da nossa sociedade, é algo relevante para toda a
comunidade.
A metodologia adotada foi a pesquisa bibliográfica e também utilizou-se de
entrevista com questões abertas, aplicadas ao diretor do documentário, com a
posterior análise desses questionamentos. Inicialmente, será abordado o conceito
de Lugar de Memória formulado por Pierre Nora (1993), para posteriormente, ser
apresentado o filme Xico Stockinger (2012) e sua aproximação com esta definição.
2 | DESENVOLVIMENTO
2.1 Os Lugares de Memória
Segundo Pierre Nora (1993), atualmente vivemos uma aceleração da história,
onde o há uma oscilação veloz de um passado que está morto, tem-se a impressão
das coisas como desaparecidas, um desenraizamento junto com o que ainda sobrou
da tradição.
Assim, a atenção aos lugares em que a memória é cristalizada tem a ver com
este momento histórico, onde a ruptura com o passado mistura-se com o sentimento
da memória despedaçada e a sensação de continuidade fica relegada aos locais.
Nesse contexto, haveria locais de memória, pois não existem mais meios de memória.
Isso acontece com o fim dos camponeses na era industrial dos países centrais e
com a independência das colônias - o que levou, as novas nações e seus grupos, que
antes possuíam grande bagagem de memória e pouca histórica para a historicidade -.
Dessa forma, ocorreu o fim das sociedades-memória, que são as que mantinham
a conservação e a transmissão dos valores, bem como, o fim das ideologias-memória
que sustentavam que se passasse regularmente do passado para o futuro. Mas, além
disso, a impressão do histórico, através da mídia, substitui a memória pela atualidade.
O autor prossegue dizendo que:
“Se habitássemos nossa memória não teríamos a necessidade de lhe consagrar
lugares. Não haveria lugares, porque não haveria memória transportada pela
história ( ...). Desde que haja rastro, distância, mediação, não estamos mais dentro
da verdadeira memória, mas dentro da história”(NORA, 1993, p. 8)
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Capítulo 11
124
E para ele, a história do desenvolvimento nacional é uma história-memória, a
mais forte das tradições coletivas, um grande meio de memória. E essa historiografia
é um “ exercício regulado de memória(...) a reconstituição de um passado sem lacuna
e sem falha(...). Todos os grandes remanejamentos históricos consistiram em alargar
o campo da memória coletiva” ( NORA, 1993, p. 10).
Assim, o nacional definia o presente e o justificava pelo esclarecimento do
passado, possuindo a história-memória uma continuidade. E era através da nação que
a memória se mantinha no patamar do sagrado. Porém, ocorre uma dessacralização
quando emerge a sociedade no lugar e espaço da nação, que já não é mais um corpo
único possuidor da consciência da coletividade.
Então, segundo Nora (1993), o que era legitimado pelo passado passa a se
tornar legitimo pelo futuro, pois a uma necessidade de prepará-lo. E os três termos,
voltam a ter autonomia: Nação torna-se um dado, a história uma ciência social, e a
memória passa ser vista como um fenômeno de âmbito privado.
Nesse contexto, os lugares de memória estão entre uma concepção puramente
historiográfica, da história refletindo sobre si mesma, e uma ideia propriamente
histórica, com o fim de uma tradição de memória. E o autor pontua que o tempo dos
lugares é esse exato instante, em que desaparece a intimidade de uma memória,
para somente existir a visão de uma história reconstruída.
Dessa forma, lugares de memória são restos, rituais de uma sociedade sem
rituais, pertencem a desritualização de uma sociedade que vive uma transformação
e renovação, valorizando mais o futuro que o passado. Eles surgem do sentimento
que não há mais memória espontânea, que é necessário criar arquivos, datas
comemorativas, monumentos, associações, etc.
Mas, além disso, sem o zelo comemorativo a história apagaria os lugares
de memória, pois se o que eles defendem não estivesse ameaçado não haveria
a necessidade de construí-los, se as lembranças que elescontém fossem
verdadeiramente vividas, eles seriam inúteis. Assim, eles se constituem de:
“(...) momentos da história arrancados do curso da história, mas que lhe são
devolvidos. Não mais inteiramente a vida, nem mais inteiramente a morte, como
conchas na praia quando o mar se retira da memória viva” (NORA, 1993, p. 13).
Para o autor o que é visto hoje como memória na verdade já é história. A
memória hoje não é a memória verdadeira, pois agora ela se resguarda no gesto
e no hábito, nos saberes do corpo e nos saberes reflexos. E, dessa forma, não é
mais espontânea é um dever, não é mais social, coletiva, globalizante é psicológica,
individual e subjetiva.
Mas a memória verdadeira é diferente da atual que é arquivística, com
necessidade de suportes exteriores, daí viria a obsessão pelo arquivo, já que com
o sentimento que tudo desaparece rapidamente e com a preocupação de significar
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 11
125
corretamente o presente, ao mesmo tempo que lida-se com a incerteza do futuro,
tudo torna-se memorável.
Então, para Nora (1993), o que atualmente é chamado de memória é na verdade
o estoque material do que já é impossível lembrar ou, indo mais além, o conjunto do
que poderia ser necessário lembrar.
Ele argumenta que com a passagem da memória para história, com a memória
tornando-se historicizada, cada grupo se viu obrigado a demarcar sua identidade
revitalizando a sua própria história.
Com isso, surgiu um dever de memória que torna cada um historiador de si
próprio e esse fato é consequência do fim da história memória, algo que aumentou
a intensidade das memórias particulares reclamando sua própria história. “Menos a
memória é vivida coletivamente, mais ela tem necessidade de homens particulares
que fazem de si mesmos homens-memória” (NORA, 1993, p.18).
Assim, a memória hoje se transformou, além de arquivo, e de dever, em mais
uma característica, em memória distância, isso porque a relação que se tem com
o passado é muito diferente da esperada de uma memória. Não há mais uma
continuidade retrospectiva, mas uma descontinuidade.
Na história-memória o passado não era considerado verdadeiramente passado,
pois um esforço para lembrar poderia trazê-lo de volta e o presente nada mais era do
que um passado reconduzido, atualizado por esse apoio.
No entanto, o autor argumenta que atualmente, o passado é ofertado como
radicalmente outro, ele é um mundo do qual se está desligado para sempre. E,
paradoxalmente, nunca se desejou tanto os reflexos, os vestígios do passado,
mas esses são uma alucinação artificial de passado, somente concebível na
descontinuidade.
Assim, a relação com o passado é estabelecida num jogo do impenetrável e
do abolido e, com a perda de uma origem explicativa única, gerou-se um universo
fragmentado, ao mesmo tempo em que transformou-se todo e qualquer objeto dignos
de um mistério histórico.
“Nós sabíamos, antigamente, de quem éramos filhos e hoje somos filhos de
ninguém e de todo mundo. Se ninguém sabe do que o passado é feito, uma inquieta
certeza transforma tudo em vestígio, indício possível, suspeita de história com a
qual contaminamos a inocência das coisas. Nossa percepção do passado é a
apropriação daquilo que sabemos não mais nos pertencer. Ela exige a acomodação
precisa sobre um objeto perdido” (NORA, 1993, p. 20).
O autor conclui este pensamento dizendo que, quando a historiografia entra na
era epistemológica, termina a era da identidade em definitivo e a memória é tragada
pela história não existindo mais um homem-memória, mas um lugar de memória.
E, dessa forma, os lugares de memória pertencem a dois domínios: São um jogo
de memória e história, ou seja, lugares de história somados a vontade de memória.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 11
126
E, além disso, eles são lugares em três sentidos que coexistem sempre de forma
simultânea e em diferentes graus: material, simbólico e funcional.
O lugar aparentemente material, como um arquivo, só é considerado como
lugar de memória se possui uma aura simbólica. Já um lugar funcional, como um
manual de aula ou uma associação de antigos combatentes, só é lugar de memória
se for matéria de um ritual. E o que parece de grande significação simbólica, como
um minuto de silêncio, é um pedaço material de unidade temporal, servindo para a
lembrança concentrada.
Mas antes de tudo, para Nora (1993), é preciso ter vontade de memória, se essa
premissa fosse abandonada todo objeto digno de lembrança entraria na categoria de
lugar de memória. E na ausência dessa intenção de memória, esses lugares serão
apenas lugares de história.
O autor ainda postula que, a razão de ser dos lugares de memória é parar o tempo,
bloquear o esquecimento, e que o fato de que eles vivem em constante metamorfose,
com significados que se destacam sem cessar, e imprevisíveis ramificações, é o que
os torna apaixonantes.
Além disso, os lugares de memória deixam a memória coletiva, para entrarem
na memória histórica e, posteriormente, na memória pedagógica. E o que os torna
grande atração, com sua intenção inicial de memória ou o retorno sem término dos
ciclos de sua memória, é que eles são objetos em grande profundidade.
Mas é preciso reiterar que para ser lugar de memória, tudo aquilo que conduz o
aparecimento do passado no presente, só pode ser considerado como tal, se investido
de vontade de memória.
Por outro lado, o autor argumenta que, diferentemente da história, os lugares de
memória não têm referencial direto na realidade, são seus próprios referencias, sinais
autênticos. Isso não quer dizer que eles não tenham conteúdo, que não sejam físicos
ou históricos, mas que o que os torna lugares de memória é onde eles escapam da
história e simbolizam, significam dado contexto.
Nora (1993), diz por fim, que há um apego por estes símbolos, no entanto, já
murchos, e que há uma paixão terminada, onde não mais sofremos pelos sofrimentos,
mas pelas razões da verdadeira tristeza.
2.2 O Documentário Xico Stockinger e o Lugar de Memória
O documentário Xico Stockinger (2012), dirigido por Frederico Mendina,
possui 86 minutos e narra a história da vida de Stockinger, contada por ele mesmo,
com intervenções dos pesquisadores José Francisco Alves e Paulo Herkenhoff,
mais animações feitas a partir de desenhos e caricaturas assinadas pelo próprio
personagem principal.
O filme detalha a trajetória de vida do protagonista desde que ele deixou a
Áustria, aos 3 anos de idade, vindo morar no Brasil, se fixando em São Paulo, no
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 11
127
Rio de Janeiro e, posteriormente, em Porto Alegre, até o fim da sua vida. Bem como,
a película esclarece de que modo Stockinger, que foi aviador e meteorologista, se
tornou um artista plástico versátil e de talento notável.
O diretor Frederico Mendina conviveu com Xico de 2006 até 2009, ano de sua
morte. Portanto, as imagens gravadas em que o protagonista narra passagens de
sua vida para a câmera de Mendina possuem um tom memorialístico e são de grande
valor por se tratar do próprio personagem rememorando sua história.
O fato do filme se utilizar de animações, como ferramentas para ilustrar
momentos vividos por Stockinger e narrados por ele próprio, dão vitalidade a narrativa,
já as intervenções de críticos, como José Francisco Alves e Paulo Herkenhoff, dão
credibilidade e servem para esclarecer como Xico construiu a sua arte.
Assim, o filme documentário de caráter biográfico, retrata o ser humano e o
artista Xico Stockinger de forma completa, coloca o espectador em contato com a vida
e a visão de mundo desse personagem especial que se consagrou como escultor,
tendo realizado também charges e trabalhos em xilogravura, num conjunto de obra
que marcou a arte realizada no país.
Segundo o diretor Frederico Mendina1, a ideia de fazer o filme ocorreu quando
ele, ao conversar com amigos artistas visuais, constatou a necessidade de, através
do audiovisual, contribuir para preservação da memória da nossa sociedade. E ele
argumenta que “em outros países existem muitos filmes sobre grandes artistas que
possibilitam as novas gerações um “contato” com os mestres. No Brasil, isto ainda
é muito raro e já perdemos algumas pessoas sem que houvesse qualquer registro
audiovisual”.
Desse modo, por esta fala do diretor do documentário Xico Stockinger, percebese que há uma clara vontade de memória na realização do filme. E Nora (1993,
p.22) nos diz sobre os Lugares de Memória: “Inicialmente, é preciso ter vontade
de memória”. Conforme foi discorrido anteriormente neste trabalho, Nora coloca a
intenção de memória como condição fundamental para que dado fato/objeto seja
considerado Lugar de Memória, segundo o conceito elaborado por ele.
Além disso, o autor pontua que esses lugares existem, pois a memória
espontânea não existe mais e que se “o que eles defendem não estivesse ameaçado,
não se teria, tampouco a necessidade de construí-los” (NORA, 1993, p.13).
E se percebe claramente, na expressão do diretor de Xico Stockinger, que
com a realização do filme ele almeja preservar a memória do protagonista, pois já
houve outros casos em que ocorreram perdas de pessoas, sem que o devido registro
audiovisual pudesse ser feito para as futuras gerações.
Prosseguindo no seu discurso, Frederico Mendina afirma que: “O documentário
é um meio de preservar a memória, assim como fotos e livros. Muito embora o
audiovisual permita uma maior aproximação entre o público e o personagem retratado,
1
Entrevista concedida por MENDINA, Frederico. [ jul. 2013]. Entrevistador: Alini Hammerschmitt.
Porto Alegre, 2013. A entrevista na integra encontra-se no Apêndice deste Artigo.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 11
128
ainda assim, carecemos de meios que permitam ao grande público acesso ao filme”.
Ele acredita ainda, que o audiovisual é o meio mais completo para mostrar algum
fato ou personagem, pois engloba, áudio, vídeo, direção de arte, direção de fotografia
e edição, e este composto proporciona uma experiência impar ao expectador que
nunca tenha tido acesso ao conteúdo apresentado.
E nesse ponto, voltando ao conceito de Nora dos Lugares de Memória, verifica-
se que esse filme documentário possui, baseado no próprio discurso do seu realizador,
um sentido evidentemente material, uma vez que é um registro no formato audiovisual,
que concentra materialmente a memória do artista Xico Stockinger, através de 86
minutos de filme.
Frederico Mendina diz ainda, que “serão enviadas cópias para o arquivo da
Cinemateca Nacional, órgão responsável pela manutenção de nossa história fílmica;
bem como para o Instituto Estadual de Cinema do RS – IECINE”. Onde se verifica,
nitidamente, a noção de que o filme é um registro material, que deve ser arquivado.
Além disso, Frederico se reporta ao fato de que, depois que o filme cumprir carreira
comercial, serão fornecidas cópias para escolas, institutos de arte e universidades,
para o documentário fazer parte do acervo de suas videotecas, possibilitando o
acesso dos alunos.
Dessa forma, esse documentário é um Lugar de Memória, que além do sentido
material possui um significado funcional, já que servirá de obra didática em escolas
e universidades, tornando-se acessível a alunos, que tomarão contato com a vida e
obra de Xico Stockinger no decorrer da sua formação escolar. Sem esquecer que ao
assisti-lo farão um ritual em frente a tela, algo comum a quem assiste um filme, como
nos diz Bizello (2010, p. 8):
Mesmo com as mudanças tecnológicas que permitiram ao filme entrar no âmbito
privado, o ritual de ir ao cinema, o escuro da sala, a imagem na grande tela, ainda é
de alguma maneira reproduzido na sala de casa em forma de home theater. O filme,
por sua vez, aqui considerado lugar de memória, pode celebrar e ser celebrado
nos seus lugares de memória.
Assim como, é impossível negar que o documentário analisado possua o outro
sentido atribuído por Nora (1993) aos Lugares de Memória, o sentido simbólico, uma
vez que o filme é representativo da cultura do Estado do Rio Grande do Sul e do
Brasil.
Isso porque, o seu protagonista é um dos maiores artistas plásticos produzidos
no país e representa os valores, crenças, e filosofias do grupo e da cultura a qual
pertenceu, em um dado período histórico, apesar dele não ser conhecido do grande
público, algo que o documentário pretende sanar.
E isso fica evidente na argumentação de Frederico Mendina, ressaltando que
Xico Stockinger é um artista relevante no Rio Grande do Sul, principalmente em
Porto Alegre, mas embora existam muitas obras suas em praças e prédios públicos,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 11
129
a grande maioria da população que frequenta estes espaços não tem a menor ideia
de quem foi o autor dessas criações.
Nesse sentido, o diretor ao realizar o documentário e tentar aproximar Xico
do público, permitindo que as pessoas o conheçam, através das suas próprias
palavras, realiza uma tentativa de preservar a memória do artista que também é,
inevitavelmente, uma pretensão de conservar e difundir a simbologia de um grupo
social para a sociedade mais ampla.
3 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por tudo o que foi abordado neste trabalho, pode-se concluir que o documentário
Xico Stockinger, dirigido por Frederico Medina, é um Lugar de Memória, conforme o
conceito elaborado por Pierre Nora.
E como argumento para tal afirmativa, é possível elencar o fato mesmo de que,
Frederico Mendina ao conceber a ideia para a realização do documentário, teve
vontade de memória, intenção de preservar a memória do artista para que ela não
seja esquecida, condição postulada por Nora para que seja Lugar de Memória.
Além disso, é possível observar no documentário os três sentidos simultâneos
a que pertencem os Lugares de Memória: O filme possui ao mesmo tempo o sentido
material, o funcional e o simbólico.
Muitas observações mais poderiam ser feitas ao se abordar a temática dos
Lugares de Memória tomando como objeto o documentário Xico Stockinger. Porém,
para fins desse trabalho nos detivemos nas características mais ostensivas, para que
fique claro que o filme é um grande lugar de memória e que vê-lo como tal nos faz
também refletir sobre a atenção que damos a arte e a memória na nossa sociedade
contemporânea.
Nesse sentido, um registro fílmico que se torna um suporte para a preservação
da biografia de um artista plástico, a ponto de ser considerado como um Lugar de
Memória, pode demonstrar que a nossa sociedade carece de dar maior atenção ao
papel das artes plásticas, para que a memória de nossos artistas seja difundida a
todos os grupos sociais de forma mais espontânea.
REFERÊNCIAS
BIZELLO, Maria Leandra. Cinema e Memória: ver, guardar, relembrar. ENANCIB - Encontro Nacional
de Pesquisa em Ciência da Informação, XI ENANCIB - Tema: Inovação e inclusão social: questões
contemporâneas da informação, 2010. Disponível em: http://congresso.ibict.br/index.php/xi/enancibXI/
paper/view/376. Acesso em: 10/07/2013
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n.10,
dez. 1993, p. 7-2
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 11
130
APÊNDICE
Entrevista concedida por Frederico Mendina
Entrevistador: Alini Hammerschmitt
1- De onde surgiu a ideia de fazer o filme?
R: A ideia surgiu a partir de conversas com amigos artistas visuais sobre a
necessidade de preservação de nossa memória cultural, através do audiovisual.
Em outros países, existem muitos filmes sobre grandes artistas que possibilitam as
novas gerações um “contato” com os mestres. No Brasil, isto ainda é muito raro e já
perdemos algumas pessoas sem que houvesse qualquer registro audiovisual.
2- Ao realizar o filme você teve intenção de contribuir para a preservação da
memória do Xico Stockinger? Fale um pouco sobre isso...
R: Xico Stockinger é um artista relevante no Rio Grande do Sul, em especial
na Capital. Existem muitas obras suas em praças e prédios públicos. Mas a maioria
das pessoas que frequentam estes lugares não tem a menor idéia de quem teria sido
o autor das obras. Nesse sentido, tentar aproximar o artista do público, permitindo
conhecê-lo pelas suas próprias palavras, é uma tentativa de preservar sua memória.
3- Para você o documentário Xico Stockinger contribui para a preservação da
memória do artista? De que forma?
R: O documentário é um meio de preservar a memória, assim como fotos e
livros. Muito embora o audiovisual permita uma maior aproximação entre o público e
o personagem retratado, ainda assim, carecemos de meios que permitam ao grande
público acesso ao filme. Por isso, estamos empenhados na divulgação do filme junto
à escolas e institutos de arte.
4- Você acredita que se o filme não fosse realizado a preservação da memória
de Xico Stockinger seria mais difícil? Porque?
R: O audiovisual, salvo opiniões discordantes, ainda é o meio mais completo
para se apresentar determinado fato ou personagem, englobando, áudio, vídeo,
direção de arte, direção de fotografia e edição. Assim, este conjunto possibilita uma
experiência única ao expectador que nunca tenha tido acesso à obra do artista. Se o
filme não fosse realizado, essa experiência, dificilmente seria obtida através de livros,
fotos ou gravações de áudio.
5- Ao realizar o filme você fez um registro sobre a vida e obra de Xico Stockinger,
você tem ideia de como o filme será armazenado e disponibilizado para que se possa
vê-lo no futuro? Em arquivos, cinematecas, ou em algum meio digital disponível para
o acesso de quem quiser adquiri-lo?
R: Nossa intenção é, após um período comercial, fornecer cópias do documentário
para escolas, institutos de arte e universidades, para que faça parte do acervo de suas
videotecas, permitindo o acesso dos alunos. Em paralelo, serão enviadas cópias para
o arquivo da Cinemateca Nacional, órgão responsável pela manutenção de nossa
história fílmica; bem como para o Instituto Estadual de Cinema do RS – IECINE.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 11
131
CAPÍTULO 12
doi
JORNALISMO NA ERA DOS TESTEMUNHOS:
UMA CHANCE DE APRENDER COM O CINEMA
Cristine Gerk Pinto Carneiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola
de Comunicação, Rio de Janeiro - RJ
O modelo tradicional de negócio na
imprensa, sobretudo escrita, passa por uma
revisão no mundo contemporâneo, que se
reflete em demissões em massa de jornalistas,
RESUMO: Numa era de valorização de
testemunhos, este artigo busca discutir as
mudanças pelas quais passa o jornalismo e as
relações destas transformações com a memória.
O texto sugere que esta atividade em revisão
busque inspiração no cinema, que explora a
potencialidade de romper com automatismos
e reducionismos, ou a superficialidade de
uma mera administração de testemunhos em
textos que não marcam, se perdem e não são
retomados.
PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo; Testemunho;
Cinema; Memória
no fim de veículos e em umcrise de credibilidade
do jornalismo profissional. Muitos autores
tratam da relação entre essas transformações
e o maior fluxo de informações através de
redes sociais e sites. Dentre alguns fenômenos
típicos desta era de ampla atividade e interação
virtuais, destaca-se, neste trabalho, a cultura de
valorização do testemunho e sua relação com
a memória, no caminho para propor algumas
soluções do cinema para o jornalismo, em uma
fase de crise.
Para entender as mudanças pelas quais
passa o jornalismo no século XXI é preciso
analisar que aspectos sociais mais amplos
ABSTRACT: As we live in a moment of history
that values testimonials, this article tries to
discuss changes in journalism today and the
relations between this changes and memory.
The text suggests that this activity in review
should search inspiration in cinema, that explores
the potentiality of breaking automatism and
reductionism, and challenges the superficiality
of a simple administration of testimonials in texts
that don´t fix, get lost and aren´t recovered.
KEYWORDS: Journalism; Testimony; Cinema;
Memory
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interferiram na maneira como se consome
e produz informação. Neste artigo, como
já mencionado, o enfoque é a crescente
valorização e difusão do testemunho. Segundo
Vaz (2014), passamos de um cenário em que se
privilegiava a confissão como forma de discurso
autobiográfico decisiva para a constituição da
subjetividade (desde, ao menos, o Concílio de
Trento até a modernidade) para uma era de
testemunhos. Neste contexto, o interlocutor
deixa de ser valorizado por sua autoridade e
Capítulo 12
132
capacidade de ajudar, como um padre ou um terapeuta em um processo secreto
de salvação ou cura. Ele passa a ocupar um lugar de duplo endereçamento. Quem
escuta é um indivíduo qualquer, tolerante e solidário, em uma dinâmica terapêutica que
pressupõe a ida ao espaço público, e não o segredo. De acordo com Vaz, o silêncio,
quando ocorre, é provocado pelo julgamento moral da sociedade ou a imposição de
um algoz causador do sofrimento. Desta forma, é aclamado como corajoso aquele
que supera o medo e a vergonha, e vem a público assumindo seu lugar de vítima.
Sobretudo através das redes sociais.
O testemunho valorizado é cheio de fatos bem descritos, para dar dimensão
realista à narrativa. É o lugar da vítima de um outro, ao contrário da confissão, que
seria lugar de um agente reflexivo sobre seu próprio comportamento. A partir de um
princípio de presunção da inocência do narrador, quem desconfia de um testemunho
é visto como sem compaixão ou preconceituoso (VAZ, 2014, p.5). A exposição pública
assume uma função terapêutica, de “elevar a autoestima” a partir da inserção em
uma rede solidária.
Embora às vezes pareça se reportar ao passado, o testemunho sempre é
contemporâneo a ele. Não há necessidade de procedimentos especiais para legitimar
os relatos. Qualquer um está autorizado a expor fatos e visões de mundo. Não
precisa ser jornalista, nem recorrer à argumentação ou à administração de provas
ou estudos. Em vez de uma hierarquia, há hoje uma rede rasa de investigações por
institutos e fundações, não só universidades. Assim como há uma rede de fontes
informacionais, não necessariamente instituições jornalísticas de prestígio histórico.
Isto está no âmago da rede de boatos que circulam na Rede. Muitos internautas,
sobretudo os mais idosos – menos treinados para desconfiar do ambiente virtual acreditam em notícias e pareceres críticos emitidos e divulgados por qualquer um,
sem necessidade de chancela. Por isso a importância de resistência de profissionais
ou marcas com credibilidade, que, por exemplo, monitorem o poder público com
denúncias bem embasadas.
No caso específico da vítima, seu “empoderamento”, segundo Fassin (2007), se
deu ao longo de quase cem anos de história e se aprofundou no decorrer da Primeira e
da Segunda Guerras Mundiais, e a partir do trauma do holocausto. Durante as guerras,
havia uma interpretação de neurose pós-traumática, pela psiquiatria, que colocava a
vítima sob suspeita e alvo de críticas. A passagem do holocausto, segundo Fassin,
muda este status, anos depois, quando os sobreviventes transformam as lembranças
em relatos. O deslocamento do lugar do trauma é aprofundado com os horrores da
Guerra do Vietnã. A partir da década de 1980, um evento é entendido como força
suficiente para desencadear traumas. Essa mudança no estatuto da vítima também
está associada a uma transformação do estatuto de verdade, passível de ser narrada
apenas pelo sujeito que a vivenciou.
O sofrimento no presente é vinculado a um evento no passado que deixou
marcas no interior da vítima. A experiência traumática é cada vez mais plural: abrange
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 12
133
desde eventos-limite, como desastres e assassinatos, até situações cotidianas,
vividas ou observadas. A forma de comunicar este trauma é o testemunho, que
se liga a uma reconfiguração do público e privado, a partir do momento em que
pressupõe um compartilhamento de emoções. Há uma demanda por atribuir ao que
sofre o papel social da vítima, mobilizando aparatos institucional, jurídico e simbólico.
Como já apontado aqui, o espaço onde esses relatos circulam e ganham visibilidade
atualmente é, na maioria das vezes, o virtual.
Em um cenário pós-moderno, em que o futuro é o lugar do risco evitável, e
não do progresso ou da cura, como foi na modernidade, a proliferação de relatos se
torna operacional. A partir de uma coleção de possibilidades arriscadas e o medo
do “contágio”, o operador, antes sujeito, pode elaborar a estratégia mais segura
e estável para evitar perigos que já vitimaram outros. Os vídeos e imagens de
leitores que circulam em redes sociais e são publicados em veículos jornalísticos
recorrentemente reforçam esse sentido de risco. Neste novo contexto, o passado não
precisa mais ser superado e esquecido, e sim lembrado, para servir como modelo
de alerta. Em jornais, são mostradas imagens da vítima que revelam uma rotina ou
felicidade semelhantes ao do espectador, que também pode perdê-la. Cria-se uma
cultura voltada para a prevenção do sofrimento, como acontece na saúde pública.
Junto à lista de alimentos, lugares, pessoas e substâncias a se evitar, há uma série de
comportamentos e posturas diárias condenáveis, por implicarem riscos. O contexto
social fica cada vez menos evidente. Ao ouvir o relato alheio, inclusive se redefine o
próprio passado, a partir de enquadramentos do presente. A vítima que vem a público
poderia ser cada um de nós.
Koselleck (1979) explica que a experiência é o passado atual, quando se
fundem a elaboração racional e as formas inconscientes de comportamento, que
não estão mais, necessariamente, no conhecimento. Também está sempre contida
na experiência a experiência alheia. Da mesma forma, a expectativa é individual
e interpessoal. As expectativas podem ser revistas; enquanto das experiências se
espera que elas se repitam e sejam confirmadas no futuro, incluindo, na elaboração
de acontecimentos passados, suas possibilidades e falhas. O futuro nunca é resultado
simples de um passado histórico. As experiências se superpõem, se impregnam umas
das outras. Para Koselleck, é a tensão entre experiência e expectativa que suscita
novas soluções. Neste sentido, a cultura de risco evitável e repetível dá pouco espaço
para novas soluções.
Pode-se pensar também que a investigação sobre si mesmo perde a força. Longe
de querer deslegitimar o discurso de alguém que foi alvo de um crime – é evidente que
culpados devem ser punidos – fica esvaziada, em paralelo, uma busca por respostas
mais complexas, que englobem uma análise do comportamento da vítima e do contexto
social. Nietzsche (1987) sugere que um dos maiores ressentimentos do homem é o
fato de ele não poder mudar o passado. Para resolver essa angústia, ele propõe uma
transformação do pensamento “foi assim” para “assim eu quis”, o que amenizaria
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 12
134
remorsos. Essa proposta reflexiva dificilmente teria lugar num enredo que se resume
de forma crescente a uma batalha entre “o bem” vitimizado e o “mal” algoz, e poucos
se colocam na posição de autores da própria vida. Segundo Nietzsche, a moralidade
dos costumes suspende a força plástica do esquecimento. A afirmação “assim eu
quis” carrega em si uma proposta de cura e reconciliação com o passado, para não
dar lugar ao ressentimento e produzir amor pelo acontecimento. A possibilidade de
digerir o passado abre espaço para o novo.
Estas conexões entre diversas fases temporais é explicada de forma magistral
por Bergson (1990), que descreve o tempo como fluxo. O ser humano está sempre
constituindo memória e vivendo a partir dela. A percepção está ligada à atenção à
vida, à ação vitalmente orientada. Percebe-se para viver e agir, não para contemplar,
especular e conhecer, como propunha a tradição metafísica. Bergson critica o
idealismo subjetivista, que deduz o mundo a partir do eu, e o realismo materialista,
que aposta demais na existência das coisas, foca na materialidade do cérebro. Para
ele, a percepção é ligada à memória. As imagens percebidas são conservadas para
serem úteis às ações na vida. Perceber é também lembrar.
Segundo a teoria bergsoniana, a matéria é um conjunto de imagens, interligadas
e interdependentes. A percepção extrai certa imagem de um conjunto possível, como
se houvesse subtração. As “coisas” são imagens reveladas para cada um de acordo
com o que lhe interessa, as imagens são uma potencialidade de relações. Entre
a percepção e a matéria, existe uma diferença de grau. A matéria é o conjunto de
todas as virtualidades possíveis, e a a percepção volta para nós a face da matéria
que nos interessa, por trazer promessa ou ameaça. O todo está na matéria, e nós
vemos apenas parte desse todo. Entender como funciona a percepção e a memória
é essencial em uma sociedade crescentemente influenciada por impressões e relatos
individuais. As propostas teóricas bergsonianas, em especial, são importantes para
a análise do tema em questão porque alertam para o fato de que um testemunho
engloba percepções escolhidas por se adequarem a uma ação vitalmente orientada.
Uma boa análise de uma situação, para um conteúdo jornalístico, por exemplo, corre
o risco de se empobrecer ao acompanhar ou se restringir a uma única percepção.
A credibilidade é defendida por Sodré (2009) como o principal capital simbólico
do jornalista, que parte de certo pacto estabelecido entre o profissional de imprensa
e o leitor. “A credibilidade decorre muito provavelmente do lugar privilegiado que o
jornalista ocupa como mediador entre a cena do acontecimento e a sociedade global:
o lugar da testemunha” (SODRÉ, 2009, p.48). Esse lugar, porém, é deslocado muitas
vezes, no cenário atual, para o leitor. O jornalista parece atuar como uma espécie
de controlador de testemunhos alheios. O testemunho veiculado na mídia atribui
responsabilidade a quem vê, de relembrar e prevenir, transmite uma obrigação moral,
apela para um senso de comunidade.
Alguns exemplos práticos desta cultura de testemunhos são os posts de sucesso
sobre artistas que superaram traumas e as conhecidas “histórias de superação”,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 12
135
que rapidamente ganham destaque midiático, em um processo de retroalimentação
mútua entre amadores e profissionais, e difusão dos testemunhos em todos os canais
e formatos. Em novembro de 2016, por exemplo, a filha africana dos atores Bruno
Gagliasso e Giovana Ewbank foi alvo de comentários racistas na internet. Muitas
matérias de veículos reconhecidos publicaram matérias apenas reproduzindo relatos
dos atores, orais e escritos, em redes sociais ou programas de TV. No máximo, também
reproduziam o texto agressivo publicado inicialmente. Mais tarde, foi descoberto que
a autora das mensagens racistas era uma menina negra, de 14 anos. O tema tinha
potencial para ser explorado de forma mais ampla e analítica. Outro movimento atual
é o de divulgação de testemunhos relativos a experiências vividas pelos próprios
jornalistas. Brêtas (2016) observou a profusão dessas formas de relato na imprensa
brasileira entre 2013 e 2015 e seu aparecimento em veículos de grande circulação
no Brasil.
Essa característica presente na experiência – de que ela mesma produz a
verdade vivida – está também de maneira exponencial em vídeos e fotos mandados
pelos leitores para jornais e sites. Jornalistas alertam para o perigo da prática, cada
vez mais frequente, de produzir matérias apenas a partir de um relato enviado por
leitor em redes sociais, como WhatsApp. Há mais chances de virarem matérias as
mensagens acompanhadas de fotos ou vídeos, sobretudo de pessoas que denunciam
abusos do poder público ou violências. Muitos artigos se resumem à reprodução da
mensagem, com a resposta da autoridade competente, sem polifonia ou análise sobre
passado e futuro da situação. A verdade da experiência de cada um, transmutada
sob a forma de imagens vistas, capturadas e partilhadas, produz um discurso
desassociado de qualquer referencial, tendo nele mesmo o sentido exacerbado do
verdadeiro. A experiência é transportada via mecanismos comunicacionais, sendo ela
isenta da dúvida e investida do efeito verdade apriorístico. São imagens reconhecidas
como provas de traumas em redes sociais e em veículos jornalísticos, embora sejam
trechos simplificados, arbitrários e superficiais de situações.
Em uma época de disseminação da legitimação e autoridade do testemunho, e em
meio a processos de transformações no jornalismo, é impossível não pensar na fonte
e futuro lugar de arquivo de todos os relatos: a memória. O mundo contemporâneo não
cessa de registrar o testemunho das existências mais comuns e de acontecimentos
banais. Entretanto, segundo Rancière (2010), enquanto a informação é abundante,
a memória não segue o mesmo movimento. Para o autor, a memória, no sentido
de mecanismos coletivos de preservação de documentos e informações relevantes,
deve constituir-se tanto contra a superabundância de informações quanto contra sua
falta. Ou como analisaria Bergson, esta abundância fica restrita a uma virtualidade,
com fraca atualização na percepção.
É imprescindível também qualificar conteúdos para que sejam mais memoráveis,
marcantes, e redescobrir velhos materiais. O cinema, para Rancière, é a arte que
consegue combinar o olhar do artista que decide e da máquina que registra, de imagens
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 12
136
construídas e submetidas, que apreende o real como um dado a ser compreendido,
e não um efeito a ser produzido. É capaz de entrelaçar temporalidades defasadas
e regimes heterogêneos de imagens. No filme “Operários ao sair da fábrica”, de
1995, por exemplo, Harun Farocki retoma uma filmagem feita pelos irmãos Lumière
e a recompõe com imagens feitas a partir do mesmo movimento de trabalhadores
em variados filmes, institucionais, de propaganda, atualidades, filmes célebres,
anônimos. Para Lins (2011), esta foi uma forma de retirar o documento audiovisual
de uma série já institucionalizada, a história do cinema, para inseri-lo em outra série,
com documentos de fontes diversas, construindo nova constelação. A filmagem dos
Lumière é retomada com paradas na imagem, câmera lenta, inversão de movimento
e novas focalizações, permitindo ao espectador novas leituras e associações de
materiais já existentes.
Nesse sentido, percebe-se que o cinema explora a potencialidade, ou tem
mais claramente a condição, de romper com automatismos e reducionismos, ou a
superficialidade de uma mera administração de testemunhos em textos que não
marcam, que se perdem e não são retomados. Entender como isso é feito pode ser
um caminho que abra possibilidades para o jornalismo, mesmo que historicamente
a narrativa jornalística tenha se firmado em outro lugar de fala, ancorada em uma
diferente pseudorelação com a verdade.
Numa montagem cinematográfica, é possível, através da repetição, por exemplo,
retornar ao passado e torná-lo de novo real. Ou questionar o que é ou foi real. Em
uma era pós-moderna, em que o real perde o interesse para o virtual, este movimento
pode trazer grandes contribuições. Numa paragem, o espectador se vê estimulado
a refletir sobre o sentido de uma imagem ou cena, que teve o fluxo interrompido. De
acordo com Agamben (2008), no cinema, uma sociedade que perdeu seus gestos
procura reapropriar-se deles, ao mesmo tempo em que registra a perda. A diferença
entre o cinema e o jornalismo, para o autor, é que as mídias nos dão sempre o
fato, o que foi, sem sua possibilidade, sem sua potência, um fato sobre o qual o
espectador é impotente, embora indignado. As premissas clássicas de objetividade
e imparcialidade, nunca alcançadas, tornam os formatos limitados. Como definiu
Deleuze (1992), o cinema pode ter o mérito de devolver às imagens tudo que têm,
desfazendo a linguagem como tomada de poder, para que não percebamos menos
como espectadores.
Um observador tem menos memória e possibilidades futuras que uma imagem,
diante da qual presente, passado e futuro podem se reconfigurar. O anacronismo é
uma forma de exprimir a complexidade e sobredeterminação das imagens, com seus
tempos distintos atuantes. É preciso conhecer o presente, e se apoiar sobre ele, para
compreender o passado, e lhe fazer as perguntas certas. O presentismo atual é uma
perda da articulação entre passado, presente e futuro. Para um estudo histórico,
é preciso considerar os vários tempos reunidos em um mesmo tempo. O presente
é descendente do passado. Portanto, através da memória podemos humanizar e
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 12
137
relacionar as camadas do tempo, reconhecendo nele uma impureza essencial que
não é simplesmente cronológica, como indicou Bergson. O tempo está sempre indo
e voltando. É importante estudar os sintomas, que interrompem um fluxo automático
e inconsciente e provocam uma abertura repentina e a aparência de uma latência ou
sobrevivência, a conjunção de diferença e repetição. Por isso, estudar os sintomas
dos impactos no jornalismo de uma era de valorização de testemunhos ajuda a refletir
sobre novos caminhos possíveis, alguns deles já trilhados pelo cinema.
O mundo contemporâneo está tomado de um excedente de imagens inúteis,
separadas com vistas ao espetáculo, e destinadas a serem descartadas. O
excesso de imagens de sofrimento veiculadas pela mídia colabora para a apatia
do telespectador: são tantos relatos, fotos e vídeos que parece que uma situação,
de violência, abandono ou escassez, é imutável, está além do alcance da ação da
audiência. Além disso, um sofrimento real parece fictício. No cinema, ainda é mais
possível estimular o espectador a apropriar-se criticamente das imagens e produzir
suas próprias conclusões, integrando-as às suas vidas. Para Leandro (2012), só a
montagem permite tirar as imagens de onde estão, confiscadas, e trazê-las de volta
a um espaço de confrontação e vida. A partir dessa iniciativa, a imagem não funciona
apenas como ilustração de discursos e teses, de direita e esquerda, como muitas
vezes fazem os veículos jornalísticos. Leandro defende a importância de apagar
discursos pré-estabelecidos e acabados das imagens, para o espectador ressignificálas.
É o que propôs Eduardo Coutinho no filme “Um dia na vida”, de 2010, no qual
mostra imagens extraídas da programação da TV aberta brasileira, filmadas ao
longo de 19 horas. O cineasta expõe as imagens sem narração ou interferência,
em uma montagem que impele o espectador a interpretar e tirar conclusões. Ficção
ou documentário só ganham pertinência nas suposições do espectador pois não há
nada nas imagens que garanta sua veracidade. Um espectador emancipado, como
designou Rancière (2010), é capaz de se dissociar das intenções do artista e de
traduzir de modo singular o que vê e sente.
Para realizar uma investigação mais artística e complexa, é preciso trabalhar as
imagens, descrever relações, questionar, já que um documento não expressa uma
verdade sobre determinada época de forma objetiva e inocente, e sim “o poder da
sociedade sobre a memória”, como definiu Lins (2011), ou um esforço de sociedades
passadas que o guardaram e manipularam para impor ao futuro certa imagem de si
próprias. O documento não é instrumento da História, mas seu objeto. Eles revelam e
escondem traços das condições em que foi produzido e do poder que o produziu. Lins
defende que é preciso fazer uma crítica do documento, ou seja, recortá-lo, analisar
relações entre elementos.
Uma foto ou um relato podem ser encarados, assim, como documentos a
serem destrinchados, compreendidos, em um movimento que convida o espectador
a participar verdadeiramente, e não apenas interagir, como ocorre quando há trocas
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 12
138
entre jornalistas e leitores. O leitor não é convidado a participar da produção da
matéria, do tratamento do conteúdo, da escolha dos tópicos. Ele apenas fornece o
material a ser usado e recebe uma interpretação feita. O jornalismo pode aprender
com o cinema a criar mecanismos que estimulem uma atividade reflexiva ativa, e
participativa. O banco de imagens se torna cada vez mais amplo, fica cada vez mais
difícil trabalhar com imagens e documentos deslocados de seu contexto histórico.
É preciso se debruçar sobre eles para que resistam ao tempo e ao evento que lhes
deu origem. A imagem é investida de um poder de testemunho sem igual. Mas o
que foi captado pelas câmeras pode não ser percebido pelos espectadores durante
a observação nem pelo fotógrafo ou câmera no momento do registro. Pode haver
elementos não escolhidos à espera de alguém para desvendá-los e interpretá-los.
Imagens e testemunhos sem interpretação correm grande risco de sumirem neste
apagamento progressivo generalizado.
Para Deleuze (2003), aprender é considerar uma matéria, um objeto ou um ser
como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. A verdade não é produto
de uma boa vontade prévia, mas resultado de uma violência sobre o pensamento, do
encontro com algo que nos força a pensar e procurar o que é verdadeiro. Segundo
o autor, só se pode aprender por intermédio de signos, perdendo tempo ao se ver
forçado a procurar através do pensamento o sentido deles, e não pela assimilação
de conteúdos objetivos. Não se pode atribuir ao objeto os signos de que é portador.
Reconhecemos muita coisa sem jamais as conhecermos. Para Deleuze, apenas no
nível da arte as essências que constituem a verdadeira unidade do signo e do sentido
são reveladas, e que constituem o signo como irredutível ao objeto que o emite e ao
sujeito que o apreende. O jornalismo, bem como o cinema, pode ser mais artístico,
para se inserir num fluxo de tempo mais etéreo.
Muitos documentos transcrevem ou evocam dizeres. Porém, como a imagem, a
fala traz novas interrogações, e não apenas à interpretação dos acontecimentos, mas
ao próprio relato. A fala e a oralidade estão naturalmente contidas no relato histórico.
Não podem servir só para exemplificar, trazer imagens ou a impressão do verídico.
Farge (2009) propõe tomar as falas como emergências novas, acontecimentos. O
historiador ou o comunicador não pode sucumbir aos encantos atuais do individualismo,
alerta Farge. Para ir contra a tendência de automatizar o discurso, a autora mostra
que é importante leros deslocamentos que cada um inventa para si e para os outros
em suas falas, as condições de sua irrupção, e dar sentido aos relatos articulando
com os grupos sociais e acontecimentos coletivos de que são dependentes de várias
formas, como submissão, revolta, consentimento etc. A fala, em vez de ilustrar o
discurso, deve lhe causar um problema, ao provocar ou se submeter ao poder. Outro
perigo é tornar a fala exterior, espantosa, objeto de fascinação, em vez de considerála uma alteridade desconcertante e familiar, singular e articulada com um conjunto de
outros falantes, religando seres e palavras.
Desde a modernidade, o tempo tende a caminhar para frente, produzindo o
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 12
139
novo como progresso. As descobertas de Galileu, ligadas ao infinito (Terra se move
infinitamente), abalaram o conceito de origem. A descrença em Deus e o ideal de
origem da religião também entram nesse movimento. Com a Revolução Francesa,
este desejo de um novo, que está na virtualidade da vontade de mudança e seu
entusiasmo, se consolida. Mas a memória não pode ser deixada de lado. É preciso
investir em conteúdos que ficam, e em modos de armazenamento que encontrem e
reconvidem à reflexão. Menos conteúdos novos, e mais novas visitas a conteúdos
existentes. Em uma nova concepção da História, a imagem é colocada novamente no
centro, para ser revisitada. Muitas cenas passam desapercebidas. Até os campos de
concentração na época do Holocausto não foram percebidos em imagens da época.
Diante de uma imagem, presente e passado não param de se reconfigurar. A História
se aproxima da memória, não parte dos fatos passados, mas de um movimento que
parte do presente, que pode trazer novos sentidos. A montagem cinematográfica é
uma atividade anacrônica. Muitas coisas já estão lá, à espera de um olhar.
O automatismo é usado hoje a favor de uma narrativa mais clássica. O jornalismo,
inspirado no cinema documentário, pode tratar o real como um problema e experimentar
os jogos da ação e da vida mais livremente. Alguns filmes mesclam imagens reais
e ficcionais, problematizam o real, a história, a imagem, com uma multiplicidade de
tempos a cada momento. Usar várias imagens de épocas diferentes para construir
um argumento, parar uma imagem para vermos algo que não poderíamos ter visto,
em um vai e vem do tempo. A repetição torna algo novamente possível, restitui o
passado como possibilidade atual. Nos faz formular a pergunta: como isso aconteceu?
O documento traz ensinamentos hoje, promove reinterpretações contemporâneas. O
material resiste a uma história pré-construída.
A constituição da memória é individual e coletiva, como apontou Ricouer
(2007). Ninguém se lembra sozinho. Não há memória sem linguagem, o que a coloca
numa dimensão social de imediato. As narrativas são necessárias para configurar
as memórias, que são, elas mesmas, construção narrativa. Hoje há um excesso de
informação, mas feita para ser consumida, sem ligação, esvaziada da possibilidade de
entendimento profundo. Antes da montagem, as imagens estão no mundo, e podem
servir para várias narrativas. Nos telejornais, por exemplo, a ficção se impõe como
verdade. As informações não ajudam o espectador a criar elos, lembrar. A mídia, em
geral, dá o fato como algo acabado, sem sua potência e complexidade. Entretanto,
é possível tentar criar um espectador emancipado, com capacidade de traduzir o que
vê, tradução esta que ocupa o centro do aprendizado.
A memória que confia em HDs para salvar documentos é arriscada, muito se
perde, somem os vestígios. É preciso investigar a história de um documento ou de
uma fala, fazer uma arqueologia da fala, inspirada em Deleuze. Em filmes, são usadas
as falas da testemunha viva, do testemunho dos documentos ou a de especialistas.
Abre-se a possibilidade de surpreender alguém com a sua própria fala, o documento
ativando uma memória adormecida. Ou a possibilidade de confrontar duas testemunhas
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 12
140
diante de uma câmera, de reconstituir cenas. A poética do testemunho não é só da
informação, automativa, do hábito. Pode dar saltos no passado e no presente. São
maneiras mais complexas e ricas de lidar com o testemunho, que podem servir de
inspiração para o jornalismo.
Para Bergson, a percepção, por manter distância em relação ao que pode
chegar, aumenta o espectro de ações possíveis. Por esse motivo, o ser humano não
precisa agir sempre da mesma maneira, ele tem uma abertura infinita de variações
de respostas possíveis, sem automatismo ou mera reação. O cérebro provê a
capacidade de hesitar, que é fundamental para imprimir ações novas ao suspender
uma reação automática. Esta reflexão está ligada a uma contestação do hábito, que
gera economia de percepção. Perguntar-se o que poderia ser feito diferente é um
bom exercício para o jornalista hoje, em um contexto que expõe a necessidade de
buscar novas alternativas para antigos e novos hábitos.
Toda vez que nos deparamos com um fenômeno, é preciso questionar suas
causas e seus possíveis impactos. Como definiu Koselleck (1979), não há expectativa
sem experiência, e não há experiência sem expectativas. É imprescindível descobrir
a vinculação entre o antigo e o futuro em cada fenômeno, perceber o que muda
e o que permanece, e quais as consequências. A História só poderá reconhecer o
que está em contínua mudança e o que é novo se souber qual é a fonte onde as
estruturas duradouras se ocultam. Inspirados nos modelos de investigação histórica
foucaultianos, devemos pesquisar como o indivíduo se constitui e se reconhece
como sujeito, estudar os jogos de verdade na sua relação de si para si, e as práticas
que se formam a partir daí, inclusive jornalísticas. Entender, por exemplo, a cultura de
valorização de testemunhos e relatos é crucial para estudar as mudanças pelas quais
passam o jornalismo hoje, tanto na sua produção quanto na sua recepção, no sentido
de propor novos caminhos.
Bergson introduziu o conceito de virtualidade, que engloba as lembranças
independentes vivendo em uma impotência do passado, de forma desordenada,
aleatória. Elas não estão agindo no corpo, não são conscientes, mas podem encontrar
uma fissura e se atualizar. Trata-se de um inconsciente ontológico, não psíquico. O
passado tem uma potência que é suspensa pela pressão do viver, que se inclina para
o futuro. Esse passado singular e impotente não se repete, não é automático, é datado
em cada imagem-lembrança. Não há apagamento de lembranças nunca. Inspirados
nesta proposta filosófica tão revolucionária, rica e poética, precisamos pensar em
mecanismos para que a memória coletiva seja preservada, e os documentos ganhem
a possibilidade de gerar novas e amplas atualizações de memórias produtivas e
frutíferas. Se o corpo humano faz isso de forma magistral, por que não nos dedicamos
de forma mais consciente a caminhar neste sentido na administração de conteúdos
coletivos?
Ao lermos Bergson, entendemos que, para não ficar preso só no presente, é
necessário querer sonhar. O homem passeia entre um estado automata e sonhador,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 12
141
e este fluxo é crucial. O corpo é um limite movente entre o passado, que continua
existindo no presente, e o futuro. O reconhecimento se dá numa associação da
percepção imediata e das imagens-lembrança. Nós queremos domesticar o tempo,
com mecanismos como a informação em tempo real, propondo uma suspensão da
duração, que não é real. O jornalismo pode estar em um caminho entre a objetividade
e o lirismo? Se o cinema-documentário pode, por que não o jornalismo? Ainda é
possível sonhar com estes novos horizontes, para uma profissão em desgaste.
A cada vez que nos dedicamos a alguma coisa suspendemos um automatismo.
A atenção suspende um reconhecimento trivial, amplia o leque de atualizações
possíveis. Cada nova análise muda, amplia, cria novas imagens-lembrança com as
quais dialogar. Não existe completude, está tudo sempre em aberto. A atenção é
a dilatação, e não a contração da repetição. Por isso, o progresso, para Bergson,
não é linear, em etapas: é contínuo, tudo sempre se afeta no sentido da mudança.
Para acreditar no real, precisamos dividi-lo. O automatismo hoje é maior, com pouca
variação de respostas ou liberdade. O hábito está muito entranhado. A evolução
ou progresso, para Bergson, estão ligados a um “novo” inserido na liberdade que o
espírito fornece ao corpo. Quem evolui mais ou menos livremente cria a todo momento
algo de novo.
O mundo hoje padece de excesso de comunicação, não de falta. Conhecer
muitas vezes impede de pensar; é preciso esquecer para conhecer o novo, como
propôs Nietzsche. A arte é a produção de um finito que se insere num fluxo infinito:
cada leitura, por exemplo, é nova e única, de um livro que continua para outros
no tempo. A repetição também produz diferença. É preciso combater os clichês,
o automatismo sem reflexão, estar numa zona de desconforto. As coisas emitem
signos, imagens, promessas e ameaças, e o aprendiz os interpreta. É a memória que
vai produzir a condição de decifrar os signos. A aceleração cria um divórcio entre o
tempo e a experiência. Proust (2003) mostrou que as únicas formas de recuperar o
tempo perdido, seja porque passou ou porque foi gasto em signos mundanos, são
requalificar a memória, ressignificá-la, ou dar mais qualidade à experiência através
da arte. A qualidade não é calculável, o tempo hoje é medido pela quantidade, mas
muitas vezes é preciso subtrair, e não somar, para se chegar à realização de um
desejo. Como explicou Deleuze, o aprendiz traz para o conhecido uma pergunta.
Precisamos trazer novas perguntas para o jornalismo, requalificar as memórias e
qualificar as experiências de escrita, atribuindo a elas mais qualidade artística. É
possível se engajar neste projeto e, ao mesmo tempo, ser verídico, objetivo e até
imparcial, se assim for desejado.
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Capítulo 12
144
CAPÍTULO 13
doi
OS STREET PAPERS COMO INSTRUMENTOS DE RESGATE
DO CIDADÃO EM VULNERABILIDADE SOCIAL: ESTUDO DE
CASO DA REVISTA OCAS”
Franklin Larrubia Valverde
Centro Universitário Estácio de São Paulo
São Paulo – SP
Marília Gomes Ghizzi Godoy
Universidade de Santo Amaro
São Paulo – SP
Rosemari Fagá Viégas
UNIBR - Faculdade São Sebastião
São Sebastião – SP
RESUMO: A criação dos street papers, no
início dos anos de 1990, abrange uma forma de
jornalismo alternativo destinado a gerar renda
e criar valores de autoestima e cidadania entre
pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Diante deste meio mediático, o artigo propõese a analisar o surgimento e a concretização
da revista Ocas” (SP e RJ) nos últimos doze
anos. Compreende-se o sentido cultural e
de identidade que se desenvolve entre os
vendedores e espaços urbanos de venda.
PALAVRAS-CHAVE: street papers, revista
Ocas”, jornalismo alternativo, pessoas em
situação de risco.
THE STREET PAPERS AS INSTRUMENTS
FOR THE RESCUE OF THE CITIZEN IN
SOCIAL VULNERABILITY: CASE STUDY OF
THE MAGAZINE OCAS “
ABSTRACT: The creation of street papers,
in early 1990, covers a form of alternative
journalism intended to generate income and
create self-esteem values and citizenship
among socially vulnerable people. Given this
media environment, the article proposes to
analyse the emergence and the implementation
of the “Ocas” magazine (SP and RJ) in the last
twelve years. The cultural and identity meanings
are incorporated, which are developed between
sellers and urban spaces of sale.
KEYWORDS: street papers, “Ocas” magazine,
alternative journalism, people at risk .
1 | INTRODUÇÃO
Nos finais do século XX os processos
de mudanças sociais e culturais, inseridos no
contexto da globalização, criaram novas formas
de combinação do espaço-tempo em que as
ideias das cidades e das sociedades tornaramse ligadas a uma nova dimensão de valores.
O fenômeno de homogeneização cultural toma
conta do mundo ao mesmo tempo em que se
projeta uma realidade chamada pós-moderna.
Nesse contexto, os seres humanos originamse como sujeitos fragmentados, indivíduos
representativos de situações diversas (IANNI,
2008; HALL, 2006).
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 13
145
Dentro desse contexto o cenário das cidades, como afirma Magnani (2002, p. 49),
resulta “de forças econômicas transnacionais, das elites locais, de lobbies políticos,
variáveis demográficas, interesse imobiliário e outros fatores de ordem macro”, fruto
essencialmente da sociedade capitalista. Assim sendo, vemos que
no âmbito da sociedade global, os princípios de liberdade, igualdade e propriedade,
de uma forma geral operam em termos econômicos. Nasceram e recriaram-se
continuamente, em âmbito local, regional, nacional e transnacional, nos jogos das
relações de trocas mercantis (IANNI, 1996, p.108).
Considera-se assim, que o surgimento de uma noção de “cidadão do mundo”
poderia expandir e dar mais sentido aos direitos e garantias individuais diante da
Declaração dos Direitos do Homem, promulgada pela ONU em 1948. Documento que
ainda não foi repensado diante da situação atual, levando em conta as exigências
e os dilemas do contrato social que recolocam nova forma de organização, assim
como a natureza do Estado soberano. No entender de Norbert Elias, a emergente
integração global da humanidade tornou-se ampla e estável, acompanhada de um
novo avanço e por uma forma de individualização, “mas, já se pode perceber com
clareza formas iniciais de um novo ethos de dimensão mundial” (ELIAS apud IANNI,
1996, p. 114). Os aspectos burocráticos, expressivos de uma razão instrumental,
atraem à formação de espaços simbólicos que possam projetar as subjetividades em
suas expectativas de participação e emancipação social.
2 | O STREET PAPERS: HISTÓRICO INTERNACIONAL
A partir dessa contextualização, inserida no final do século XX, define-se um
campo de atuação política social e de cidadania, pela criação do street papers.
Compreende-se a formalização de instrumentos midiáticos ligados ao meio
comunitário, à cidadania, ao civismo e, ao mesmo tempo, servindo de instrumento de
reinserção de excluídos no mercado de trabalho. Torna-se necessária uma análise de
natureza antropológica, com ênfase nas subjetividades; compreendida no universo
midiático ligado à atuação dos street papers e à projeção da revista Ocas”. Nesse
sentido, o presente artigo encaminha-se para uma compreensão da dinâmica social,
política e cultural desses meios de comunicação a partir de um olhar que questiona a
perspectiva universalista, distante e externa focada apenas na globalização.
Observamos nas informações fornecidas pela Internacional Network of Street
Papers INSP que os street papers destacam-se por suas características (http://www.
street-papers.org/o-conceito-de-jornal-de-rua/):
- Jornais e revistas independentes, vendidos pelas ruas de cidades do mundo inteiro
por moradores de rua e pessoas em situação de habitação precária.
- Uma oportunidade de emprego única, que permite às pessoas mais desfavorecidas
obter um rendimento com dignidade e reconstruir as suas vidas.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 13
146
- Uma fonte de apoio social, desde encaminhamento para serviços e formação
profissional a workshops de arte e de escrita e desenvolvimento de capacidade de
liderança.
- Uma fonte independente de notícias e informação, que abre espaço a perspectivas
alternativas e a vozes da rua que nunca são ouvidas.
- Uma ferramenta de transformação social a longo prazo que aproxima as pessoas
ao romper barreiras sociais e advoga as necessidades e os direitos das pessoas
que vivem em situação de pobreza.
Supõe-se uma concepção de trabalho como um meio de dignidade no combate
à fome e à miséria podendo ser uma forma concreta de transformação (ib). Ao se
tornarem vendedores, os sujeitos poderão vencer situações críticas de sobrevivência
e serem reconhecidos como indivíduos de valor cultural. Assim, pode-se encarar esta
dinâmica mediante um olhar que se constitui de perto e de dentro dos atores e sujeitos
sociais, como sugere Magnani (2002, pp. 14,17,18). Os meios midiáticos alternativos
ao criarem recursos aos sujeitos desprovidos de posses e empoderamentos, caso
dos street papers (como ocorre com a revista Ocas”), viabilizam-se diante de uma
perspectiva subjetiva e humana. O enfoque de compreensão supõe não um instrumento
metodológico técnico, mas uma análise do “concreto vivido” pela construção de um
insight que projeta as identidades construídas entre os sujeitos pós-modernos através
de suas significações humanas.
Os avanços tecnológicos expressivos do jornalismo e da modernidade deram
origem a uma mídia alternativa voltada para questões de cidadania e dos conflitos
sociais, resultando em uma nova proposta editorial que passou a ser designada street
papers (jornais de rua). O caráter alternativo desse jornalismo no final do século XX
permitiu a incorporação de conceitos da comunicação popular voltados a diferentes
processos de comunicação entre si. Segundo PERUZZO (2009, p.58):
As práticas comunicacionais geraram conceitos que permitem tomar as expressões
comunicação popular, alternativa e comunitária como sinônimos, quando se
referem às lutas de segmentos subalternos por sua emancipação, mesmo havendo
algumas características próprias em cada um dos processos.
Nessa perspectiva, os meios de comunicação são concebidos como
“instrumentos para uma educação popular, como alimentadores de um processo
educativo transformador” (GIMENEZ, 1979, p. 60). Observa-se uma ruptura da lógica
de dominação e de sua direção hierárquica para um compartilhamento de códigos
expressivos de uma educação coletiva e popular.
Em seguida registram-se dados sobre a expansão dos street papers e sobre
a revista Ocas” seguindo as obras de Seidenberg et alli (2013) e Haddad (2007).
O jornal norte-americano Street News, em Nova York, foi um dos pioneiros e não
teve vida longa, após seu surgimento em 1989. Foi com a publicação da revista The
Big Issue, que surgiu em 1991, na Inglaterra, que se criou um centro de expansão.
Outros jornais surgiram em diversos países europeus, com redações independentes
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 13
147
(como na Escócia e no País de Gales em 1993, e na Irlanda em 1994); países como
a Grécia, Espanha e Itália introduziram refugiados e desempregados no quadro dos
seus vendedores. O movimento expandiu-se pelo Leste Europeu (Rússia, Sibéria,
Ucrânia), África, Oceania, Ásia, Coréia do Sul, Taiwan, Japão e Filipinas. Na Holanda
e na Alemanha, o programa passou a incluir iniciativas turísticas e de desempenho
cultural.
Criou-se uma rede internacional a Internacional Network of Street Papers INSP,
em 1994, com sede em Glasgow, na Escócia. Essa rede tornou-se INSP News Service
que passou a atuar com autonomia, subsidiar e assessorar a formação dos street
papers. Desde 1995, ocorrem conferências anuais dessa entidade. Estabeleceram-
se premiações de trabalhos pela sua iniciativa, o Internacional Street Paper Awards
(desde 2008).
Na América Latina a pauta dos street papers chegou no ano de 1995 com uma
edição em Córdoba, na Argentina; anos depois o Al Margen, em Bariloche; Hecho, em
Buenos Aires, que alcançou grande repercussão. O jornal Boca de Rua foi pioneiro no
Brasil, criado no ano de 2000 em Porto Alegre (SEIDENBERG et alli, 2013, p. 21). Em
2007, surgiram as revistas Calle, em Bogotá (Colômbia) e Callejera, em Montevidéu
(Uruguai). Entre 2000 e 2001 há um movimento na cidade de São Paulo, que culmina
com o lançamento da revista Ocas”, com o primeiro número circulando em julho de
2002. Na Bahia, em Salvador anos depois originou-se o Aurora da Rua.
3 | O MOVIMENTO OCAS E A REVISTA OCAS
As práticas culturais e políticas encaminhadas pelo movimento OCAS criaram
uma forma de convívio e de estímulo pessoal centralizadas nos indivíduos que se
encontravam desprovidos dos direitos de cidadania. Destaca-se uma narrativa que
envolve as experiências partilhadas para a criação da revista, que se origina pela
iniciativa de Luciano Rocco. Este, em 1996, trouxe de sua viagem a Londres a ideia
de realizar uma publicação nos moldes da The Big Issue.
Inicialmente criou-se, em 21 de abril de 2001, a ONG OCAS: Organização Geral
de Ação Social (SEIDENBERG et alli, ib). Um ano após, em 06 de julho de 2002
lançou a revista Ocas” em São Paulo e no Rio de Janeiro em 08 de julho de 2002
(ib:12). Destacaram-se nessa iniciativa o engajamento de Luciano Rocco que se
articulou a outros movimentos ligados ao morador de rua como a ONG Médicos Sem
Fronteiras (MSF), o jornal O Trecheiro e seu líder, o fotógrafo e jornalista Alderon
Costa, juntamente com a jornalista Denise Mota. A partir de encontros, definiu-se
um plano de trabalho que estivesse voltado para uma transformação social e uma
recuperação do morador de rua.
O título da revista foi escolhido após três opções recusadas: Mutirão (não
aceito), Olho da Rua (rejeitado por dar ênfase a rua), VerAcidade (não poderia
funcionar por ter outra publicação com esse nome) e OCAS” representando a própria
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 13
148
sigla do movimento. O uso da aspas traduz o universo simbólico da revista, através
do logotipo cria-se uma unidade tipográfica entendida como um grito, pedido ou
manifesto (MAURÍCIO, apud SEIDENBERG, ib:32). Elas também exprimem o sentido
da principal missão do projeto: dar voz e possibilidade de expressão a quem, por
diversos motivos, não as possui. As aspas valem para os vendedores, que retornam
ao convívio social, mas também para os voluntários, que encontram na revista uma
possibilidade de trabalho (SEIDENBERG, pp. 32-33). Origina-se uma diferenciação
entre o título da publicação e do nome da instituição mantenedora; acentua-se de
forma original, o título e a iniciativa jornalística. Sendo publicada pela Organização
Civil de Ação Social na página de abertura dos seus fascículos, lê-se que é uma
entidade civil de interesse publico, sem fins lucrativos, não tem nenhum interesse
comercial e político, não depende de grupos de comunicação.
Ao completar dez anos de funcionamento o movimento OCAS realizou iniciativas
marcantes de comemoração. Aconteceram encontros comemorativos na sede, no
espaço que é também ponto de venda: Fnac Paulista e a publicação de uma obra
épica. Trata-se do livro Ecos da Ocas: a história da revista que promove transformação
social – publicação organizada pelos líderes do movimento, coordenada por Márcio
Seidenberg.
4 | COMO FUNCIONA A OCAS
A criação de um lugar para a formalização dos encontros amistosos teve início na
Igreja Bom Jesus do Brás, na Torre Leste, quando aí compartilhavam, informalmente,
com outros movimentos (Rede Rua, Fundação Casa). Posteriormente, ocuparam um
espaço na área térrea da própria igreja, oficializando seu endereço à Rua Campos
Sales, 88, em São Paulo (SP). No Rio de Janeiro, organizou-se um espaço inicial com
a ONG Médicos Sem Fronteiras e depois com a instituição Dispensários dos Pobres
da Imaculada Conceição. Mais tarde, sob forma precária, juntou-se à Associação
Solidários Amigos de Betania (ASAB), que cedeu uma sala no Bairro Benfica (RJ)
até 2007. A partir daí, diante da ausência de uma sede, Davi Bonela vem criando
soluções para a situação precária que vigora no Rio de Janeiro (SEIDENBERG, pp.
53-54).
As iniciativas comunitárias de ordenação do movimento e a criação das matérias
sugestivas para a revista deram origem a uma produção de significados expressivos
da cultura que é aí vivenciada, como um processo coletivo e dinâmico. Desta forma,
observamos o sentido de identidade cultural que se expressa nas práticas culturais
coletivas. Seguimos a definição da identidade cultural no universo histórico da
modernidade sob o efeito da globalização, conforme HALL (2006). Segundo esse
autor, ocorre uma descentralização dos vínculos tradicionais e a construção de novos
sentidos. Estes ganham representação de verdade, tornam-se “‘celebração móvel’
formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 13
149
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2006,
pp. 12-13).
5 | A DIREÇÃO SOCIAL, TRANSFORMADORA DO MOVIMENTO
O desafio de obtenção de fundos, de poder contar basicamente com a venda das
revistas, poderia ser suprido se os anúncios oficiais (governos municipal, estadual e
federal) atendessem os veículos de comunicação alternativos. Os recursos vigoraram
através de anúncios pontuais da Petrobrás e do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), os quais são considerados insuficientes para a
manutenção da revista. Nesse sentido, entende-se como os editores situam o caráter
ideal e contraditório do programa: seria o fim de uma realidade marcada pela pobreza
(erradicação), pela “vulnerabilidade social” e pelo caminho não utópico, porém de um
futuro incerto da OCAS.
Há um “código de conduta”, publicado em todas as edições da revista, que
rege a maneira como os vendedores devem atuar, dando possibilidades que os
consumidores funcionem como “parceiros” da própria instituição, fazendo com que
“fiscalizem” a atuação desses vendedores:
1. Se for usada linguagem racista, sexista ou ofensiva com público em geral, a
equipe da OCAS ou das instituições parceiras;
2. Se houver comportamento agressivo ou violento contra o público ou qualquer
integrante da organização ou instituição parceira;
3. Se o vendedor oferecer Ocas” bêbado ou sob influência de drogas ilícitas;
4. Se o vendedor brigar por ponto de venda com outros vendedores da revista ou
com outras pessoas que ganham a vida nas ruas;
5. Se pedir qualquer tipo de doação enquanto usa o crachá de identificação da
Ocas”;
6. Se usar o nome da OCAS ou da revista para pedir qualquer coisa para o público;
7. Se vender edições atrasadas da Ocas” sem informar o leitor;
8. Se pedir um valor superior ao preço estipulado na capa da revista;
9. Se estiver acompanhado de criança durante a venda da publicação;
10. Se oferecer outros produtos ou serviços que não ESTEJAM CLARAMENTE
VINCULADOS À OCAS enquanto identificado como integrante deste projeto.
Solicitamos que tal ocorrência seja comunicada à OCAS. Os vendedores
identificados com o equipamento da organização (crachá, colete, camiseta etc.)
são orientados a vender exclusivamente a revista e/ou produtos diretamente
relacionados ao projeto.
Acompanhando as páginas informativas da revista, está registrado nos
exemplares da Revista Ocas” o seu sentido de transformação social, de ser uma
possibilidade de recuperação e dignidade para pessoas em situação de vulnerabilidade
social.
Em decorrência de seu trabalho coletivo e em equipe, abrangendo uma
coletividade de participantes, o projeto indica uma forma de humanização mais ampla
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 13
150
do que a atuação com os vendedores. Ao longo dos anos, observa-se a participação
da equipe que integra a redação, a editoração e o conselho, assim como pessoas e
entidades voluntárias que colaboram. A partir deste âmbito, entende-se o engajamento
político e social da Ocas” e a sua dimensão como movimento de renovação e de
transformação social.
Algumas demandas foram supridas com a publicação de anúncios de projetos
sociais da Coca-Cola. Salientam-se algumas parcerias: com a W/Brasil, em 2004 que
foi uma grande campanha de divulgação; ocorreu também o apoio do material gráfico
das Gráficas Litokromia, Viva Cor e MPV 7, da Votorantin Celulose e Papel, doação
de 5,3 mil reais da Fase em 2006. Entre outros patrocínios destacam-se os da revista
alemã Biss, também membro da INSP. Realizou-se doações frequentes desde 2008,
tendo repassado um total de 10,5 mil euros em serviços de assessoria de imprensa.
Desde 2011, dependem da parceria com a Lead Comunicação, Agência Yo – parceria
responsável pela identidade visual do site OCAS – e pela confecção de anúncios
institucionais, entre outros serviços.
Registram-se também recursos financeiros pela participação em editais públicos.
Assim, vigoraram as premiações: do Edital Pontos de Mídia Livre, do Ministério da
Cultura (MinC) em 2009 e 2010, do Edital Ponto de Cultura (MinC) e Secretaria
de Estado da Cultura de São Paulo (60 mil reais por ano em três anos). Pode-se
criar o Ponto Cultural OCAS que se iniciou em 2010 e se estendeu até 2012. Esse
projeto permitiu a realização de oficinas não só para os vendedores como também
para a comunidade do local. Foram realizados saraus com dança, teatro, música
e declamação de poesia. Da parceria com a Pinacoteca do Estado organizou-se
oficinas de fotografia dentro e ao redor do museu. Dessas experiências surgiram: o
livreto Sabedoria das Ruas; a exposição que permaneceu durante um mês na Livraria
Bookstore (Centro de São Paulo); a biblioteca comunitária do Brás e o livro Ecos da
Ocas: a história da revista que promove transformação social.
6 | UNIVERSO DE ATUAÇÃO
A inicial confecção de 15.000 exemplares mensais e a capacidade de atendimento
estimada até 120 vendedores não teve vida longa (SEIDENBERG et alli, p. 60). Após
quatro anos de circulação, eram 25 a 30 vendedores ativos e com vendas regulares,
embora fossem 50 cadastrados. “O resultado de mais de dez anos de estrada é, sem
dúvida, compensador. Desde o início da circulação da Ocas”, foram vendidos mais de
520 mil exemplares, o que representa mais de 900 mil reais destinados diretamente
ao público beneficiário. Até o final de 2013, atingiremos a marca de 1 milhão de reais
(SEIDENBERG et alli, p. 70). Atualmente, informaram-nos que há 10 vendedores
ativos em São Paulo e 7 no Rio de Janeiro. O blog da entidade, que vigora desde
2002, informa que a Ocas” beneficiou mais de 1,7 mil pessoas, possibilitando uma
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 13
151
transferência de renda para esse grupo de cerca de R$ 660 mil, por meio da venda
330 mil exemplares da revista. (Site: www.ocas.org.br.)
A publicação da revista foi mensal desde o no1 até o no49, de setembro-outubro
de 2006 (SEIDENBERG et alli, p. 55), tornou-se depois bimestral. Em abril-maio
passado lançou-se o no100; em 2012, eram 5 mil exemplares por edição (ib:56).
Conforme informações dos atendentes, o número de exemplares permanece nessa
faixa. O preço de capa da revista nos primeiros exemplares era de R$2,00 sendo
que R$1,50 da capa se destinavam para o vendedor. Em 2012, registra-se o preço
de R$4,00, sendo R$3,00 para o vendedor. Finalmente, registra-se o preço de
R$5,00, sendo que R$3,00 vão para o vendedor. Para iniciar o trabalho, o vendedor
recebe dez revistas gratuitas e depois compromete-se na dinâmica de compra
descrita. Isto evita que o candidato desloque interesses do programa mediante um
trabalho de conscientização. A “fase de passagem” que pode incidir, pelo desvio nas
programações, é um risco inevitável.
Ao conversar com os vendedores vários falaram que a média de vendas é de
dez exemplares diários. Há situações de pico em fins de semana ou exposições
renomadas o que permite duplicar ou triplicar os ganhos. É preciso registrar que os
vendedores se tornam ágeis em relação à questão do “saber vender”. Contam com
oficinas especializadas sobre o tema e são disciplinados em colocar seus conflitos
e barreiras junto a uma psicóloga Maria Alice Vassimon, que os acompanha desde
o início. Ela os atende na sede como em seu consultório particular. Observa-se que
falam com influência termos da psicologia implicados nas suas experiências. Ouve-se
“estou pouco animado”, “passei muitas dificuldades”, “estou com uma baixa-estima”,
“a gente sabe que tem que convencer o cliente”.
É sempre destacado o caráter contrastante da revista Ocas” com o jornal Boca
de Rua, de Porto Alegre, o qual está articulado aos moradores de rua. O jornal O
Trecheiro é também distinto, seguindo a situação de viver na rua. Ao se falar do
ambiente cultural com que o vendedor de Ocas” se familiariza, destaca-se o slogan
“saindo da rua”, retirado da capa da revista publicada em 2010, acusa uma maturidade
dos seus objetivos nesse empenho de reconstrução humana.
7 | OS VENDEDORES: ESPAÇOS DE VENDA E CONVÍVIO CULTURAL
Entende-se que a ênfase cultural expressiva das representações coletivas
refere-se a forma como o vendedor e o consumidor estão envolvidos nos contextos
conhecidos como “pontos de venda” pelo movimento. Os vendedores recriados na
dinâmica cultural alojam-se em locais temáticos da vida urbana. São espaços de poder
que têm como marca, no universo simbólico descrito, uma mediação comprometedora
com a cultura entendida como expressão da arte, do conhecimento e da literatura.
Criam-se “territórios” que formam um mapeamento original de obtenção, acesso da
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 13
152
revista, convívio e destaque do despossuído como um vendedor. São: museus, centros
de reunião e divulgação cultural; são espaços de saber erudito, mas, sob um domínio
público. Compõem-se um despertar de vida que se constrói que se quer construir na
dimensão épica e vitoriosa do saber e da inserção social do sujeito vendedor que
transita ser um vencedor de obstáculos. É diante desta impressão interna de um
fenômeno em construção que se destaca o limite claro da sua ordenação: “não morar
na rua”, “sair da rua”.
Desta forma, surgem descobertas, atitudes, pontos de vistas e preferências
que se canalizam para conhecimentos e decisões; os vendedores retratam-se como
sujeitos de valor e criativos. Desvendam-se conteúdos, expressos por Rudio (2007,
p.71), como próprios da pesquisa qualitativa, a qual estabelece um vínculo com as
subjetividades e os discursos em construção. Comprometendo-se com o sentido
militante e de transformação aqui descrito, os pesquisadores têm compartilhado
das experiências dos vendedores, visitando esporadicamente os lócus de venda.
Destacam-se espaços aleatórios os quais mobilizam concentrações como os metrôs,
parques, universidades. Em São Paulo, os pontos fixos geralmente colocam em
destaque um vendedor específico.
Em São Paulo são pontos centrais de venda: o Espaço Itaú de cinema – (Rua
Augusta, 1470/1475), Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Álvares Penteado,
112), Caixa Belas Artes (Rua da Consolação, 2423), Fnac (Alameda Santos, 960),
MASP (Avenida Paulista, 1578), Pinacoteca do Estado (Praça da Luz, 2), Feira de
Artesanato Benedito Calixto (Praça Benedito Calixto). Já o Centro Cultural do Banco
do Brasil (CCBB) é também um importante ponto de venda no Rio de Janeiro. Aí se
destacam o Espaço Unibanco de Cinema, Cine Odeon, Cine Estação Botafogo e
algumas universidades.
Rubens Lopes, que participa como vendedor (com 44 anos, com histórico de
abandono familiar e vida em albergues como morador de rua), conheceu o projeto em
2005, há quase dez anos, considera que a venda da revista mudou sua vida (Ocas”,
no 96, julho-agosto 2014, p.6-7). Há alguns anos, reside em um quarto de pensão, no
bairro do Bexiga. Sobre a revista afirma: “Significa trabalho, renda. Uma maneira de
me manter, pagar minhas contas e não depender de abrigos ou ficar na situação de
rua como eu estava. Ela me dá o suporte que eu preciso” (ib). Seu ponto de venda
é a Pinacoteca, ao lado do Jardim da Luz, tornou-se um espaço de sua iniciativa e
intimidade; ele completa dizendo: “eu convenço os visitantes sobre um trabalho. Sinto
que muitos já se tornaram meus conhecidos” (ib).
Diferente de outros vendedores, como Ana e Roberto, Rubens não costuma
frequentar o interior das exposições para onde se dirigem os seus “clientes” (a
Pinacoteca). Já Ana viu muitas exposições do MASP, na frente do qual ela ordena
sua atuação. Assim, comentou sobre a exposição de Portinari (as séries bíblicas e
retirantes; a Arte Iorubá: Do coração da África). Roberto afirmou que sempre participa
de eventos. Ele viu um filme da Mostra Internacional de Cinema (2014), obras das
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 13
153
exposições do CCBB-SP; na exposição “Os Impressionistas” ficou comovido com o
autorretrato de Van Gogh. Roberto, na Feira Benedito Calixto, vivencia aos sábados
de um ambiente de tradições e antiguidades; ele gosta de ir na área de alimentação,
onde diz que saboreia com frequência “uma feijoada”. Pode-se ouvir do vendedor
Roberto que em situações atrativas de grandes públicos, ele vende de vinte a trinta
números em um dia.
Observou-se o caráter atrativo com que as notícias absorvem os vendedores,
unindo-os aos públicos de um meio cultural erudito. Reconhecem os temas e
personagens das entrevistas contidas nas revistas e falam com familiaridade de
acontecimentos que “prendem o cliente”. De passagem, registra-se que as entrevistas
e notícias das revistas estão ligadas às situações de periferia, de ascensão social de
personagens, de temas ligados a luta social e contra a discriminação. Lembremos
também que a Ocas” desenvolve oficinas informais e esporádicas de discussão sobre
os conteúdos da revista.
Como diz a OCAS” (n.o98, p.20):
Mas não é só o dinheiro que importa para eles. Aliás, como qualquer um de nós,
muitas vezes eles querem simplesmente estar com o outro, ouvir, falar e até ser o
centro das atenções, mesmo que por alguns minutos. E essas experiências não
têm preço e sim valor.
Emergem informações correntes sobre o perfil do vendedor: trata-se de um
grupo social que vive em condições de extrema privação, que sofre preconceito,
que encontra dificuldade para ingressar no mercado de trabalho formal por não
ter escolaridade e endereço (SEIDENBERG et alli, p. 61). Diante de observações
realizadas nos pontos de venda e exposições, os consumidores são pessoas jovens,
adultos e estudantes universitários. Há um público ligado à vida cultural (professores,
artistas), que acolhem o movimento e são leitores assíduos da revista. Entende-se
que o sentido de reinserção do morador de rua atua em um espaço simbólico que
se produz de forma pública. Ele se torna público justamente por ser compartilhado
(WALTY, 2007, p.202).
As reflexões que aqui realizamos apresentam múltiplos significados que ganham
sentido em um momento, no qual tempo-espaço articula indivíduos fragmentados
e individualizados, porém expressivos de suas subjetividades sob um processo de
conscientização de valores e formação de identidades. Constroem-se ferramentas
representadas pela mídia alternativa, a revista Ocas”, no campo dos street papers.
Com doze anos de percurso, a iniciativa tornou-se efetiva pela construção do
sujeito despossuído, considerado em situação de vulnerabilidade social como um
sujeito capaz de desempenho e autonomia. Sobretudo, criou-se um foco central de
pertencimento: a Ocas”.
As aspirações de êxito de todos que se comprometem na questão social tornamse efetivas pela construção de valores compartilhados. Nestes, a questão cultural
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 13
154
atravessa fronteiras ou talvez barreiras na sua definição que corre entre representar
a periferia, o semi-alfabetizado, o saber cotidiano, “viver sem nada ter” e de outro lado
a demanda erudita e intelectual própria dos meios elitizados. Dessa forma, procurouse olhar de perto e de dentro a cidade globalizada com a formação de iniciativas
expressivas de trocas e parcerias que aglutinam indivíduos projetados como sujeitos
de compartilhamentos e coesão social.
REFERÊNCIAS
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CEAS, n.61, maio-jun.1979.
HADDAD, Julio Cesar Mansur. Street papers: comunicação e inclusão social. Dissertação
apresentada ao programa de Pós-graduação em mestrado Comunicação da Faculdade Cásper
Líbero, São Paulo, 2007.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
IANNI, Octavio. A Sociedade Global. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira 13a edição, Brasil,
2008.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista
Brasileira de Ciências Sociais. vol. 17 no49, p.p.11 a 29, junho de 2002.
PERUZZO, Cecilia M. Krohling. Conceitos de comunicação popular, alternativa e comunitária
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ROZENDO, Suzana da Silva. Ocas” e Hecho em Buenos Aires: Um outro tipo de jornalismo na
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RUDIO, Franz Víctor. Introdução ao projeto de pesquisa científica. Petrópolis: Vozes, 2002.
SEIDENBERG, Márcio (org) et allie. Ecos da Ocas”: a história da revista que promove
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VALVERDE, Franklin L., GODOY, Marília G.G., VIEGAS, Rosemari F.. Revista Ocas”: a comunicação
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congreso.pucp.edu.pe/alaic2014 .
WALTY, Ivete Lara Camargos. Mobilidades culturais: o exemplo das revistas alternativas urbanas.
Scripta, Belo Horizonte. v.11. n. 20, p. 196-204, 1o sem. 2007.
Revistas Ocas” desde o no 15 (outubro de 2003) até o n.o99 (janeiro-fevereiro de 2015).
Sites:
www.ocas.org.br.
www.insp.com.br. Internacional Network of Street Papers.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 13
155
CAPÍTULO 14
doi
CRIAÇÃO DA PRIMEIRA TV EDUCATIVA DO BRASIL A IMPLANTAÇÃO DA TV UNIVERSITÁRIA, CANAL 11:
EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E AS RELAÇÕES DE PODER
Maria Clara de Azevêdo Angeiras
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
Recife – PE
* Trabalho apresentado no Grupo Temático: GT 6 – História da
Mídia Audiovisual e Visual, do Encontro Nordeste de História da
Mídia, evento componente da Alcar - Associação Brasileira de
Pesquisadores de História da Mídia, realizado na UFAL, de 04
a 05 de agosto de 2016.
RESUMO: Sob a égide da massificação
da educação para a formação de recursos
humanos capaz de atender às necessidades do
desenvolvimento econômico do país, almejado
pelo regime militar, a TV Educativa encontrou
condições favoráveis para o sua implantação.
Nas relações de poder, a política educacional
e a regulamentação da radiodifusão como
precursores da criação da TV Universitária,
Canal 11. Nascia a primeira TV Educativa do
Brasil.
PALAVRAS CHAVE: Educação, comunicação,
televisão, história e radiodifusão.
regime, Educational TV
found favorable
conditions for its implementation. In power
relations, educational policy and the regulation
of broadcasting were presented as precursors of
the creation of University TV, Channel 11 UHF.
The first Educational TV in Brazil was born.
KEYWORDS:
Education,
communication,
television, history and broadcasting.
1 | INTRODUÇÃO
Este artigo, apresentado no Encontro
Nordeste de História da Mídia (2016) é parte da
pesquisa de mestrado em Educação (PPGE/
UFPE), com foco na Comunicação, “Televisão
e Educação: História da criação da primeira
TV Educativa do Brasil - TV Universitária,
Canal 11” (2015), trazendo à tona, através
de documentos históricos confrontados à
História Oral e embasados na fundamentação
teórica, o resgate histórico de uma história não
CREATION OF THE FIRST EDUCATIONAL
TV OF BRAZIL - THE IMPLEMENTATION OF
UNIVERSITY TV, CHANNEL 11: EDUCATION,
COMMUNICATION AND POWER RELATIONS
documentada. Posteriormente, esse estudo
deu origem ao livro: “TVU Canal 11 – A primeira
TV Educativa do Brasil” (2018).
Antes de tratarmos sobre a criação da
ABSTRACT: Under the aegis of the massification
of education for the training of human resources
capable of meeting the needs of the country’s
economic development, aspired by the military
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
primeira TV Educativa do Brasil, é necessário
explicitar que, definido pelo Decreto 236, de 28
de fevereiro de 1967, a radiodifusão educativa
é o serviço de Radiodifusão sonora (rádio) ou
Capítulo 14
156
de sons e imagens (TV) destinado à transmissão de programas educativo-culturais,
que, além de atuar em conjunto com os sistemas de ensino de qualquer nível ou
modalidade, visa à educação básica e superior, à educação permanente e à formação
para o trabalho, além de abranger as atividades de divulgação educacional, cultural,
pedagógica e de orientação profissional.
Podem pleitear a outorga para a execução de serviços de radiodifusão com fins
exclusivamente educativos as pessoas jurídicas de direito público interno, inclusive
universidades, que terão preferência para a obtenção da outorga, e fundações
instituídas por particulares e demais universidades brasileiras. É admitida, na
radiodifusão educativa, apenas a transmissão de programas educativo-culturais. Os
programas de caráter recreativo, informativo ou de divulgação desportiva poderão
ser considerados educativo-culturais se neles estiverem presentes elementos
instrutivos ou enfoques educativo-culturais identificados na sua apresentação
(LOPES, 2011, p. 8).
Os valores e leis que fundamentaram a TV Educativa transitam pela política
educacional e regulamentação da radiodifusão no Brasil, sob o impacto do cenário
sociopolítico. O modelo desenvolvido o país levou em conta modelos de TVs
educativas já existentes nos Estados Unidos, Japão e Itália. Referimo-nos ao período
quando o conteúdo veiculado era regido pelos grilhões da censura, numa época em
que a sociedade clamava por educação superior, em que houve simultaneamente à
criação da primeira TV Educativa, o aumento do número de universidades federais no
país em meio a novos aprendizados e tecnologias. Um Brasil que dormia em berço
esplêndido e acordava entre Atos Institucionais, do ponto de vista jurídico coexistiam
a Constituição e o Ato, o que negava vários capítulos da carta magna. O “estado de
fato superava o estado de direito” (ALENCAR, CARPI, e VENÍCIO, 1996, p. 399).
O Brasil de 1968, apesar da baixa renda per capita, “ocupava o 9º lugar entre
os 110 países com aproximadamente 4,5 milhões de receptores, apresentando uma
produção anual de cerca de 500 mil unidades” (SOUZA, 1969, p. 293). Considerando,
dentre outros aspectos, os inúmeros problemas existentes nas áreas da educação,
saúde e agricultura, também o alto nível de crescimento demográfico, o avanço da
industrialização e índices de 40% de analfabetismo, de acordo com então ministro
da Educação e Cultura Jarbas Passarinho (1969), trazendo a necessidade imediata
de integração nacional dentro das metas do governo militar, coube-nos uma reflexão
sobre a potencialidade do uso da TV na minimização dos mesmos.
A educação brasileira teria como objetivos primordiais a formação de uma estrutura
de recursos humanos capaz de atender às necessidades econômicas do País e ao
aprimoramento do processo de democratização de oportunidades, indispensável
a seu aperfeiçoamento político e social. [...] Não alcançaremos, entretanto, em
toda a plenitude e a prazo razoável, as metas desejáveis se utilizarmos o sistema
tradicional – a escola (SARAIVA, 1969, p. 266).
Nesse contexto, A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 4.024, de 20 de dezembro
de 1961 previu em seu Artigo 99: “Aos maiores de 16 anos será permitida a obtenção
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 14
157
de certificado de curso ginasial, mediante a prestação de exames de Madureza,
após estudos realizados em a observância de regime escolar.” A segunda LDB
5.692, de 11 de agosto de 1971, estabeleceu em seu Artigo 51: “Os sistemas de
ensino atuarão junto às empresas de qualquer natureza, urbanas ou agrícolas, que
tenham empregados residentes em suas dependências, no sentido de que instalem
e mantenham, (...) receptores de rádio e televisão educativos para seu pessoal.” A
entrada de capital estrangeiro resultou numa série de acordos MEC-USAID, realizados
entre o Ministério da Educação e Cultura e a United States Agency for Intenational
Development (USAID).
Dentre as metas da USAID estava “modernizar os meios
de comunicação de massa, com vistas a melhoria da informação e dos domínios da
educação extraescolar” (ROMANELLI, 2012, p. 2018). Estava criado o cenário para a
nascimento da primeira TV Educativa do Brasil.
2 | A IMPLANTAÇÃO DA TVU: EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E AS RELAÇÕES
DE PODER
A ideia para o projeto da TV Universitária, emissora aberta (broadcasting) da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), surgiu do pioneirismo do professor
Manoel Caetano Queiroz de Andrade, catedrático de Engenharia e de Desenho
Geométrico do curso de Arquitetura, que se empolgou com o uso de vídeo para
ensinar Artes e Ofícios através da tese “Como Ensinar Desenho pela Televisão”,
da professora Fernanda Ferracini, cuja pesquisa mostrou o uso da TV de forma
institucional. Isso ocorreu no mês de outubro de 1963, durante I Congresso Brasileiro
de Professores de Desenho, evento patrocinado pela congregação de Escolas de
Belas Artes de todo o país, com o apoio do reitor Murilo Guimarães e do vice-reitor
Jônio dos Santos Lemos.
Em julho do ano seguinte, em São Paulo, o professor Manoel Caetano pôde
observar a constatação desse trabalho. Sob a orientação da Professora Marília
Antunes um programa de TV obtinha melhoria dos níveis de aprendizado, como
relatou o catedrático:
Voltando ao Recife, o Prof. Jônio Lemos, então Vice-Reitor da Universidade Federal
de Pernambuco, se entusiasmou pela ideia e consultou o Reitor Murilo Guimarães,
a respeito da possibilidade da instalação de uma estação aqui em Recife. Logo
de pronto o Prof. Murilo Guimarães reagiu de uma forma favorável, achando que
seria muito interessante, muito importante a realização de um trabalho desse tipo
(ANDRADE, apud TVU 1999).
A iniciativa para pleitear a outorga de um canal educativo foi levada ao Conselho
Universitário e dividiu opiniões na comunidade acadêmica já fragmentada pela
crise do ensino e as mudanças sobrevindas da Reforma Universitária. Em pauta,
prioritariamente, estava o projeto de reestruturação da universidade pública brasileira,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 14
158
amplamente discutida em sua imposição legal, que em meio à tensão sociopolítica
provocou reações contrárias à sua aplicação, como declarou o professor e membro
do conselho, Manoel Correia:
[...] planos profundamente teóricos e inteiramente divorciados da realidade
brasileira, o que a meu ver vai provocar, em lugar de melhoria de eficiência, uma
determinação da universidade como centro de estudos e de pesquisas. Prevendo a
série de problemas que advirá para a universidade e a diminuição de sua eficiência
à proporção que a presente reformulação for sendo aplicada, quero me eximir de
responsabilidades no futuro quando a universidade não for capaz de fornecer ao
país em desenvolvimento os técnicos e os cientistas de que o país necessitará.
Assim como cidadão. Como professor catedrático concursado e como conselheiro,
participo dos debates sobre a reformulação apenas para diminuir, atenuar os males
que a reformulação trará a esta universidade e consequentemente ao Nordeste e
ao Brasil (CORREIA, Manoel apud ATA CONSELHO UNIVERSITÁRIO UFPE, 1967,
p.106).
Arealização da Reforma Universitária exigiu mudanças estruturais que envolveram,
dentre outros aspectos, a reorganização das tabelas analíticas de distribuição do
pessoal docente, a distribuição das disciplinas tanto na grade curricular, quanto na
sua alocação junto aos novos respectivos departamentos e Centros Acadêmicos, e
a distribuição dos Órgãos Suplementares, passando, claro, pela reforma filosófica e
estatutária. O prof. Manoel Caetano levou adiante a ideia com o apoio do então Reitor
Murilo Humberto de Barros Guimarães e “em fins de 1964 foi encaminhado o ofício ao
presidente do Conselho Nacional de Telecomunicações – CONTEL, com a proposta
de concessão de um canal que chegasse à UFPE” (ANDRADE, apud TVU 1998).
Partimos também para um compromisso pessoal com ele (o Reitor) no sentido de,
estagiando em várias televisões nacionais, fazendo um programa de estudo de tudo
o quanto existia de Televisão no país, produzindo até um tape nacional dublado em
Inglês, a respeito das origens do Carnaval em Pernambuco, para podermos partir
para uma segunda etapa de especialização nossa, que seria exatamente realizada
em vários países do exterior (ANDRADE, 1999).
No dia 5 de novembro de 1965 foram discutidas, no Conselho Universitário, as
exigências legais, impostas pelo CONTEL, para a implantação do canal educativo
na UFPE, como constou no inciso “a)” da Ata do Conselho Universitário, página 23,
desta data:
a) que a presente convocação foi feita em caráter de urgência, e em virtude da
necessidade de proceder à reforma do Artigo 2º , inciso V da EUFP (Estatuto da
Universidade Federal de Pernambuco), visando atender os planos de trabalho da
Universidade através da criação de uma estação de televisão, que se encarregará
de desenvolver atividades educativas. Para tanto, todavia, o CONTEL (Conselho
Nacional de Telecomunicações) exige que conste do Estatuto da Universidade, de
modo expresso, este tipo de atividade.
Na mesma reunião foi criada uma Comissão formada pelos professores Jônio
Lemos, Gilberto Osório e Palhares Moreira Reis, para discussão da matéria e posterior
submissão para aprovação final. Dentro do processo de reorganização estatutária
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 14
159
da UFPE, os Órgãos Suplementares, criados a partir de então, foram definidos de
natureza técnica e cultural, do ponto de vista administrativo diretamente vinculados
à reitoria e sem dispor de lotação de pessoal docente própria, estariam a serviço das
unidades de natureza afim, para efeito de ensino e pesquisa e assistência técnica,
dentre eles, a TV Universitária.
O retorno veio pelo assessor de Rádio e Televisão Educativa do MEC, general
Taunay Drumond Coelho dos Reis, que garantiu a reserva do canal. E em 4 fevereiro
de 1966, através do Decreto 57.570, o CONTEL cedeu a outorga de concessão do
Canal 11 VHF, à UFPE.
O contrato entre o CONTEL e a UFPE foi assinado no dia 28 de fevereiro de
1966, tendo como representante do Governo Federal o Capitão-de-Mar-e-Guerra,
Euclides Quandt de Oliveira; representando a UFPE, Manoel Caetano Queiroz de
Andrade e pelo CONTEL, o Tenente Coronel Alvaro Pedro Cardoso Avilla (Chefe de
Gabinete) e Lucy de Mello (Chefe do Setor de Atos da Divisão Jurídica). O contrato
especificou:
Clausula primeira – fica assegurado a Universidade Federal de Pernambuco,
o direito de estabelecer sem exclusividade na cidade do Recife, Estado de
Pernambuco, uma estação de radiodifusão de sons e imagens (TV), destinada a
executar o serviço de radiodifusão com finalidades educativas e culturais, visando
aos superiores interesses do país e subordinada às obrigações instituídas neste
ato.
Um pool de emissoras se desprendeu a oferecer equipamentos. Elas tomaram
conhecimento da demanda através de edital de concorrência pública; para fornecimento
e montagem, habilitaram-se as fabricantes das marcas Toshiba, Pye Co., Marconi e
Mesbla. A comissão especial encarregada da apreciação das propostas formada por:
Jânio Santos Pereira de Lemos (vice-reitor), Manoel Caetano Queiroz de Andrade,
Jarbas Augusto Ribeiro Maciel e George Brown e assessorada por Nédio Cavalcanti
(engenheiro eletrônico, formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA) e
Gildarte Giambastiane da Silva (Oficial de Comunicações do Exército), indicou como
vencedora a Toshiba.
[...] a Toshiba apresentou aparentemente mais dispendiosa. Todavia, a firma em
questão, ofereceu igualmente um equipamento mais completo e com maior número
de material sobressalente. [...] Desse modo, foi constatado que a proposta daquela
firma era a mais econômica. Ademais além de vencedora, no que concerne à
proposta, convém salientar que a aludida firma, após a concorrência e com auxílio do
convênio japonês, ofereceu vantagens altamente proveitosas para a Universidade,
tais como: sobressalentes para todas as peças do equipamento a ser instalado;
fornecimento gratuito de 500 aparelhos de televisão à Universidade e, finalmente,
no que concerne ao pagamento, as condições oferecidas pela Toshiba, foram: um
(1) ano de carência e oito (8) de financiamento (ATA CONSELHO UNIVERSITÁRIO
UFPE, 1966, p.146-147).
Na ocasião foi questionada se a oferta de peças sobressalentes feita pela
Toshiba indicaria fragilidade na qualidade do material, os esclarecimentos a essa
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 14
160
questão vieram do engenheiro Nédio Cavalcanti:
Com relação ao grande número de peças de reposição cotado pela Toshiba,
[...] demais propostas também constavam cláusulas especificando que 5% do
total da proposta deveria ser investido na compra de material de reposição. Por
outro lado, as peças mais utilizadas na manutenção de uma emissora de rádio
e TV são resistores, capacitores e válvulas, sendo que as primeiras (resistores e
capacitores) já são fabricados, em sua maioria, no Brasil e as válvulas do tipo
americano são também encontradas na praça (quer importadas, quer fabricadas
no Brasil) com relativa facilidade, e são estes tipos de válvulas que são utilizadas
nos equipamentos Toshiba, pois a referida firma, utiliza circuitos da General Eletric
Americana. Com relação à manutenção dos televisores oferecidos, pela Toshiba,
[...] os circuitos dos televisores japoneses obedecem ao mesmo sistema dos
televisores americanos e, consequentemente, aos circuitos utilizados na maioria
dos televisores nacionais e, deste modo, as peças de reposição serão encontradas
na praça com facilidade, e, portanto, bastará um técnico devidamente capacitado
para este fim (ATA CONSELHO UNIVERSITÁRIO UFPE, 1966, p.149).
Após a discussão da matéria, o Conselho Universitário aprovou por unanimidade
a instalação da TV Universitária na UFPE, indicando neste ato uma supervisão e
orientação da emissora. Para ilustrar a expectativa da comunidade acadêmica em
relação à implantação de um canal de TV aberta, coube-nos resgatar a declaração
do conselheiro Jorge Glasner:
No momento em que o Conselho Universitário da U.F.P. (UFPE) vota a instalação
de sua TV, o representante dos professores adjuntos deseja fazer uma declaração
de voto, na esperança de que esta Universidade ofereça às populações e às
comunidades, esclarecimentos e cultura nas ciências, nas artes, na tecnologia e
nas letras. Que este poderoso meio de difusão seja nesta Universidade, valioso
subsídio à instrução e ao desenvolvimento. Que seja a esperança de milhares de
pessoas, até então sem facilidades para o conhecimento da verdadeira ciência, da
verdadeira arte e da tecnologia. Esta declaração de voto é também a esperança
nas responsabilidades universitárias, no sentido de que, agora, tão preciosos meio
sirva tão somente ao nosso soerguimento cultural, não permitindo deixar cair em
esquecimento os grandes vultos do pensamento científico e artístico universal (ATA
CONSELHO UNIVERSITÁRIO UFPE, 1966, p.149).
Quanto à dotação orçamentária que garantisse o pagamento dos equipamentos
e demais despesas, foi solicitada verba própria para instalação da emissora e incluída
nos orçamentos da UFPE de 1967 a 1970. Destacamos que cabe a cada universidade
fixar suas diretrizes quanto à aplicação das verbas, através de seus planos de trabalho.
Os estudantes universitários aqui se revoltaram: Como é que vai trazer uma TV
Universitária para aqui e a gente vai ficar sem verba para a saúde, vai ficar sem
verba para engenharia, para eletrotécnica? E se revoltaram. [...] O professor Murilo
Humberto Guimarães passou por poucas e boas com o alunado daquela época,
que fazia greve, fazia revolta contra a TV Universitária, mas nem por isso ele deixou
de manter a TV Universitária. Quando inaugurou, foi a primeira TV Educativa do
país, depois vieram as outras TVs como a TV Cultura e outras afiliadas (CARNEIRO,
2014).
As divergências de opiniões também se manifestaram entre alguns professores
da instituição não se restringindo ao alunado, como vimos na declaração do Prof.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 14
161
Marcos Aguiar, registrado na Ata do Conselho Universitário, de 23 de agosto de 1968:
[...] a posição dos estudantes a respeito da Televisão Universitária é por demais
conhecida, de modo que vota contra, não contra a proposta de louvor ao Magnífico
Reitor, mas contra a orientação do governo no sentido de exigir Televisões
Educativas e de dispensar verbas específicas para este fim, havendo problemas
educacionais, no seu entender, muito mais urgentes. O presidente declarou que
é justamente por causa desses problemas educacionais que a TVU deveria
ser construída porque ela tem uma extraordinária função social, a saber, levar a
cultura a toda a comunidade pobre que não pode ingressar na universidade, [...]
em seguida, o presidente convidou a todos os conselheiros para visitar a TVU e
renovou seu pedido de que sejam apresentadas sugestões para a programação da
referida TV (ATA CONSELHO UNIVERSITÁRIO UFPE, 1968, p.121).
As etapas de realização do projeto foram registradas nos boletins oficias da
UFPE, descrevendo no Plano de Trabalho para 1967, desde a destinação orçamentária
até o registro do andamento das atividades, como, por exemplo, a expectativa da
comunidade acadêmica em relação ao encaminhamento das atividades, publicada
no boletim de março de 1967:
A Televisão Universitária – TV CANAL 11 – cujos trabalhos já foram iniciados, é um
dos mais importantes veículos de que a Universidade disporá, em breve, para os
seus trabalhos de divulgação cultural e de educação em todos os níveis, primário,
secundário, industrial e agrícola, com a colaboração de outros organismos de
ensino – e universitário, com a participação de todo o seu corpo docente. Com
sua implantação, a Universidade poderá levar a cerca de 30.000 ou 40.000
espectadores os benefícios que, atualmente, pode distribuir a cerca de 5.000
estudantes, isto somente se for considerada a área cultura de ensino superior.
De acordo com esse documento, os trabalhos da comissão de implantação
atingiram os objetivos de sua primeira fase, “tendo concluído a concorrência
do fornecimento do equipamento e iniciado a construção do edifício de estúdio e
transmissores.”
Abrimos aqui um parêntese para destacar alguns detalhes em relação à aquisição
do terreno onde foi erguido o prédio da TVU, que estão intrinsecamente ligados ao
futuro da emissora e ao cenário sócio-histórico e político. A escolha da localização para
a construção da TVU elencou alguns pontos importantes, que consideraram o terreno
situado na Av. Norte, esquina com a Rua da Fundição, uma escolha estratégica. Um
dos pontos foi a situação privilegiada de amplitude do sinal, observando-se também
que
[...] em virtude de as torres do Canal 2 e do Canal 6, estações comerciais que
funcionavam há cerca de oito anos, estarem próximas, o que permitiria ao
telespectador, com um simples movimento do “seletor de canais”, escolher qual
emissora desejar sintonizar (SANTANA, 2007, p. 96).
Outro ponto relevante foi o descarte da ideia de instalação da emissora no
Campus, que implicaria no uso de um transmissor mais potente, houve limitações
do Setor da Aviação também para instalação da antena para transmissão de microBibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 14
162
ondas, por tratar-se de rota de aviões.
O terreno em questão pertencia ao Exército Brasileiro, como patrimônio da União.
O Decreto 9.760, de 5 de setembro de 1946, que dispõe sobre bens da União, previa
a mudança de titularidade, portanto, foi necessário a UFPE solicitar sua transferência
do Ministério da Guerra para o Ministério da Educação. O processo percorreu um
longo caminho, de maio de 1966 até janeiro de 1967.
A sua tramitação incluiu diversos setores do Ministério da Guerra, Ministério
da Fazenda e Ministério da Educação e Cultura. O primeiro passo foi identificar e
desmembrar o lote específico para transferência. Assim, em 11 de maio de 1966, o
Diretor de Patrimônio do Exército, o General de Brigada Elysio Carlos Dale Coutinho,
especificou em ofício do Ministério da Guerra (1966):
[...] versando sobre a transferência de jurisdição do Ministério da Guerra para o
Ministério de Educação e Cultura, de uma área de terreno com 3.169m2, a ser
desmembrada do imóvel cadastrado no Almanaque Cadastral dos Imóveis sob
a jurisdição do Ministério da Guerra, sob o Nº PE-0048-D – Anexo do Quartel
Regional/7ª, situado na Rua da Aurora, Bairro de Santo Amaro, Cidade de Recife, PE,
com a finalidade de instalação de uma estação de televisão, para a Universidade
Federal de Pernambuco.
Na época, o Chefe do Estado-Maior do Exército, Gal. Décio Palmeiro de
Escobar, considerou de alta finalidade a utilização da área em causa, no Recife, e
observou, no estudo em processo, entendimentos posteriores a 5 de abril de 1966,
que a localização do local pretendido pela UFPE para construir as instalações da
estação de TV – Canal 11, com seus estúdios, transmissores e antena, na área
mínima necessária a essa finalidade se encaixava nas dimensões do terreno. A
Diretoria do patrimônio do Exército notificou ao Comandante da 7ª Região Militar,
Antonio Carlos Muricy, que esse terreno se encontrava pendente de julgamento de
embargos no Tribunal de Recursos, apostos por Júlio Carneiro Maranhão (conforme
apelação cível nº 17761/62). Posteriormente, esses embargos foram rejeitados pelo
Tribunal, desimpedindo a liberação do terreno.
Ainda no decorrer do processo, a Comissão Regional de Escolha de Imóveis
avaliou o terreno em Cr$ 391.332.480,00 (trezentos e noventa e um milhões, trezentos
e trinta e dois mil, quatrocentos e oitenta cruzeiros). As etapas seguintes incluíram as
aprovações e emissão de parecer a respeito.
Em Pernambuco, o Comando da 7ª Região Militar manifestou-se favorável à
transferência, por se tratar da montagem de uma estação de TV Educativa e não
afetar o plano de obras, conforme descrito em ofício nº 16-SPR, de 19 de abril de 1966.
A Diretoria de patrimônio do Exército e o Ministério da Fazenda também opinaram
favoravelmente à cessão gratuita, com a ressalva de que esta seria anulada, se fosse
dada ao terreno, no todo ou em parte, utilização diversa àquela a que se destinava,
devendo nesse ocorrido, o terreno retornar ao Exército.
Dessa forma no dia 2 de janeiro de 1967, foi assinado o termo de Cessão
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 14
163
Gratuita do terreno acrescido de Marinha, situado na Av. Norte, esquina com a Rua
da Fundição, com as seguintes dimensões, de aproximadamente: 77,00 (Norte – com
Av. Norte) x 42,00 ( Leste – com terreno sob a jurisdição do Ministério da Guerra) x
39,00 (Oeste – com rua da Fundição) x 79,50m (Sul – com terrenos acrescidos de
Marinha, pertencente a terceiros, pretendido à Fábrica da Crush), numa área total
de 3.169,00m2 (conforme planta em anexo). O Termo de Cessão Gratuita (1967)
especificou na Cláusula Terceira:
a) O imóvel será utilizado na construção de uma emissora de televisão, com
finalidades educacionais a cargo da ascensionária, constituído de estúdios,
transmissores e antenas;
b) A Cessão a que se alude este contrato tornar-se-á nula, independentemente de
Ato Especial e sem direito a qualquer indenização, se ao terreno for dado utilização
diversa da que é destinado; se dentro de 3 (três) meses não lhe for dada aplicação
ou ainda, se ocorrer inadimplencimento de cláusulas contratuais; [...]
O projeto arquitetônico original previu a construção 4,133m2, projetados para
atender às necessidades operacionais, entre salas, oficina técnica, marcenaria/
cenografia, biblioteca, switcher, master, ilhas de edição, videoteca, cinematografia,
auditório, além de dois estúdios com capacidade para abrigar 375 pessoas. Os
arquitetos Marlene Picareli, Valdecir Pinto e Antonio Didier, assessorados pelos
engenheiros Alberto Maluf, Nédio Cavalcanti e Manuel Caetano Queiroz de Andrade,
elaboraram a estrutura, projetada especialmente para atender às necessidades
operacionais de uma emissora de televisão. Observamos que o prédio da TVU, em
si, foi (e continua sendo) um marco da história da criação da TV Educativa no Brasil,
seja no processo referente à doação do terreno, que envolveu os poderes da nação
na época; ou no seu estilo arquitetônico e sua estrutura, caracterizada nas dimensões
dos seus estúdios e divisões departamentais, registradas nas plantas originais de
1966.
“No início de 1968 começava o desembarque dos equipamentos no Porto do
Recife, eram câmeras, transmissores, video-tapes, aparelhagem para película em 16 e
35mm, telecine e uma antena de 135 metros de altura, vindos do Japão” (ANGEIRAS,
1999), como destacou Otávio Carneiro, ex-servidor da TVU:
Eu comecei no barracão que ficava ali na Rua da Aurora (esquina com a Av.
Norte) e a televisão começou tocando a obra, os equipamentos estavam vindo
do Japão para a televisão que era o equipamento Toshiba e houve um naufrágio
com o transmissor, com todo o equipamento e o seguro teve que mandar outro
equipamento. Foi o primeiro transmissor valvular. Com esse transmissor passou-se
quase 30 anos com ele no ar [...] (CARNEIRO, 2014).
Junto com o equipamento Toshiba do Japão veio também o engenheiro japonês
Sakuarai, acompanhado de sua família. Ele passou dois anos trabalhando com a
equipe de profissionais brasileiros, na montagem e treinamento para utilização e
manutenção de toda a parte de transmissão e operação da emissora, incluindo o
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 14
164
equipamento de Cinema, usado na época também para reportagens.
Embora já existissem aqui em Recife duas estações de televisão, a TV Jornal do
Commercio e a TV Rádio Clube, já há oito anos, o número de técnicos nessa área
de televisão de broadcasting era muito escasso e na realidade não havia nenhuma
escola de eletrônica aqui. A própria Escola Técnica, naquela ocasião, não formava
ainda técnicos em eletrônica, então, tivemos que realizar um treinamento durante
sete meses para melhorar o nível de alguns técnicos, que naquela ocasião foram
recrutados aqui em Recife, principalmente técnicos em conserto de televisão
(CAVALCANTI, apud TVU, 1998).
Com a conclusão das obras de construção do prédio, começaram os testes de
transmissão; e em 28 de julho de 1968, foi para o ar pela primeira vez, em fase de
experimentação que durou até 21 de novembro, “o ainda hoje “milagre” da imagem e
do som conjugados no mais poderoso Meio de Comunicação: a emissão de TV.”
Finalmente, no dia 22 de novembro de 1968, foi inaugurada a TV Universitária –
Canal 11, “o braço mais longo da Universidade Federal de Pernambuco” (TVU, 1971),
sob a direção geral do Prof. Manoel Caetano Queiroz de Andrade, um visionário que
ousou pensar a escola fora da sala de aula. O evento foi muito prestigiado, com a
presença do governador de Pernambuco Nilo Coelho, prefeitos de várias cidades do
interior do estado, além de convidados especiais da área de educação e cultura, de
organismos governamentais das esferas federal, estadual e municipal.
Vários programas constaram dessa programação, ao longo dos dias 22 e 23 de
novembro, que foi encerrada com uma externa diretamente do Teatro de Santa
Isabel, com José Maria Marques, Maria de Jesus Baccarelli, Guido de Souza, Vanda
Lúcia, Tereza Cunha, Dolores Portela, Valdemar de Oliveira, Carmela Matoso, José
Carrioni, Cussy de Almeida, Salomé Parísio, Vicente Cunha, Eliana Caldas e a
Orquestra de Câmara da TVU, sob a regência do maestro Fittipaldi (SANTANA,
2007, p. 99).
A inauguração da emissora repercutiu na sociedade de forma positiva, como
relatou, em entrevista à nossa pesquisa, a Profª Maria de Jesus Baccarelli:
Muito moderna para a época, era uma televisão diferente das outras, porque era
uma televisão preocupada com a parte educativa, com a parte de arte em si, e não
tinha esse negócio de comercial, patrocínio não sei de quê, de fazer concessão
a aquilo ou aquilo outro. Era uma televisão muito, não sei bem se o termo seria
esse, era uma televisão pura. Quando a TV Universitária começou foi um impacto
mesmo, porque todo mundo queria ver, foi um negócio! [...] Ela tinha uma boa
estrutura técnica, os equipamentos eram os melhores que tinham, tudo muito bom.
(BACCARELLI, 2014).
Analisando a implantação da TVU, destacamos que a outorga da concessão
do canal foi concedida baseada na Lei 4.117, promulgada em 27 de agosto de
1962, e regulamentada em 1967, que rege a radiodifusão (ainda vigente). Essa
regulamentação impôs restrições que caracterizaram a separação entre radiodifusão
Comercial e Educativa, cabendo a esta última a transmissão de aulas, conferências e
debates, ao mesmo tempo em que vetou a transmissão de propaganda e patrocínio.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 14
165
A viabilização financeira das emissoras educativas se estabeleceu através do
desenvolvimento de projetos mediante verbas oriundas de convênios, além de serem
prioritariamente mantidas pelo orçamento da União.
Nos fatos observados durante a sua implantação, os direcionamentos transitaram
pelo campo político, onde este “é pois, o lugar de uma concorrência pelo poder que
se faz por intermédio de uma concorrência pelos profanos, ou melhor, pelo monopólio
do direito de falar e de agir em nome de uma parte ou totalidade dos profanos”
(BOURDIEU, 2000, p. 185). A força das ideias que ele propõe mede-se não pelo seu
valor de verdade, mas sim pela força de mobilização que elas encerram. Isso se dá
pela força do grupo que as reconhece, nem que seja pelo silêncio, na abstenção de
opinião pessoal.
As batalhas ideológicas travadas durante a Reforma Universitária e as
divergências de opiniões entre os “contra” ou “a favor” da criação da TVU na
comunidade acadêmica, docentes e discentes, refletem que não é por acaso que
a sondagem de opinião manifesta contradição entre dois princípios de legitimidade
antagonistas, a ciência tecnocrática e a vontade democrática, alternando questões
que convidam ao juízo de perito ou ao desejo de militante. Como afirmou Bourdieu
(2000), “é o que faz com que o campo da política oscile sempre entre dois critérios de
validação, a ciência e o plebiscito” (BOURDIEU, 2000, p. 185). “Afinal dirigir a palavra
“ao poder” significa reconhecer-se também como poder e até mesmo contrapoder”
(MONTENEGRO, 2007, p. 47), onde no palco das práticas discursivas o campo
minado é atravessado.
Ao contrário do capital pessoal, inerente que desaparece com a pessoa do seu
portador o capital delegado a uma autoridade política é produto da transferência
limitada e provisória de um capital detido e controlado pela instituição. Desse modo,
Bourdieu (2000) definiu o capital político como uma forma de capital simbólico, crédito
firmado na crença e no reconhecimento, onde o poder simbólico “é um poder que
aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce” (BOURDIEU, 2000, p. 188). O
registro da História Oral, obtido através das entrevistas, tornou-se elemento norteador
para desdobramentos investigativos. Em alguns momentos percebemos que o resgate
da memória foi imbuído do capital pessoal contido na subjetividade dos sentimentos
de pertencimento ao objeto de estudo e à própria história.
Na instância federal, a legitimação do projeto nacional de Televisão Educativa
concretizou-se a partir da iniciativa individual do professor universitário, e passo-apasso foi assumindo contornos políticos nas inúmeras operações de trocas simbólicas.
Na escalada dos degraus na hierarquia do poder, situaram-se o Conselho Universitário
da Universidade Federal de Pernambuco e os respectivos órgãos públicos ligados
às especificidades operacionais, da elaboração e realização propriamente dita,
transitando pelos Ministérios da Educação e Cultura, das Comunicações, da Fazenda,
da Justiça e Ministério da Guerra.
O modelo da TV Educativa adotado pela TVU, na prática, foi constituído
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 14
166
muito mais guiado pela experimentação, em alguns momentos distanciando-se do
ideário teórico contido nas perspectivas até então teorizadas. A análise da grade de
programação, que exibiu aulas do tipo telecursos, sincronizadas com as ações do
telepostos (pontos de recepção da TVU, com instalação de 500 aparelhos de TV) ou
como complementação de currículo previsto nas LDBs citadas (com aulas de EPB
e línguas estrangeiras, por exemplo), e os demais espaços ocupados por cultura,
esporte e informação, como descreveu Luiz Maranhão Filho, a seguir, refletiram uma
TV Educativa que nasceu, a exemplo das emissoras comerciais, copiando o modelo
radiofônico:
Daí o primeiro modelo de TV-Universitária no Brasil não ter sido a rigor um “modelo
educativo” e sim eclético. O recrutamento de toda uma equipe de profissionais no
mercado de trabalho existente à época, as televisões comerciais de Pernambuco
já em processo de esvaziamento diante do novo conceito de Rede que começava
a nascer no Brasil por insinuação estrangeira, completou a distorção. E o público
aceitou de pronto a nova televisão que fazia tudo o que as outras faziam sem ter o
inconveniente dos intervalos de publicidade; música, teatro, programa de auditório,
jornalismo, variedades e... eventualmente, algumas aulas (MARANHÃO, 1985, p.
2).
Os projetos de TVs Educativas surgiram da ideia de que mídias públicas
massificariam a educação, onde se vislumbrou a criação de uma rede integrada de
televisão educativa, capaz de interligar todo o território nacional. Atualmente a TVU,
opera em rede ligada a Empresa Brasileira de Comunicação – TV Brasil.
REFERÊNCIAS
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Livro Técnico, 14 edição.
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Capítulo 14
167
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______ Produção, ANGEIRAS, Maira Clara, Recife, PE, UFPE. Vídeodocumentário 30 Anos TV.,
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Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 14
168
CAPÍTULO 15
doi
REPRESENTAÇÃO SOCIAL DE PODER E REBELDIA NO
JORNALISMO IMPRESSO NO COMEÇO DO SÉCULO
XX – LITERATURA E ANARQUISMO EM PERSPECTIVA
HISTORIOGRÁFICA
Manuel Marquez Viscaíno Jr
Faculdade Zumbi dos Palmares (Licenciado)
São Paulo – SP.
RESUMO: As discussões sobre as relações
entre o jornal impresso e as formas de poder
ganharam significativa relevância no final do
século XIX e começo do século XX, quando
a expansão produtiva do capitalismo gerou os
fenômenos de massa em todas as dimensões
da realidade social atingindo fortemente o
imaginário coletivo por meio do jornal impresso,
então o principal meio de comunicação social. A
literatura ocupou um lugar central associandose intensamente com o jornal impresso e
transmitindo representações de poder e rebeldia
que permitem um vínculo com manifestações
políticas e ideológicas daquele momento, como
o anarquismo. Ao abordarmos obras como As
Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac (1843)
e Recordações do Escrivão Isaias Caminha, de
Lima Barreto (1909) revelamos imagens que
projetam a tendência histórica da comunicação
de massa à manipulação das informações.
PALAVRAS-CHAVE:
Jornal
Impresso;
Representação Social; Literatura; Anarquismo;
Poder.
ABSTRACT: The discussions about the relations
between the printed newspaper and the forms
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
of power gained significant relevance in the late
nineteenth and early twentieth century, when the
productive expansion of capitalism generated
mass phenomena in all dimensions of social
reality strongly affecting the imaginary collective
through the printed newspaper, then the main
means of social communication. Literature has
occupied a central place by associating intensely
with the printed newspaper and transmitting
representations of power and rebellion that
allow a link with political and ideological
manifestations of that moment, as anarchism.
When we approach works such as The Lost
Illusions of Honoré de Balzac (1843) and
Memories of the Scribe Isaias Caminha, Lima
Barreto (1909), we reveal images that project
the historical tendency of mass communication
to the manipulation of information.
Newspaper;
Social
KEYWORDS:
Representation; Literature; Anarchism; Power.
1 | INTRODUÇÃO
A
compreensão
representação
determinada
social
época
das
de
formas
poder
envolvem
de
numa
diversos
aspectos constitutivos da realidade social,
entre os quais é de grande relevância, a nosso
ver, as formas de comunicação social inerentes
aos diversos instrumentos de percepção da
Capítulo 15
169
dinâmica cultural, como foi o caso do jornal impresso entre o final do século XIX e as
primeiras décadas do século XX.
Nesse sentido, as relações pautadas pelas impressões do cotidiano adquirem
uma importância fundamental na percepção dessas relações de poder, pois criam
hábitos, formam valores, e interferem continuamente nos vínculos que se estabelecem
nas diferentes dimensões das sociedades, construindo, mas também desorganizando
e recriando formas de sociabilidade.
Numa perspectiva crítica, e por isso mesmo não monológica e nem dogmática,
entendemos que a história das mentalidades se constitui num campo de concepção
do fazer historiográfico essencial para entendermos tais processos. Partindo do
próprio homem, da sua experiência histórica e do tempo vivenciado, a história das
mentalidades, bem ao estilo de Jacques Le Goff (2001), não se detém na linearidade
expositiva de um fato originário, nem na impossibilidade de uma síntese totalizante
como a pretendida na historiografia marxiana, mas, a contrapelo, pretende encontrar
na montagem da obra historiográfica a recuperação da globalidade de um período e
os diversos níveis socioculturais em que os objetos de estudo se inserem, permitindo
também, pela interação com o sujeito do fazer histórico, seus objetivos e seu problema
de investigação, chegar-se próximo à mentalidade de uma época.
Sendo assim, renunciamos de imediato ao resgate da totalidade das produções
historiográficas, científicas, disciplinares e acadêmicas sobre o tema trazido aqui para
discussão, e nos aventuramos intencionalmente na reflexão sobre algumas obras da
literatura e dos vínculos temáticos estabelecidos aqui com as estruturas produtivas
e o anarquismo que podem nos permitir vislumbrar e questionar as relações sociais
de poder que envolveram a imprensa escrita no nascimento da massificação
capitalista, e de como tais relações de poder atingiram de tal forma o cotidiano que
não seria exagero supor que acabassem adquirindo um alcance tal que permitisse a
manipulação das informações e a construção de atitudes desejáveis ao indivíduo em
suas relações sociais.
É claro, assim o entendemos que o enfrentamento de possíveis manipulações
por parte da imprensa escrita, ascendente e dominante, pensada naquele momento
histórico, traz consigo embutido a construção de formas de resistência, rebeldia e luta
política por parte de determinados setores sociais atingidos mais fortemente pelas
intenções obscuras da manipulação das informações. Nesse sentido, a dialética
entre dominação e resistência se faz presente e acompanha a projeção histórica das
relações de poder e formas de representação social aqui estabelecidas.
No campo da literatura, e pensando centralmente nas relações estabelecidas
com o jornal impresso durante o processo de massificação nas sociedades capitalistas,
destacamos para reflexão a obra de Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías
Caminha, publicada inicialmente em Lisboa, em 1909, e a obra de Honorè de Balzac,
As Ilusões Perdidas, que teve publicação completada em Paris, em 1843.
Há inúmeras ligações que podemos fazer entre as duas obras, mas destacamos
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 15
170
inicialmente que o romance As Ilusões Perdidas, de Balzac, indicou um caminho
literário que se expandiu rapidamente e colidiu em sua abordagem com o nascimento
do jornalismo de massa de massa desde meados do XIX na Europa Ocidental. Já
as Recordações do Escrivão Isaias Caminha, de Lima Barreto, teve um impacto
fulminante sobre o entendimento das sombras que envolvem o mundo da imprensa
escrita e os bastidores dos grandes jornais da sua época, impacto esse que atingiu
o próprio autor em cheio, e deu considerável suporte ao entendimento do poder de
manipulação da nascente imprensa escrita de massa no Brasil durante o século XX,
rendendo ao autor, após sua morte, um lugar destacado como precursor na moderna
literatura brasileira, mas em vida, um execrável desprezo por parte dos círculos de
informação dominantes na grande imprensa escrita.
2 | AS ILUSÕES PERDIDAS COMO RESULTADO LÓGICO DA
EXPANSÃO DO
CAPITALISMO MODERNO
As Ilusões Perdidas, de Balzac, é considerada por Paulo Rónai (1978) a obra
mais significativa da sua vasta produção literária, confundindo-se com a própria
história de vida do autor. A história é bem conhecida, Luciano de Rubempré, a
personagem principal da obra, é um ambicioso jovem da província interiorana do
século XIX na França, poeta e incipiente romancista, que parte para Paris atrás do
sucesso das suas publicações, visando a fama e a aceitação na efluviante elite de
nobreza aburguesada parisiense, e contando com os parcos recursos da sua irmã
Eva e do cunhado David Séchard, os quais levaria literalmente à falência e à ruína
com suas desventuras e temeridades. Aventura-se então na capital francesa à época
da Restauração, impregnado pelos coquetes aristocráticos decorrentes da sua
associação oportuna com a Sr.ª de Bargeton, a qual logo o deixa à míngua.
Seria uma grosseria da nossa parte com os eruditos e especialistas literários que
se debruçaram primorosamente no entendimento dessa emblemática obra de Balzac
esboçar uma síntese de toda a narrativa de Balzac e debater, amiúde, conceitos
avançados no campo da estética literária e figuras de linguagem inerente à narrativa
balzaquiana. Cientes dos nossos limites e objetivos neste estudo, nos lançamos
diretamente aos pontos que nos interessam, contando com a compreensão do leitor
para esse recurso de método, nada sutil, aqui aplicado.
Assim, destacamos de imediato que a narrativa de Balzac expõe os meandros
da grande imprensa escrita à sua época, as sutis e até mesmo sórdidas formas de
manipulação das informações que se realizam na produção de um jornal com relativo
alcance social, e os conflitos e aflições a que se expõe o moderno jornalista desde
meados do século XIX, premido entre a suposta missão elucidativa do seu saber
fazer, e a aceitação lenta e gradual das formas de corrupção que precisa considerar
quando envolvem, fermentadas por suas ambições, a projeção do seu talento tanto
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 15
171
internamente na produção do jornal impresso e no respeito que ali se possa angariar
quanto nas relações sociais pretendidas, por meio da representação social que se
projeta a respeito do seu mérito e genialidade.
Um segundo ponto a ser considerado no romance de Balzac, quanto ao conteúdo,
diz respeito às vivas relações de poder e embates entre classes sociais e poderes
econômicos que a obra revela. Com efeito, Paulo Rónai (1978) considera a trama e seu
desenvolvimento inovadores em diversos sentidos. Na descrição das personagens e
do mundo que representam realizada por Balzac temos a percepção da decadente
aristocracia - ainda muito presente no meio rural francês mesmo após décadas da
tempestade revolucionária de 1789 - e das transformações econômicas e produtivas
que marcaram a expansão do capitalismo industrial na França até meados do século
XIX. É essa decadente aristocracia que é transformada nos círculos parisienses
elitizados em imagem, em estilo de vida refinado, ainda que validada somente pelo
lastro da fortuna monetária que cada vez mais responde a uma concessão ou um
falseamento de classe da ascendente burguesia. Faz par, assim, com essa decadente
classe aristocrática a ascende classe burguesa, estabelecendo uma anacrônica
simbiose somente compreensível no mundo ambíguo da cotidianidade.
Há ainda, o retrato vivo por parte de Balzac das agruras da vida operária e
principalmente dessa condição no meio produtivo essencial da sua obra, a oficina
de produção do jornal, do material impresso e publicado, as lidas com as máquinas
e suas cifras, custos, necessidade de inovações, a competição febril, a tipografia
e seu mundo em expansão. É nesse ambiente, nessa cotidianidade conflituosa e
ascendente exposta por Balzac, que encontramos, conforme Paulo Rónai, a figura
emblemática de David Séchard, uma das três personagens centrais da obra segundo
o mesmo.
David Séchard representa aquele gênio inventivo, operário e pequeno
empreendedor ao mesmo tempo, que, se luta desesperadamente para triunfar, sente,
não por infortúnio, como se pretende na interpretação corrente da limitação social
ao desejo de ascensão pelo trabalho, mas sim pelas fortes amarras que a expansão
capitalista impõe, o peso da constante dilaceração da alma e esgotamento do corpo
diante dos obstáculos concretos que se lhe impõem sistematicamente. Ainda assim,
a cada dia, levanta movido pela fé e acredita que haverá de vencer.
Encontramos também na narrativa balzaquiana essa classe social em que
radica o jovem estudioso, moldado por uma ética da virtude e uma moral férrea
motivadora da força criativa, viva, direta, que pretende se impor, por meio do esforço
estoico e obstinado a seus ideais, a esse mundo de submissões e favores que tanto
dilapidam o espírito e aprisionam a alma. Sobrevivendo como pode, mas pregando a
dignidade da perseverança e do destino da história aos justos, Daniel de Arthez era a
personagem ambígua que representava a alma do Cenáculo, associação de amigos
artistas e estudiosos, que, compondo um todo pelas partes que representavam,
dão uma formidável ideia do quanto os jovens idealistas são uma necessidade da
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 15
172
história moderna e do progresso da História, embora esta nem sempre faça jus ao
seu valor no presente. De Arthez, no entanto, expressa sob a genialidade de Balzac
a sentença que acompanha os jovens itinerantes que buscam o progresso em outras
paragens, movidos apenas pela fé e pelo talento, desejosos de reconhecimento e que
se deparam com a sordidez do poder econômico e das tramas políticas coniventes
com o apequenamento dos grandes ideais. A história de milhares de corpos e mentes
dizimados pelas amarras da dominação econômica e oprimidos pelas representações
de poder que gradualmente corrompem sua vontade transformadora. Se o abandono
da Sr.ª de Bargeton na hora das dificuldades foi a primeira desilusão, a dura e triste
realidade de não encontrar receptividade e aceitação do seu potencial, tornandose mais um no turbilhão que move as engrenagens, foi a segunda ilusão perdida
revelada por Daniel de Arthez.
No conjunto das três formas de personagem apontadas, com o perdão aqui por
não retratar minimamente as imprescindíveis personagens femininas projetadas na
imaginação fértil e significativa para as representações sociais de poder construídas
por Balzac, temos as imagens de uma síntese possível das lutas de classes que tão
explicitamente marcaram as sociedades modernas durante toda a segunda metade
do século XIX e princípio do século XX, lutas essas que se enraizaram nas estruturas
sociais e tomaram a forma cultural que permite desvendar as continuidades, as
projeções, as formações de imagens e juízos que se recriam nos valores.
Assim, como exemplo ambíguo e contraditório da primeira representação
social de poder nas personagens de Balzac, ainda que de um poder decadente se
não estiver lastreado por uma bolsa generosa em moedas, encontramos o jovem
Luciano de Rubempré, protagonista principal do romance de Balzac, e que expõe a
decadência do meio rural francês onde jovens empobrecidos ainda sonham com os
ideais da aristocracia e pretendem alcançar a fama e a notoriedade na grande cidade.
Movido a esse ideal, de status e riqueza, não por sua origem de classe, marcada
pela luta intensa para a progressão social e pela precariedade da vida no meio rural,
mas sim pela adesão a essa representação social de poder a que aspira, uma vez que
fora educado para triunfar desde sempre dilapidando os recursos da família, Luciano
de Rubempré oscila ansiosamente entre os deletérios meios sociais aristocráticos
parisienses, os quais, entretanto, somente se estabelecem satisfatoriamente se
estiverem ancorados na realidade arrogante da carta de créditos da classe social
burguesa. O nobre aristocrata, decadente, venderá sua imagem ao burguês
ascendente.
Mas, crucial no entendimento das personagens tão específicas e centrais
nas Ilusões Perdidas, está a clarificante proposição de Paulo Rónai (1978): as três
personagens apresentadas, Luciano de Rubempré, David Séchard e Daniel de Arthez
representam, cada uma com seu universo e conjunto de relações, a personalidade
ambígua e criativa do próprio escritor, Honoré de Balzac, bem como as contradições
entre as representações sociais de poder e as formas de rebeldia em que se debatia
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 15
173
seu espírito irrequieto e observador.
No centro de tudo, no núcleo da reveladora trama desenhada nas Ilusões Perdidas,
o jornal, a mídia jornalística impressa, a fábrica de noticiais, de modelos, de atitudes,
de opiniões. Balzac, o primeiro a publicar suas obras no gênero romance em folhetim
em 1836, conforme Luíza Alvim (2017) desencadeia a primeira grande crítica feroz
ao jornal impresso e aos jornalistas, feita de dentro, movida pela própria competição
entre as empresas jornalísticas pelos escritores em ascensão, as verdadeiras iscas
de atração da atenção das multidões de leitores por meio do interesse despertado
pelas publicações de novelas e romances em partes dramáticas nos folhetins.
O próprio Balzac se aventurou na impressão escrita, como seu personagem
David Séchard, mas, tentando se libertar dos condicionantes e privações de escrever
para os grandes jornais, terminou essa aventura de forma trágica. Por meio da
centralidade na sua narrativa no romance As Ilusões Perdidas, Balzac faz a crítica de
dentro das relações de poder envolvendo o jornal impresso e seus impactos sobre o
cotidiano das sociedades. Ancorada na sua experiência do mundo real, embora com
recordes de historicidade e subjetividade, o que não diminui, ao contrário, reforça o
peso da sua narrativa, sua crítica ao grande jornal impresso faria com que Balzac
sofresse vivas oposições e represálias desatadas pelas figuras sociais e interesses
econômicos que se sentiram atingidos pela magnitude da representação social
realizada por Balzac. Escrever se tornou, assim, um ato de luta e de resistência.
Trata-se, é crucial, de perceber-se que o cotidiano revela formas de poderes
esmagadores e dominantes que, no vir a ser da história, conduz também à
representação social de contrapoderes, forças de resistência, de enfrentamento,
de rebeldia, que escapam até mesmo à intenção dos criadores de imagens. Luíza
Alvim (2017) aponta, nesse sentido, que o gênero literário que consagrou escritores
como Balzac no gosto popular, o romance-folhetim atraiu crescentemente o interesse
de massas significativas de leitores acompanhando a expansão industrial e as
necessidades produtivas do capitalismo. O jornal foi a ferramenta privilegiada de
expansão dessa cotidianidade.
Reforçando uma aparente necessidade da época, do momento, do presente,
da imagem de modernidade, criavam-se laços firmes na cultura popular envolvendo
a consulta diária ao teor dos jornais impressos e as várias divisões de afinidades
eletivas que o mesmo contém. Enquanto isso aumentava a taxa de alfabetização
crescentemente nos principais centros urbanos europeus e a forma de novela
continuada dos romances folhetins fazia ganhar público, consumo e acúmulo de
capitais aos proprietários dos grandes jornais.
Nesse contexto, a denúncia de dentro e seu possível alcance, como no caso de
Balzac, permitem ao jornal impresso dialeticamente desatar uma força de atuação
contestadora nas sociedades modernas do século XIX e começo do século XX que
colocam jornais, jornalistas e o produto cultural desse processo num forte campo de
disputa ideológica. O jornal e o teor jornalístico inflamador, crítico, e denunciante de
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 15
174
aspectos vis da vida social são uma ameaça real aos detentores do poder econômico
e político. Em que pese sua popularidade e genialidade Balzac não deixou de ser
considerado ameaça, e foi enfrentado com vigor por grupos sociais identificados com
a manutenção do status quo vigente devido ao significado das suas representações
sociais:
Feito o desconto dos exageros resultantes do preconceito, deve-se reconhecer que
Balzac conhecia admiravelmente bem os segredos do jornal e deu uma série de
retratos de redatores e diretores [...] cada um dos quais é uma obra-prima. [...] O
poder desmoralizador da publicidade – que nem tinha nome então – é adivinhado
e desmascarado pela primeira vez.
Pelas ramificações do jornalismo chegamos a outros ambientes: o da indústria
editorial e o comércio dos livros, o dos teatros [...], o da política conluiada com a
imprensa, o da aristocracia conluiada com a política. Por trás de tudo, o dinheiro
agindo desavergonhada e impiedosamente... (RÓNAI, 1978, p.10).
Considerando a distância no tempo, e tantas mudanças econômicas, políticas
e sociais que as sociedades contemporâneas expressam, apesar das assimetrias de
desenvolvimento entre os centros de poder econômico e político mundial, não deixa
de ser viva a imagem que Balzac construiu sobre as relações de poder envolvendo
a imprensa jornalística e o alcance social do jornal em 1843. Foram estas, em toda
sua obra em vida, e isso não é pouco, as cores mais fortes e os traços mais incisivos
utilizados por Balzac, conforme enfatiza Paulo Rónai:
Exasperado, não sem motivo pelas injustiças dos jornais [...], Balzac, no entanto,
não estava apenas exercendo uma vingança pessoal. Sua observação divinatória
permitiu-lhe antever o imenso poder concentrado nas mãos do jornalista, e com
seu pessimismo inato descobriu todos os abusos a que esse poder se prestava.
Mais uma vez, o escritor pegou in statu nascendi uma das instituições essenciais
do século XIX, quando ninguém lhe percebia ainda a importância transcendental.
(RÓNAI, 1978, p.09).
Conforme Paulo Rónai, atacado pelo meio jornalístico empresarial dominante,
apesar de seu sucesso como atrativo aos capitais de que os meios produtivos
necessitavam, Balzac reagia com vigor e até mesmo descontrole, comparando tal
meio a doenças sociais que ameaçavam a nação. De fundo, ainda, a ideia de que
o jornalismo era na verdade uma degeneração da literatura, um comércio de ideais
úteis que gradualmente conduziria a sociedade à domesticação e ao declínio cultural.
Essa era, assim, a grande ilusão perdida (GAUDÊNCIO, 2017, p. 9).
Balzac assistiu ao auge, mas não ao declínio do estilo que criou - o romancefolhetim, que entraria em decadência na França após a Comuna de Paris de 1871 e
a impregnação pelo gênero de literatura de conteúdos conservadores e até mesmo
reacionários, vindo a desaparecer na França e outras regiões da Europa logo depois
da Primeira Guerra Mundial (ALVIM, 2017, p. 05).
Prevenida, as classes populares e principalmente os operários passariam cada
vez mais desde o final do século XIX a produzir seus próprios jornais impressos,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 15
175
fenômeno que teve relevância significativa no surgimento e expansão do anarquismo.
No Brasil, como economia periférica e culturalmente mais distante dos grandes
centros mundiais de poder político e econômico, o romance-folhetim teve uma vida
mais longa, caracterizando as obras iniciais de grandes escritores, como Machado
de Assis, que se tornou um ícone da literatura brasileira. Afonso Henriques de Lima
Barreto, da mesma época, teve os mesmos ímpetos de Balzac, mas com desfechos
e implicações bem diferentes. Trataremos destas questões a seguir.
3 | AS RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAIAS CAMINHA, DE LIMA
BARRETO
E O ANARQUISMO
O exercício historiográfico aqui realizado caminha pela produção de imagens,
associações de signos, símbolos, visando possibilitar a percepção de representações
sociais de poder e de formas de resistência tão bem significados pela história das
mentalidades conduzida principalmente por Jacques Le Goff e pelos conceitos
inovadores nos estudos realizados por Michel Focault. Somente por isso, em
contribuição aos objetivos deste incipiente estudo nessa temática das representações
sociais e formas de poder envolvendo a imprensa escrita nos propomos aqui a
desenvolver as relações intituladas logo acima, mais abrindo do que finalizando
questões.
Não pretendemos, novamente, atropelar tantos e tão cuidadosos estudos de
uma vasta produção historiográfica e literária que trata das duas possibilidades
compreensivas em relação ao nosso problema, dominação e resistência envolvendo
a imprensa escrita, permitidas pelo vetor reflexivo formado pela vida e obra de Lima
Barreto e o anarquismo. É necessário nos aferrarmos ao método e indicarmos um
único e possível caminho aos nossos objetivos: a representação social de poder
no jornal impresso na obra de Lima Barreto e a ação política e cultural presente
no anarquismo, o qual que se apropriou dos jornais impressos e o transformou no
principal instrumento autônomo de suas propostas e intenções políticas e ideológicas,
criando também um vasto campo cultural.
Lima Barreto nasceu, viveu e morreu na cidade do Rio de Janeiro entre 1881 e
1922. Filho de tipógrafo com trânsito entre monarquistas e funcionário da Imprensa
Nacional e de mãe professora de primário, Lima Barreto projetou em aspectos
concretos da sua própria vida o enredo criado para sua personagem principal, Isaias
Caminha, na obra aqui problematizada, As Recordações do Escrivão Isaias Caminha
(1909).
Há uma grande discussão na literatura brasileira sobre as obras centrais e mais
significativas de Lima Barreto. Recordações do Escrivão Isaias Caminha, publicada
em Lisboa em 1909, para alguns críticos literários não é sequer considerado um
romance em todo seu sentido literário, diz-se que há componentes falhos, imprecisões
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de narrativa, mas sim, para os objetivos deste estudo que realizamos essa é a grande
obra, suas representações sociais de poder, suas imagens, denúncias, a mentalidade
que transparece da narrativa, e os vínculos com o processo social vivido pelo próprio
autor são essenciais aos nossos propósitos.
Isaias Caminha é um jovem simples, de uma humilde família do interior do Rio
de Janeiro, que, a expensas da difícil situação em que vive com a mãe, utiliza-se
de um apadrinhamento formatado pelo coronelismo provinciano brasileiro de início
do século XX e parte para o Rio de Janeiro para estudar e realizar suas ambições
de nome e projeção social. A decisão é difícil, o jovem Isaias Caminha é inseguro,
mas persiste em seus objetivos, sofrendo decepções e privações em momentos
marcantes da primeira parte da narrativa, como se fossem sombras e aparições que
o alertassem do que estaria por vir, com mais intensidade de forma cruel.
O mal que se revela e que assola as pretensões do jovem Isaias Caminha
seria o mesmo de que padece a parte majoritária da sociedade brasileira desde os
primórdios da frágil constituição social da nação, uma dura e opressora discriminação,
a rejeição da cor, a negação pela parte dominante e criadora das estruturas de poder
na sociedade brasileira daquilo que há de mais comum no brasileiro, os seus traços,
sua mestiçagem, sua brasilidade, sua identidade distinta do padrão dominante do
europeu colonizador. Contraditoriamente, aquilo que mais se deveria valorizar no
povo simples brasileiro passa a ser fonte da maior repulsa e rejeição aos filhos da
terra.
Estudante de ofício, orgulhoso do seu talento e ambicioso, Isaias Caminha,
personagem que se confunde com momentos cruciais da vida de Lima Barreto,
enfrenta o empobrecimento, o engano, a invisibilidade, o desprezo dos políticos e das
instituições que deveriam zelar pela sua cidadania. A intriga insidiosa o leva à prisão,
à humilhação, ao desespero, ao rebaixamento do espírito, e, enfim, ao flagelo das
ilusões perdidas. Isaias Caminha sofre, amarga a rejeição e experimenta a revolta.
Aos poucos, com penúria e sofreguidão, o jovem Isaias Caminha abre caminho
na rígida sociedade carioca, e inserindo-se em círculos de jovens pensadores,
estudiosos, dilui gradualmente os círculos de isolamento que o excluem e empurram
à marginalidade social. Mas é por pena e compaixão que, enfim, recebe uma
oportunidade para trabalhar num ascendente jornal da época na cidade do Rio de
Janeiro, O Globo, momento em que Isaias Caminha consegue certa estabilidade,
passando a observar mais de perto os meandros e labirintos da imprensa escrita e
jornalística brasileira.
Nesse ponto, contudo, nos detemos na narrativa, pois a personagem de Lima
Barreto passa a realizar uma descrição do meio jornalístico na primeira década do
século XX no Brasil que revela tanto as perspectivas de representação social de
poder que o jornal impresso de grande circulação traz quanto a sordidez do meio e a
fraqueza de princípios e virtudes em que apoia sua inegável expansão econômica e
alcance social.
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As denuncias formuladas por Lima Barreto por meio de Isaias Caminha aos
meandros e práticas adotadas no jornal O Globo e as fortes imagens que constrói
atraem a ira do jornal em que de fato o escritor trabalhava, o Correio da Manhã, jornal
que se identificou desde sua origem e até seu encerramento, por contingencia das
perseguições movidas pela ditadura civil militar no Brasil, com um perfil de crítica aos
governos então representantes do poder político.
O poder que movimentou Lima Barreto, ele mesmo um pardo de aparência
humilde, estudante, atuante de forma discreta nas causas políticas mais libertadoras
da sua época, causaria um preço considerável a ser pago, o qual, em que pese a
continuidade da sua produção literária até a sua morte em 1922, procurou isolá-lo e
cercea-lo, contribuindo assim decisivamente para o alastramento da sua doença e
o desfecho da sua vida já em condições bastante precárias, após a internação num
hospital psiquiátrico.
É nítida a influencia dos principais romancistas da época sobre a obra de Lima
Barreto em Recordações de Isaias Caminha. Não há, para o leitor que transitou sobre
o romance histórico, como não se perceber o traço de Stendhal, Vitor Hugo, Emile
Zola, Tolstoi, Dostoievski, para ficarmos, com todo o respeito aos demais, nesses que
são citados na narrativa ou percebidos no traço da escrita.
Ao descrever em sua obra a entrada na redação do diretor do jornal O Globo,
Ricardo Loberant, e do redator-chefe do jornal, Aires d’Ávila, Lima Barreto constrói por
meio da sua personagem em Isaias Caminha uma representação social de poder que
poderia estar, talvez, apenas no campo da ficção, mas que, pela força da imagem,
ainda hoje sentimos a continuidade de tais relações entre os distintos grupos da
sociedade:
[..] Os dois penetraram na redação pondo na sala uma inexplicável atmosfera de
terror. Pelos longos anos em que estive na redação do O Globo, tive ocasião de
verificar que o respeito, que a submissão dos subalternos ao diretor de um jornal
só deve ter equivalente na administração turca. É de santo o que ele faz, é de sábio
o que ele diz. Ninguém mais sábio e poderoso do que ele na Terra. Todos têm por
ele um santo terror e medo de cair da sua graça, e isto dá-se desde o contínuo até
o redator competente em literatura e coisas internacionais.
Passando por entre as mesas, tal era a concentração das faces e o ar aterrado
daqueles homens tão arrogantes lá fora, tão sublimes na rua, que eu pensei que se
fossem atirar ao chão para serem pisados por aquele novo deus [...] (BARRETO,
S/D, p. 87).
É uma viva imagem de poder, da forma mais dominante de poder com a expansão
da administração cientifica sob o capitalismo financeiro, e dessa razão instrumental
que se consolidou com tal processo. Como enfrentar as formas de manipulação das
informações e o controle político e ideológico dos conteúdos de dentro, da produção
das informações, se, num ambiente semelhante ao da narrativa, está implícito no
contrato a submissão do amor próprio aos valores correntes e dominantes naquela
forma relacional de poder? Essa questão nos remete tanto ao pensamento de Michel
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178
Focault e às formas cotidianas de poder quanto a um aspecto central do legado
filosófico da Escola de Frankfurt, a associação entre uma ideologia controladora e
alienante vinculada à produção de uma cultura de massas e o cerceamento autoritário
à prática imposto pela razão instrumental.
E prossegue, Isaias Caminha, por meio de Lima Barreto, expondo sua indignação
pela maneira natural e convicta em que se desenvolve a manipulação das informações
e a corrupção dos fatos na edição das imagens lançadas ao cotidiano popular pela
imprensa:
Naquela hora, presenciando tudo aquilo, eu senti que tinha travado conhecimento
com um engenhoso aparelho de aparições e eclipses, espécie complicada
de um tablado de mágica e espelho de prestidigitador, provocando ilusões,
fantasmagorias, ressurgimentos, glorificações e apoteoses com pedacinho de
chumbo, uma máquina Marinoni e a estupidez das multidões.
Era a imprensa, a Onipotente Imprensa, o quarto poder fora da Constituição!
(BARRETO, S/D, p. 99).
Essa ideia, do quarto poder na ordem constitucional moderna, é algo que tem
raízes no campo das mentalidades e das construções críticas envolvendo a mídia, e
no caso a imprensa jornalística escrita. Contra isso, contra esse mundo de armações e
poderes controladores das dimensões constitutivas do real, levantaram-se sempre os
setores sociais mais organizados, mormente aqueles que sentiram mais intensamente
na pele as agruras da dominação. Lima Barreto insere, na mesma obra, passagens
em que destaca alguns insurrectos próximos, como o ambíguo Abelardo Leiva, o
poeta e revolucionário que oscilava entre os encantos das jovens burguesas e sua
intenção desmedida de criar a desordem, a confusão e semear o caos: “- Eu quero
a confusão geral, para que a ordem natural surja triunfante e vitoriosa!” (BARRETO,
S/D, p. 78).
Era um desses jovens anarquistas do começo do século XX que queria pela
destruição de toda forma de status quo dominante permitir a passagem para uma
nova ordem racional, curiosamente, somente compreensível pelas dimensões da
mentalidade da época, uma ordem social radicada no chamado Apostolado Positivista,
onde se prestava um verdadeiro culto ao alcance desse “[...] sobre-humano cérebro
de Comte [...]” (BARRETO, S/D, p. 80). Lima Barreto indagou durante a narrativa,
num instante de profunda percepção, dando voz a Isaias Caminha, como poderia
um anarquista cultuar a suposta cientificidade de uma nova ordem a ser instaurada e
que, pelo culto à Humanidade, faria o ser humano libertar-se de todas as mazelas e
atrasos que o impediam de conquistar um futuro de ordem, progresso e amor.
O próprio Lima Barreto escreveu em jornais de estudantes, como A Lanterna,
em 1901, quando expos de forma contundente suas críticas sobre os padrões sociais
controladores da sua época. Escreveu na revista Floreal, em 1907, uma das primeiras
a publicar o pensamento anarquista no Brasil, além de diversos jornais de inclinações
libertárias, como A Voz do Trabalhador, o A.B.C., e outras revistas libertárias como
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179
Careta, Lanterna, Tagarela, O Debate. Jane Mary C. Bezerra (2010) trabalha de forma
bastante extensiva essa relação entre anarquismo e forma literária em Lima Barreto,
destacando tanto o histórico das publicações anarquistas no Brasil quanto o vínculo
estabelecido entre estas e a vida e obra de Lima Barreto.
Nesse sentido, os jornais impressos e revistas do período revelam também o
espaço da resistência e da perspectiva de enfrentamento da grande imprensa escrita
e dominante na própria trajetória literária de Lima Barreto. É de supor-se que esse
viés da vida política de Lima Barreto não seja tão observado na exposição da sua
memória, principalmente pelos grandes centros midiáticos de poder, que preferem
enfatizar a linearidade das obras publicadas, o enfrentamento com o Correio da
Manhã, seu ostracismo nos meios de comunicação de maior alcance, a doença e a
morte sofrida.
Mas não é mais viva e criativa essa outra imagem de Lima Barreto, a do estudante
rebelde e curioso de explicar o mundo, que criticou o serviço militar obrigatório, que
denunciava as armações políticas da época, enfrentou a opressão da Igreja católica
naquele momento, que acreditou e debateu as principais correntes do anarquismo,
destacando a autogestão e suas possibilidades, tornando-se um dos primeiros
pensadores e literatos no Brasil a saudar a Revolução Bolchevique na Rússia em
1917 e a desejar que o mesmo acontecesse no Brasil em benefício da população
mais pobre.
Apesar de todas as formas de controle pretendidas pela imprensa escrita
dominante e identificada ao capital em expansão no final do século XIX e século XX,
a trajetória de Lima Barreto mostra que é por meio da ação política organizada na
própria imprensa escrita que se pode enfrentar esse poder. É nessa perspectiva que
inserimos, de forma conclusiva, mas não encerrando a discussão, que entendemos
como bastante significativa, a relação do anarquismo e suas diversas correntes, no
Brasil e no mundo, com a publicação e edição da imprensa escrita, de forma autônoma
e cooperativa, em jornais e revistas.
Há uma indiscutível historiografia abrangente e cada vez mais reveladora das
possibilidades libertadoras representada pelo anarquismo, ideologia que representou
a grande força popular do final do século XIX e começo do século XX e que se
manteve viva no imaginário e nas mentalidades, sobrevivendo a perseguições e
manipulações e ainda hoje, num mundo em que a mídia digital e as formas tecnológicas
e individualizantes de poder informativo são extensamente agressivas e totalizantes,
resiste de forma tenaz e propõe um caminho de veiculação das informações que não
se curve aos ditames econômicos e políticos associados à opressão e à manipulação
dos fatos. A autonomia da informação diante do poder econômico e político opressor.
No campo das experiências históricas, das relações vividas e vivenciadas entre
o anarquismo e o mundo da imprensa escrita, e nos embates concretos em que a
ação política organizada se opôs às formas autoritárias de opressão e de dominação,
um conjunto considerável de trabalhos, estudos e obras que merecem ser iluminados
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180
pela justa referência precisam ser apontados, afinal, Pierre J. Proudhon (2001) foi
ele mesmo um tipógrafo e trabalhou em jornais, Errico Malatesta lutou a vida toda
pela liberdade de expressão e se utilizou extensamente da organização de jornais. A
própria organização política do anarquismo e suas histórias de lutas, como na Comuna
de Paris de 1871 e diversos outros movimentos, em São Paulo em 1917, no Rio de
Janeiro em 1918, na Espanha em 1936, resultam desse poder de fazer autônomo,
suas próprias produções de informações, suas próprias imagens da sociedade e suas
relações de poder.
Afinal, encerramos nossa aventura reflexiva construindo uma imagem daquilo
que nos manteve até aqui motivados, o pensar sobre a história, esse labirinto de
possibilidades, não se tornará escrita numa única pincelada nem será uma ciência
explicativa por meio de uma síntese a ser condensada. Mas, talvez, a história seja
melhor compreendida ao despejarmos um pote de tinta sobre o papel claro que
representa o tempo, os fatos, as situações e acontecimentos, e daí desenharmos os
caminhos reveladores do passado na escrita que se projeta do presente, momento
em que o historiador se encontra com seu oficio e se absorve no seu trabalho.
REFERÊNCIAS
ALVIM, L. Os jornais, o romance e o folhetim. Disponível em: www.ufrgs.br. Acesso em: 13 abr
2017.
BALZAC, H. de. As Ilusões perdidas. São Paulo: Abril, 1978.
BARRETO, L. Recordações do escrivão Isaias Caminha. São Paulo: Escala (S/D).
BEZERRA, M. C. Lima Barreto: anarquismo, antipatriotismo e forma literária. Dissertação de
Mestrado (2010). Fortaleza: Universidade Federal do Ceará. Documento em PDF.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, 1989.
GAUDÊNCIO, B. R. de A. A maldição de Balzac: imagens do jornalismo no romance Ilusões
Perdidas. Associação Nacional de História (ANPUH) PB. Orientador: Luis Custódio da Silva.
Disponível em: www.anpuhpb_Bruno. Acesso em: 09 jun 2017.
GELEDÉS. Lima Barreto, homenageado da Flip, escreveu crônica contra o feminicídio em 1915.
Postado em 25/06/2017 por Natalia, reportagem extraída do jornal Brasil de Fato. Disponível em:
http://www.geledes.org.br. Acesso em: 26 jun 2017.
LE GOFF, J. A nova história. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_____. A bolsa e a vida: a usura na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1989.
_____. Reflexões sobre a história. Lisboa: Ed. 70, 1982.
LOPES, M. Um anarquista carioca: o escritor Lima Barreto e suas ligações com o movimento
libertário. Boletim Emecê. Núcleo de Pesquisas Marques da Costa. Nº 22, março de 2012. Disponível
em: http://marquesdacosta.wordpress.com. Acesso em: 12 abr 2017.
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Capítulo 15
181
MALATESTA, E. Escritos revolucionários. São Paulo: Novos Tempos, 1989.
PROUDHON, P. J. Do princípio federativo. São Paulo: Imaginário, 2001.
RÓNAI, P. Nota Introdutória. In: BALZAC, H. de. As Ilusões perdidas. São Paulo: Abril, 1978.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
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CAPÍTULO 16
doi
CORRESPONDENTES BRASILEIROS NA SEGUNDA
GUERRA E A SAÍDA PARA TRÊS TIPOS DE CENSURA
Rosamary Esquenazi
ao inimigo. Não é novidade saber que existe
Professora do Curso de Jornalismo da PUC-Rio.
Graduada na Faculdade de Comunicação Social
e Mestre em História Social da Cultura, na PUCRio, email:
[email protected]
controle durante os conflitos e que isso afeta
* Trabalho apresentado no GT História do Jornalismo, inte-
trouxe um peso a mais aos jornalistas brasileiros
grante do 11º Encontro Nacional de História da Mídia.
que foram acompanhar, de setembro de 1944
profundamente a busca da verdade. Ou, pelo
menos, a aproximação dos fatos como eles se
dão. Mas a Segunda Guerra, de 1939 a 1945,
a 2 de maio de 1945, a batalha na Europa.
Apesar de o Estado Novo mandar tropas para
a Europa a fim de lutar contra os regimes dos
países do Eixo, o Departamento de Imprensa
e Propaganda, o DIP, continuou controlando a
imprensa brasileira intensamente, à distância.
Os correspondentes já tinham experiência
e sabiam as palavras e os assuntos que não
poderiam entrar em suas matérias e reportagens
enviadas do front. O que eles não imaginavam
é que tinham pela frente, além do DIP e do
Exército brasileiro, a censura militar americana.
Alguns profissionais tentavam driblar as
dificuldades com crônicas, textos comparativos
e trechos de reportagens gravadas em discos
de vidro. Mas os artifícios não eram suficientes
para dar conta da realidade da guerra.
Eles precisaram lidar não com um, mas com
três níveis de censura para cobrir o dia a dia na
Itália. Primeiramente, a do Exército brasileiro, a
FEB, que abrigou os profissionais da imprensa
nos acampamentos. Depois, existia o filtro do
5º Exército americano, responsável pela ação
dos militares brasileiros na Europa e pelo envio
de telegramas com o noticiário. Finalmente,
havia o controle do DIP, que fazia os cortes no
Brasil. Criado em 27 de dezembro de 1939,
o DIP estava bem estruturado e tinha várias
divisões: a de Divulgação, de Radiodifusão,
de Cinema e Teatro, de Turismo, de Imprensa,
além de outras ramificações auxiliares. “O
Estado Novo ampliou sua capacidade de
intervenção cultural e ideológica por meio
das instituições.”1
JORNALISMO; ESTADO NOVO; GUERRA
(GOULART, 1990, p.19)
Segundo documentos encontrados no Arquivo
podem
Federal da Alemanha, em 2001, pelo historiador
revelar, em nenhuma situação, a localização de
Francisco Carlos Teixeira, da UFRJ, constatou-
tropas nem entregar qualquer tipo de segredo
se que o Terceiro Reich contava com o DIP para
Os
1
comandos
militares
não
GOULART, Silvana. Sob a Verdade Oficial. Ideologia, propaganda e censura no Estado Novo.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 16
183
contabilizar os simpatizantes do regime alemão no Brasil, incluindo os que ocupavam
os ministérios de Getúlio Vargas. “As atividades alemães eram facilitadas graças ao
bom relacionamento entre os nazistas e o Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP). ‘Este controla a totalidade do jornalismo na imprensa escrita, no rádio e na
literatura’”. (ESQUENAZI, 2014, p.51, apud ANDERSON). 2
Antes de os pracinhas irem para a guerra, ocorreu uma briga entre os donos de
jornais brasileiros, que queriam enviar profissionais para mostrar os acontecimentos
com um olhar particular, e o governo do Estado Novo, que tentava impedir a cobertura
in loco. Funcionando como uma espécie de ministério, o DIP daria a palavra final sobre
os nomes indicados. E, claro, levaria em conta o caráter ideológico do candidato e
do veículo em questão. O credenciamento foi longo e difícil. Nem todos os pedidos
foram aceitos. Os jornalistas da Agência Nacional, Sylvio da Fonseca e Thassilo
Mitke, ligados ao governo, já estavam devidamente selecionados e embarcaram no
primeiro escalão da FEB, no dia 2 de julho de 1944. Além deles, estavam na lista dos
pré-liberados os cinegrafistas Fernando Stamato e Adalberto Cunha.
Rubem Braga, Egydio Squeff e Raul Brandão viajaram no segundo escalão.
Mais tarde, o nome de Joel Silveira foi aceito pelo DIP, mas ele só embarcou no 3º
escalão. A escolha de Joel Silveira se deu por dois motivos. O primeiro, porque era
ótimo repórter; o segundo, porque Chateaubriand, o Chatô, dono de uma rede de
jornais, revistas e rádios, achou que a guerra poderia ser um corretivo para o jornalista
rebelde. O diálogo na sala de Chatô foi emblemático: “O senhor vai pra guerra, mas
não me (sic) morra, seu Silveira! Não me (sic) morra! Repórter é pra mandar notícias,
não para morrer. E adeus!” (SILVEIRA, 2010, blog)
Rubem Braga foi convocado pelo Diário Carioca porque queria muito ir à guerra.
Tornou-se mais um cronista do que um jornalista especializado em hard news, notícias
mais importantes, no jargão profissional. Era o único jornalista que não tinha acesso
ao envio de telegramas. Os telegramas custavam caro e, por essa razão, Braga só
podia contar com os Correios. Mas esse serviço era tão lento que podia demorar um
mês para que as matérias de Braga chegassem ao Brasil. O jornalista escreveu ao
leitor, anos mais tarde:
Quando afinal cheguei (e cheguei lá porque sou um homem teimoso), havia,
entre os correspondentes, um ambiente de desconfiança e mesmo de má vontade
que prejudicava muito o nosso trabalho. Isso melhorou com o tempo, mas os
jornalistas acreditados junto à divisão brasileira nunca tiveram as mesmas facilidades
de informação e de transporte que havia em outras unidades aliadas. Tivemos, além
disso, até certa altura da campanha, o peso de três censuras, das quais apenas uma
era legítima e razoável. [...] não me espantaram e até sempre achei que “podia ser
pior”, tanto me habituara, como qualquer jornalista livre, à estupidez mesquinha dos
2
ESQUENAZI, Rosamary. O rádio na segunda Guerra. No ar, Francis Hallawell, o Chico da BBC. Floria-
nópolis, Insular, 2014.
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184
feitores da imprensa sob o Estado Novo”. 3
A ligação estreita entre os nazistas e alguns ministros identificados com o
regime de Adolf Hitler começou a mudar em 1942, quando o Brasil decidiu se unir
aos Estados Unidos e aos países aliados e declarar guerra. Durante muito tempo,
Getúlio Vargas praticou a política do quem dá mais, Estados Unidos ou Alemanha?
O historiador Gerson Moura definiu essa situação como “equidistância pragmática”.
Com a guerra em andamento, o governo Roosevelt adotou uma política que
combinava pressão, presença permanente, persuasão e concessões, a promessa de
Washington de transferir material militar ao Brasil (...). Meses depois ficou acertado
que os norte-americanos concederiam financiamento e facilidades técnicas para a
pretendida usina siderúrgica de Vargas.4
Mesmo com a declaração de guerra aos países do Eixo, a censura do DIP não
acabou. De certa forma, até se intensificou. O Globo mandou para cobrir a guerra o
jornalista Egydio Squeff. Ele sabia fazer críticas, mas, às vezes, as citações eram tão
indiretas que pouca gente percebia. Ao elogiar a democracia americana, por exemplo,
Squeff falava mal da ditadura brasileira. Ele utilizava o “recurso de dar voz a terceiras
pessoas, no caso, os pracinhas, de modo que a sua mensagem adquirisse ares de
imparcialidade”. (HENN, 2000, p.183)5
Já o Jornal do Brasil mandou um dândi, Carlos Alberto Dunshee de Abranches.
Ele ficou famoso não por suas reportagens, mas por usar luvas e cachecol em um
ambiente povoado por pólvora, sujeira e caos. O jornalista Raul Brandão, chamado
de Veterano, foi indicado para atuar pelo Correio da Manhã. Havia até uma mulher
na cobertura, Silvia Bittencourt, mulher do diretor do Correio da Manhã. Majoy, como
ela assinava os artigos e crônicas, fazia colaborações também para a United Press
e para a BBC. Ela foi escolhida para acompanhar “as manobras do 6º Regimento
de Infantaria, no Vale do Rio Sercchio, junto do ministro da Guerra do Brasil, Eurico
Gaspar Dutra”. (RIGONI, 2012, p.4). 6 Muitas vezes, Majoy preferia falar de assuntos
leves e superficiais, como as flores da Itália, esquecendo-se de cobrir acontecimentos
mais graves e chocantes, como o enforcamento de Benedito Mussolini em praça
pública! “Por quê?, perguntou-se a jornalista. ‘Tem tanta coisa no mundo dos horrores,
que não precisa dos olhos inexperientes em política, de quem mesmo na guerra
sempre procurou flores.’” (ESQUENAZI, 2014, p. 146)
O único jornalista que realizou cobertura radiofônica para o Brasil foi um
brasileiro, só que funcionário da BBC de Londres. Francis Charlton Hallawell, nascido
em Porto Alegre e criado no Rio de Janeiro, foi convocado e sabe-se lá como ele
conseguiu atravessar o Canal da Mancha até chegar à Itália no meio da guerra. E de
BRAGA, Rubem, Crônicas da Guerra na Itália, 2ª edição, Rio de Janeiro, Record, 1986.
BARROS, Orlando de. 200 anos de Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro, ContraCapa, 2009.
HENN, Leonardo Guedes, Os correspondentes da guerra e a cobertura jornalística da Força Expedicionária Brasileira, São Leopoldo: UNISINOS, 2000.
6
RIGONI, Carmen Lúcia. A imprensa brasileira durante a 2ª Guerra Mundial (1944-1945): fortalecendo o
mito do herói. http:www.ifcs.ufrj.br, 2012.
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que maneira conseguiria enviar material aos rádios brasileiros? Francis, ou melhor,
Chico da BBC, foi treinado para mandar telegramas com notícias e também gravar
discos de vidro. Com a ajuda do técnico Douglas Farley, em um aparelho especial
desenvolvido pelos técnicos da BBC para todos os correspondentes, eles gravavam as
entrevistas e reportagens. Depois mandavam o material para Florença ou Roma. De
Roma, onde estava o quartel-general da imprensa aliada, o QG dos correspondentes,
o material também passava por censura, apesar da conhecida independência da
BBC. Transmitia-se por telefone para Londres o que havia sido gravado nos discos
de vidro. Nos estúdios da BBC, na Inglaterra, os técnicos passavam o vidro para o
acetato e só depois disso o programa ou a crônica era enviada ao Brasil pelo serviço
de ondas curtas.
Anos antes, quando o DIP quis intensificar a censura às notícias que a BBC
mandava para o Brasil, o chefe do serviço brasileiro, William Tate, mandou a seguinte
mensagem para as autoridades: “Não, nós não fazemos programas contra o Brasil.
Nós refletimos as opiniões variadas que (lá) existem, inclusive as que são contra o
governo”. (LEAL, 2008, p.29)7
Antes de chegar à Itália como correspondente da BBC, ainda em Londres,
Francis Hallawell decidiu ser mais explícito quanto ao nazismo. Como redator e
locutor, ele lançou histórias infanto-juvenis para falar sobre o ambiente alemão na
intimidade. Contando com efeitos especiais e a participação de outros locutores e
atores, ele escreveu As aventuras de Fred Perkins. A data não foi confirmada pela
BBC. Ao que tudo indica, foi em 1943 que se deram as primeiras transmissões das
histórias. Depois, a emissora inglesa permitia fazer reprises, quantas vezes fossem
necessárias. Consegui algumas dessas histórias com Julienne Hallawell8, viúva de
Francis Hallawell, e também na empresa Collector’s, que comercializa programas de
rádio antigos.
Fred Perkins era um correspondente na história da ficção de Hallawell e,
graças a um miniaparelho de rádio e um avião construído por ele mesmo, o jornalista
conseguiu chegar à Alemanha. Mais precisamente na antessala de Hitler. O texto
ridicularizava os líderes nazistas e mostrava os ataques de cólera e choro do führer.
É interessante saber o que movia o personagem: “a busca da verdade”. Fred tentava
encontrar coerência no mundo de versões desencontradas. Talvez estivesse se
preparando para a situação que iria viver em poucos meses, quando desembarcou
na Itália. Pelo visto, o DIP deixou passar sem problema As aventuras de Fred Perkins
por tratar-se de ficção.
De qualquer maneira, era a mesma reflexão que fazia Rubem Braga: a verdade
era algo que não existia durante a guerra! A BBC transmitia em mais de 40 idiomas, uma
maneira para enfrentar o mesmo serviço feito pela Rádio Berlim, em 55 idiomas para
LEAL, Laurindo. Vozes de Londres: memórias brasileiras da BBC. São Paulo: Edusp, 2008.
Julienne era de origem belga e conheceu Francis Hallawell na BBC, em Londres. Ela morreu aos 94 anos,
no dia 23/12/2016, em Corrêas, Estado do Rio.
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todo o mundo, também em línguas locais. Havia uma guerra radiofônica e ideológica
no Brasil. Os russos, alemães e italianos apostavam na propaganda ideológica desde
1937. Os ouvintes brasileiros eram devidamente “convencidos” de que os regimes
soviético/comunista, italiano ou alemão eram superiores ao brasileiro.
A programação da Rádio Alemã incluía teatro, concertos com obras de Richard
Wagner, a Hora Feminina, a Hora Infantil1 (ESQUENAZI, 2014, p.28), mas também
notícias jornalísticas e muita propaganda nazista vinda diretamente da Europa. Em
seu diário, Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista, chegou a
calcular quantos adeptos do nazismo o governo alemão poderia contar, principalmente
no Sul do país, caso fosse necessário. Eram todos ouvintes fiéis da Rádio Berlim.
Quando perceberam a ausência no Brasil, altos funcionários da BBC decidiram,
em 1941, criar serviço próprio para o Brasil e para a América Latina. Depois,
aumentaram o serviço para que o noticiário e a programação fossem entendidos por
47 diferentes nacionalidades. O mesmo se deu com os americanos. Ao estabelecerem
a Política da Boa Vizinhança - e contar com o apoio do Brasil caso entrassem em
guerra – os Estados Unidos lançaram a Voz da América, serviço de ondas curtas a
partir dos EUA em 20 idiomas. Outras grandes emissoras de rádio americanas, como
a CBS e NBC, também colaboravam com atrações especiais. Veiculados no horário
da Hora do Brasil, muitas vezes revelavam o american way of life e a opção pela
democracia. É claro que também nisso havia propaganda política. “A CBS usava 120
estações de sua rede. Programas de notícias brasileiras de 15 minutos de duração
eram irradiados semanalmente para os Estados Unidos.” (GOULART, 1990, p. 69).
Na Europa, submetidos a três censuras, o que os jornalistas poderiam escrever na
imprensa brasileira? De preferência, notícias positivas, ao estilo da “grandiloquência”.
Elogiados desde que desembarcaram em Nápoles, definidos como soldados valentes
(mesmo antes de vencer a primeira batalha), os pracinhas foram devidamente
esquecidos logo depois, em uma batalha em que foram derrotados. Quando o 6º
Regimento de Infantaria recuou no Vale do Rio Sercchio ao enfrentar a 232ª Divisão
de Infantaria Alemã, em 1944, sofreu baixas, mortos, feridos e prisioneiros. Mas “a
imprensa não noticiou os problemas ocorridos durante o recuo em Garfagnana”.
(RIGONI, 2012, p. 6)
Egydio Squeff amenizou, por seu lado, as quatro derrotas dos pracinhas nas
batalhas de Monte Castelo, entre 1944 e 1945. Rubem Braga revelou que o despacho
que escreveu sobre um dos revezes de Monte Castelo, “em 29 de novembro de 1944,
e que foi enviado para o Brasil com alguns cortes da censura militar, não foi publicado
em seu jornal em consequência do veto do DIP”. (HENN, 2006, p. 180). Dane-se a
objetividade.
A grandiloquência que aparecia na imprensa no Brasil incluía pequenas
mentiras ou exageros, como detectou um médico não identificado que estava junto
às tropas brasileiras. Ao voltar para a casa, contestou as informações que leu em
O Jornal. Ao contrário do que dizia o periódico, que todos “foram recebidos com
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 16
187
ovações de uma grande multidão” no Porto de Nápoles, o médico rebateu com essas
afirmações: “Cais deserto sem ninguém. Só alguns oficiais nossos americanos e um
grupo de italianos”. (RIGONI, 2012, p. 3)
O pesquisador Ricardo Luis Meirelles dos Santos preferiu a palavra “compaixão”
(mas não “bajulação”) para definir o traço jornalístico das crônicas permitidas pelo
DIP.
A descrição de cenas explícitas, de carnificina, praticamente não aparece nos
textos de Braga – opção do cronista, imposição da censura militar ou do governo
no Brasil, ou os três fatores somados. A descrição de cenas mais fortes, como
fuzilamento de civis, aparece apenas nas matérias produzidas em abril de 1945,
quando a lupa do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) já não aparecia
com tantas frequências nas redações; além disso, são cenas em que os alemães
promovem barbaridades contra italianos (os brasileiros, portanto, não estão envolvidos
diretamente). E, além disso, são narradas com poucos adjetivos, sem dramaticidade.
(SANTOS, 2003, p.117)9
No Quartel General Recuado, em Pistoia, os jornalistas brasileiros foram
separados dos correspondentes estrangeiros. Rubem Braga citou os colegas Henry
Bagley, da Associated Press; Henry Buckley, da Reuters; Frank Norall e Allan Fisher,
da revista Em Guarda; e Francis Hallawell, da BBC, entre os que ficavam em outra
ala. Os jornalistas brasileiros já conheciam os temas e as palavras proibidas pelo
DIP e, por isso, evitavam incluí-las em suas reportagens. A situação não era tão clara
para os gringos. Mas, assim que acabavam de escrever, todos tinham que enviar o
material para o comando do Exército brasileiro e, depois, para a censura americana.
“O Brasil contava com uma tradição de imprensa cerceada e que tinha a linha
editorial dos jornais ditada pelos proprietários. Por outro lado, [...] nos Estados Unidos
e na Inglaterra, a imprensa estava já organizada segundo os padrões empresariais de
competitividade.” (HENN, 2000, p.193). No verso de uma foto emblemática em que
Francis Hallawell entrevistava ao ar livre o general Zenóbio da Costa, lê-se o carimbo
em vermelho: “Passed by censor”. Algo como “aprovada pelo censor”.
No Brasil, o DIP continuava censurando tudo que achasse ir contra a ideologia
do Estado Novo, inclusive os assuntos que se relacionassem aos blocos políticos
de guerra. Em junho de 1942, proibiu-se a divulgação de uma reunião de alemães
em São Paulo para comemorar uma vitória do “eixo”. Em novembro do mesmo ano,
foi inicialmente interditada, e depois permitida, a publicação de um manifesto de
“italianos livres” contra Mussolini; mas, em dezembro, proibiu-se o manifesto israelita
contra o massacre nazista.
Para ultrapassar tantas barreiras de censura, os brasileiros se dedicaram às
crônicas para falar sobre o dia a dia do soldado. Desde o século XIX, a crônica tornouse um gênero brasileiro, um dos preferidos dos jornalistas. A crônica servia e serve
SANTOS, Ricardo Luiz Meirelles dos Santos, A desordem dos dias: Rubem Braga e a Segunda Guerra.
Mestrado, 2003.
9
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 16
188
ainda hoje para falar sobre todos os assuntos. Havia violência no relato de Rubens
Braga ao contar sobre a explosão de uma granada no corpo de Silvana, menina de 10
anos. Foi mais uma cena que fez o repórter se colocar contrário à guerra: “por esse
pequeno ser simples, essa pequena coisa chamada uma pessoa humana, é preciso
acabar com isso, é preciso acabar para sempre, de uma vez por todas”. (BRAGA,
1986, p.146). Sempre que podia, ele sintetizava o conflito mundial com a seguinte
frase: “a guerra é nojenta”.
Nas manchetes do Globo Expedicionário
10
que circulou durante a guerra, as
letras em negrito tanto podiam alardear os feridos e um morto em “Bombardeado um
navio brasileiro!”, em 26 de março de 1941, quanto “Brasil solidário com os Estados
Unidos”, de 8 de dezembro de 1941. O rompimento com o Eixo - “Afundado outro
navio brasileiro”, em 20 de fevereiro de 1942, e “A infantaria da FEB apresta-se para
regressar”, de 8 de junho de 1945 - prepararam o leitor para as etapas da guerra e
para as mudanças que estavam por vir. No fim do conflito, o DIP já não mandava
tanto e Getulio Vargas sabia que tinha seus dias contatos. Mesmo assim, o general
Mascarenhas de Morais, em fevereiro de 1945, avisou que as tropas estavam proibidas
de fazer manifestações políticas na Itália. Os jornalistas também não podiam falar em
democracia com o fim do Estado Novo.
A contradição entre os objetivos do Estado Novo e a luta que se travou contra
os regimes autoritários na Europa passou a ser discutida também no Brasil. “No
começo de maio, o virulento Diário Carioca sentenciou: “O governo fascista do Sr.
Getúlio Vargas sempre teve horror à imprensa, sempre trancou o pensamento livre
dos jornalistas”. 14 (ESQUENAZI, 2014, p.152)11
Francis Hallawell, o Chico da BBC, costumava dizer que foi muito difícil conseguir
os depoimentos para os seus programas radiofônicos. Assim, combinou com os
outros correspondentes que eles poderiam fornecer as crônicas, gratuitamente, que
seriam lidas pelos speakers (locutores), em Londres. Eram as Reportagens de guerra.
No livro Scatolettas da Itália 15, publicado pela BBC em 1946, há uma reunião das
crônicas que correspondentes escreveram sobre a guerra. “Quanto à maneira como
foram colhidos os programas da BBC na Itália – isso o expedicionário sabe tão bem
como eu: foi ‘à unha”. Fizemos uma sociedade feliz.” (HALLAWELL , 146, p.64)
Algumas crônicas ganharam ilustração do soldado Carlos Scliar, “o pintor
brasileiro que serviu como pracinha na FEB”, segundo o livro de Hallawell. A maior
parte dos textos do livro é reprodução do que havia sido publicada em grandes
jornais ou irradiada pela BBC. Em síntese, o material não faz um retrato realista da
guerra. É mais o dia a dia no campo, o recebimento de cartas, a hora das refeições,
observações políticas, o foxhole, onde o soldado se escondia. Daí a importância de
uma reportagem gravada por Chico da BBC para a noite de Natal de 1944 e que só
existe em áudio. (AER111)
10
11
O Globo Expedicionário. 1985.
ESQUENAZI, Op. cit., Apud BARROS, 2009
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 16
189
“Tomamos em primeiro lugar a estrada que saía de Porreta em direção à frente
e avançamos o máximo possível para as posições de combate. Encontramos alguns
soldados que se separavam para seguir para a linha de frente, e outros barbados,
cansados e sujos de lama que voltavam para algumas horas de descanso. Um deles
passou ao alcance do nosso microfone, e aqui está a gravação que fizemos:
Hallawell – Ó, Félix, de onde você está chegando?
Soldado – Estou chegando do front.
Hallawell – Você parece um pouquinho cansado. Vem caminhando de lá?
Soldado – Estou sem dormir, estou muito cansado.
Hallawell – Sem dormir? Mas há quantas horas você não dorme?
Soldado - 48 horas.
Hallawell – 48 horas! E está caindo muita coisa lá na frente?
Soldado - Está. Está caindo muita granada, muita bomba. Muita metralhadora.”12
Não falavam de mortos, amigos que se foram, cidades destruídas, tristeza,
traumas, choques. A Segunda Guerra envolveu 25.445 pracinhas, dos quais 443
morreram e três mil ficaram feridos. O número não parece excessivo quando se
pensa em um dos mais sangrentos conflitos mundiais da história da humanidade. As
famílias que ficaram no Brasil, noivas, mulheres, pais e mães, filhos, avós, amigos,
todos precisavam saber o que estava acontecendo no front, a cada hora, se fosse
possível. A imprensa brasileira não era explícita e, por essa razão, era importante
ouvir o serviço da BBC diretamente para o Brasil. Havia mais informações de guerra
graças ao grande número de correspondentes. Mas o que acontecia de fato na frente
de batalha?
Os jornalistas não tinham autorização de se aproximar fisicamente dos
conflitos. Aliás, era essa a política. Segundo o coronel Floriano Brayner, o objetivo
era “impossibilitar críticas aos comandantes das ações (...); em segundo lugar,
evitar comoção na opinião pública no que diz respeito à sorte dos soldados
nacionais, e, por fim, existia o temor de que os correspondentes escrevessem os
seus relatos, objetivando finalidades políticas internas ao Brasil (...). a entrevista de
Brayner explicitava claramente a real política de comando da FEB em relação aos
correspondentes de guerra, que era mantê-los o mais distante possível do centro das
ações. 17
A volta dos pracinhas ao QG recuado, a visita às cidades evacuadas e a prisão
de alemães, depois de uma luta bem-sucedida, traziam material jornalístico. Mas
havia sempre a questão do que escrever. Na retaguarda, começaram a surgir diversas
publicações com diferentes intenções. O jornal Cruzeiro do Sul era o mais oficial e
falava sobre os assuntos que interessavam aos que estavam ao Exército brasileiro.
Crítica? Nenhuma! Havia também a imprensa alternativa, precária e muito mais
voltada para o humor. “A Voz do Petrecho, O Camelo, E a Cobra Fumou!, Zé Carioca,
12
HALLAWELL, Francis. Scatolettas da Itália, Seleção de reportagens dos Correspondentes de Guerra na
Itália irradiadas pela BBC. Londres, British Broadcasting Corporation, 1946.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 16
190
Vem Rolando, Marreta e Tá na Mão eram publicações informais e espontâneas.”
(ESQUENAZI, 2014, p. 133). Não se tem notícias de algum jornal alternativo crítico,
falando mal do Exército, do DIP ou de Mussolini e Hitler.
O jornalista Rubem Braga, em janeiro de 1945, escreveu “uma série de
reportagens elaboradas com os arquivos do governo fascista italiano, que estava em
fuga. Nestas crônicas, ele fazia um apanhado dos assuntos que os jornais italianos
haviam sido proibidos de divulgar durante o governo fascista”.18 Podia-se dizer o
mesmo sobre os cortes do DIP, mas Braga jamais podia fazer referência explícita à
coincidência dos temas.
REFERÊNCIAS
AGÊNCIA O GLOBO. O Globo Expedicionário. O Brasil na II Guerra Mundial, 1985.
BARROS, Orlando de, 200 anos de Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro, ContraCapa, 2009.
BRAGA, Rubem, Crônicas da Guerra na Itália, 2ª edição, Rio de Janeiro, Record, 1986.
ESQUENAZI, Rose. O rádio na Segunda Guerra. No ar, Francis Hallawell, o Chico da BBC.
Florianópolis, Insular, 2014.
GOULART, Silvana. Sob a Verdade Oficial. Ideologia, propaganda e censura no Estado Novo. São
Paulo: Editora Marco Zero, 1990.
HALLAWELL, Francis. Scatolettas da Itália, Seleção de reportagens dos Correspondentes de Guerra
na Itália, irradiadas pela BBC. Londres, British Broadcasting Corporation, 1946.
LEAL, Laurindo. Vozes de Londres: memórias brasileiras da BBC. São Paulo. Edusp, 2008.
MAJOY, Seguindo a primavera. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1951.
ARTIGOS ONLINE
ANDERSON, Carter, “Nas ondas do Reich”, jornal O Globo, 2001, p. 2, Pletz – Artigos para Debater.
Disponível em:<http://www.pletz.com/cgi-local/artigos/artigos.cgi> Acesso em: 7/4/2017.
HENN, Leonardo Guedes, Os correspondentes da guerra e a cobertura jornalística da Força
Expedicionária Brasileira, UNISINOS, 2000. Acesso em: 8/4/2017.
RIGONI, Carmen Lúcia. A imprensa brasileira durante a 2ª Guerra Mundial (1944-1945): fortalecendo
o mito do herói. 2012. Disponível em:<www.ifcs.ufrj.br> Acesso em: 12/4/2017.
SILVEIRA, Joel. Disponível em http://lagartonet.com/2010/03/31/senhor-silveira-nao-me-morra/
Acesso em: 12/4/2017.
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
SANTOS, Ricardo Luiz Meirelles dos Santos, A desordem dos dias: Rubem Braga e a Segunda
Guerra. Dissertação de Mestrado no Instituto de Estudos de Linguagem, Biblioteca Digital da
Unicamp, 2003.
MATERIAL SONORO
AER111 – Com a FEB na Itália, nº 3 e 4. Collector’s, Rio de Janeiro. Transcrição. Discos em 78
rotações cedidos por Julienne Hallawell.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 16
191
CAPÍTULO 17
doi
IMPRENSA ALTERNATIVA E NEOPENTECOSTALISMO:
ESTRATÉGIAS PARA UM MOMENTO DE CRISE POLÍTICA
Matheus Lobo Pismel
políticas da comunicação; religião.
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)
Ponta Grossa – PR
RESUMO: Este trabalho retoma o momento
histórico de crise da imprensa alternativa
do período de resistência à ditadura militar
para lançar elementos ao momento atual de
dificuldade das esquerdas, a partir da noção
de estratégia de recuo político. Destacase o papel do Partido dos Trabalhadores
(PT) no fim do ciclo da imprensa alternativa,
no início dos anos 1980, e nas políticas de
governo de 2003-2016, que não avançaram na
democratização da comunicação, apesar das
expectativas dos movimentos sociais ligados
ao tema. A análise exploratória do avanço do
fenômeno neopentecostal nas últimas décadas,
diretamente relacionado com os problemas
imediatos das classes populares, busca refletir
sobre o terreno de disputa ideológica em
que as esquerdas terão de se debruçar caso
assumam a estratégia de recuo apresentada.
No caso das táticas de comunicação, busca-se
a relação entre o popular e o massivo a partir de
uma abordagem do conceito de ideologia que
assuma sua materialidade nas práticas do dia
a dia.
PALAVRAS-CHAVE: imprensa alternativa;
esquerda
política;
comunicação
ABSTRACT: This work resumes the historical
moment of crisis of the alternative press of the
period of resistance to the military dictatorship
to launch elements to the present moment of
difficulty of the left, starting from the notion of
strategy of political retreat. The role of the Partido
dos Trabalhadores (PT) is highlighted at the end
of the alternative press cycle in the early 1980s
and in the government policies of 2003-2016,
which did not advance the democratization of
communication despite the expectations of
social movements. The exploratory analysis of
the advance of the neopentecostal phenomenon
in the last decades, directly related to the
immediate problems of the popular classes,
seeks to reflect on the terrain of ideological
dispute in which the leftists will have to
deal with if they adopt the presented retreat
strategy. In the case of communication tactics,
the relationship between the popular and the
massive is sought based on an approach to the
concept of ideology that assumes its materiality
in day-to-day practices.
KEYWORDS: alternative press; left politics;
popular comunication; comunication politics;
religion.
popular;
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Capítulo 17
192
PRÉ-TEXTO CONTEXTUAL
Este trabalho foi originalmente apresentado no Grupo de Trabalho (GT) de
História da Mídia Alternativa no 6º Encontro Regional Sul de História da Mídia (Alcar
Sul), em junho de 2016. Naquela ocasião, o cenário de retrocessos sociais começava
a se materializar, com a confirmação do golpe parlamentar, que derrubou Dilma
Rousseff (PT). De lá para cá, a crise das forças de esquerda, analisas neste artigo,
mostrou-se ainda mais profunda, em especial, com a eleição de Jair Bolsonaro (PSL).
Cabe ressaltar, por fim, que as forças políticas vinculadas ao neopentecostalismo,
também tratadas no texto, foram apoiadoras de primeira ordem de Bolsonaro. Assim,
ainda que a conjuntura tenha se alterado sensivelmente nos últimos três anos, os
elementos centrais desta análise seguem presentes na vida social brasileira e, em
alguns aspectos, foram intensificados.
INTRODUÇÃO
A história da imprensa alternativa no Brasil está diretamente condicionada pelo
desenvolvimento dos partidos de esquerda e de movimentos sociais em geral. O
último ciclo alternativo, de 1964 a 1980, acompanhou a resistência ao regime militar,
terminando com a abertura democrática e a reacomodação das forças políticas,
especialmente com o surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT), que contrastava
com os paradigmas dos partidos clandestinos responsáveis por grande parte dos
jornais daquela época. Para Kucinski (1992), apesar de o fim da ditadura ter sido
uma vitória política, o fim do ciclo da imprensa alternativa está marcado por uma
profunda crise de identidade das esquerdas, que provocaria um rápido deslocamento
do “vanguardismo” para as bases sociais.
Considerando que a crise do quarto mandato de governo federal do PT, desde
a reeleição de Dilma Rousseff em 2014 até o afastamento da presidenta para
julgamento do processo de impedimento, inevitavelmente, influencia toda a esquerda
política brasileira, quais as consequências e os desafios que podem ser relacionados
com um novo ciclo da imprensa e comunicação alternativa? Qual o novo terreno na
disputa de hegemonia?
IMPRENSA ALTERNATIVA DURANTE A DITADURA MILITAR: INÍCIO, MEIO E FIM
Bernardo Kucinski (1992, p.5) conta em “Jornalistas e Revolucionários” que foi
durante o regime militar que a imprensa alternativa chegou a seu auge, quando,
entre 1964 e 1980, foram editados cerca de 150 periódicos no país. Este ciclo surgiu
da articulação de dois fatores centrais: “o desejo das esquerdas de protagonizar as
transformações que propunham e a busca, por jornalistas e intelectuais, de espaços
alternativos à grande imprensa e à universidade”.
Desse cruzamento, surgiram jornais tanto da iniciativa de organizações
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 17
193
políticas de esquerda (a maior parte clandestina), quanto aqueles com motivações
propriamente jornalísticas. “Mas foi tão intenso o apelo do imaginário político nos anos
de 1970, principalmente após 1975, que mesmo jornais originalmente desvinculados
de partidos políticos, como Versus e De Fato, acabaram dominados pela prática
partidária” (KUCINSKI, 1992, p.7).
Para Kucinski (1992, p. 94), o fim deste ciclo da imprensa está bem demarcado.
“Como se tivesse ocorrido um cataclisma, quase todos os jornais alternativos que
circulavam entre 1977 e 1979 deixaram de existir a partir de 1980-1981.” Entre
as causas, o autor cita o fim da necessidade de resistir à ditadura militar e uma
série de vícios das organizações políticas, como modelos de gestão e distribuição
“antieconômicos”, sectarismo, aparelhamento e dificuldade em atualizar formatos e
linguagens.
Em síntese, Kucinski acredita que o desaparecimento deste ciclo da imprensa
alternativa está prioritariamente relacionado a profundas mudanças nas esquerdas,
marcadas pelo surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT) no início dos anos
1980.
A extinção dos alternativos pode ser sintomática de algo mais profundo do que
simplesmente, ou apenas, a lógica do regime autoritário. Pode ter sido sintomática
do fim de outros ciclos, cujo ocaso se confundiu com o da ditadura brasileira sem ter
com ela uma relação direta. A morte de propostas éticas de transformação social,
da crença na realização pessoal através da ação coletiva ou comunitária. Muitos
jornais alternativos do último período desapareceram em meio a um processo
político no interior das esquerdas mais complexo que a mera passagem do espaço
clandestino e semi-clandestino para uma esfera pública. O que ocorreu foi, antes
de tudo, uma implosão do paradigma leninista, operada pelo surgimento inesperado
(e por isso, em parte indesejado) do Partido dos Trabalhadores (KUCINSKI, 1992,
p. 14, grifo nosso).
ESTRATÉGIA DE RECUO
Antes do “cataclisma” da imprensa alternativa, Kucinski apresenta sinais da
crise daquele modelo de imprensa alternativa, de identidade marcada pelos partidos
políticos “de vanguarda” da época.
Essa implosão foi antecipada por Amanhã, quando Chico de Oliveira propôs
explicitamente o repúdio ao aparelhamento do jornal; por Batente, ao criar o conceito
de frente de massa, como forma de impedir a instrumentalização por partidos; e
pelos jornais basistas, fruto da necessidade da esquerda de recuar, de abdicar
do papel de vanguarda e humildemente se realimentar junto ao povo. A partir do
surgimento do movimento pró-PT, em 1979, de um momento para o outro estava
rompida a dualidade entre espaço clandestino e esfera pública, entre vanguarda e
massa (KUCISNKI, 1992, p. 14, grifo nosso).
Os “alternativos basistas”, como conceituou Kucinski, que anunciaram a crise
de ciclo, seguiam se inspirando nos modelos da imprensa alternativa, mas buscavam
uma “comunicação direta entre jornalista e público”, ou seja, “jornais em que as
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 17
194
bases populares são ao mesmo tempo sujeito da comunicação e seu próprio agente”.
Nessa noção estão incluídas tanto iniciativas diretamente vinculadas a movimentos
populares, “apenas difusores de uma outra articulação de base”, quanto projetos
jornalísticos como sendo eles próprios um movimento de base, “cuja reivindicação
específica é a de praticar um determinado tipo de jornalismo possível apenas fora do
mercado convencional”.
Aparece forte a tática de valorização da cultura popular e de “uma prática
específica – um bairro, uma favela, um distrito industrial – na qual os códigos pudessem
ser facilmente compartilhados”. A fase derradeira daquela imprensa alternativa,
assim, está marcada por essa “estratégia de recuo” (KUCINSKI, 1992, p. 83, 85, 86)
das esquerdas frente a uma nova conjuntura política, cristalizada pela ascensão dos
movimentos populares e de base, que desaguaria na formação inesperada do PT.
A estratégia de recuo pode ser resumida, então, como uma necessidade das
esquerdas de retomar um estilo de militância de base, territorial e presente no cotidiano
das pessoas, deixando os discursos vanguardistas em segundo plano.
A dispersão que se seguiu apontou para a institucionalização e mudança de
“lugar social” dos atores protagonistas da imprensa alternativa: tanto na abertura de
espaço na grande mídia, quanto no trabalho em sindicatos, partidos, movimentos
mantidos pela Igreja Católica e outras entidades da sociedade civil. Neste novo
momento,
Não se reproduz a articulação que definia uma imprensa alternativa, apenas
subsistem alguns de seus elementos, e numa forma mais simples: os jornais são
veículos de defesa de interesses corporativos ou institucionais específicos. Nessa
configuração o jornalista é essencialmente assalariado que precisa defender
posições políticas e programáticas da instituição que o emprega. O âmbito da
decisão política é o da instituição e não da redação do jornal (KUCINSKI, 1992, p.
97).
O autor ainda salienta que, apesar de certas semelhanças entre a imprensa
alternativa e alguns dos novos jornais de entidades da sociedade civil, “nessa mudança
de lugar social o jornalista não é sujeito do processo e desaparece a autonomia
jornalística” (KUCINSKI, 1992, p. 14).
POLÍTICAS DE COMUNICAÇÃO E O PARTIDO DOS TRABALHADORES
O crescimento eleitoral do PT foi rápido no país. Fundado no início da década,
e mesmo com poucos parlamentares eleitos em 1986, o partido interviu com força e
apoio dos movimentos sociais na elaboração da constituição de 1988. E, no mesmo
ano, vence eleições em importantes capitais, como São Paulo e Porto Alegre.
Restrito às gestões municipais, o PT praticamente não discutia política pública
de mídia no país. Quando pressionado, a crítica ia para a completa ausência de
diretrizes nacionais capazes de assegurar expressão aos mais diversos grupos e
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 17
195
movimentos culturais. Essa crítica tinha lógica e endereço certo: as gestões federais
pós-ditadura (Sarney, Collor, Itamar e FHC) em nada mudaram o controle político
(e eleitoreiro) das concessões e outorgas de emissoras de rádio e TV, que serviam
como “moeda de troca” por apoio político, favores e alinhamento servil ao governismo
de plantão. Enquanto isso, entidades que solicitavam canais comunitários sequer
tinham retorno e explicação para as habituais negativas.
Nas gestões locais, algumas experiências petistas até avançaram na criação
de conselhos de comunicação municipais, como foi em Porto Alegre, discutindo a
redistribuição de recursos da propaganda, até então repassada hegemonicamente
aos grandes grupos empresariais de mídia. Em alguns casos, o apoio a jornais
populares e comunitários ganhou força, impulsionando expressões fora do eixo
comercial hegemônico. De todo modo, foram casos pontuais.
Já em 2002, o debate da democratização da comunicação esteve nos
documentos da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência. No entanto,
não foi incorporado no programa do governo eleito, como apontam Liedtke e Aguiar
(2011). A principal iniciativa política do governo para o setor foi a digitalização da
televisão, sendo aprovado o modelo japonês, “defendido pelas empresas comerciais
de televisão, lideradas pela Rede Globo, que teve no ministro Hélio Costa (ex-jornalista
da emissora) seu principal interlocutor junto ao governo” (LIEDTKE; AGUIAR, p.5,
2011).
Já no plano de governo de 2006, a regulação do setor estava explícita, sendo
a desconcentração da propriedade dos meios de comunicação a tarefa fundamental.
As ações mais avançadas, todavia, foram o fortalecimento da mídia pública, com a
criação da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), em 2008, e a realização da
Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), 2010, “um importante instrumento
de consulta popular, garantindo a participação da sociedade civil na formulação de
políticas públicas” (LIEDTKE; AGUIAR, p.10, 2011), mas que não foram implementadas
mesmo com a eleição de Dilma Rousseff no mesmo ano. Assim, de acordo com os
autores, “não houve qualquer alteração fundamental no quadro de concentração da
propriedade da mídia no Brasil entre 2003 e 2010”.
Outros dois temas devem ser sinalizados: a distribuição de verbas publicitárias
e a criminalização das rádios comunitárias. Entre 2003 e 2014, a TV Globo recebeu
R$ 6,2 bilhões de publicidade federal. Record, SBT e Band tiveram R$ 2 bi, R$ 1,6
bi e R$ 1 bi, respectivamente, conforme apresenta Fernando Rodrigues (2012).
Em relação às rádios comunitárias, não houve qualquer avanço democratizante: a
legislação do setor segue a mesma do governo de Fernando Henrique Cardoso (Lei
nº 9.612/1998) e, segundo Venício Lima (2010), a repressão às rádios comunitárias
que não conseguem se legalizar em certos momentos chegou a aumentar, comparada
ao governo anterior.
Em resumo,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 17
196
Apesar de criar instrumentos de diálogo com a sociedade civil, a exemplo da
CONFECOM, os dois mandatos demonstraram que o governo [Lula] se intimidou
com a repercussão negativa na imprensa das propostas democratizantes da
comunicação, bem como, valorizou majoritariamente o interesse dos empresários
da mídia, tanto na aprovação do padrão japonês da TV Digital, como na implantação
de medidas redutoras à concentração de propriedade nos meios de comunicação.
(LIEDTKE; AGUIAR, p.11, 2011).
CENÁRIO DA CRISE
A vitória apertada de Dilma Rousseff contra o senador Aécio Neves (PSDB)
no segundo turno das eleições de 2014 já indicava a perda de hegemonia social
dos governos petistas. O afastamento da presidenta pelo Legislativo no processo
de impedimento é a cristalização da crise do ciclo petista. Certamente o cenário
econômico global é determinante para o enfraquecimento do governo federal,
principalmente devido à dependência brasileira da exportação de matérias-primas,
que tiveram seus preços rebaixados. No entanto, é pela política que podem ser
construídos diques de contenção contra as marés de crise, na relação entre reformas
de governo e mobilização social. Optando por um modelo restrito à institucionalidade,
o PT não pôde resistir à “onda conservadora”. A democratização da comunicação,
considerando o papel central desempenhado pela mídia brasileira no processo
de impedimento, certamente poderia ter sido um desses diques para enfrentar as
“narrativas” pró-impedimento.
Se, como demonstra Kucinski (1992), o surgimento do PT no início dos anos
1980 provocou uma forte reorganização das esquerdas e, por tabela, da imprensa
alternativa, podemos perguntar quais os impactos de sua crise para a atuação na
comunicação.
Considerando pesquisas (GASPAR, 2016) que indicaram que a maior parte das
chamadas classes C e D, bases da pirâmide social brasileira, veem o impedimento
com distância, como uma “briga de elite”, o atual momento parece indicar às esquerdas
aquela mesma estratégia de recuo defendida por Kucinski na abertura democrática,
justamente determinante para o surgimento do PT a partir das bases sociais.
Um primeiro esforço quem sabe seja analisar as forças sociais que mais
avançaram territorial e politicamente durante os últimos quinze anos. Destacamos o
fenômeno do neopentecostalismo. Segundo o Censo de 2010, 22,2% dos brasileiros
declaram-se evangélicos (tradicionais, pentecostais e neopentecostais), 42,3 milhões
de pessoas. Estão atrás apenas dos católicos, que correspondem a 64,6% da
população (IBGE, 2012).
Brand Arenari (2015), em uma abordagem apoiada nas sociologias de Max
Weber e Pierre Bourdieu, sustenta que o pentecostalismo é uma resposta a novas
ansiedades de sociedades de capitalismo periférico. Ou seja, “foi o discurso religioso
capaz de levar as principais promessas da modernidade a grupos sociais ou classes
sociais ‘esquecidos’ pela sociedade moderna” (ARENARI, 2015, p.12). Assim,
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 17
197
Tornou-se a expressão religiosa por excelência de uma classe social com maior
presença numérica em sociedades periféricas, ou seja, a massa de trabalhadores
excluídos da expansão capitalista na periferia de seu sistema. Uma parte importante
dessa equação foi a promessa do Pentecostalismo de uma salvação intramundana,
em sintonia com a necessidade de aliviar as ansiedades geradas pelo capitalismo
(ARENARI, 2015, p.11).
Em termos de representatividade político-partidária, a bancada evangélica tem
hoje 75 deputados federais e três senadores (DIAP, 2014). De acordo com Mariano
(2008), o Pentecostalismo cresce no Brasil desde os anos 1950, mas é desde os
anos 1980 em que há uma expansão acentuada, no momento em que o movimento
religioso passa a conquistar visibilidade pública, especialmente e na televisão e no
rádio, e poder político alojado em pequenos partidos.
MÍDIA, POLÍTICA E RELIGIÃO
A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) foi fundada em 1977 pelo bispo Edir
Macedo e é a maior representante do neopentecostalismo brasileiro. Para Arenari
(2015), o sucesso desse movimento religioso tem relação direta com as respostas
e soluções que ele pode oferecer a um segmento de trabalhadores marginalizados.
Esse vínculo elementar entre pastor e fiel é a base sobre a qual foi se estruturando,
aos poucos, impérios – econômicos, políticos e midiáticos – como o de Edir Macedo.
Por isso, Torres (2012) dá centralidade aos “serviços de cura” da IURD. Eles são
a expressão mais acabada e radicalizada da eficácia obtida pela relação entre
“religiosidade popular mágica, indústria cultural de ponta na oferta e no consumo
dos bens religiosos, e racionalidade empresarial em toda a dinâmica de expansão
planejada da Igreja” (TORRES, 2012, p. 109).
Ainda segundo o autor,
Os “serviços de cura” ganham eficácia numa dinâmica social em que a autoimagem do fracasso individual encarna tudo que deve ser combatido e evitado.
Estes serviços são consumidos numa “máquina narrativa” que dilui essa autoimagem degradante, dizendo que todas as mazelas que envolvem a vida
econômica, afetiva, familiar e a saúde foram produzidas por “encostos”; e que a
busca de “socorro espiritual” na IURD traz a solução para isso na medida em que
é capaz de fornecer proteção ao indivíduo contra as investidas destes agentes do
mal (TORRES, 2012, p. 109).
Dessa forma, “o papel das mídias para as igrejas evangélicas não é
necessariamente converter ouvintes, leitores e telespectadores, mas sim transmitir
uma mensagem convincente para que eles compareçam aos cultos” (ROTHBERG;
DIAS, 2012, p. 23). Fonteles (2010) também destaca que os programas televisivos
evangélicos da década de 1980, inspirados nos tele-evangelistas norte-americanos,
foram patrocinados pela própria massa de fiéis, via dízimo e ofertas. São os
telespectadores-fiéis os principais consumidores e sustentadores dos produtos
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 17
198
midiático-religiosos.
Em 1989, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) assumiu o controle da
Rede Record de televisão e pode aumentar sua projeção pública de maneira massiva.
Em 1998, a IURD elegeu 17 deputados federais. A cadeia de rádios Rede Aleluia hoje
é formada por mais de 56 emissoras espalhadas pelo país, cobrindo 75% do território
nacional. A revista Plenitude foi o primeiro veículo impresso, seu formato era de gibi
e os textos eram escritos pelos próprios dirigentes da Igreja. Em 1992, foi lançado o
selo musical Line Records. Em 2000, foi criado na internet o portal Arca Universal.
Por fim, o semanário Folha Universal atualmente tem tiragens médias entre 2,5 e 3,5
milhões de exemplares (ROTHBERG; DIAS, 2012).
“A estratégia de ocupação simultânea do espaço político e do cenário midiático
pode ser uma razão para o crescimento mais rápido da Iurd entre as cinco organizações
que concentram 85% dos fiéis pentecostais” (ROTHBERG; DIAS, 2012, p.21). Mas
não é necessariamente a partir dos meios massivos que a Universal elege seus
deputados. São nos cultos, presencialmente, onde são apresentados os candidatos
e até a plataforma política da igreja para as eleições. Conforme apresentamos, a
principal função dos meios de comunicação da IURD é manter o vínculo com o fiel,
reforçando a identidade neopentecostal, os “serviços de cura” e garantindo cultos
cheios.
É possível perceber que igrejas como a IURD foram apostas político-econômicas
de longo prazo, a partir de uma organização centralizada e profissional, e de
investimentos eleitorais e midiáticos. Mas, diferente de setores do agronegócio e do
empresariado, por exemplo, a IURD conta com uma ampla base social e está “dando
respostas” para os problemas do cotidiano das classes populares. Nas estratégias
de comunicação, articulam-se permanentemente o popular e o massivo, a vivência
imediata e a midiatizada.
DESAFIOS PARA A ESQUERDA E A IMPRENSA ALTERNATIVA
É neste cenário em que a estratégia de recuo para as bases sociais apontada
por Kucinski no contexto de crise da imprensa alternativa pode ser recuperada. A
perda de hegemonia coloca em cheque a identificação das classes populares com o
Partido dos Trabalhadores (PT) e a esquerda em geral.
Na ausência de uma gramática política inclusiva, democrática e participativa, e de
um projeto de país turbinado por um discurso cultural-ideológico forte que falasse
diretamente a esses setores, viu-se o novo consumo material e cultural encontrar
um correlato moral: a Teologia da Prosperidade. Nós, que sempre consumimos,
assistimos sem entender (e, portanto, sem disputar) o fenômeno. “Consumo sem
luta por direitos”, “consumo sem valores civilizacionais” tem sido o tom das análises.
Eis que a luta por direitos e representação política no parlamento e os valores
civilizacionais das massas petencostais (negras e pobres, em sua maioria) emergem
com força. A recepção, recheada de boas e velhas intenções “humanistas”, vem em
tom de negação radical: “atraso”, “obscurantismo”, “fundamentalismo” (PARANÁ,
2015).
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 17
199
A esquerda brasileira sofre de uma profunda crise de autoridade moral e
intelectual, que se reflete na disputa ideológica da sociedade, entendendo ideologia
não como “falsa consciência”, senão, como define Edemison Paraná (2015), “um
modo de representação prático (e infra-consciente) do mundo em que vivemos,
baseado fundamentalmente na realidade cotidiana de nossas vidas, inseridas num
dado modo de organização da vida social”. Por isso, ideologia é também
Afeto e identificação, porque ancorada em dimensões simbólicas, rituais, práticas e
nos sistemas de referência, presença e convivência cotidiana (o pastor toma parte
e ajuda a 'resolver’ os problemas práticos da comunidade, com a comunidade). “A
hegemonia política teve por base, em todas as partes, o exercício de uma função
social”, observou Engels no Anti-Duhring. Contra sua força avassaladora, a pureza
iluminista de distantes discursos lógico-racionais pouco representa (PARANÁ,
2015).
A consequência política desta análise faria com que as esquerdas assumissem
a comunicação e o jornalismo popular e comunitário como uma das ferramentas de
mobilização social e disputa de hegemonia, aproveitando seu caráter de construção
coletiva, presencial e territorial, a partir da cultura e das questões enfrentadas pela
própria comunidade ou grupo social e, assim, presente na dimensão do afeto e
identificação.
Essa ênfase no popular não implica abandonar o terreno do massivo, mas
simplesmente considerar que a eficácia do discurso massivo está diretamente
relacionada a questões ideológicas, que são construídas (e podem ser descontruídas)
na vida cotidiana. Trata-se de adequar a prática militante para um momento de crise
de hegemonia, voltando-se para as bases sociais a fim de também acumular forças
para a disputa nos espaços públicos da sociedade civil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O percurso histórico realizado neste trabalho, da imprensa alternativa
na resistência à ditadura militar até o momento atual, passando pelas políticas
de comunicação do Partido dos Trabalhadores e com ênfase no fenômeno do
neopentecostalíssimo, teve o objetivo de refletir sobre algumas estratégias de
comunicação nas disputas políticas.
Destacamos que o movimento religioso neopentecostal se assenta sobre
vínculos estabelecidos entre pastor e fiel e, especialmente no caso da Igreja Universal
do Reino de Deus, através dos “serviços de cura”. O investimento em diferentes
mídias pela IURD corresponde a diferentes necessidades e é uma estratégia central
para o fortalecimento religioso e também político e econômico.
De outro lado, procuramos relacionar a crise de identidade das esquerdas e da
imprensa alternativa – apontada por Kucinski no início da 1980, que culminaria na
fundação do PT a partir de um novo estilo de militância de base – com o cenário atual
de retrocesso político-ideológico nacional e apontar, de maneira inicial e exploratória,
desafios e possibilidades.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 17
200
Por fim, é preciso registar que não há intenção de nivelar o comportamento
dos movimentos sociais pelas práticas do neopentecostalismo, mas sim abordar as
condições de disputa em um terreno que este movimento religioso ganha cada vez
mais hegemonia.
REFERÊNCIAS
ARENARI, B. América Latina, pentecostalismo e capitalismo periférico: Aproximações teóricas para
além do culturalismo. Civitas - Revista de Ciências Sociais, [S.l.], v. 15, n. 3, p. 514-527, jan. 2016.
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FONTELES, H. A ascensão da mídia evangélica: pelo uso do tripé político, econômico e tecnológico.
Voos Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá, América do Norte, 2, jul. 2010.
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deficiência. Brasília, 2012.
GASPAR, M. O que de fato divide os brasileiros (não é o impeachment). Piauí. 22/03/2016. Disponível
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KUCINSKI, B. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo:
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LIEDTKE, P. F; AGUIAR, I. Políticas públicas de comunicação no Governo Lula (2003-2010): avanços
e retrocessos rumo à democratização do setor. In: XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da
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Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 17
201
CAPÍTULO 18
doi
PORTFÓLIO DE ORLANDO BRITO: O FIM DA ERA DILMA NA
REVISTA PIAUÍ
André Melo Mendes
UFMG, Departamento de Comunicação Social da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Belo Horizonte - MG
Mírian Sousa Alves
CEFET-MG, Departamento de Linguagem e
Tecnologia
Belo Horizonte - MG
RESUMO: O objetivo deste artigo é compreender
os discursos veiculados pela revista Piauí a
partir da sequência de imagens que compõem
a matéria “Fim do caminho”. Com fotos de
Orlando Brito, o ensaio visual foi publicado
pela Piauí em 10 de maio de 2016. A revista
procurou exibir, por meio de imagens, uma
síntese da era Dilma e de seu significado para
o cenário político brasileiro. Ao mudar alguns
padrões estéticos das fotografias e encadeálas linearmente, a revista propõe uma narrativa
na qual as imagens anteriormente exibidas pela
mídia ganham novos sentidos. A análise aqui
proposta utiliza o conceito de Pathosformel
criado por Aby Warburg e retrabalhado na
contemporaneidade por pensadores como DidiHuberman, Carlo Ginzburg e Giorgio Agamben.
Também constituem chaves operatórias deste
estudo os conceitos de Discurso e Verdade
propostos pela obra de Michel Foucault.
PALAVRAS-CHAVE:
fotografia;
discurso;
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
pathosformel, Era Dilma, Orlando Brito.
PORTFOLIO OF ORLANDO BRITO: THE END
OF THE DILMA ERA IN PIAUÍ MAGAZINE
ABSTRACT: The aim of this article is to
understand the discourses conveyed by Piauí
magazine from the sequence of images that
make up the story "End of the Road". With
photos of Orlando Brito, the visual essay was
published by Piauí on May 10, 2016. The
magazine sought to display, through images,
a synthesis of the Dilma era and its meaning
for the Brazilian political scene. By changing
some aesthetic patterns of photographs and
linking them linearly, the magazine proposes
a narrative in which the images previously
exhibited by the media gain new meanings.
The analysis proposed here uses the concept
of Pathosformel created by Aby Warburg and
reworked in the contemporary by philosophers
like Didi-Huberman, Carlo Ginzburg and
Giorgio Agamben. Also imports to this study the
concepts of Discourse and Truth proposed by
Michel Foucault.
KEYWORDS:
photography;
speech;
pathosformel, Era Dilma, Orlando Brito.
1 | INTRODUÇÃO
O ano de 2016, sem dúvida, ficará
Capítulo 18
202
marcado na história do Brasil pela aguda crise política que assolou o país e pela
representação dessa crise na mídia. Apesar da grande complexidade dos discursos
veiculados nesse período, no que se refere ao que ocorreu no Brasil, assistimos a
uma polarização em que predominaram apenas dois discursos disputando cabeça
a cabeça a definição da verdade do que foi esse acontecimento: um considerado
“de esquerda” e outro considerado “de direita”, em competição para definir o que se
passou no ano de 2016.
De um lado, o discurso sustentado pela oposição ao governo de Dilma Rousseff,
apoiado também pela mídia tradicional de que o impeachment foi um ato legítimo;
e, do outro, um discurso sustentado pela esquerda, especialmente por aqueles que
apoiam a ex-presidente, de que se tratou de um golpe. Essa polaridade discursiva foi
reforçada por diversos atores midiáticos, inclusive pela revista Piauí. Pouco depois
do afastamento de Dilma Rousseff da presidência, em maio de 2016, a revista Piauí
publicou na sua seção Portfólio uma matéria em que imagens do conhecido fotógrafo
político Orlando Brito sintetizavam o fim da Era Dilma. A matéria, intitulada Fim do
caminho, ocupou 10 páginas, sendo 8 delas, páginas duplas.
O objetivo deste artigo é analisar essas imagens procurando entender os discursos
por ele veiculados. Para analisar as fotografias, utilizamos uma metodologia de base
semiótica e contamos com o auxílio do conceito de Pathosformel (formas do patético),
além das noções de ensaio fotográfico e da observação dos elementos construtores
de sentido em uma narrativa visual. A dimensão das imagens e a disposição das
fotografias no espaço da página também são aqui consideradas construtoras dessa
retórica. Para refletir sobre os resultados da análise, escolhemos como conceitos
operatórios as noções de Discurso e Verdade propostos pela obra de Michel Foucault.
2 | VERDADES E DISCURSOS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
A contemporaneidade é definida de múltiplas formas, por autores diversos:
modernidade tardia, para Giddens (2002); pós-modernidade, para Lyotard (1993);
modernidade líquida, para Bauman (2001). Na constituição desse conceito, há uma
série de especificidades destacadas por esses autores que apontam para aspectos
singulares do mundo hodierno. Nesse artigo, vamos trabalhar com o conceito de
contemporâneo ligado às teorias da linguagem, especialmente aqueles pensadores
que admitem que o acesso ao mundo não é possível senão por meio de representações
(signos) e nunca de forma direta. Esse ponto de vista dialoga diretamente com a
proposta de filósofos como Gianne Vattimo ou pensadores como Edgar Morin,
quando esses se aproximam da ideia de complexidade como referência para pensar
a realidade.
Segundo esse pensamento, para se apropriar do mundo fora de si, o ser
humano faz uso de modelos de apreensão baseados em representações imperfeitas
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 18
203
chamadas signos. Charles S. Peirce, semiótico e filósofo pragmatista americano,
descreve o signo como algo que está no lugar de outro algo, de maneira imperfeita,
para uma mente interpretadora potencial (PEIRCE apud PINTO, 1995, p.50). Os
códigos que regem os signos são artificiais e variam no tempo e no espaço de acordo
com aspectos sociais, políticos e econômicos.
Para entender melhor essa ideia, utilizamos como referência os conceitos
desenvolvidos por Michel Foucault, cuja abordagem complexa do mundo considera
que não há uma verdade única, universal a ser descoberta, existindo apenas discursos
considerados verdadeiros de acordo com o regime de verdade de cada sociedade.
Esse regime de verdade seria limitado pelo que Foucault chamou de Disciplinas, ou
seja, os métodos e proposições que determinam aquilo que pode ser considerado
como verdadeiro e que estão à disposição de quem quer (ou pode) se servir dele.
Para Foucault (2014), as disciplinas são percepções coletivas que fundamentam
a normatização de regras e sedimentam a vida ordinária do cotidiano, nunca se
separando do imaginário da vida social. Elas compõem as infinitas maneiras de
compreensão dos fatos, através da construção do senso comum. Esse regime de
verdade, ou a Ordem do Discurso, é que controla o que será considerado como o
“verdadeiro” do discurso e o que será desqualificado como falso.
3 | METODOLOGIA E ANÁLISE DAS FOTOGRAFIAS NA MÍDIA IMPRESSA
As análises das imagens foram realizadas a partir de um método de base
semiótica, vinculado à linha peirceana, que tem semelhanças com os parâmetros
desenvolvidos por Erwin Panofsky (2002), com uma diferença fundamental: não
considera o último nível da análise da forma proposta pelo pesquisador alemão, que
afirma que a intuição de um leigo pode ser mais efetiva que a capacidade racional de
um pesquisador. Dessa forma, na análise de cada imagem foram considerados não
apenas seus aspectos formais, suas relações com o contexto histórico, mas também
o diálogo com outras imagens da História da Arte e da própria série fotográfica.
Para percebermos essas ligações entre as imagens lançaremos mão do conceito de
pathosformel, proposto por Aby Warburg.
Pathosformel ou as “formas do patético” são estados de ânimo convertidos
em imagens, “autênticos e verdadeiros topoi figurativos”, que encarnam “traços
permanentes das comoções mais profundas da existência humana” (GINZBURG,
1989, p. 45 e 55). Segundo Warburg, “as formas pictóricas podem ser transmitidas,
transformadas e restauradas numa nova e vigorosa vida” (WARBURG apud
GINZBURG, 2014, p. 74). Esse conceito interessa às análises deste artigo porque
trata de uma importante característica das imagens: sua sobrevivência no tempo
por meio dos sentidos provisoriamente sedimentados e cristalizados nelas. Esta
qualidade permite que as imagens estabeleçam, em determinado momento histórico,
ligações entre si.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 18
204
4 | DRAMATICIDADE E ABANDONO ABREM A CENA
A primeira foto do portfólio ( um close-up no qual Dilma exprime enorme
tristeza) e a penúltima (em que a ex-presidente é consolada por Lula), dialogam com
a iconografia cristã (remetem às imagens de sofrimento e amparo presentes nas
imagens que retratam a deposição de Cristo da cruz desde o século XIV). Como nos
ensina Freeman (2014, p. 22), a foto de abertura de uma narrativa fotojornalística
deve ser expressiva o suficiente para atrair o leitor, além de reforçar informações
propostas pelo texto da reportagem. Essas características são bem evidentes na foto
de abertura.
FIGURA 1: Com pálpebras à mostra e rugas de expressão, a figura de Dilma evoca aqui uma
conhecida iconografia do mundo cristão: o choro de Maria
FONTE: Revista Piauí, 10 de maio de 2016. Fotógrafo: Orlando Brito
A imagem define o fim do caminho como triste e melancólico, sentimentos
expressos no retrato de uma mulher cansada, com os olhos fechados e várias marcas
de expressão no rosto. A força dessa imagem advém do uso da luz, do enquadramento
e da escolha do preto e branco, em vez do colorido, além da evocação de uma
pathosformel bastante conhecida no mundo cristão: o choro de Maria quando o corpo
de Cristo é baixado da cruz. Um bom exemplo dessa iconografia pode ser percebido
no quadro A descida da cruz de Rogier van der Weyden (ver figura 2).
FIGURA 2: A pintura “A descida da cruz”, de Rogier Van der Weyden, de 1436, exibe uma
phatosformel recorrente na iconografia cristã: o choro de Maria diante do filho morto
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 18
205
Como é amplamente sabido, a criação de qualquer fotografia é resultado de
uma série de decisões sobre a organização dos signos que o fotógrafo tem à sua
disposição. Ele define o que será incluído ou excluído, o momento que será capturado
e a partir de qual ângulo a imagem será produzida. Essas decisões constituem uma
espécie de gramática da imagem. Dentro dessa perspectiva, o enquadramento é o
palco no qual contamos uma história (DUCHEMIN, 2015, p. 114-116). Se está no
enquadramento, então, tem importância e significa algo. Como diz Sontag (2004,
p. 41), fotografar é atribuir importância, conferir valor a um determinado tema. O
enquadramento é uma parte da própria foto e define como a história é contada. E
é por essa razão que este será o primeiro aspecto analisado na foto de abertura do
potfólio de Orlando Brito.
A imagem exibe em superclose uma mulher de meia idade. A escolha desse
enquadramento aumenta a atenção sobre o rosto fotografado e destaca o estado de
ânimo da personagem. O fundo escuro e a ausência de outros elementos garantem
que o olhar do leitor irá se concentrar na face da retratada. É como se o enquadramento
nos dissesse claramente: olhe para o rosto dessa mulher, veja sua testa cheia de
rugas e sua boca entreaberta.
Ela está sozinha na cena, o que pode sugerir abandono e solidão. O flash vem
do lado esquerdo do rosto, deixando a parte direita um pouco sombreada como se
pode notar na figura 3. A composição lembra o estilo de iluminação de Goya e mais
ainda a de Caravaggio (ver figura 3).
FIGURA 3: À esquerda, foto de abertura da matéria Fim do caminho (2016) da revista Piauí,
ao meio "Davi" (detalhe) óleo sobre madeira, 1590s, 90,5x116 cm. Kunsthistorisches Museum,
Viena e à direita “David com a cabeça de Golias" (detalhe), c.1607, 125 x 100 cm
A opção por esse enquadramento sem dúvida contribui para a atribuição de
determinados significados a respeito dessa mulher. Além do aspecto cansado que
caracteriza seu ânimo, podemos perceber que ela possui um penteado bem feito,
um brinco na orelha direita, que brilha, e uma roupa escura que se funde ao fundo,
destacando ainda mais sua face. Sua posição em primeiríssimo plano ressalta a
dramaticidade expressa por sua dor contida. O rosto emerge do fundo escuro, com
um impressionante impacto emocional intensificado pelo contraste entre luz e sombra
que dá destaque para suas rugas. Não há mais máscaras, a imagem a mostra
envelhecida, solitária e enfraquecida e parece propor aos leitores uma questão: luta
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 18
206
perdida?
A ligação entre Dilma e a pathosformel da Virgem Maria ao velar Cristo morto
como na obra de Roger van der Weyden aqui mostrada (figura 2) pode contribuir para
a ideia de que ela precisa de alguém para ampará-la, como acontece nas diversas
composições cristãs, acentuando ainda mais sua fragilidade. Na narrativa fotográfica
da revista Piauí, esse amparo só será dado na última página do ensaio, quando Dilma
é abraçada por Lula, como mostra a figura 4. Na penúltima foto do portfolio, Lula a
abraça como fez durante a campanha de 2010 e nos anos posteriores, como se pode
ver no mosaico abaixo (ver figura 4).
FIGURA 4: À esquerda, o amparo de Lula acentua a fragilidade da figura de Dilma ensaio
publicado pela Piauí. À direita, um pouppourri de fotos publicadas pela mídia tradicional
confirma o uso exacerbado de fotos que reproduziram a pose
FONTES: Revista Piauí, 10 de maio de 2016 / UOL Eleições 2014eleicoes.uol.com.br956 × 500 Pesquisa por
imagem, 26 out 2014 e Reuters.
5 | AS LEGENDAS E O SENTIDO DAS IMAGENS
No início dos anos 1970, Roland Barthes afirmou que as imagens eram signos
que precisavam da palavra para esclarecer seu sentido. Ao contrário da arte, que
considera o caráter explicativo de um texto sobre uma imagem como empobrecedor
do sentido da mesma, no jornalismo não há dúvida acerca de sua necessidade.
Wilson Hicks escreveu que “a unidade básica do fotojornalismo é uma fotografia com
palavras” e Freeman considera que fotografias podem ficar mais interessantes com a
ajuda de simples legendas. (FREEMAN, 2014, p. 44).
Sylvia Moretzsohn, a partir de uma pesquisa em que analisou os manuais de
redação da Folha de São Paulo, Estado de São Paulo e O Globo, observou que os
três manuais consideram a descrição o objetivo primordial das legendas. Além de
descrever, a legenda deve complementar as informações do acontecimento mostrado,
permitindo ao leitor compreender aquilo que está vendo (MORETZSOHN, 2012, p.87).
Moretzsohn (2012, p. 83) afirma que investigar as relações entre texto e imagem é
essencial para se estudar a produção de sentido na mídia impressa. Na esteira de
Barthes, a pesquisadora lembra que a imagem possui uma grande multiplicidade de
significados e que precisaria de um texto para conformá-la ao sentido pretendido pela
editoria.
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Também para Freeman, o uso das legendas é fundamental no jornalismo,
especialmente se consideramos que a matéria fotográfica parte da premissa de que
vai ser contada uma história. Isso já traz, por si só, uma expectativa de explicação,
daí o caráter fundamental da legenda. Segundo o fotógrafo, a confusão pode ser
um instrumento que funciona por um tempo durante a narração de uma história,
mas “sempre chegará um momento em que as coisas precisam ser explicadas”
(FREEMAN, 2014, p. 42).
Na matéria aqui analisada, enquanto o título sugere que o estado de ânimo
da mulher retratada é causado pelo fim do seu mandato, o subtítulo reforça para o
leitor o sentimento da mulher como sendo de agonia e a identifica (caso ainda não
houvesse sido reconhecida pelos leitores). Já a legenda informa a data do acontecido
e esclarece tratar-se de uma data antes “do fim do caminho”.
Tal esclarecimento acaba por sugerir que não apenas a imagem representa o
agravamento da crise como também uma premonição do que viria a acontecer – o
impeachment / fim do caminho. Na legenda da primeira imagem, lê-se: “em 09 de
março de 2015, um dia depois do primeiro panelaço, Dilma conversou com jornalistas
e deu sinais de que a crise havia se agravado ao mencionar, pela primeira vez, o
impeachment”.
Considerando o contexto político da data de publicação da foto (10 de maio de
2016), quase um mês após a retirada da presidente do poder, quando o impeachment
já havia sido excessivamente divulgado nos meios de comunicação, para o leitor
medianamente informado, os principais dados fornecidos por essa legenda são a
data em que a foto foi realizada e o seu contexto: a foto parece ter sido tirada no dia
do impeachment. Esse descompasso entre a data real (bem anterior) e a data que
o leitor tenha imaginado inicialmente, ajuda a reafirmar a ideia que está presente
no texto e nas outras fotografias selecionadas para esse portfólio: a ideia de que
as imagens de Orlando Britto “previram” o que se sucederia. A fotografia que foi
produzida no início de 2015, ao mesmo tempo que ilustra o desgaste emocional da
presidente com o primeiro panelaço, surge como um prenúncio da disputa política
que se seguiria a partir dali, e que culminaria no seu impeachment/golpe.
FIGURA 5: As imagens de Dilma andando de bicicleta foram exaustivamente exploradas pela
mídia
FONTE: Revista Piauí, 10 de maio de 2017; fotógrafo: Orlando Brito
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Capítulo 18
208
Na página dupla que segue a página de abertura, identificamos duas imagens
bastante semelhantes nas quais a ex-presidente Dilma é fotografada em plano geral,
contra a luz e com um cenário bem definido ao fundo. Na primeira imagem de Dilma
sobre a bicicleta, ela caminha da esquerda para a direita e traz o Palácio do Planalto
ao fundo (típico cenário que contextualiza a foto); enquanto que, na segunda, a
presidente caminha na direção oposta, da direita para esquerda, com uma empresa
de limpeza de carros (carwash) ao fundo, onde lê-se escrito em caixa alta: “lava-jato
Planalto”.
Claramente, essas imagens fazem menção às pedaladas fiscais, medida
polêmica, utilizada em governos anteriores, mas que se constituiu na base jurídica
para o impeachment de Dilma Rousseff. Segundo Martha Beck, a expressão “pedalar”
costumava ser usada pelos técnicos que lidam com o orçamento público como
sinônimo de postergar uma despesa. O nome "pedalada fiscal" foi dado à prática do
Tesouro Nacional de atrasar de forma proposital o repasse de dinheiro para bancos
(públicos e também privados) e autarquias, como o INSS. Ao longo de 2015, houve
uma grande disputa envolvendo o TCU e a Advocacia Geral da União para determinar
se essas manobras realizadas pelo governo Dilma eram consideradas legais ou não.
A ironia está marcadamente presente na imagem em que Dilma é retratada
“dando suas pedaladas” em frente ao local onde se lê “lava-jato”. O nome Lava Jato
deriva de uma operação que envolve a Justiça Federal, o Ministério Público Federal
e a Polícia Federal e que pretendia obter informações sobre doleiros envolvidos com
lavagem de dinheiro no Paraná, e cujo primeiro ato da operação foi a quebra de sigilo
de um posto de gasolina – o Posto da Torre, em Brasília – pertencente a um desses
doleiros – daí o nome Lava Jato (NETTO, 2016, p. 11).
As duas fotografias de Dilma, juntas nesta edição, parecem ter sido usadas como
uma espécie de resumo das causas da queda política da presidente: as pedaladas
fiscais e a operação Lava Jato. A escolha das imagens para a reportagem segue a
ideia contida no texto, de que o fotógrafo, conscientemente ou não, foi capaz de intuir
aquilo que aconteceria. A sequência dessas fotos acaba levando o leitor a reafirmar
o que é proposto pelo texto da matéria: de fato, estava tudo previsto. Entretanto,
como veremos mais adiante, a escolha dessas fotos e provavelmente até mesmo a
edição de algumas delas – como a cena da posse de Dilma -, foram realizadas com
o objetivo de se adaptar a esse argumento.
O uso da legenda nessas fotos destoa um pouco da prática jornalística habitual.
Em vez de cada foto receber um texto próprio, em sua página, como seria o padrão,
a editoria optou por colocar a legenda da primeira foto atravessando as duas
páginas, algo incomum, mas que vai se repetir em todo o ensaio, sugerindo a ideia
de continuidade e unificação entre as imagens do portfólio. Claramente, essa opção
para a legenda reforça a continuidade narrativa existente entre as imagens. O padrão
foi usado ao longo de toda a matéria.
A primeira legenda afirma: “Enredada pelas pedaladas fiscais, que embasaram
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Capítulo 18
209
o pedido de impeachment, Dilma passou os anos de 2015 e 2016 fazendo dieta e
andando de bicicleta, sempre seguida por dois militares e um personal trainer. As
imagens, além de involuntariamente irônicas, eram uma espécie de metáfora perfeita
para algo pouco compreensível, e foram exaustivamente usadas pela imprensa na
cobertura da crise”.
A sequência narrativa das fotos do portfólio Orlando Brito publicado pela Piauí
destaca claramente os motivos legais expostos pela mídia brasileira como as causas
que levaram o governo Dilma ao “Fim do Caminho”. A palavra “involuntariamente” usada
pela legenda da revista Piauí para referir-se à ironia da mídia parece amenizar o tom
sarcástico sugerido pelas imagens de Dilma em sua bicicleta, cena exacerbadamente
explorada pela mídia nacional nos meses anteriores ao impeachment.
No início dessa prática política, tentou-se classificá-la como Economia Criativa,
mas o nome não conseguiu o efeito esperado. Depois que a imprensa optou por
trocar o termo de Economia Criativa por Pedaladas Fiscais, um grande número de
imagens de Dilma andando de bicicleta foram veiculadas nos meios de comunicação.
6 | DESCONFORTO, MESMO AO LADO DE ALIADOS
Assentada entre Aloizio Mercadante e o ex-ministro da Ciência e Tecnologia
Celso Pansera, com um grupo de pessoas atrás, Dilma é exibida na grande fotografia
dessa página junto a um grupo de pessoas com pouco cacife político. O ministro
Mercadante sempre foi um político fiel a Dilma, mas com baixa capacidade de
negociação. A manutenção de Mercadante no cargo sem dúvida contribuiu para
aumentar o desgaste do governo com outros políticos. Essa grande foto mostra uma
Dilma solitária e desolada, como a última foto da coluna ao lado. Sozinha ou junto a
outras pessoas, o seu sentimento é de desolação.
Na segunda maior imagem em tamanho/área ocupada, vemos a presidente
mais uma vez olhando para baixo, como se os olhos estivessem fechados, ao lado
de Mercadante. A disposição dos elementos na cena sugere que se trata de algum
evento burocrático e que estão todos desconfortáveis. Essa é a primeira aparição de
Dilma depois do parecer favorável ao impeachment passar pela comissão especial
da Câmara.
Os rasgos fisionômicos do rosto de Dilma revelam uma profunda introspecção
psicológica, do qual emerge um caráter melancólico que é espelhado por aqueles que
estão ao seu lado. Essa atmosfera de derrota não é a única coisa espelhada entre os
três: Mercadante está com suas mãos de maneira muito parecida à da ex-presidente,
assim como sua roupa repete a do seu colega. É possível perceber uma expressão
de desânimo, talvez até uma dor contida, na linguagem corporal dos três.
Na fila de trás, estão quatro mulheres assentadas participando da cerimônia,
mas só é possível vermos completamente dois rostos femininos. Os outros dois só
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 18
210
podem ser vistos até a altura da boca, ambas fechadas. As expressões são neutras,
tendendo mais para o desânimo, principalmente se considerarmos a última mulher
à direita, cujo olhar para baixo acaba por guiar nosso olhar para Celso Pansera que,
por sua vez, também tem seu olhar perdido. Nenhum deles olha para algo específico.
Trata-se de uma linha de mulheres e, considerando-se o evento, uma linha de apoio
à presidente.
FIGURA 6: O olhar cabisbaixo de Dilma torna-se uma constante na proposta do ensaio da
revista Piauí
FONTE: Revista Piauí, 10 de maio de 2016. Fotógrafo: Orlando Brito.
A legenda afirma: À medida que o quadro político se deteriorou, a cabeça
baixa de Dilma foi se tornando uma constante. Às vésperas do impeachment,
durante cerimônia no Planalto ela parecia velar o próprio governo, ao lado de Aloizio
Mercadante, que havia deixado a Casa Civil para assumir a Educação após pressão
de Lula e do PMDB, e do ex-titular da Ciência e Tecnologia, Celso Pansera”. Ou seja,
a legenda esclarece o local (Planalto) e o motivo (uma cerimônia), mas não esclarece
de qual cerimônia se trata e nem quem são aquelas mulheres atrás de Dilma. Nela,
o comentário sobre Aloízio Mercadante evidencia a fraqueza de Dilma e a influência
de Lula (e também do PMDB) no governo, contribuindo ainda mais para reiterar uma
imagem negativa da Presidente.
O texto da legenda não faz referência direta à coluna de pequenas fotos situada
na página da esquerda. Se repararmos que a roupa da ex-presidente varia, fica claro
que se tratam de acontecimentos distintos, uma vez que sua roupa não é a mesma.
O que se repete nessas imagens é apenas a ideia da cabeça baixa, o que na cultura
ocidental significa tristeza, falta de força, desamparo.
Embora não haja nenhuma indicação no texto da Revista Piauí, descobrimos,
por meio de pesquisa, que essa fotografia foi feita no dia 12 de abril de 2016, por
ocasião do "Encontro da Educação pela Democracia". O evento, que ocorreu no
Palácio do Planalto, reuniu entidades da educação que se manifestaram contra o
impeachment da presidenta Dilma Rousseff. O Fórum Nacional de Educação (FNE)
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 18
211
esteve presente e entregou, nas mãos da presidenta Dilma Rousseff, a 39ª Nota
Pública do FNE, a qual afirma que "impeachment sem crime de responsabilidade é
golpe". Verificando as imagens disponíveis na internet, percebemos que na maioria
das imagens divulgadas sobre esse evento predomina o clima de alegria e apoio à
ex-presidente, como mostram as imagens abaixo.
FIGURA 7: Em 12 de abril de 2016, a presidente Dilma Rousseff participou de encontro com
professores e estudantes em defesa da democracia em Brasília (DF).
FONTE: Revista Piauí, 10 de maio de 2016. Fotógrafo: Orlando Brito.
Apesar do contexto ser totalmente favorável à ex-presidente, curiosamente, na
fotografia de Orlando Brito publicada pela Piauí, a leitura das expressões fisionômicas
nos leva a pensar que todos esperavam, assentados e desconfortáveis, pelo fim do
governo Dilma. O desalento dos ministros de Dilma acrescenta uma nota dolorosa à
cena. A atmosfera da foto chega a fazer referência a algumas imagens dos séculos 15
e 16 da descida de Cristo da Cruz, anteriormente mostradas neste artigo (ver figura
2).
7 | RESULTADOS E CONCLUSÕES
Refletir sobre o contemporâneo implica considerar os diversos discursos que
coexistem no momento histórico no qual estamos inseridos. Esses vários discursos
estão em constante disputa para decidir as verdades que dominam o consenso
em cada campo, determinando que verdades prevalecerão estáveis, quais serão
ultrapassadas e quais não serão habilitadas a serem consideradas como possíveis
verdades.
A revista Piauí realizou diversas mudanças nas imagens anteriormente publicadas
por outros veículos, a fim de construir sua narrativa sobre o acontecimento. Nesse
processo, foram alterados o tamanho, a cor e o enquadramento das fotografias. Além
disso, as imagens foram distribuídas pelo espaço da página de maneira a reforçar
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 18
212
uma impressão de decadência e solidão de Dilma Rousseff à medida que o tempo
passava.
Um exemplo significativo de como essas escolhas interferiram no sentido
da narrativa pode ser percebido na imagem na qual Dilma é retratada ao lado de
Aloisio Mercadante e Celso Pansera em um evento ocorrido no Palácio do Planalto
em 12 de abril de 2016. A fotografia utilizada pela revista mostra os três abatidos e
desconsolados, como se estivessem em um velório, quando o espírito do evento
foi justamente o contrário: o evento, um encontro da presidente com professores e
alunos em defesa da democracia, foi marcado por alegria e apoio à Dilma.
Dessa forma, a seleção das imagens e das composições criadas pela revista
favoreceu um discurso crítico que estava mais próximo dos argumentos da direita,
evidenciando a decadência e perda de apoio de Dilma Rousseff ao longo dos anos
em que esteve no poder. Tal fato nos causou surpresa, porque a revista Piauí é,
notadamente, uma revista conhecida por seu alinhamento político à esquerda.
Acreditamos que, provavelmente, essa escolha não foi consciente, mas, isso não
impediu que a reportagem contribuísse para reforçar a ideia de que nos últimos
meses do seu mandato, a ex-presidente Dilma estava abandonada e fragilizada.
Por outro lado, a contradição entre as imagens e o texto foi capaz de minimizar
esse posicionamento, expondo um discurso menos polarizado, marcado por maior
complexidade na construção do embate político narrado.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. Trad. Renato Ambrosio. São Paulo: Hedra, 2012.
BAUMAN, Zygmunt. A modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: História da arte e tempo dos fantasmas segudo
Aby Warburg. (Trad.) Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2002.
GINZBURG, Carlo. Mitos emblemas e sinais: morfologia e história. Trad. Federico Carotti. São Paulo:
Companhia das letras, 1989.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
PINTO, Julio. 1,2,3 da Semiótica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga. São Paulo: Edições Loyola. 2014.
PANOFSKY, Erwin. O significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2002.
Bibliografia História da Mídia e da Imprensa
Capítulo 18
213
VATTIMO, Geanni. O fim da modernidade, niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São
Paulo: Martins Fontes, 1996.
PUBLICAÇÕES PERIÓDICAS
Revista Piauí. no. 116, 10 de maio de 2016.
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Capítulo 18
214
SOBRE A ORGANIZADORA
Luciane Pereira da Silva Navarro - é jornalista formada pela Universidade Estadual
de Ponta Grossa (2000), com mestrado em Linguagem, Identidade e Subjetividade,
também pela UEPG (2014). É especialista em Direção de Arte pelo Centro Universitário
Curitiba, Unicuritiba (2005). Com 23 anos de experiência em assessoria de
comunicação, foi sócia da agência A4 Comunicação por 13 anos (2001-2014). Desde
2007, leciona nos cursos superiores de jornalismo e publicidade. Foi coordenadora
do Curso de Pós-graduação em Comunicação Empresarial no Cescage (2013-2017).
Atuou como coordenadora de marketing das Faculdades Ponta Grossa - Cescage
(2014-2017). Atualmente, é Coordenadora de Comunicação da Universidade Estadual
de Ponta Grossa.
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Sobre a Organizadora
215
ÍNDICE REMISSIVO
A
Arte 41, 42, 85, 86, 99, 100, 103, 107, 109, 118, 124, 128, 129, 130, 131, 136, 139,
142, 143, 147, 152, 153, 161, 165, 204, 207, 213
C
Canal 11 156, 160, 163, 165, 167
Censura 45, 78, 83, 89, 94, 157, 183, 185, 186, 187, 188, 191
Cinema 44, 85, 102, 103, 108, 109, 112, 121, 123, 124, 129, 130, 131, 132, 136, 137,
138, 139, 140, 142, 153, 165, 183
Comunicação 1, 2, 3, 4, 6, 8, 9, 16, 20, 23, 24, 25, 26, 46, 54, 55, 56, 57, 58, 60, 61, 62,
63, 64, 65, 67, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 80, 83, 85, 86, 90, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 103,
105, 108, 112, 114, 115, 118, 132, 142, 143, 146, 147, 149, 150, 151, 155, 156, 158,
165, 167, 169, 180, 183, 192, 193, 194, 195, 196, 197, 199, 200, 201, 202, 208, 210
Correspondentes brasileiros 183
Crise política 192, 203
D
Dilma Rousseff 193, 196, 197, 203, 209, 211, 212, 213
Dispositivos móveis 62, 63, 66, 67, 68, 70
Documentário 123, 124, 127, 128, 129, 130, 131, 138, 140, 142, 143, 167, 168
E
Educação 4, 9, 43, 49, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 62, 63, 64, 65, 66, 68, 69, 70, 71,
72, 90, 147, 156, 157, 158, 162, 163, 165, 166, 167, 168, 211
Evolução curricular 50
Expressão artística 97
H
História 1, 2, 3, 4, 6, 8, 9, 11, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 28, 39, 41,
43, 48, 49, 50, 54, 60, 63, 64, 74, 75, 78, 79, 80, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 90, 91, 92,
95, 96, 97, 99, 100, 101, 103, 110, 111, 112, 117, 120, 123, 124, 125, 126, 127, 128,
129, 130, 131, 133, 137, 138, 140, 141, 143, 144, 149, 151, 155, 156, 164, 166, 167,
168, 170, 171, 172, 173, 174, 176, 181, 183, 186, 190, 193, 203, 204, 206, 208, 213
Histórias em quadrinhos 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96
Historiografia 9, 21, 98, 125, 126, 170, 180
I
Ilustração 138, 189
Imprensa 1, 2, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 37, 39, 40,
41, 42, 44, 45, 49, 51, 52, 53, 54, 55, 59, 74, 75, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 87, 90,
96, 97, 98, 99, 102, 103, 111, 112, 113, 120, 132, 135, 136, 151, 170, 171, 175, 176,
177, 179, 180, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194, 195, 197,
199, 200, 201, 210
Imprensa alternativa 190, 192, 193, 194, 195, 197, 199, 200, 201
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Índice Remissivo
216
Impresso 6, 20, 21, 37, 41, 45, 47, 49, 51, 56, 59, 79, 80, 100, 101, 103, 105, 110,
111, 169, 170, 172, 174, 176, 177, 199
J
Jornais 2, 3, 5, 6, 11, 12, 15, 16, 17, 18, 19, 38, 39, 40, 41, 43, 46, 47, 48, 57, 74, 75,
77, 79, 80, 81, 82, 83, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 95, 96, 98, 99, 109, 110, 134,
136, 146, 147, 171, 174, 175, 176, 179, 180, 181, 184, 188, 189, 191, 193, 194, 195, 196
Jornalismo esportivo 37, 39, 40, 41, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49
Jornalismo literário 114, 119, 121
L
Lugar de memória 123, 124, 126, 127, 128, 129, 130
M
Mato Grosso 62, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 112
Mato Grosso do Sul 74, 75, 79, 80, 81, 83, 112
Memórias 13, 92, 114, 115, 117, 118, 122, 126, 140, 141, 142, 186, 191
N
Neopentecostalismo 192, 193, 197, 198, 201
O
Orlando Brito 202, 203, 205, 206, 208, 210, 211, 212
P
Pós-memórias 115, 117
R
Radiojornalismo 50, 51, 54, 55, 57, 59, 60
Relações de poder 156, 158, 170, 172, 174, 175, 181
Representação social 169, 170, 172, 173, 174, 176, 177, 178
Revista Ocas 150, 155
Revista Piauí 205, 207, 208, 211, 212, 214
Revistas brasileiras 98, 106
S
Segunda Guerra Mundial 87, 88
Street papers 145, 146, 147, 148, 154, 155
T
Televisão 24, 25, 27, 35, 47, 55, 56, 57, 85, 89, 94, 99, 100, 102, 103, 104, 105, 106,
107, 108, 109, 110, 111, 112, 156, 158, 159, 160, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168,
196, 198, 199
Testemunho 132, 133, 134, 135, 136, 139, 140, 141, 144
TV Educativa 156, 157, 158, 161, 163, 164, 166, 167, 168
TV Universitária 156, 158, 160, 161, 165
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Índice Remissivo
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